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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

JOSÉ MAURÍCIO CARNEIRO DALTRO BITTENCOURT

A PARTICIPAÇÃO POPULAR NOS PROJETOS PÚBLICOS


DE INTERVENÇÃO URBANA: o caso da 7ª etapa de
Revitalização do Centro Histórico de Salvador

Salvador
2011
JOSÉ MAURÍCIO CARNEIRO DALTRO BITTENCOURT

A PARTICIPAÇÃO POPULAR NOS PROJETOS PÚBLICOS


DE INTERVENÇÃO URBANA: o caso da 7ª etapa de
Revitalização do Centro Histórico de Salvador

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia como
requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências
Sociais.

Orientadora: Prof.ª. Dr ª. Anete Brito Leal Ivo

Salvador
2011
____________________________________________________________________________

Bittencourt, José Maurício Carneiro Daltro


B624 A participação popular nos projetos públicos de intervenção urbana: o caso da
7ª etapa de revitalização do centro histórico de Salvador /José Maurício
Carneiro Daltro Bittencourt . – Salvador, 2011.
167f. : il.

Orientadora: Prof.ª. Dr ª. Anete Brito Leal Ivo


Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, 2011

1. Patrimônio histórico – Salvador (BA). 2. Pelourinho (Salvador, Bahia).


3. Participação social. 4. Preservação. 5. Espaços públicos. I. Ivo, Anete Brito Leal.
II. Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
III. Título.
CDD – 363.69
_____________________________________________________________________________
TERMO DE APROVAÇÃO

JOSÉ MAURÍCIO CARNEIRO DALTRO BITTENCOURT

A PARTICIPAÇÃO POPULAR NOS PROJETOS PÚBLICOS DE


INTERVENÇÃO URBANA: o caso da 7ª etapa de Revitalização do Centro Histórico de
Salvador

Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Ciências Sociais,
Universidade Federal da Bahia – UFBA, pela seguinte banca examinadora:

Anete Brito Leal Ivo – Orientadora (UFBA)


Doutora em Sociologia
Universidade Federal de Pernambuco

Ângela Maria de Almeida Franco (UFBA)


Doutor em Arquitetura e Urbanismo
Universidade Federal da Bahia

Iracema Brandão Guimarães (UFBA)


Doutor em Sociologia
Universidade de São Paulo

Salvador, 31 de outubro de 2011


Dedico este tempo de estudo, de escrita, em
memória a Dona Maria, por seu silêncio que
também revelou sua luta, por sua alegria, sua
presença, sua amizade, seu carinho.
AGRADECIMENTOS

Por muitos momentos da escrita desta dissertação fiquei em agradecimento. Agradeci a


DEUS, aos santos, por me mostrar caminhos, estradas, me colocar junto às lutas populares, da
oportunidade em refletir, dialogar com os conceitos e teorias das Ciências Sociais, da prática à
teoria e voltar... e assim pedi para não me tirar desta estrada. Estrada dura, sofrida sim, em ter
que objetivar o que sempre foi tão subjetivo em mim; a paixão e a mística.

Ao CEAS – Centro de Estudos e Ação Social, por ser uma casa, uma escola, uma
universidade. Pela oportunidade em me dar tempo, espaço, conhecimento, prática. Da
convivência com pessoas especiais e por seus incentivos para com esta minha produção:
Maria Ubajareida (Bajinha), Rita de Cássia Santa Rita (Ritinha), Manoel Maria do
Nascimento Filho (Manolo), Catarina Lopes, Padre Andrés, Padre Clóvis, Joaci Cunha, estes
em especial por conviverem comigo em campo de trabalho.

A AMACH – Associação dos Moradores e Amigos do Centro Histórico, pela construção


conjunta. Pelas lutas e embates com o Governo do Estado da Bahia. Pela troca, por me ensinar
sobre a vida, os perigos, as mazelas, a força, as vozes, a resistência: Jecilda Melo (A Pró),
Sandra Regina, Dona Maria, Elisângela, Benedita, Chica, Lurdes, Rose, José Carlos, Cícero.
Aqui incluo Professora Lysiê Reis, companheira e amiga, por sua contribuição a este trabalho
de pesquisa e por todo momento bom e difícil que vivemos no acompanhamento da esfera
pública criada com a intervenção da 7ª Etapa de revitalização do Centro Histórico.

Especialmente a Professora Anete Brito Leal Ivo, por sua orientação, por me mostrar os
caminhos da teoria. Por sua competência, compromisso e seu incrível poder em responder
detalhadamente as minhas tantas questões e angústias. Por me tranqüilizar quando assim
deveria ser e por apresentar críticas construtivas nos momentos mais intensos desta minha
produção. Anete, outra vez, fica difícil te agradecer!!

A minha família. Aos meus pais, Margarida Maria M. Carneiro Bittencourt e José Pedro
Daltro Bittencourt, por tudo. Minha irmã Daniella Daltro, que acabou por me levantar em
momento pessoal difícil enfrentado durante o período do mestrado. Aos meus dois filhos,
Marina (5 anos) e Pedro (3 anos), por me mostrarem que a vida é para ser vivida de fato. A
Maria Pessoa, pelo amor, por nossa construção, nossa caminhada, nossa vida conjunta.

Agradeço a todos!
O mundo comum é aquilo que adentramos ao
nascer e deixamos para trás quando morremos.
Transcende a duração de nossa vida tanto no
passado como no futuro: preexistia à nossa
chegada e sobreviverá à nossa breve
permanência. É isso o que temos em comum não
só com aqueles que vivem conosco, mas também
com aqueles que virão depois de nós.
Hannah Arendt
RESUMO

Este estudo busca analisar o campo conflituoso dos usos diferenciais do espaço urbano a
partir da 7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico, no Pelourinho (Salvador), observado
do ponto de vista da formação de esferas públicas de mediação e encaminhamento dos
interesses conflitantes entre os moradores e o Governo do Estado – ambos defendendo o
patrimônio histórico, mas cada um de seu próprio ponto de vista. A questão central em análise
é a reconstituição de um campo de conflito em formação, e como, ao longo do processo, os
moradores vão se transformando em sujeitos de direitos, com suas ambiguidades e
contradições, através de um processo reflexivo, não-linear, com avanços e recuos, de
avaliação sobre os usos do espaço público urbano. Apesar de se constituir numa experiência
que afetou um pequeno número de moradores, foi capaz de mobilizar interlocutores em
grande escala, desde moradores locais, técnicos do Estado e imprensa até representantes do
Governo Federal e de organizações internacionais. O debate entre moradores e o governo
permite observar concepções e valores distintos quanto à abordagem do patrimônio e à
concepção da “revitalização”: a racionalidade do planejamento do governo e os interesses
constituídos pelos moradores do local, que contrapuseram a “cidade planejada” e a “cidade
vivida”, o patrimônio material e o patrimônio imaterial. O detalhamento deste conflito tem
como base a documentação elaborada pelo trabalho de assessoria aos movimentos populares
de luta por moradia, pelos procedimentos judiciais construídos em defesa dos moradores e por
matérias de jornal. A partir desses documentos foram sendo analisadas as ações
comunicativas de defesa e contestação elaboradas como justificativas nas arenas constituídas
com vistas à construção da participação popular no projeto da 7ª Etapa de Revitalização do
Centro Histórico de Salvador. O resultado deste trabalho mostra que o processo político não é
linear; destaca as lutas no âmbito dos próprios moradores; avalia os limites e alcances do
processo participativo e a contradição inerente aos usos do espaço urbano, especialmente nas
situações de preservação de sítios históricos.

Palavras-chave: Participação popular. Centros históricos. Pelourinho. Preservação


patrimonial. Esfera pública.
ABSTRACT

This study seeks to analyze the conflicted field of the different uses of urban space within the
7th Stage of the Revitalization of the Historic Center at Pelourinho (Salvador, Bahia),
observed from the viewpoint of the formation of public spheres of mediation and routing of
conflicting interests among the residents and the State Government – both defending the
heritage, but each one of your own point of view. The central question at hand is the
reconstruction of a field of conflict in the making, and how, throughout the process, residents
are transformed into subjects of rights, with its ambiguities and contradictions, through a
reflective, non-linear process of assessment of the uses of public space, with advances and
retreats. Even though this is an experience that affected only a small number of residents, it
was able to mobilize large-scale actors, from local residents, technicians and state
representatives to press the federal government and international organizations. In the debate
between residents and State government one can observe different views and values about
equity and the approach to the concept of "revitalization": the rationality of government
planning and the interests generated by local residents, who countered the "planned city" and
"lived city”, the “material heritage” and the “intangible heritage”. The details of this conflict
is based on documentation prepared by the advisory work of popular movements fighting for
housing, by the judicial procedures on behalf of the residents and by newspaper articles. From
these documents it was possible to analyze the communicative actions of defense and
disputation as justifications in the public arenas prepared to the construction of popular
participation in the 7th Stage of the Revitalization of the Historic Center of Salvador. The
result of this work shows that the political process is not linear; highlights the contradictions
implicit in the context of the struggles of the residents themselves; assesses the limits and
scope of the participatory process and the contradiction inherent in the use of urban space,
especially in situations of preservation of heritage sites.

Keywords: popular participation, heritage sites, Pelourinho, patrimonial preservation, public


sphere
SUMÁRIO
1 Introdução .....................................................................................................................10

CAPÍTULO 2 – HISTÓRICO CENTRO: PLANOS E TRANSFORMAÇÕES ............35


2.1 Histórico do Centro Histórico....................................................................................35
2.2. A formação de um consenso sobre a vocação turística do “Centro Histórico” .......43
2.3. Reforma urbana, requalificação, revitalização, relocação o que nos “re-vela”
os termos ..........................................................................................................................53

CAPÍTULO 3 - A IMPLANTAÇÃO DA 7ª ETAPA DE REVITALIZAÇÃO DO CENTRO


HISTÓRICO ....................................................................................................................64
2.1. Os objetivos, as metas e as palavras: o que revelam os documentos da implementação da
7ª Etapa ............................................................................................................................65
2.2. A constituição da esfera pública na implantação da 7ª Etapa de
Revitalização do Centro Histórico de Salvador: a mídia impressa e os primeiros embates entre
atores ...............................................................................................................................68
2.3. A voz dos moradores diante do anúncio da 7ª Etapa................................................76

CAPÍTULO 4 – PARTICIPAR OU NÃO PARTICIPAR, EIS A QUESTÃO ...............85


4.1. A vida é uma luta: os desafios colocados para a participação popular, no
projeto de revitalização da 7ª Etapa do Centro Histórico ................................................87
4.1.1. A vida, a sobrevivência e o participar ..................................................................88
4.1.2. Vida e luta: a participação da mulher na 7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico
.........................................................................................................................................99
4.1.3 O tempo de participação ........................................................................................ 104
4.2. Os caminhos de mobilização e mediação nas esferas públicas de
participação na 7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico ....................................112
4.3. Os amigos da AMACH e seus papeis diante da esfera pública de
participação ....................................................................................................................114
4.4. As estratégias para construção da participação no projeto da 7ª Etapa ..................120
4.5. A construção das esferas públicas: a mediação do conflito pela instância
jurídica e o Comitê Gestor .............................................................................................125
4.5.1. A mediação jurídica, os embates e as revelações ................................................127
4.5.2. A expansão do conflito: relatos, fatos, revelações, seminários,
articulação e reuniões ...................................................................................................136
4.5.3. O alcance, as aparências e os limites do Comitê Gestor, enquanto
esfera de regulação e concertação .................................................................................146

CONSIDERAÇÕES FINAIS. .......................................................................................156

REFERÊNCIAS ...........................................................................................................160
2. Documentos ...............................................................................................................163
3. Matérias de Jornal................................................................................................. 166
10

1 INTRODUÇÃO

Esta dissertação busca analisar a constituição de uma esfera pública formada pelos
moradores em luta a partir da implementação do projeto de revitalização da 7ª Etapa do
Centro Histórico de Salvador, onde um campo de interesses conflitantes entre moradores e
planejadores explicitou usos diferenciados na área do patrimônio histórico de Salvador. O
embate entre os moradores locais e os técnicos dos órgãos públicos, responsáveis pelo plano
de revitalização da área, expressa contradições que contrapõem moradores locais em luta pela
garantia do direito à moradia e o Governo do Estado da Bahia, atores principais deste embate.
Gradativamente foram sendo constituídos espaços de negociação e mediação através de
diversas arenas públicas de participação dos moradores neste processo. Conquanto essa
participação surgisse por uma demanda dos próprios moradores e daqueles que foram se
constituindo como sua assessoria em defesa dos seus direitos, essa participação era restrita,
seja pelo pequeno número de pessoas mobilizadas, seja quanto às reais possibilidades de
mudança do projeto.

A análise dos projetos de revitalização urbana, especialmente em áreas de patrimônio


histórico, representa um rico campo de estudo sobre as cidades contemporâneas. Ela permite
explicitar os conflitos entre o “pensar” e o “fazer” a cidade, e a capacidade efetiva de
constituição desses moradores como sujeitos de direitos, na esfera da participação popular
democrática, permitindo observar, por um lado, como o planejamento urbano rompe com as
condições de reprodução desses moradores da área onde a intervenção será executada; por
outro, possibilita observar a constituição de um espaço público em formação, através dos
processos de intermediação de interesses nas arenas de negociação, especialmente no campo
da justiça, aonde os interesses divergentes se explicitam, expressando contraposição entre
concepção e ações diferenciadas dos atores envolvidos no projeto.

Para analisar estas questões a pesquisa priorizou uma das intervenções urbanas
implementada pelo Governo do Estado da Bahia1, o Projeto da 7ª Etapa de Revitalização do

1
A coordenação deste processo foi da Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia
(CONDER), uma empresa pública, com personalidade jurídica de direito privado, vinculada à Secretaria de
Desenvolvimento Urbano, e que tem por finalidade promover, coordenar e executar a política estadual de
desenvolvimento urbano, metropolitano e habitacional do Estado da Bahia.
11

Centro Histórico de Salvador. A 7ª Etapa, como passou a ser conhecida a intervenção, dá


continuidade a uma série de intervenções que o Poder Público da Bahia vem realizando no
Centro Histórico de Salvador, mais intensamente desde o início dos anos 90. A etapa
pesquisada iniciou-se no ano 2000 e se prolonga até o momento atual (2009/2011). Porém o
recorte temporal desse estudo compreende o período de 2000 (ano do anúncio da implantação
do projeto de reforma) e 2007, momento de entrega das primeiras chaves das casas
reformadas aos moradores.

Este processo, que implicou, ao mesmo tempo, numa demanda de participação popular
e na defesa do direito à moradia pelos moradores, explicita os limites e avanços alcançados
para a participação dos moradores no projeto sua luta para que pudessem se expressar e serem
ouvidos pelo governo. Neste processo observam-se contradições entre “diferentes tempos”
vividos pelos atores: o tempo oficial do desembolso dos recursos dos financiadores e dos
mandatos executivos, que se contrapõem e confrontam com o tempo necessário para a
organização comunitária e popular de forma a poderem absorver essas informações, formular
suas propostas, sistematizar e apresentar suas demandas e expectativas, além do desafio de
conciliar essas dificuldades às condições efetivas da reprodução e da sobrevivência. O papel
das mulheres em maioria, dentro da organização popular, também ganha destaque. As
estratégias criadas, a organização comunitária da associação de moradores, o uso da mídia
impressa, a busca das parcerias, a construção de documentos públicos e a mediação da justiça,
através do Ministério Público do Estado da Bahia, foram observadas como ações
desenvolvidas a partir do poder de expressão dos moradores. Esses gradativamente foram
descobrindo e reconhecendo, na dinâmica do processo de implementação e de resistência
deste projeto de intervenção pública, o seu direito à voz e a necessidade de constituição do
diálogo e do conflito.

Considerando que este processo de planejamento do espaço tem caráter histórico, em


Salvador a dissertação faz uma reconstituição das mudanças ocorridas no Centro Histórico de
Salvador até a etapa específica de revitalização pesquisada. Observa os atores emergentes, os
limites e avanços no campo das negociações, bem como recompõe os sentidos da noção de
“revitalização”, os julgamentos de valor moral sobre a pobreza dos moradores, o sentimento
de justiça que estes formulam em relação ao destino dado ao “lugar”, destacando também
como a intervenção afeta a sociabilidade desses moradores.
12

De forma a qualificar a natureza da informação aqui apresentada a seguir serão


apresentados elementos singulares do processo de conhecimento da área e do movimento, a
partir de minha condição de assessor dos movimentos urbanos através do Centro de Estudos e
Ação Social – CEAS2, no período analisado.

***

Desde 2001 passei a integrar a Equipe Urbana do Centro de Estudos e Ação Social -
CEAS, entidade de assessoria aos movimentos sociais urbanos e rurais da Bahia, que tem por
missão refletir e agir diante das questões que envolvem as lutas populares. Esta equipe, de
caráter multidisciplinar, acompanha as lutas de moradores e moradoras de bairros populares
para efetivação dos seus direitos, principalmente a garantia da moradia. Durante os meus
primeiros anos de assessoria acompanhei processos de enfrentamentos e resistência de
moradores em bairros como Marechal Rondon, Cabrito, Gamboa de Baixo, Bairro da Paz,
Centro Histórico, todos vivenciando situação de conflito em função da redefinição dessas
áreas por novos planos de ocupação e revitalização dos mesmos por parte do Poder Público,
seja do Governo do Estado da Bahia ou da Prefeitura Municipal da Cidade de Salvador.

Entre estas experiências fiquei responsável por acompanhar mais diretamente o


Projeto de Revitalização da 7ª Etapa do Centro Histórico de Salvador, objeto dessa
dissertação, tendo como meta construir, junto com as famílias que seriam atingidas pela
reforma, um canal de diálogo e a apresentação de propostas que contemplassem os direitos
destes moradores. Esta vivência como assessor, me levava a observar como os interesses e as
preocupações do Poder Público acabavam por impor projetos e intervenções, que nem sempre
contemplam a participação mais plural dos diversos envolvidos nestes, especialmente dos
moradores em situação de pobreza e de ocupação informal da área. Neste sentido, era possível
perceber como a construção informal da cidade com vistas a permanecer em determinados
espaços urbanos, historicamente acabou por resultar na própria formação de Salvador. Essa
ocupação espontânea e pressionada pelo capital fundiário e imobiliário contradiz com planos
urbanísticos de caráter técnico, o que caracteriza tensões entre os moradores de bairros
populares, suas resistências e os novos destinos definidos para área.

Ao longo do tempo os atores envolvidos e a história vão construindo um cenário


político de possibilidades de ganhos, mas, ao mesmo tempo, um cenário de incertezas que

2
O CEAS é uma entidade fundada em 1967, em Salvador/BA e desde então atua junto aos movimentos
sociais urbanos e rurais do Brasil na busca dos seus direitos, refletindo historicamente a sua prática.
13

acompanham o fazer político. No plano pessoal, algumas angústias vividas enquanto assessor,
começam a ser formuladas no sentido de sistematizar essa experiência e de apreendê-la do
ponto de vista analítico com recurso a uma reflexão acadêmica. Consciente dessa necessidade,
me orientei para buscar esse dialogo pessoal com a academia, com vistas a traduzir o
conhecimento da prática no âmbito da teoria, que me permitissem um olhar mais crítico e
analítico sobre os problemas e processo desde a seleção até a formulação mais clara de um
objeto de análise.

Com a orientação e acompanhamento da Prof.ª Anete Brito Leal Ivo o objeto de


pesquisa, que no projeto da seleção tinha um recorte mais amplo, e propunha analisar três
experiências diferenciadas de intervenção urbana, (Gamboa de Baixo, Marechal Rondon e
Centro Histórico), foi sendo detalhado, restringindo-se o projeto à intervenção urbana de
revitalização de áreas de moradia popular, tendo como campo empírico o Projeto da 7° Etapa
de Revitalização do Centro Histórico de Salvador-BA A formulação inicial do projeto
também tinha um patamar muito amplo e necessitava uma delimitação mais clara coerente
com as possibilidades do material existente. Inicialmente, as questões elaboradas pareciam
não se afastar das “noções prévias” adquiridas com o trabalho de assessoria e, as diversas
dimensões implícitas, como a falta de uma escolha teórica clara dificultavam a delimitação do
foco da pesquisa, a abordagem central de análise que orientasse o olhar sobre o problema.

Desta forma, o resultado deste esforço foi definir e restringir o objeto considerando a
formação de uma “esfera pública”, e a formação de um sujeito -o morador- que se reconhece
como cidadão de direito sobre a cidade, conflitando com outros fins e usos do espaço urbano:
a preservação do patrimônio cultural para fins de turismo. A formação dessa esfera pública
não é aqui vista como uma abstrata ou preexistente, mas ela se constitui diante da ação de
intervenção do Poder Público, que tem poder regulador, mas que traz implicações sobre “o
outro” – os cidadãos, moradores da área.

A partir da consciência dos riscos implícitos na intervenção se constitui um campo


“conflitivo e comunicacional” entre atores moradores, a assessoria popular e os técnicos
responsáveis pelo projeto do governo estadual. Gradativamente, novos recursos vão sendo
constituídos com a mediação da assessoria jurídica, que se forma na busca de negociações
para os encaminhamentos dos destinos dos moradores, um momento singular onde se pode
observar a formação desses sujeitos num campo de luta e negociação em relação ao destino de
14

um espaço público. Por outro lado, esse processo foi também ampliado e expresso na
imprensa, na mobilização da opinião pública.

De forma a subsidiar a abordagem central dessa dissertação tomou-se por referência a


noção de “esfera pública” de Hannah Arendt. Essa perspectiva implica identificar o campo do
embate e os diferentes atores que emergem e vão se constituindo nesse processo de luta e
resistência, mediados pela “estrutura de diálogos entre atores que se dão num campo do
conflito e na busca por justiça”

A pesquisa, portanto, busca responder às seguintes indagações: Como surge a proposta


de intervenção, em que momento ela expressa um campo de conflito e como emergem os
atores envolvidos? Quais suas estratégias adotadas, quais limites e recursos são encontrados
na esfera de negociação formada? Com base nessas indagações iniciais que ajudam a
identificar a trama do conflito e os atores que nele se manifestam numa dinâmica de ação e
reação intersubjetiva, definimos o recorte do objeto desta pesquisa.

A tensão que envolve a definição dos destinos desta área urbana implica um gradativo
processo de formação e informação pública sobre o destino da área, sua funcionalidade em
relação ao desenvolvimento urbano e seus efeitos sobre os seus antigos ocupantes. Este
processo permite levantar três hipóteses previas: a primeira, a de que o lugar, a sua formação
e constituição não resulta apenas dos traços morfológicos dos planos urbanos e desenhos
arquitetônicos, mas se constitui diretamente associado à dinâmica das relações sociais. Em
segundo lugar, a relação dos habitantes (moradores e trabalhadores) com o lugar, como
espaço de uso e de sobrevivência, envolve uma tensão subjacente que resulta do padrão de
distribuição de recursos fundiários e bens urbanos sobre o território e sobre os segmentos
sociais; e, por fim, uma terceira dimensão, num contexto democrático, envolve a transição e
mudança de uma cultura política autoritária, para um contexto que assegura direitos de
participação da cidadania nos projetos urbanos da cidade, dispondo à opinião pública projetos
distintos. Esse processo envolve operações de denúncia e busca de justiça, pelos quais os
diversos sujeitos começam a definir-se e reconhecer-se, são descritos, redefinidos e
localizados no âmbito da estrutura social da cidade.

***

O projeto de recuperação da 7ª Etapa do Centro Histórico de Salvador tem seu início


no ano de 2000. Ele faz parte do Programa de Reabilitação do Patrimônio Cultural e Urbano,
do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (IPHAN), do Ministério da Cultura (MinC),
15

Programa Monumenta3 com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento


(BID), do Programa das Nações Unidas para educação e Ciência e Cultura (UNESCO) e com
substancial participação do Governo do Estado da Bahia, em termos de contrapartida, bem
como a complementação dos recursos para o setor habitacional, através da Caixa Econômica
Federal (CEF).

O projeto de recuperação tem como órgão executor a CONDER (Companhia de


Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia) e a previsão para a 7ª Etapa é de abarcar 130
imóveis, com 316 unidades habitacionais a serem reformadas, sendo que destes, apenas 103
serão destinadas aos moradores antigos da área. Serão acrescidos ainda 60 lojas e 08
monumentos, em 08 quarteirões4.

Os limites da “poligonal”, como mostra a imagem abaixo5, englobam as ruas São


Francisco, Sete de Novembro, Guedes de Brito, 28 de Setembro, J. J. Seabra, Rui Barbosa,
Rua do Tesouro, Ladeira da Praça, José Gonçalves, Saldanha da Gama e Monte Alverne. As
primeiras intervenções ocorreram no Seminário de São Dâmaso, na Igreja D‟Ajuda, na Capela
da Ordem Terceira de São Francisco, nos 02 prédios da Rua do Tesouro, na Casa dos Sete
Candeeiros e em dois imóveis na Rua Saldanha da Gama, que abrigam hoje a atual sede do
IPAC. Até o momento final desta dissertação (outubro de 2011), apenas 30 imóveis haviam
sido entregues aos moradores, num total de 103 unidades habitacionais.

3
O Monumenta é um programa de recuperação do patrimônio tombado pelo IPHAN. Sua atuação no
“Centro Histórico” de Salvador resulta de um contrato de empréstimo firmado entre o Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID) e o Governo Federal, através do Ministério da Cultura (MinC). A unidade executora do
projeto (UEP) está vinculada à CONDER, que é um órgão da Secretaria de Desenvolvimento Urbano (SEDUR).
Inicialmente, os recursos anunciados para a 7ª Etapa são de R$ 18.341.000,00 (BID/ MinC /Estado) mais R$
14.500.000,00 (CAIXA/ Gov. do Estado).
4
As informações quanto ao número de edificações a serem inseridas oscilam nos locais em que o
governo da Bahia as publica: sites oficiais, material de divulgação da CONDER e Jornais da cidade.
5
Este mapa foi construído pela equipe técnica da CONDER e só foi adquirida pela AMACH –
Associação de Moradores e Amigos do Centro Histórico após 6 anos de negociação e embates com o Governo
do Estado da Bahia.
16

Figura 1:
Figura 1: Poligonal da 7ª Etapa de Recuperação do Centro Histórico. Fonte: CONDER.

A área de intervenção compõe uma sequência de etapas de revitalizações anteriores no


Centro Histórico de Salvador, iniciada em 1992, que culminaram numa mudança das
características socioculturais deste território urbano, que será melhor detalhada a partir da
reconstituição do processo histórico de construção e Revitalização do Centro Histórico de
Salvador.

O advento da 7ª Etapa apresenta, no entanto, algumas singularidades em relação às


outras etapas passadas, incluindo uma maior ênfase na habitação, frente às prioridades
comerciais das intervenções passadas e, em função desta característica, o processo envolve
maior tensão em torno do direito vital à moradia. Essa tensão e a busca da efetivação do
direito à moradia por parte das famílias que habitavam a área antes da intervenção têm
implicações e dificuldades devido aos critérios de elegibilidade dos moradores segundo os
programas de financiamento e estratificação de renda dos beneficiados. Assim, parte dos
casarões a serem reconstruídos foi contemplada com o programa habitacional de interesse
social, destinado a aqueles que ganham de zero a três salários mínimos, o PHIS – Programa
Habitacional de Interesse Social, envolvendo 103 unidades habitacionais. E são justamente os
caminhos, embates e diálogos para esta conquista da moradia em confronto com o plano de
intervenção público para a área que será o objeto de estudo dessa pesquisa.
17

***

Em toda parte, indiferença bárbara, dureza egoísta de


um lado e miséria indestrutível por outro, em toda
parte guerra social, a casa de cada um em Estado de
sítio. (ENGELS, 1985, p. 36)

Mesmo considerando os tempos e a conjuntura histórica e social distinta, o uso desta


epígrafe traz uma analogia sobre as condições de moradia dos moradores na área aqui
pesquisada com as condições históricas do processo de urbanização na Inglaterra em 1845
descritas por Engels (1985) no livro “A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra”, que
faz uma associação entre a constituição do trabalhador para o trabalho e as condições de sua
reprodução.

No capítulo “As grandes cidades”, Engels apresenta uma detalhada descrição dos
espaços de moradia dos bairros proletários da Inglaterra no séc. XIX. que lembra em muito,
tomadas as devidas reservas e guardadas as devidas proporções, os aspectos físicos e sociais
da área dos moradores residentes na área da 7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico de
Salvador. Essa comparação, marcada evidentemente por contextos históricos e regiões
totalmente diferentes, mostra a persistência de uma visão moralista e estigmatizada da
pobreza e dos bairros populares como “bairros de má reputação”. No caso específico da área
da 7ª Etapa em estudo, ela é caracterizada como território “abandonado”, “perigoso”, ou
“cracolândia”.

Desde o início das minhas idas a campo, ainda no ano de 2002, percebia o quanto
aquela área estava abandonada pelo Poder Público. Descrever as minhas impressões iniciais
da área da pesquisa, naquele momento, é de fundamental importância, porque esclarece o
cenário encontrado no momento de intervenção da 7ª Etapa. Algumas ruas, principalmente as
que delimitavam com o Centro Histórico reformado (Monte Alverne, São Francisco)
demonstravam explicitamente as grandes diferenças entre estes dois espaços e, porque não,
entre dois territórios vizinhos, arquitetonicamente parecidos, mas social e culturalmente
opostos: aquele reformado pelas etapas anteriores de revitalização e já ocupado com as
atividades de comércio para o turismo, e a 7ª Etapa, completamente abandonada pelo Poder
Público, onde viviam famílias e pessoas em situação de extrema pobreza.

A divisão já começava a ser sentida no próprio ar. A menos de um quarteirão do


Centro Histórico reformado nas seis Etapas anteriores, prevalecia o cheiro de esgoto, lixo,
mofo que caracterizavam o ambiente apenas da área da 7ª Etapa. O ar, para mim, sempre foi
18

um indicador importante de limites da territorialidade daquele espaço. O lixo, produzido em


boa parte pelo comércio do Centro Histórico reformado, era depositado a céu aberto na
esquina entre a Monte Alverne e a Rua da Oração, e a limpeza pública nunca foi constante
naquelas ruas até meados de 2009. Assim, os ratos e pombos também eram personagens
sempre presentes na visitas feitas a campo neste momento, seja nas ruas, seja mesmo dentro
de algumas residências visitadas. As famosas pedras de revestimento do solo, popularmente
conhecidas como pedra “cabeça de negro”, ou paralelepípedo, que compunham as ruas do
Centro Histórico, na 7ª Etapa sempre estiveram mal colocadas, com muitas falhas, e às vezes
em ruas inteiras, como a Rua da Oração, o barro se fazia o chão. Durante a noite somava-se
ainda a esse ambiente insalubre a falta de iluminação pública, tornando o ambiente ainda mais
inóspito.

No Pelourinho reformado, palco de eventos onde as classes sociais podem, em tese, se


“misturar”, onde as festas ocorrem, onde as lojas, restaurantes e bares de alto padrão de
consumo estão implantadas, a realidade parece diferente. O ar não está contaminado pelos
odores podres, as ruas estão limpas e calçadas, o policiamento é ostensivo e “educado” para
atender ao visitante, as casas encontram-se, em sua grande maioria, bem conservadas. As
pessoas transitam neste espaço sem se dar conta da “periferia” deste sítio ou destes “outros”
locais degradados, e é comum ver os transeuntes passando por estas áreas, ignorando, muitas
vezes, a situação ou se sentindo ameaçados por ela em sua integridade física e moral. A
situação aproximava-se da discrição feira por Engels num artigo do Times, de 12 de outubro
de 1843 da Inglaterra do séc. XIX.

A riqueza rindo-se do alto dos seus brilhantes salões, rindo-se com uma
brutal indiferença, mesmo ao lado das feridas ignoradas da indigência! A
alegria, zombando inconscientemente mas cruelmente do sofrimento que
geme ali em baixo! (THE TIMES, 12 de outubro de 1843, p. 4, col. 3, apud
ENGELS, 1985, p. 44)

A tipologia habitacional também chamava minha atenção nas primeiras visitas. Apesar
da área integrar o mesmo patrimônio arquitetônico, o Estado das casas da 7ª Etapa era um
sinal iminente das tragédias que geralmente ocorrem nestes sítios abandonados, a exemplo
dos desabamentos, incêndios, insalubridade. Os desabamentos eram constantes e, segundo
relatos dos moradores, eles reconhecem o momento do desabamento pelo barulho das raspas
de tinta e cimento ao chão e o ranger singular das paredes antes da sua caída; quando esta
percepção é possível, há tempo para salvar vidas. O chão das casas, geralmente de madeira,
estava em situação tão ruim que desafiava os passos dos desacostumados com o ambiente.
19

Lembro-me que na casa de uma das mulheres que acabou se constituindo numa das lideranças
políticas comunitárias, eu sempre era alertado para não pisar no centro do corredor de entrada
pois, pisando neste centro, corria-se sério perigo do chão ruir e a queda levaria direto a um
subsolo onde a lama, o lixo e os pedaços de ferro e madeira poderiam causar graves
ferimentos. Assim, todos se espremiam pela parede para atravessar até os cômodos internos.
A tática utilizada pelos moradores para se manterem nessas casas, e manterem suas casas em
pé, mesmo sob risco de desabamento, era a realização de pequenas reformas, como a
colocação de uma viga de sustentação em uma parede, limpeza interna, pequenas obras de
esgotamento, telhados... que de algum modo acabavam também por preservar estes ditos
patrimônios históricos da humanidade, sem as quais o Centro Histórico possivelmente estaria
em situação habitacional bem pior.

A insalubridade somada à superlotação das moradias, em alguns casos, fazia com que
a casa fosse apenas um lugar de abrigo, e não um local de convivência ou habitabilidade. Esta
situação insalubre, com muito mofo, umidade e sujeira era responsável por problemas
respiratórios que afetavam boa parte das famílias, principalmente as crianças, os recém
nascidos e os idosos. As sublocações e o amplo número de entes familiares em um só espaço
faziam parte da forma de alojamento destes casarões e sobrados históricos, sendo comum a
falta de espaço e os problemas na utilização dos sanitários por um numero maior do que ele
suportaria. Abaixo segue parte do relatório que redigi à época, em 2 de setembro de 2002,
quando do acompanhamento da equipe de estudantes de engenharia da UFBA (Universidade
Federal da Bahia) para construção das plantas baixas das casas, a pedido da Associação de
Moradores:

[...] Ao entrar no casarão de nº. 35, o forte cheiro de mofo, esgoto, as paredes
e telhados rachados, as tábuas de madeira no chão que mexia a cada pisada e
os olhares desconfiados dos muitos moradores que habitam o local,
pareciam, de certo modo, amedrontar aquela equipe de cinco estudantes de
engenharia que se disponibilizaram a construir plantas baixas das casas...
Uma das meninas segurou logo no braço do rapaz para não cair nas
escadarias de madeira antigas que realmente não demonstravam segurança
alguma... a outra garota permaneceu o tempo todo com os dedos tapando o
nariz para assim se livrar do cheiro do ambiente. A dona do imóvel ia
conversando e andando como se não percebesse o incomodo da equipe e eu
também fingia que não percebia e aproveitava para brincar com as crianças
que se equilibravam nas madeiras “como equilibristas do circo da vida”. A
20

situação fez com que uma das meninas, aquela que segurava o nariz, tomasse
logo uma decisão: “esta casa fica pro final, vamos!”(CEAS, 2002, p. 01-02)6

Vejamos como o cenário descrito aproxima-se daquele analisado por Engels em


relação às habitações do séc. XIX, na Inglaterra:

Por toda parte os edifícios estão em semi ou completamente em ruínas,


alguns são realmente inabitáveis e isto é significativo. Nas casas quase nunca
há assoalho ou mesmo ladrilhos e as janelas e as portas estão quase sempre
partidas e mal ajustadas. Que sujeira! Por toda parte montes de escombros,
de detritos e de imundices; em vez de valetas poças estagnadas... (ENGELS,
1985, p. 63)

O olhar e a percepção deste campo de trabalho destacavam os problemas, como


também as diferentes formas de viver. As visitas chamavam a atenção para os modos de vida
existentes, levavam a refletir sobre os fatores determinantes daquela situação, evitando cair
em julgamentos fáceis, do senso comum, caracterizados por uma versão moralista e
preconceituosa sobre esses moradores. Assim, mesmo diante de uma realidade tão dura e
desumana, algumas famílias se esforçavam para manter seus vínculos familiares, educar seus
filhos, manter um relacionamento conjugal. Durante os mais de cinco anos de vivência na
área pude constatar que nela existem pessoas trabalhadoras, famílias inteiras criadas em
ambientes insalubres e violentos, mas que conseguiram formar seus filhos em universidades,
exército, cursos técnicos, mesmo na adversidade. Por outro lado, ali também se efetiva formas
de sociabilidade e convivência comunitária, onde as trocas e pequenos favores são facilmente
identificáveis, a exemplo do ato de aceitar gratuitamente uma das crianças da vizinha na aula
de reforço escolar, nos empréstimos e troca de material de consumo caseiro, na oferta de um
almoço ao vizinho que não tem o que comer no dia. Estes foram também argumentos
utilizados pelos moradores nas diversas reuniões realizadas de negociação com os órgãos
públicos, buscando contra-argumentar em favor de suas resistências e reivindicações em
permanência, considerando o papel que as práticas de entreajuda exercia na convivência
construída entre essas famílias durante anos.

Christian Topalov (1996), no seu trabalho “Da questão social aos problemas urbanos:
os reformadores e a população das metrópoles em princípios do século XX”, ao analisar as
cidades inglesas do princípio do séc. XX, permite estabelecer outra analogia entre a sociedade
inglesa e as reformas urbanas e primeiras intervenções públicas nas cidades, quando ele
interpreta as práticas cotidianas realizadas nos bairros populares como argumentos possíveis

6
Este relato etnográfico compõe o relatório intitulado “Pelourinho: uma simples conversa” de 02 de
setembro de 2002 e compõe o acervo da Equipe Urbana do CEAS
21

dos moradores para não deixar tais áreas. Para Topalov, inclusive, as habitações precárias
nunca seriam vistas por estes moradores como uma razão potencial para seu realojamento em
outras regiões da cidade, ainda mais quando se tratava das áreas centrais, onde o
deslocamento e a facilidade da mobilidade urbana eram fatores facilitadores para
sobrevivência e busca de pequenos trabalhos e serviços. Diante da possível ameaça de retirada
dos moradores dessas áreas, o autor relata formas de resistência dos moradores de irem para
as chamadas “cidades-jardins” que seriam bairros destinados a “acolher” tal população e que
sempre ficavam muito distantes do centro.

Este tipo de resistência e de reivindicação tem sua origem nas práticas


cotidianas dos habitantes em relação à moradia. Ficar no bairro é a exigência
mais comum, já que, no bairro, encontram os trabalhos, os numerosos
recursos da grande cidade e a solidariedade entre conjugues, indispensável
para a economia doméstica... Ninguém pensa em exigir as “moradas
saudáveis” das longínquas cidades-jardim dos reformadores; a oposição é
total ainda que, raramente, tenha obtido resultado quando os especuladores
ou as prefeituras se propuseram a demolir bairros insalubres (TOPALOV
apud RIBEIRO, 1996, p. 31).

Retornando à área de estudo, o lugar de destino da remoção seria a “Morada da


Lagoa”, bairro construído pela Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia
(CONDER) para relocação dos moradores do Centro Histórico, e que fica a 30 km. de
distância do centro da cidade. Desta forma, parece que o destino das classes populares diante
do processo de Revitalização do Centro Histórico constitui-se num fenômeno que acompanha
a história da urbanização e da industrialização no capitalismo. As análises críticas sobre a
história da urbanização européia e a formação da classe trabalhadora, na Inglaterra do séc.
XIX e início do séc. XX, pode ser reencontrada na similaridade das condições de vida aqui
estudadas, ainda que as condições históricas e os constrangimentos sejam distintos poltica,
cultural e economicamente.

***

Daqui em diante faremos uma breve recomposição da “cronologia do conflito”


referindo-nos ao desdobramento das ações temporais de luta dos moradores como cidadãos
com direitos, ações estas que definem os contextos e principais fatos que compõem cada
momento, os atores e espaços de mediação constituídos em cada um deles.

Mesmo iniciando com um resgate histórico das principais intervenções que


compuseram o Centro Histórico de Salvador, durante toda sua construção e reformas, o
movimento de reforma referente à 7ª Etapa de Revitalização, inicia-se efetivamente no ano de
22

2000 e prossegue até os dias atuais (2011). Porém, para efeito desta pesquisa restringimos o
trabalho de análise ao período de 2000 (de anúncio da intervenção) até 2007, quando ocorre a
entrega das primeiras moradias para as famílias.

Sendo assim, a dissertação busca levantar e sistematizar os diversos fatos e iniciativas


que compuseram o conflito ao longo destes sete anos, num esforço de síntese da dinâmica de
reconstrução da resistência e onde o morador vai se constituindo um sujeito de direito: os
moradores da área e a constituição da luta por moradia.

O projeto de recuperação da 7ª Etapa do Centro Histórico de Salvador tem início no


ano de 2000, com o anúncio da reforma. A 7ª Etapa foi anunciada no final daquele ano, em
dezembro de 2000, quando os moradores foram visitados pelos órgãos competentes pela
intervenção e foi-lhes informada a impossibilidade da sua permanência na área e em suas
moradias em função do novo uso e interesse público dado ao local. O que marca então este
primeiro ano é justamente uma “ruptura” entre a situação vivida e a situação futura (o destino
do morador) diante da implantação com o projeto da 7ª Etapa e as primeiras ações do Poder
Público (CONDER).

Segundo consta nos documentos públicos pesquisados e publicados nas matérias de


jornal com depoimentos da CONDER, a previsão para a 7ª Etapa era de que 130 imóveis com
316 unidades habitacionais seriam reformadas e disponibilizadas para funcionários públicos,
acrescidos ainda de 60 lojas e 08 monumentos, em 08 quarteirões7.

De forma a organizar-se e mobilizar-se em defesa da moradia foi criada logo no


primeiro momento uma associação em defesa dos moradores, a Associação de Moradores e
Amigos do Centro Histórico - AMACH, fundada em julho de 2001 com vistas a mobilizar
recursos a favor dos moradores. Essa associação vai se constituindo gradativamente em
representante dos interesses dos moradores frente às autoridades oficiais e técnicos
responsáveis pelo projeto de “intervenção” (revitalização) da área, desenvolvendo diversas
ações, como a mobilização de autoridades (Deputados) e ocupando espaço na mídia através
de denúncias que contrapõe aos objetivos da reforma e recuperação do Pelourinho, outros
conceitos e problemas inerentes ao projeto, especialmente na defesa do direito dos moradores
e contrário às interpretações e juízos morais que desqualificam os moradores que serão
afetados pelo projeto, criminalizando-os como “marginais‟.

7
As informações quanto ao número de edificações a serem contempladas oscilam nas diversas fontes em
que o Governo da Bahia as publica: sites oficiais, material de divulgação da CONDER e jornais da cidade.
23

Diante da consciência do início das ações oficiais de reforma da área, um grupo de


moradores e mais uma advogada voluntária se organizam e iniciam uma mobilização para
expor o problema dos moradores afetados pela 7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico
na mídia, conclamando apoios. Procuraram então o gabinete do deputado Estadual Zilton
Rocha (PT- Partido dos Trabalhadores), partido então de oposição ao Governo do Estado da
Bahia (regido então pelo extinto PFL, hoje DEM), pois sabiam que este deputado Zilton já
havia acompanhado algumas lutas de resistência de moradores do Centro Histórico, no Prédio
dos Alfaiates8 e poderia sensibilizá-lo para apoiar a luta comunitária dos residentes nesta área.

Foram essas denúncias na mídia que fizeram com que a Equipe Urbana do CEAS, e eu
pessoalmente, tomássemos conhecimento do processo de intervenção na área. O que mais
caracteriza este momento foi exatamente a ameaça do risco de relocação e o sentimento de
injustiça que aflorava desta organização popular diante da desapropriação dos imóveis, e da
falta de diálogo e informações do Poder Público (governo do Estado) referentes ao Projeto da
7ª Etapa. Desconhecia-se detalhes do projeto, os valores oferecidos como auxílio-relocação
pago às famílias que “aceitavam” pagamento para deixarem os imóveis eram baixos, temia-se
a possibilidade de relocação para bairros distantes, como Coutos, que fica a 43km do centro
da Cidade e, o mais grave, a impossibilidade de permanência no Centro Histórico.

O Ministério Público do Estado da Bahia, por solicitação da AMACH, consegue


através de uma liminar o acesso aos textos e documentos públicos do Projeto da 7ª Etapa. Em
um destes documentos, por exemplo, aquele encaminhado para os órgãos financiadores
internacionais (Programa Monumenta – Banco Mundial), foram conhecidos os termos dos
objetivos especificado para o projeto para as agências financiadoras. Este período foi marcado
principalmente pela análise destes documentos, formulação de teses estratégicas e demandas
da Associação dos Moradores – AMACH e a formulação de um gradativo sentimento de
injustiça por parte dos moradores exatamente pelo conhecimento explícito do conteúdo dos
próprios documentos oficiais. Nestes, estava previsto textualmente que o Estado reconhecia os
erros nas intervenções passadas, quando a prioridade foi transformar as casas para o comércio
em detrimento das moradias e o fato de não ter incluído os moradores locais como principais
beneficiados pela intervenção. Mas, na prática, não houve mudança, e os moradores
8
A desapropriação do imóvel, conhecido como “Prédio dos Alfaiates”, teve início com o Decreto n.º
7722, de 20/12/99, do Governo do Estado da Bahia, que o declarou de utilidade pública para fins de
incorporação ao Projeto de Reforma e Recuperação do Centro Histórico de Salvador. Houve organização e
diversas ações culminando na vitória destes profissionais do direito ao prédio.
<http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/journals/2/articles/32540/public/32540-39613-1-
PB.pdf>.
24

continuavam, na nova etapa, diante apenas de duas opções: a relocação para o Bairro de
Coutos ou o valor do auxílio-relocação, já que as casas em que moravam seriam destinadas
para a habitação de funcionários públicos através de programa habitacional da Caixa
Econômica Federal. Intensificavam-se as ações jurídicas junto ao Ministério Público, que se
materializaram na construção da Ação Civil Pública contra a CONDER, e com o PT (Partido
dos Trabalhadores), este último responsável pela elaboração de uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADIN), a ser encaminhada ao Supremo Tribunal Federal, gerando
assim as primeiras arenas jurídicas de embates, que vão marcar todo conflito nos anos
subsequentes.

Em 2002 também se observa uma expansão da ação da AMACH, com a busca de


estratégias de trocas e articulação com outras experiências de organização populares diante do
Poder Público na cidade de Salvador. Neste ano, foi criada a Articulação de Luta por
Moradia, composta por representações dos bairros de Marechal Rondon, Gamboa de Baixo,
Alto de Ondina, Sussuarana, São Marcos, Bairro da Paz e Centro Histórico, grupo
responsável por diversas denúncias públicas, passeatas, ocupação de órgãos públicos, debates
e que acabaram elaborando um Dossiê de Luta por Moradia, documento que denuncia os
conflitos vividos pela comunidade de tais bairros.

Este é um momento em que se aprofundam as dificuldades de interlocução entre os


técnicos do Estado e os moradores. De um lado, a grande maioria dos moradores tinha
dificuldade de entendimento das informações contidas nos documentos públicos, seja pela
linguagem escrita, dificuldade de leitura, interesse imediato, descrença numa possível
correlação de forças, seja pela ambiguidade entre os objetivos contidos nos textos oficiais e a
realidade imperiosa da ameaça de expulsão e remoção. Este fato exigia dos grupos de
assessoria, que incluía o CEAS, um papel fundamental de desenvolver atividades e reuniões
para socializar e transmitir em linguagem mais accessível os conteúdos dos documentos e
mobilizar o grupo na busca de efetivação dos seus direitos. Neste momento faltava ainda aos
técnicos do governo a “predisposição” ao diálogo com os moradores, seja em assembléias ou
em reuniões mais restritas, sendo o Ministério Público então órgão principal de “estímulo” e
reconhecimento do direito ao diálogo entre as partes.

Pesquisadores, nacionais ou estrangeiros, a própria mídia, e os interessados sobre as


intervenções nos Centros Históricos começavam a se aproximar da situação e a procurar a
AMACH ou o CEAS (que a assessorava) em busca de informações. Foi um ano caracterizado
25

pelo aumento significativo das denúncias na mídia, das cartas denúncias enviadas aos diversos
órgãos públicos, instituições da sociedade civil e ao público em geral, de manifestações e atos
públicos (incluindo aqui a participação da AMACH junto a Articulação de Luta por Moradia
na mobilização contra a CONDER) e das constantes audiências junto ao Ministério Público.

Neste ano foi lançado o Dossiê de luta por Moradia, tendo contribuição marcante da
AMACH. Também foi um ano de intensa troca de experiências entre os moradores de vários
bairros. As principais lideranças foram fortalecidas com o aprendizado político, que as
influenciou na construção de uma visão mais ampla sobre os problemas da cidade como todo,
baseada nesta troca de informações, onde todos puderam conhecer a realidade e problemas
dos bairros envolvidos, com seus principais problemas e demandas frente ao Poder Público.
Estes laços, estas trocas, perpassam aspectos da representação política, mas ganham ao
mesmo tempo a dimensão de formação da cidadania, onde principalmente as mulheres
acabam demonstrando maior aproximação umas com as outras e desenvolvendo um
sentimento de identidade como “modestas” protagonistas dos espaços de resistência. A
análise do papel da liderança dessas mulheres é de fundamental importância, já que explicita
os avanços e obstáculos à participação popular nos projetos de intervenção urbana, onde
conflitam os imperativos e constrangimentos da lida cotidiana dessas mulheres e os seus
papeis como lideranças comunitárias.

