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Salvador
2011
JOSÉ MAURÍCIO CARNEIRO DALTRO BITTENCOURT
Salvador
2011
____________________________________________________________________________
Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Ciências Sociais,
Universidade Federal da Bahia – UFBA, pela seguinte banca examinadora:
Ao CEAS – Centro de Estudos e Ação Social, por ser uma casa, uma escola, uma
universidade. Pela oportunidade em me dar tempo, espaço, conhecimento, prática. Da
convivência com pessoas especiais e por seus incentivos para com esta minha produção:
Maria Ubajareida (Bajinha), Rita de Cássia Santa Rita (Ritinha), Manoel Maria do
Nascimento Filho (Manolo), Catarina Lopes, Padre Andrés, Padre Clóvis, Joaci Cunha, estes
em especial por conviverem comigo em campo de trabalho.
Especialmente a Professora Anete Brito Leal Ivo, por sua orientação, por me mostrar os
caminhos da teoria. Por sua competência, compromisso e seu incrível poder em responder
detalhadamente as minhas tantas questões e angústias. Por me tranqüilizar quando assim
deveria ser e por apresentar críticas construtivas nos momentos mais intensos desta minha
produção. Anete, outra vez, fica difícil te agradecer!!
A minha família. Aos meus pais, Margarida Maria M. Carneiro Bittencourt e José Pedro
Daltro Bittencourt, por tudo. Minha irmã Daniella Daltro, que acabou por me levantar em
momento pessoal difícil enfrentado durante o período do mestrado. Aos meus dois filhos,
Marina (5 anos) e Pedro (3 anos), por me mostrarem que a vida é para ser vivida de fato. A
Maria Pessoa, pelo amor, por nossa construção, nossa caminhada, nossa vida conjunta.
Agradeço a todos!
O mundo comum é aquilo que adentramos ao
nascer e deixamos para trás quando morremos.
Transcende a duração de nossa vida tanto no
passado como no futuro: preexistia à nossa
chegada e sobreviverá à nossa breve
permanência. É isso o que temos em comum não
só com aqueles que vivem conosco, mas também
com aqueles que virão depois de nós.
Hannah Arendt
RESUMO
Este estudo busca analisar o campo conflituoso dos usos diferenciais do espaço urbano a
partir da 7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico, no Pelourinho (Salvador), observado
do ponto de vista da formação de esferas públicas de mediação e encaminhamento dos
interesses conflitantes entre os moradores e o Governo do Estado – ambos defendendo o
patrimônio histórico, mas cada um de seu próprio ponto de vista. A questão central em análise
é a reconstituição de um campo de conflito em formação, e como, ao longo do processo, os
moradores vão se transformando em sujeitos de direitos, com suas ambiguidades e
contradições, através de um processo reflexivo, não-linear, com avanços e recuos, de
avaliação sobre os usos do espaço público urbano. Apesar de se constituir numa experiência
que afetou um pequeno número de moradores, foi capaz de mobilizar interlocutores em
grande escala, desde moradores locais, técnicos do Estado e imprensa até representantes do
Governo Federal e de organizações internacionais. O debate entre moradores e o governo
permite observar concepções e valores distintos quanto à abordagem do patrimônio e à
concepção da “revitalização”: a racionalidade do planejamento do governo e os interesses
constituídos pelos moradores do local, que contrapuseram a “cidade planejada” e a “cidade
vivida”, o patrimônio material e o patrimônio imaterial. O detalhamento deste conflito tem
como base a documentação elaborada pelo trabalho de assessoria aos movimentos populares
de luta por moradia, pelos procedimentos judiciais construídos em defesa dos moradores e por
matérias de jornal. A partir desses documentos foram sendo analisadas as ações
comunicativas de defesa e contestação elaboradas como justificativas nas arenas constituídas
com vistas à construção da participação popular no projeto da 7ª Etapa de Revitalização do
Centro Histórico de Salvador. O resultado deste trabalho mostra que o processo político não é
linear; destaca as lutas no âmbito dos próprios moradores; avalia os limites e alcances do
processo participativo e a contradição inerente aos usos do espaço urbano, especialmente nas
situações de preservação de sítios históricos.