2004 foi marcado pela vitória da Ação Civil Pública que, somada às outras ações e
acontecimentos que envolveram a organização comunitária, resultou na ampliação de espaços
de discussão e embates importantes entre o Poder Público e os moradores da 7ª Etapa.

A organização da audiência pública, promovida pela Comissão de Meio Ambiente da


Assembléia Legislativa da Bahia ("Qual o Centro Histórico que queremos"), seguida da visita
dos representantes do Ministério da Cultura do Governo Federal e posterior visita do Relator
para o Direito a Moradia da ONU (Miloon Kothari), foram algumas das consequências do
processo de denúncias e organização no primeiro ano e demandaram dos moradores que
estavam à frente da luta por permanecer no Centro Histórico (Casa 48 no Passos, comunidade
da Rocinha e 7° Etapa de Revitalização) uma série de reuniões, organização de um dossiê,
exposição dos contra-argumentos em defesa dos seus interesses, sendo este um rico momento
de análise da experiência aqui estudada.

Com o resultado da vitória da Ação Civil Pública que, entre as diversas solicitações da
AMACH, obrigava o Governo do Estado da Bahia a dialogar com as famílias até que um
26

acordo fosse firmado entre as partes (AMACH e Governo), começa, então, uma série de
reuniões com a CONDER. Para firmar o Acordo, o Ministério Público constrói um TAC –
Termo de Ajustamento de Conduta, assinado em junho de 2005, obrigando o governo do
Estado a cumprir uma pauta de questões e demandas da AMACH. Esta pauta foi resultado do
documento produzido pelos moradores, junto com o CEAS, na Articulação de Luta por
Moradia, o “Dossiê de Luta Por Moradia: Como Salvador se Faz”.

O ano de 2005 foi marcado pela Assinatura do Termo de Ajustamento e Conduta


(TAC) entre o Ministério Público e o Governo do Estado da Bahia onde constam cláusulas
com demandas importantes da AMACH. Esse documento regulava um espaço de mediação
entre os diversos representantes do governo e dos moradores- o Comitê Gestor9. Este se
constituía numa arena de diálogo e mediação de interesses e conflitos, sendo ao mesmo tempo
um campo de tensões e negociação entre os órgãos governamentais, a AMACH e sua
assessoria (CEAS, UEFS), com caráter deliberativo e paritário. Este ano foi de muitas
reuniões, muitas informações a serem analisadas, corrigidas e socializadas com os moradores.
A AMACH ganha maior presença de moradores em suas reuniões, ávidos pelas informações
vindas das reuniões travadas com o governo no Comitê. O Ministério Público afasta-se,
deixando o TAC como instrumento de pressão sobre o Estado da Bahia.

Neste mesmo ano, o PT ganha as eleições estaduais para governador (Jaques Wagner),
vindo a assumir o mandato em 2006. É um período em que se registram algumas vitórias na
pauta de demandas dos moradores.

A vitória de Jaques Wagner para o Governo do Estado da Bahia trazia em si uma


expectativa para os moradores do centro Histórico, pois toda concepção e execução de todos
os projetos de revitalização, até a 7ª Etapa, era liderada pelo grupo político majoritário na
Bahia, o PFL, liderado pelo Senador Antônio Carlos Magalhães há muitos anos no poder. O
governo do PT assume, mas não modifica os termos acordados no TAC em relação ao projeto
de intervenção na área, ou seja, apenas 103 famílias teriam o direito de permanência. Não
houve mudança quanto aos objetivos do projeto, mas altera-se a natureza do diálogo. O
governo do PT ampliou as esferas de diálogo com os moradores, o que não necessariamente

9
O Comitê Gestor foi instituído pelo Ministério Público como espaço de diálogo entre as partes
envolvidas para definição de questões e entraves na negociação. Ele se constitui como espaço consultivo e
deliberativo, de caráter paritário, composto por três organizações da sociedade civil (AMACH, CEAS e UEFS –
Universidade Estadual de Feira de Santana) e três representantes dos órgãos públicos (CONDER, IPAC,
SEDUR).
27

significou mudanças quanto aos benefícios almejados e imediatos antes definidos para a
maioria das famílias.

Só no ano de 2006, depois de muita pressão dos moradores, foram realizadas oito
apresentações públicas do projeto, as primeiras visitas às casas com uma comissão de
moradores junto com os representantes dos órgãos públicos de engenharia competentes e as
empreiteiras responsáveis, quando as mulheres puderam, finalmente, sentir o como serão suas
novas moradas. É um momento de muita curiosidade, felicidade e novos questionamentos. As
reuniões de discussão durante esse ano se orientaram mais para os projetos arquitetônicos das
casas e das propostas sobre possíveis projetos sociais, com os moradores.

Em 2007 o governo Wagner chama a AMACH para realizar uma festa de entrega das
primeiras chaves das casas aos moradores. Era evidente a construção do “palanque político”
do governo neste momento, mas a AMACH também identificou nesse espaço uma
oportunidade para continuar suas ações, fazendo dele também um campo de luta onde foi
elaborado um texto denúncia pela presidente da AMACH, com todas as demandas e limites
dessa vitória diante das autoridades presentes. A entrega das chaves reorienta a pauta da luta
comunitária até os dias atuais, expressando-se em termos na forma de cobranças e de
denúncias dos problemas de infraestrutura que as primeiras casas já apresentavam, do atraso
no cronograma de obras, da regularização jurídica da documentação da casa, da definição da
área para comércio informal, creche, lazer, o acompanhamento e proposição dos projetos
sociais para as famílias envolvidas, o valor a ser pago pela moradia e a finalização de todas as
outras residências, já que foram entregues apenas em torno de 18 apartamentos até o momento
de elaboração desta pesquisa (2010). É importante lembrar que cada um desses aspectos
envolve diversas reuniões com órgãos públicos como a CONDER, Ministério Público,
AMACH e diversas formas de luta: abaixo-assinados, mobilização comunitária, denúncias na
mídia.

Este estudo limita a análise ao período de anúncio e conhecimento do projeto pelos


moradores (2000) até 2007, ano da entrega das primeiras 10 moradias. O esforço será de
recompor e caracterizar o fluxo dos acontecimentos, a constituição desses moradores como
ator coletivo (sujeito de luta), as mediações dos conflitos e os espaços de diálogos na luta pelo
direito à moradia.

***
28

A análise do processo de revitalização pressupõe a constituição histórica do Centro


Histórico de Salvador com o objetivo de analisar o espaço como o resultado no tempo da
tensão entre o destino público da área, tendo como referências bibliográficas estudos
anteriores realizados por Milton Santos (2008), Gey Espinheira (1972), Ivanilde Nobre
(2000), Lysiê Reis, documentos do Instituto Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC,
1988). Esta produção bibliográfica existente permite observar como os planos urbanos vão
reconfigurando o papel e usos da área central da cidade, obedecendo a constrangimentos
políticos e econômicos, e tendo efeitos sobre o destino das populações locais de moradores.
Mostra-se no decorrer da análise também como as esferas públicas são resultado processual
do confronto das lutas urbanas.

Como esta participação está condicionada de um lado pela capacidade dos cidadãos
em mobilizar-se e de outro pelo contexto político do governo em suas diferentes escalas
retomaremos a uma noção de cidade, de Milton Santos, Henri Lefebvre, David Harvey,
observando as teorias higienistas do séc. XIX, que condicionaram muitas das perspectivas
ainda vigentes nos projetos oficiais e assimiladas pelo senso comum inclusive pelos próprios
moradores.

O professor Milton Santos, ao introduzir a noção de “urbanização corporativa” ligada


à expansão capitalista, chega a afirmar que o próprio Poder Público torna-se “criador
privilegiado de escassez” (SANTOS, 1993, p. 95). Ou seja, a ideologia de crescimento e
modernização das cidades pode implementar políticas públicas não demandadas pela maioria
da população: “estimula a produção de espaços vazios dentro das cidades e empurra a
maioria da população para periferia” (SANTOS, 1990, p. 111). Assim, parece ocorrer com
as inúmeras famílias expulsas do Centro Histórico nos processos de “revitalização” do
patrimônio (1990 – 2001) e as que ainda resistem em permanecer, na Ladeira da Montanha,
Ladeira da Preguiça e Gamboa de Baixo e em diversos outros exemplos de luta, resistência e
conflitos urbanos na cidade de Salvador.

Santos e Lefebvre se aproximam ao analisarem a formação do tecido urbano como


malhas desiguais resultantes da disputa entre processos de interesse hegemônicos da cidade,
fundamentados pelos interesses de grupos industriais, pelo capital imobiliário e fundiário, e a
própria dinâmica da práxis de construção da cidade via sobrevivência da maioria da
população. Essa relação conflitiva sobre os usos do solo urbano e seus fins sociais,
prevalecendo projeto entre uma ideologia da cidade ideal, da cidade sonhada, da utopia
29

urbana, que sempre acompanhou a concepção de cidade, nem sempre próximo da cidade
vivida.

Aqui retorna-se título do seminário “Como Salvador se Faz”, que referenda o dossiê
organizado por um grupo de lideranças de oito comunidades populares de Salvador, todas
ameaçadas de despejo forçado em função de intervenções do Poder Público no ano de 2003
(Articulação de Luta por Moradia, 2003) em processos que suscitam a reflexão do termo de
gentrificação (gentrification). Neste documento a “dor” se torna práxis das lutas destes oito
bairros e, em uma das reuniões deste grupo de lideranças, surgiu a idéia democratizá-la como
a condição possível, em Salvador:

“Se não há democratização das políticas públicas, vamos democratizar


nossas dores; a dor da Gamboa de Baixo é a dor do Centro Histórico, que é
a dor de Marechal Rondon...” (Pronunciamento de uma liderança feminina
presente).

Analisar um projeto de intervenção urbana significa entendê-lo como um episódio


público que interfere no cotidiano dos cidadãos e provoca uma ruptura na dinâmica da vida
desses moradores residentes da área da intervenção. Em reação a esta intervenção e aos
efeitos que ela traz sobre os moradores, estes buscam reagir aparecendo como cidadãos de
uma luta em defesa de seus direitos por moradia. Como este processo se forma?

Para entender esse processo tomamos por referência analítica a noção de “esfera
pública” de Hannah Arendt (1989), que destaca a importância estratégica da avaliação e
reavaliação de um acontecimento e das ações consequentes, processo pelo qual vão
aparecendo as diversas concepções entre os atores, seus julgamento de valores sobre o outro,
que orientam práticas e percepções distintas sobre os sentidos do espaço e o lugar social dos
moradores. Aqui retemos a distinção feita por Arendt entre o que ela denominava de “mundo
público” ou “esfera pública”. É neste espaço sempre em construção e que emerge
efetivamente das formas dialógicas entre os atores envolvidos num embate os atores
“compartilham” suas opiniões, pela necessidade de impor uma posição e definir sua pauta e
demandas e assim acabam se mostrando, se revelando.

O presente estudo irá analisar este “espaço que ilumina” e revela “onde eu estou”,
“com quem estou” e “com quem dialogo” na dinâmica de um processo intersubjetivo. O
anúncio da 7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico de Salvador seria então o objeto
desta reflexão, suscitando poderes entre atores envolvidos que se apresentam, avaliam e
30

definem constantemente “quem eu sou”, o que quero, o que eles querem, o que é justo,
desenvolvendo ações orientadas para a consecução de suas demandas.

Outro aspecto importante diz respeito à pluralidade e singularidades; igualdades e


diferenças entre os atores envolvidos no processo, no espaço público criado, analisado por
Arendt. No caso estudado, o processo de avaliação pelos moradores sobre a intervenção
envolve ao mesmo tempo um mecanismo de construção de sua igualdade como cidadãos
moradores da cidade que especifica sua singularidade quanto à condição histórica que o levou
à ocupação dessa área de patrimônio, no centro da cidade. Hannah considera que toda vida
humana está imbricada na vida em conjunto, e a ação está dentro da vida. Este processo nos
mostra os seres em reconhecimento onde diferenças e aproximações podem ser percebidas
nos seus enunciados discursivos (ARENDT: 1983). A dinâmica aqui estudado nos leva
diretamente à análise das condições e limites da participação social, das ações e da
organização para se fazer presente e ser ouvido pela sociedade mais ampla, diante de uma
situação de disputa e embates entre o Governo do Estado da Bahia e a organização popular
constituída diante do próprio Projeto de intervenção da 7ª Etapa de Revitalização.

Este processo revela uma correlação de forças distintas, os limites encontrados à


participação e os seus obstáculos à efetivação deste processo. Neste sentido, a realidade de
vida nas esferas privadas dos moradores e suas estratégias se confrontam com problemas para
participação nas esferas públicas constituídas. Menos que os problemas mais formais sobre a
natureza da representação nesses processos participativos, um dos problemas enfrentados
estão nas diferenciações entre atores, delimitadas pela dimensão da temporalidade dos
processos, do fator "tempo", seja o tempo popular ou aquele pressionado pela racionalidade
do planejamento e de execução das políticas públicas, que aparecem como um dos obstáculos
para a efetivação de uma participação social mais democrática.

Neste sentido, analisar a participação dos cidadãos dos bairros populares nos projetos
públicos de intervenção implica apreender também as formas e os tempos de processamento
das organizações de base existentes. A participação requer tempo de maturação, tanto de
acesso às informações ditas públicas, muitas vezes só conseguidas com ações no Ministério
Público, como o tempo demandado pelo imperativo da própria luta pela sobrevivência e
construção da mobilização comunitária, que disputam com os ritmos impostos pelo tempo
tecnocrata e político, que impõem e pressionam por resultados rápidos e imediatos.
31

Dentro da esfera pública constituída de intermediação do conflito os diferentes


poderes comunicativos se apresentam estabelecendo formas de reconhecimento de uma
"intersubjetividade" multifacetada. Para Arendt existem múltiplas possibilidades de ação,
múltiplos espaços, ou esferas públicas, que podem ser criados e redefinidos constantemente,
sem precisar de suporte institucional, sempre que os indivíduos se liguem por meio do
discurso e da ação. Para ela o mundo público é o que ilumina e esfera ideal para o ator dizer
verdadeiramente quem ele é, onde está e com quem dialoga.

No entanto, é preciso atentar para o formato deste espaço público, no caso estudado da
participação popular no projeto de revitalização do Centro Histórico de Salvador, e as
possíveis deformações que suscitam, simulacros, poder físico, poder de coação, “o poder não
legítimo”, seguindo análise de Arendt. A democracia, e o “poder comunicativo” verdadeiro e
consensual, fundamentam a legitimidade do direito, sendo eles alicerces da esfera ou espaço
público, da “vita activa”, a vida humana na medida em que se empenha em fazer algo
(Arendt, 1983, p. 31). Seriam, então, a vita activa e o “mundo da vida” o terreno para a
formação do reconhecimento e de consensos. Retornando à intervenção pública sobre o
Centro Histórico de Salvador vamos analisar o campo conflitante de usos diferenciais sobre a
cidade e a natureza das arenas públicas de participação na mediação e encaminhamento deste
conflito entre moradores e o projeto oficial de revitalização para a área em reforma.

O objeto volta-se para descrever e sistematizar a formação de um espaço público no


processo de participação dos moradores diante do projeto de revitalização urbana. Por isso a
importância e a escolha do referencial de análise assentado na categoria de “espaço público”
trabalhada por Hannah Arendt, aqui aplicado ao debate sobre os novos destinos atribuídos a
área, já no anúncio da implantação da 7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico de
Salvador. Deste vão sendo explicitados as avaliações e julgamentos de valor que orientam
práticas e percepções distintas entre atores diferentes sobre um mesmo espaço. Para tanto a
pesquisa tomou por base os seguintes procedimentos e fontes de pesquisa:

Os documentos públicos oficiais, assim como as propostas escritas sobre a intervenção


constituem-se materiais básicos para entender como são formulados os objetivos do projeto e
sua execução. Alguns destes documentos já se encontravam em posse do pesquisador, em
função do acompanhamento das ações impetradas junto ao Ministério Público no
acompanhamento destas lutas, a exemplo da “Pesquisa socioeconômica e ambiental da 7ª
Etapa de Recuperação do Centro Histórico” (Monumenta/BID, 2000). Uma outra pesquisa
32

documental dos órgãos financiadores (Caixa Econômica Federal e Banco Mundial) permite
conhecer as diferentes percepções que compõem as ações comunicativas e as implicações
referentes à participação popular no processo, os critérios de financiamento, avaliação e
repasse dos recursos. Foi também utilizado um acervo documental composto de documentos
públicos (projetos, Ações Jurídicas), documentos produzidos pela Associação de Moradores e
Amigos do Centro Histórico - AMACH, dossiês e relatórios que fui acumulando durante os
anos de acompanhamento da luta desses moradores, enquanto membro da Equipe Urbana do
CEAS. Esse trabalho de assessoramento me permitiu organizar e acumular um material
documental importante, que foi disponibilizado para esta pesquisa, com a aprovação desta
instituição.

A minha experiência como assessor urbano do CEAS permitiu registrar ao longo de


todo o processo anotações resultantes da vivência e observação direta, que se materializam
inclusive em relatórios elaborados sobre a realidade local, como, principalmente, dos embates
e reuniões com os propositores e os agentes que sofrem tais intervenções, e se constituído um
rico acervo analítico da luta dos moradores por participação democrática.

Esta experiência direta na luta dos movimentos populares, in loco, aproximou o


pesquisador das bases populares que compõem tais lutas, por oito anos na área citada. Este
acompanhamento por longo tempo torna-se fonte direta de conhecimento do campo empírico,
o que permite na interface com a teoria das ciências sociais avançar analiticamente,
fundamentado no referencial selecionado, parte das opções metodológicas aqui realizadas. Se
de um lado essa vivência como assessor teve a vantagem de acesso aos dados e proximidade
com a comunidade, por outro, exigiu reiterados cuidados de vigilância epistemológica e a
objetividade científica para não contaminar o alcance analítico pela perspectiva normativa da
ação das lutas.

Uma outra fonte de pesquisa se constituem das matérias divulgadas pela mídia
impressa, aporte fundamental para a apreensão da ação de denúncia, os jogos de formação da
opinião pública, pela qual os moradores atingidos explicitam o seu ponto de vista sobre a
questão, denunciam e publicizam sua condição diante da a intervenção mobilizando a opinião
pública em seu favor. Um arquivo com as reportagens de jornais locais catalogado facilitou o
processo da pesquisa.

A dissertação desdobra-se em três capítulos que sistematizam informações e


desdobramentos da trama e mais um pequeno capítulo com as considerações finais. O dois
33

capítulos iniciais tratam respectivamente do processo histórico e modificações sociais por que
passou o Centro Histórico de Salvador até sua 7ª Etapa de Revitalização, analisando como foi
constituída gradativamente a esfera pública no lastro dos embates e discussões desde o
anúncio desta intervenção no local estudado.

O primeiro capítulo reconstitui o processo histórico de formação do Centro Histórico


de Salvador. O objetivo principal deste capítulo é trazer ao leitor uma história que demonstra
desde o período colonial uma intervenção planejada, como cidade planejada na defesa da
corte portuguesa. Com base na literatura existente, mostra-se em linhas gerais como o Centro
Histórico se constituiu Patrimônio Histórico da Humanidade. A análise se apoiou na literatura
existente, tanto de autores de referência clássica como estudos mais recentes, a exemplo de:
Kátia Mattoso; Milton Santos; Ivanilde Nobre; Gey Espinheira; Urpi Uriarte; Milton Moura;
Lysiê Reis; além de recorrer a dados empíricos analisados pelo Dossiê da Articulação de Luta
por Moradia, que integra o próprio movimento de resistência e defesa dos moradores.

O segundo capítulo apresenta dados do conflito, e busca elucidar o campo de formação


das primeiras esferas públicas de embates entre as partes envolvidas, onde a mídia impressa
foi amplamente utilizada pelos atores e agentes da esfera pública. O anúncio da intervenção
possibilita observar a forma de intervenção do Poder Público, e, nos seus argumentos como
ele apresenta sua visão sobre os moradores da área e suas estratégias de atuação. A
caracterização da intervenção do Estado na área, a análise crítica dos seus argumentos e
justificativas utilizadas para seu deslocamento baseia-se nos documentos públicos
disponíveis, assim como nas matérias publicadas na mídia local; aqui valemo-nos das
matérias de jornais já catalogadas. A análise dessa trama contempla documentos constituídos
pelos movimentos como panfletos e a formação de um dossiê criado com as oito comunidades
que passavam pelo mesmo tipo de interferência pública durante o início dos anos 2000, em
Salvador, além das matérias de jornais que veiculam a voz dos moradores atingidos naqueles
contextos.

O terceiro e último capítulo, mais longo, analisa o processo de construção da


participação dos moradores, as estratégias criadas, a formação das parcerias, as ações jurídicas
e as consequências diante da intervenção. Nele é possível observar como o projeto de
intervenção governamental significou uma ruptura no cotidiano desses moradores, situação
que faz emergir campos distintos entre a cidade planejada e a cidade vivida. Algumas teses de
Hannah Arendt (1983) sobre a formação da esfera pública, servem de subsídios analíticos à
34

compreensão dos alcances da dinâmica política dos agentes sociais nessas arenas criadas,
recorrendo às noções de, vita activa, observando as formas de representação e julgamentos de
valor dos atores, que orientam práticas e percepções distintas sobre um mesmo espaço, a
partir do embate e disputa por projetos distintos, que forjam processos de avaliação e
reavaliação dos moradores sobre seus direitos diante da intercessão do planejamento público
sobre as suas condições de vida.
35

2 HISTÓRICO CENTRO: PLANOS E TRANSFORMAÇÕES

Este capítulo busca recompor o processo de constituição do Centro Histórico de


Salvador, desde a formação inicial da cidade, com a ocupação do governo geral colonial do
Brasil, até a institucionalização da área como Patrimônio Histórico da Humanidade. Através
deste resgate pode-se observar a constituição gradativa de uma tensão que contrapõe a sua
função pública e que envolve intervenções racionais da cidade planejada e os interesses de
determinados moradores. Esse resgate permite observar como os planos urbanos obedecem a
constrangimentos políticos e econômicos que produzem mudanças no âmbito da organização
de vida e destino dos moradores locais.

2.1 Histórico do Centro Histórico

A história do Centro Histórico está diretamente associada às condições de instalação


da primeira capital do País (ainda colônia de Portugal), quando foram construídas as primeiras
casas de palha e sopapo, cercadas de um muro de taipa, para o monte do primeiro e pequeno
aglomerado de Portugal no Brasil, exatamente onde hoje está parte do Centro Histórico.
Milton Santos (2008) descreve o que parecem ser os primeiros traços urbanos para Salvador e
o “primeiro plano geométrico” criado pelas autoridades coloniais, trazido por Tomé de Souza.
Segundo ele, a finalidade, ou o objetivo principal do traçado, estaria determinada pela função
militar e administrativa da antiga Salvador.

Era preciso construir Salvador bem perto do mar para facilitar as


comunicações com a metrópole. Era preciso, também, edificá-la sobre a
escarpa, sobre o dorso das colinas, para defendê-la de possíveis ataques, seja
de estrangeiros, pelo lado do mar, seja dos índios, vindos do interior
(SANTOS 2008: 103-104) 10

Interessante analisar o mapa “A Cidade do Salvador no fim século XVI”. Planta


organizada segundo os dados contemporâneos, tendo como indicação das linhas de
fortificações do tempo de D. Francisco de Souza (SANTOS, 2008: 104).

10
Aqui, podemos nos arriscar a dizer que essa concepção aproxima-se das atuais projeções para as
cidades orientadas segundo um olhar técnico dos especialistas em arquitetura e ou urbanismo, mas que não
levam em conta as singularidades, especificidades e a vida estruturada local, a exemplo do que ocorre na
implantação da 7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico de Salvador, objeto desta dissertação.
36

Tomé de Souza trouxera do Reino o plano segundo o qual devia ser


construída a cidadela; era um plano geométrico, adotado já pra
aglomerações, criadas pelas autoridades coloniais (A. de Azevedo, 1952:
200). As irregularidades do sitio, porem, deformaram o quadrilátero
idealizado na metrópole. Entretanto, mesmo atualmente, pode-se perceber a
intenção dos fundadores no traçado grosseiramente em tabuleiro das ruas da
parte mais antiga de Salvador. (SANTOS, 2008: 105)

Para Santos, este período corresponde à chegada do governador geral em 1549, indo
até final do séc. XVI e se caracteriza como um primeiro momento de intervenção racional e
planificação da cidade que marca a formação dos bairros centrais da cidade. A mesma
reflexão, sob ponto de vista da racionalidade da cidade planejada foi trazida por Antônio
Heliodoro Lima Sampaio, quando ele também afirma, analisando a construção da cidade de
Salvador, que:

[...] Salvador é exemplo empírico desta concepção onde o espaço se


reproduz com base num projeto racional preestabelecido, cujo princípio
ordenador subjacente é não só de domínio sobre a natureza-território
conquistado, bem como de imposição de uma outra estrutura social a ser
mantida e assegurada pela força colonizadora. Força e razão centradas no
mesmo projeto de civilização e urbanização das Américas, cujo papel da
cidade se vincula ao ordenamento (SAMPAIO, 1999: 50)

Milton Santos destaca dois momentos de intervenção sobre a cidade, intermediado por
uma fase de construção espontânea deste sitio (SANTOS, 2008: 144). Esta teve inicio no
começo do séc. XVII e teve longa duração. Vários fatores influenciaram esse processo de
urbanização espontânea da cidade: a extensão linear dos sobrados urbanos (moradia nos
andares superiores, comercio no térreo e área dos escravos) em função da falta de terras
públicas ou apropriação dos terrenos pelas obras religiosas; as migrações; segregação espacial
entre as prostitutas, soldados, pessoas de posses, pescadores, pobres, comerciantes; ruas
tortuosas; pequenas praças. (SANTOS, 2008, 107). A professora Ângela Gordilho detalha as
características das habitações daquela época em Salvador onde se pode identificar traços
habitacionais da área em estudo, do “Centro Histórico” de Salvador:

Os casarões urbanos, construídos nos séculos XVII e XVIII eram


implantados sem recuos no terreno, com paredes laterais coladas, fazendo
agrupamentos de edificações geminadas e seguindo o alinhamento da rua.
Eram os denominados “sobrados”... Geralmente, no pavimento térreo, havia
a loja ou armazém, ou ainda os aposentos para hóspedes e agregados,
situando-se, nos fundos, a cocheira, os alojamentos para os escravos e a área
livre remanescente. Acima, no pavimento nobre, com entrada independente,
habitava a família do senhor. Era composto por uma grande sala de visitas na
frente, cozinha e serviços, ao fundo, e, na área intermediária, as “alcovas”,
aposentos para dormir, onde não penetrava luz natural. Nos demais andares
superiores, situavam-se sala de jantar, a copa, a cozinha e o quarto de
37

engomar que também servia de aposento para as escravas (GORDILHO,


2000: 88)

Ainda segundo Santos, em 1763, de forma a facilitar o escoamento do ouro, o Rio de


Janeiro passa a ser a capital do Brasil, o que trouxe como uma das consequências o
amortecimento da evolução demográfica de Salvador. Desde o início do sec. XIX, no entanto,
o ouro mineiro declina, fazendo retornar ao litoral a população agora ávida para trabalhar no
escoamento de produtos agrícolas (cana de açúcar, cacau, algodão, café) para subsidiar a
indústria européia eminente. A Bahia, seus portos e, consequentemente o centro urbano de
Salvador passam por novas intervenções, com destaque para mobilidade e transporte, como as
vias férreas. Tal impacto acaba gerando uma amplitude urbana e a migração das classes mais
abastadas para novos bairros construídos (Graça, Vitória, Barra). (SANTOS, 2008: 43-44).

Fazem-se novos cais sobre aterros... sobre estes aterros são construídos
grandes imóveis de utilização comercial, sobretudo.

No final do século, a introdução dos primeiros bondes... permite uma maior


extensão do perímetro construído, e provoca a migração da parte mais
abastada da população, quão abandona o centro... todo comercio bem sortido
e de gosto moderno, localizado perto do cais e cujas lojas se fecham durante
a noite, tornando-a quase deserta (SANTOS, 2008: 108-109).

Em 1871, a Companhia Trilhos Centrais liga o “Centro Antigo” aos bairros da Vitória,
Graça, Barra, Federação, com planos de expansão até o Rio Vermelho, reflexo, segundo
Sampaio, do “evidente” dinamismo urbano fruto da própria emergência capitalista do período
(SAMPAIO, 1999: 68). Ainda conforme este autor a expansão em direção ao sul (Campo
Grande e Vitoria) significará a “materialização de segregação social dos brancos” e, como
parte do mesmo processo, nos bairros ao norte as massas mais pobres vão permanecendo ou
adensando o centro tradicional (ibidem, 72).

Esta mobilidade urbana das classes mais abastadas no final do sec. XIX propiciou o
adensamento do centro pelas classes populares, que encontravam a necessidade do teto, como
refletiu Ângela Gordilho. Para ela, os sobrados que vão sendo “deixados para trás” passam a
ser subdivididos em pequenos cubículos, “principalmente no Centro antigo”, multiplicado
unidades habitacionais que “irão dar origem aos futuros cortiços” (GORDILHO, 2000: 94). O
advento do transporte coletivo foi então fundamental para esta nova espacialização e
diferenciação dos territórios urbanos ali em processo de construção e reconstrução:

[...] ele viabilizará o rompimento da superposição espacial entre local de


moradia e local de trabalho, ao mesmo tempo em que vai facilitar a fuga das
áreas mais congestionadas e insalubres da cidade para as camadas de maior
38

capacidade econômica” (FERNANDES & GOMES, 1991: 101 apud


GORDILHO, 2000: 95).

Para agravar a situação, surtos de cólera, febre amarela, tifo e tuberculose (início do
sec. XX) somam-se às influencias deste contexto de delineamento dos territórios da cidade,
principalmente seu centro, como evidentes fatores que remontam às intervenções políticas na
época. Este aspecto sanitário dos surtos de doenças, que causaram muitas mortes na cidade,
influenciou então a organização administrativa, voltada para o combate das endemias e,
urbanisticamente, trouxe uma consciência técnica e social de que as normas e as obras
públicas de saneamento básico eram condições para o combate às doenças. As constantes
epidemias influenciam então as “Posturas Municipais” que passaram a estabelecer normas e
controles sobre a higiene na cidade em geral. Pode-se afirmar que o problema da saúde se
reorientou, passando também a ser considerado como uma questão de engenharia. Segundo
Sampaio, o início do sec. XX trouxe para Salvador o paradigma da cidade moderna em três
condições básicas: de higiene, fluidez viária e estética da beleza. Para ele,

Evidente que as duas primeiras condições se respaldam na própria cidade-


real, com seus problemas e contradições; já o conceito de beleza herdado
assentava-se numa tentativa vã de eliminar “tudo que faz mal aos olhos”,
cuja preocupação cenográfica vai lançar não só os doentes (afastando os
hospitais e asilos), mas também traçados geometrizantes de ruas e
logradouros submetidos a correções demolidoras... (SAMPAIO, 1999: 86)

Diferentemente de Salvador, ainda incipiente no processo de industrialização, a


Europa no sec. XIX já vivia intensamente os reflexos das cidades industriais modernas. As
cidades européias como Londres, naquele século, passavam a se constituir em objeto de
análise científica e intervenções políticas e tornavam-se um eixo para pensar a própria
sociedade. Os problemas urbanos correlacionados aos ambientes insalubres das casas do
proletariado geravam uma preocupação social com a produção de ambientes saudáveis para
esta classe social, melhorando assim sua a condições de vida que sustentavam indiretamente a
sua condição como mão de obra nas indústrias. Percebia-se ali uma ambiguidade quando, ao
tratar da emergência de certas questões como, por exemplo, a degradação dos ambientes e o
desconforto habitacional que gerariam mais do que problemas de qualidade de vida para os
pobres, problemas para a burguesia industrial e Estado (um custo social), seja para os efeitos
na produção industrial, ou pelo medo de epidemias, violência, afetar a moral e costumes da
época (BEGUIN, 1991).

Os fatos demonstram a importância política e moral destas considerações, a


saber: que os ambientes físicos insalubres deterioram a saúde e o Estado
39

físico da população: que por isso mesmo, eles agem como obstáculos a
educação e ao desenvolvimento moral, que diminui a esperança de vida da
população operaria adulta, interrompem o crescimento das capacidades
produtivas (BEGUIN, 1991: 40)

Friedrich Engels (1985), analisando a “situação da classe trabalhadora na Inglaterra”,


tece observação interessante quanto ao sentimento da burguesia na relação direta em espaços
urbanos com a classe proletária, supostamente contaminada pelas epidemias.

[...] quando esta epidemia começou a se aproximar apoderou-se da burguesia


desta cidade um medo generalizado. De repente lembrou-se das habitações
insalubres dos pobres, e tremeu com a certeza de que cada um destes bairros
miseráveis ia constituir um foco de epidemia, a partir do qual esta estenderia
seus tentáculos em todos os sentidos para as residências da classe
proprietária (ENGELS, 1985: 78)

A consciência desses riscos sanitários nos bairros operários e a sua expansão às


demais classes impunham a necessidade de intervenções de cunho higienista, concepção que a
posteriori parece permanecer nos projetos de revitalização, reforma e gentrificação no final do
sec. XX e início do sec. XXI. “Mudar a cidade para mudar a sociedade e, particularmente, o
povo, era a visão estratégica para as cidades modernas” (TOPALOV, 1996: 23).

As chamadas ações racionais e reformistas na Cidade de Salvador, no sec. XX,


também se manifestam nas intervenções feitas por J.J. Seabra entre 1910-1914, através do
“Plano de Melhorias Municipal”. Com base neste foram alargadas avenidas, saneada toda a
Baixa dos Sapateiros como forma também de melhoria nos indicadores das doenças que
assolavam o centro, colocados abaixo casarões já adensados pela classe popular para dar
passagem ao sistema viário, na política urbana conhecida como “urbanismo demolidor”
(SAMPAIO, 1999, 74 e 75). Estas intervenções eram entendidas como sinal de progresso e
modernização, o que reforçava cada vez mais a imagem do centro da cidade como decadente
ainda mais agravada a partir de meados do sec. XX com o advento da industrialização na
Bahia e em Salvador.

[...] o Pelourinho, e aí o Maciel, foram abandonados. Suas habitações já não


mais satisfaziam as necessidades desta nova era que se inicia, na qual os
padrões arquitetônicos coloniais tornavam-se definitivamente superados.
(ESPINHEIRA, 1972: 2).

Ivanilde Nobre (2000), em sua dissertação sobre a área, explicita as variadas e ao


mesmo tempo contraditórias interpretações conferidas ao “Centro Histórico”, conforme os
interesses econômicos, políticos e sociais, que podem servir de parâmetro para percepção de
como o bairro era julgado no passar do tempo e das diferentes conjunturas de interesses:
40

[...] A “Velha Urbis” ora era considerada “núcleo nobre da cidade”,” a


cidade tradicional”, “a mais típica cidade portuguesa”, “uma das mais
surpreendentes cidades de arte do mundo”, ora vista como “bairro maldito”,
“bairro leproso”, “bairro dos cortiços”, “bairro em ruínas”, “zona
congestionada”, “área arruinada”.(NOBRE, 2000, p. 119).

Com esta gradativa desocupação o Centro Histórico passou a ser habitado por pessoas
empobrecidas, vendedores ambulantes, biscateiros, alfaiates, pescadores, prostitutas, artesãos,
malandros, capoeiristas, atraídos pela possibilidade de residir próximo do centro, onde
conseguiam desempenhar as atividades que lhes garantiam o sustento. Os velhos sobrados
foram abandonados e logo ocupados, alugados e sublocados pela população desabrigada. Esta
realidade trazia um novo aspecto para a área: muitos diziam que ali se encontrava a zona de
prostituição, ali se constituía uma área perigosa, de bandidagem, criando também um estigma
a esta área. Esta imagem de degradação física e moral vai ganhando força desde meados até
final do sec. XX, associando diretamente os seus moradores à imagem de degradação do
lugar.

Por se tratar de uma área nobre, enquanto as elites predominaram [nesta


área] o Centro Histórico era identificado como “centro cultural” mais
dinâmico da cidade, quando passou a abrigar uma população pobre e
marginalizada, que vivia em moradas coletivas com certo grau de
adensamento populacional, foram disseminadas algumas idéias que ora
buscavam identificá-lo como um espaço homogêneo onde “grandes números
dos atuais ocupantes dos velhos sobrados é composta por sua população
desocupada, aposentada ou marginalizada para fazer frente aos custos de
conservação destes imóveis”, ora era visto como um gueto de criminalidade,
violência e prostituição. (NOBRE, 2000: 123)

Paralelamente ao processo gradativo de abandono do “Centro Histórico”, Salvador


passa por novas transformações, decorrentes de um lado da ampliação da sua malha urbana
em direção aos centros industriais de Aratu, CIA, Camaçari, e por outro lado em razão
também das pressões demográficas do amplo crescimento populacional, fatores que irão
influenciar consequentemente as funções e usos do próprio centro da cidade. Segundo os
Censos Demográficos, entre 1940 e 1950 a cidade passa de um contingente de 290.443 para
417.235 habitantes, um crescimento de 44% em apenas 10 anos, enquanto que nos 20 anos
anteriores o crescimento havia sido apenas de 2%, sendo que em 1970 o contingente já atinge
1.007.195 habitantes (GORDILHO, 2000: 114 e 124).

Henri Lefebvre (1969) analisou a cidade funcional à lógica da reprodução do capital


enquanto seu cenário e suporte. Mesmo reconhecendo que as cidades antecedem os processos
de industrialização, Lefebvre analisa a problemática urbana de uma perspectiva marxiana,
41

com base na diferenciação da teoria do valor entre valor de uso e valor de troca, o que
determina contradições e diferenciações e desigualdades sobre o território. Segundo o autor,
quando estas forças produtivas atingem uma tal potência, acabam por criar uma contradição
principal - o espaço produzido globalmente e suas fragmentações, pulverizações,
despedaçamentos - resultante das relações de produção capitalista. (LEFEBVRE, 1969: 09)

Em Salvador, nos anos setenta, além da implantação dos grandes parques industriais,
efetiva-se a implantação de um moderno sistema viário, que dá acesso aos vales da cidade,
abrindo novas fronteiras urbanas. Abrem-se as avenidas Paralela, Centenário, Bonocô,
Antônio Carlos Magalhães, estrada CIA-Aeroporto, o Centro Administrativo da Bahia
desloca-se para este vetor norte (CAB), delineando-se novas ou outras centralidades. O
professor Milton Santos, na sua obra “Urbanização Brasileira” (1993) analisa este processo
como “urbanização corporativa”. A sua abordagem de “urbanização corporativa” ligada à
expansão capitalista o aproxima da perspectiva analítica de Lefebvre (industrialização e
urbanização), considerando a própria expansão da cidade de Salvador, principalmente após
1950, como resultado do crescimento industrial e suas consequências na atualidade.
Impressiona a atualidade das reflexões de Milton Santos, ainda mais quando confrontados
com os fatos da capital baiana (Salvador) no período atual. Santos chega a afirmar que o
próprio Poder Público torna-se “criador privilegiado da escassez”. Ou seja, legitimando a
ideologia de crescimento e modernidade das cidades acaba por implementar políticas públicas
não demandadas pela maioria da população.

[...] estimula a especulação e fomenta a produção de espaços vazios dentro


das cidades. Incapaz de resolver o problema da habitação, empurra a maioria
da população para as periferias e empobrece ainda mais os mais pobres.
(SANTOS, 1990, P. 111).

A questão da ocupação do solo urbano coloca a questão: quem pode ocupar a cidade?
Para Lefebvre “Não é um pensamento urbanístico que dirige as iniciativas dos organismos
públicos e semipúblicos, é simplesmente o projeto de fornecer moradias o mais rápido
possível pelo menor custo” (LEFEBVRE, 1969: 23). Ou seja, com a industrialização
crescente e a explosão popular, as classes burguesas em confronto direto com as classes
populares (lembrando que Lefebvre contextualiza historicamente estas análises para meados
do séc. XIX) começavam a se perguntar: “...como por ordem nessa confusão caótica?”
(ibidem, p. 27).
42

Santos e Lefebvre se aproximam quando observam o tecido urbano ou meio urbano


como malhas desiguais. Para eles é na cidade que as principais desigualdades sociais ganham
forma, as disparidades são latentes e facilmente visíveis. Mais do que isso, ambos afirmam
que a configuração deste território é resultado de uma disputa entre um pensar hegemônico de
cidade, fundamentado na concepção ideológica de poderes (capital, cultural...) e a própria
práxis de construção da cidade realizada a partir dos modos de sobrevivência da maioria da
população. Esta duas dinâmicas, da intervenção racional do governo e a práxis dos moradores
se expressa diretamente no centro antigo das cidades, assim como hoje resulta também das
contradições do que se denomina por “novas centralidades”

Retornando ao objeto de análise dessa dissertação, a concepção simbólica e valorativa


da revitalização do “Centro Histórico”, também reafirma-se no período pós 1950. Lysiê Reis
traz à tona a análise da invenção do patrimônio como forma de criação de um mercado da
industria do turismo em Salvador. O centro antigo passa então por um processo de construção
de uma vocação relacionada ao valor patrimonial e histórico com fins de fomentar a industria
do turismo. Desta forma, parte do centro antigo da cidade é tombada em 1959, acompanhando
uma tendência mundial de revitalização de cidades, que em parte já vinha ocorrendo na
Europa:

[...] na década de sessenta, quando era intenso seu processo de deterioração,


a recuperação do patrimônio cultural, em quase todo o mundo, rompe com
suas referências iniciais - centradas apenas no preservação cultural - e
acentua o valor econômico do patrimônio requalificado. assim, os anos 60
representam a descoberta, no Brasil, de que o patrimônio histórico poderia
vir a ser um grande negócio... ao mesmo tempo em que perde seu dinamismo
tradicional, o Centro antigo passa a ser um local apropriado ao novo ideário
internacional de salvaguarda que já defendia, em nome da preservação, uma
total integração do patrimônio urbano ao circuito de mercadoria. (REIS,
1998, p. 74)

Segundo a autora, essa proposta representava uma tentativa de redefinir o dinamismo


do centro antigo que, cada vez mais, se constituía espaço ocupado pelas camadas de baixa
renda. A expectativa inicial concentrou-se em requalificar a área segundo determinações que
correspondessem às novas tendências culturais. Dentre estas, destaca-se o turismo, que passa
a ser visto como meio de viabilizar a geração de renda e emprego na cidade. A constituição do
consenso sobre a vocação turística remete a um determinado “simulacro histórico” com vista
a seguir uma dinâmica internacional de revitalização dos centos das cidades que passavam por
uma territorialização com bases na ocupação das classes populares.
43

[...] O que ocorre no Centro antigo de Salvador não é diferente do que se


assiste no resto do mundo... é a partir da década de 60, que países de todo o
mundo encaminham mais intensivamente a viabilidade da manutenção dos
centros antigos através do desenvolvimento turístico, setor ávido pelo
consumo de paisagens antigas, pitorescas e tradicionais. É também neste
período, já marcado por novas tendências culturais, que ocorre uma
reformulação nas concepções de intervenção no espaço urbano construído.
Passa a ser recorrente a comunhão entre a imagem antiga e o ícone “Centro
Histórico” como atrativo na nova „Era do Entretenimento (REIS,1998, p.
74,75).

2.2 A FORMAÇÃO DE UM CONSENSO SOBRE A VOCAÇÃO TURÍSTICA DO


“CENTRO HISTÓRICO”

Na década de 1930 ganha força uma nova mentalidade econômica para o “Centro
Histórico” da Cidade de Salvador acompanhando uma tendência internacional , que
repercutirá na abordagem dos planos, visões e das próximas intervenções espaciais e sociais
para este sitio, com destaque para “a institucionalização do turismo”. Segundo Lysiê Reis, a
Carta de Atenas de 1933 dá início à discussão em torno da preservação das “áreas de valor
monumental”, sendo que a partir de 1950 tornam-se mais pragmáticas as definições
internacionais para preservação através de normas, leis e delimitação do que seria considerado
“Centro Histórico”. As consequências destrutivas das duas grandes Guerras Mundiais do sec.
XX tiveram influência significativa na Europa para a constituição de uma política de
reconstrução e preservação destes centros antigos e, principalmente, os monumentos
históricos atingidos pelos bombardeios.

Depois da 2ª Guerra Mundial, com a reconstrução das áreas destruídas no


Leste Europeu e em 1962, na França, a Lei Malraux tornar-se um documento
codificador, em termos legais, da preservação das áreas urbanas, é na Itália
que a problemática das áreas urbanas centrais assume destaque nos debates.
Segundo Márcia Sant‟Anna, nesse momento surge a expressão “Centro
Histórico”. A partir de então, advém também da Itália, com bastante
expressividade, um ciclo de debates sobre a salvaguarda dos “Centros
Históricos”. Refletindo um certo pioneirismo nas discussões sobre o tema é
que a lei italiana de 1967, a primeira nesse país destinada à salvaguarda dos
“Centros Históricos”, dá ênfase à harmonia entre a função da área
patrimônio e a dimensão urbana. (REIS, 1998: 48)

Porém, para Reis o conceito de “Centro Histórico” desde sua origem aparece confuso,
por tornar ambíguas as referências históricas de outras localidades da cidade, ser impreciso
quanto a sua delimitação geográfica (muitas vezes separadas apenas por uma rua) e congelar
parte da cidade como um “simulacro” cultural, patrimonial e histórico. A delimitação deste
44

território, ou sítio, ainda segundo Reis, pode estar determinada em função de interesses que
esperam “vender” o espaço para grupos distintos, anulando a identidade do lugar e
produzindo o “não-lugar” formador de outra identidade (REIS, 1998: 40, 46, 47). Próxima a
uma determinada preocupação em preservar e recuperar monumentos e centros urbanos
destruídos, seja pelas guerras, pelas intervenções de práticas destrutivas (“bota abaixo”, de J.
J. Seabra, em Salvador), ou pelo “abandono” e ocupação destes sítios pelas classes populares,
percebe-se em todo mundo e, em Salvador, particularmente, a vontade de viabilizar o
desenvolvimento turístico para estas áreas, tendo como atrativo a história, a cultura, a imagem
antiga e pitoresca que estes locais sugeriam.“Torna-se recorrente a comunhão entre a imagem
antiga e o ícone “Centro Histórico” como atrativo numa nova idéia de entretenimento” (REIS,
1998: 48)

Para Salvador, a realidade do seu centro em meados do sec. XX apontava para uma
área de realidade social híbrida, ocupada basicamente pelas classes populares que já
encortiçavam os casarios em função do seu relativo abandono, casas noturnas de alto luxo,
rede de comércio, igrejas, empresas e hotéis que serviam a outras classes sociais. A
reorientação da concepção de uso valorizando a vocação histórica e turística para o centro
estava explicita a tensão entre os projetos econômicos, agora com o capital turístico,
vinculado aos antigos proprietários de terrenos e casarões, dos comerciantes locais e a vida
das famílias de baixa renda que já ocupavam esta área central. Este sítio passa a ser outra vez
cobiçado pelas elites, como possível pólo turístico a ser revitalizado e, a partir desse novo
projeto, os seus habitantes considerados indesejáveis para este novo progresso.

Este descontentamento gerou um movimento dos lojistas da área no sentido


de “revitalizar” o Centro Histórico, trazendo de volta seus fregueses.
Também as tradicionais organizações católicas se preocupavam com a
desvalorização de suas propriedades. Isto funcionou como um terreno
propício para que florescesse a idéia de recuperar o Centro Histórico na
forma de um grande centro turístico, financiado desde as altas esferas
bancarias, a moda do que acontecera em inúmeras cidades européias...
(MOURA E SIMÕES, 1985: 43).

Foram anos em que opiniões, discussões e embates expressavam a formação de uma


opinião pública sobre os destinos dessas áreas que, como veremos mais adiante, se
aprofundarão quando no início das intervenções do poder público na área nos projetos de
“revitalização” deste sitio. O Centro, ocupado por uma população estigmatizada moralmente e
caracterizada como “marginais”, cujas condições de vida escapavam ao padrão da ordem
requerida pela urbanidade buscada, poderiam estar diametralmente contrária aos novos
45

planos. A tensão gerada pela possibilidade de permanência ou exclusão dos moradores das
classes populares pôde ser sentida durante todas as intervenções públicas futuras, destacadas a
seguir, onde se observa os movimentos do Poder Público quanto à estratégia de revitalização
da área, tendo como objetivo a manutenção da classe popular, que também remete a um
patrimônio cultural imaterial a ser preservado, ao mesmo tempo em que denotam os ditos
“problemas sociais” (prostituição, pobreza, habitabilidade, educação, etc.)

Ivanilde Nobre destaca que as populações estavam afastadas das preocupações e


discursos patrimonialistas em função da prioridade que a arquitetura e a preservação do valor
material do Centro Histórico assumira. Segundo a autora “são os monumentos de pedra e cal
do tempo colonial, pertencentes à elite baiana, que deveriam ser preservados” (NOBRE, 2000:
131). Segundo Queiroz, neste contexto a atividade do turismo ganha uma institucionalidade
estatal vinculada ao capital das famílias abastadas de renda. Assim, em 1958, o turismo foi
incluído entre os capítulos do Programa de Recuperação Econômica da Bahia e, no ano
seguinte, no Plano de Desenvolvimento da Bahia (PLANDEB).

A preservação do que já se chamava “patrimônio” seria o motivo para a


intervenção no Centro Histórico, sendo esta avaliação de uso do espaço do
Centro para fins do turismo endossado pela instância do governo Federal
(1930-1945), através do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional
(QUEIROZ, 2006: 78-79).

Acredita-se que esta defesa do patrimônio e, posteriormente, a oficialização desta


política patrimonial contribuíram para a manutenção da feição arquitetônica colonial no
Centro, diminuindo em muito as possíveis intervenções modernas nesta área da cidade. Em
1950 o conjunto arquitetônico passa a ser tutelado pelo Estado que começa, então, a promover
um processo de apropriação pública do patrimônio, via tombamento. Após 30 anos esta
política garantiria ao Estado (via decretos desapropriatórios ou “acordos e negociações”),
transformar-se no principal proprietário de edificações históricas, tendo no IPAC (Instituto do
Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia) a instituição representativa neste processo,
culminando inclusive na expulsão de parte dos antigos moradores das classes populares que
habitavam tais edificações. Em 1959 o antigo centro da cidade de Salvador foi tombado em
quase toda a sua totalidade, passando assim a ser conhecido como Centro Histórico. Segundo
dados apresentados por Nobre para o Brasil, “do final da década de 30 aos anos 90 ocorreram
966 tombamentos, destes a maioria concentra-se nos Estados do Rio de Janeiro (206), Minas
Gerais (179) e Bahia (168). (NOBRE, 2000: 136).
46

Em 1967 o Brasil recebe a visita do senhor Michel Parent à Diretoria do Patrimônio


Histórico e Artístico Nacional na condição inspetor principal dos monumentos históricos do
Ministério da Cultura da França, representando a UNESCO. A visita tem o intuito de elaborar
um “Relatório Preliminar” a ser apresentado à UNESCO para a análise do desenvolvimento
do turismo cultural no país. Parent esteve em Salvador visitando o “Centro Histórico” e,
segundo Reis, traz contribuições compatíveis com o novo ideário internacional,
recomendando a extensão do tombamento de nossas áreas.

No bojo de suas recomendações, ressalta que as intervenções no conjunto


histórico deveriam dar um caráter de inteireza e unidade estilística à
ambiência, tratando o plano visual do conjunto como se fora uma obra de
arte acabada. (REIS, 1998: 59).

A visita foi amplamente divulgada na mídia local e nacional e as notícias remetiam


basicamente a uma euforia quanto à possibilidade de recursos internacionais para a
revitalização e transformação do centro da cidade em “Centro Histórico” e turístico. Segundo
matéria da época:

Pelourinho: um sonho vai a Paris e pode voltar transformado em dólares

O Governador Luiz Viana Filho e o Prefeito Antônio Carlos , com a


evolução dos acontecimentos em relação ao Pelourinho. Ambos receberam
há pouco, cartas do Embaixador do Brasil junto á UNESCO, Sr. Carlos
Chagas, na qual estes lhes dá conta do progresso que o assunto vem tendo
naquela entidade cultural internacional... A opinião do Sr. Michael Parent é
de que este “é o mais interessante e único que pode, de imediato, obter
auxílio”... Entre as primeiras providências estão o desvio do trafego pesado
do Pelourinho, a recomposição do calçamento,..., redes de esgoto e escolha
de prédios que deverão ser recuperados em futuro próximo para abrigar o
Hotel de Turismo, restaurantes, bares, salas de exposição, cineminhas de
arte, teatros de bolso, etc. Desta vez, pelo visto, a coisa vai mesmo
(JORNAL DA BAHIA, 03 e 04 de dezembro de 1967. In: IPAC, 1997: 20 e
21)

A visita e as recomendações de Parent geram a formulação de uma política pública


para o “Centro Histórico” tendo como uma das consequências a criação do IPAC (Instituto do
Patrimônio Artístico e Cultural), em 1967, com o objetivo de “coordenar e gerenciar o plano
de revitalização e valorização de áreas tombadas”. O órgão passou a organizar a pesquisa de
diagnóstico para área, realizada pelo professor Vivaldo da Costa Lima e dois anos depois foi
elaborado o “Plano de Recuperação da área do Pelourinho, primeiro projeto destinado à
valorização desse sítio com propósito turístico e de fomento ao setor terciário” (QUEIROZ,
2006: 81).
47

A pesquisa intitulada “Levantamento Socioeconômico”, foi patrocinada pela


Superintendência de Turismo da Cidade de Salvador e é datada de abril a novembro de 1967
(IPAC, 1997). Importante aqui ressaltar o cunho humano e social implícito ao relatório,
apresentando preocupação quanto ao destino dos moradores da área para um possível projeto
de revitalização ou reforma de cunho patrimonial, cultural e turístico. Mais do que tratar da
participação popular na construção de um projeto para a área, estavam ali expostas critérios de
atenção para a permanência ou relocação dos moradores considerando o “Relatório
Preliminar” de Parent:

O relatório provisório do senhor Parent pode constituir, dessa maneira, numa


base formulatória do projeto desta pesquisa que se dirige expressamente para
análise do componente humano da área em questão. Componente humano
que é, afinal, o objeto essencial de qualquer plano urbanístico (IPAC, 1997:
13 e 14)

A pesquisa visava, entre seus objetivos conhecer a “atitude dos moradores com relação
a possibilidade de mudança do seu local para outros bairros” (IPAC, 1997, 32). Seus
resultados identificavam uma área híbrida de composição social, mas com incidência alta de
prostitutas e “desajustados”. Na sua conclusão, marcada com frases de efeito, a equipe chama
a atenção para as consequências de uma “ação de exclusão de parte dos moradores do Centro
Histórico” e atenta para uma “visão sistêmica dos problemas locais para a cidade como um
todo”:

Ali, estão, certo, prostitutas e desajustados, numa incidência muito alta. Mas
este fato terá que ser considerado em qualquer plano de reforma social da
área, como um elemento de diagnóstico social e não de repressão
sistemática. O mundo belo, vário e trágico do Pelourinho é apenas a moldura
colonial que se pretende conservar, da cidade maior em que se insere, e,
essencialmente, em nada é diverso dela (IPAC, 1997: 93)

Os anos sessenta e setenta são o período em que o debate sobre os “Centros


Históricos” direciona-se para o entendimento do papel desses locais na estrutura urbana,
sobretudo em seus aspectos sociais e econômicos, deixando para trás considerações que
colocavam a questão somente no plano estético e cultural, “o período em que temas inerentes
ao planejamento urbano - habitação, desequilíbrios sociais recaem sobre a reutilização dos
“Centros Históricos”. (Reis, 1998: 47). Foram anos em que a tensão sobre o uso do espaço
poderia ser sentida dentro do próprio Estado, onde o IPAC, através dos posicionamentos de
Vivaldo da Costa Lima, promovia questionamentos e direcionamentos sobre a permanência
dos moradores locais e, conforme constata Queiroz, foram anos, também, em que as primeiras
medidas do novo aparato turístico do Governo da Bahia (BAHIATURSA) pretendiam resultar
48

na construção de um “corredor turístico” para que os turistas pudessem circular “protegidos


de contato com a marginalidade e a pobreza do entorno”, concluindo que esta estratégia
passava a ser questionada por artistas e intelectuais baianos, como Jorge Amado, Caribé e
outros (QUEIROZ, 2002: 119; SANT‟ANNA, 2004, 67. apud QUEIROZ, 2006: 81)

O que se pode perceber nas análises (REIS, 1998; IPAC, 1997; QUEIROZ, 2006) é
que cada vez mais, e a partir da década de sessenta, mesmo com a tensão e as ambiguidades
dos discursos e planos do Governo para com o Centro Histórico e das lutas pela apropriação
do espaço, o que passa ser priorizado são os aspectos econômicos, inerentes ao bem cultural
requalificado, considerando-o como patrimônio cultural material, reorientando um novo
conceito e valores para a área, onde a imagem dos casarões, do sítio e dos monumentos
revitalizados assumem caráter simbólico para a contemplação externa do público,
prioritariamente o estrangeiro. Para David Harvey (1993), analisando o conceito de capital
simbólico de Pierre Bourdieu, a reabilitação e recuperação estariam a serviço do atrativo do
embelezamento e ornamentação, no caso do capital turístico, que se torna uma “ideologia
dominante”. Harvey, na sua obra “Condição Pós-Moderna”, destaca os novos modos de
intervenção urbana com base nas construções de cenários urbanos de “espetáculo”, onde o
“fetichismo” da imagem, denota uma preocupação direta com a aparência física urbana,
superficial, fundamentadas em bases competitivas e que oculta “significados
subjacentes”(HARVEY, 1993: 80 e 81). A citação abaixo de Harvey destaca um novo
paradigma do urbanismo contemporâneo que ajuda a entender a formação de um amplo
consenso sobre a vocação turística para o Centro Histórico de Salvador:

Dar determinada imagem à cidade através da organização de espaços


urbanos espetaculares se tornou um meio de atrair capital e pessoas (de tipo
certo) num período (que começou em 1973) de competição interurbana e de
empreendimentismo urbano intensificado (HARVEY, 1993: 92)

Lysiê Reis aprofunda esta abordagem sobre a construção de um lugar, ou mais


especificamente sobre a “invenção do lugar” (histórico), um ideário que reforça objetivos
explícitos de revitalizar um passado ideal para possível vendagem, sendo que o turismo, neste
caso, desponta como o maior atrativo da requalificação ou revitalização (REIS, 1998: 50).
Seria o que a autora chama do “poder de sedução exercido por lugares historicizados,
apropriados ao sentido efêmero e espetacular de entrar na máquina do tempo” (REIS, 1998:
04); ou seja, o uso da imagem da história para o consumo cultural. Por outro lado, e em todo
momento da sua pesquisa, a década de setenta é marcada pela controvérsia em torno da
49

manutenção da população local, fato que será exposto e aprofundado no objeto de estudo aqui
referido, em relação à 7ª Etapa de Revitalização, em 2001.

Reis coloca que no próprio documento de Michael Parent, em 1967, é defendido a


maior manutenção possível dos habitantes na área, fazendo inclusive restrições às ações
repressivas contra a prostituição e “controle do fachadismo e à cenografia” (REIS, 1998, p.
77). Sobre este ponto a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico da Bahia, na pessoa de
Vivaldo da Costa Lima, parecia concordar que, como apresentado na pesquisa de
levantamento sócioeconômico e denuncias na mídia, a vocação turística para o Centro
Histórico teria que ter cuidado no trato com os seus e, neste caso, o que se percebe no
decorrer dos fatos é que o controle da repressão e a possibilidade de permanência dos
moradores seriam sempre construídas com base numa intervenção pública com marcas de
violência, exclusão, falta de participação, onde os julgamentos de valores que orientavam as
ações sobre a área estariam em disputa, conforme pode se avaliar da notícia jornalística da
área..

Polícia prejudica obra no Pelourinho

O diretor da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico da Bahia –


também conhecida como Fundação do Pelourinho - Vivaldo Costa Lima
anunciou ontem a possibilidade de paralisação de todo programa de
recuperação social e econômica do Pelourinho, o maior conjunto
arquitetônico colonial da América Latina, caso a polícia não seja contida na
sucessão de arbitrariedades que vem cometendo contra os funcionários do
órgão e moradores da área (O ESTADO DE SÃO PAULO, 20 de maio de
1980. In. IPAC, 1997: 170)

Os anos 80 são marcados pela institucionalização do processo de Revitalização do


Centro Histórico de Salvador, como resultado de uma sequência tratada anteriormente (1960-
1980).

O reconhecimento da área pela UNESCO, em 1985, como Patrimônio Histórico-


Cultural da Humanidade, iria pesar no destino e perfil futuro do chamado Pelourinho, em
termos de sua característica turística. Esse processo acelerou a expulsão dos seus moradores
da área e a redefinição da área em um parque turístico, provida de lojas, bares, hotéis e
pousadas, sem levar, pelo menos quando da análise dos dados de relocação e trato com os
moradores, em consideração os apontamentos sugeridos pelo IPAC na gestão de Vivaldo
Costa Lima. Mas só em 1989, finalmente, foram anunciados os projetos de Revitalização do
Centro Histórico de Salvador, pelo então Ministro da Cultura, Celso Furtado (ESPINHEIRA,
1989: 35).
50

Na década de 80, diante de um cenário ainda de considerável degradação física e


consideráveis questões sociais, o Centro Histórico, mais especificamente a área denominada
de Maciel, na iminência das intervenções públicas, se tornava tema para debate no âmbito da
construção de uma esfera pública que contemplava os moradores e estabelecia um debate
entre atores sociais, que emitem opiniões, vontades e externalizam suas denúncias. Neste
momento, destaca-se a atuação dos grupos afros (musicais, blocos, afoxés), e também a
emergência de denúncias, onde os moradores tomam vozes como atores, apresentando seus
valores sociais e raciais também enquanto história e cultura e sua pertença àquele espaço
urbano. O Grupo Cultural Olodum, criado em 1979, foi um dos protagonistas deste “fazer
ecoar na cidade” e, posteriormente, no mundo, as mazelas vividas pelas classes populares no
local e seus valores humanos a serem preservados. A atuação do Olodum marca a década de
oitenta também como elemento de disputa pelo espaço. Abaixo seguem trechos de letras de
suas músicas que serviram para chamar atenção da opinião pública e da classe artística a
realidade vivida no Centro Histórico pelos negros que ali viviam:

Nas ruas do Pelô, Maciel, Pelourinho


Onde o negro amanhece
Nas ruas do Pelô, Maciel, Pelourinho
Onde o Olodum se firmou
...
Vem mostrar seu valor
Vem cantar no Pelô (BLOCO AFRO OLODUM, 2005: 269)

Protesto Olodum
(Tatau)
...
Declara a nação
Pelourinho contra a prostituição
Faz protesto manifestação
E lá vou eu
(Bloco Afro Olodum, 2005: 292)

Os protestos do Olodum geram debates, a atenção dos órgão públicos e sensibilização


internacional. Ao mesmo tempo, os ensaios da banda serviram de atrativo para que turistas e
outras classes que não as populares estivessem presentes no Centro Histórico, principalmente
nas “terças da benção”11. O Governo acompanhava esse processo e contribuiu também para

11
A terça feira no Centro Históricos é o dia da semana em que há a celebração na Igreja Rosário dos
pretos e os ensaios da banda Olodum, dia de movimento maior de pessoas no local
51

potencializar e ampliar o número de visitantes da área. Em 1989 é anunciada, então, a reforma


do Centro Histórico, reforçando elementos culturais, históricos, arquitetônicos associados
como motrizes para revitalização. Outra vez os moradores da área sofrem tensão sobre seu
destino com processo de relocação e nova configuração turística para a área.

Em 1991, o Governo do Estado da Bahia, então sob o mandato de Antônio Carlos


Magalhães, foi o responsável pela elaboração e operacionalização do “Termo de Referencia” e
do Programa de Recuperação do Centro Histórico. Inicialmente este Termo dividia a área em
cinco subespaços, onde para o processo de recuperação “por etapas”. (URIARTE, 2003: 78).
A “expulsão” dos moradores não estava prevista no Termo de Referência, mas, segundo
Uriarte, de fato a recuperação do Pelourinho “expulsou” 95% dos moradores, conforme os
seguintes dados: nos 14 quarteirões e 223 imóveis do Maciel/Pelourinho havia 1.314 chefes
de família com 3.200 dependentes, dos quais mais de 1.081 chefes foram despejados,
abrangendo um total de 2.706 pessoas, e permanecendo na área apenas 233 chefes (e 494
dependentes). A “expulsão” da população, caso fosse feita, devia ser acompanhada por uma
“efetiva participação das comunidades residentes na área”, com base “no modelo de
intervenção participativa”. O IPAC, porém, justificou a eliminação da área para uso
residencial, alegando incompatibilidade entre a população local e as novas características e
feição destinada ao Centro Histórico; comércios, lojas, bares (URIARTE, 2003: 79). Neste
sentido, entre o discurso e a pratica, entre o poder de fala e a ação, tanto da equipe de governo
como das pessoas que seriam atingidas pela intervenção, os dados e números nos mostram o
efetivo resultado do efeito das primeiras etapas de remoção, que podem ser confrontados
numa analise mais criteriosa:

Na época da inauguração, havia duas etapas concluídas. A primeira etapa,


iniciada em 1992 abrangeu 89 imóveis e custou cerca de R$ 11,2 milhões.
Houve protestos de moradores que não queriam sair do bairro, mas a maioria
- 399 famílias - optou pelas indenizações e 26 foram transferidas para a
periferia, o que acarretou o fechamento de 79 pequenos negócios. A segunda
etapa, também concluída em 1993, abrangeu 47 imóveis de dois quarteirões
do Carmo e a escadaria do Passo, pelo montante de R$ 2,8 milhões. Segundo
dados do Governo, 176 famílias optaram pela indenização e 18 foram
relocadas para casas de aluguel de propriedade do Governo Estadual. Em
1994, foram realizadas mais duas etapas: a terceira, que custou R$ 3 milhões
e abrangeu 58 imóveis; e a quarta, que utilizou R$ 12 milhões para obras em
140 imóveis e no Cruzeiro de São Francisco. Ao total, nas quatro etapas
iniciais que perduraram por dois anos, foram gastos cerca de R$ 29 milhões.
(REIS; 2004: 04)
52

[...] em 1998, só 3,1% dos imóveis do pelourinho tinham esta finalidade,


enquanto 35,1% eram comerciais e 12,2% de serviços (IPAC, 1997-1998,
apud URIARTE, 2003: 79).

Até 1991, mais de 20 planos e ações tinham sido elaborados com vistas à reversão do
Estado de abandono em que se encontrava o Centro Histórico. Foram anos também em que as
pós-intervenções mostravam suas faces de crise, já em 1994, onde alguns segmentos de
comercio e lazer foram fechados, o que implicava alta rotatividade das lojas. Diversos fatores
começavam a ser levantados sobre as razões desta crise, tantos pelos órgãos financiadores,
sociedade civil, que rebatiam diretamente sobre o Estado. Esta avaliação crítica vai
condicionar as análises e e compor estudos que orientam as ações de revitalização da próxima
etapa, a 7ª Etapa, objeto de analise desta pesquisa.

Acompanhando o processo de institucionalização do Centro Histórico para fins


turísticos, observa-se, também, como analisado durante todo o processo de disputa pelo
espaço na execução da política de revitalização, a necessidade de valorização de um outro
bem, que deveria ser respeitado, e também, “revitalizado” em torno de personagens e “figuras
típicas” e ícones simbólicos da cultura baiana, da cultura “do lugar”: os capoeiristas, mães de
santo, alfaiates, poetas, sambistas, pequenos comerciantes, prostitutas. A contraposição de
sentidos de usos do lugar já expressava a tensão que vinha sendo “fiada” naquele momento,
na defesa do direito e no reconhecimento daqueles que deram uma feição popular e cultural ao
Centro Histórico.

Intelectuais, como Jorge Amado, questionava a feição “marginal” atribuída pelo senso
comum aos habitantes do Centro Histórico. Eles negavam e revertiam os termos de marginal
e/ou delinquente da área, para “pobre”, em direção oposta aos termos utilizados nos
documentos de políticas públicas. Outra dimensão assumida por eles considerava
positivamente a valorização dos trabalhos de conservação patrimonial feita pelos próprios
moradores em relação aos imóveis ocupados, desmistificando a imagem de que estas pessoas
depredavam esta riqueza material e histórica.

Assim o Pelourinho - Maciel foi sendo ocupado, desde há um século, pelos


setores de mais baixa renda da Cidade de Salvador, que encontraram as
construções no mais completo abandono pelos antigos proprietários e pelo
Estado. Seus novos moradores começaram a remendá-los, então, cada vez
que se tornavam impraticável de habitar ali... Era o povo que refazia, pouco
a pouco, a cada dia, o que já tinha recebido mal conservado (SIMÕES E
MOURA, 1985, p. 42).
53

De fato, os moradores do Centro Histórico preservaram, em certa medida,


não apenas os aspectos físicos do lugar, mas principalmente os seus aspectos
culturais que no entender de Azevedo (1949) referem-se a duas perspectivas:
1) atividades artísticas, intelectuais, criativas e recreativas; 2) complexos
modos de vida, de conceitos e visões de mundo, de atitudes, crenças, valores
e estruturas de relações e de tecnologias, que asseguraram aos habitantes e
tais conjuntos a sobrevivência (NOBRE, 2000, p. 125).

Portanto, a imagem de degradação e abandono, tanto físico quanto social, dessa área,
formulado pelos documentos oficiais através dos argumentos justificadores dos planos de sua
revitalização advinha dos poderes públicos e não das pessoas que ali moravam. Afinal, como
pude acompanhar durante o processo de pesquisa e trabalho no campo, os valores e interesses
das famílias em permanecerem neste local, uma moradia localizada no centro da cidade, não
deveria ser desperdiçada por um contingente enorme de famílias “sem teto”. Para eles e ao
que parecia, os casarões, não lhes chamavam atenção pelo seu valor patrimonial e histórico,
mas sim pela sua necessidade de habitar, e habitar no Centro da cidade. A “revitalização”,
agora avaliada em termos da permanência ou não destas pessoas, assume o desafio entre os
que se acham usurpados dos seus patrimônios e consideram que devem assim reverter-lhes à
propriedade publica, patrimonial, turística privada, e, de outro lado, os que, na medida do
(im)possível, acabaram por tornar este patrimônio moradia e fonte da própria subsistência.

Para Moura e Simões “o pecado maior do Maciel não é a prostituição ou o vício, mas a
pobreza, que ocupa o espaço que o grande capital quer tomar” (1985: 44). Essa análise
destaca a percepção do processo de Percebe-se de revitalização como higienização social, que
pode remeter ao debate sobre as terminologias do novo no prefixo do “RE” (revitalização,
restauro, reforma, requalificação, reabilitação, recuperação, repovoamento, regeneração,
renovação, renascimento urbano, onde contem sempre outra “RE” supostamente necessária à
“boa execução” das restantes: a RE -locação.

2.3 REFORMA URBANA, REQUALIFICAÇÃO, REVITALIZAÇÃO,


RELOCAÇÃO O QUE NOS “RE-VELA” OS TERMOS

Em todo o processo histórico de formação do “Centro Histórico” de Salvador,


principalmente nos sec. XX e XXI, percebe-se nas propostas e políticas públicas de
intervenção urbana uma preocupação permanente em “revitalizar” a área. Entender o
significado do termo “revitalização” (marcante no contexto desta pesquisa), seja na sua
dimensão arquitetônica, patrimonial, mas, principalmente, pela sua vinculação a uma
54

estratégia de redimensionar a ocupação social, através de processos de relocação, é de


fundamental importância para a caracterização das intervenções nos contextos históricos e
suas consequências do Projeto de Revitalização da 7ª Etapa do Centro Histórico. Para concluir
este primeiro capítulo faz-se uma reflexão sobre possíveis estratégias e efeitos de tais políticas
públicas.

Diante dos processos e projetos de intervenção urbana com metas de transformar uma
determinada área, moradias, bairros em um ambiente mais “saneado”, “requalificado”,
“higienizado”, “revitalizado”, observam-se concomitantemente as consequências desses
processos simbólicos e institucionais sobre as relações vividas pelos moradores que, muitas
vezes, são caracterizados como “marginais”, “proletários”, “miseráveis”, “pobres”. Essa
perspectiva não é novidade e acompanhou todo o processo histórico de urbanização na Europa
do sec. XIX. Assim, antes mesmo de analisarmos os dados mais específicos da 7ª Etapa de
recuperação do Centro Histórico de Salvador, retomamos algumas preocupações e propostas
de intervenção urbanísticas em áreas cuja avaliação, seja pelo Poder Público ou privado,
remetia a uma vontade de transformar os ambientes ocupados em locais higienizados, ainda
na Europa sec. XIX e seu amplo processo de urbanização. Neste sentido, as reflexões de
François Beguin (1991) e de Christian Topalov (1996) são contribuições fundamentais para o
entendimento da gênesis dos “problemas urbanos” e das propostas dos “reformadores” na
Inglaterra pós-industrial.

Beguin no seu artigo “As Maquinarias inglesas do conforto” mostra uma ambiguidade
na preocupação social dos interventores, nas chamadas “questões sociais”, nos centros
urbanos da Inglaterra, onde mais do que proporcionar políticas públicas demandadas e
construída em conjunto com as classes operárias, estava intrínseca a preocupação em criar
ambientes de “conforto”, para que o proletariado da época pudesse viver de forma adequada
aos padrões preestabelecidos pela classe burguesa, influenciando, assim, uma maior
produtividade para o processo industrial e capitalista. Ele conceituou este fato como “uma
atenção dedicada ao custo econômico e social do desconforto”. (BEGUIN, 1991: 40)

[...]os ambientes físicos insalubres deterioram a saúde e o Estado físico da


população: que ,por isso mesmo, eles agem como obstáculos à educação e ao
desenvolvimento moral: que diminuem a esperança de vida da população
operária adulta: que eles interrompem o crescimento das capacidades
produtivas e diminuem o capital social e moral da comunidade: que eles
substituem uma população que acumula e conserva a instrução, que melhora
constantemente, por uma população que é jovem, ignorante, crédula,
apaixonada e perigosa como resultado de sua inclinação permanente à
degradação física e moral. (BEGUIN, 1991: 40)
55

Percebe-se de início algumas questões: as causas referidas à “degradação social”, mais


do que direcionada ao sistema econômico vigente, orientava-se pela idéia de que os ambientes
insalubres, onde a moral e as condições de saúde dos espaços físicos podiam ter, segundo a
visão reformista, interferência para a construção do ideal de processo de produção. Para
Beguin, o ponto de vista dos reformadores urbanistas da época, o “Estado miserável” das
casas e seu desconforto, por exemplo, eram considerados pelos reformistas como fatores
determinantes para levar os homens ao ócio fora delas, ao prazer inoportuno e egoísta, ao
álcool, drogas, à imoralidade. As doenças deviam ser tratadas, em conjunto com os médicos,
pelos engenheiros, arquitetos e urbanistas, até porque acreditava-se que a salubridade, o
saneamento, a higiene e a recuperação de um habitar saudável, melhoraria a própria
produtividade no trabalho.

Abre-se então a possibilidade do Estado reverter uma situação de “patologia social e


moral”, acentuando seu controle sobre aparelhos de salubridade e higiene, “para domesticar
os efeitos e modificar assim as normas de funcionamento das casas” (BEGION, 1991, p.41).
Esta “evolução” parecia então assumir um aspecto técnico, econômico e político, onde o
Estado passa assumir o papel central de interventor pois era capaz de coordenar os diversos
setores dos órgãos sanitários (médicos, engenheiros, arquitetos, urbanistas), reduzir os custos
de financiamento e poder impor aos proprietários, ocupantes e construtores, normas de
saneamento (cf. BEGUIN, 1991: 45). A ambiguidade citada no início desta reflexão estava
presente na possibilidade de construção das políticas habitacionais e a estratégia de promoção
de um conforto que possibilitaria também um determinado controle sobre o indivíduo, por
parte do Estado. Neste sentido, a retomada de parte do relatório da “Sociedade para a
Melhoria das Condições e aumento de vida dos pobres” (1798) em Londres, é esclarecedora
da perspectiva de médicos e técnicos em visita pela “Comissão de Saúde” ao revelaram a
realidade e o sentimento dos moradores de um local, dito, “degradado”.

[...] o calor do encortiçamento e do confinamento, as drogas e o álcool, a


vadiagem pela rua, a promiscuidade, o anonimato das lodging-houses
(pensões), a preguiça que elege a sujeira mais do que o esforço. Imagem
negra para todos aqueles que, desconhecendo o hábito do pobre e suas
táticas, só veem a miséria e a deterioração dos corpos. Para os médicos que,
entretanto, confessaram jamais ter escutado de alguém se queixar –
“qualquer que seja a miséria e o desconforto doméstico, eu nunca ouvi uma
só queixa em doze anos de prática”... Porém estes artifícios desagregam as
relações sociais e familiares, mais ainda, os pobres, transformando em seres
letárgicos ou doentes, tornam-se logo incapazes de trabalhar e devem,
portanto, serem mantidos pela sociedade (BEGUIN, 1991: 47)
56

Na sua conclusão, analisando a visão dos interventores da época, o conforto


(habitabilidade) seria um “processo de invasão” ao qual não se pode resistir e cujos efeitos são
modulados segundo o lugar que se ocupa na sociedade. E, segundo Beguin, quanto mais baixo
for o nível social, a pressão é maior, no que ele afirma como “opressão doce e insidiosa”
(BEGUIN, 1991: 49). Christian Topalov (1996), faz análises similares quanto à participação
popular nas políticas de intervenção urbana, concluindo que elas não atendem nem se
referenciam às vontades e demandas da classe. Segundo Topalov as políticas sociais
progressistas (“reforma da moradia”) têm sua origem em um projeto educativo relativo aos
trabalhadores urbanos e não às exigências destes últimos e, desta forma, “contrariavam
hábitos arraigados nas classes populares pelas preferências pelas moradias baratas e seus
bairros tradicionais” (TOPALOV, 1996: 27).

Ficar no bairro é a exigência mais comum, já que, no bairro, encontram os


trabalhos (muitas vezes precários), os numerosos recursos da grande cidade e
a solidariedade entre conjugues, indispensável para a economia doméstica...
As pessoas se mudam com frequência na mesma rua e, inclusive, no mesmo
edifício, para adaptar o aluguel a situação do momento... E ninguém pensa
em exigir as “moradias saudáveis” das longínquas cidades-jardim dos
reformadores; a oposição é total, ainda que, raramente, tenha obtido
resultado quando os especuladores ou as prefeituras se propuserem a demolir
os “bairros insalubres” (TOPALOV, 1996: 31)

Obviamente não se pretende aqui fazer uma comparação direta entre a Inglaterra do
sec. XIX e o Centro Histórico de Salvador do sec. XXI analisado nesta pesquisa. O esforço
está em estabelecer correlações sobre a determinação de fatos que, apesar da reconhecida
diferenciação histórica e distanciamento físico, geográfico, cultural e conjunturais,
reproduzem situações aproximadas, de fundamental importância para o entendimento
histórico dos processos históricos de reforma urbana e seus efeitos na atualidade dos projetos
de revitalização. Uma questão, por exemplo, que toca esta análise, diz respeito à reprodução
de um julgamento de valor moral sobre os segmentos em situação de pobreza, a degradação
física do local habitado e os supostos hábitos “desviantes”.

Essas avaliações se assentavam numa categorização social desses segmentos de


moradores como “classes perigosas”, habitantes de bairros operários que ameaçavam, por
assim dizer, uma determinada ordem estabelecida, sugerindo, por parte do Estado
intervenções repressivas. (TOPALOV, 1996: 33). Como consequência era necessário
planificar o desenvolvimento destes locais, “subúrbios”, evitando, assim, a reprodução da
desordem arquitetônica, característica das cidades antigas, “eliminando bairros populares
57

tradicionais” e criando unidades residenciais em locais delimitados pelo, chamado,


“urbanismo funcionalista”. (TOPALOV, 1996: 44)

David Harvey, analisando o ambiente europeu na Modernidade e na considerada Pós-


Modernidade, traz outra contribuição analítica sobre a urbanização das cidades onde o
embelezamento dos espaços públicos, a “cidade espetáculo”, mais do que estar para o controle
social sobre a produção do proletariado, estar para a construção de novos espaços,
“recuperados” ou “reabilitados”, com destino a outra ocupação que não a submetida às classes
populares. Seria a construção de uma vocação do espaço, citada no item anterior, onde o
“atrativo pelo embelezamento e ornamentação” seguiria determinado padrão, podendo
inclusive criar um fetiche da imagem e capital simbólico a ser valorizado (HARVEY, 1993:
80-83).

O fetichismo (a preocupação com a aparência superficial que ocultam


significados subjacentes) é evidente, mas serve aqui para ocultar,
deliberadamente, através de domínios da cultura e do gosto, a base real das
distinções econômicas (idem: 80 e 81)

Harvey chama a atenção para o zoneamento das áreas de intervenção que passam a ser
ditados pelo mercado, mais do que pelo princípio do planejamento urbano, ainda que as
estratégias do mercado estejam em geral próximas às do Estado. Desta maneira, reflete a
preocupação do controle político ou do compromisso do Estado em estar “reconstruindo”,
“reformulando”, “renovando” o tecido urbano, principalmente ao tratar a situação de uma
Europa destruída pelas duas guerras mundiais e tendo, então, como um dos caminhos para o
desenvolvimento econômico o próprio atrativo urbano das suas cidades. Para tanto, segundo o
autor, a “eliminação” das habitações populares em determinados espaços se formam em
estratégias de “valorização” de um ambiente “recuperado” e com um novo destino, um
negócio para atrair capital.

Sob o olho vigilante e às vezes a mão forte do Estado, foram tomadas


medidas para eliminar habitações miseráveis e construir casas, escolas,
hospitais, fabricas etc. modulares através da adoção dos procedimentos de
planejamento racional (ibidem p. 71)

Seu posicionamento referente aos processos de construção de espaços urbanos, conclui


que este “livre mercado” é capaz de “encerrar” as classes médias nos espaços fechados e nada
fazer pelos “pobres, exceto ejetá-los para uma nova e bem tenebrosa paisagem pós-moderna
de falta de habitação”. Esta transição, orientada segundo as regras do mercado, amplia e
aumenta a velocidade do que Harvey, e outros autores vêm, chamando de “gentrificação” ou
58

“gentrification” (p. 79), termo atualmente bastante usado para designar uma mudança dos
aspectos socioespaciais de áreas urbanas, onde processos de revitalização acabam por realocar
moradores “ditos” incompatíveis com o novo valor, ou capital simbólico, agregado a uma área
de destino ao uso das “classes médias” ou “altas”.

Ângela Gordilho, analisando aspectos da gentrificação considera:

Nos anos oitenta, com os novos projetos de intervenção pública para


renovação urbana, manifesta-se outro tipo de mudança na localização
habitacional ligada a classes sociais, denominado de gentrification –
expulsão das populações pobres residentes em áreas centrais degradadas,
substituídas por outras de renda mais alta... Esse modelo – a cidade-como-
palco – se reproduz em cidades antigas, de vocação turística, envolvendo
pesados investimento públicos e privados, quase sempre expulsando as
famílias pobres residentes, de forma direta ou, indiretamente, pelos altos
custos de morar nessas áreas “revitalizadas” (GORDILHO, 2000: 33)

Para a política Brasileira e mais especificamente, soteropolitana, a “reabilitação”


urbana, principalmente quando referida aos centros das cidades, tem sentidos diferenciados
das agendas de reabilitação e revitalização das cidades européias e mesmo Norte americanas.
Nos países do norte a reconquista dos centros parece ter gerado imediatamente um
enobrecimento da área e, consequentemente, uma gentrificação; ou seja, a saída das classes
populares dos centos urbanos. Para o Brasil e, mais especificamente, Salvador, pode-se
afirmar que nem as áreas do centro tornaram-se de todo enobrecidas, nem houve de fato um
processo de gentrificação, já que se percebe em seus centros a permanência das classes
populares como focos de resistência por habitação, nas ruas, em vielas, becos, sobrados
abandonados...

No caso de Salvador, por exemplo, o exemplo do Projeto de Revitalização da Avenida


Contorno, idealizado pelo governo do Estado, a revitalização da Av. Lafaiete Coutinho, mais
conhecida como Av. Contorno, que faz a principal ligação da Cidade Alta com a Cidade
Baixa, um dos percursos mais visitados por turistas a caminho do Mercado Modelo, Elevador
Lacerda e saídas a passeio pela Baía de Todos os Santos, apesar de ter avançado e construído
uma marina (Baía Marina), de padrão internacional, e restaurantes de luxo, onde antes havia a
“comunidade de Água Suja”, não conseguiu caracterizar por completo o projeto de
“requalificar, revitalizar e gentrificar” por resistência dos moradores da Gamboa de Baixo e
Solar do Unhão, dois bairros incrustados na encosta da falha tectônica que divide a Cidade
Alta da Cidade Baixa. Estes bairros tornaram-se exemplo de luta para outros tantos do centro
de Salvador, ao mesmo tempo em que, para os olhares da especulação imobiliária, um entrave
59

para possíveis negócios e valorização simbólica da área. O mesmo exemplo torna-se


característico para as análises dos Projetos de Revitalização do Centro Histórico de Salvador.

Mesmo não alcançando uma real gentrificação, da perspectiva de uma transformação


total dos padrões de ocupação e substituição das classes populares pelas médias e altas, o que
se percebe, principalmente no modelo Brasileiro e soteropolitano são as “políticas do “RE”:
reabilitação, requalificação, revitalização, reforma, restauro, recuperação, repovoamento,
regeneração, renovação. Estas políticas, trazem a ambiguidade e expressam uma correlação de
forças internas aos governos, prevalecendo tentativas combinadas de , ao mesmo tempo,
valorizar e dar novo sentido e uso a uma área, e proceder a um processo de relocação de
pessoas julgadas incompatíveis de aí permanecerem. Com esta análise concorda Gordilho
(2000), quando afirma que em Salvador:

[...] não se permite na área central , na área central, a de antigos mocambos


e casebres. Em seguida elege-se uma determinada zona da cidade para
construção de habitações proletária... Paralelamente, promove-se a
realocação de invasões existente na orla e em demais zonas valorizadas da
cidade, deslocando-se as populações para loteamentos públicos na periferia.
Mais recentemente, com o esvaziamento do Centro Histórico, verifica-se que
essa ação também acaba empurrando a população daí retirada (outro “re”,
grifo meu) para periferia pobre, contribuindo para acentuar, cada vez mais, a
separação de classes de renda na cidade (p. 151)

Como afirma Neil Smith (2006), em estudo publicado no livro “De volta à cidade; dos
processos de gentrificação às políticas públicas de revitalização dos centros urbanos”, as
terminologias, revitalização, reforma, regeneração, etc., acabam por “mascarar” em discursos
os reais objetivos das intervenções. O termo “regeneração urbana”, por exemplo, é refletido
pelo autor como uma terminologia biomédica, utilizada para regeneração do fígado ou de uma
floresta e por isso a metáfora é reveladora.

[...]os arautos da estratégia da regeneração mascaram as origens sutilmente


sociais e os objetivos da mudança urbana... falta no discurso da “regeneração
urbana” levar em conta o destino das pessoas deslocadas ou postas nas ruas
graças a uma reconquista da cidade em tão grande escala. (SMITH, 2006,
p.83 apud ZACHARIASEN, 2006)

Para aproximação com os projetos e planos de revitalização dos centros de cunho ou


“vocação” histórica e patrimonial levanta outras questões como, por exemplo, indagações
instigantes de Hélène Riviére d‟ Arc, ao analisar os planos de “requalificação” do centro de
São Paulo como indaga a autora:.

Qual papel reservado ao Centro antigo. Aquele de especulação imobiliária


excludente e da difusão cultural como estratégia produtiva, ou do espaço
60

público abandonado aos pobres e/ou parcialmente privatizado. (D‟ARC,


2006, p. 226)

Esta é uma das tensões implícitas ao contexto de luta dos moradores afetados pela 7ª
Etapa de Revitalização do Centro Histórico de Salvador, objeto dessa dissertação, onde os
moradores, apesar de assumidamente apresentarem seus esforços e limites em manter esse
“patrimônio vivo”, também não podem se apropriar de um bem considerado publico, a ponto
do seu uso se tornar excludente para a utilização de outras classes da sociedade. Por outro
lado, o papel do Estado, como ator regulador do uso do espaço público ao excluir os
moradores como atores legítimos na defesa dos seus direitos parece se deslocar em favor de
outros interesses de forças do mercado, ao desconsiderar a participação mais efetiva e
horizontal do diálogo e construção conjunta de alternativas e efetivação dos seus direitos
constitucionais, seja na possibilidade de permanência dos moradores, seja por um processo de
relocação considerado e aceito como justo pelas partes.

No caso do Centro Histórico de Salvador, as concepções implícitas ao termo


revitalizar, principalmente referenciadas pelos documentos públicos, fazem menção aos
aspectos sociais presentes na área e que segundo esses documentos deveriam ser mantidas
como aspectos da cultura local a ser valorizada. Porém, o que se percebe nos referenciais aqui
utilizados e na própria pratica de campo é a predominância de concepções e valores relativos
aos moradores como supostos “marginais” a serem “removidos” e, portanto, “excluídos” dos
processos das reformas, conforme se pode deduzir do relatório da Pastoral da Mulher
Marginalizada, citado por Lucia Simões e Milton Moura (1985). Nele, o antigo Maciel seria
palco das seguintes arbitrariedades policiais:

a) Prisões ilegais pelo fato de algumas pessoas estarem sem documentos...

b) Prisões ilegais, sem flagrante delito como manda a lei, e, segundo alguns
moradores as pessoas são obrigadas a confessar o que não fizeram...

c) Invasão de domicilio...

d) Na maioria das vezes os policiais batem primeiro para depois pedir os


documentos... Estes espancamentos brutais, já não aguentamos mais
assistir12 (SIMÕES; MOURA, 1985, p. 49)

12
Relatório A atuação da policia na área do Maciel, janeiro de 1984, elaborado pela Pastoral da Mulher
Marginalizada, p.21 (apud Simões e Moura, 1985, p.47).
61

Além de reforçar uma imagem desqualificadora e repressora sobre os “pobres”


moradores locais, outra estratégia indireta dos poderes públicos e proprietários justificava a
revitalização da área, segundo Espinheira (1983):

o próprio abandono dos casarios, desde o saneamento básico, iluminação,


infraestrutura arquitetônica, para que assim seus atuais moradores,
indesejados, sejam expulsos pela própria ação da natureza que teimava em
derrubar as casas, incendiá-las, deixá-las inabitáveis (p. 36 e 37).

Os planos e caminhos técnicos visavam garantir para este sitio a feição de um


“patrimônio histórico da Humanidade” e, com isso, parecia ser inoperante, no curto prazo,
garantir a morada para pessoas que não conseguiriam manter em pé os casarões, segundo
Espinheira. No inicio da década de 80 associações foram formadas para discutir alternativas,
como o REVICENTRO13, ou a Associação dos Moradores do Maciel que, em carta
direcionada ao Ministro da Cultura, na época, Aloísio Pimenta, assim formulava suas
demandas:

Exigimos o reconhecimento de que fazemos parte do patrimônio e juntos


somos a cidade e que, por isso, não se pode considerar somente seus
aspectos físicos, mas, principalmente social e econômico (Associação dos
Moradores do Maciel, apud ESPINHEIRA, 1989, p.43).

Porém, o plano para a área tinha uma maior preocupação com a estrutura física, o
desenvolvimento do turismo e a ênfase no econômico. O valor cultural material sempre
justificou mais o interesse pelas “reformas” do Centro Histórico do que o valor cultural
imaterial representado tanto nas manifestações do povo que ali vivia, quanto pelos próprios
personagens da história da Bahia e do Brasil. A imagem da cultura do povo, do bem imaterial
foi muitas vezes utilizada para a mobilização dos recursos em projetos que, em tese, visavam
a permanência dos moradores locais, sensibilizando possíveis financiadores. Fato que será
melhor apresentado, e detalhado quando da análise da 7ª Etapa de Revitalização do centro
Histórico. Porém, cabe ainda elucidar alguns fatos referentes à natureza semântica do “RES”,
como o novo, o vigoroso, o virtuoso, que recobre convencimentos e sentidos para os projetos
de revitalização da área.

Reis (1998), em capítulo específico (capítulo III). analisa a “relocação dos moradores”
nas primeiras etapas de recuperação do Centro Histórico, com elementos importantes que
explicitam como ocorrem os projetos de recuperação e seus efeitos e consequências sobre a

13
Comissão de Revitalização do Centro Histórico de Salvador, iniciativa das antigas e tradicionais
entidades religiosas, culturais e assistências da freguesia da Sé. Em 1982 empreenderam uma ação coletiva em
defesa do Centro sob seus atributos (SIMÕES E MOURA, 1985, p. 49).
62

vida dos moradores das classes populares que habitavam o local. Segundo ela, pelos dados
divulgados pelo IPAC, para desocupação dos imóveis e a realização das obras foram
cadastrados todos os moradores e comerciantes da área e oferecidos a eles três tipos de
opções: uma indenização em dinheiro e o compromisso de abandonar a área; relocação
definitiva (mudar para um imóvel especialmente recuperado, pagando aluguel e com contrato
juridicamente válido); e a relocação provisória, opção válida para proprietários de imóveis
degradados, que poderiam ficar residindo provisoriamente em imóvel adaptado até retornar
para o de sua propriedade.

Conforme suas análises, segundo o IPAC,

[...] houve opção maciça pelas indenizações, pois estas, calculadas caso a
caso, levavam em consideração o tamanho da família, o tempo de moradia
no “Centro Histórico” o que resultava numa indenização em valores
bastantes atrativos, pois a renda familiar média era menos de US$100 por
mês; o que não lhes permitia poupar, absolutamente, nada. Assim, 85% dos
moradores indenizados puderam adquirir casas populares em bairros
proletários ou de periferia (IPAC, 1995: 21 apud REIS, 1998: 94)

Ao final desta análise a autora refuta o último dado de que 85% dos moradores
puderam adquirir imóveis em bairros proletários por não haver qualquer tipo de documento
público que comprovasse tal afirmativa (idem: 94). O uso restrito para habitação e a
prioridade ao comércio também se tornou uma estratégia de relocar os moradores locais com
vistas a construção de um shopping a céu aberto, com lojas, serviços, bares, restaurantes,
teatros, cinemas. Estava posto em prática a corrente ideológica propagada da vocação turística
e fundada no capital simbólico do espaço transformado em mercadoria de valor de troca e de
consumo, mais que o de uso.

O advento da 7ª Etapa, mais uma vez recoloca o debate acerca dos sentidos e conflitos
dos processos de revitalização e relocação. A análise dessas questões é rica para o
entendimento analítico da ação dos atores ai envolvidos, qualificando o lugar específico da
perspectiva do entendimento das tensões de formação do espaço público, ainda que numa
escala reconhecidamente de pequena grandeza, quanto á sua repercussão.

A 7ª Etapa traz em si uma novidade quanto à avaliação do Poder Público ele põe em
questão menos a discussão sobre a viabilidade ou não de transformação ideal do espaço para
apenas o comércio e volta-se para a discussão da permanência dos moradores. As
ambiguidades que rondam o processo de negociação de quem deveria ter o direito de
permanecer ou ficar morando no Centro Histórico reaparece durante todo processo de
63

negociação entre as partes. A 7ª Etapa portanto é a que apresenta uma singularidade


importante quanto ao destino dos projetos de revitalização pois, entre todas as experiências
das etapas anteriores, foi a que apresentou o maior campo de conflito e negociação, assim
como resultou em uma escala também maior de famílias que conseguiram, em parte, o direito
de permanecer e morar nas casas reformadas, revitalizadas, já que tantas outras continuaram
sendo relocadas.
64

3 A IMPLANTAÇÃO DA 7ª ETAPA DE REVITALIZAÇÃO DO


CENTRO HISTÓRICO

O anúncio público de implantação da 7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico de


Salvador, num contexto de vivência experimentada pelos moradores nas etapas anteriores e na
vigência da institucionalização de processos participativos como paradigma da “governança
urbana” e os consequentes debates em torno das indenizações, foram, gradativamente,
constituindo uma arena de embate e negociação entre os moradores e o Governo do Estado,
este último representado pela CONDER. A enunciação, pelo governo, de mais uma etapa do
processo de “revitalização” constitui-se um evento que faz emergir atores que exprimem suas
preocupações, forjam suas justificativas, expressando interpretações diferenciadas sobre as
ações da intervenção, sobre o local a ser objeto da intervenção.

Este embate vai constituindo gradativamente uma esfera pública para as questões
singulares, específicas de cada morador e envolve o uso de diferentes recursos, a construção
de conceitos de cada ator sobre si mesmo e sobre os “outros”, a mobilização de diferentes
recursos, como o uso da mídia como esfera de debate, socialização de opiniões e, sobretudo
de denúncia. Essa dimensão da esfera pública criada, mesmo que singular, expressa o lugar de
confluência da palavra, do agir humano em direção a possíveis acordos, da luta social, onde as
pessoas e, consequentemente, os órgãos e instituições envolvidas operam processos de
diferenciação das concepções e também de formação de consensos sobre interesses nem
sempre conciliáveis.

Neste segundo capítulo será apresentado o desdobramento das ações de diferentes


atores, no momento do anúncio da sétima etapa de revitalização do Pelourinho: os primeiros
objetivos expostos, os recursos utilizados, a constituição dos dados da área, o debate sobre sua
função social, tendo na mídia impressa o principal espaço de expressão pública do embate,
revelando as tensões e contradições implícitas no ato da intervenção.

Diante do anúncio público da intervenção de reforma desta 7ª Etapa do Centro


Histórico, observa-se imediatamente uma contra-ação dos moradores através de denúncias,
apoiados por um grupo de assessoria, dando início a um debate público (pela imprensa e pelo
recurso a outras instâncias, como justiça e assessoria aos movimentos sociais) cujo processo
65

explicita os campos de oposição entre os discursos do interventor (o governo) e a visão dos


moradores (afetados). Neste processo, os moradores, sentindo-se afetados pela intervenção do
governo vão construindo um sentido de justiça e injustiça sobre os seus direitos de moradia, e
de trabalho na cidade, mais especificamente no “Centro Histórico de Salvador”. Não só os
relatos provenientes da mídia, como os documentos públicos e populares servem de base para
a formação de um conhecimento desses moradores, como também levam às suas constituições
como sujeitos de direito na esfera pública diante da intervenção sobre as suas condições
prévias de moradia e trabalho.