This study seeks to analyze the conflicted field of the different uses of urban space within the
7th Stage of the Revitalization of the Historic Center at Pelourinho (Salvador, Bahia),
observed from the viewpoint of the formation of public spheres of mediation and routing of
conflicting interests among the residents and the State Government – both defending the
heritage, but each one of your own point of view. The central question at hand is the
reconstruction of a field of conflict in the making, and how, throughout the process, residents
are transformed into subjects of rights, with its ambiguities and contradictions, through a
reflective, non-linear process of assessment of the uses of public space, with advances and
retreats. Even though this is an experience that affected only a small number of residents, it
was able to mobilize large-scale actors, from local residents, technicians and state
representatives to press the federal government and international organizations. In the debate
between residents and State government one can observe different views and values about
equity and the approach to the concept of "revitalization": the rationality of government
planning and the interests generated by local residents, who countered the "planned city" and
"lived city”, the “material heritage” and the “intangible heritage”. The details of this conflict
is based on documentation prepared by the advisory work of popular movements fighting for
housing, by the judicial procedures on behalf of the residents and by newspaper articles. From
these documents it was possible to analyze the communicative actions of defense and
disputation as justifications in the public arenas prepared to the construction of popular
participation in the 7th Stage of the Revitalization of the Historic Center of Salvador. The
result of this work shows that the political process is not linear; highlights the contradictions
implicit in the context of the struggles of the residents themselves; assesses the limits and
scope of the participatory process and the contradiction inherent in the use of urban space,
especially in situations of preservation of heritage sites.
REFERÊNCIAS ...........................................................................................................160
2. Documentos ...............................................................................................................163
3. Matérias de Jornal................................................................................................. 166
10
1 INTRODUÇÃO
Esta dissertação busca analisar a constituição de uma esfera pública formada pelos
moradores em luta a partir da implementação do projeto de revitalização da 7ª Etapa do
Centro Histórico de Salvador, onde um campo de interesses conflitantes entre moradores e
planejadores explicitou usos diferenciados na área do patrimônio histórico de Salvador. O
embate entre os moradores locais e os técnicos dos órgãos públicos, responsáveis pelo plano
de revitalização da área, expressa contradições que contrapõem moradores locais em luta pela
garantia do direito à moradia e o Governo do Estado da Bahia, atores principais deste embate.
Gradativamente foram sendo constituídos espaços de negociação e mediação através de
diversas arenas públicas de participação dos moradores neste processo. Conquanto essa
participação surgisse por uma demanda dos próprios moradores e daqueles que foram se
constituindo como sua assessoria em defesa dos seus direitos, essa participação era restrita,
seja pelo pequeno número de pessoas mobilizadas, seja quanto às reais possibilidades de
mudança do projeto.
Para analisar estas questões a pesquisa priorizou uma das intervenções urbanas
implementada pelo Governo do Estado da Bahia1, o Projeto da 7ª Etapa de Revitalização do
1
A coordenação deste processo foi da Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia
(CONDER), uma empresa pública, com personalidade jurídica de direito privado, vinculada à Secretaria de
Desenvolvimento Urbano, e que tem por finalidade promover, coordenar e executar a política estadual de
desenvolvimento urbano, metropolitano e habitacional do Estado da Bahia.
11
Este processo, que implicou, ao mesmo tempo, numa demanda de participação popular
e na defesa do direito à moradia pelos moradores, explicita os limites e avanços alcançados
para a participação dos moradores no projeto sua luta para que pudessem se expressar e serem
ouvidos pelo governo. Neste processo observam-se contradições entre “diferentes tempos”
vividos pelos atores: o tempo oficial do desembolso dos recursos dos financiadores e dos
mandatos executivos, que se contrapõem e confrontam com o tempo necessário para a
organização comunitária e popular de forma a poderem absorver essas informações, formular
suas propostas, sistematizar e apresentar suas demandas e expectativas, além do desafio de
conciliar essas dificuldades às condições efetivas da reprodução e da sobrevivência. O papel
das mulheres em maioria, dentro da organização popular, também ganha destaque. As
estratégias criadas, a organização comunitária da associação de moradores, o uso da mídia
impressa, a busca das parcerias, a construção de documentos públicos e a mediação da justiça,
através do Ministério Público do Estado da Bahia, foram observadas como ações
desenvolvidas a partir do poder de expressão dos moradores. Esses gradativamente foram
descobrindo e reconhecendo, na dinâmica do processo de implementação e de resistência
deste projeto de intervenção pública, o seu direito à voz e a necessidade de constituição do
diálogo e do conflito.
***
Desde 2001 passei a integrar a Equipe Urbana do Centro de Estudos e Ação Social -
CEAS, entidade de assessoria aos movimentos sociais urbanos e rurais da Bahia, que tem por
missão refletir e agir diante das questões que envolvem as lutas populares. Esta equipe, de
caráter multidisciplinar, acompanha as lutas de moradores e moradoras de bairros populares
para efetivação dos seus direitos, principalmente a garantia da moradia. Durante os meus
primeiros anos de assessoria acompanhei processos de enfrentamentos e resistência de
moradores em bairros como Marechal Rondon, Cabrito, Gamboa de Baixo, Bairro da Paz,
Centro Histórico, todos vivenciando situação de conflito em função da redefinição dessas
áreas por novos planos de ocupação e revitalização dos mesmos por parte do Poder Público,
seja do Governo do Estado da Bahia ou da Prefeitura Municipal da Cidade de Salvador.
2
O CEAS é uma entidade fundada em 1967, em Salvador/BA e desde então atua junto aos movimentos
sociais urbanos e rurais do Brasil na busca dos seus direitos, refletindo historicamente a sua prática.
13
acompanham o fazer político. No plano pessoal, algumas angústias vividas enquanto assessor,
começam a ser formuladas no sentido de sistematizar essa experiência e de apreendê-la do
ponto de vista analítico com recurso a uma reflexão acadêmica. Consciente dessa necessidade,
me orientei para buscar esse dialogo pessoal com a academia, com vistas a traduzir o
conhecimento da prática no âmbito da teoria, que me permitissem um olhar mais crítico e
analítico sobre os problemas e processo desde a seleção até a formulação mais clara de um
objeto de análise.
Desta forma, o resultado deste esforço foi definir e restringir o objeto considerando a
formação de uma “esfera pública”, e a formação de um sujeito -o morador- que se reconhece
como cidadão de direito sobre a cidade, conflitando com outros fins e usos do espaço urbano:
a preservação do patrimônio cultural para fins de turismo. A formação dessa esfera pública
não é aqui vista como uma abstrata ou preexistente, mas ela se constitui diante da ação de
intervenção do Poder Público, que tem poder regulador, mas que traz implicações sobre “o
outro” – os cidadãos, moradores da área.
um espaço público. Por outro lado, esse processo foi também ampliado e expresso na
imprensa, na mobilização da opinião pública.
A tensão que envolve a definição dos destinos desta área urbana implica um gradativo
processo de formação e informação pública sobre o destino da área, sua funcionalidade em
relação ao desenvolvimento urbano e seus efeitos sobre os seus antigos ocupantes. Este
processo permite levantar três hipóteses previas: a primeira, a de que o lugar, a sua formação
e constituição não resulta apenas dos traços morfológicos dos planos urbanos e desenhos
arquitetônicos, mas se constitui diretamente associado à dinâmica das relações sociais. Em
segundo lugar, a relação dos habitantes (moradores e trabalhadores) com o lugar, como
espaço de uso e de sobrevivência, envolve uma tensão subjacente que resulta do padrão de
distribuição de recursos fundiários e bens urbanos sobre o território e sobre os segmentos
sociais; e, por fim, uma terceira dimensão, num contexto democrático, envolve a transição e
mudança de uma cultura política autoritária, para um contexto que assegura direitos de
participação da cidadania nos projetos urbanos da cidade, dispondo à opinião pública projetos
distintos. Esse processo envolve operações de denúncia e busca de justiça, pelos quais os
diversos sujeitos começam a definir-se e reconhecer-se, são descritos, redefinidos e
localizados no âmbito da estrutura social da cidade.