3.1 OS OBJETIVOS, AS METAS E AS PALAVRAS: O QUE REVELAM OS


DOCUMENTOS DA IMPLEMENTAÇÃO DA 7ª ETAPA

O projeto de recuperação da 7ª Etapa do Centro Histórico de Salvador tem início no


ano de 2000. Antes do início desta etapa, a CONDER realizou uma pesquisa socioeconômica
da área para conhecer a realidade local e formular o projeto. Entre as metas e objetivos, assim
como nos termos e projetos passados, constava a garantia dos moradores de permanecerem
habitando na área, a preservação cultural do elemento humano, ou seja, sua fixação na área
que seria afetada. Assim, a CONDER, em proposta realizada para captação do recurso junto
às instituições internacionais, apresentou como objetivos os seguintes pontos:

a) Avaliar a vulnerabilidade da população que habita os imóveis


degradados, com vista a determinar as prioridades para a ação em
todos os níveis, levando-se em consideração os anseios e as
necessidades definidos pela comunidade;

b) Identificar e avaliar os impactos positivos e negativos do Projeto de


Recuperação, com ênfase no social;

c) Identificar a população residente na área a fim de fornecer subsídios


para a elaboração de projetos visando sua fixação, seu reassenta
mento e indenização (...)

d) Não deixar de lado o elemento humano que vive e trabalha no


Pelourinho. Exercendo as mais diversas atividades, como artistas,
artesãos, grupos afros, capoeiristas, etc. que caracterizam a área.

e) Considerar a importância do Centro da Cidade na vida do residente


do Pelourinho, concluindo ser fundamental para eles continuarem
vivendo na área.

f) Destinar os imóveis restaurados à população de baixa renda


(CONDER, 2000: 3).
66

Em que pesem esses objetivos, o “Relatório Síntese de Andamento” (MINC, 2002),


que altera as definições do projeto de 2001 elaborado pelo Programa Monumenta Salvador,
concebido pelo Ministério da Cultura do Governo Federal, mas tem sua execução local
coordenada pela CONDER, expressava outra opinião: A primeira opinião que caracteriza a
escolha da área para a intervenção nesta 7ª Etapa, já reiterava de novo uma imagem de
deterioração física associada à marginalidade social da população moradora, justificadora das
ações de intervenção e revitalização da área, como indica o documento do MINC (2002),
“imóveis em ruínas e em péssimos estados de conservação, associado à marginalidade social e
urbana ali observada” (p. 01).

A ambiguidade dos argumentos usados nos documentos oficiais constituiu-se uma das
características marcantes do conflito que envolveu a 7ª Etapa. O dossiê Como Salvador se
Faz; Dossiê de Luta por Moradia, organizado por nove grupos populares, entre os quais
associações, comissões, conselhos representativos de bairros e comunidades de Salvador em
parceria com o CEAS – Centro de Estudos e Ação Social, e que teve ampla participação dos
moradores atingidos pela 7ª Etapa, já denunciava esta ambiguidade. Este dossiê analisa os
argumentos utilizados pelo Poder Público nestes dois documentos referentes ao projeto, acima
citados, no momento em que os moradores e a sociedade tomaram conhecimento do início da
reforma desta 7ª Etapa. O primeiro, “Pesquisa Socioeconômica e Ambiental” realizada pela
CONDER em 2000 e apresentada aos órgãos financiadores, reconhece a identidade desta área
como centro de referência cultural e da cidadania, assentada no movimento negro, como se
pode ler a seguir:

Convém ressaltar que a área em questão manteve sua identidade como centro
de referência cultural e de cidadania para grande parte da população da
cidade (...). Esta identidade se estruturou com base no movimento cultural
negro, firmado ao longo dos últimos anos (...). Há, inclusive, quem o
considere o “núcleo simbólico da identidade da cidade”. Verifica-se,
sobretudo, que o Pelourinho é um espaço onde as classes pobres adquirem
representatividade através de sua cultura, essencialmente negra (CONDER,
2000: 7 apud Articulação de Luta por Moradia, 2003).

O segundo documento, que o Dossiê de Luta por Moradia tomou por referência na sua
análise foi o “Relatório Síntese de Andamento”, onde consta outra opinião e concepção sobre
a “Área de Intervenção” que, diferentemente do primeiro, considera como um local
“degradado e perigoso”. Esse argumento, utilizado por parte do Governo do Estado da Bahia,
através da CONDER, expressa um juízo de valor moral tanto em relação à área quanto aos
seus moradores. Em um trecho, assim se refere o Relatório ao local:
A área de 7ª Etapa é vista como um local degradado e perigoso, reduto de
marginais, prostitutas, travestis e desocupados, sendo vulgarmente chamada
de “cracolândia”, devido à existência de pontos de tráfico e consumo de
67

drogas (...). A grande maioria está ali na condição de inquilinos ou invasores,


vivendo em condições precárias e insalubres, habitando cômodos de alta
densidade populacional, em imóveis onde é comum a ausência de
iluminação interna, vazamentos e faltas (sic) de água, acúmulo de lixo, mau
cheiro e risco constante de desabamento (MinC et al, 2002: 6).

Essa caracterização retoma uma imagem dos moradores como invasores, marginais,
delinquentes e outras degradações mais. Novamente este documento oficial destaca o tema da
insalubridade: aparentemente neutro, ele ressurge como que para justificar a posterior
necessidade de “remoção” da população local. A constituição da 7ª Etapa como objeto da
ação pública enquadra-se então no discurso e fins da ação oficial do governo da Bahia, que
reconhece, de um lado, o direito do morador e da sua importância como sujeito de um projeto
em construção e, de outro, o acusa de “insalubre”, exigindo medidas saneadoras para o local.
A qualificação do território como área de risco e marginal, realidade bem conhecida dos
órgãos públicos, tornar-se-iam, por um lado, “argumento(s)” justificador(es) de uma ação
possível de “saneamento social” e “moral”, reforma, revitalização, relocação, remanejamento,
limpeza da área, afastando-se cada vez mais dos objetivos primeiros do projeto. Na
contraposição a essa (des) qualificação social os moradores da área contra-argumentam,
expressando sentimento de injustiça e requerendo o reconhecimento de seus direitos sobre o
“lugar” .

A chegada da 7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico rompe um Estado anterior


de convivência dos moradores e usuários da área, suscitando redefinições e conexões de
sentido entre os sujeitos desde o anuncio da intervenção. Hannah Arendt, discutindo sobre a
natureza do espaço público destaca que a âncora originária de uma ação seria a própria
natalidade de “um fato” revelado por um sujeito. A emergência de uma condição nova do
projeto recoloca as vozes dos atores, o diálogo, e as palavras e discursos ganham vida em
forma de opinião, posição política, argumentos, embates, ações dialógicas que acabam por
conformar uma arena, que a autora define como “esfera pública”. O anúncio e irrupção da
reforma da 7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico neste sentido, pode ser entendido
como um fato singular desencadeador de um processo de embate na esfera pública, cuja
formação explicita os atores envolvidos. Retornando à análise de Arendt sobre a esfera
pública, pode-se observar as aproximações entre a manifestação da promessa de intervenção
urbana (revitalização) no campo desta pesquisa:

É com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano; e esta inserção
é como um segundo nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato
68

original e singular do nosso aparecimento físico original. (ARENDT, 1983:


189)

... desacompanhada do discurso, a ação perderia não só o seu caráter


revelador como, e pelo mesmo motivo, o seu sujeito, por assim dizer... Sem
o discurso, a ação deixaria de ser ação, pois não haveria ator; e o ator, o
agente do ato, só é possível se for, ao mesmo tempo, o autor das palavras. A
ação que ele inicia é humanamente revelada através de palavras... sem
acompanhamento verbal, só se torna relevante através da palavra falada na
qual o autor se identifica, anuncia o que fez, faz e pretende fazer. (ARENDT,
1983: 191)

3.2 A CONSTITUIÇÃO DA ESFERA PÚBLICA NA IMPLANTAÇÃO DA 7ª


ETAPA DE REVITALIZAÇÃO DO CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR: A
MÍDIA IMPRESSA E OS PRIMEIROS EMBATES ENTRE ATORES

Segundo Hannah Arendt (1983), esfera pública é um espaço de discurso, o lugar do


“mundo comum”, do aparecimento, da visibilidade, das igualdades e diferenças, da política.
Correlacionar este conceito diante de uma intervenção urbana, no caso da 7ª Etapa, é entender
como o aparecimento de um fato, de uma intervenção, pode ser gerador de uma arena, uma
esfera, onde os julgamentos públicos sobre os usos do espaço e os interesses conflitantes
apareceram para toda sociedade, fazendo compreender como o projeto de intervenção é ao
mesmo tempo um fato público e político que forma e é formado pelas tensas relações e
concepções dos atores no âmbito da sociedade civil, com concepções distintivas entre a
cidade planejada e a cidade vivida.

A função da esfera pública é uma condição fundamental para a democracia


participativa. A esfera pública aí pode ser entendida então como resultado do debate sobre as
formas e espaços que denotem a construção e ou avaliação democrática das políticas públicas,
legitimando os processos de decisão, seja no campo das arenas jurídicas, nos espaços dos
comitês gestores, conselhos ou mídia. Na ausência da esfera pública, a subjetividade e o
interesse privado passam a ser a medida de todas as coisas, perdendo o homem o poder do
discernimento, participação e julgamento dos fatos do mundo. Porém, é na intersubjetividade
humana, no diálogo e embate entre diferentes posições, confrontos e acordos que se aproxima
a desprivatização dos interesses. “E isso depende de uma forma de sociabilidade específica
regida pela pluralidade humana e pela diversidade de interpretação, que permitem o
entendimento do público” (VALLADARES, 2009: 23)

Uma condição prévia do entendimento público é a existência de um fato ou


acontecimento e, mais do que isso, que ele anuncie uma nova situação, que ele se mostre, e
69

pelo menos se torne um conhecimento social, público. Este novo elemento introduzido, esta
ação irruptiva, e, no nosso caso, a reforma e revitalização do lugar de intervenção, interrompe
o processo ordinário da vida cotidiana. Nas exposições dos primeiros anúncios públicos da 7ª
Etapa de Revitalização do Centro Histórico podem ser observados, tanto nas matérias
publicadas pela mídia impressa ou nos documentos públicos que o justificam ou que refletem
sobre suas implicações, os primeiros impactos no cotidiano da área, e os diálogos vão
gradativamente expandindo as alianças e comunicando intenções distintas forjando uma
esfera política. Arendt considera que o mundo público é um “espaço que ilumina” e revela
“onde eu estou”, “com quem estou” e “com quem dialogo” e este processo é intersubjetivo.
Ou seja, para a autora a melhor forma de um ator revelar verdadeiramente quem é supõe que
ele se expresse no espaço público. Neste sentido, o debate entre os atores diante do anúncio da
7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico envolve tanto a crítica e a denúncia de uma
situação de risco como representa também um processo de autoavaliação, reavaliação e
definição constante de “quem eu sou”, o que quero, o que “eles querem”; o que é justo,
definindo as suas ações e suas vontades e vendo-se como parte de uma sociedade mais ampla.

Por outro lado, as observações desta esfera pública segundo Arendt possibilitam
também observar-se a pluralidade e as singularidades, igualdades e diferenças entre os atores.
No caso estudado, o processo de avaliação da intervenção pelos moradores significa tanto um
mecanismo de construção de sua igualdade como cidadãos moradores da cidade como reflete
sua condição histórica que o levou à ocupação de uma área tombada como “patrimônio
histórico”. Ao mesmo tempo, ele delineia suas diferenças, as subjetividades, as múltiplas
maneiras de viver no e do espaço urbano referido. Esse processo de diferenciação será mais
detalhado no próximo capítulo.

Hannah Arendt afirma que a “condição humana” implica uma igualdade no tratar da
mesma maneira uma situação, seja pela voz, palavras, audição, sons, linguagens, sinais. As
diferenças estariam na maneira e na alteridade de cada sujeito constituir seu poder de
expressão pelo saber próprio, constituído na contra face das desigualdades históricas e sociais
vivenciadas. Esse processo que opera ao mesmo tempo o seu reconhecimento como cidadão e
a singularidade do seu lugar político e social vai gradativamente se delineando no decorrer do
enfrentamento e luta desses moradores, quando a participação popular constitui-se uma
possibilidade real de expressão desses indivíduos e cidadãos para o público, mesmo
considerando os limites no exercício do poder da fala, que muitas vezes se constituíram em
barreiras de um mundo dialógico mais plural e democrático, como sugerido por Arendt.
70

A pluralidade humana, condição básica da ação e do discurso, tem duplo


aspecto de igualdade e diferença. Se não fossem iguais, os homens seriam
incapazes de compreender-se entre si e aos seus ancestrais... Se não fossem
diferentes, se cada ser humano não diferisse de todos os que existiam,
existem ou virão a existir, os homens não precisariam do discurso ou da ação
para se fazerem entender. (ARENDT, 1983: 188)

Desde o anúncio da intervenção oficial na 7ª Etapa de reforma do Pelourinho, para


continuar com este diálogo entre a teoria e os conceitos de Arendt e o que emana da proposta
de intervenção aqui estudada, a voz protagonizada pelos representantes do Governo do Estado
se orientava para conferir ao local uma nova feição física e social. Ainda nos anos de 2000 e
2001, os primeiros anúncios, justificadores da revitalização da poligonal traçada, divulgados
pela mídia, trazia implícita uma concepção de que as pessoas que aí habitavam não
condiziam, seja por sua moral, modos de vida, renda ou cultura, com a nova proposta de uso
da área anunciada como produto da reforma; contradizendo, assim, o discurso primeiro
formulado quando da exposição e sensibilização dos órgãos financiadores quanto ao projeto.
O valor do custo das obras, o novo valor atribuído pelo projeto para aquelas ruas, a possível
valorização dos imóveis, o planejamento da chegada dos possíveis “novos” moradores, eram
elementos que iam aparecendo no delineamento do projeto que se contrapunham então aos
interesses mais diretos dos moradores que já habitavam o local.

O jornal A Tarde, de grande circulação no Estado da Bahia, antes mesmo do anúncio


desta reforma publicou matéria que emitia a mesma concepção e conceito sobre os moradores,
o mesmo julgamento de valor esboçado pelos órgãos públicos, quando se referem aos
moradores locais, demonstrando que esta representação (des)qualificadora dos moradores do
lugar é reproduzida no senso moral da sociedade, especialmente quando se trata da área. Com
o titulo de “Ruínas no Centro abrigam face da miséria” assim escreve a matéria:

“Basta apenas atravessar um pequeno pórtico entre os casarões de numero 16


e 18 para se descortinar um outro mundo, que em nada se parece com os
casarios pintados e recuperados, o vai e vê dos turistas e o ar de Primeiro
Mundo do Pelourinho... no antigo Maciel, porta de entrada para o Terreiro
de Jesus, entre as ruas 28 de Setembro e a Praça da Sé... nem mesmo as ruas
são calçadas e a miséria esconde-se nos sótãos e porões dos casarões em
ruínas...” (FONSECA, 2000: 09).

Na sequência da matéria, podem-se encontrar categorias valorativas e representações


sobre a área, que se constituem em poder simbólico depreciador do “local” como uma área
degradada, a “banda podre”, o “bolsão de miséria”, as ruas como “caminho natural para o
submundo”. Publiciza também uma tipologia moral das “tradicionais famílias pobres”, que
ficam à espera da entrega do pão ofertado pela Igreja de São Francisco, que, segundo a
71

matéria, estão se afastando do local, em função da citada “banda podre”, definindo, desta
forma, uma segmentação positiva das pessoas em condição de pobreza, entre o “pobre
socorrido” pela ação caritativa da Igreja – os pretensos bons pobres - e os “pobres moradores
da área”, de alta periculosidade.

A chamada “banda podre” do Centro Histórico é um local considerado de


alta periculosidade pela polícia, por causa da prostituição, consumo de
drogas e alta incidência de assaltos a turistas e transeuntes que circulavam
entre a Baixa dos Sapateiros, Praça da Se e Ladeira da Praça. O portão de
entrada para quem vem da baixa dos sapateiros, e a Rua 28 de Setembro,
caminho natural para o submundo, fora do roteiro dos turistas. O Bolsão de
Miséria tem seus limites geográficos bem definidos: Rua do Saldanha,
devidamente urbanizada, onde fica a sede do Liceu de Artes e Ofícios,
totalmente restaurado, a Baixa dos Sapateiros, a Ladeira da Praça e o terreiro
de Jesus, onde nem mesmo aos tradicionais pobres da Igreja de são
Francisco ocupam as calçadas à espera do sopão e do pão das terças-feiras...
(FONSECA, 2000: 9)

No mês de outubro do mesmo ano (2000), a 7ª Etapa foi então anunciada ao público,
também através do jornal A Tarde, informando os custos das obras e a nova feição pensada
para a área, já indicando que implicaria uma substituição da sua população residente pela
ocupação de funcionários públicos para habitarem os casarões.

As obras de recuperação da sétima etapa do Centro Histórico de Salvador só


deverão ser iniciadas em 2002, após a conclusão do anteprojeto envolvendo
os 130 imóveis incluídos na área a ser reformada. O processo é uma
exigência do Programa Monumenta – uma parceria do Ministério da Cultura,
BID e UNESCO, para liberação dos US$ 8,5 milhões previstos para os
trabalhos.” (BARNUEVO, 2000: 9)

Em dois momentos distintos da mesma matéria fica explicita a real estratégia do Poder
Público em relação à reforma da chamada 7ª Etapa: a desqualificação dos atuais moradores e
a afirmação de uma estratégia de substituição da população para a área, trazendo, para
reocupá-la, funcionários públicos, através de planos habitacionais. Era a esfera pública,
expressando os interesses dos atores envolvidos.

O governo aparece neste momento como um ator regulador do espaço público, um


poder político de caráter eminentemente “técnico”, que impõe sua vontade como se fosse a
vontade geral, mesmo em face da resistência dos moradores da área. Ele seria o portador da
função de um “racionalismo instrumental”, como considera Max Weber, pelo qual os fins
justificariam os meios. Hannah Arendt reconhece aqui uma dimensão de violência implícita à
ação instrumental do Estado, ou seja: “a faculdade de dispor sobre os recursos e meios de
coação, graças aos quais uma liderança política toma decisões obrigatórias e as exercita, a fim
72

de realizar objetivos coletivos” sendo que para ela o poder implica a capacidade da
comunicação orientada para o entendimento recíproco (ROUANET e FREITAG, 2001: 101).
As palavras e os argumentos do Governo do Estado da Bahia pareciam se impor como o mais
legítimo sobre o interesse dos moradores, utilizando-se inclusive da pressão psicológica e
moral para alcance das suas metas. A pressão era tamanha que, depois de caracterizar o grupo
de moradores como supostamente perigoso, formado por traficantes, usuários de crack,
prostitutas, travestis, caracterização que justificava moralmente o deslocamento das pessoas
da área, por parte dos gestores do governo, um morador antigo e idoso, entrou num quadro
depressivo e veio a falecer de um infarto após uma das audiências públicas que ele acabara de
participar. E aqui podemos arriscar dizer que as palavras podem ter força e violência.

A fala do então presidente da CONDER na época, em reportagem publicada pela


Agencia Folha, Edição Nacional de 24 janeiro de 2001, aprofunda os argumentos de caráter
moral do Governo do Estado da Bahia em relação aos “moradores” da área, no momento da
chegada da 7ª Etapa, e fundavam o argumento justificador para o processo de “saneamento
social” que se pretendia com o projeto:

“Os casarões estavam servindo de moradia para prostitutas e assaltantes. Nós


vamos recuperar os imóveis e transformá-los em unidades habitacionais...
Todos os casarões estão abandonados há muito tempo” (FRANCISCO,
2001: 6).

Esse jogo hábil das palavras em vista ao alcance de um fim, realizado sem
entendimento mútuo dentro da esfera pública, para Arendt, é entendido como violência, já que
suprime a capacidade de efetivação da esfera pública funcionar em termos do exercício
democrático e possibilitar que este diálogo seja comunicativo e recíproco. Assim, o que vem a
público pode ser ouvido por todos e favorece a riqueza do mundo dialógico entre atores, que,
mesmo com capacidades e poderes diferenciados, essa sua expressão pública gera informação,
formação e possibilidade de reação. “As presenças de outros que vêem o que vemos e ouvem
o que ouvimos garante-nos a realidade do mundo e de nós mesmos” (ARENDT, 1983: 60).

Este poder de escuta e principalmente de fala, para Arendt, é o fundamento da ação


pública e democrática. Essa ação discursiva, que garante a visibilidade do sujeito perante o
mundo, “o outro”, só é possível na esfera pública. No momento do anúncio da intervenção, a
mídia aparece enquanto espaço principal na esfera pública, ao mesmo tempo como um espaço
social gerado pela comunicação e para a opinião pública. Arendt, segundo Valladares, ao
analisar o conceito “público” remete a duas formas intimamente ligadas, mas não idênticas: a
73

aparência, ou seja, aquilo que é visto e ouvido por nós e pelos outros, constituindo uma
realidade que vem a público e tem testemunho; e a segunda, que se refere a tudo que é comum
a todos nós em diferentes do lugar particular que nos cabe dentro dele. (VALLADARES,
2009: 40). Mas, ainda segundo a autora, “Hannah ao tentar definir a relação da esfera pública
com a mídia ela define como a esfera das aparências, ocasião e condição em que se gera a
opinião pública (VALLADARES, 2009: 42)

Em janeiro de 2001 a 7ª Etapa é outra vez anunciada no jornal A Tarde que, enquanto
instrumento de informação pública, passou a se constituir, neste processo específico, na
principal instância de exposição dos interesses diversificados entre moradores e governo,
expondo sentimentos, vontades, valores e metas dos grupos envolvidos no conflito,
contribuindo para a formação da opinião pública em relação à reforma. Na matéria abaixo,
intitulada “Centro Histórico ganhara novo bairro”, já é sugestivo de um questionamento:
novo bairro em Centro Histórico? No local onde a tradição cultural teria que ser preservada,
surgiria um “novo bairro”?

Ao contrário do que o projeto original de restauração da área central da


cidade, privilegiando a arquitetura, o programa pretende criar novo bairro,
com toda infraestrutura urbana e social, possibilitando que 1.600 famílias
passem a residir de forma digna os imóveis semidestruídos. (FONSECA,
2001: 11).

O Governo do Estado da Bahia não parecia esconder sua meta, mesmo que ela fosse
contraditória aos objetivos que antes haviam sido formulados para os órgãos financiadores e,
nesta mesma matéria de janeiro de 2001, outra vez ele demarca os seus objetivos e sentidos de
sua ação em relação à área de intervenção:

A responsabilidade da obra é da CONDER, com direcionamento para a


classe media e media alta, conforme explicou o coordenador do projeto
Valfrido Ribeiro... Para iniciar as obras, a CONDER aguarda apenas a
conclusão de pesquisas sociais junto aos atuais moradores, dos quais, pelo
menos 84% pretendem receber indenizações e mudar-se para outras áreas da
cidade (FONSECA, 2001: 11).

A voz dos moradores começava a ecoar através de seus representantes na mídia que
expõem os sentimentos de quem se sentiam “injustiçados” pela forma como vinham sendo
tratados nas negociações e nos anúncios da mídia impressa. Desta forma este grupo de
moradores começava a expor e se vai se constituindo gradativamente um ator na esfera
publica, dando lugar a um processo de construção de sua identidade, suas singularidades e
direitos, conforme processo de diferenciação analisado por Arendt:
74

Embora o mundo comum seja o terreno comum a todos, os que estão


presentes ocupam nele diferentes lugares, e o lugar de um não pode coincidir
com o de outro, da mesma forma como dois corpos não ocupam o mesmo
lugar no espaço. Ser visto e ouvido por outros é importante pelo fato de que
todos veem e ouvem de ângulos diferentes. (ARENDT, 1983: 67)

As queixas dos moradores, também encontradas nas matérias de jornais, reportavam


inúmeras questões implícitas a esta mudança e que os afetavam: desde a preocupação quanto
aos valores a serem pagos como indenização, a distância e a qualidade das obras dos bairros
que iriam servir de nova morada, a não apresentação da possibilidade de permanência. A
reportagem a seguir traz alguns trechos que especificam as preocupações na voz de algumas
pessoas ouvidas:

O que eles estão fazendo com a gente é um verdadeiro absurdo”. Com R$


2.000,00 não temos para onde ir, afirmou o aposentado José Carlos
Sobrinho, que mora em uma das casas que serão desapropriadas pelo Estado.
(FRANCISCO, 2001: 6).

O comerciante Alberto Vasconcelos também contesta o valor oferecido para


indenização: Funcionários públicos chegaram aqui e disseram que agente
tem que aceitar o valor proposto, caso contrário, a gente vai ficar sem
receber nada (idem: 6).

No Natal de 2001 os moradores foram surpreendidos com um convite da CONDER


para negociarem sua retirada do local. Assim foram cumpridas as intenções do governo
anunciadas nesta ultima reportagem. Não só a data do convite impressiona, como também as
denuncias que os moradores fizeram à respeito deste encontro. Nesta noite de Natal, segundo
os relatos dos moradores, a partir do acompanhamento das reuniões da Associação de
Moradores, a polícia militar estava presente. Era outra forma de garantir o cumprimento de
início da reforma da 7ª Etapa, que eles anunciavam pela qual seria necessário evacuar os
prédios. Em nenhum momento foi oferecido a eles a possibilidade de permanência, mas
apenas duas alternativas: ou a relocação dos moradores para casas em Coutos (43 km do
Centro) ou eles receberiam um auxilio para a relocação (valor pago para ajuda de custo com
mudança, em média de R$ 1.000,00), já que a indenização só seria paga para quem, na visão
do Governo, fosse o verdadeiro e efetivo proprietário das casas, através da apresentação da
documentação comprobatória.

Aqui se percebe como essas esferas públicas e arenas de negociação, entre o governo e
os moradores, são de fato hierarquizadas e ao contrário do que os seus princípios anunciam,
não exercem o poder dialógico defendido por Hannah Arendt, mas se constituem num poder
ao mesmo tempo sutil e autoritário da força da persuasão, da manipulação da verdade e das
75

informações e coercitivo na imposição de uma vontade. Salientamos que esse poder refere-se
ao poder da fala, o poder de representação e representatividade, o poder de expressão, e, de
outro lado, o poder impositivo e ao mesmo tempo coercitivo e contraditório do uso da
violência simbólica nesses espaços de negociação.

Considerando a concepção de Arendt neste aspecto,

O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando


as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não
são empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos
não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas
realidades (ARENDT, 1983: 212).

A noção de poder, em Arendt, conceito chave no seu pensamento político,


corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em consonância com.
Ele não pode ser armazenado e mantido em reserva para ser utilizado como instrumento de
violência em tempo adequado. Assim,

o fenômeno fundamental do poder não consiste na instrumentalização de


uma vontade alheia para os próprios fins, mas na formação de uma vontade
comum, uma comunicação orientada para o entendimento recíproco
(FREITAG e ROUANET, 2001: 101).

Desta forma, a autora considera o poder um fim em si mesmo, desprendido do


conceito teleológico da ação, o poder estaria na própria ação comunicativa como um efeito
coletivo da fala, no caminho do entendimento mutuo.

Nesse sentido, a noção de poder se distinguiria da noção de “vigor”, “força” (force),


“autoridade” e, por fim, “violência”. Para Arendt não se pode obter o poder pela violência,
nem mesmo ele pode ser manifestado desta forma, nem pela autoridade; o poder só seria
legitimo em uma realidade dialógica, discursiva ou comunicativa não deformada (FREITAG e
ROUANET, 2001: 105). A reversão e a alternativa à violência passa pelo resgate e devolução
do direito à palavra, pela oportunidade da expressão das necessidades e reivindicações dos
sujeitos, pela criação de espaços coletivos de discussão, pela sadia busca do dissenso e da
diferença.

Recorrendo à noção grega de polis, Arendt fala na isonomia grega e na civitas romana,
onde o conceito de poder não se assentava na relação mando-obediência e não identificava
poder e domínio. Viver numa polis tinha o significado de decidir mediante as palavras e a
persuasão e não através da força ou pela violência. Forçar alguém mediante violência, ordenar
ao invés de persuadir, constituíam modos pré-políticos de lidar com as pessoas, próprios do
76

lar e da vida em família, “na qual o chefe da casa imperava com poderes incontestes e
despóticos, ou da vida nos impérios bárbaros da Ásia, cujo despotismo era frequente
comparado à organização doméstica” (ARENDT, 1983: 36).

Aqui pontuamos uma critica ao pensamento da autora, quando nos projetos ou planos
de intervenções urbanas, por exemplo, as terminologias técnicas ou a pouca participação
anterior no processo de decisório deixa as pessoas a serem atingidas, principalmente as do
meio popular, numa perspectiva de participação mais restrita, constituindo-se esses espaços de
discussão mais uma possibilidade de exercício da crítica, da resistência e de luta por
modificações muitas vezes pontuais. Parece-me que tanto aqui (espaço público para pensar a
urbe em seus modelos e intervenções), quanto na polis grega, o domínio da palavra, dos
discursos e também do conhecimento era restrito a poucos. A linguagem e os termos
utilizados, podem até chegar aos ouvidos de todos os presentes no mesmo instante, mas
acredita-se que as terminologias técnicas não chegam ao alcance interpretativo da maioria.
Enfim, não se percebe no pensamento arendtiano, a compreensão de que as estruturas
desiguais estão imbricadas em violências estruturais.

Com isso,..., H. Arendt tem que pagar o preço de: a) excluir da esfera
política todos os elementos estratégicos, definindo-os como violência; b) de
isolar a política dos contextos econômicos e sociais em que está imbuída
através do sistema administrativo; c) de não poder compreender as
manifestações da violência estrutural (FREITAG e ROUANET, 2001, p.
110-111).

3.3 A VOZ DOS MORADORES DIANTE DO ANÚNCIO DA 7ª ETAPA

A aproximação desta pesquisa aos ensinamentos de Arendt leva a perceber que as


coisas, os fatos, os anúncios, as ações e palavras podem ser vistas por muitas pessoas “numa
variedade de aspectos, sem mudar de identidade, de sorte que os que estão à sua volta sabem
que vêem o mesmo na mais completa diversidade, pode a realidade do mundo manifestar-se
de maneira real e fidedigna” (ARENDT, 1983: 67). A função do âmbito público é iluminar os
acontecimentos humanos ao fornecer um espaço de visibilidade e aparências, no qual homens
e mulheres podem ser vistos e ouvidos e revelar, mediante suas palavras e suas ações, quem
eles são. Desta forma é que se considera que o embate e as manifestações contrárias entre o
Governo do Estado e os moradores atingidos pela sétima etapa da revitalização do Pelourinho
podem constituir um processo de formação da esfera pública e constituição dos moradores
como atores.
77

“O único fator indispensável para a geração do poder é a convivência entre


os homens... O poder humano assim corresponde, antes de tudo, a condição
humana da pluralidade” (ARENDT, 1983: 213).

Desta forma foi possível considerar esses moradores como um ator social nesta esfera
pública em formação. O governo não apresentou todas as possibilidades de direito dos
moradores, a exemplo das alternativas de permanência, do reconhecimento do usucapião
(muitas famílias estavam lá por mais de 20 anos), de clareza quanto ao pagamento da
indenização, definindo a relocação dos moradores para áreas distantes do Centro da cidade,
ferindo, assim, os direitos implícitos do Estatuto da Cidade. A reação dos moradores
atingidos se faz a partir da constatação de uma infração legal de direitos por parte da
intervenção. Com essa dimensão de um direito infringido, um grupo de moradores resolveu
buscar apoio de assessorias parlamentares, advogados e entidades da sociedade civil para
expor as pressões que vinham sofrendo em relação à sua remoção da área. Este momento
caracterizado pela denúncia desses moradores, eles se representam como cidadãos de direitos
e seus assessores diante da Lei existente delineiam um sentimento de injustiça no âmbito das
esferas públicas, como porta-vozes desses moradores, dando maior visibilidade a essa
situação e expondo a situação à opinião pública.

INDENIZAÇÃO É REJEITADA NO PELOURINHO

Cerca de 100 moradores de casarões da Rua São Francisco, no Pelourinho,


receberam ontem um presente de grego da Companhia de Desenvolvimento
Urbano da Bahia, CONDER. Foram convocados para comparecer ao posto
do órgão no local para apresentar documentos e receber informações sobre
quantias que terão direito como indenização, pois devem sair das casas que
serão reformadas na última etapa de obras de recuperação do Pelourinho.

Os Moradores estranharam a escolha do dia da convocação, pois estão mais


voltados para o espírito de confraternização do Natal. “Mas também
demonstram insatisfação com o fato de a CONDER apresentar proposta de
indenizações irrisórias, que vão de R$ 1.300,00 até R$ 1.900,00” (ROCHA,
2001: 06).

O governo parece se importar pouco com as opiniões contrárias à intervenção e inicia


então a retirada dos moradores, pressionando pela rapidez da negociação com as famílias.
Parece estar ai contida a vontade de transformar logo o espaço anterior num ambiente
“saneado”. É neste contexto que se forma a AMACH - Associação dos Moradores e Amigos
do Centro Histórico, organização coletiva formada por diversas moradoras e moradores
atingidos pela 7ª Etapa de Revitalização, que se organizam com incentivo e apoio das
entidades e grupos de assessoria popular, para unir forças e iniciarem uma mobilização na
78

defesa dos seus interesses através da exposição dos problemas inerentes a esta Etapa de
Revitalização do Centro Histórico. Procuraram então o gabinete do deputado estadual Zilton
Rocha (PT- Partido dos Trabalhadores), partido então de oposição ao Governo do Estado da
Bahia (PFL), pois sabiam que o mandato de Zilton já havia acompanhado algumas lutas de
resistência dos moradores do Centro Histórico, especificamente a que se referia ao Prédio dos
Alfaiates, e então ele poderia apoiar a luta comunitária.

Foi através das denúncias na mídia que tomei contato com a história de luta dos
moradores da 7ª Etapa, como assessor do Centro de Estudos e Ação Social - CEAS. A
primeira etapa do trabalho de assessoramento aos moradores nesta etapa consistiu
inicialmente em conhecer a história das famílias atingidas pela 7ª Etapa, fazer um
“mapeamento informal” do perfil do grupo organizado e conhecer de perto esta “voz” dos
afetados pelo projeto, que ecoava na esfera pública. O relato abaixo faz parte de um relatório
institucional do CEAS de autoria própria, no qual resumi algumas dessas observações.

Segundo relatos que vou escutando e anotando em mais esta reunião da


AMACH as informações já parecem muito tristes. Em pleno Natal de 2001
(dia 24/12/2001) a CONDER bate nas últimas casas resistentes do Centro
Histórico de Salvador, dizendo: “ou vocês assinam este documento ou
voltamos aqui com a polícia, até dia 26 de Janeiro vocês têm que assinar
senão vão sair”, relata... uma moradora indignada. Muita gente assinou os
documentos por pressão, sem conhecimento das leis de usucapião e outros
direitos... Um outro rapaz, levanta-se e fala: “Depois da pressão veio as
desmoralizações pessoais; isto aqui é lugar de puta, travestis e drogados”.
Neste sentido os travestis, segundo informações que correm nesta reunião,
foram os que piores sofreram os preconceitos: “eles receberam qualquer
mixaria e foram embora.”. Outras pessoas também foram atacadas
moralmente, é o caso de um artista plástico presente, que ao virar uma das
lideranças do movimento foi chamado de drogado e estuprador (em virtude
de um engano passado que foi solucionado judicialmente e ao qual ele foi
inocentado). A CONDER tentava de todas as formas acabar com o
movimento. (CEAS, 2002)

Um dos primeiros documentos públicos produzidos pela AMACH teve sua versão
escrita em português e inglês, para atingir o público que circundava pelo Centro Histórico,
constituído por Brasileiros e estrangeiros. Nele os moradores expõem não só o tratamento
desumano e desrespeitoso, mas seu valor próprio, sua valorização enquanto ser humano e
também a sua importância como referência cultural para a área a ser reformada e convidava a
todos a apoiá-los.

A RESISTÊNCIA DO POVO DO PELOURINHO: o genocídio que o


governo da Bahia quer esconder.
79

A AMACH – Associação dos Moradores e Amigos do Centro Histórico de


Salvador vem denunciar à sociedade Brasileira e internacional mais um
processo de exclusão social e de desrespeito à história do povo negro deste
Estado. O Governo Estadual, via a CONDER – Companhia de
Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia, está, mais uma vez,
expulsando de maneira desumana os moradores do Pelourinho. Trata-se da
7ª Etapa de restauração do Centro Histórico de Salvador. Utilizando-se de
extrema violência policial, toques de recolher, ameaças constantes e total
desrespeito aos direitos humanos são cada vez mais frequentes O Governo
da Bahia ignora que a defesa do patrimônio histórico não se resume apenas à
conservação de prédios centenários. Há um patrimônio imaterial, vivo, que é
representado pelo povo que construiu e constrói a história do Pelourinho.
São seus moradores, o povo simples que deu configuração à riqueza
histórica daquele lugar. Famílias inteiras que, em sua maioria, retiram do
próprio Centro Histórico o seu sustento e que agora são privados dos direitos
de cidadania mais fundamentais, como o direito à moradia e ao trabalho.

Mas o povo baiano, como sempre, resiste de forma corajosa à opressão que
lhe é imposta e convida você a participar desta luta, para mais uma vez
derrotar aqueles que querem retirar a nossa dignidade... (AMACH, 2002a).

O documento desvela o poder de imposição em contraposição ao poder dialógico


defendido por Hannah Arendt. O documento denuncia o uso da força e da violência
instrumental, como os “toques de recolher”, a “violência policial”, o “desrespeito”,
caracterizando uma ação não dialogada. Essas estratégias nada têm a ver com uma ação
comunicativa e dialógica entre as partes envolvidas na construção do interesse geral, como
aspecto supostamente virtuoso da esfera pública, neste momento. O que pudemos constatar
foi a importância das esferas públicas construídas num contexto de liberdade de expressão na
imprensa, no embate entre os diferentes atores intervenientes neste conflito, ainda que de
forma desigual. Contudo, a ação e os discursos populares, organizados pela AMACH, vão
ganhando força e ampliando seu raio de ação na esfera pública, sendo propagados na mídia, e,
de certo modo, vão influenciando a posição de alguns moradores em não aceitar a proposta de
indenização apresentada pela CONDER. Aqui os discursos realmente ganham formas de ação.

...moradora da Rua 28 de Setembro..., tem opinião formada sobre as políticas


de relocação: nossa pobreza está atrapalhando os planos do governo do
Estado e a etapa está sendo conduzida sem a preocupação com o social. O
que predomina é o capital, por isso querem nos tirar daqui para colocar os
escolhidos deles. (CASTRO, 2004: 03)

No ano de 2003, o CEAS realizou um trabalho de dinâmica de grupo junto aos


moradores, de forma a conhecer seus sentimentos, valores e suas representações que, muitas
vezes se expressavam nas arenas públicas. O produto deste trabalho esclarece alguns sentidos
da voz que emanava dos moradores, famílias e pessoas envolvidas. Este trabalho de dinâmica
de grupo ocorreu em março de 2003, dentro de um antigo bar desativado e em ruínas, na rua
80

28 de Setembro, numero 45. Teve como objetivo elucidar qual o sentimento e a representação
desses moradores em relação ao lugar de moradia (o Centro Histórico) e como os presentes
percebiam a ação do Governo sobre o local. A plenária foi divida em cinco grupos e, com
metodologia orientadora do trabalho, foram elaboradas questões para que cada presente
pudesse responder: “Onde eles estão?”, “O que é o Pelourinho para eles, para o Governo e
outras pessoas?” e “Como está sendo implantada a 7ª Etapa?”.

As respostas relativas à primeira pergunta, que se refere à identificação de “Onde eles


estão”?, variaram de uma descrição puramente relativa à sua localização como “a casa”, até
outras representações de caráter mais subjetivo relativas ao entorno, o Pelourinho, que
refletiam o sentimento dos moradores em relação ao Pelourinho (bairro) -Centro histórico - e
ao valor dado à área pelos mesmos:

“...é o lugar onde vivemos e tiramos nossa sobrevivência. Não desejo sair, a
menos que seja com uma idealização justa, em último caso.”;

“Pelourinho, comércio e moradia para trabalhar”;

“Pelourinho nossa história fundamental que jamais esquecemos”;

“... na minha casa, que está caindo e nenhuma autoridade toma


conhecimento, com um filho pequeno, prestes a morrer esmagado”;

“No Pelourinho, na Praça da Sé que é só para turista ver”;

“No Pelourinho de hoje; no brega chique”;

“Lugar onde vivo, tiro meu sustento e moro. Na boa moradia , o melhor
lugar para eu ganhar meu pão”;

“respeito e dignidade, valores morais e culturais estão aqui, quero a


permanência no local”, “liberdade ao povo do Pelô” (CEAS, 2003).

A segunda pergunta, “O que é o Pelourinho para você, o governo e outras pessoas”,


foi respondida de forma mais simples, mas selecionamos algumas delas. A plenária afirma
que a visão do governo em relação ao Centro Histórico é o: “Lugar para gringo ver”; “Eles
tem vergonha de mostrar a real pobreza que existe aqui e na Bahia”; “Eles são mandantes”.

No entanto, para os moradores presentes neste trabalho de grupo, o Centro Histórico


expressa uma “solidariedade”, “são portas trancadas, nós não podemos andar em todo
Pelourinho, principalmente na parte reformada, o rapa ou a polícia não deixa”; o Pelourinho
representa uma “história e meio de sobrevivência”; “Pelourinho para mim é [lugar dos]
amigos e [do] mau trato do Governo”. Para os turistas e as outras pessoas, o Pelourinho
81

significava: “meninas para o sexo”, “tirar retratos das nossas meninas”, “o brega chique”, “a
arquitetura”, “a 28 de Setembro [local de moradia] e outras partes não reformadas, não
existem”; é uma “atração cultural”.

A visão sobre a 7ª Etapa da revitalização do Pelourinho era percebida pelos presentes,


destacando seu caráter problemático, desde a falta de efetivação dos seus direitos até o não
reconhecimento dos seus moradores como seres humanos (situação que ultrapassa a noção do
direito, da democracia, da sociabilidade, indo ao encontro da forma mais cruel de
desumanidade). As falas subsequentes retratam estes sentimentos dos moradores naquele
momento:

“A gente está sentindo muito”;

“Estamos sendo muito humilhados pelo Governo”;

“estamos nos sentindo mal”;

“Eles querem tirar o pessoal humilde e colocar outros [considerados]


melhores para morar”,

“Eu, Júlio Cerqueira de Oliveira, ajudei a construir o nosso Centro Histórico


e hoje nem sequer eu posso ter a condição de entrar em um desses
estabelecimentos. Sinto-me acuado com a esmola que a CONDER está nos
indenizando. Isso é coisa que se faça com o povo? Não dá para comprar nem
um caixão. Estão nos tratando como cães sarnentos. Sinto mal, oprimido,
humilhado e derrotado pelo Poder Público”. (CEAS, 2003: 2-3)

As falas e opiniões dos moradores se constituíam em reação aos discursos e ações que
já estavam sendo implementadas pelo Governo do Estado da Bahia na área da intervenção. O
governo se utilizava de diversos artifícios (persuasão, violência, inverdades, pressão,
especulação) para conseguir uma negociação favorável à saída dos moradores, sendo uma
dessas ações o não reconhecimento daquelas pessoas como pessoas de direito,
desconhecendo-lhe o direito à moradia por não serem proprietárias. Do mesmo modo,
apartavam essas pessoas da cultura local ou da área a ser revitalizada.

Esta disparidade entre o discurso e a prática governamental, contrapõe a ação racional


pública da intervenção de preservação à noção do “mundo da vida”, de Habermas (1968),
onde a forma comunicativa e intersubjetiva entre os atores leva em conta quatro pretensões:
verdade, retidão, veracidade e inteligibilidade. Considerados esses atributos em relação à
intervenção sobre a área, a verdade do projeto de revitalização da 7ª Etapa e sua execução na
prática é a primeira dimensão a ser questionada quando se analisam os argumentos e os
82

objetivos justificadores da intervenção pelo governo. Habermas definia a validade das regras
do que ele chamava de “acção comunicativa” como:

...a validade das regras e estratégias técnicas depende da validade de


enunciados empiricamente verdadeiros ou analiticamente corretos. A
validade das normas sociais só se funda na intersubjetividade do acordo
acerca das intenções e só é assegurada pelo reconhecimento geral das
obrigações. (HABERMAS, 1968: 57)14

Podemos observar as consequências da falsidade dos enunciados e da sua não


validação na esfera pública pelas notícias na mídia local. Já em 2004, o jornal A Tarde expõe
as consequências das ações de despejo, exemplificando casos que evidenciam como o
governo utiliza do seu poder de negociação para atingir o seu objetivo e qual as alternativas
que apresentam para as famílias atingidas:

As tragédias sociais e humanas dos moradores que ainda resistem na 7ª


Etapa de Revitalização do Centro Histórico expõem a negligencia do Estado
(leia-se Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia,
CONDER) quando promete aos mega patrocinadores “avaliar a
vulnerabilidade da população dos imóveis degradados”. Já saíram do local
1.072 famílias das 1.746 que havia em 2002. Resistem 656 e só 1 aceitou ir
para os conjuntos Morada da Lagoa II ou Jardim Valeria II, no Subúrbio
(CASTRO, 2004: 03).

A mesma reportagem exemplifica o caso de duas pessoas que mantiveram presença no


grupo organizado de luta para a garantia da moradia. Uma delas se tornou um dos casos mais
dramáticos e virou uma das bandeiras de luta da organização popular e da AMACH, ainda em
2002, pois remetia ao caso de uma idosa (72 anos, na época) que, foi obrigada, por
circunstância da vida a receber o auxílio de relocação, mesmo habitando durante 50 anos, sem
pagar aluguel e sem documento do título de posse, na mesma residência agora ocupada pela
CONDER. Quando do inicio da 7ª Etapa esta senhora cuidava da filha em Estado terminal de
câncer. Expôs o fato às assistentes sociais da CONDER que nada puderam fazer, a não ser
oferecer o dinheiro do auxílio relocação que, “poderia ajudar a Senhora no cuidado com a
filha”. Ela aceitou e assinou a saída da sua residência e, em menos de um ano, a filha veio a
falecer:

As voltas que o mundo deu foram cruéis com ela. Não estava em seu plano
sair dali nem aceitar proposta pouco tentadora. Mas a filha Ana Maria teve
câncer e ela, sem recursos, acabou cedendo ao auxílio relocação da
CONDER. Eunice passou meio século morando no mesmo local. O primeiro

14
Necessário esclarecer aqui que esta pesquisa não pretende fazer um exercício da “ação comunicativa”
mas apenas constatar que a ação dos atores na esfera pública se faz através de mecanismos comunicativos, que
envolvem estratégias de dominação.
83

contato com o repórter foi tímido: “tudo bem Dona Maria?” pergunta-se. “Ta
nada... senão eu não estava na reportagem, né?... gastei os dois mil e pouco
com remédio e táxi com minha filha e não deu pra nada...”, conta”
(CASTRO, 2004c: 03) 15

O jornal A Tarde, nesta mesma reportagem de 2004, publica um depoimento de uma


outra mulher representativa da luta dos moradores do inicio da 7ª Etapa. O seu depoimento à
matéria expressa bem a sua forma de expressão no sentido de garantir o seu direito de morar
na casa que sempre habitou: mulher criada toda a vida no Centro Histórico, mãe de muitos
filhos, que passou por muitas dificuldades e que, por isso mesmo, apresentava em sua voz, em
seu olhar, a violência que a vida também lhes deu. Quando perguntada qual a sua vontade
diante da 7ª Etapa, assim respondeu ao repórter:

“Você acha que eu, com este tanto de filhos, vou pra Coutos? Vou aceitar
este dinheiro que a CONDER está dando? Só saio do Centro Histórico para
outro lugar no Centro Histórico! Se não me derem outra casa por aqui, só
saio dentro de um caixão” (CASTRO, 2004c: 03) 16.

O anúncio da intervenção do governo na área gerou, portanto, denúncias e debates,


que anunciavam uma longa luta popular para a efetivação dos seus direitos de moradores. Os
argumentos utilizados pelos envolvidos continham representações e imagens sobre o projeto e
suas funções sociais e formulavam conceitos e definições eque expressavam um
conhecimento intersubjetivo entre os diversos atores, servindo, ao mesmo tempo de agente
mobilizador no enfrentamento e confronto dos moradores com o projeto.

A busca de uma melhor participação da população residente, assim como a


mobilização de apoios da opinião pública e das instâncias mediadoras da justiça, da política e
da imprensa apresentavam desafios e moviam os moradores organizados. Por outro lado, o
governo seguia sua estratégia de desqualificação dos moradores enquanto portadores de
direitos, de uma cultura e de uma humanidade.

As arenas políticas constituídas inicialmente no processo de mobilização e


participação popular diante do projeto de intervenção apresentavam avanços e limites no

15
A senhora de 72 anos, virou carinhosamente a mascote da AMACH e do grupo que passou a recorrer à
participação e justiça no caso da 7ª Etapa. Ela foi a única pessoa que assinou a negociação com o Governo e teve
seu direito de permanecer na área garantido, depois de muita pressão das famílias e pessoas envolvidas contra o
Governo do Estado da Bahia. Porém, veio a falecer em janeiro de 2011, sem ter alcançado o sonho de morar na
sua casa “revitalizada ou reformada” e a ela foi dedicada esta dissertação.
16
No ano de 2007, depois de muitos conflitos, debates, ações judiciais, brigas com o governo do Estado,
com a associação de moradores, já com seu direito assegurado de permanecer em sua casa, depois da reforma
que o Poder Público iria fazer esta mulher foi morta na rua 28 de Setembro, bem próximo da tão sonhada casa
reformada. Sua frase exposta no Jornal a Tarde foi tristemente escrita em sua historia
84

conflito, onde se contrapunham diferentes tempos diante do espaço da vida e da racionalidade


da técnica de regulação e planejamento urbano. A análise deste campo de conflito e da
formação de um julgamento público ajudam a compreender como o projeto de intervenção faz
emergir campos distintivos entre a cidade planejada e a cidade vivida pelos seus moradores e
usuários.
85

4 PARTICIPAR OU NÃO PARTICIPAR, EIS A QUESTÃO

Anunciada a 7ª Etapa, e já em avançado processo de execução da primeira meta de


desapropriação dos imóveis ocupados por famílias do meio popular, o grupo de moradores e
moradoras, mais do que se contrapor à voz do Governo do Estado da Bahia, começava a se
organizar e buscar possíveis aliados para tentar conhecer de fato o Projeto de Revitalização da
7ª Etapa, poder entender, construir uma maneira de participação e garantir, ou constituir na
prática, o direito de continuar morando no Centro Histórico. A Associação dos Moradores e
Amigos do Centro Histórico de Salvador - AMACH, foi fundada em 2001, com o objetivo
explícito de “lutar” pela permanência das famílias que habitavam os casarões a serem
“revitalizados”. A intervenção da área como fator desencadeador de uma ruptura do cotidiano
explicita um quadro de “luta”, “embate”, “conflito”, entre moradores e governo, que se
estabeleceu quando do emanar da 7ª Etapa. A forma como os diferentes atores argumentam e
contra-argumentam a situação dos moradores possibilita observar-se a formação de um campo
de conflito, em torno dos usos diferenciais do espaço urbano, mais especificamente do
“Centro Histórico” e observar a natureza das arenas públicas de participação na mediação no
encaminhamento deste conflito. Este é o objetivo deste capítulo.

A análise do termo "participação popular" compreende as formas de participação das


“populações marginalizadas”, conforme noção usada por Elenaldo Teixeira (2002), que
entendia a noção mais restrita "aos segmentos sociais mais explorados, principalmente
urbanos (trabalhadores, favelados, desempregados), excluindo os setores sociais médios,
intelectuais e profissionais, considerados fora do campo popular" (TEIXEIRA 2002: 32). Não
se menospreza aqui outros tipos de participação social, mas o objeto de estudo restringe-se à
relação entre o “Poder Público” e “o popular”; com seus tempos, técnicas, estratégias e
historicidade.

Conforme argumenta Pedro Demo (1988), a busca da participação se faz muitas vezes
em campo conflitante e deve ser conquistada, “puxada de dentro”, iniciada com a capacidade
crítica de reconhecimento de uma possível perda simbólica, material, cultural, política, do
reconhecimento dos direitos e deveres, do reconhecimento enquanto ator social, protagonista
86

que busca participar do processo de debate sobre a intervenção, que, no caso aqui estudado,
acaba por intervir diretamente na vida das pessoas.

Porém, quando um projeto público de intervenção urbana atinge diretamente


as camadas do meio popular, requer uma atenção especial para entender a
maneira e os limites para a construção da participação destas pessoas no
processo. Participar ou não participar quando tantos desafios são postos e a
possibilidades das perdas são concretas? (DEMO, 1988, pg. 12-13)

Neste capítulo iremos refletir sobre os limites encontrados para a efetiva participação
popular neste projeto público de intervenção, analisando o conflito e a luta dos moradores
pela moradia e sobrevivência individual, e a passagem da demanda no plano de uma luta de
caráter singular, mas coletiva. O diálogo teórico com Pedro Demo passa a noção de
“conquista participativa”, que, segundo ele, não se constitui uma dádiva, concessão ou algo
preexistente, e sim um processo de conquista, o que o faz concluir que a falta de participação
pode representar o ponto de partida da sua busca: “primeiro encontramos a dominação, e
depois, se conquistada, a participação” (DEMO, 1988: 18-19)

Foram muitos os limites encontrados pelos moradores, mas também os caminhos


construídos para a efetivação da sua participação no Projeto de revitalização da 7ª Etapa. Para
construção deste caminho é de fundamental importância entender o papel dos “Amigos” da
AMACH ou, como a sigla da referida associação menciona “Amigos do Centro Histórico”.
“Amigos” constituídos de advogadas voluntárias, parlamentar, entidades da Sociedade Civil,
grupo de estudantes, Ministério Público, organizações populares, universidade, cada qual com
sua contribuição específica, seus limites, sua força, suas ambigüidades. Com o apoio dos
“Amigos” intensificou-se os recursos de acesso à mídia, construiu-se um caminho para a
esfera jurídica de negociação, articulou-se contato com outras experiências de intervenção
similares da Cidade de Salvador, promoveu-se o contato com a ONU, desempenhou-se a
formação política e a tradução dos documentos técnicos para uma linguagem popular,
produziu-se vídeos e documentários premiados. Por todo momento o papel deste grupo foi
observado e desenvolvido na prática como membro de uma das “organizações amigas”, o
Centro de Estudo e Ação Social – o CEAS. Essa articulação mediada pelo CEAS em conjunto
com os moradores teve como um dos resultados deste trabalho a efetivação de uma esfera
pública de diálogo constituída a partir da construção de espaços de interlocução entre a
AMACH, assumida como sujeito representativo do interesse dos moradores, e o Governo do
Estado da Bahia.
87

Diversos recursos foram mobilizados. Como uma das principais linhas de ação criada,
aparece o diálogo dentro do campo jurídico, que foi de fundamental importância para a
discussão e inclusão dos moradores no campo do Direito. O resultado desta linha de ação no
campo jurídico alterou a relação e participação da AMACH no projeto. Foi instituído o
Comitê Gestor da 7ª Etapa, paritário e composto com a presença da AMACH e apenas dois
dos “amigos”, que naquele momento de constituição do comitê (2005) ainda se faziam
presentes no diálogo e busca de participação (Comitê Gestor). A observação desse processo
remete às reflexões de Hannah Arendt, mais especificamente a noção de ação comunicativa,
pois nestas esferas foram apresentados os principais argumentos e informações sobre a 7ª
Etapa, desde seus objetivos teóricos e práticos, até a busca e limites de um consenso entre os
atores.

Lembramos que o recorte temporal da pesquisa vai até o ano de 2007, quando da
entrega das primeiras chaves aos moradores. Nesse sentido vale indagar: até que ponto a luta
se traduziu em resultados concretos? O que de proveito houve na formação participante do
grupo envolvido? Quantas casas ao todo foram entregues? Detalhar os projetos sociais e o que
parece ter ficado no imaginário desta luta.

4.1 A VIDA É UMA LUTA: OS DESAFIOS COLOCADOS PARA A


PARTICIPAÇÃO POPULAR, NO PROJETO DE REVITALIZAÇÃO DA 7ª ETAPA
DO CENTRO HISTÓRICO

No âmbito da ação social voltada para a construção do poder de voz e de organização


das entidades populares, dos movimentos sociais, das associações de bairro, encontram-se
desafios que envolvem e supõem a busca da participação social e política. A realidade de vida
das famílias afetadas pela ação do projeto de revitalização (7ª Etapa de Revitalização do
Centro Histórico), no que diz respeito à renda, educação, alimentação, drogas, álcool,
condições básicas de sobrevivência, se constituem limites para a participação política no
projeto de intervenção pública que os atinge. Ao esforço de sobrevivência desses indivíduos
somam-se, ainda, os esforços para refletir, acompanhar, defender-se da ameaça da intervenção
urbanística. Essa dimensão conflitiva do cotidiano de famílias torna-se mais dramática pela
ameaça da perda da moradia, dos riscos de indenizações injustas e a perda dos vínculos
estabelecidos no campo das atividades de trabalho e os laços com a vizinhança.

Diante deste quadro de risco, a busca de participação no projeto de revitalização já de


início, implicava o desafio de acesso às informações e, mais do que isso, entendê-las de fato
88

para poder contrapor-se e elaborar propostas, para uma população pouco afeita a leitura e à
participação política. Esta necessidade e busca demanda tempo na identificação e análise dos
dados colocados, tempo este que se faz também em obstáculo, pois confronta com o tempo de
execução da política de intervenção e o tempo da busca e efetivação desta participação.

4.1.1 A vida, a sobrevivência e o participar

As relações sociais são permeadas historicamente por relações políticas e de poder:,


poder de sobrevivência física e material, poder de reflexão intelectual, poder técnico, poder
participativo nas instâncias públicas, estando estas comumente concentradas nas mãos de uma
minoria. Aqui, a participação social, seja ela uma participação política, econômica, de
trabalho e renda, saúde, educação, do pensar as cidades, também acaba por restringir-se a
poucos. As diferentes formas de exclusão, pobreza e miséria dos moradores os coloca
impotentes, em que pese sua capacidade criadora. Esses obstáculos apresentam-se de
maneiras diversas, e resultam em confrontos que coloca de um lado a busca pela efetivação
dos seus direitos, desenvolvimento social e liberdade e a pressão da luta pela sobrevivência do
dia a dia. Segundo Teixeira, o exercício do poder de participação não se dá sem “dificuldades
objetivas”, e estas podem ser frutos das desigualdades sociais, econômicas, culturais e étnicas.
(TEIXEIRA, 2002: 38)

Anete B. L. Ivo, no seu livro “Metamorfose da questão democrática”, explicita a


dialética contraditória entre o princípio da igualdade política na democracia e o movimento
excludente da matriz sócio econômica de caráter excludente, marcada pelas condições de
pobreza e desigualdade na sociedade atual. Para ela, as elevadas taxas de desigualdades
sociais, além dos processos contraditórios de formação do mercado de trabalho, resultam de
relações políticas e culturais autoritárias que deixaram de fora uma importante parcela da
população da comunidade política. Assim, a autora percebe um vazio entre as conquistas
democráticas políticas, principalmente no contexto atual, e a dinâmica econômica capitalista
que acirra a concentração de renda e aumenta os números da pobreza (IVO, 2001: 17-19).
Mas reconhece avanços da democracia na conquista da cidadania, demonstrando ao mesmo
tempo em que esta não é linear ou necessariamente virtuosa, demonstrando os limites da
participação em arenas públicas distintas, e destacando a heterogeneidade de resultados.

Compreender a situação social das pessoas envolvidas no processo de participação


implica compreender as condições históricas de formação deste espaço urbano e social e
observar, particularmente, como esta área foi sendo gradativamente ocupada por uma
89

população caracterizada por renda muito baixa, ocupada com atividades irregulares, com
carência de educação formal, moradias adensadas, falta de estrutura urbanística, ou seja, as
inúmeras “mazelas sociais” que atingem esses indivíduos e que simbolicamente são
mobilizadas como qualificadoras e desqualificadoras desses moradores.

Em relação aos ocupantes da área, temos mais um agravante percebido no trabalho de


campo: durante as etapas anteriores de revitalização, percebeu-se que as famílias expulsas de
outras localidades deste sítio histórico de Salvador tendiam a reacomodarem-se nas ruas do
entorno, ocupando casarões abandonados ou adensando os imóveis já ocupados nas
proximidades. Desta forma, as ruas que compõem a 7ª Etapa pareciam, de certo modo, abrigar
boa parte desta população que fora retirada de outras áreas, trazendo para a área pessoas
marcadas por outros processos anteriores de intervenção, relocação e expulsão. Marcas estas
que reforçam o sentimento de injustiça e exclusão, pelas rupturas dos laços sociais anteriores
nas suas práticas cotidianas com a vizinhança, amizade, família, trabalho, e que envolveram
supostamente agravamento de processos de perda de referência e estigma. O “Diagnóstico
Socioeconômico e ambiental da 7ª Etapa do Centro Histórico”, organizado pela CONDER,
pode confirma este processo: “Ao analisar o local de residência anterior, observa-se que a
mobilidade da população acontece de forma mais intensa dentro do próprio bairro, haja vista
que 40,8% já viviam no Pelourinho antes de morar no imóvel atual (CONDER, 2005: 19)

Os processos históricos e estruturais desencadeadores da condição de pobreza,


desigualdades e perdas sucessivas a cada processo de relocação; o imperativo da busca
emergencial pela moradia em locais cada vez mais precários em infraestrutura, sob risco de
desabamento, ou adensadas, acabavam por expor os moradores da área a uma realidade onde
o estigma por parte da sociedade estava sempre presente e, muitas vezes, incorporados à sua
própria representação sobre o seu lugar social. Andar pelas ruas que compunham a 7ª Etapa,
principalmente quando dos primeiros anos da intervenção (2001-2002), era se deparar com
pessoas que viviam no “limiar da sociedade”: corpos magros, muitas cicatrizes, pés descalços,
uso do crack, mendicância. Essas características não se constituíam os traços da maioria dos
habitantes, mas era comum a presença de pessoas com esse perfil na área. Essa situação social
de população “relegada” acabava por atribuir à área, e consequentemente aos seus moradores,
um valor moral de abandono, miséria, pobreza, “marginalidade”. Essa caracterização foi
muitas vezes usada nos documentos governamentais, como argumento justificador da
impossibilidade dessas pessoas permanecerem no local, na medida em que eles não pareciam
90

ser os legítimos cuidadores do “patrimônio” ali presente, como se pode observar em matéria
publicada no jornal Folha de São Paulo, num depoimento da direção do IPAC:

Marginal tem que ser tratado pela polícia ou órgãos de assistência, não pelo
patrimônio histórico... Não pode haver romantismo: marginal não pinta a
casa, joga fezes na rua (FOLHA DE SÃO PAULO, 03.10.1994 apud
ARTICULAÇÃO DE LUTA POR MORADIA, 2003: 34)

A situação de vida era realmente tão adversa que as próprias pessoas que ali habitavam
pareciam não acreditar na possibilidade de se verem dialogando com o Poder Público e
participando do projeto da 7ª Etapa, como cidadãos de direito. Pedro Demo (1990),
analisando a desigualdade social nos processos de construção da emancipação e cidadania,
percebe que não só a questão material é limitador para este alcance. Segundo o autor existem
outras formas de desigualdade e o desigual não seria apenas quem não tem, mas quem “não
é”, ou “não sabe”, ou “nada espera” (DEMO, 1990: 59).

Essa afirmativa de Demo pode ser observada em parte dos moradores, quando do
início do processo de participação para a discussão do projeto e defesa dos seus direitos. Um
sentimento de impotência diante da sua sobrevivência física, da convivência com uma
realidade dura de falta das condições mais básicas (banheiro, água, esgoto, teto, comida), de
não acreditar na possibilidade de construção de uma organização gerida por eles próprios, a
desconfiança com o outro, as estratégias de busca de oportunidade de renda para atender a
uma necessidade imediata e assim fazer “negociações” com o Governo. Seguindo esta linha
de reflexão o questionamento de Elenaldo Teixeira sobre os desafios para a participação de
grupos populares com esta realidade de vida se faz relevante:

Como inserir no processo os excluídos que não dispõem das condições


mínimas sequer da sobrevivência material, quanto mais de informações e
condições psicológicas para tomar parte num processo demorado, complexo,
sem possibilidades de atendimento imediato de suas necessidades
(TEIXEIRA, 2002: 35)

Essa condição de atendimento das necessidades emergenciais remete à iminência do


risco ou a observar as oportunidades e possibilidades de negociação desses moradores com o
governo sobre a saída da moradia e, assim, conseguir um recurso financeiro para a
sobrevivência. Esse acabou sendo um aspecto muito importante para a análise da negociação,
os limites de participação e ganhos futuros com a intervenção da 7ª Etapa: as condições
limites da sobrevivência os levam a perceber essa condição como possibilidade de renda.
Durante os anos iniciais do trabalho de campo, na condição de assessor da CEAS constatou-se
que o morador, quando acabara de receber o chamado “auxílio relocação”, pago pelo Governo
91

para que as famílias que não tinham documento de posse e habitavam o imóvel a ser
recuperado pudessem sair, estas passavam a ter um registro de negociação cadastrado na
CONDER e perderiam o direito de permanecer no local. Consequentemente, o interesse a
busca da participação no Projeto de Revitalização, também consistia não só na resistência de
permanência, mas na possibilidade de ter o valor do auxílio relocação em mãos. Para pessoas
que viviam na base da sobrevivência diária o acesso a um valor monetário era um grande
atrativo, o que levou à saída da maioria das famílias da área motivadas por esse recurso. Lysiê
Reis (2007) descreve bem este processo:

Conclamar todos a uma ação conjunta tornou-se impossível. Grande parte


dos moradores está desempregada, vivendo de pequenos bicos. Por
consequência, acabam aceitando o “auxílio-relocação” pago pela CONDER
para que deixem o local. São quantias que variam entre R$ 700 e R$ 2,8 mil,
nada além dos R$ 3 mil, já que estas famílias não têm escritura de posse do
imóvel. E, apesar de não garantir a compra de outra moradia ou mesmo o
compromisso com um aluguel, os moradores a aceitam. Resultado: gastam
tudo e passam a morar em piores condições e, muitas vezes, na rua...
(SANTOS, 2002 apud REIS, 2007)

Este movimento de saída dos moradores, por “auxílio relocação”, era tenso. Muitos
deles, incrédulos da possibilidade de uma outra negociação mais justa, sem interesse em ir
“morar em bairro” (como muitos expressavam sobre a alternativa da ida para outros bairros
como Jardim Valéria, Coutos...), sentindo-se acuados com a pressão do Governo, e a pressão
por sobrevivência aceitavam a oferta mas permanecia um sentimento de injustiça, e se
sentiam excluídos e expulsos. Algumas destas pessoas moravam na casa há mais de 50 anos e
não tiveram qualquer direito de interpretação diante da lei. Foi, por exemplo, o caso exposto
no capítulo anterior sobre uma moradora idosa, que aceitou o auxílio relocação para poder
comprar remédio pra filha, que estava em Estado terminal de câncer. Deixou a sua casa e,
logo depois, a filha veio a falecer, ficando sem casa e sem filha. Alguns trechos de três
matérias diferentes de jornais locais podem resumir o nível de diálogo estabelecido com o
Governo e o sentimento gerado nas pessoas que se viam diante da possibilidade de saída de
suas residências.

A CONDER estima que, ao longo da 7ª Etapa, gastará R$ 2.180.190 só com


relocações. Em relação à quantia liberada por conta do auxílio relocação (de
R$ 1,4 mil a R$ 2,8 mil), o órgão alega que não é possível elevar a verba por
conta de obrigações com a Lei de Responsabilidade Fiscal dos Municípios
(CASTRO, 2004: 03)

Sobre a Lei de Usucapião, ele [referindo-se ao então presidente da


CONDER] disse que vão ser tratados de acordo com aspecto jurídico
concernente. “Mesmo que tenha direito a usucapião nada impediria do
92

Estado desapropriar. Você conhece bem a área, têm casas onde têm 50, 60,
70 pessoas morando. Nós já tiramos cerca de 1.500 pessoas de lá de dentro,
tranquilamente, sem nenhum problema... Há pessoas morando de forma
degradante. Não são famílias, são pessoas que com R$ 2 mil podem voltar
pra suas terras de origem”, avaliou. (WEINSTEIN, 2002: 3)

Os moradores apresentavam outra versão e interpretação para o jornalista em relação à


possibilidade de saída com o auxílio-relocação:

...“dependendo de mim eu queria ficar, mas o dinheiro que a CONDER


fornece mal dá pro pessoal comer quanto mais comprar uma casa”, comenta
dona Antônia Maria de Jesus, 62 anos, 35 deles vividos no n 18 da Rua 7 de
novembro (CASTRO, 2004b: 3)

Os moradores passaram a chamar o auxílio relocação de “cala a boca”, denotando que


este tipo de negociação era uma estratégia do Governo para fazer calar as pessoas que
tentavam, ainda que de maneira incipiente, questionar a saída da sua moradia. Não existem
dados seguros, nem documentos que possam comprovar, mas sempre foi de conhecimento das
pessoas da área, como também dos técnicos do Governo que por muitos momentos
mencionavam este fato, que a negociação do auxílio relocação gerava também uma espécie de
mercado, de negócio, sendo tudo acompanhado de perto pelos órgãos públicos competentes.
Neste processo, existiam pessoas que não moravam de fato em algumas casas, mas eram
incluídas como moradoras quando do cadastramento, por outros moradores, estes sim
residentes, que “barganhavam” um percentual do auxílio recebido pelo terceiro. Também
constatou-se que algumas pessoas receberam por mais de uma vez o auxílio, vindas de outras
etapas de revitalização. Esta relação também era uma estratégia de acelerar o processo de
retirada das pessoas frente à urgência de ter a casa vazia e, para os moradores, uma
possibilidade de sobrevivência diante dos baixos valores pagos, demonstrando o nível de
incerteza que orienta as ações no trabalho de relocação.

A questão da propriedade tem sido, até agora, o cerne do embate que mistura
moradores que se apropriaram do que estavam esquecido (mas que são
chamados de invasores pelo Governo), proprietários desaparecidos,
inquilinos que viveram sublocando espaços e pessoas que receberam o
“auxílio-relocação”, mas retornaram, ou seja, aqueles que o Governo achava
que estavam satisfeitos. (REIS, 2007)

No ano de 2004, a assessoria aos movimentos populares urbanos do CEAS, elaborou


uma pesquisa junto aos moradores participantes da AMACH e grupo de parceiros (UEFS e
advogada voluntária), para conhecimento possível do universo de famílias que poderiam ser,
dependendo da pressão exercida, ser contempladas no projeto. No momento desta pesquisa,
sabia-se que mais da metade dos moradores já haviam saído sob pagamento do auxílio-
93

relocação, sendo que no dia do mutirão para aplicação dos questionários foram entrevistadas
105 famílias.

Dados processados desta pesquisa indicam que 46,2% disseram estar ocupando o
imóvel que residia sem pagar qualquer tipo de aluguel nem ter os documentos de posse,
38,7% moravam de aluguel e 13,2% eram proprietários. Quanto à negociação e proposta do
Governo as respostas dos moradores informavam que: 68,9% já tinham sido procurados pelo
Governo para negociar a saída, sendo que o órgão público mais presente nestas negociações,
segundo os entrevistados, foi a CONDER, com 86,6% das repostas, seguido do IPAC, com
12,% e da CODESAL, com 1,4%. Mais da metade afirmou (60,6%) ter acertado a saída com o
pagamento do auxílio-relocação; 3% a saída sem auxílio relocação; 9,1% aceitaram a
relocação para outro bairro; 27,3% não fez qualquer tipo de acordo e 81% afirmaram querer
permanecer em seu local de moradia (CEAS, 2004)

A rapidez do processo inicial da intervenção, com um número elevado de pessoas


relocadas, fez com que a AMACH e seus parceiros tentassem acelerar os mecanismos
jurídicas para sustar a ação do Governo antes que não existisse mais “viva alma” para “contar
a história” do local. Para os que permaneceram e demonstraram-se mobilizados para conhecer
realmente o projeto e tentar propor alternativas de sua permanecia, o desafio estava posto:
sobreviver no local, buscar a valorização enquanto seres humanos, conhecer e reconhecer os
direitos e leis e estar disponível (tempo, recursos, saberes) através da construção de um tipo
de organização popular que possibilitasse algum diálogo com, ou no caso, contra o Governo
do Estado da Bahia. Desta forma, a condição social das pessoas envolvidas rebatia
diretamente na sua condição de ator político participativo.

Para compreender o perfil socioeconômico dessas famílias, e, assim, poder analisar as


reais motivações e desafios que envolvem essas pessoas no processo de luta, como partes de
uma organização, de um grupo que, de imediato não lhes garantiria um retorno material, o
“Diagnóstico socioambiental”, elaborado pela CONDER pode elucidar algumas questões.
Mesmo que os dados fossem relativos ao ano de 2005, quando a maior parte dos moradores já
estava fora da área, pode-se identificar algumas características do perfil dos moradores,
encontrado na 7ª Etapa de Revitalização do Pelourinho. Conforme os resultados deste
diagnóstico, o nível da renda familiar dos moradores, levantado pela equipe da pesquisa, que
os tratou como “comunidade da 7ª Etapa” era muito baixo, com 40,8% das famílias auferindo
renda mensal de menos de um salário mínimo, 71,9% ganhavam menos de 2 salários da
94

época, sendo que 10,9% mencionaram não ter renda alguma (CONDER, 2005: 21). 32,0%
eram empregados sem vínculo, sendo que 9,7% eram biscateiros, 11,7% camelôs, 13,6%
trabalhadoras do lar, e 6,7% se disseram desempregados (CONDER, 2005, p. 29).

Dificultava a participação das famílias, cujas pessoas estavam envolvidas numa


condição e realidade material de pobreza. Por inúmeras vezes foram justificadas as ausências
em reuniões da associação com o governo, Ministério Público, assessorias, etc., por que estas
reuniões atrapalhariam o ganho do dia, a busca imperativa do dinheiro para suprir a
alimentação da família imediatamente. Assim, presenciamos mulheres saindo da reunião para
catar latinhas para reciclagem, outras que entravam durante as reuniões com isopor de água e
logo saiam para continuar a venda na praça, além daquelas que tomavam conta de bar,
vendiam bonecas de pano, homens que faziam biscates, pintores, atividades ilícitas,
prostituição, reforço escolar (este último mesmo durante reuniões da associação). Na sua
reflexão sobre a participação social, Pedro Demo reconhece que esta é uma conquista, não só
diante da real condição de expressar-se, mas em relação à própria busca por participação
envolver desafios que fazem com que a conquista seja árdua quando se trata de pessoas do
meio popular.

Em nosso meio, a intensidade organizativa da sociedade civil é muito


baixa..., a proposta de associação em defesa de interesses específicos aparece
estranha, quando não temida. Ao mesmo tempo emerge aí a dificuldade de
motivar processos participativos por falta de organização mínima. Sequer
são sentidos como necessidade básica, até porque, em situação de pobreza
socioeconômica extrema, pensa-se mais na sobrevivência imediata, do que
na necessidade de garanti-la como direito definitivo. (DEMO, 1988: 33)

O nível de escolaridade ou grau de instrução também se constituiu em fator importante


para a participação popular neste projeto de intervenção urbana aqui estudado. Quando se
iniciaram os debates, tendo os documentos públicos interessados em mãos (Projeto inscrito,
Ações Jurídicas, termos de responsabilidade, assinatura de documentos...) ou mesmo para
trabalho de formação política com o grupo já constituído, os dados facilitariam o processo,
caso os envolvidos tivessem boas condições de leitura e interpretação dos documentos. O
grupo, no entanto, apresentava recursos de conhecimento e informação que dificultava a
capacidade de reflexão na leitura e interpretação de dados, já que, ainda segundo pesquisa da
CONDER, 20% eram analfabetos, sendo que 51,2% tinham o primeiro grau incompleto
(CONDER, 2005: 27). Fazer com que as pessoas entendessem as Leis, projetos
arquitetônicos, propostas escritas, orçamentos, envolveu um grande esforço do trabalho das
entidades e profissionais integravam a AMACH. Uma dos desafios estava em fazer o grupo
95

entender, refletir e construir sua fala, quando de uma diferença do poder de participação dos
indivíduos. Para os que conseguiam avançar na sua compreensão da situação ficava a
impaciência com os limites do outro e, para este último, o sentimento cada vez mais intenso
de que o caminho para a participação ou seria impossível ou estaria em designar e legitimar o
poder nas mãos da AMACH, das lideranças populares ou do grupo de “amigos”, onde a
desconfiança, seja pelas relações interpessoais conflitavas, pelas experiências de vida, não
deixava espaço para positivar ações coletivas, pela falta de esperança no outro, que muitas
vezes estava ai também presente.

Estes dados sobre trabalho, renda e educação, somados ainda aos aspectos da
insalubridade da forma de morar, da baixa autoestima, do estigma de “miseráveis, marginais e
relegados” parecem trazer para as estas pessoas envolvidas a não aptidão necessária para a
participação em esferas públicas, em espaços de diálogos políticos. O que pode parecer aqui
como um problema afeto à esfera privada, acaba por ter uma relação direta com a esfera
pública, que se constitui diante do projeto de intervenção urbano, aqui estudado. Adriano
Correia (2008), no artigo sobre “A questão social em Hannah Arendt”, sugere alguns dilemas
da participação: “realmente a liberdade, a vida política, a vida do cidadão é um luxo; uma
felicidade adicional para se tornar apto apenas depois de as solicitações do processo vital
terem sido satisfeitas” (ARENDT, 1997: 106. apud CORREIA, 2008: 103). Ainda segundo
Correia, existem críticas que pontuam que Arendt distingue radicalmente em sua análise as
relações econômicas da política (M. P. D‟ ENTREVÉS, 1994; BENHABIB, 1996, apud
CORREIA, 2008: 105). Porém, o que se percebe é que Arendt não elucida como as questões
sociais, de interesse ou vividas por uma coletividade, possam ser admitidas no domínio
político sem converter o espaço público em busca das demandas ou interesses privados
(CORREIA, 2008: 110). Esta, que aqui podemos considerar uma “ambiguidade da
participação”, apresentava-se no caso em estudo num dilema entre o esforço coletivo de luta
ou participação nas esferas públicas e os interesses emergenciais e individuais das pessoas
envolvidas, muitos deles consequentes da dura condição objetiva de vida que faziam com que
“oportunidades” e “oportunismo”, na resolução dos seus problemas individuais, fossem
“interpretados” como ação de e para todos.

A relação entre as instâncias ordenadoras do público e do privado, também era vista


como um desafio constante dentro do processo de avanços da participação popular no projeto
da 7ª Etapa. Os moradores, agentes no processo de luta, pareciam se afastar da tese arendtiana
de que, para ser agente não se pode ser movido por interesses particulares e sim por razões
96

públicas (VALLADARES, 2009: 25). O que se percebe, e que, de certo modo, muitas vezes
fica ambíguo, é o imperativo da busca por benefícios pessoais, de motivação privada (o
acesso à casa própria) que se reforça pelo caminho de uma luta conjunta como estratégia de
enfrentamento do governo. Esse problema parecia mais presente quanto mais as pessoas iam
se afastando da AMACH, e poucas permaneciam, sendo estas mais beneficiadas com
resultados positivos por estarem presentes, quando da negociação favorável.

Parecia, de certo modo, difícil para o grupo organizado na AMACH construir e


permanecer em um nível comum de sociabilidade específica e plural com “seus próximos”
sobre um entendimento do que era público e comunitário. Esta noção de comunidade
aparecia, assim, mais como um título sem uma base sustentável, pois mesmo ali os interesses
e as próprias formas de sobrevivência, dos tempos, também eram diversos. Como conseguir
fazer com que uma associação pudesse fazer representar interesses de pessoas que gostariam
de negociar sua saída por qualquer valor, pessoas com questões sérias de envolvimento com o
tráfico de drogas, famílias que acabavam por colocar outras pessoas dentro de suas casas para
conseguir assim uma melhor quantia no auxílio-relocação, pessoas que se diziam donas de
dois, três sobrados inteiros e remetiam a um direito em ter todos. A esfera pública constituída,
porém, trazia à tona as singularidades e a identificação dos atores e, em alguns momentos, as
vozes pareciam ecoar em um só som, o da justiça e dos direitos em participar, permanecer ou
ter indenização justa, o que caracteriza em parte, um dos lados do embate, o das classes
populares.

Desta forma a esfera privada não poderia se sobrepor à pública, porque, no próprio
entendimento dos moradores, sob influência direta do grupo de apoio -os amigos-, viver na
esfera privada significava “não ser ouvido”, “não ser visto”, “não exercer o poder e o direito
de voz” e, mais do que isso, não poderia apresentar, ou ter a aparência, de que o ganho
privado estava principalmente em jogo. Se considerada a análise de Arendt, uma ação jamais
é possível no isolamento, pois este isolamento pode privar as pessoas da sua capacidade de
agir, diminuindo sua força. Neste sentido, quando o grupo de moradores foi procurar o
Ministério Público, ainda de forma “espontânea”, ao se verem coagidas a assinar a negociação
com CONDER e sair de suas casas, o próprio Promotor de Justiça responsável pela
Promotoria da Cidadania, aprovou a criação de um “sujeito coletivo” que pudesse influenciar
o sistema político, influenciar a intervenção. Essa entidade coletiva seria, então, a AMACH
criada como um canal institucional de voz dos moradores atingidos. Para a promotoria, foi
97

importante esta iniciativa dos moradores em constituir este “sujeito coletivo” que emanasse
força e legitimasse as possíveis futuras ações políticas e jurídicas.

Importante retornar às concepções de Arendt para subsidiar a análise dos fatores que
limitam a participação dos moradores da 7ª Etapa, e avançar nas análises sequentes sobre as
esferas públicas criadas e os diferentes poderes de expressão dos atores envolvidos, na sua
construção como sujeitos públicos, diante da implantação deste projeto de revitalização. O
conceito arendtiano de esfera pública sugere um potencial de emancipação que, para Correia,
está aliado a uma valorização da dignidade política.

O autor, em sua análise sobre a obra de Arendt, percebe também que ela, de certo
modo, também identificava que as questões da esfera privada, esfera social e a própria
econômica podem resultar na dificuldade de entendimento e participação da esfera pública,
contradizendo assim, em parte os críticos de Arendt (CORREIA, 2008: 111). O autor, ao final
do texto, parece deixar muito claro que “ a condição humana” para a participação, não estaria
apenas no nascimento dos seres diante de um fato social, mas principalmente diante das
questões das igualdades e, mais especificamente, desigualdades dos atores envolvidos.

Educação é muito bom, mas o que importa mesmo é o dinheiro. Somente


quando puderem desfrutar do público é que estarão dispostos e aptos a fazer
sacrifícios pelo bem público. Requerer sacrifícios de indivíduos que ainda
não são cidadãos é exigir deles um idealismo que eles não têm e nem podem
ter em vista da urgência do processo vital. Antes de exigirmos idealismo dos
pobres, devemos antes torná-lo cidadãos: e isto implica transformar as
circunstâncias de suas vidas privadas de modo que se tornem aptos a
desfrutar do público (ARENDT, 1977: 106-107, apud CORREIA, 2008:
111)

Trazer as principais questões que envolvem a heterogeneidade da realidade de vida das


pessoas e famílias que participam do debate sobre o Projeto de Revitalização da 7ª Etapa
implica, portanto, desconstruir ou desmistificar a idéia de uma desigualdade ou oposição
simples entre atores envolvidos referentes exclusivamente a “dois lados opostos”: o Governo
contra a comunidade. A análise dos “iguais” se aproxima da complexidade de expressão das
pessoas, mesmo que diferenciadas, dentro de um espaço público, para não se incorrer no risco
simplificador de ver os “atores envolvidos”, sejam eles os moradores do local ou os técnicos
do governo, como entes monolíticos de seres “comunitários” ou simplesmente “governo”.
Apesar do objeto de pesquisa remeter a um embate entre forças distintas, onde a desigualdade
da escala social e de poder são visíveis e tiveram grande influência em todo processo (desde a
elaboração da proposta de intervenção, sua execução e resultados sofridos), do lado das
98

famílias atingidas, percebemos as singularidades envolvidas. Neste caso, a presença marcante


das mulheres no processo participativo e no front da AMACH, merece atenção e mostra os
limites e desafios inerentes à participação popular, na esfera pública, como também em
relação ao seu papel na reprodução da família, na esfera privada.

Para entender a dinâmica específica de constituição do espaço público de participação


e o papel dos agentes, das agentes, é importante perceber as ações da AMACH e seus limites,
enquanto um movimento social mais amplo. Importante marcar as diferenças básicas
existentes entre o conceito de movimento social na atualidade com o de ação coletiva, grupos
comunitários organizados, ação local e reconhecer os desafios das populações ditas excluídas
em romper toda uma estrutura social quando suas bases estão em alto nível de miserabilidade,
e as possibilidades reais de constituírem assim um movimento mais amplo que ultrapasse o
atendimento de suas demandas imediatas. Observa-se aqui que esta “micro-experiência” do
objeto estudado, que se constituiu uma intervenção pontual em uma poligonal dentro de um
bairro de Salvador - um “sitio histórico”-, acabou por ampliar-se e resultar em uma
organização e ação de alguns moradores envolvidos e constituídos em uma associação que,
com apoio e presença de outros agentes iniciaram a constituição de embates e diálogo com o
Poder Público do Governo do Estado da Bahia.

Alain Touraine considerava que para ser movimento social, pode até tratar-se de uma
questão social particular, mas é necessário que se constitua como uma ação de impacto
também geral. Para este autor o movimento social seria

“...um tipo muito particular de ação coletiva, em que uma categoria social,
sempre particular, questiona uma forma de dominação social,
simultaneamente particular e geral, invocando contra ela valores e
orientações gerais da sociedade.” (TOURAINE, 1988: 130).

Touraine, assim, afirma que os movimentos sociais não só são sujeitos de lutas por
demandas ou reivindicações particulares ou pontuais (grupos de interesse ou instrumento de
pressão política), mas estão voltados para “... sempre... abolir uma relação de dominação,
fazer triunfar um princípio de igualdade...” (TOURAINE, 1999: 115). A busca então do que
ele chama de “conflito central”, um conflito mais de critica sistêmica, perpassaria o
reconhecimento das diversas identidades e diferenças, reconhecimento dos valores
historicamente construídos, busca dos “inimigos comuns ou inimigo comum”, ação coletiva e
transformação da sociedade como um todo.
99

Observou-se no trabalho de campo, que, quando da constituição da AMACH, os


moradores não tinham consciência ou idéia de movimento social. Eles estavam mais
interessados em benefícios específicos, em ficar no imóvel ou negociar o valor para sua saída,
Ou seja, a luta não se configurava num movimento social que questionava as formas como o
governo atuava nos bairros populares diante da expansão e das políticas urbanísticas, mas
denunciava e requeria o direito de ter uma negociação justa ou permanência no imóvel em
uma intervenção específica do Poder Público. Essa motivação era maior no momento do
anúncio da 7ª Etapa (2001-2002), no fervor das ações de relocação e negociação do auxílio
relocação e da saída da maioria dos moradores, onde a presença dos moradores na reunião da
AMACH se dava em número mais representativo e constante.

A desmobilização dos moradores quanto à participação se dá após o início das


negociações, entre os anos de 2003 e 2004, quando se demandava tempo e compromisso, sem
a perspectiva real de vitória, nem que fosse pontual. Assim, houve um decréscimo da
participação dos moradores nas ações junto a AMACH, fato este outra vez transformado
quando as primeiras vitórias começaram a aparecer, consolidando um grupo mais
representativo a participar, em 2005 e 2006. Maria da Gloria Gohn analisa assim os limites e
dificuldades para manter a participação para além deste tempo do fervor e participação,
quando assumidos pelo meio popular:

Nas lutas onde ocorreu maior participação das camadas populares


predominou a paixão e o arrebatamento nas ações desenvolvidas, inexistindo
ou havendo muito pouco a racionalidade e estratégia de ação. Isto explica,
em parte, o fracasso e a pouca duração das lutas, baseadas nas emoções e no
calor dos acontecimentos (GOHN, 1995: 152).

4.1.2 Vida e luta: a participação da mulher na 7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico

Dentro da análise sobre os desafios encontrados em campo de trabalho e pesquisa


dessa experiência, ganha destaque o maior número de mulheres envolvidas diretamente na
organização da AMACH, nas suas reuniões. Não se propõe aqui um aprofundamento do
debate sobre os movimentos feministas, de gênero ou identitários, até porque, sendo desta
forma, o cruzamento dos indicadores que obstaculizam uma determinada participação teria
que dar conta também de outras dimensões como a questão racial, importante e também
presente em campo de pesquisa. Trazer aqui o foco de análise para a participação da mulher
resulta do destaque da atuação delas, observadas a partir do trabalho de campo, onde se
constatou “um conflito” existente entre a sua presença e participação nas reuniões com
Governo, assembléias públicas, mídia, nas reuniões da AMACH, em encontros coletivos com
100

outros bairros, reuniões no Ministério Público, fóruns, seminários, etc.) e as pressões de sua
vida privada (cuidado com a casa, com os filhos, família, companheiros).

Esta singularidade da presença feminina não é uma particularidade do caso estudado.


Diversos estudos vêm indicando que as mulheres estão em maior número quando se trata de
lutas populares por direitos básicos, principalmente no meio urbano: educação, moradia,
saúde, saneamento, segurança, geração de emprego e renda, etc. (COSTA, 1998;
TOURAINE, 2007; CEAS, 2008; GOHN, 2010). Na busca pela participação em ações
políticas de cunho coletivo, analisada sob a perspectiva de gênero observam-se outros
desafios e obstáculos nesta caminhada. Segundo Gohn (2010), pode-se distinguir dois tipos de
presença das mulheres nos movimentos sociais: os movimentos feministas e os movimentos
de mulheres. O primeiro, para a autora, orienta-se para as causas do campo feminista, nas
reivindicações centradas nas questões das mulheres. O segundo indica maior número de
mulheres envolvidas, porém elas parecem invisíveis como “movimento de ou das mulheres”,
pois o interesse, “a bandeira” se orienta para a efetivação de um direito mais geral: a luta pela
moradia, saúde, educação, etc.

O Movimento de Mulheres é mais numeroso, mas quase invisível enquanto


movimento de ou das mulheres. O que aparece ou tem visibilidade social e
política é a demanda da qual são portadoras – creches, vagas ou melhorias
nas escolas, postos e equipamentos de saúde etc. São demandas que atingem
toda população, e todos os sexos, mas têm sido protagonizadas por mulheres.
(GOHN, 2010: 91)

No ano de 2008 a Equipe Urbana do CEAS fez uma avaliação e constatou esta
presença feminina marcante em todas as suas áreas de trabalho nos bairros populares da
cidade de Salvador onde havia atuado nos últimos anos (2000-2008), a saber: Bairro da Paz,
Gamboa de Baixo, Marechal Rondon, Santa Bárbara, Centro Histórico, Alto das Pombas .
Esta avaliação foi publicada no artigo “A voz das mulheres na luta popular por moradia em
Salvador” que trazia as experiências de grupos de mulheres do contexto popular e associações
de moradores, com destaque para a AMACH (CEAS, 2008: 81-100). Relevante trazer os
dados estatísticos apresentados pelo CEAS com referência aos indicadores dos anos de 2000 a
2005, período específico da delimitação cronológica desta pesquisa, para entendimento do
perfil desta mulher que também luta na defesa de seus direitos em espaços públicos mais
amplos de reivindicação dos direitos.

Conforme artigo da Equipe Urbana do CEAS, com base em dados da PNAD –


Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (2002) uma das principais mudanças nas
101

relações de gênero é o aumento da proporção de domicílios chefiados por mulheres. 25,5%


dos lares estavam sendo chefiados por mulheres, bem diferente dos 19,3% de chefas de
família em 1992 (PNAD, 2002 apud CEAS, 2008: 83). Dentro dos limites da 7ª Etapa de
Revitalização do Centro Histórico, segundo a CONDER no “Diagnóstico socioeconômico e
ambiental”, também predominavam as mulheres como Chefes de Família, com 57,3%,
destacando-se as faixas etárias de 41 a 60 anos, com 39% (CONDER, 2005: 17).

Apesar do avanço nas formas de participação das mulheres em diversos aspectos, no


âmbito do mercado de trabalho, as desigualdades por sexo ainda se constituem uma condição
de vulnerabilidade das mulheres. Para a Região Metropolitana de Salvador – RMS, as
mulheres responsáveis por famílias tiveram expressivo crescimento nos períodos analisados
(1991-2000): enquanto no Estado da Bahia, elas passaram de 22,4% para 29,3%, no período
de 1991 a 2000, na RMS o aumento foi ainda mais significativo, de 27,9% para 38,1%.
Segundo a pesquisa do DIEESE (2003) “A mulher negra no mercado de trabalho
metropolitano: inserção marcada pela dupla discriminação”, 52,2% de mulheres negras e
39,9% de mulheres não-negras se encontram nesta situação, contra 39,9% de homens negros e
32,35 de homens não-negros, em Salvador. Em relação aos dados apresentados pela Pesquisa
de Emprego e Desemprego – PED da RMS, relativa aos trabalhadores domésticos e que cruza
variáveis de raça e gênero, 93% dos trabalhos domésticos são realizados por mulheres, sendo
que neles a presença majoritária (94,8%) de negros e negras no setor, sendo que 69,1% não
têm carteira assinada e 28,3% moram no domicílio em que trabalham. As disparidades são
latentes e muitas vezes os dados são alarmantes, uma babá branca tem rendimento mensal
médio de R$185,00 enquanto uma babá negra ganha em média R$98,00 (PED-RMS). O
desemprego feminino na RMS também é mais alto que o masculino, segundo a Pesquisa
Mensal de Emprego do IBGE. Entre janeiro e outubro de 2006 a taxa de desocupação das
mulheres variou entre um mínimo de 15,8% e um máximo de 18%. ( IBGE, 2000 e 2006;
DIEESE, 2003 apud CEAS, 2008: 84-85).

É esta mulher, com este perfil de maior vulnerabilidade expresso nos números e
estatísticas que compõe a maioria das pessoas representativas na busca pela participação no
projeto da 7ª Etapa. São vendedoras ambulantes, cozinheiras, biscateiras, trabalhadoras
autônomas, comerciantes, pedintes, desempregadas, mulheres em situação de prostituição,
mulheres envolvidas com atividades ilícitas, donas de casa, costureiras, artesãs, mães de
santo, que estiveram e continuam em parte presentes em busca do diálogo e requerendo um
lugar de participação no projeto da 7ª Etapa. São mulheres com baixo grau de escolaridade,
102

em sua quase totalidade desempregadas, mas que cuidam da casa, do bairro, da associação de
moradores. O CEAS assim expôs sua realidade de vida, lembrando aqui que esta parte da
análise se refere diretamente às mulheres que compõem a AMACH:

... sem renda, tendo que tomar conta da casa (muitas vezes sem casa), dos
filhos, dos maridos, da comida (ou falta dela), as mulheres transcendem o
espaço da casa e ampliam sua preocupação para com o bairro, a rua, a
comunidade, a cidade, o outro. O papel da mulher acompanhada pela equipe
é, principalmente, um papel político e a predominância das mulheres na
AMACH, nos grupos organizados, nas comissões de moradores... refletem
esta afirmação (CEAS, 2008: 86)

Gohn chama atenção para o fato de que o número e a participação das mulheres é tão
expressivo nas lutas populares que seria mais legitimo tratar de “atrizes sociais” das ações
coletivas (2010: 95). Esta observação é bastante pertinente também à AMACH, Associação
dos Moradores e Amigos do Centro Histórico, que poderia muito bem chamar-se Associação
das Moradoras e Amigas do Centro Histórico, tamanha a predominância das mulheres. Nos
seis anos de observação, trabalho e pesquisa (2001-2007) as principais pessoas que estiveram
à frente da associação mostravam a presença de duas presidentes e de um grupo composto por
15 mulheres e 5 homens, sendo que este número sofreu variações no decorrer do tempo, mas
em nenhum momento foi percebida uma presença maior ou mais intensiva dos homens dentro
ou protagonizando a participação popular na Etapa.

Em reunião ocorrida em 12 de novembro de 2004, em um bar na Rua Monte Alverne


(Pelourinho), a AMACH apresentou a 80 moradores presentes o seu novo quadro de diretoria,
composto por uma presidenta, nove diretoras e três diretores. Naquele momento, ao passar a
presidência da AMACH para a próxima responsável, pôde-se observar nas falas da então
presidenta, para o grupo presente nesta reunião, as dificuldades que as mulheres enfrentavam
para manter a organização da associação e participar das atividades de cunho político dentro
do projeto da 7ª etapa:

Em 31 de Junho de 2002 surge a AMACH. A nossa intenção era unir forças


para irmos ao embate contra o Governo... O Governo coloca e colocou muito
dinheiro no Pelourinho e o povo negro está empatando este processo por seu
padrão de vida. Aqui eles nos ofereceram quantia irrisória e fomos expulsos
daqui. Nossa organização é composta de um pequeno grupo, nós mulheres
negras que com nossos netos e filhos enfrentamos o governo. No começo da
luta éramos eu e a Pró na frente, sem dinheiro pra transporte, sem
participação de outros moradores, com nossas famílias, esperando em casa e
nós colocando a cara na rua pra brigar por nossos direitos... Hoje somos uma
pedra no sapato deles (Presidenta da AMACH, 12 de novembro de 2004)
103

Para esclarecer o ponto aqui tratado, as dificuldades alegadas neste discurso referiam-
se a fortalecer a organização do “movimento pró-moradia”, mantido basicamente por
mulheres que convivem com o desemprego, as casas em risco de desabamento, cuidado com a
família, preconceito de raça e gênero, violência, tráfico de drogas. Foram muitos momentos
em que elas se faziam presentes nas reuniões com suas crianças no colo, que saiam para
preparar a mesa de casa ou os afazeres domésticos e ainda assim encontrar tempo e criar
estratégias, junto com as entidades e grupos de apoio, para mobilizar uma área onde o
desemprego e/ou subemprego, o alto índice de uso e tráfico de crack e a prostituição eram
uma realidade. O desafio estava não só em criar as condições para a participação ou conquista
de direitos de moradia, mas de conciliar este desafio com a administração, ou presença, de
aspectos da sua vida privada, do conviver com os companheiros, do cuidado com sua casa, da
educação, acompanhamento e formação dos filhos e netos.