***
3
O Monumenta é um programa de recuperação do patrimônio tombado pelo IPHAN. Sua atuação no
“Centro Histórico” de Salvador resulta de um contrato de empréstimo firmado entre o Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID) e o Governo Federal, através do Ministério da Cultura (MinC). A unidade executora do
projeto (UEP) está vinculada à CONDER, que é um órgão da Secretaria de Desenvolvimento Urbano (SEDUR).
Inicialmente, os recursos anunciados para a 7ª Etapa são de R$ 18.341.000,00 (BID/ MinC /Estado) mais R$
14.500.000,00 (CAIXA/ Gov. do Estado).
4
As informações quanto ao número de edificações a serem inseridas oscilam nos locais em que o
governo da Bahia as publica: sites oficiais, material de divulgação da CONDER e Jornais da cidade.
5
Este mapa foi construído pela equipe técnica da CONDER e só foi adquirida pela AMACH –
Associação de Moradores e Amigos do Centro Histórico após 6 anos de negociação e embates com o Governo
do Estado da Bahia.
16
Figura 1:
Figura 1: Poligonal da 7ª Etapa de Recuperação do Centro Histórico. Fonte: CONDER.
***
No capítulo “As grandes cidades”, Engels apresenta uma detalhada descrição dos
espaços de moradia dos bairros proletários da Inglaterra no séc. XIX. que lembra em muito,
tomadas as devidas reservas e guardadas as devidas proporções, os aspectos físicos e sociais
da área dos moradores residentes na área da 7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico de
Salvador. Essa comparação, marcada evidentemente por contextos históricos e regiões
totalmente diferentes, mostra a persistência de uma visão moralista e estigmatizada da
pobreza e dos bairros populares como “bairros de má reputação”. No caso específico da área
da 7ª Etapa em estudo, ela é caracterizada como território “abandonado”, “perigoso”, ou
“cracolândia”.
Desde o início das minhas idas a campo, ainda no ano de 2002, percebia o quanto
aquela área estava abandonada pelo Poder Público. Descrever as minhas impressões iniciais
da área da pesquisa, naquele momento, é de fundamental importância, porque esclarece o
cenário encontrado no momento de intervenção da 7ª Etapa. Algumas ruas, principalmente as
que delimitavam com o Centro Histórico reformado (Monte Alverne, São Francisco)
demonstravam explicitamente as grandes diferenças entre estes dois espaços e, porque não,
entre dois territórios vizinhos, arquitetonicamente parecidos, mas social e culturalmente
opostos: aquele reformado pelas etapas anteriores de revitalização e já ocupado com as
atividades de comércio para o turismo, e a 7ª Etapa, completamente abandonada pelo Poder
Público, onde viviam famílias e pessoas em situação de extrema pobreza.
A riqueza rindo-se do alto dos seus brilhantes salões, rindo-se com uma
brutal indiferença, mesmo ao lado das feridas ignoradas da indigência! A
alegria, zombando inconscientemente mas cruelmente do sofrimento que
geme ali em baixo! (THE TIMES, 12 de outubro de 1843, p. 4, col. 3, apud
ENGELS, 1985, p. 44)
A tipologia habitacional também chamava minha atenção nas primeiras visitas. Apesar
da área integrar o mesmo patrimônio arquitetônico, o Estado das casas da 7ª Etapa era um
sinal iminente das tragédias que geralmente ocorrem nestes sítios abandonados, a exemplo
dos desabamentos, incêndios, insalubridade. Os desabamentos eram constantes e, segundo
relatos dos moradores, eles reconhecem o momento do desabamento pelo barulho das raspas
de tinta e cimento ao chão e o ranger singular das paredes antes da sua caída; quando esta
percepção é possível, há tempo para salvar vidas. O chão das casas, geralmente de madeira,
estava em situação tão ruim que desafiava os passos dos desacostumados com o ambiente.