Ana Alice Alcântara Costa (1998), em seu estudo “As donas do poder; mulheres e
política na Bahia” revela esta trama e o poder das mulheres frente ao processo de construção
da sua participação política associada aos cuidados com a família. Para a autora o espaço da
mulher tem sido sempre o exercício na esfera privada e, por isso mesmo, para analisar sua
participação na esfera pública é necessário perceber sua presença nas duas esferas, já que a
mulher tem assumido papeis concomitantemente nestas (COSTA, 1998: 11). Ela ainda pontua
algumas condições que se constituem obstáculos da esfera privada para participação da
mulher na esfera pública, com destaque para:

1) Sua condição de gênero oprimido as impede e obstaculiza o exercício


pleno da cidadania; 2) sua vulnerabilidade física, no medo da violência
sexual e a possibilidade de serem golpeadas no lar, obstaculiza o seu
envolvimento nas atividades públicas e as exclui do exercício dos direitos
civis; 3) ao não dispor de ingresso monetário próprio, estão submetidas à
vontade e às ameaças dos maridos; 4) a ideologia da feminilidade, á qual
estão submetidas, é contraditória com a racionalidade do mundo político; 5)
a dupla jornada de trabalho lhes deixa com menor disponibilidade para
dedicar-se à vida pública como cidadã (JAMES, 1992 apud COSTA, 1998:
71-72)

As mulheres, portanto, se dividem entre as dimensões do espaço público e o privado,


com seus tempos e esforços disputados entre estas duas esferas. O trabalho na esfera privada,
assim como a sua participação e trabalho na esfera pública criada com a luta por direitos e
participação na 7ª Etapa de Revitalização, agravam-se ambas as participações não se traduzem
em renda imediata para as mulheres e famílias, com “o porém” de que, no trabalho doméstico,
o ganho encontra-se na simbologia da casa arrumada e limpa. O tempo destinado ao trabalho
104

comunitário (não remunerado), o desemprego e a pressão familiar para a manutenção


econômica e o cuidado para com a casa, filhos e companheiros se tornavam cada vez mais
constantes quanto mais a participação destas mulheres se intensificava.

4.1.3 O tempo de participação

Diante dos limites e obstáculos para a participação popular no projeto da 7ª Etapa,


encontramos um paradigma de análise mediador das relações contraditórias entre o fazer
político e a reprodução da vida: o fator tempo. A compreensão do fator temporal tanto pelos
propositores da intervenção, como pelos que são atingidos e sofrem as intervenções é de suma
importância, pois os diferentes “tempos” desses atores na relação com o espaço aparecem
como um dos obstáculos mais ressaltados no alcance desses objetivos dos diferentes atores e
projetos, o que requer atenção especial. No caso estudado, a busca imediata pelos resultados
da reforma pretendida (exemplo, a corrida protagonizada pela CONDER na negociação com
os moradores em vista de desocupar os imóveis), o tempo do desembolso dos recursos pelos
financiadores, o tempo dos mandatos políticos do governo ou a pressão resultante da
necessidade de dar respostas à sociedade, acabou por dificultar o processo participativo mais
representativo. Na contramão desses ritmos encontram-se os tempos dos moradores na difícil
busca e entendimento das informações que circunscrevem o projeto, da sobrevivência, o
tempo da mulher popular em politizar-se, para assumir o poder de fala, aquele necessário à
construção e organização da AMACH, muitas vezes vistos como atrasados ou incontroláveis,
acabavam por determinar ações ainda mais autoritárias e finalizadas, acirrando os conflitos.

Atualmente, o exercício da representação dos atores na esfera pública tem procurado


trabalhar o elemento argumentativo e dialógico, como um possível promotor da comunicação
entre os agentes, atores, na formulação e decisão política. Porém, as dificuldades e diferenças
da construção dos argumentos sejam na fundamentação de informações, seu processamento e
transmissão e recepção colocam novas dificuldades a uma prática participativa em tempo
comum para os participantes. Um dos exemplos dessas desigualdades, na 7ª Etapa de
Revitalização se materializa nas condições desiguais de domínio, ou falta, que os diferentes
atores têm sobre as informações do projeto, de modo a poder competentemente apropriar-se
do debate, situação que colocava o Governo sob a condição de poder de construção da
proposta já formatada e que impunha sua execução, em confronto com um conjunto de
cidadãos sem informação do âmbito pleno que implicavam essas decisões e vivendo nos
limites da sobrevivência. Essa desigualdade quanto ao controle da informação demonstrava as
105

fragilidades e ambiguidades da luta dos moradores na sua relação com a ação de reforma e
modificação da área.

A perspectiva restrita a uma visão técnica, que ronda o Projeto da 7ª Etapa de


Revitalização, foi outro desafio para participação dos moradores, neste processo. Já de início,
quando dos primeiros contatos com as informações oficiais do Projeto eram evidentes as
dificuldades encontradas pelos moradores para entenderem, por exemplo, as terminologias
técnicas usadas pelos técnicos do governo. O termo “poligonal da intervenção”, o traço do
mapa onde seria implementada a revitalização, foi um dos grandes questionamentos e não
entendimento por parte dos moradores. “O que é uma poligonal”17, se tornava a questão
central para o entendimento e a situação dos moradores, naquele momento, ainda em 2002.
“Porque passaram uma reta na rua, a minha casa este dentro e a do meu vizinho não está?”. A
“poligonal” era discutida sem nem mesmo os moradores terem acesso ao mapa, pois este
ainda não tinha sido apresentado para eles. Eles apenas sabiam que a “poligonal” abrangia
ruas da Ladeira da Praça até o Terreiro de Jesus e da rua São Francisco até a rua Saldanha da
Gama, e assim as dúvidas aumentavam ainda mais quando percebiam que este traçado cortava
algumas ruas em duas partes, contemplando reformas apenas em um dos lados. Desta forma o
conhecimento técnico, o saber se portar e comportar nas reuniões públicas e nas audiências
com as autoridades, o conhecer o Direito Constitucional, o projeto urbanístico, a função da
sua participação política, foram sendo assimiladas de forma lenta por parte dos moradores.

Diante das características e perfil apresentado pelos moradores que se sentiram


atingidos pela 7ª Etapa, uma população que vivia no limite da sobrevivência, alguns
envolvidos com inúmeros problemas apresentados (como nível de formação muito baixa,
renda reduzida, tendo à frente das famílias mulheres, e sendo estas, também, as principais
agentes mobilizadoras na participação no projeto de intervenção), estas pessoas necessitavam
de uma quantidade de tempo de longa duração, não mensurável, para que pudessem se
envolver e protagonizar formas mais efetivas de participação política no projeto de
revitalização da área. Este tempo seria destinado, e realmente concluímos que ele acabou por
ser mesmo, à difícil tarefa de mobilizar pessoas que tinham inúmeras dificuldades em
entender as informações, não dispunham de tempo e paciência para a construção das reuniões
da AMACH, as quais, por muitas vezes, tinha sua pauta de discussão diária das questões que

17
Poligonal é um conjunto de segmentos de reta consecutivos e não pertencentes a mesma reta e, no caso
aqui estudado os traços das retas tiveram a função de envolver as ruas de implementação do projeto de
revitalização como apresentado no capítulo introdutório desta dissertação.
106

envolviam o projeto da 7ª Etapa (direitos e leis, metas do projeto, construção de estratégias de


participação, formulação de documentos de denúncias, construção do discurso a ser exposto
na mídia) interrompida por brigas interpessoais, pessoas sob efeito de álcool, dúvidas
recorrentes, ampla flutuação dos participantes, o que resultava em constantes retornos
explicativos sobre todo processo para os novos presentes.

O exercício de regras democráticas de jogo é importante também porque não


se adquire o hábito com facilidade. Democracia dá muito trabalho. Onde
todo mundo quer opinar, comparecer, decidir junto, o que mais acontece é
uma dificuldade enorme em gerir a balbúrdia... Facilmente emerge o cansaço
e a decepção, até mesmo o reconhecimento afoito de que a democracia não
leva a nada. Em certos casos, pode até sugerir a insinuação de que em termos
autoritários as coisas andavam melhor, porque se decidia rápido, ou tudo já
estava decidido (DEMO, 1988: 73)

Segundo Boaventura de Sousa Santos, os tempos atuais estão repletos de paradoxos,


onde formas de viver diferentes, capitais, poderes, linguagens e técnicas influenciam
diretamente o processo da participação popular. O autor percebe que os grupos mais
vulneráveis socialmente não conseguem que os seus interesses sejam representados no
sistema político com a mesma facilidade dos setores majoritários (2002: 54). A busca da
participação, até porque ela não é dada, requer ainda tempo tanto para encontrar as
informações consideradas “públicas”, muitas vezes só conseguidas por ações no Ministério
Público, como para própria luta pela sobrevivência e construção da mobilização comunitária.
A lentidão desta busca, até para fazer atingir a maioria envolvida, vai diretamente de encontro
à velocidade do sistema capitalista e tecnocrata, exigentes de resultados rápidos.

Se partirmos da idéia de que o espaço de participação precisa ser


conquistado, centímetro por centímetro, o que ocorre muitas vezes é que não
podemos andar a metro, mesmo porque todos os processos participativos
profundos são lentos (DEMO, 1988: 19)

Comumente ouve-se dos órgãos públicos que as intervenções têm um limite de tempo
para serem efetuadas, sob o risco dos recursos voltarem aos órgãos financiadores, além do
tempo do mandato de governo vigente (4 anos) que pode acabar por atropelar o processo.
Dentro do campo das responsabilidades do governo na execução da intervenção da 7ª Etapa,
existe ainda a necessidade de atender às pressões da sociedade em ver logo as obras prontas,
uma expectativa que aumenta quando se trata dos centros urbanos onde o número de
transeuntes e observadores comuns é maior que no restante da cidade. A relação simbólica
criada com o patrimônio da humanidade, no caso de um “Centro Histórico”, aumenta ainda
mais essa pressão em ver o “patrimônio” restaurado, a possibilidade de atrativo turístico e
107

imobiliário, creditando ao Poder Público, governo do Estado, o “pulso firme” no adiantar da


intervenção.

Por parte do governo atuavam também as influencias dos prazos e tempos da máquina
burocrática. Segundo o “Relatório síntese de andamento”, documento adquirido pela
AMACH após intervenção e pedido do Ministério Público do Estado da Bahia, elaborado pelo
Programa Monumento, responsável por gerir o projeto da 7ª Etapa, as sete metas elencadas
teriam seus desembolsos financeiros no período entre 2001 a 2004 (MINISTÉRIO DA
CULTURA E OUTROS, 2002: 08), com previsão de término de execução neste ultimo ano.
Quando do inicio do diálogo participativo com a AMACH, podemos perceber, através de
observação e presença direta, a preocupação que os técnicos do governo demonstravam diante
da possibilidade de participação e diálogo com os moradores e com a AMACH vir a atrasar as
obras e, com isto, inviabilizar o projeto de recuperação. A primeira apresentação oficial do
Projeto de Revitalização da 7ª Etapa, para a AMACH, por parte da CONDER e do Programa
Monumenta, ocorreu apenas em 28 de novembro de 2004, na sede deste órgão, no Centro
Histórico, quando a associação via pressão jurídica conseguiu compor uma esfera pública de
diálogo. Nesta reunião, o então coordenador do Programa expôs em parte esta preocupação
relativa ao tempo de execução:

O programa era pra ter acabado em 2004 e até agora mal começamos. Vocês
ganharam o direito de permanecer e participar, mas não há muito que
intervir, a gente diz se a AMACH deve e como deve participar... Os recursos
estão previstos para acabar em 2006 e o projeto está fechado, sendo inclusive
aprovado pelo IPHAN. Modificá-lo e anulá-lo demandaria muito tempo,
talvez 10 anos. (CEA, 2004)

As obras dentro do sítio histórico têm que obedecer aos padrões e referências exigidos
pelo IPHAN, o que requereria mais tempo para iniciar a execução. Os técnicos e arqueólogos
deste órgão, quando encontravam achados arqueológicos nas casas em obras paravam todo
trabalho para a pesquisa e estudo dos sambaquis18. Também era necessário destinar um tempo
para organizar as licitações e aprovar os contratos de trabalho, sendo que qualquer
intervenção externa a este processo, uma ação dos moradores, por exemplo, atrasaria o tempo

18
Sambaqui (do tupi tamba'kï; literalmente "monte de conchas"), também conhecidos como concheiros,
casqueiros, berbigueiros ou até mesmo pelo termo em inglês shell-mountains, são depósitos construídos pelo
homem constituídos por materiais orgânicos, calcários e que, empilhados ao longo do tempo vem sofrendo a
ação de intempérie; acabaram por sofrer uma fossilização química, já que a chuva deforma as estruturas dos
moluscos e dos ossos enterrados, difundindo o cálcio em toda a estrutura e petrificando os detritos e ossadas
porventura ali existentes. (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Sambaqui)
108

reconhecidamente difícil do trâmite burocrático. Parecia ser necessário adiantar as ações para
dar conta do programa de execução, sendo que a desapropriação dos imóveis estava como a
primeira meta a ser cumprida. Lysiê Reis, analisando as primeiras etapas de intervenção neste
sítio histórico também reconheceu essa dimensão do tempo como uma variável dificultadora
da efetiva participação social nos projetos:

Percebe-se que a rapidez na aprovação dos projetos, na licitação das obras,


na aprovação das linhas de financiamento e na disponibilização dos custos
alocados foi uma estratégia que impediu que se instaurasse uma discussão
entre as demais instâncias do Poder Público e que vozes contrárias a essa
operação tivessem força ou possibilidade de organização das obras. (REIS,
1998: 85)

O tempo das pessoas e famílias envolvidas na intervenção parecia vir na contramão do


processo de gestão e dos imperativos técnicos e de governo. O tempo confrontava com a luta
pela sobrevivência, no biscate, no trabalho, no cuidado para com a casa, nas drogas, nos bares,
na divisão entre o trabalho da AMACH e a dinâmica da construção da vida a privada, trazidos
pelos exemplos de vida das mulheres que protagonizavam a busca por esta participação.
Paralelo a esses imperativos vem o atendimento das questões emergenciais e imediatas e o
projeto de construção de uma pedagogia, organização e mobilização da luta que remete a uma
possível vitória, em longo prazo. Esse primeiro constrangimento predominou no momento
inicial do anúncio de implantação da 7ª Etapa, expressa no número dos moradores que
aceitaram o auxílio-relocação. Já naquele momento era comum ouvir das pessoas o
sentimento desânimo e “perda de tempo” em relação à efetividade dessa participação em uma
associação de moradores que não traria de imediato o que suas vidas demandavam: segurança,
dinheiro e garantia de uma moradia (casa).

Diante da pressão do tempo as condições físicas dos imóveis habitados e,


consequentemente, os riscos iminentes de desabamentos com as famílias dentro se tornaram
elementos que contribuíam para aumentar a sensação do risco e acelerar o processo de
retirada das pessoas. A situação de algumas moradias era de extremo risco e, segundo os
diversos relatos acompanhados no trabalho de acompanhamento junto aos moradores, a
preocupação sentida era o trincar das paredes: ao ouvir o barulho já comum aos moradores
antes dos desabamentos, o que, muitas vezes, influenciava na decisão deles de deixar o imóvel
e aceitar auxílio-relocação antes que não desse tempo de salvar a família de um acidente,
mesmo com resistência de algumas pessoas e famílias:

Com as lembranças vivas na memória, Ana Paula diz que não consegue
dormir desde aquela noite. “tenho medo que o casarão caia em cima de mim
109

e dos meus filhos”... Construído em 1918, o casarão onde mora apresenta


deformidades provocadas pelo tempo e falta de manutenção. O Prédio está
em ruínas. O reboco se desprendeu em vários pontos. As paredes sujas e
fétidas estão caindo aos pedaços... Tão frágil que, a cada passo o chão
balança como sinalizar a iminente queda... “Não tenho pra onde ir. Não
posso pegar o auxílio... e depois não ter mais como pagar o aluguel... tem
dias que agente nem tem o que dar pras crianças comer, como vou sair daqui
pra morar de aluguel: (CASTRO, 2004: 9)

A casa de número 10 da Rua 28 de Setembro... é o que se poderia chamar de


um zoológico do horror. Os ratos dividem a sala com ele e os piolhos de
cobra já picaram sua mulher. Na semana passada uma parede do andar
superior caiu e ontem a água invadiu a casa. Sair, ele bate pé firme e diz: “Se
sair o governo não deixa eu voltar... Como é que vou viver na rua com R$ 2
mil. Vou viver de favor e quando acabar o dinheiro vou ficar na porta da
igreja. Fico aqui mesmo”. (CASTRO, 2004a: 3)

O “tempo de sobreviver” agora estava diante de uma possibilidade de construção de


uma participação na 7ª Etapa. Para tanto, era necessário dedicar mais tempo, este agora para a
organização da AMACH e construção do “poder de voz” dos moradores. Nos anos iniciais da
intervenção as mulheres, que já se constituíam em maioria na organização da AMACH,
tentavam encontrar um tempo para a associação, para dedicar-se à construção de uma “luta
coletiva”, a “luta da comunidade”. Dentro deste âmbito de interlocução e embate que
começavam a serem criadas as desigualdades entre as partes envolvidas começavam a definir
uma “distinção” e hierarquia entre os atores determinada, seja pela posse e busca da
informação ou pelo poder de construção de uma ação dialogada.

Segundo Arendt esta distinção singular vem à tona no discurso e na ação, onde os
homens se manifestam uns com os outros (ARENDT, 1983: 189). O governo impunha uma
pressão ao tempo de execução e a seus técnicos, com o controle das informações e dados em
mãos, e se viam muitas vezes diante de uma difícil realidade de dialogar com um grupo sem
informações e, ainda, tendo que assumir os prazos e cumprir as metas físicas e financeiras do
programa. Desta maneira, mais do que provocar o debate e a participação, o governo apenas
apresentava suas proposições prontas nas esferas públicas de discussão constituídas no debate
através da imprensa, das assembléias e fóruns criados. Os distintos referenciais da discussão
confrontavam as propostas e pareciam inviabilizar a intervenção o que acabava por colocar o
governo diante de uma situação difícil de ver recursos parados e obras inacabadas e dos
moradores angustiados se verem prestes a serem colocados para fora de casa ou verem elas
ruírem em suas cabeças.

O que inviabiliza o processo discursivo, nessa concepção, é o fato de vários


pontos de vista serem bastante diversos para permitirem que as doutrinas
110

sirvam de base para um acordo político razoável e duradouro, isto descarta a


possibilidade de consensos (VALLADARES, 2006: 27)

A AMACH, naquele momento (2002-2003), priorizou a busca das informações "ditas


públicas". Para o alcance deste objetivo foi necessária a construção de um diálogo com o
Ministério Público, para que este garantisse aos afetados o acesso às informações oficiais. O
caminho para se chegar até o Ministério Público passou por diversas reuniões entre os
assessores e moradores organizados, na construção de como deveria ser o diálogo com o
promotor responsável pela Promotoria de Direitos Humanos e Cidadania, junto às advogadas
voluntárias, a articulação com parlamentares, principalmente o Dep. Zilton Rocha, as
denúncias na mídia e os convites para que a sociedade civil encampasse o pedido de
intervenção do Ministério Público nesse projeto. Na prática as ações de mobilização,
socialização das informações e construção de uma voz coletiva passavam, principalmente, por
um trabalho constante de visitas a todas as famílias, realizadas pelos principais envolvidos na
AMACH e o “grupo dos amigos”.

Acredita-se que na formação do grupo, mesmo que pequeno, a construção da sua


prática, do poder de reflexão e elaboração crítica ao projeto se deu de forma processual e
lenta, sendo que esta dinâmica permitia o entendimento apenas a um número restrito de
moradores. Segundo Débora Nunes é justamente este tempo vivido numa prática de longa
duração que faz com que as pessoas dos bairros populares da sua pesquisa se formem num
processo participativo:

A longa duração do processo participativo de discussão e de negociações de


urbanismo favorece a assimilação, pelos moradores de bairro, dos dados, dos
mapas, das lógicas e dinâmicas urbanas, etc. O caráter concreto dessas
questões e a longa duração do processo podem tornar compreensíveis aos
habitantes os desafios do urbanismo, sobretudo se existir interesse dos
dirigentes da experiência neste sentido (NUNES, 2006: 12)

Como de início não havia o interesse do governo em um diálogo participativo com os


cidadãos afetados, assim, este caminho considerado formativo tinha no seu primeiro estágio a
meta de conseguir encontrar, conhecer, as informações principais, compreendê-las e constituir
espaços que pudessem favorecer um possível diálogo. A construção desses processos de troca
e discussão (a ação discursiva), requeria tempo para uma apropriação das informações, sua
interpretação, reconstrução e articulação das palavras no âmbito coletivo. Constituir o
chamado “poder de voz” não é um processo fácil e, mesmo as lideranças populares, pessoas
que acabam se formando durante um longo tempo de construção da sua pessoa dentro de uma
organização, movimento social ou luta popular, apresentam diversas dificuldades para
111

elaborar sua participação e constituir o seu “poder de fala”. Os parceiros, “amigos”,


assessorias ao grupo dos moradores, têm, neste processo, papel fundamental de tentar
encontrar ao máximo caminhos curtos para o alcance desta meta de permitir a esses
moradores afetados fazer-se ouvir. Porém, para estes também esta tarefa demandava tempo e
esforço na busca das informações, entendê-la e “traduzi-las” numa linguagem acessível,
concomitante à dinâmica de um conflito gerado pela intervenção e que já se encontrava
avançado.

Dentro das estratégias pensadas pela AMACH, moradores e “amigos”, estava a


possibilidade de “parar o tempo” do Projeto em sua execução para início de um diálogo. Para
tanto era necessário a construção de caminhos diversos que resultasse na chegada, ou
constituição, de um espaço público de debate onde, principalmente, os moradores pudessem
ter poder de voz. O Ministério Público, neste sentido, teve papel muito importante diante
deste embate entre posições diversas, vontades, tempos e possibilidades para com a
intervenção da 7ª Etapa. Naquele momento, parecia ser um aliado forte para barrar a execução
até que as pessoas realmente pudessem expressar suas vontades. Desta forma, para participar
do processo os moradores tiveram que construir junto ao promotor responsável uma Ação
Civil Pública (nº. 38.148-7, 2002) para diminuir a velocidade com que o projeto estava sendo
implementado e, assim contemplar um pedido de escuta dos moradores, como expressa a
matéria “Verdades e mentiras do novo Pelô”:

O Ministério Público estranhou a velocidade das relocações e, antes que


sumissem todas as famílias da ultima etapa de revitalização, ajuizou uma
Ação Civil Pública (n 38.148-7 – 2002) com pedido de ordem de liminar
contra o Governo do Estado e da CONDER. O principal objetivo da ação é
barrar o projeto de relocação, por acreditar que o governo do Estado quanto
a CONDER estão promovendo o que o MP classifica como assepsia social,
ou seja uma espécie de faxina em que a pobreza do Pelourinho é a sujeira
(CASTRO, 2004, p. 03)

Passados os anos iniciais da intervenção (2001-2002) a AMACH já constituída passa a


representante dos moradores nas esferas públicas de diálogo então constituídas. Estes
caminhos de participação tiveram a influência direta do grupo de amigos e a parceria
importante com o Ministério Público. Neste processo ficam evidentes as diferenças, as
ambiguidades e os objetivos das pessoas e atores envolvidos e o papel que a justiça pode
ocupar na mediação de conflitos na defesa dos interesses da cidadania, aqui entendida como
os moradores e classe popular .
112

4.2 OS CAMINHOS DE MOBILIZAÇÃO E MEDIAÇÃO NAS ESFERAS


PÚBLICAS DE PARTICIPAÇÃO NA 7ª ETAPA DE REVITALIZAÇÃO DO
CENTRO HISTÓRICO

Tratar dos caminhos encontrados para a participação dos moradores na 7ª Etapa requer
atenção para com os desafios encontrados, mas também conhecer as estratégias e a própria
construção das esferas de negociação e embates públicos criados. Neste caso o papel do grupo
de amigos, a sua influência na transmissão dos conhecimentos técnicos a serviço da AMACH,
a construção dos canais de denúncia e as ações políticas e jurídicas constituem-se em
elementos analíticos importantes. Sabe-se que a própria implementação da 7ª Etapa como fato
irruptivo de um tempo “novo” articula e envolve a ação entre os moradores atingidos, os
técnicos do Governo do Estado e o os processos de retorno e “rebate” dos moradores. No
estudo em análise, a esfera pública não aparece pronta e formalmente instituída, mas ganha
forma, ora pela mediação jurídica, ora pelas denúncias na mídia, ora assume o formato de
assembléias públicas até se formalizar num Comitê Gestor da 7ª Etapa, instituindo um espaço
de negociação e mediação entre os interesses diversificados.

Recompor estas esferas é perceber o que Hannah Arendt (1983) analisa sobre as
diferenças entre os homens, entre suas ações, quando alguma coisa, algo novo, interrompe o
processo ordinário da vida cotidiana. Dentro das teses dessa autora, a palavra, seus
significados, as verdades, falsidades, ambiguidades, traduções, dissimulações, assumem o
ponto de partida para entendimento dos limites e construção dos atores numa esfera pública, a
exemplo da aqui estudada. A participação nesta esfera reúne um conhecimento dos termos
tratados e, portanto, construir um caminho para o entendimento e diálogo é um desafio que
traz perspectivas importantes a serem apresentados. Como Arendt, no caso em análise apesar
da importância que os agentes, os grupos de amigos da AMACH, possam ter na construção
da participação de terceiros, dos moradores nas esferas mediadoras criadas para as
negociações da 7ª Etapa, “não precisa necessariamente ser especialista ou profissional
qualquer para se tornar um pensador e ter a capacidade para fazer julgamentos políticos
autênticos”, e assim, parte das lideranças populares aqui observadas foram formadas
(VALLADARES, 2006: 19).

É neste que a política se constitui como processo construtivo e não como um sistema
dado e formal, conforme analisa Demo (1988). A política que se forma e se constitui pela
interação dialógica e contraditória entre os diferentes atores e atrizes, entre as pessoas e
grupos envolvidos são pressupostos necessários para o embate e diálogo em prol dos
113

processos participativos e democráticos (ARENDT, 1998, p. 124, apud VALLADARES,


2006: 16). A ênfase na prática comunicativa, seus limites e avanços no embate referente à
revitalização da 7ª Etapa influenciou as ações dentro de um campo político, possibilitando a
socialização dos interesses envolvidos. Dantas Neto (1999), analisando o “lugar da ação em
Hannah Arendt”, destaca o poder da ação do homem num campo do discurso, onde as
diferenças são fundamentais para construção do que ele encontrou na obra de Arendt como
“espaço público propício”:

Retornando a Hannah Arendt, o que impele a ação é também o fato do


homem viver entre outros, valendo, mais que as identidades, as diferenças
que se evidenciam pela condição humana da pluralidade. Esta condição pode
criar o espaço público propício para a transitividade que efetiva a ação e o
discurso. (DANTAS NETO, 1999: 74).

Dentro do objeto de pesquisa, quando trazemos o termo e a busca dos caminhos para a
participação popular, encontramos o surgimento de um espaço que evidencia, aparenta,
mostra, apresenta, publiciza as ações e interesses. Foram assim encontradas nas matérias de
jornal analisadas no capitulo anterior, que apresentavam para toda sociedade os termos e
lógicas presentes na realidade da intervenção. Como foi assim também que as arenas jurídicas
serviram para aprofundar o conhecimento dos pontos de vistas e singularidades dos
envolvidos. Através desta participação, foi possível ouvir a voz das pessoas em “denuncias
vivas”, em depoimentos das suas vidas, em documentos públicos, dossiês, mídia impressa,
ações judiciais. O uso da expressão pública vem aqui como meio de ir contra uma
determinada política de não democratizar as informações e de apresentar todas as alternativas
possíveis aos envolvidos. Esta postura, comumente direcionada aos governos autoritários, ao
Poder Público e ao Governo do Estado da Bahia quanto as informações da implementação
desta intervenção, pôde também ser encontrada em momentos na AMACH, que, diante de um
manancial de informações acaba por não conseguir transmitir para o coletivo, seja em função
de limites, acima expostos, seja em função de um determinado afastamento para com as
pessoas menos participativas.

A nossa percepção da realidade depende totalmente da aparência e, portanto da


existência de uma esfera pública na qual as coisas possam emergir das trevas da existência
resguardada, até mesmo a meia luz que ilumina a nossa vida privada e intima deriva, em
ultima análise, da luz intensa da esfera pública (ARENDT, 2000: 61, apud VALLADARES,
2006: 21)
114

Neste caminho, a presença dos “amigos” (parceiros solidários com a luta) contribuiu
na para a formação de um grupo, seja na organização das reuniões semanais da AMACH, no
desenvolver dos contra argumentos que o governo impunha, na socialização dos direitos
constituídos, na busca de outras experiências semelhantes na cidade de Salvador, nos contatos
com a mídia, na formulação de cartas denuncias para toda sociedade. Mas, ao mesmo tempo
nos leva a indagar sobre o caráter dessa representação, que não cabe aqui desenvolver.

4.3 Os amigos da AMACH e seus papeis diante da esfera pública de participação

A busca pela participação dos moradores na defesa dos seus direitos, diante da 7ª
Etapa de Revitalização do Centro Histórico de Salvador, contou com a colaboração de
instituições e profissionais que se envolveram na defesa e no apoio às reivindicações dos
atingidos. Este grupo esteve mais presente nos anos de 2001 e 2002 e, com o passar dos anos,
permaneceram apenas três instituições mais diretamente envolvidas: o Ministério Público,
acompanhando o desenrolar das negociações acordadas entre as partes, o CEAS e a UEFS.
Cabe esclarecer que algumas destas instituições, quando do início da intervenção (UNEGRO,
PT, Sindsaúde, SindVigilante), eram da oposição partidária ao grupo político que estava
governando o Estado da Bahia (PFL), responsável, consequentemente, pelo planejamento e
execução do projeto de revitalização aqui em análise.

Não se pretende aqui detalhar a história e a prática de todas essas instituições e


profissionais para analisar a participação popular na 7ª Etapa. Também não vamos refletir
sobre a formação, a importância, e as influências ou conjuntura política de atuação das ONGs,
dos militantes, voluntários, da pesquisa e extensão universitária, grupos de apoio, que vêm
acompanhando as lutas populares, os movimentos sociais, entidades de bairros em Salvador,
Bahia ou Brasil. O interesse e foco em analisar a presença desses grupos como amigos da
AMACH têm o objetivo de recompor as ações e influências destes atores nos caminhos da
participação e na atuação nas esferas públicas de diálogo criadas a partir de uma intervenção
urbanística, o projeto de Revitalização da 7ª Etapa do Pelourinho. Definir esses limites
analíticos se justifica, principalmente, em função do papel exercido por estes atores na
representação dos interesses e do nível da participação dos moradores. Ao mesmo tempo
compreender o papel deste atores é de fundamental importância, pois eles tiveram uma
responsabilidade decisiva em compor a esfera pública de diálogo com o Estado, a formação
política da AMACH e nas diferentes estratégias e ações, como a denúncia, os nexos de
articulação entre a condição de moradia popular com a situação de outros bairros de Salvador,
115

a dinâmica e fortalecimento das demandas nas assembléias públicas, etc. Além destes fatores,
a próprio interesse ou aproximação deste grupo, já revela o campo de diálogo e embate
constituído.

No âmbito do Direito, inicialmente, destaca-se o papel de um grupo de advogadas,


foram quatro ao todo, que prestaram assessoramento aos moradores, quando do anúncio da
intervenção da 7ª Etapa, em 2001. Uma dessas advogadas tinha grande aproximação com um
dos moradores atingidos e, de maneira voluntária, articulou um grupo de moradores para pedir
apoio ao gabinete do deputado estadual Zilton Rocha, já que este tivera uma experiência
exitosa no caso de um casarão na rua da Misericórdia ocupado por alfaiates.

Por outro lado a aproximação da escola de capoeira de Mestre Pastinha, representada


por um grupo de três psicólogas em apoio à demanda dos moradores também foi importante.
Ao se apresentarem na sua primeira reunião, na AMACH, o grupo de psicólogas disse ter tido
conhecimento da intervenção da 7ª Etapa, pois perceberam que as crianças frequentadoras
desta escola, na faixa etária dos 7 aos 10 anos de idade, estavam com dificuldade de
concentração e, muitas delas, com reações violentas com os colegas. Essas psicólogas então
passaram a explorar junto às famílias dessas crianças o porquê de algumas delas apresentarem
este tipo de reação em tão pouco tempo, apesar dessas reações aparecerem apenas para um
número específico destas. Elas concluíram que o processo de relocação e o estresse familiar
resultante da possibilidade de perder a casa acabaram se refletindo nos filhos, nas crianças.
Assim essas psicólogas se sentiram com vontade de tentar contribuir com aquele grupo de
pessoas, algumas delas mães e pais das crianças da escola de Mestre Pastinha e se propuseram
a construir um vídeo documentário sobre a 7ª Etapa, para assim, tentar disponibilizar um
possível instrumento de denúncia para a AMACH. Foi construído o vídeo Pelôres19, que
trazia depoimentos das famílias atingidas, entrevistas com as pessoas relocadas para Fazenda
Coutos, bairro de destino da maioria das famílias que aceitaram a relocação, onde elas
puderam apresentar ao público a realidade do local: sem transporte público, com casas muito
pequenas, violência, ausência de qualquer tipo de possibilidade de um trabalho pontual, um
biscate, uma renda. Este vídeo teve uma função importante para mobilizar e sensibilizar a
sociedade sobre a questão dos moradores da 7ª Etapa e foi exibido no Liceu de Artes e
Ofícios, em escolas públicas, no Teatro XVIII (Pelourinho) para um público de estudantes de

19
PELORES. Direção, fotografia e produção de Marília Hughes Guerreiro e Aline Frey. Salvador: [s.n.],
2004. 30 min.
116

escolas privadas, em debates no CEAS, nas universidades, constituindo-se um instrumento


estratégico de apoio à AMACH.

Dois outros apoios, estes agora mais relacionados à infraestrutura para as reuniões da
AMACH, foi recebido de dois sindicatos. O Sindsaúde, locado na rua da Independência, o
ponto de encontro das reuniões semanais da AMACH entre os anos de 2001 e 2002; e o
SindVigilante, na rua do Gravatá, que serviu de espaço para as reuniões em 2002 e 2003. A
disponibilidade desses espaços físicos foram importante, pois pensar naquele momento em
reuniões dentro da “poligonal da 7ª Etapa” significava usar as habitações ou bares e isso
aumentaria a rotatividade das presenças na reunião, a dispersão e a possibilidade de a
associação assumir compromissos com o proprietário do imóvel, seja ele de moradia ou
comércio. Além destes fatores, num ambiente de extrema tensão na área, a todo o momento
era colocada a possibilidade de se ter nessas reuniões a presença de informantes do governo,
que poderiam levar informações da AMACH para o Poder Público. Por diversas vezes foram
então justificadas as reuniões nestes espaços por eles serem mais afastados da área e, assim,
diminuir a hipótese de fazer ouvir assuntos ainda internos à AMACH.

Outras entidades se fizeram presentes, no início de formação da associação - AMACH,


e contribuíram para a discussão sobre mobilização comunitária, o acompanhamento em
algumas audiências públicas com representantes do governo do Estado, animando o grupo ou
criando estratégias de denúncias na mídia, defensoria pública e Ministério Público. Dentre
estes, não caracterizando uma ação de apoio mais sistemático, encontra-se a Ação Social
Arquidiocesana da Arquidiocese de Salvador (ASA) e a Unegro. Ainda dentro deste campo de
solidariedades mais amplas encontra-se o Projeto Força Feminina- PFF-, vinculado a obra
das Irmãs Oblatas do Santíssimo Redentor, projeto que acompanhava as mulheres em situação
de prostituição dos moradores do local. Por ter ampla ação junto a muitas das moradoras o
PFF acabava por ser uma mediadora importante no diálogo entre o grupo de amigos e
moradores, especificando em detalhes as questões habitacionais, o número de pessoas que
residiam em determinadas casas, as questão de saúde de algumas mulheres e moradores como
um todo, apoiando também na mobilização dos moradores, as visitas para explicar às famílias
as principais implicações referentes ao projeto e os direitos dos moradores, ajudando também
na construção de denúncias na mídia e espaço em rádios da Igreja católica (Rádio Excelsior).

Dentro do grupo de apoio ao grupo de amigos, ganha destaque porém o papel


desempenhado pelas advogadas, sendo duas voluntárias e duas vinculadas ao mandato do
117

deputado estadual Zilton Rocha (PT). Este próprio também se constituiu amigo destacado, o
Ministério Público do Estado da Bahia, o CEAS – Centro de Estudos e Ação Social e a UEFS
(Universidade Estadual de Feira de Santana) representada pela professora Lysiê Reis. Estas
duas últimas representações terão papel desempenhado durante todo processo de
acompanhamento e participação nas esferas públicas criadas com a 7ª Etapa, cuja descrição
do seu papel será mais detalhada na sequência deste estudo.

O papel das advogadas ganha destaque pois a mobilização da justiça como ator
mediador decisivo nessa luta e os resultados daí decorrentes, foram de suma importância para
dar legitimidade à ampliação da participação popular no projeto da 7ª Etapa, como atores de
direitos legitimamente reconhecidos. Esse trabalho jurídico se caracteriza por dois níveis de
atuação. Uma das advogadas, por ser uma antiga frequentadora da área, com amizade próxima
aos moradores, trazia mais um aporte de assistência na mobilização e organização dos
moradores, do que uma assessoria jurídica propriamente dita, tendo articulado a visita dos
moradores ao gabinete de Zilton Rocha. A segunda advogada, integrava à época a Comissão
de Justiça e Paz da Arquidiocese de Salvador – a CJP – e, mesmo que esta instituição não se
constituísse em grupo de apoio ou assessoria direta à AMACH, sua aproximação geográfica
com a “poligonal da 7ª Etapa” e o vínculo de trabalho e amizade desta advogada com o
deputado Zilton Rocha e sua equipe fizeram com ela se aproximasse desta mobilização dos
moradores.

O Centro de Estudos e Ação Social (CEAS) uma organização criada desde 1967, pela
Companhia de Jesus, e que busca contribuir para a superação da miséria e da exclusão social
iniciou sua aproximação com os moradores em 2002, tendo sua atenção chamada pelas
notícias vinculadas na imprensa. Dentro deste Centro analisava-se a importância em
acompanhar aqueles moradores por acreditar que, uma possível conquista de direito naquela
localidade da cidade, poderia influenciar outros embates por moradia no centro de Salvador.
O CEAS por ter acompanhado a AMACH de 2002 a 2008, conseguiu estar presente e
acompanhar diversos momentos de participação e construção das esferas de negociação e
diálogo, o que contribuiu muito para o conhecimento das informações aqui analisadas,
diretamente pela minha condição de assessor à época dessa organização. O trabalho de
assessoria realizado pelo CEAS consistiu inicialmente em acompanhar as reuniões da
AMACH, construir o diálogo com o Ministério Público, mobilizar e visitar os moradores,
incentivar a participação, interpretar e fazer os moradores entenderem os termos e
terminologias do projeto, construir denúncias e ações diretas, articular o grupo com as outras
118

experiências assessoradas pela Equipe Urbana desta instituição. Como resultado dessa ação de
aproximação e ampliação da luta através do trabalho CEAS cabe citar a Articulação de Luta
por Moradia (ALM) como grupo de apoio à AMACH.

Desta articulação participavam mais associações de oito bairros populares que estavam
sofrendo intervenções urbanísticas próximas ao que estava ocorrendo com a área da 7ª Etapa
de Revitalização do Pelourinho. Com o diferencial, de que essas oito outras experiências e
bairros não se constituírem local de patrimônio histórico, todas tinham a CONDER como
agente da intervenção, passavam por problemas de relocação e baixos valores do auxílio-
relocação, a falta de diálogo e de informações sobre os projetos de intervenção. Com a
participação na ALM, observou-se que um grupo que constituía a AMACH ampliou sua visão
sobre os problemas da cidade e das moradias populares, construíram manifestações e ações
em conjunto, se solidarizaram com as vivências de cada local, participaram de ações
específicas em outros bairros, criaram laços e relações e, por fim, construíram, em parceria
com o CEAS, um dossiê com a história desses bairros, tendo como foco a análise das
intervenções no momento, no documento “ Como Salvador se Faz: Dossiê da Lutas das
Comunidades Populares de Salvador-Bahia pelo Direito de Moradia” (2003).

Com o passar dos anos, entre 2003 a 2008, este grupo de apoio foi gradativamente se
afastando, permanecendo o CEAS e a UEFS, na pessoa da professora Lysiê Reis (a próxima a
ser apresentada como membro de apoio aos moradores). Foi um período de ampliação do
poder e mobilização dos moradores para fortalecer e legitimar a AMACH. Neste anos, o
CEAS conseguiu acompanhar e articular diversas ações com a AMACH , destacando-se entre
elas a construção da visita do relator da ONU pelo direito à habitação. A entidade
acompanhou diversas reuniões da AMACH com o Governo do Estado e Governo Federal,
assim como as audiências no Ministério Público. Também ai, com os encaminhamentos da
Ação Civil Pública, o CEAS passou a assessorar diretamente a AMACH no Comitê Gestor,
esfera pública de discussão dos pontos de impasse do projeto da 7ª Etapa.

A Universidade Estadual de Feira de Santana, representada pela professora Lysiê Reis,


teve contato mais direto com a AMACH a partir da sua presença em um seminário ocorrido
no CEAS, quando a presidente da AMACH estava compondo a mesa de debate. O ano
também era 2002 e, a partir daí, Reis, arquiteta e urbanista, mestre em conservação e restauro
e doutora em história trouxe suas contribuições teóricas para a construção do conhecimento
dos moradores quanto aos direitos urbanísticos e o valor patrimonial do local. Seu papel foi de
119

fundamental importância não só para a mobilização e formação política do grupo, como


também para aproximar este das discussões de caráter extremamente técnicas, quando
referentes à arquitetura, obras e engenharia. Ao mesmo tempo, sua vivência em outros
caminhos de participação popular nas políticas de intervenção, fez com que ela
desempenhasse também papel importante na organização e sensibilização da AMACH.

Os desafios e as ambiguidades da presença desses “amigos” no campo da participação


também eram latentes. O risco em se construir uma associação ou um grupo de reivindicação
que, mais do que estar representado por seus próprios moradores, estaria sendo representado
por “pessoas de fora”, estava presente. Os amigos, por alguns momentos, principalmente
quando do início da intervenção, eram a maioria em número nas reuniões da AMACH. Por
todo momento era necessário distinguir, por mais evidente que fossem as diferenças, os
moradores do grupo dos amigos, os parceiros em seu apoio. Este grupo não estaria lá, se as
casas soterrassem a família e seria muito difícil estar justamente no momento em que a polícia
chegasse para “negociar” uma relocação. Eles não passavam necessidades básicas, não
sofriam as mesmas pressões familiares. Para os moradores existia uma relação de
confiabilidade, talvez por conhecer o histórico destas instituições e pessoas, quanto de
desconfiança por tentarem por outro lado entender o que eles ganhavam com esta atuação.

Os que confiavam, o faziam diante da experiência vivida no dia a dia. Confiavam


quando percebiam “o poder” ou os conhecimentos que podiam ser “apropriados” por eles,
pelo movimento por moradia, pela AMACH. Confiavam por ter nestas pessoas e instituições
um apoio “possível”, uma alternativa do que estava sendo posto para eles. Mas também com o
risco de, como afirma Pedro Demo: “desmobilizar a comunidade no sentido de que lhe basta
confiar no tutor” (DEMO, 1988, p. 48). A desconfiança vinha, por outro lado, por tentar
entender qual seria o “real interesse destas pessoas aqui”. Desconfiança por entender que não
haveria possibilidade de ganho particular e de este fato mobilizar outros contra este desejo
subjetivo, seja o governo, a AMACH os grupos de apoio. Desconfiança, ainda, pela relação de
classe social, de raça, de gênero.

A esfera pública criada tinha então características de atores do meio popular,


acompanhados de um grupo de pessoas e instituições que refletiam e criavam estratégias de
ação. Do outro lado, estavam os representantes do Governo do Estado da Bahia com sua
política pública e seus técnicos para negociação e diálogo. A postura buscada para a AMACH
era de tornar-se protagonista, mas os riscos das falas serem feitas pelo grupo de amigos ou da
120

própria formação de um grupo de atores restrito, em detrimento de uma necessária


participação de todos envolvidos, tornara-se presente. O governo, conforme observado nos
diálogos futuros, aproveitou esta ambiguidade para reforçar e legitimar a AMACH, em
detrimento da construção de um diálogo mais plural com todos os moradores. A AMACH
passa a ser o canal privilegiado de diálogo, sendo esta uma vitória do grupo de moradores, ao
mesmo tempo em que acarretava atenção para a natureza e alcances das esferas mais amplas
de diálogo.

4.4 AS ESTRATÉGIAS PARA CONSTRUÇÃO DA PARTICIPAÇÃO NO


PROJETO DA 7ª ETAPA

Antes da análise mais específica dos diálogos e embates nas esferas públicas
constituídas com este projeto de Revitalização do Centro Histórico de Salvador, na sua 7ª
Etapa, é necessário, para o entendimento aqui proposto, apresentar as estratégias usadas pelos
moradores já mobilizados em conjunto com as entidades e profissionais “parceiros”, para o
fortalecimento, denuncia e pressão para constituição de um espaço, uma esfera, mais
democrática dentro da construção e execução da intervenção urbanística aqui estudada. Neste
sentido podemos dimensionar esta estratégia em dois caminhos, um de cunho mais jurídico,
com a construção de ações junto ao Ministério Público e outro na forma de organização de um
grupo representativo dos moradores que constituíram denuncias na mídia, ações diretas,
mobilização de rua, atos, articulações com outras experiências, construção de documentos
denuncias, constituição de uma movimentação política por participação, do que os moradores
chamavam “do nosso movimento por moradia”.

Conforme analisado anteriormente, existiam dificuldades percebidas em manter uma


movimentação e presença mais constante e, ainda, ampliar a possibilidade de construção de
um movimento e ações para além das questões imediatas da realidade da vida das pessoas
envolvidas. Como se organizar, ter forças para “lutar” e romper toda uma herança histórica e
estrutural que levou a que essas pessoas, as bases, o povo, os militantes... vivenciassem um
nível de carência e miséria elevados, caracterizada pela fome, desemprego, falta de teto, terra,
drogas, saúde, educação...? Dentro deste contexto, as presenças de pessoas, instituições ou
organizações externas foram fundamentais para a construção de uma possibilidade de fazer os
moradores serem ouvidos nas esferas públicas. Desta maneira, destaca-se a mobilização
inicial de uma das advogadas voluntárias, que no início mobilizou e organizou o grupo de
moradores, ajudando a constituir a AMACH e, em conjunto com a associação, produziram
121

uma série de denuncias na mídia, começando um processo de articulação com entidades


representativas, políticos, ONGs, profissionais e sindicatos.

“É inadmissível que se faça a recuperação da história sem que haja o


compromisso efetivo com o patrimônio humanístico”, disse ontem o bispo
auxiliar da Arquidiocese de Salvador, Dom Gílio Felício, ao receber na
Cúria uma comissão de moradores do Centro Histórico que foram lhe expor
o drama que estão vivendo, e pedir interferência da Igreja no processo
(ROCHA, 2001).

Este grupo organizado na AMACH passa a utilizar a imprensa como meio principal
para emanar sua voz, como relatado no capítulo anterior. Esta estratégia foi de fundamental
importância tanto pela disseminação do conhecimento e informação sobre a intervenção na 7ª
Etapa e a formulação dos sentimentos de injustiça sobre os moradores atingidos, como para a
sociedade. Valladares, ao analisar o poder da mídia na esfera pública de acordo com Hannah
Arendt observa como ali se efetivam a troca de idéias, que permitiam também ao conjunto da
sociedade participar (VALLADARES, 2009: 43). Durante todo processo de acompanhamento
das ações de implantação do projeto da 7ª Etapa, dentro do recorte temporal analisado, o uso
da imprensa como estratégia da AMACH em influenciar nos resultados do projeto foi
observado e o grupo parecia acreditar que as informações ou denuncias poderiam ali exercer
influência sobre a sociedade. Mas não só a mídia impressa foi utilizada, foram também
encaminhados diversos documentos e cartas denúncias por e-mail para as entidades da
sociedade civil, Defensoria Pública do Estado da Bahia, Ministério Público do Estado da
Bahia, ampliando o raio de ação dentro deste campo da denuncia e eco da voz dos moradores.

Esfera Pública é o espaço de debate entre população e as outras esferas da


sociedade como instituições públicas e privadas. Ela deixa de ser livre a
partir do século XVIII e passa a ter como mediador a mídia inicialmente,
jornais e rádio. Com o advento da Internet, a relação entre a mídia e a
política se estreita. A mídia é um dos meios que o cenário da representação
política usa para ganhar visibilidade (MARCONDES, 1994: 17 apud
VALLADARES, 2009: 42)

Paralelo e/ou somando-se a esta iniciativa de organização dos moradores, denúncia na


mídia e com o aumento do número dos “amigos da AMACH”, iniciam-se uma série de atos
públicos por parte dos moradores organizados, para continuar a estratégia de denuncia e
publicização dos fatos ocorridos com a 7ª Etapa. Com a contribuição do gabinete de Zilton
Rocha foram construídas peças com arte gráfica e charges que acabaram por criar uma “marca
institucional” da luta dos moradores. Assim foram feitas faixas, banners, camisas, folhetos, de
ampla utilização nos atos públicos com estas marcas estampadas. Entre a organização de
“feijoada da solidariedade”, participação em passeatas, em debates públicos, destaca-se o
122

“Dia de Resistência” ocorrido em dezembro de 2003, onde a AMACH, juntamente com a


Associação dos Moradores da Rocinha e Associação dos Moradores da Rua do Passo, duas
localidades do Centro Histórico que também passavam por problemas de negociação de suas
moradias com o Governo do Estado da Bahia, articulados, promoveram um encontro no
Viaduto da Sé, para denunciar para toda sociedade os atos cometidos pelo Governo do Estado
da Bahia. A ocasião foi importante, principalmente para articulação pontual destes grupos
organizados.

A produção dos folhetos, documentos públicos, textos, etc. foi amplamente usada
como estratégia de mobilização e “o grupo de amigos” aqui tinha o papel principal de ouvir as
questões trazidas pelos moradores nas reuniões, selecionar junto com eles as principais
situações que deveriam ser expostas no momento e produzir conteúdos de impacto para os
leitores que recebiam tais materiais nas ruas, das mãos dos moradores como, principalmente,
fazer mobilizar outros moradores que ainda não participavam da AMACH. Entre os diversos
folhetos produzidos, um deles se destacava não só pelo conteúdo, mas pelo resultado que ele
alcançou, tendo sido distribuído por todo Centro Histórico em um mês de campanha contra as
ações do Governo do Estado da Bahia. Após a AMACH ter conhecido os reais objetivos do
projeto de reforma da 7ª Etapa, algumas pessoas passavam a se aproximar desta associação e
após a leitura do conteúdo desses instrumentos as pessoas chegavam à reunião com um deles
em mãos, querendo saber dos seus direitos ou juntar-se ao grupo para pressionar o Governo
do Estado.

A verdade por trás das Tintas...

Pressão para que os moradores abandonem a área inclusive com ameaça de


despejo...

O que fazer?

Contra essa violência e pela moradia, estamos nos organizando. Esta


situação envolve todos os moradores e trabalhadores do Centro Histórico.
Una-se ao movimento dos Moradores e Amigos do Centro Histórico. As
reuniões acontecem no Sind (Rua da Independência, Nazaré) às quartas
feiras a partir das 19h.

Cuidado, o próximo rodo pode passar por sua casa; sua arma é a
mobilização!! (AMACH, [entre set. e out.] 2002)

Para manter os moradores mobilizados ou, pelo menos, informados, era necessária
uma regularidade das reuniões da AMACH, semanalmente, mesmo com presença restrita de
123

pessoas20. Para tanto foi utilizado, pelo um grupo representativo da AMACH e o grupo dos
amigos, o recurso alternativo de visitas nas casas para apresentar para as famílias que
permaneceram nas casas o que estava sendo colocado dentro do projeto da 7ª Etapa, quais as
estratégias pensadas para o embate com o governo e as possibilidades de ganhos e perdas. Um
trabalho constante, que teve uma ampla ação entre os anos de 2002 e 2003, onde,
principalmente no CEAS foi criada a meta de trazer para dentro da AMACH, pelo menos, um
representante de cada rua da “poligonal da 7ª Etapa”, para constituir o grupo constante da
AMACH, diretoria ou não. Também neste momento foram intensificados os encontros de
formação, com temas de relevância para os moradores, como o Estatuto da Cidade, a
educação patrimonial (coordenado pela professora de arquitetura da UEFS) ou a história de
outras experiências de lutas populares em Salvador. Ali se constatou os limites da
participação popular, determinados pela desconfiança, falta de tempo, descrença nas pessoas
envolvidas na AMACH ou grupo de amigos, “falta de vontade”, apatia, comodismo, falta de
alteridade, dificuldade em entender o que o grupo tentava passar de informação para elas.

A possibilidade de fazer conhecer outras experiências de lutas e embates nas esferas


de negociação criadas junto ao Governo do Estado da Bahia se relacionava com a realidade de
moradores de bairros populares que experimentavam as situações de constrangimentos devido
às intervenções urbanísticas, foi muito importante para o grupo da AMACH e para os
impactos da intervenção da 7ª Etapa na sociedade. Como estratégia de potencializar a
participação dos moradores na participação do projeto da 7ª Etapa foram criadas duas
estratégias no sentido de fortalecer e ampliar a compreensão e a natureza das reivindicações: a
Articulação de Luta por Moradia (ALM) e o encontro da AMACH com os moradores da
Rocinha e os moradores da rua do Passo (ambas no Centro Histórico). O CEAS teve
influência direta na constituição da primeira articulação, e das nove comunidades que
compunham tal articulação, cinco estavam sendo assessoradas pelo CEAS, naquele momento.
O que mais foi ressaltado nestes encontros ou articulações foi, conforme formulação de uma
moradora de Marechal Rondon, foi uma determinada “Democratização das dores”. Esta
moradora quando percebeu que as histórias eram muito próximas umas das outras afirmou
que se o governo não democratiza os projetos, eles iram democratizar suas dores ao ver as
casas abaixo. Conforme ela repetia em cada fala pública: “A dor de Marechal Rondon é a dor
da Gamboa, que é a dor do Centro Histórico...”.

20
Durante o ano de 2003, a maioria das reuniões da AMACH ocorriam em média com quatro moradoras
mais a presença do representante do CEAS e da representante da professora da UEFS.
124

De ambas as articulações surgiram dois dossiês que tiveram divulgação e publicização,


ampliando o conhecimento em várias escalas (mídia, academia, órgãos internacionais de
direitos humanos, como a ONU). Quando da entrega de parte do “Dossiê de Luta por
Moradia” produzido pela Articulação de Luta por Moradia (2003), restrito a intervenção da
7ª Etapa, a AMACH assim explicou aos órgãos responsáveis os seus objetivos em fazer
chegar às suas mãos, tal documento:

A meta principal é elucidar para os órgãos financiadores e apoiadores de tal


projeto sua responsabilidade (ou irresponsabilidade) na forma com que o
Governo do Estado da Bahia, na gestão do então governador Paulo Souto, e
tendo como entidade executora a CONDER (Companhia de
Desenvolvimento Urbano da Bahia) vem desenvolvendo esta Etapa de
Revitalização, pontuando, principalmente, as disparidades entre o projeto
inscrito e o projeto na prática (ARTICULAÇÃO DE LUTA POR
MORADIA, 2003: 01)

Por último, e com um grau de importância também fundamental, esteve a mediação e


o recurso à justiça a partir da colaboração das advogadas voluntárias, vinculadas ao mandado
do Zilton Rocha, junto ao Ministério Público do Estado da Bahia. Essas advogadas
encaminharam duas estratégias jurídicas. A primeira foi uma contestação da autorização
concedida pela Assembléia Legislativa ao Poder Executivo para que este doasse a CONDER
os imóveis da 7ª Etapa, para posterior alienação à iniciativa privada. Desta forma o PT
constituiu uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN), com pedido de medida cautelar
perante o Tribunal de Justiça da Bahia, em face da Lei Estadual nº 8.218, de 08 de abril de
2000 e Decreto nº 7.881, de 06 de dezembro de 2000, por inconstitucionalidade na
desapropriação indevida de imóveis onde residiam famílias para construção de um “espaço
urbano” (Partido dos Trabalhadores, ADIN, p. 02). A construção desta ADIN estava
estruturada com base em duas argumentações: a) que a retirada dos moradores ia de encontro
aos direitos humanos adquiridos na Constituição do Estado da Bahia, e b) que era dever do
Estado preservar o patrimônio material (as casas e sobrados históricos), assim também como
o patrimônio imaterial, dos valores culturais das pessoas, das duas tradições e vivências, os
“modos de criar”, as “formas de expressão” próprias ao local tombado (Art. 216 da
Constituição Federal).

A segunda estratégia no campo jurídico consistiu num diálogo com o Ministério


Público, na 2ª Promotoria de Justiça e Cidadania. Para esta estratégia foram realizadas uma
série de encontros entre o promotor responsável, o grupo de amigos e os moradores, sendo
também encaminhado para ele, um conjunto de documentação analítica e jurídica que
125

pudessem elucidar os fatos para a Promotoria. O Ministério Público passa então a ser forte
aliado da AMACH e, em consonância com as outras instituições e moradores que se faziam
presentes inicia uma série de exigências e questionamentos ao Governo do Estado da Bahia,
representado na situação pela CONDER. Foi só através das ações do Ministério Público que o
grupo da AMACH teve acesso aos escritos dos projetos da 7ª Etapa. Foi justamente o
conteúdo contraditório deste projeto que fez com o Ministério Público ajuizasse Ação Civil
Pública, com pedido de ordem de liminar contra o Governo do Estado da Bahia. Ambas as
estratégias adotadas no campo da justiça geraram fortaleceram a esfera pública de embate
cujas ações serão apresentadas abaixo. Ressalta-se aqui que essas advogadas voluntárias que
atuaram no início também acabaram por ter papel importante na mobilização dos moradores,
nas denuncia da situação na mídia, em ações diretas, manifestações públicas, etc., expressada
também na matéria “Pobres fora do pelô”:

Além da Ação Civil Pública ajuizada pelo MP, uma Ação de


Inconstitucionalidade (ADIN) ajuizada pelo PT, também questiona o decreto
estadual de desapropriação da 7ª Etapa. Foi arguido na ação que os
moradores compunham “patrimônio imaterial”, mas o Tribunal Pleno, em
novembro de 2003 e presidida pelo desembargador Eduardo Jorge
Magalhães, indeferiu a ADIN (CASTRO, 2004, p. 03)

4.5 A CONSTRUÇÃO DAS ESFERAS PÚBLICAS: A MEDIAÇÃO DO


CONFLITO PELA INSTÂNCIA JURÍDICA E O COMITÊ GESTOR

Constituída a AMACH e traçadas as estratégias e os caminhos da participação popular


no projeto de Revitalização da 7ª Etapa, contatou-se a formação de dois espaços privilegiados
de mediação dos atores na esfera pública, constituídos a partir da intervenção urbanística aqui
estudada: os embates jurídicos provocados pela Ação Civil Pública e a (ADIN) e a
constituição do Comitê Gestor como espaço regulatório dos interesses divergentes entre as
principais entidades envolvidas no projeto. Estes espaços, juntamente com a mídia, foram os
principais mediadores do conflito de interesses onde se efetivavam as ações e os discursos dos
atores presentes diante da iminência do projeto de intervenção urbana. Nesse processo foram
se revelando os diversos atores, as formas como construíram suas estratégias, seus próprios
discursos e as distinções efetivas do que Hannah Arendt denominou de a “condição humana”
(ARENDT, 1983: 191).

Nessas esferas observa-se, no entanto, certa distância do conceito fundamental de


Arendt sobre o intercambio de idéias entres os atores plurais em torno de um determinado
interesse pois, para a autora, esta esfera pública destaca a relevância do diálogo aberto,
126

expresso no conceito de vita activa, onde não haveria nenhum elemento mediador entre os
homens, a não ser a própria linguagem. Na experiência em análise foi percebido, em um
momento específico, quando da Construção da Ação Civil Pública e dos resultados dela, o
papel do Ministério Público como agente mediador do conflito entre os moradores e do
Governo do Estado da Bahia. Neste caso também cabe indagar até que ponto o discurso
jurídico criado estava próximo de uma construção popular, tamanha a abstração de alguns dos
argumentos, de difícil entendimento, como o do “patrimônio cultural imaterial” para justificar
a permanência e valorização das pessoas que ali estavam morando. Este distanciamento entre
o discurso jurídico e o agente direto fazia com que o “papel dos amigos” fosse importante não
só para ajudar na construção argumentativa, principalmente pelas advogadas na construção da
ADIN e do Ministério Público, na Ação Civil Pública, como para a tradução da ação em
linguagem popular, pelas principais lideranças do meio popular e entidades como CEAS e
UEFS, para que as pessoas pudessem entender o que estava sendo encaminhado nas esferas
jurídicas a seu favor.

As ações jurídicas foram construídas a partir da vivência das advogadas dentro da


AMACH, acompanhando as queixas e preocupações dos moradores. O Ministério Público,
por sua vez, após pedido de intervenção para que todos pudessem conhecer as base do projeto
inscrito e ter realizado algumas reuniões entre os moradores, representantes do Governo do
Estado da Bahia e o grupo de “amigos” conseguiu ter elementos para construção da sua ação,
contando com a colaboração direta das duas advogadas próximas a AMACH. Os rebates do
Governo e a arena ali criada foram extremamente reveladoras dos diversos interesses e
tensões subjacentes ao projeto. Neste processo, foram se explicitando julgamentos de valor
sobre o uso e o direito à vida dos moradores e com isto foi-se formando um sentido de justiça
diante da possibilidade da revitalização “da poligonal”. As palavras acabavam por dar a
verdadeira dimensão dos agentes ali constituídos por meio das ações discursivas:

a ação que ele inicia é humanamente revelada através de palavras; e, embora


o ato possa ser percebido em sua manifestação física bruta, sem
acompanhamento verbal, só se torna relevante através da palavra falada na
qual o autor se identifica, anuncia o que fez, faz e pretende fazer (ARENDT,
1988: 191).

4.5.1 A mediação jurídica, os embates e as revelações

O ano de 2002 dá início a uma verdadeira disputa judiciária. Primeiramente, serão


aqui expostas as representações advindas com a Ação Direta de Inconstitucionalidade com
Pedido de Medida Cautelar (doravante ADIN) que o Partido dos Trabalhadores (PT) moveu
127

perante o Tribunal de Justiça da Bahia. Nesta ação foi contestada a autorização concedida pela
Assembléia Legislativa do Estado da Bahia ao Poder Executivo para este doar à CONDER
imóveis localizados no Centro Histórico de Salvador. Para tanto a ADIN apresentou como
argumento a defesa da permanência dos moradores na área por conta do seu valor cultual que
também constitui o espaço do Centro Histórico, preservando assim o patrimônio material e
imaterial a um só tempo. Também esta Ação contestava que, se a “Pesquisa socioeconômica e
ambiental da 7ª Etapa”, organizada pela CONDER mencionava que esta intervenção deveria
dar ênfase a uma política de revitalização social, de educação patrimonial e de geração de
emprego e renda para a população pobre da área, visando sua fixação por constituir-se na
verdadeira identidade nacional e internacional do Pelourinho (CONDER, 2000: 03), os
moradores estariam justamente dentro do perfil colocado para a permanência. Desta forma o
PT contestava assim o decreto desapropria tório que atingia os moradores:

Entretanto, a promulgação da Lei 8.128-02, juntamente com a publicação


sucedânea de decretos desapropria tórios, veio a esclarecer que se tratou o
atual “plano” de intervenção de mero discurso demagógico do Governo da
Bahia para atrair recursos do programa Monumenta, do Banco
Interamericano de Desenvolvimento e do Ministério da Cultura. Com o
“glorioso” plano aprovado e já tendo recebido parte dos recursos, os órgãos
estatais, em especial a CONDER, deliberaram pela mesma prática viciada
das etapas anteriores... (PT, 2003: 05)

Ainda dentro dos argumentos e teses defendidos pela ADIN, ela argui o projeto quanto
a relocação dos moradores com base no “Mérito” da 7ª Etapa que fere o princípio da
dignidade da pessoa humana, tendo como fonte normativo-constitucional no Art. 2 da Lei
Fundamental da Bahia. Com base nesses argumentos estava um conceito patrimonial de que
para promover a proteção do patrimônio histórico cultural o Estado tem que conservar os
modos de criar, fazer e viver mantidos no âmbito territorial do Centro Histórico (PT, 2003:
17). Ainda somavam a construção dos argumentos a possibilidades concretas dos moradores
tirarem do local seu sustento, seja no biscate, nos comércios, na expressão cultural dos artistas
plásticos, capoeiristas, etc., revelando um modo peculiar de uso do espaço para sua
sobrevivência:

Tudo é relevante: desde o saber de um vendedor de fitas do Senhor do


Bonfim até o singelo sincretismo de idiomas cultuado pelos guias turísticos...
desde a forma como se vestem até a linguagem utilizada para a comunicação
com outras pessoas têm que ser preservadas, pois constituem patrimônio
cultural imaterial local (idem: 19)

Como Arendt argumenta que a esfera pública é o espaço que ilumina e revela o agente
diante do discurso e da ação (ARENDT, 1983: 188-199), a contestação da Ação Direta de
128

Inconstitucionalidade por parte da Procuradoria Geral do Estado acabou por expressar os


valores subjacentes ao projeto oficial na sua relação com os moradores locais, diante de uma
possibilidade de diálogo ou de mudança nos parâmetros de execução da 7ª Etapa (PGE,
2003). Já de início a referida Contestação questiona a procedência (ou não) de uma cultura
nascida exclusivamente das condições de pobreza e carência, e questiona:

existem, na área da 7ª Etapa, um modo de vida ou expressões típicas urbanas


específicas que merecessem o reconhecimento como cultura e, portanto,
significassem manifestação da dimensão humana do grupo social ali
habitante? (PGE, 2003: 15).

Os argumentos que a contraposição normativa sobre o valor dos moradores na ADIN e


sua contestação acabaram tendo uma repercussão direta na mobilização dos moradores que,
incrédulos com o que observavam dos diálogos ai presentes, passaram a reproduzir as falas
desta contestação em todo ato público que participavam, na mídia local e nos documentos
produzidos. Se a riqueza da vita activa, segundo Arendt, estava na possibilidade de
reconhecer os atores revelados, naquele momento, nem o grupo de “amigos”, nem os
moradores esperavam uma resposta institucional tão explícita e de cunho moral tão
estigmatizante por parte dos representantes do Governo do Estado da Bahia. Naquele
momento observou-se nos moradores um aumento do descrédito sobre as possibilidades da
negociação, a tristeza e a revolta pelas imagens reforçadas de marginais e então se buscou
novas estratégias para denunciar o governo, que assim revelava seu julgamento moral relativo
aos moradores:

Ao mesmo tempo, promove-se a reinserção social da população hoje


existente, cujo modo de vida certamente não é cultural e muito menos digno,
mediante a oferta de transferência para casas populares (...)

Os moradores não se vestem de forma típica, de baianas ou pais de santo.


Vestem-se com roupas que conseguem, a maior parte de andrajos.
Tampouco criam dialeto, mas falam simplesmente errado, arremedo de uma
língua que desconhecem

Existe tão somente um estilo de vida determinado pela pobreza, indigno de


ser considerado como expressão da dignidade da pessoa humana (...) Apenas
denota pobreza e marginalidade (...). Não há, na hipótese, cultura popular a
ser protegida! (ALM, 2003: 36 e 37 apud PT, 2003: 12, 17 e 18)

A mediação do Ministério Público acabou por mobilizar reuniões, realizar inquéritos


civis, Ação Civil Pública, observando um conjunto de denúncias e tentativas de diálogos
cujos resultados foram divulgados na mídia, comentados nas esquinas e bares da poligonal da
7ª Etapa e nas reuniões da AMACH. As análises desta relação que culminou na correlação de
129

forças existentes tiveram resultado no âmbito da participação popular e da efetivação do


Direito, e podem ser documentadas a partir de observações e participação direta, da memória
da participação, assim como das referências documentais existentes, atas de reuniões,
inquéritos, Ação Civil e Contestação do Estado da Bahia.

Segundo consta na análise documental e conforme memória dos relatos e


acompanhamento direto, na época, uma das primeiras iniciativas dos moradores com o
Ministério Público, veio em função do encaminhamento por parte de uma das advogadas
voluntárias, para que eles pudessem expor para o Centro de Apoio Operacional às
Promotorias de Justiça e Cidadania, a maneira como estavam sendo tratados pelo Governo do
Estado e quais as consequências da intervenção da 7ª Etapa em suas vidas. Conforme consta
nos Termos de Declarações, foram ouvidas dezesseis pessoas, entre os meses de maio e
agosto de 2002, e todas apresentavam queixas sobre os processos de relocação e negociação
com a CONDER (Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça e Cidadania, 2002).

Os relatos destas declarações denunciam a situação dos moradores diante do fato da


Intervenção Pública que “bateu em suas portas”, ao anunciar o início da reforma e fez emergir
reações desses moradores, suas preocupações e busca dos direitos.

...Informou da disposição do poder Público Estadual em promover a


desapropriação dos imóveis localizados na Rua do Bispo e adjacências...
sendo oferecido R$ 2.090,00 (dois mil e noventa reais) imóvel, ou mudança
para o “embrião” de casa no Projeto – “Viver Melhor” – Subúrbio de
Coutos, onde neste último se submeteria a um pagamento mensal de R$
51,00 (cinquenta e um reais) por cerca de 5 (cinco) anos... que tendo em
vista sua situação de aposentado recebendo 1 (um) salário e meio mensal de
onde provem seu sustento e de toda família obviamente não poderia aceitar a
segunda alternativa (mudança para Coutos) que a partir de então começou a
receber ameaça por parte de prepostos do Poder Público com objetivo de
desocupar o imóvel... (CENTRO DE APOIO Operacional às Promotorias de
Justiça da Cidadania, 7 de maio de 2002)

Em nenhuma destas declarações observa-se qualquer menção de que o Governo do


Estado tenha oferecido a opção de permanência no imóvel habitado, valor indenizatório
“justo” ou relocação para algum outro imóvel próximo, seja dentro do Centro Histórico, ou
não. Ainda segundo declarado por estas pessoas, a grande maioria habitava as casas por mais
de 25 anos e também nada havia sido comunicado pelo Governo sobre os direitos do
usucapião do Art. 10 do Estatuto da Cidade, ou no Art. 6 da Constituição Estadual que rege
sobre o direito a moradia. O Ministério Público no momento sentiu a necessidade de ouvir o
grupo de moradores que se organizava no momento na AMACH, juntamente com instituições
130

e profissionais próximos a eles, colocando-os diante dos advogados e técnicos do Governo do


Estado da Bahia, representado pela CONDER, para que as situações assim pudessem ser
melhor explicitadas. Estava ali constituído um espaço de mediação no âmbito da justiça pela
ação do Ministério Público.

Em setembro de 2002 ocorreu uma reunião, marcada como a primeira, onde as partes
se encontravam diante do Ministério Público. Naquele momento a AMACH estava
representada pela sua presidenta, e o grupo de “ amigos” como o CEAS, as três advogadas, o
Projeto Força Feminina, a Arquidiocese de Salvador (ASA) e, do lado da CONDER pelo seu
advogado e uma assistente social. Durante toda reunião foi exposta a situação das
negociações, da intervenção e a realidade dos moradores, por parte da AMACH e do grupo de
amigos. Pelo lado da CONDER, o advogado sustentava os termos do decreto desapropriatório
e as propostas oferecidas aos moradores. Ao final deste encontro, foi afirmado pelo advogado
da CONDER verificar a possibilidade da participação de representante da AMACH nas
negociações com os moradores, acompanhado de um advogado vinculado a esta associação.
O que poderia ser analisado como uma vitória pontual, tamanha a preocupação naquele
momento sobre as formas como os moradores estavam sendo submetidos à negociação, foi
visto com desconfiança pelo grupo da AMACH e, ao final da reunião, já no lado de fora da
sala, todos analisavam que o advogado da CONDER parecia, de fato, não estar atento para a
situação de embates criada pois ele acabara de abrir uma possibilidade de diálogo, que não
estava sendo cogitada nem pelos moradores nem pelos grupos que os acompanhavam, para o
momento.

A avaliação acabou por se confirmar e, na segunda reunião marcada entre as partes, a


CONDER apresentou-se com outro advogado. Com uma postura extremamente autocrática,
este falava alto, gesticulava e afirmou que a “CONDER não iria fazer qualquer concessão e
removeria proprietários e moradores da área da 7ª Etapa de Centro Histórico de Salvador”
(Ministério Público da Bahia, Ação Civil Pública, 2002: 09). Foi o bastante para que o
Promotor de Justiça, diante de todos na reunião, com um forte tapa na mesa de negociação,
falasse em mais alto tom, ainda: “vamos denunciar, nos órgãos internacionais, e vamos abrir
uma Ação Civil Pública contra a CONDER de que o Governo do Estado da Bahia está
promovendo uma assepsia social no Centro Histórico de Salvador”. O tom da voz, sua postura
assertiva foram tão fortes que todos calaram por um segundo. Nos olhos dos moradores e
grupo de amigos estava a imagem de que “agora estamos sendo ouvidos” e, ao mesmo tempo,
a reação física do advogado da CONDER parecia denotar uma preocupação com o que viria
131

pela frente; ele afrouxou a gravata, respirou e saiu da reunião para preparar o Governo para a
situação de confronto que se formara e suas repercussões.

O Ministério Público então ajuizou uma Ação Civil Pública21 com pedido de ordem
liminar contra o Governo do Estado e a CONDER, tendo como objetivo principal conter o
processo de expulsão dos moradores. A mídia imediatamente divulgava esses resultados e
tornava ainda mais público a trama e as questões inerentes a ela, naquele momento, junto à
opinião pública. O jornal A Tarde publicou matéria de uma página inteira com o título
“CONDER acusada de fazer assepsia social”, em 21 de novembro de 2002, onde anunciava
que o Ministério Público, na construção da sua Ação Civil entendia que o Governo da Bahia
estava promovendo uma “assepsia social”, ou seja “[...] uma espécie de faxina em que a
pobreza do Pelourinho é a sujeira” (A TARDE, 2004, p.3).

Reis (2004) analisando esses embates, mostra que o Promotor de Justiça e Cidadania
do Ministério declarou ser a primeira vez que se deparava com desapropriações realizadas
com pessoas dentro dos imóveis e com base na reportagem acima, apresenta o
questionamento do promotor: “[...] por que não deixam os moradores no local e cobram deles
também uma quantia, como fazem em Coutos?” (A TARDE, 2004: 7, apud REIS, 2004: 05).
O Ministério Público considerava que a desapropriação de imóveis para destinação a outra
pessoa violava as regras da própria lei de desapropriação, agravada no caso de que dentro do
projeto encaminhado aos órgãos financiadores, constava que estas seriam destinadas a uma
população de baixa renda. Assim a Ação Civil Pública questionava as diferenças entre o
projeto inscrito no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e sua execução na
prática, o que acabou por interromper a execução das obras até que as questões fossem
apuradas e esclarecidas. Em duas matérias do jornal A Tarde os objetivos desta ação foram
esclarecidos à sociedade:

...O pedido principal da ação é o cancelamento definitivo das ações de


retirada de moradores, dando-lhes a oportunidade de se manifestar,
exprimindo se querem sair ou permanecer na área. Caso queiram ficar, que
seja providenciada a restauração dos imóveis, recomenda o Ministério
Público... (WEINSTEIN, 2002: 3).

Quanto à retenção da verba assim foi justificada na imprensa na matéria “Verdades e


mentiras do novo pelô” :

21
Ação de número 38.148-7/2002.
132

Enquanto a discussão tramita no Poder Judiciário. A verba está retida para


reforma dos casarões na sede do Monumenta BID, em Brasília... O dinheiro
só é liberado após a publicação da decisão dizendo se a CONDER está
faxinando a pobreza, como defendo o MP... O fato é que, depois que uma
parte da verba chegou, algumas promessas viraram pó (A Tarde, 2004, p. 03)

Dentro da Ação, diversos trechos da Pesquisa Socioeconômica e Ambiental da 7ª


Etapa, elaborada pela própria CONDER, indicavam para a promotoria a necessidade de
esclarecer porque os moradores estavam sendo relocados da área. Para melhor análise deste
momento da Ação Civil, segue abaixo parte da Pesquisa acima, citada no corpo da Ação
seguida pela conclusão da promotoria:

Neste processo de intervenção do Estado visando a revitalização desta etapa


do Pelourinho, não deve ser deixado de lado o elemento humano que ali vive
e trabalha, exercendo as mais diversas atividades, como artistas, artesãos,
grupos afros, capoeiristas, etc., que caracteriza a área... A Etapa precisa de
mudanças que tornem mais digna e sustentável a vida de seus habitantes,
permitindo que eles participem dos benefícios dos impactos positivos
(CONDER, 2000 apud Ministério Público, Ação Civil , p. 04).

Diante desta argumentação da CONDER, o Ministério Público pontua:

Contudo, no ano de 2001, a CONDER já estava pressionando os moradores


de diversos imóveis da área da 7ª Etapa do Centro Histórico de Salvador
para que os desocupassem... vale ressaltar que os réus jamais informaram
detalhes do Programa Monumenta aos proprietários e moradores da área...
preferem, pagando mísero valor, jogar na rua da amargura milhares de
famílias com as suas crianças, sem a mínima preocupação com o seu destino
(Ministério Público, 2002, p. 05)

Não quer a CONDER que a população humilde, que sempre morou no


Centro Histórico de Salvador, ali permaneça, e está promovendo uma
verdadeira assepsia social (Idem, p. 11)

Os moradores e o próprio Ministério Público questionavam outro fato já confirmado


pela CONDER e Governo do Estado, a transformação das casas em apartamentos e a
destinação destes para funcionários públicos que recebem de três a seis salários mínimos, a
serem beneficiados com o Programa de Arrendamento Residencial (PAR) da Caixa
Econômica Federal. Quando perguntado na entrevista sobre a posição do BID quanto ao
envolvimento da Caixa Econômica no projeto da 7ª Etapa o então presidente da CONDER
assim respondeu:

O Presidente ..., confirmou que o Monumenta-BID não sabe sobre o


envolvimento da Caixa Econômica Federal por meio do PAR... Ele informou
que os apartamentos serem priorizados para funcionários públicos era “uma
hipótese” (explicitada como real em alguns documentos). (WEISTEIN,
2002, p. 03)
133

Outro argumento da Ação Civil, recuperando textos da pesquisa elaborada pela


CONDER, esta agora próxima da levantada pela ADIN, sustentava a importância em
valorizar o patrimônio imaterial presente. Como, segundo o Ministério Público, citando parte
da pesquisa, “... a área em questão manteve sua identidade como centro de referencia cultural
e de cidadania... e se estruturou com base no movimento cultural negro. Há quem o considere
o núcleo simbólico da identidade da cidade” (CONDER, 2000 apud Ministério Público, 2002,
p. 15), para a promotoria “ao promover a assepsia social, removendo a população do Centro
Histórico de Salvador, da área da 7ª Etapa, os Réus estarão cometendo o maior atentado
contra o patrimônio cultural baiano” (idem, p.16)

Para o Ministério Público, o próprio Decreto nº 8.170, de 25 de fevereiro de 2002, do


Governo do Estado, que declarou de utilidade pública os imóveis da “poligonal da 7ª Etapa,
era inconstitucional. A argumentação do MP considerava “inadmissível que os proprietários
residentes na área tenham seus imóveis desapropriados para que outras pessoas possam morar,
pois a desapropriação que justificaria reforma do bem desapropriado, segundo consta na Ação
Civil, seria para urbanização (Art. 5, “i”, do Decreto-lei nº 3.365-41), mesmo assim sem a
intenção de assepsia social, “pois a doutrina e a jurisprudência são unânimes em defender a
prioridade para os antigos moradores, uma vez que não se vise a especulação imobiliária”
(idem, 20)

Por fim, a Ação colocava a necessidade de “estancar, urgentemente, a expulsão dos


proprietários dos imóveis”. Para tanto, indica doze questões, das quais, dentre eles destacam-
se:

- Seja determinado aos Réus a imediata suspensão de toda e qualquer


atividade que implique na remoção ou expulsão...

- Seja determinado aos Réus a transferência temporária dos proprietários e


dos moradores dos imóveis que estejam em situação de risco...

- ...garantia de permanência dos proprietários e moradores que assim


desejarem...

- A condenação dos Réus na obrigação de fazer consistente na garantia de


presença de advogados na negociação dos Réus com os proprietários e
moradores...

- Condenação dos réus no pagamento de danos matérias e morais causados


aos proprietários e moradores da área (idem, p. 24-27)
134

Da mesma forma como ocorreu na ADIN, o Estado da Bahia manifesta-se dentro dos
procedimentos jurídicos, e oferece, “tempestivamente”, Contestação à Ação Civil Pública
(PGE, 2003). Nesta Contestação, o Estado responde a todas as questões levantadas na Ação
Civil Publica e entre estas argumenta que a situação a que foi relegada o Centro Histórico tem
ampla responsabilidade dos moradores locais que passaram a significar local de pobreza e
periculosidade (PGE, 2003, p. 03). Desta maneira a Contestação contra-argumenta o
abandono dos imóveis, resultante da ação e impossibilidade dos seus moradores manterem
eles de pé e a situação desumana em que moravam as famílias, argumentos que justificavam a
intervenção do Governo e a relocação dos moradores do local:

A situação é tão deprimente que basta uma mera visita a área para perceber a
veracidade desses dados (referindo aos dados de insalubridade das moradias,
grifo meu)... Diante da escassez de verba pública..., logrou o Estado da Bahia
incluir a restauração e revitalização da 7ª Etapa no projeto Monumenta...,
importando em afluxo de nova clientela e criando expectativa de
comerciantes e agentes imobiliários... (PGE, 2003: 05 e 06)

Nas palavras do governo do Estado nesta Contestação, a remoção seria uma ação
legítima para com estes moradores. Sem reconhecer na área e nos moradores qualquer tipo de
cultura imaterial a ser preservada, considerando que as pessoas que ali habitavam apenas
exibiam a face “ da pobreza e miséria” e que os símbolos culturais a serem valorados
apareciam nas indumentárias (roupas, culinárias, dialetos, formas de expressão) do que nas
próprias pessoas propriamente ditas, os termos da Contestação do governo à ADIN, reforça
mais uma vez uma visão moral desqualificadora desses moradores da perspectiva do seu valor
cultural. Naquele momento, diante da representação social que os técnicos do governo e o
próprio Estado explicitaram foi importante entender a reação dos moradores sobre a situação.
Eles se reconheciam enquanto pessoas no limiar da pobreza, sabiam que existiam muitas
famílias que viviam do tráfico e da prostituição, mas que elas não eram a maioria e que a
cultura, ora colocada nestas peças jurídicas como patrimônio imaterial, era, para eles, a sua
forma de viver no e do local de moradia. Muitos deles eram catadores de latinha para
reciclagem, mestres de capoeira, eletricistas, mães de santo, cabeleireiros, baianas de acarajé,
comerciantes, artistas plásticas, cozinheiras, poetas, costureiras, desempregados, guardadores
de carro, músicos.

Diante da mobilização e organização para que os moradores permanecessem morando


no Centro Histórico, um local cuja simbologia remetia ao valor patrimonial cultural, esses
mesmos moradores acabavam por se apropriar do discurso oficial para a área, transpondo para
135

suas pessoas os valores culturais a serem preservados in loco. Naquele momento, muitos deles
afirmavam que eles seriam o patrimônio a ser preservados, chegando a ponto de um dos
moradores, com fortes problemas com o uso do crack, colocar que mais do que os casarões,
eles como pessoas é que deveriam ser revitalizados22. Mas, mesmo diante deles, este
reconhecimento como patrimônio cultural parecia ambígua e tensa, devido às contradições
sociais vividas no dia a dia, seja em viver neste bairro, no observar a vida do vizinho, nas
ruas, ou na própria organização da AMACH. Porém, por mais contraditória que pudesse ser a
realidade das famílias e vidas ali expostas em relação ao valor simbólico de patrimônio
cultural imaterial, nada poderia ser mais absurdo para elas, o grupo de amigos e por parte dos
formadores de opinião (pesquisadores, jornalistas, Igrejas, sociedade civil) que a
argumentação usada pelo governo no texto da Contestação, de que o modo de viver daquelas
pessoas não seria “cultura” a ser preservada:

O que sobra, mais uma vez com devido respeito, é uma “cultura”, em
verdade um “modo de viver” produzido pelas condições de pobreza, de
dominação socioeconômica, de exclusão.... Realmente queremos manter
convenientemente, essas pessoas como personagens de Jorge Amado?
Nossos “sacis” (meninos viciados em crack) não seriam a versão moderna
dos “capitães de areia”? Nossas meninas, as novas velhas Tietas, atrações do
turismo sexual? Que espetáculo a vida entre brigas com peixeiras modernas,
os lavadores de carros protegendo nossos bens, como um carnaval sem fim a
que assistimos de arquibancada!!! (PGE, 2003: 11)

Nesses termos o governo, não reconhece o modus vivendi dos moradores da 7ª Etapa
do Centro Histórico de Salvador como “cultura popular típica”. O anúncio da intervenção da
7ª Etapa e toda esfera de debate criada, que possibilitou a explicitação e confronto de projetos
distinto, de pensar e agir político explicitava ali as marcas das ambiguidades, contradições,
conceitos e julgamentos morais sobre os moradores como vítimas de si mesmos. As palavras,
definitivamente aqui especificadas dentro da esfera pública, apresentam não só a dimensão da
comunicação (conflitiva), mas revelam também os agentes nas relações de poder, como
afirma Celso Lazer, na introdução da obra A Condição Humana (ARENDT, 1988: XI). E,
explicitando a relação efetiva de força na esfera pública gerada para a discussão da
intervenção da 7ª Etapa, assim finaliza o documento contestatório do Governo do Estado da
Bahia, sobre a preservação do valor imaterial a ser preservado: “Não há, na hipótese, cultura
popular a ser protegida!” (PGE, 2003: 12)

22
Sugestão da construção de um centro de tratamento para dependentes químicos feita durante reunião
com o CEAS para construção da pauta de reivindicações.
136

A rigor, a esfera dos negócios humanos consiste na teia de relações humanas


que existe onde quer que os homens vivam juntos. A revelação da identidade
através do discurso e o estabelecimento de um novo início através da ação
incidem sempre sobre uma teia já existente, e nela imprimem suas
consequências imediatas... é em virtude desta teia preexistente de relações
humanas, com inúmeras vontades e intenções conflitantes, que a ação quase
sempre deixa de atingir seu objetivo; mas é também graças a esse meio, onde
somente a ação é real, que ela produz histórias, intencionalmente ou não...
(ARENDT, 1988: 197)

As palavras e intenções reveladas no embate jurídico (ADIN do Ministério Público e


Contestação à ação pelo Estado) ganham publicidade dentro da mídia impressa e,
principalmente, na voz dos moradores que, tendo conhecimento das avaliações morais
expressas pelo governo no seu documento da Contestação passam a denunciá-las em toda
reunião da AMACH, nos debates públicos em que eram convidados, nas entrevistas com
pesquisadores que já começavam a intensificar suas visitas em campo, nas mobilizações e
visitas as casas das famílias atingidas.

Entre os anos de 2002 e 2003, a AMACH perde número de participantes na suas


reuniões, mas, contraditoriamente, parecia ganhar politicamente em termos do objetivo de
publicização dos debates e negociações. Com os recursos travados pela negociação jurídica da
Ação Civil Pública a CONDER não parou as pressões para a retirada das famílias, mas
diminuiu bastante em intensidade. O grupo de amigos, agora restrito ao CEAS, à UEFS e a
uma das advogadas, passou a mobilizar os moradores para fortalecimento da AMACH.
Enquanto tramitava a Ação Civil, outras ações foram encaminhadas para efetivação da
participação popular no projeto da 7ª Etapa.

4.5.2 A expansão do conflito: relatos, fatos, revelações, seminários, articulação e reuniões

“não sou caranguejo para andar pra trás: o povo do


Centro Histórico não quer sair”

Durante o ano de 2003 e 2004 os moradores da 7ª Etapa envolvidos diretamente na


organização da AMACH e buscando participar no projeto de intervenção, tiveram uma série
de ações diretas, manifestações e estratégias utilizadas para fortalecer o que eles
denominavam de movimento. Pontuo aqui que estes dois anos foram de fundamental
importância para a publicização das denúncias e fortalecimento das estratégias de pressão
junto aos órgãos públicos de forma a fazer cumprir os termos compostos nos documentos
137

públicos enviados aos órgãos financiadores, principalmente na pesquisa já referida


anteriormente. A AMACH, naquele momento com poucos moradores envolvidos, cerca de
quatro mulheres e mais o grupo de amigos, este, da mesma forma, restrito ao CEAS, à
representação da professora Lysiê Reis da UEFS e uma das advogadas, sabiam da importância
em mobilizar os moradores para a efetivação do que o grupo entendia como seu direito,
constituído, inclusive, nas ações jurídicas em defesa dos moradores.

É importante destacar aqui algumas das estratégias lançadas e suas consequências para
a esfera pública que envolvia o projeto urbano aqui estudado. Com a resistência de alguns
moradores a saírem das casas, a mídia foi sendo cada vez mais mobilizada pelo grupo e a 7ª
Etapa foi se transformando em pauta constante dos jornais locais. Com o título “Moradores
resistem a deixar os casarões no Centro Histórico”, o jornal A Tarde destacava uma frase
significativa emitida por um dos moradores: “não sou caranguejo pra voltar pra trás”,
referindo-se à sua decisão de permanecer em sua casa e não voltar para seu interior de origem
após estar vivendo por mais de 20 anos na casa onde habitava. (A Tarde, 2003: 06). Enquanto
a mídia ia divulgando informações, e dando voz aos atores que constituíam o embate, os
moradores passavam a articular ações de maneira a fortalecer a AMACH.

Cabe destacar aqui, inicialmente, a formação da Articulação de Luta por Moradia.


Desta forma o Centro Histórico (AMACH), juntamente com os moradores e associações do
Alto de Ondina, Marechal Rondon, Gamboa de Baixo, Pau da Lima, São Marcos, Cabrito e
Sussuarana, tiveram uma série de encontros e formações conjuntas para que eles pudessem
estabelecer um diálogo entre eles. Como afrimado anteriormente a primeira constatação de
todo grupo era de que eles passavam por situações semelhantes de buscar o direito à moradia
ameaçado. Porém, o mais singular ainda era que a CONDER aparecia para eles como o órgão
que mais ameaçava aquelas comunidades. A primeira ação do grupo, então, consistiu numa
manifestação na frente deste órgão, com cerca de 600 pessoas, para entrega de uma pauta
conjunta de reivindicação. Nesta manifestação os representantes fizeram conhecer suas
intenções em carta aberta para toda sociedade, conclamando-a a se aliarem às suas lutas.

Como resultado concreto desta articulação, foi elaborado um “Dossiê de Luta por
Moradia”, um documento com a história de vida e luta dos bairros envolvidos. Na parte que
trata especificamente sobre o Centro Histórico, o documento lista a construção das
reivindicações dos moradores. Para a redação deste documento o CEAS realizou uma reunião
com cerca de 15 moradores, em um dia de muita chuva em um dos casarões em ruína e,
138

também, habitado, e nesta reunião foram tirados nove pontos que sintetizavam as principais
demandas dos moradores da 7ª Etapa. O destaque desses pontos é que foi justamente a partir
deles que o Ministério Público posteriormente acabou por elencar algumas das cláusulas do
TAC (Termo de Ajustamento de Conduta), quando da vitória da Ação Civil Pública para o
Governo do Estado da Bahia. Desta forma, o dossiê acabou se constituindo um instrumento de
pressão e sensibilização da sociedade para com as demandas e a realidade de vida dos
moradores, posterior à intervenção da 7ª Etapa.

Um segundo momento, a ser destacado de expansão da luta, agora no ano 2004,


acontece sob a influência de um “outro amigo”, o deputado Zilton Rocha (PT). Aqui é
necessário informar que o PT acabara de vencer as eleições para presidente da República e
Lula estava no primeiro semestre do seu mandato como Presidente, contexto que aparecia
como favorável para a AMACH construir um diálogo com instâncias do Governo Federal
através Ministério da Cultura, via Zilton.

Assim, o Deputado Zilton Rocha provocou o Ministério da Cultura a se fazer presente


em uma Audiência Pública que seria organizada pelos moradores do Centro Histórico,
contando com a presença do Ministério Público e do Governo do Estado da Bahia.

A partir dessa iniciativa foi organizado um seminário “Que Pelourinho queremos” e o


CEAS foi contatado naquela ocasião pelos assessores de Zilton para ajudar na organização da
audiência. Ao todo foram seis reuniões envolvendo a AMACH, os moradores da Rocinha
(uma área também de forte influencia popular no centro Histórico) e os moradores do casarão
da Rua do Passo, nº. 48, onde famílias resistiam desde a primeira etapa de revitalização. Nas
reuniões foram analisadas as diferentes situações entre os grupos, as possibilidades e limites
das ações conjuntas, as dificuldades de todos entenderem o que é uma audiência pública e
como pressionar o Governo Federal (PT) e estadual neste momento estratégico.

As diferenças encontradas estavam menos no perfil econômico dos moradores e mais


na forma política de organização, onde a Rocinha e os moradores da Rua do Passo (casa 48)
primam pela articulação política via arte-cultura para também justificar a permanência (como
moradores e trabalhadores). Isto, de certa forma, ia de encontro com a tentativa de
organização popular dos moradores que estavam à frente da luta por moradia na área da 7ª
Etapa de Revitalização, os quais criticavam desde a linguagem até o tempo para participar em
139

reuniões demoradas pelas elucubrações filosóficas e espirituais das lideranças, baseadas no


rastafarianismo23, que acabavam fazer alongar demasiadamente as reuniões.

Com a aproximação da audiência, o lado prático teve que se sobrepor às divergências


particulares. Montar a formação da mesa foi o primeiro passo, e a voz única era de que
nenhum político, além do mediador (Zilton Rocha) terá voz ao microfone, "eles já falam
muito", argumentou um morador do casarão de número 48. O professor Gey Espinheira foi o
primeiro a ser lembrado por todos, pelos seus conhecimentos teóricos e práticos sobre a área e
suas histórias. O Promotor de Justiça, Lidivaldo Brito, responsável pela Ação Civil Pública
(nº 38.148-7/2002) contra a CONDER, foi o segundo nome indicado. Também era importante
ter os dois governos, estadual e federal, na mesa, tanto para ouvir, como para dizer qual o
papel deles neste histórico da expulsão dos moradores. Porém, o fator primordial nesta
composição era garantir a representação de cada um dos três focos de resistência, com suas
falas bem organizadas, conjuntamente.

A audiência, no auditório da antiga Escola de Medicina, localizada no Terreiro de


Jesus no Centro Histórico, elucida as diferenças e o poder da palavra das vozes dos diferentes
componentes desta esfera publica. Aqui se destaca duas falas, uma de um morador do prédio
nº 48 da Rua do Passo e outra do representando Ministério da Cultura que esclarecem a
riqueza do momento, das denuncias e dos resultados alcançados a partir das pressões dos
moradores:

O Centro Histórico de Salvador, patrimônio da humanidade vem, através de


sua própria história, mostrar que "humanidade" acaba por passar longe
deste Sítio... nº 48 Vivemos da arte... Somos artesões, quatro bandas de
reggae que atuam como instrumento de luta-resistência, artistas plásticos e
mestre de capoeira angola, que durante estes 22 anos de morada mesclaram
seus trabalhos artísticos com a manutenção do prédio... uma casa que era
abandonada, sem banheiro, sem água, luz, com escadas caídas, paredes
rachando... Foram muitos anos de mutirões e hoje cada família possui seu
banheiro, existe uma canalização de água, rede elétrica, escoramentos
diversos, a escada está em ordem e o ambiente é limpo e arejado. Sem contar
que, pelo dom artístico, todo o casarão é enfeitado com obras de arte... O 48
quer o que lhes é de direito: o usucapião e a reforma do prédio, ainda sob o
risco de desabamento (MORADOR do 48, maio de 2004)

O representante do Ministério da Cultura (Monumenta, BID), órgão repassador dos


recursos para o projeto da 7ª Etapa apresentou as metas do Monumenta (construção de uma

23
O rastafarianismo, também conhecido como movimento rastafari ou Rastafar-I (rastafarai) é um
movimento religioso que proclama Hailé Selassié I, imperador da Etiópia, como a representação terrena de Jah
(Deus). (fonte: pt.wikpedia.org-movimento_rastaf%C3%A1ri)
140

nova forma de ocupação dos centros históricos, como moradia das “classes baixas”), deu
sequência a audiência e disse conhecer o perfil dos moradores atuais da área, porém ponderou
que pela linha do financiamento da Caixa Econômica Federal – PAR, só quem ganha de três a
seis salários mínimos teria condições de ser beneficiado pelo projeto, fato que “não contempla
a maioria dos moradores do local” , reconheceu. Mas, segundo ele, como os moradores se
organizaram e questionaram todo o processo, o Governo Federal está estudando o caso e
analisando outras linhas de financiamento. E concluiu que o projeto da 7ª Etapa está com a
tramitação parada e esta só continuará com a aprovação dos moradores locais organizados,
“foi uma vitória conquistada por vocês”. Ali ele anunciava o que todos queriam ouvir, que a
Ação Civil Pública realmente tinha conseguido parar a transferência dos recursos e que,
assim, o Ministério da Cultura e o Governo do Estado da Bahia se viam obrigados a
dialogarem com os moradores afetados pela intervenção da 7ª Etapa. Assim, colocava-se
outra forma de presença dos moradores na sua relação com os demais atores. Ao final da
audiência houve um convite para que o MinC fosse até a área para visitar as família e realizar
uma reunião com os moradores da 7ª Etapa, e o pedido foi acatado.

Uma semana depois da audiência, o CEAS recebeu um telefonema de uma assessora


do Ministério da Cultura, requerendo um contato com a “comunidade do Centro Histórico”
representada pela AMACH. Uma questão porém, que angustiava as pessoas dentro da
AMACH, parecia cada vez mais perto: as ambiguidades internas à comunidade e o possível
envolvimento de alguns moradores que compunham o movimento de resistência por moradia
no Centro Histórico com delitos, fator que poderia ser utilizado pelo Poder Público local no
momento ideal. Este momento parecia ter chegado. Com a visibilidade alcançada pela
AMACH, sendo reconhecida pelo Governo Federal e Ministério Público, a ameaça à
execução da 7ª Etapa estava posta. Mesmo sabendo que a maioria das pessoas era
trabalhadores e trabalhadoras, era evidente que o Governo ao se confrontar com os pleitos iria
intensificar sua atenção quanto às pessoas envolvidas com drogas, roubos, ou prostituição,
uma realidade presente em qualquer bairro popular, ainda mais em locais centrais das grandes
cidades, e, assim, tentar descaracterizar todos os moradores, a partir dos poucos exemplos a
serem detidos.