19
Lembro-me que na casa de uma das mulheres que acabou se constituindo numa das lideranças
políticas comunitárias, eu sempre era alertado para não pisar no centro do corredor de entrada
pois, pisando neste centro, corria-se sério perigo do chão ruir e a queda levaria direto a um
subsolo onde a lama, o lixo e os pedaços de ferro e madeira poderiam causar graves
ferimentos. Assim, todos se espremiam pela parede para atravessar até os cômodos internos.
A tática utilizada pelos moradores para se manterem nessas casas, e manterem suas casas em
pé, mesmo sob risco de desabamento, era a realização de pequenas reformas, como a
colocação de uma viga de sustentação em uma parede, limpeza interna, pequenas obras de
esgotamento, telhados... que de algum modo acabavam também por preservar estes ditos
patrimônios históricos da humanidade, sem as quais o Centro Histórico possivelmente estaria
em situação habitacional bem pior.
A insalubridade somada à superlotação das moradias, em alguns casos, fazia com que
a casa fosse apenas um lugar de abrigo, e não um local de convivência ou habitabilidade. Esta
situação insalubre, com muito mofo, umidade e sujeira era responsável por problemas
respiratórios que afetavam boa parte das famílias, principalmente as crianças, os recém
nascidos e os idosos. As sublocações e o amplo número de entes familiares em um só espaço
faziam parte da forma de alojamento destes casarões e sobrados históricos, sendo comum a
falta de espaço e os problemas na utilização dos sanitários por um numero maior do que ele
suportaria. Abaixo segue parte do relatório que redigi à época, em 2 de setembro de 2002,
quando do acompanhamento da equipe de estudantes de engenharia da UFBA (Universidade
Federal da Bahia) para construção das plantas baixas das casas, a pedido da Associação de
Moradores:
[...] Ao entrar no casarão de nº. 35, o forte cheiro de mofo, esgoto, as paredes
e telhados rachados, as tábuas de madeira no chão que mexia a cada pisada e
os olhares desconfiados dos muitos moradores que habitam o local,
pareciam, de certo modo, amedrontar aquela equipe de cinco estudantes de
engenharia que se disponibilizaram a construir plantas baixas das casas...
Uma das meninas segurou logo no braço do rapaz para não cair nas
escadarias de madeira antigas que realmente não demonstravam segurança
alguma... a outra garota permaneceu o tempo todo com os dedos tapando o
nariz para assim se livrar do cheiro do ambiente. A dona do imóvel ia
conversando e andando como se não percebesse o incomodo da equipe e eu
também fingia que não percebia e aproveitava para brincar com as crianças
que se equilibravam nas madeiras “como equilibristas do circo da vida”. A
20
situação fez com que uma das meninas, aquela que segurava o nariz, tomasse
logo uma decisão: “esta casa fica pro final, vamos!”(CEAS, 2002, p. 01-02)6
Christian Topalov (1996), no seu trabalho “Da questão social aos problemas urbanos:
os reformadores e a população das metrópoles em princípios do século XX”, ao analisar as
cidades inglesas do princípio do séc. XX, permite estabelecer outra analogia entre a sociedade
inglesa e as reformas urbanas e primeiras intervenções públicas nas cidades, quando ele
interpreta as práticas cotidianas realizadas nos bairros populares como argumentos possíveis
6
Este relato etnográfico compõe o relatório intitulado “Pelourinho: uma simples conversa” de 02 de
setembro de 2002 e compõe o acervo da Equipe Urbana do CEAS
21
dos moradores para não deixar tais áreas. Para Topalov, inclusive, as habitações precárias
nunca seriam vistas por estes moradores como uma razão potencial para seu realojamento em
outras regiões da cidade, ainda mais quando se tratava das áreas centrais, onde o
deslocamento e a facilidade da mobilidade urbana eram fatores facilitadores para
sobrevivência e busca de pequenos trabalhos e serviços. Diante da possível ameaça de retirada
dos moradores dessas áreas, o autor relata formas de resistência dos moradores de irem para
as chamadas “cidades-jardins” que seriam bairros destinados a “acolher” tal população e que
sempre ficavam muito distantes do centro.