Apesar das condições de vida dos moradores locais caracterizar-se pela falta de opção
de sobrevivência, e levá-los a envolver-se com atividades ilícitas, a questão não é tão simples
assim. O tráfico e uso de crack, ao mesmo tempo em que poderia parecer naturalizado no
local, causava revolta dos próprios moradores da área (às vezes até dos próprios usuários e
141

traficantes), muitas vezes só percebido por longo tempo de convívio e certo vinculo de
confiança estabelecido. Muitos se revoltam quando escutam de alguns a justificativa de que
“pela falta de oportunidade tenho que traficar”. Outros se dizem presos a esta vida e a essas
atividades em função da necessidade e da possibilidade de um ganho para o sustento de toda a
família. Acreditar ou não, e compreender realmente se passa é um desafio a ser analisado
todos os dias nesta área de trabalho afetada pelas mazelas urbanas. Conviver com ratos, casas
rachando, fome, drogas, violência de todos os níveis e tipos, doenças, ameaças de expulsão,
sem espaço público de lazer, quadras de esporte (nem nas ruas há espaço pra um “golzinho”),
educação de qualidade, emprego, renda, lazer, parecia fazer destes moradores uma tragédia
em si. Mas os diversos outros exemplos de pessoas trabalhadoras faziam o contraponto das
condições de reprodução desses bairros relegado e não reconhecido.

Na terça, 01 de junho 2004, houve um encontro na casa de um dos moradores e foi


decidido que a reunião com o Ministério da Cultura não seria na CONDER e sim nesta
mesma casa. O relato abaixo integra um relatório “Agora sim o Pelourinho pirou de vez!”
elaborado pelo CEAS sobre esta reunião, onde descreve e caracteriza o cenário deste
primeiro encontro com o MinC na área:

Chego na área no horário marcado com uma advogada voluntária que


acompanha a luta destes moradores do Centro Histórico, e encontramos três
dos representantes locais nos aguardando. Perguntei se estavam preparados
pra luta, uma delas disse: mais ou menos e apontou pra casa de outra
moradora toda fechada, janelas e grades. E veio a informação bombástica:
"A casa caiu pai, a polícia Civil tá na casa desde as 8h. da manhã e acharam
uma quantidade grande de droga (crack)". Quando olhamos para a esquina
estavam chegando a assessora do MinC mais três assistentes sociais da
CONDER. Todos se cumprimentaram e uma das mulheres da AMACH
convidou todos para ir andando pra casa onde seria a reunião, uma
caminhada de no máximo 200 metros que parecia eterna. Percebi que a área
estava repleta de policiais "enquadrando" todo mundo, colocando as pessoas
na parede e exercendo o popular "baculejo" (mão em tudo que parte do
corpo, porrada...), nunca antes havia presenciado uma ação da polícia deste
nível, no local. (CEAS, 2004)

A reunião se deu na varanda da casa e durante todo o tempo ouviram-se gritos e


policiais batendo em gente. Marcante mesmo na memória, ficou o grito de um travesti
morador da rua: "ai meu Deus, é fim de mundo". A situação era tensa, até porque tanto a
representante do MinC, como as funcionárias da CONDER pareciam não estar antenadas com
o que estava acontecendo, e realmente não estavam. As pessoas presentes naquela reunião,
entre moradores e os Amigos, pareciam saber que a ação foi planejada para acontecer quando
ocorressem as primeiras vitórias dos moradores contra a ação de intervenção do projeto
142

desenvolvido pelo Governo do Estado da Bahia. De fato, este era um momento extremamente
importante para o movimento de defesa da moradia no Centro Histórico, já que em todos estes
anos de expulsão e reformas não se tem registro da comunidade ter sido realmente ouvida
pelos órgãos públicos envolvidos.

A assessora do Ministério da Cultura começou dizendo que a vinda dela respondia à


pressão que os moradores estavam fazendo, citando a Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADIN) enviada ao governo Federal, a Ação Civil Pública, as denúncias no jornal e o próprio
movimento em si. Ela relatou também que o processo da 7ª Etapa já está em andamento e
"não temos como voltar o que já aconteceu", se referindo as pessoas que já saíram e/ou já
negociaram com a CONDER e continuam morando na área (relocadas, expulsas, indenizadas,
quem assinou e ainda não recebeu a casa ou auxílio relocação...). Mas ela anunciou uma
novidade "quem permaneceu não vai sair de forma alguma, foi uma vitória conseguida por
vocês". Porém, estimava com base nos dados da CONDER, que existiam apenas 39 famílias
residindo no local, fato totalmente refutado pelos representantes da AMACH, presentes
naquele encontro. Ademais, outra notícia trazida por ela foi a introdução de um outro
programa de financiamento da Caixa Econômica, mais compatível com o perfil de renda dos
moradores da área, o PSH – Programa de Subsídio Habitacional (recursos estaduais e
federais). Ou seja: depois de reformadas as casa poderão ser financiadas tanto pelo PSH
(quem ganha de zero a três salários), como pelo PAR (quem recebe de quatro a seis salários).
Segundo a assessora o PSH pegará os imóveis com menores problemas arquitetônicos e que
gastarão no máximo 21 mil reais na reforma, iniciando as obras nos imóveis que já estejam
vazios. A prioridade será dada aos moradores da área, que continuarão no local, mas com
poucas chances de retornarem para o mesmo imóvel. Ela finalizou indicando que haverá um
amplo trabalho social, no local, diretamente coordenado pela Secretaria de Combate a
Pobreza e que implicará em ações de formação de mão de obra para trabalhar na reforma dos
casarões além de outras atividades socioeducativas.

O primeiro ponto considerado pelas representantes da AMACH presentes foi


desconstruir esta hipótese de “vitória” pela permanência de 39 famílias, já que o universo
anterior envolvia cerca de 600 famílias e mais de 1.000 habitantes, só nesta 7ª Etapa. As
presentes reconheciam a importância da vinda do Ministério, ainda que tardia, e algumas
informações e ações que foram anunciados nesta reunião: a introdução do PSH, a
permanência de quem não aceitou e resistiu em negociar com a CONDER e esta proposta de
capacitação e utilização da mão de obra local, nas obras de restauro. Questionou-se a situação
143

de exclusão dos benefícios das pessoas que "já negociaram", aludindo a forma como foram
feitas tais negociações (com policiamento, na noite de natal, com apresentação apenas de duas
opções...) e solicitando portanto que fossem esquecidas. Desta forma foi mantida a posição de
estudar uma alternativa que busque englobar a parcela que sempre viveu e morou no local e
que querem o direito de permanecer.

A propriedade das casas também foi questionada por uma das moradoras locais
presentes na reunião que argumentava que as pessoas não estão só lutando por permanecer no
Centro Histórico e sim continuar morando em uma casa que faz parte de sua vida e que é sua
referência. Para confrontar os dados apresentados pela CONDER em relação ao universo de
famílias da área foi proposto fazer-se um novo cadastro da AMACH para saber-se quantas
famílias ainda estão morando, quantas já negociaram, porque negociaram, como e o que se
quer para com a área. Os resultados desta reunião, que presenciamos enquanto assessor do
CEAS, estão relatados num depoimento meu à época e que integra o mesmo relatório do
CEAS:

De volta à casa da reunião, sentamos e ficamos meio estáticos. A primeira


coisa a ser lembrada era de que a luta era por moradia, respeito, direitos
humanos, emprego, renda, educação, lazer... Imaginava-se como o Poder
Público local poderia usar o fato (criar o comum conhecido como “bode
expiatório”) contra um movimento legítimo de luta por moradia e respeito
aos direitos constitucionais. O momento também exigia preocupação com a
chegada, na semana seguinte, do relator da ONU que iria andar pela área da
7ª Etapa; uma vitória conquistada pelos moradores em tantas denuncias e
ações. Coloca-se em mente que a luta pela transformação social, sonho,
utopia ou realidade perpassa por questões conjunturais e particulares e que
os problemas sociais da área terão que ser abordados de forma política pela
AMACH, sejam eles o tráfico de drogas, o uso de tóxico e álcool, a fome,
desemprego e, principalmente, a luta contra um Estado autoritário que retira
moradores de suas casas por auxílios relocações que variam entre R$800,00
à R$ 2.000,00 e/ou coloca-os em bairros extremamente distantes de seus
locais de origem, ferindo as leis que regem este país, como um despejo
forçado. (Ibdem, 2004)

Na semana seguinte a esta reunião com o MINC aguardava-se a visita do relator da


ONU para Moradia Adequada, o indiano Miloon Kothari. O objetivo principal desta visita era
conhecer de perto os problemas de moradia e exclusão social, no Brasil, e, posterior
construção do relatório da ONU com as recomendações ao governo Brasileiro e local, com
base nos acordos internacionais sobre direitos humanos assinados entre as nações. A chegada
do indiano Miloon Kothari seguiu processo organizativo semelhante ao da audiência pública
relatada, sendo o CEAS a entidade contatada pela ONU. Foram seis encontros preparatórios e
uma audiência pública. O diferencial desta reunião com a ONU estava na ampliação dos
144

participantes (apesar do relator ter vindo especificamente para conhecer os problemas do


Centro Histórico), somou-se a estes os três pontos de resistência do Centro, outros grupos
populares organizados (FABS – Federação das Associações de Bairro de Salvador;
Movimento dos Sem Teto de Salvador –MSTS-, Articulação de Moradia; União de Luta por
Moradia e Fórum Nacional de Moradia). O relator iria caminhar com os diversos movimentos
pelas ruas do Centro Histórico (Pelourinho, Rocinha e 7ª Etapa), depois almoçaria com os
representantes do Poder Público local e às 17h iria participar da audiência pública na Igreja de
Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, onde estes movimentos iriam relatar os problemas de
moradia de Salvador, referentes a saneamento, infraestrutura, relocação e indenização, déficit
habitacional e acessibilidade aos portadores de necessidades especiais.

A caminhada com o relator foi interessante. Acompanhado com fundo musical de


pandeiros, berimbau e agogôs, interpretes, redes de TV (locais e internacionais), o relator da
ONU (Miloon Kothari) perambulou pelas ruas do Centro Histórico, entrou em uma casa que,
de verdade, quase caiu durante sua entrada, pela quantidade de pessoas que o acompanhava.
Tirou fotos com os rastafáris e fez muitas perguntas sobre o processo de reforma deste sítio
arquitetônico. Conheceu como as pessoas vivem e o que fazem pra sobreviver (vendedores
ambulantes, pequenos comércios, tráfico de drogas, prostituição...) e demonstrou disposição
de pressionar os órgãos responsáveis na relatoria que iria elaborar. Ele almoçou com os
governantes e Poder Público local (já programado na agenda oficial) e voltou à tarde para
ouvir os relatos dos grupos organizados de Salvador, em audiência que contou com a presença
do Ministério Publico.

Na coletiva de imprensa de 11 de julho de 2004, as observações preliminares do


relator especial das Nações Unidas para Moradia Adequada, Sr. Miloon Kothari, sobre sua
missão no Brasil, assim pontuava dão problema da participação social:

Durante a minha visita eu testemunhei uma contradição com relação aos


processos participativos. Ainda que a democracia e a sociedade civil sejam
fortes e, ainda mais, que o Governo Federal, em particular, tente assegurar a
participação no processo de decisão aliada à realização de conferências
nacionais, existe uma lacuna de participação real no planejamento e
desenvolvimento de planos e alocações de recursos no nível local... No
entanto, de acordo com depoimentos dados sobre o desenvolvimento do
Plano Diretor de cidades como Fortaleza e Salvador, onde importantes
recursos são gerados a partir do turismo, o acesso a tal participação e
desenvolvimento do planejamento urbano tem sido negado aos movimentos
da sociedade civil, apesar de, no caso de Salvador, existir uma ordem
judicial em contrário. Este caso ilustra a necessidade de educação e
treinamento da sociedade civil e do governo local para assegurar a
implementação do “Estatuto da Cidade”.... À luz dos testemunhos recebidos
145

eu posso me declarar preocupado que o Judiciário e outros sistemas de


proteção não são suficientemente sensíveis aos direitos dos pobres. Ao
mesmo tempo eu me sinto encorajado pelo importante papel do Ministério
Público na defesa dos interesses públicos e dos bens coletivos, que tem se
demonstrado essencial na luta por moradia dos pobres. (KOTHARI, 2004).

A Relatoria Nacional do Direito Humano à Moradia Adequada e à Terra Urbana,


vinculada ao “Projeto Relatores Nacionais em DHESC (Direitos Humanos Econômicos
Sociais e Culturais)”, responsáveis pelo acompanhamento da ONU pelo Brasil, assim
publicou duas das quatorze recomendações pontuadas pelo relator para os governos locais, no
que diz respeito diretamente ao caso da 7ª Etapa:

A União através dos Ministérios da Cultura e das Cidades deve exigir do


Governo do Estado da Bahia gestor do Projeto Turístico de Revitalização do
Pelourinho para a implantação da 7ª Etapa do projeto, o atendimento
habitacional da população moradora do Pelourinho...

O Governo do Estado da Bahia deve constituir um conselho gestor do


Projeto Turístico de Revitalização do Pelourinho... Visando garantir a efetiva
participação da população nas decisões da 7ª Etapa de Recuperação do
Pelourinho. (RELATORIA ..., 2005)

Ao final de 2004 o Ministério Público elabora o TAC (Termo de Ajustamento de


Condita. Este documento passou a ser o principal instrumento de pressão e negociação entre
as partes, servindo ao mesmo tempo como um ganho para os moradores e limitando seu poder
de pressão, pois elencava apenas algumas das principais reivindicações da AMACH, não
contemplando, por exemplo, a possibilidade de retorno das famílias que já haviam negociado
no início do processo. Outra questão importante dentro do TAC foi a definição de um número
concreto de 103 famílias a serem beneficiadas pelo programa de moradia.

Este número foi resultado de uma “compatibilização cadastral” entre as 39 famílias


apresentadas pela CONDER ao MINC e do levantamento realizado e os dados encontrados
pela AMACH. Para chegar a estes 103 beneficiados foram consideradas apenas as famílias
que estavam dentro dos imóveis a serem reformados, sendo que nem todos os imóveis de
dentro da poligonal estavam dentro do programa. Ou seja, existiam diversas casas ainda
habitadas dentro da poligonal que não seriam reformadas pelo projeto da 7ª Etapa e este
critério reduziu o número de famílias encontrado pelo cadastro da AMACH (que perfazia um
total de 158 famílias) que desconhecia as casas que estariam ou não dentro do programa e
acabou fazendo um levantamento de todos os casarões da poligonal. Com esta defasagem a
AMACH propôs um desmembramento das famílias que tivessem filhos da maior idade, na
146

ocasião da compatibilização, para que estes pudessem também ser beneficiados, o que foi
acatado pelo Ministério Público e, consequentemente, pelos órgãos públicos envolvidos.

O que o TAC trouxe de importante para a esfera de debate do projeto, foi a


constituição de um Comitê Gestor paritário, onde a AMACH e outros representantes da
sociedade teriam a possibilidade de conhecer melhor as informações do projeto, dialogar com
as entidades responsáveis e decidir sobre questões de impasse junto aos órgão públicos
responsáveis pela 7ª Etapa. Na prática o Comitê acabou sendo uma esfera privilegiada e
restrita de discussão sobre diversas questões que envolvia o projeto, em sua execução, tendo a
AMACH a responsabilidade de levar para os outros moradores o que estava sendo
encaminhado naquela instância de decisão. Desta maneira, enquanto o Comitê se constituiu
numa vitória dos moradores por ter a possibilidade de ouvir as informações demandadas e
expressar suas opiniões e decisões em uma dinâmica de consulta e encaminhamento, ela
também passou a ser uma esfera constrangida e regulada, onde a maioria das famílias não
tinha acesso aos conteúdos ali tratados.

O Comitê Gestor, doravante denominado COMITÊ, instituído neste ato para


análise e deliberação sobre requerimentos apresentados pelas famílias
relacionadas no ANEXO I, terá a seguinte composição: dois representantes
da CONDER, um representante da Secretaria de Combate a Pobreza –
SECOMP, um representante da Secretaria de Desenvolvimento urbano do
Estado da Bahia – SEDUR, um representante da AMACH, um representante
do Centro de Estudos e Ação Social – CEAS, um representante da
Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS e um representante da
Cooperação para o Desenvolvimento da Moradia Humana – CDM
(MINISTÉRIO PÚBLICO DA BAHIA, 2005)

4.5.3 O alcance, as aparências e os limites do Comitê Gestor, enquanto esfera de regulação e


concertação

Dentro da experiência do projeto de revitalização da 7ª Etapa, uma esfera onde as


diferenças, singularidades, diálogos ocorreram de forma mais intensa, foi a do Comitê Gestor.
Esta intensidade se deu, por se constituir em espaço de construção de possível acordo entre as
partes em torno das mais variadas questões que afetavam a área e seus moradores, em uma
atmosfera de tensão: desde o traçado da poligonal, aos programas de financiamento que
compõem a 7ª Etapa como política de habitação, os casos particulares de famílias que não se
sentem contempladas e que têm de deixar o seu imóvel, mesmo que este estivesse dentro dos
limites da poligonal traçada, os problemas e ações voltados para a geração de emprego e
renda, etc. Porém o Comitê Gestor apresentava uma ambiguidade quanto a ser uma esfera
pública, pois, se por um lado ele possibilitava o encontro entre as partes e a explicitação dos
147

interesses até então só possibilitada na mídia e nas poucas audiências ou reuniões com os
envolvidos, por outro, se constituía num espaço de restrição participativa pois era composto
por representantes de poucas instituições, o que acabou por reduzir o alcance desse
instrumento quanto ao acompanhamento dos embates e informações que ali ocorriam em
reuniões fechadas, do que as formas mais públicas (das audiências e da mídia...).

Antes de detalhar parte dos embates ali ocorridos, uma questão logo de início
preocupava os membros do Comitê da parte da sociedade civil. Como o Comitê Gestor foi
instituído para ser um espaço de deliberação, onde as possíveis questões levantadas pelas
famílias seriam ali votadas, era necessário ter uma composição paritária entre governo e
sociedade civil. Como estas questões estavam quase sempre relacionadas com os impasses
entre o governo e os moradores, representados pela AMACH, seria natural que, da parte da
sociedade civil, fossem mantidas entidades próximas a AMACH, para que as votações e
deliberações fossem justificadas por uma “esfera democrática”.

A AMACH, durante toda sua história e até aquele momento, havia feito aliança e
parcerias com diversas instituições, o que levou à sigla dos “Amigos” (parceiros e aliados),
aqui nesta pesquisa indicados como “os amigos da AMACH”. Porém, dentro da composição
de representantes do Comitê Gestor apareceu uma entidade que nem a AMACH, nem os
“amigos que ali se constituíam” (CEAS e UEFS) conheciam: A Cooperação para o
Desenvolvimento da Moradia Humana – CDM. Não foi observada a presença desta entidade
em qualquer das reuniões do Comitê, e seu lugar na representação foi questionado por
diversas vezes pela AMACH, CEAS e UEFS, sem qualquer tipo de explicação pelos órgãos
do governo ou do Ministério Público, o que levou a que este grupo especulasse sobre sua
presença.

O Comitê Gestor foi dando sequência aos encontros e reuniões. Nessas os conflitos
entre os saberes técnicos e populares se expressaram, a possibilidade de apresentação das
metas, cronogramas e ações do projeto por parte do governo e pelos moradores já a décadas
eram ali colocadas. Porém, para que estas demandas chegassem até o Comitê, seria necessário
garantir a representação da AMACH, do CEAS e da UEFS legitimados pelos moradores, que,
com seus limites de tempo e recursos, suas dificuldades em processar as informações, as suas
próprias contradições e ambiguidades e, em alguns casos, diferenças com estas instituições,
faziam desta participação no Comitê outro grande desafio. Desta maneira, por diversas vezes,
foi feita uma solicitação, por parte da AMACH, UEFS e CEAS, de que os órgãos públicos
148

realizassem audiências e assembléias públicas, para que os moradores tivessem contatos


sistemáticos e diretos com os responsáveis pela política de intervenção, em fóruns mais
amplos de participação.

Esta solicitação foi pouco atendida. O Comitê Gestor passava por legitimar uma esfera
restrita de decisões, muitas vezes burocratizada, como espaço público de negociação.
Retomamos aqui o diálogo com Hannah Arendt, sobre as condições da representação e
legitimidade do Comitê Gestor. Ali existiam múltiplas possibilidades de ação, mas ao mesmo
tempo era um espaço que precisava de suporte institucional (mediação do Ministério Público,
por exemplo), mesmo com as características de uma dinâmica dialógica entre os interessados
por meio da expressão de discursos e formulação da ação. Para Arendt o mundo público é o
espaço que ilumina e esfera ideal para o ator dizer verdadeiramente quem ele é, onde está e
com quem dialoga. O Comitê, analisado segundo a perspectiva indicada por Arendt, cumpria
sua missão de se constituir em instância pública de intermediação. Porém, o perigo, segundo
interpretação de Freitag e Rouanet, estava na natureza desta “mediatização”, podendo ser um
espaço de fácil decisão e rapidez dos encaminhamentos, onde a população seria representada
pela associação ou entidades da sociedade civil (FREITAG e ROUANET, 2001: 106). Ou
seja, o Comitê se tornara um espaço onde o poder de voz dos cidadãos, ou dos moradores
seriam expostos, sem, contudo, representar, na prática, uma decisão de forma mais ampla.
Para dar conta desta lacuna, as reuniões da AMACH semanais era o local onde as pessoas, em
número restrito e rotativo, podiam informar-se sobre as informações das reuniões do Comitê e
pautar novas questões a serem pontuadas neste.

A outra grande dificuldade na participação dos moradores e das duas entidades que
compunham a sociedade civil diante do Comitê Gestor, estava na constituição de um diálogo
tecnocrático, que dificultava o entendimento de todos. O primeiro impasse, por exemplo, foi
entender os traços da poligonal, os mapas da área e as razões porque uma casa estaria dentro
do programa, outra não, e o que diferenciava a escolha de uma reforma ser realizada para
contemplar o plano habitacional popular e outra um plano direcionado para classe média.
Desta maneira, na primeira reunião de apresentação do projeto por parte do Coordenador do
programa Monumenta, então vinculado a CONDER, houve uma dúvida para aquele grupo que
compunha o Comitê Gestor, levantada por uma das moradoras e que pode revelar o grau, a
natureza e a distância existente entre as partes ali constadas. A moradora, observando o mapa
da poligonal preso à parede, perguntou quem tinha traçado aquelas linhas, e revoltou-se: como
poderiam ter traçado um linha bem no meio da rua e a casa dela ser contemplada por uma
149

reforma e a da família da frente, bem do outro lado da rua, não. Ao final das suas questões ela
explicitou sua avaliação em relação ao trabalho dos técnicos: “Não vejo linha na frente de
minha casa... Gostaria de dizer uma coisa a vocês: vocês entendem de traços e nós
entendemos de gente” (Moradora da 7ª Etapa, 1ª Reunião do Comitê Gestor para apresentação
do projeto, em 28 de novembro de 2004).

O Comitê vivenciava não só as diferenças, mas também as dificuldades em fazer


caminhar o processo de negociação, já que cada questão levantada demandava tempo de
entendimento e diálogo. Muitas vezes, observava-se uma angustia e tensão entre as partes seja
pelo não entendimento dos pontos em discussão, seja pela consciência de que as reuniões
demandariam muito tempo para as tomadas de decisões.

Bobbio, analisando as relações entre tecnocracia e processos democráticos de diálogo


assim analisa: “se o protagonista da sociedade industrial é o especialista, impossível que
venha ser o cidadão comum” (1986: 33-34). Neste sentido, a adoção de uma linguagem
meramente técnica também se constitui uma forma de poder que Pedro Demo classifica como
"nobre, programador, avaliador, formal e acadêmico..." (1988: 42-43), assim, ao mesmo
tempo se observou limites, mas também um esforço entre as partes por tornar aquele espaço
um lugar formador de um entendimento mais do que para a formação de consensos e, quando
a tensão aumentava, os embates mais do que revelar as diferenças, aprofundava “as farpas” de
um processo que se iniciara com denúncias e trocas de insultos anteriores.

Ademais, ainda quando do apresentar do projeto no âmbito do Comitê Gestor, que por
diversas vezes foi solicitado pela AMACH que fosse feito para todos os moradores, outros
limites foram apresentados. As informações trazidas diretamente em todas as reuniões
estavam sendo ditas de forma bem direta e o Projeto da 7ª Etapa parecia estar já todo traçado,
sem possibilidade de mudanças significativas. Segundo informações anotadas em relatório,
foi ali explicitado que o Governo Federal (MinC/IPHAN) criou o Programa Monumenta/BID
e para o Brasil este programa é responsável pelo resgate patrimonial de 28 cidades. Em
Salvador o Monumenta/BID atuava na 7ª Etapa e, segundo afirmativa do técnico da
CONDER, responsável pelo programa, não havia possibilidade de trabalhar com a parte
interna dos imóveis e o Governo do Estado da Bahia então resolveu fazer um programa
habitacional. Ainda segundo explanação a poligonal já estava definida antes do programa e
seria destinada para implantação das suas secretarias municipais (como um Centro
Administrativo Municipal). O BID investe 50% (Empresta ao Gov. Federal); o Governo do
150

Estado da Bahia 20% e o Governo Federal participa com 30%, num total de R$18,348
milhões de reais.

Ali estavam sendo anunciadas informações importantes, nunca antes testemunhadas


em qualquer outro espaço público de concertação, o que tomava o Comitê Gestor um espaço
privilegiado de acesso à informação. As pessoas presentes, principalmente os moradores
ficavam impacientes quando percebiam que não só a maioria das pessoas havia saído, como
os que permaneceram teriam pouca oportunidade de modificar o projeto. Esta irritação
aflorava a cada frase de impacto revelada pelo técnico da CONDER, e ele , antes de detalhar o
mapa, afirmou (e foi anotado) durante a reunião que: “A gente diz se a AMACH deve e como
deve participar”. Afirmava ai a prerrogativa da autoridade dos técnicos sobre o projeto.

Ali, mais uma vez, observa-se a contradição da dimensão do tempo para reconstrução
de todo um projeto que já estava aprovado e em execução, quando o Ministério Público
intervém e obriga o governo a dialogar. É o imperativo do tempo dos recursos já aprovados,
das licitações das obras, e da execução do cronograma. Esta perspectiva ficou bem explícita
quando ao detalhar do mapa, e na sequência da apresentação da CONDER constatou-se que
os locais da intervenção das obras já estavam definidos. O local da creche, o estacionamento,
as habitações, a construção da Universidade de Artes e Design Berlim-Bahia, a ampliação do
Liceu. As únicas áreas livres apresentadas, foram a parte superior do estacionamento, que,
segundo sugestão do técnico no momento da reunião, poderia ser transformada em quadra ou
num centro comercial. Ainda segundo anotações de observação direta daquela reunião, O
programa de execução deveria ser acabado em 2004 e até aquela data, segundo afirmativa do
técnico, mal haviam sido iniciadas as obras, sendo que os recursos financeiros estavam
previstos para terminarem em 2006. Assim, o projeto parecia que estava já fechado e anulá-lo
ou modificá-lo demandaria muito tempo.

Apesar dessas tensões e contradições, a riqueza desta experiência está justamente na


possibilidade de explicitar as divergências, ou diferenças, num espaço público regulado. Os
moradores representados por um grupo da AMACH indagavam, então, onde estaria o projeto
urbanístico a ser construído para e com os moradores locais. Argumentavam que ali estava
sendo apresentada uma planta e não o que eles entediam ser um projeto. Que eles tinham
demandas para com a área que não estavam ali contempladas. A reação da CONDER, ali
representada pelo então gestor do programa, afirmava que a AMACH e a comunidade
poderiam ver o projeto, mas não modificá-lo, pois só em junho de 2004 as demandas tinham
151

sido explicitadas o que demandaria tempo impossível de execução para contemplar novas
demandas.

Dentro do Comitê Gestor também foram tratadas outras questões referentes ao


financiamento e às justificativas da escolha das casas por programa de financiamento. Na
semana seguinte, em 06 de dezembro de 2004, a Caixa Econômica Federal comparece no
Comitê Gestor para dar informações sobre o Programa de Subsídio Habitacional (PSH). Foi
então explicitado que PSH contempla quem tem renda mensal de 150 a 780 reais. A Caixa
Econômica Federal encontrou uma renda média familiar, na área da 7ª Etapa de R$150, 00
por família. Assim o PSH financia até R$ 1.800 reais do imóvel em um prazo máximo de 72
meses (seis anos), sendo que as parcelas correspondem a 20% da renda, no caso R$30,00. No
total, os gastos para com a casa seriam divididos entre o valor deste subsídio (R$1.800,00),
mais o subsídio do Governo Federal (R$6.000) e uma contrapartida do Governo do Estado da
Bahia de R$20.200,00 por cada casa.

A escolha das casas por programa foi sempre questionada até os dias atuais de
finalização desta pesquisa. As dúvidas e desconfianças quanto às justificativas dadas são
paralelas à tristeza, revolta e incompreensão do porque, depois de tanta luta, ter ainda de sair
da casa de origem o que acabou por afetar o sentimento das pessoas que permaneceram. A
primeira justificativa argumentou que foi em função de adiantar para o PSH as casas que já
estavam avançadas quanto a sua regularização jurídica (desapropriação e alienação em nome
da CONDER). O governo, assim, argumentava que as pessoas, em sua grande maioria, não
poderiam retornar para as suas casas de origem, pois elas seriam contempladas por outro
programa habitacional, este dirigido para os funcionários públicos e que ela não teriam
condições de pagar. Depois, foi apresentada uma segunda justificativa de que as diferenças no
atendimento das casas por programa resultavam do Estado físico do imóvel no momento da
contratação das obras. Quanto mais precário estivesse o imóvel, menos gastos para reforma e
restauro, pois a estrutura seria toda destruída em vez de reformada internamente para
construção de uma nova, contemplando então o programa habitacional popular em função do
menor gasto. Se o imóvel estivesse em bom Estado interno, as obras teriam um gasto maior,
pois seria necessário restaurar parte do imóvel, o que demandaria mais trabalho e recursos,
sendo então estas casas direcionadas ao público com subsídio de maior valor.

Estas justificativas não eram acompanhadas por documentação comprobatória, nem


licitações, nem relatórios de estudos feitos por técnicos e, desta forma, aumentaram os
152

questionamentos e desconfiança por parte da AMACH, do CEAS e da UEFS, como entidades


da sociedade civil que compunham o Comitê Gestor. Para aumentar ainda mais este
sentimento de desconfiança o mapa apresentado com a marcação das casas que seriam
destinados aos funcionários públicos e moradores apresentava um grande número de moradias
para o segundo grupo em locais mais próximos dos espaços já reformados nas etapas
anteriores, perto do Terreiro de Jesus e da Praça da Sé, que, para o grupo que acompanhava a
discussão em defesa dos moradores seriam os melhores locais e ainda, os mais habitados pelas
famílias que permaneceram. A justificativa técnica não era compreendida pelo grupo da
AMACH, CEAS e UEFS, que acreditavam que o Poder Público poderia estar negligenciando
as informações e o diálogo.

Naquele momento, as revelações e desconfianças em torno das informações difundidas


no Comitê Gestor marcavam a atmosfera interna do Comitê. Hannah Arendt, ao analisar o
poder inerente à esfera pública considera a importância de um agir em consonância com. Ou
seja, ele não pode ser armazenado e mantido em reserva para ser utilizado como instrumento
de violência, em tempo adequado. Após toda a mobilização, a construção deste espaço de
gestão, diante da impossibilidade da mudança os moradores se sentiam, outra vez,
violentados, ao descobrirem que teriam que sair de suas casas de origem e que os argumentos
do Poder Público não os convenciam. Neste sentido, a reversão e a alternativa à violência
passaram pelo resgate e devolução do direito à palavra, pela oportunidade da expressão das
necessidades e reivindicações dos sujeitos, pela criação de espaços coletivos de discussão,
pela sadia busca do dissenso e da diferença. Mas não se pode esquecer que a realidade vivida
pelas famílias representadas pela AMACH limitava-as em ter tempo e em poder decisório
sobre todo o processo da 7ª Etapa, seja por suas condições econômicas, seja pela maneira com
que foram formadas na sua educação formal e técnica.

Para Arendt:

O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando


as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não
são empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos
não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas
realidades (1983: 212).

Parece-me que tanto aqui (espaço publico para pensar a urbe, o Centro Histórico em
seus modelos e intervenções) quanto na polis grega o domínio da palavra, dos discursos e
também do conhecimento era restrito a poucos. A linguagem e os termos utilizados, podem
até chegar aos ouvidos de todos os presentes num mesmo momento, mas as condições
153

objetivas de compreensão e domínio técnico não chegam ao alcance interpretativo da maioria,


o que explicita uma condição de subalternidade, ainda que protagonistas.

Com isso, H. Arendt tem que pagar o preço de: a) excluir da esfera política
todos os elementos estratégicos, definindo-os como violência; (FREITAG E
ROUANET, 2001: 110-111).

A saída das casas de origem e escolha de outra, diante de um embate desigual e com o
Ministério Público cada vez mais afastado, acabou por ser digerida pela maioria dos
moradores que, mesmo não aprovando a decisão, acabou por aceitar a relocação para outro
endereço dentro da poligonal, restando, porém algumas famílias resistentes. Outras tiveram a
sorte de ter suas casas contempladas pelo programa habitacional popular, sem precisar mudar
de imóvel. Já estávamos no ano de 2005 quando se iniciaram os diálogos e apresentações dos
projetos arquitetônicos das casas. Detalhar este momento, tamanha as singularidades do
momento, demandaria um outro objeto de análise, pois ali estava definitivamente presente o
arcabouço técnico a ser discutido com os moradores: arquitetura, restauração, engenharia,
saneamento, estudos arqueológicos.

Mas antes da apresentação dos projetos arquitetônicos, o governo anunciou, em 15 de


setembro de 2005, um novo programa de financiamento para contemplar as famílias, o PHIS
– Programa de Habitação de Interesse Social, programa instituído pela então recém lançada
Lei nº 11. 124, de 16 de junho de 2005, no governo Lula, que dispõe sobre o Sistema
Nacional de Habitação de Interesse Social - SNHIS. Dentre as argumentações e explicações
dadas pelo órgão do Governo do Estado responsável pela proposta, a SEDUR, estava que
valor máximo do Governo Federal para o subsídio do PSH estava em trono dos R$ 7.000,00
por casa, na época, e o Estado entraria com o restante, pensado em R$ 14.000,00. Mas os
orçamentos da CONDER, apresentados nesta reunião, cada casa ficava em torno de R$
48.000,00. Foi então imediatamente mandado ofício para o Ministério das Cidades com um
plano de trabalho acordado com a Caixa Econômica Federal. Para os moradores, segundo
informação dada, isto não mudaria nada, pois eles continuariam pagando o mesmo valor,
cerca de R$ 30,00 por mês, e a mudança afetaria apenas o subsídio do Governo do Estado da
Bahia, que iria aumentar. Desta forma o PHIS passou ser o programa oficial a serem
contempladas as famílias moradoras do local e, em vez do PAR, os funcionários públicos
seriam os contemplados pelo PROHABIT.

Na outra semana, então, houve uma reunião para apresentação das plantas das casas.
Havia uma ansiedade por parte de todos para saberem onde e como iam morar. O conteúdo da
154

fala do responsável pelo programa Monumenta, foi desestimulante; ele afirmava estar com as
plantas de 12 imóveis divididos em 52 apartamentos, mas, “achou desnecessário” apresentar
os 12 imóveis para o Comitê Gestor, mostrando apenas a planta de uma delas. Segundo sua
informação os imóveis estavam todos no mesmo nível de qualidade em relação aos dois
programas habitacionais, e eles também já estavam prontos e aprovados pelo IPHAN. Quando
uma das moradoras tentou questionar sobre possibilidade de mudança nos projetos das casas,
afirmando que elas estavam pequenas, ele foi outra vez incisivo, e afirmou uma frase decisiva
sobre a concepção desta participação: “Não vai ser a casa que vai se adaptar a Dona Maria,
mas vai ser Dona Maria que vai ter que se adaptar às casas”. Outra vez ele recorreu ao
imperativo do tempo, afirmando que modificar as plantas já aprovadas pelo IPHAN iria travar
todo processo de execução das obras: “o projeto vai ser aberto para vocês olharem. Vocês
vão ter o direito de criticar, mas as pessoas vão morar nos apartamentos de qualquer
forma”.

O tempo realmente passou, e os embates chegavam ao ano de 2006, com outra


novidade na conjuntura política, agora local, coma vitória das eleições por Jacques Wagner do
Partido dos Trabalhadores (PT) para o governo da Bahia. Esta nova conjuntura de outra vez
alimentava expectativas de todos, afinal foi o PT que encaminhou a ADIN, foi o PT que
constituiu parte das denúncias junto a AMACH, foi o PT que sempre criticou as formas como
os moradores foram tratados nas reformas e projetos do Pelourinho pelo governo liderado por
Antônio Carlos Magalhães (ACM). Na primeira reunião com o Comitê Gestor já sob o
mandato do PT, no Estado, já não havia mais a foto do ACM na parede e todos acabaram
ficando no aguardo de outras mudanças. Informaram que os números de famílias não seriam
aumentadas, que era impossível trazer de volta as pessoas que saíram da 7ª Etapa e que um
novo diálogo seria construído tendo o Comitê Gestor ainda como espaço de interlocução.

O gestor do programa foi substituído por uma arquiteta e urbanista com um perfil mais
conciliador. Porém as mudanças esperadas, seja em função do direcionamento das casas
segundo programas de financiamentos diferentes, contemplando faixas de renda também
diferentes, e os valores a quem ainda quisesse ser indenizado, ou a ampliação dos números de
moradia, não mudou. O diálogo foi ampliado com apresentações e audiências públicas para
que os moradores pudessem finalmente conhecer o projeto e as linhas de financiamento, mas
estes também não deram sequência As plantas de todas as casas foram disponibilizadas para a
AMACH que, com o auxílio da professora Lysiê Reis, teve o difícil trabalho de explicar a
cada família os projetos, ajudando-as a escolher suas moradias, ação que deveria ser feita pelo
155

Governo do Estado. Foram apresentadas outras possibilidades de geração de emprego e renda,


já que com a assinatura do TAC algumas ações já haviam sido iniciadas, como cursos
profissionalizantes e poucos moradores haviam efetivamente sido envolvidos como mão de
obra nas obras de engenharia da reforma local.

A AMACH, naquele momento, já havia adquirido uma certa experiência em


negociações, discussões e formulação de propostas. Ainda composta em sua maioria por
mulheres, em número reduzido, e contando com a participação de alguns homens, deu início a
iniciativas de construção de projetos sociais, culturais, de cursos profissionalizantes, etc.
Foram anos de formação de um pequeno grupo de lideranças, que acabou por se constituir
também num grupo de poder dentro da AMACH, seja em função do arcabouço de
informações adquiridas, seja em função desta expertise construída com a participação.

Ao serem entregues as primeiras chaves para os moradores, já em 2007, no segundo


ano do mandato de Wagner, observou-se uma tentativa por parte do governo de fomento a
uma política de valorização, nesta ocasião na entrega das chaves, como uma vitória construída
pelos moradores. Este de novo foi um momento tenso, onde as pessoas, ainda decepcionadas
com toda a historia passada e preocupada com a forma de interpretação do novo governo,
tentavam politizar uma felicidade que saltava aos olhos por verem algumas famílias
recebendo as chaves das casas tão arduamente conquistadas. No momento da entrega das
chaves, a então presidente da AMACH, em ato político, sentada na mesa composta pelo
assessor direto do Ministro da Cultura, pelo governador do Estado da Bahia, pelo Promotor de
Justiça e diversas autoridades locais e, ainda, diante de uma platéia com cerca de 200 pessoas,
proferiu o seu discurso. Ali estava representado o resultado da busca pelo direito à moradia e
de participação no projeto da 7ª Etapa:

O dia de hoje nos faz lembrar, com tristeza, das perdas e expulsões de
moradores que foram usurpados de seus direitos. Mas também o dia é de
alegria pelo reconhecimento da resistência, vitória e permanência de um
pequeno número, de 103 famílias, através da AMACH. Sabemos que é
pouco, mas nenhuma associação de moradores do Brasil havia até então
alcançado conquista semelhante em relação às áreas urbanas de caráter
patrimonial. Porém, chamamos a atenção das autoridades aqui presentes para
as outras famílias, da própria 7ª Etapa, que não foram contempladas neste
projeto, como também das outras áreas degradadas do Centro Histórico, para
que os cidadãos que lá sobrevivem tenham seus direitos de permanência,
trabalho e moradia garantidos. (AMACH, out. 2007)
156

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mais do que julgar se a experiência apresentou derrotas ou vitórias, os resultados desta


análise buscaram elucidar o processo, os meios e os limites da participação popular na
constituição de uma esfera pública, que ao mesmo tempo em que resultou da ação dos
moradores, mediados pela justiça, pela mídia e por ações de concertação no Comitê Gestor
formou e qualificou este processo de resistência dos moradores diante de uma intervenção
pública estatal urbanística, arquitetônica e patrimonial.

Resultados estes que podem ser analisados de uma perspectiva comparativa local com
as outras 6 etapas do processo de revitalização do Pelourinho, porque ali também foram
criadas as bases críticas de constituição dos agentes, moradores ou Poder Público, quanto aos
interesses e julgamentos sobre os efeitos dessa intervenção no local, o Centro Histórico de
Salvador. Porém, algumas singularidades ocorreram na 7ª Etapa, o que fomentaram
importantes aspectos de um processo de resistência, embates e diálogos entre os moradores,
os mediadores, e o Governo do Estado da Bahia.

Um primeiro grande resultado encontrado foi a própria possibilidade que a intervenção


aqui estudada criou na formação deste “espaço público”, onde os principais envolvidos
puderam se mostrar, e dizerem do que são capazes, como argumenta Hannah Arendt sobre as
possibilidade que a esfera pública causa nas relações humanas (ARENDT, 1988). As questões
da área se tornaram de domínio público. As avaliações, argumentos e contra-argumentos
justificadores da intervenção feitos pelos técnicos do governo para os habitantes afetados pela
reforma no Centro Histórico, assim como também os moradores foram revelando seus
valores, saberes, julgamentos sobre a intervenção, a forma com que estavam sendo tratados e
expressando as ambiguidades quanto a valores de uso e valores culturais.

O “espaço da aparência”, onde as palavras ganham corpo em ação, e a construção do


poder da palavra, o poder de se expressar, de ouvir e ser ouvido, a “condição humana”,
apresenta os limites e possibilidades das pessoas, sejam os técnicos do governo, as
autoridades, os moradores, os grupos de apoio a estes, a mídia. A esfera pública então criada
no processo de debate sobre o destino dos moradores afetados pelo projeto de intervenção
mostra como esta intervenção, ao romper a rotina do cotidiano da vida e trabalho, representa
157

um acontecimento disruptivo que faz emergir campos distintivos entre a cidade planejada, por
Poligonais, em recursos financeiros, sob olhares técnicos e administrativos e a cidade vivida
no dia a dia das pessoas, da maioria constituída do meio popular, com suas urgências e sua
dinâmica própria no uso desses espaços urbanos relegados e “revitalizados”.

Para os moradores da 7ª Etapa, representados na AMACH, pode-se aqui afirmar que


ficaram resultados importantes. Eles constituíram um poder de voz que impactou em diversos
espaços, seja na academia, na mídia local, nacional e internacional, nos órgãos internacionais
de direitos humanos, explicitando o que eles julgavam ser injustiças do Poder Público local
diante da sua condição de morador, principalmente sobre o direito a moradia. Este poder de
voz foi institucionalizado em uma associação de moradores, a AMACH, que , com um grupo
de apoio, “os amigos”, acabou virando uma referencia quando do assunto de pessoas do meio
popular terem garantidos os direitos de moradia dentro de Centros Históricos. Concretamente
ali estão os primeiros moradores, em uma lista de 103 famílias, que adquiriram o direito de
permanecer no sítio histórico, com um financiamento público direcionado para pessoas de
baixa renda, o PHIS. Mas ao lado deste resultado outros tantos devem ser aqui considerados
também.

A conquista de aluguéis, pagos pelo governo, para as famílias que tiveram seus
imóveis reformados, para posterior retorno a área habitada. A prioridade em assegurar a
integridade física de pessoas que habitavam imóveis sob risco de desabamento, sendo estas as
primeiras a irem para as casas alugadas. Os cursos profissionalizantes e a possibilidade de
geração de emprego e renda, seja como funcionários as poucas possibilidades nas obras, nas
festas locais, no projeto da cozinha comunitária (ainda em construção quando do findar desta
pesquisa). Contata-se aqui que a maioria dos resultados concretos veio como cascata de tantas
outras ações passadas, desde a mobilização comunitária, as reuniões da AMACH, a busca das
parcerias, as denuncias na mídia, as articulações com outras lutas, outros bairros que
acabaram por constituírem uma rede de relação, ação e solidariedade.

Porém, dentre as ações desenvolvidas, destaca-se a mediação da Justiça como


determinante, pois, uma destas mediações, a Ação Civil Pública, quando vitoriosa, acabou por
determinar uma outra relação entre os agentes envolvidos, tendo um termo de ajustamento de
condutas firmado institucionalmente entre estes. Ali estava posta a formação e instituição de
um Comitê Gestor, a Comissão de Acompanhamento de Obras, pontuada as principais
demandas dos moradores e a pressão para que o projeto fosse executado dentro do termo
158

estabelecido, sob pena do Governo do Estado da Bahia sofrer medidas judiciais, um acordo
que impactou a todos envolvidos, seja vinculado aos moradores seja, principalmente, em
relação aos órgãos públicos envolvidos:

12 – Eventual descumprimento ou violação de quaisquer das cláusulas do


Compromisso ora assumido, devidamente comprovado, implicará no
pagamento de multa diária de R$ 1.000,00 (um mil reais), por cada dia de
irregularidade, com reajuste de acordo com o índice oficial incidente da data
da violação até o dia do efetivo desembolso, a título de cláusula penal,
enquanto perdurar a irregularidade.

13 – O descumprimento de qualquer obrigação ora assumida, igualmente,


caso não redunde no voluntário pagamento de multa incidente, implicará na
sujeição às medidas judiciais cabíveis, incluindo execução específica, na
forma estatuída no art. 584, III, do CPC. (MINISTÉRIO PÚBLICO DA
BAHIA, 2005)

Toda pedagogia que implicou o processo de construção da participação social dos


moradores também representa um resultado importante. As pessoas, técnicos do governo,
moradores, lideranças, grupo de amigos, foram sendo formadas durante o processo,
adquirindo informações, debatendo, constituindo poder de voz e de negociação e
reconhecendo no outro as diferenças e igualdades diante da possibilidade de constituição de
uma alternativa possível. Por parte dos moradores observou-se o acesso a informações e,
consequentemente o crescimento do seu poder de expressão e decisão. Os limites
apresentados para a ampla participação social popular, a realidade de vida da maior parte das
pessoas ali presentes, os limites de tempo, o interesse ou vontade dos principais envolvidos,
dos grupos de apoio, e do Poder Público, em grau diferenciados, somados à possibilidade de
agilizar os processos de negociação junto ao governo, pressionavam por resultados rápidos,
podem ser considerados um dos fatores que restringiu o acesso da maioria a esta pedagogia
social, ou seja a sua ampliação e publicização entre a maioria.

Quando da concretização da obras, da efetivação real do direito de morar, a realidade


mesmo depois da entrega das primeiras chaves é adversa. Este estudo tem seu limite temporal
estabelecido até 2007, momento de entrega das chaves, porém ali não estava o final do
processo de participação, muito menos de execução da 7ª Etapa. Ainda em 2011, ano de
finalização desta pesquisa, apenas 30% estão nas novas casas e o restante continua morando
em casas de aluguel, sendo que as outras que moram nos imóveis reformados não têm ainda
qualquer documento de posse ou arrendamento. Ninguém está pagando os valores referentes
ao PHIS e existe uma dúvida e tensão quanto à novas possibilidades de retirada das famílias
ou da não execução de todas as obras. A AMACH a partir das negociações teria espaço físico
159

próprio garantido, mas este ainda não foi construído, e a associação funciona ainda em espaço
cedido pela CONDER. Uma creche comunitária e uma cozinha comunitária estão também
sendo construídas para que as família possam ser atendidas e trabalharem.

Mais do que o concreto, representado nas casas reformadas ou revitalizadas, o que por
fim realmente se percebe deste resultado foi que a esfera pública formada acabou por
possibilitar a denuncia e o reconhecimento dos agentes no projeto, como cidadãos com direito
de participar, do Poder Público, da sociedade civil, da mídia A participação dos moradores
possibilitou uma esfera de negociação com o Governo do Estado da Bahia, nas diferentes
gestões durante os embates, entre 2001 e 2007, tempo analisado nessa dissertação, que acabou
por reconhecer que o “diferente” pode, mesmo sob pressão, ser ouvido. Ser ouvido em uma
esfera dinâmica e desigual, onde seu próprio processo de constituição apresenta os caminhos e
limites para o alcance do objetivo; mesmo que este ainda esteja na fase da própria busca por
participação.
160

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