***
2000 e prossegue até os dias atuais (2011). Porém, para efeito desta pesquisa restringimos o
trabalho de análise ao período de 2000 (de anúncio da intervenção) até 2007, quando ocorre a
entrega das primeiras moradias para as famílias.
7
As informações quanto ao número de edificações a serem contempladas oscilam nas diversas fontes em
que o Governo da Bahia as publica: sites oficiais, material de divulgação da CONDER e jornais da cidade.
23
Foram essas denúncias na mídia que fizeram com que a Equipe Urbana do CEAS, e eu
pessoalmente, tomássemos conhecimento do processo de intervenção na área. O que mais
caracteriza este momento foi exatamente a ameaça do risco de relocação e o sentimento de
injustiça que aflorava desta organização popular diante da desapropriação dos imóveis, e da
falta de diálogo e informações do Poder Público (governo do Estado) referentes ao Projeto da
7ª Etapa. Desconhecia-se detalhes do projeto, os valores oferecidos como auxílio-relocação
pago às famílias que “aceitavam” pagamento para deixarem os imóveis eram baixos, temia-se
a possibilidade de relocação para bairros distantes, como Coutos, que fica a 43km do centro
da Cidade e, o mais grave, a impossibilidade de permanência no Centro Histórico.
continuavam, na nova etapa, diante apenas de duas opções: a relocação para o Bairro de
Coutos ou o valor do auxílio-relocação, já que as casas em que moravam seriam destinadas
para a habitação de funcionários públicos através de programa habitacional da Caixa
Econômica Federal. Intensificavam-se as ações jurídicas junto ao Ministério Público, que se
materializaram na construção da Ação Civil Pública contra a CONDER, e com o PT (Partido
dos Trabalhadores), este último responsável pela elaboração de uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADIN), a ser encaminhada ao Supremo Tribunal Federal, gerando
assim as primeiras arenas jurídicas de embates, que vão marcar todo conflito nos anos
subsequentes.
pelo aumento significativo das denúncias na mídia, das cartas denúncias enviadas aos diversos
órgãos públicos, instituições da sociedade civil e ao público em geral, de manifestações e atos
públicos (incluindo aqui a participação da AMACH junto a Articulação de Luta por Moradia
na mobilização contra a CONDER) e das constantes audiências junto ao Ministério Público.
Neste ano foi lançado o Dossiê de luta por Moradia, tendo contribuição marcante da
AMACH. Também foi um ano de intensa troca de experiências entre os moradores de vários
bairros. As principais lideranças foram fortalecidas com o aprendizado político, que as
influenciou na construção de uma visão mais ampla sobre os problemas da cidade como todo,
baseada nesta troca de informações, onde todos puderam conhecer a realidade e problemas
dos bairros envolvidos, com seus principais problemas e demandas frente ao Poder Público.
Estes laços, estas trocas, perpassam aspectos da representação política, mas ganham ao
mesmo tempo a dimensão de formação da cidadania, onde principalmente as mulheres
acabam demonstrando maior aproximação umas com as outras e desenvolvendo um
sentimento de identidade como “modestas” protagonistas dos espaços de resistência. A
análise do papel da liderança dessas mulheres é de fundamental importância, já que explicita
os avanços e obstáculos à participação popular nos projetos de intervenção urbana, onde
conflitam os imperativos e constrangimentos da lida cotidiana dessas mulheres e os seus
papeis como lideranças comunitárias.
2004 foi marcado pela vitória da Ação Civil Pública que, somada às outras ações e
acontecimentos que envolveram a organização comunitária, resultou na ampliação de espaços
de discussão e embates importantes entre o Poder Público e os moradores da 7ª Etapa.
Com o resultado da vitória da Ação Civil Pública que, entre as diversas solicitações da
AMACH, obrigava o Governo do Estado da Bahia a dialogar com as famílias até que um
26
acordo fosse firmado entre as partes (AMACH e Governo), começa, então, uma série de
reuniões com a CONDER. Para firmar o Acordo, o Ministério Público constrói um TAC –
Termo de Ajustamento de Conduta, assinado em junho de 2005, obrigando o governo do
Estado a cumprir uma pauta de questões e demandas da AMACH. Esta pauta foi resultado do
documento produzido pelos moradores, junto com o CEAS, na Articulação de Luta por
Moradia, o “Dossiê de Luta Por Moradia: Como Salvador se Faz”.
Neste mesmo ano, o PT ganha as eleições estaduais para governador (Jaques Wagner),
vindo a assumir o mandato em 2006. É um período em que se registram algumas vitórias na
pauta de demandas dos moradores.
9
O Comitê Gestor foi instituído pelo Ministério Público como espaço de diálogo entre as partes
envolvidas para definição de questões e entraves na negociação. Ele se constitui como espaço consultivo e
deliberativo, de caráter paritário, composto por três organizações da sociedade civil (AMACH, CEAS e UEFS –
Universidade Estadual de Feira de Santana) e três representantes dos órgãos públicos (CONDER, IPAC,
SEDUR).
27
significou mudanças quanto aos benefícios almejados e imediatos antes definidos para a
maioria das famílias.
Só no ano de 2006, depois de muita pressão dos moradores, foram realizadas oito
apresentações públicas do projeto, as primeiras visitas às casas com uma comissão de
moradores junto com os representantes dos órgãos públicos de engenharia competentes e as
empreiteiras responsáveis, quando as mulheres puderam, finalmente, sentir o como serão suas
novas moradas. É um momento de muita curiosidade, felicidade e novos questionamentos. As
reuniões de discussão durante esse ano se orientaram mais para os projetos arquitetônicos das
casas e das propostas sobre possíveis projetos sociais, com os moradores.
Em 2007 o governo Wagner chama a AMACH para realizar uma festa de entrega das
primeiras chaves das casas aos moradores. Era evidente a construção do “palanque político”
do governo neste momento, mas a AMACH também identificou nesse espaço uma
oportunidade para continuar suas ações, fazendo dele também um campo de luta onde foi
elaborado um texto denúncia pela presidente da AMACH, com todas as demandas e limites
dessa vitória diante das autoridades presentes. A entrega das chaves reorienta a pauta da luta
comunitária até os dias atuais, expressando-se em termos na forma de cobranças e de
denúncias dos problemas de infraestrutura que as primeiras casas já apresentavam, do atraso
no cronograma de obras, da regularização jurídica da documentação da casa, da definição da
área para comércio informal, creche, lazer, o acompanhamento e proposição dos projetos
sociais para as famílias envolvidas, o valor a ser pago pela moradia e a finalização de todas as
outras residências, já que foram entregues apenas em torno de 18 apartamentos até o momento
de elaboração desta pesquisa (2010). É importante lembrar que cada um desses aspectos
envolve diversas reuniões com órgãos públicos como a CONDER, Ministério Público,
AMACH e diversas formas de luta: abaixo-assinados, mobilização comunitária, denúncias na
mídia.
***
28
Como esta participação está condicionada de um lado pela capacidade dos cidadãos
em mobilizar-se e de outro pelo contexto político do governo em suas diferentes escalas
retomaremos a uma noção de cidade, de Milton Santos, Henri Lefebvre, David Harvey,
observando as teorias higienistas do séc. XIX, que condicionaram muitas das perspectivas
ainda vigentes nos projetos oficiais e assimiladas pelo senso comum inclusive pelos próprios
moradores.
urbana, que sempre acompanhou a concepção de cidade, nem sempre próximo da cidade
vivida.
Aqui retorna-se título do seminário “Como Salvador se Faz”, que referenda o dossiê
organizado por um grupo de lideranças de oito comunidades populares de Salvador, todas
ameaçadas de despejo forçado em função de intervenções do Poder Público no ano de 2003
(Articulação de Luta por Moradia, 2003) em processos que suscitam a reflexão do termo de
gentrificação (gentrification). Neste documento a “dor” se torna práxis das lutas destes oito
bairros e, em uma das reuniões deste grupo de lideranças, surgiu a idéia democratizá-la como
a condição possível, em Salvador:
Para entender esse processo tomamos por referência analítica a noção de “esfera
pública” de Hannah Arendt (1989), que destaca a importância estratégica da avaliação e
reavaliação de um acontecimento e das ações consequentes, processo pelo qual vão
aparecendo as diversas concepções entre os atores, seus julgamento de valores sobre o outro,
que orientam práticas e percepções distintas sobre os sentidos do espaço e o lugar social dos
moradores. Aqui retemos a distinção feita por Arendt entre o que ela denominava de “mundo
público” ou “esfera pública”. É neste espaço sempre em construção e que emerge
efetivamente das formas dialógicas entre os atores envolvidos num embate os atores
“compartilham” suas opiniões, pela necessidade de impor uma posição e definir sua pauta e
demandas e assim acabam se mostrando, se revelando.
O presente estudo irá analisar este “espaço que ilumina” e revela “onde eu estou”,
“com quem estou” e “com quem dialogo” na dinâmica de um processo intersubjetivo. O
anúncio da 7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico de Salvador seria então o objeto
desta reflexão, suscitando poderes entre atores envolvidos que se apresentam, avaliam e
30
definem constantemente “quem eu sou”, o que quero, o que eles querem, o que é justo,
desenvolvendo ações orientadas para a consecução de suas demandas.
Neste sentido, analisar a participação dos cidadãos dos bairros populares nos projetos
públicos de intervenção implica apreender também as formas e os tempos de processamento
das organizações de base existentes. A participação requer tempo de maturação, tanto de
acesso às informações ditas públicas, muitas vezes só conseguidas com ações no Ministério
Público, como o tempo demandado pelo imperativo da própria luta pela sobrevivência e
construção da mobilização comunitária, que disputam com os ritmos impostos pelo tempo
tecnocrata e político, que impõem e pressionam por resultados rápidos e imediatos.
31
No entanto, é preciso atentar para o formato deste espaço público, no caso estudado da
participação popular no projeto de revitalização do Centro Histórico de Salvador, e as
possíveis deformações que suscitam, simulacros, poder físico, poder de coação, “o poder não
legítimo”, seguindo análise de Arendt. A democracia, e o “poder comunicativo” verdadeiro e
consensual, fundamentam a legitimidade do direito, sendo eles alicerces da esfera ou espaço
público, da “vita activa”, a vida humana na medida em que se empenha em fazer algo
(Arendt, 1983, p. 31). Seriam, então, a vita activa e o “mundo da vida” o terreno para a
formação do reconhecimento e de consensos. Retornando à intervenção pública sobre o
Centro Histórico de Salvador vamos analisar o campo conflitante de usos diferenciais sobre a
cidade e a natureza das arenas públicas de participação na mediação e encaminhamento deste
conflito entre moradores e o projeto oficial de revitalização para a área em reforma.
documental dos órgãos financiadores (Caixa Econômica Federal e Banco Mundial) permite
conhecer as diferentes percepções que compõem as ações comunicativas e as implicações
referentes à participação popular no processo, os critérios de financiamento, avaliação e
repasse dos recursos. Foi também utilizado um acervo documental composto de documentos
públicos (projetos, Ações Jurídicas), documentos produzidos pela Associação de Moradores e
Amigos do Centro Histórico - AMACH, dossiês e relatórios que fui acumulando durante os
anos de acompanhamento da luta desses moradores, enquanto membro da Equipe Urbana do
CEAS. Esse trabalho de assessoramento me permitiu organizar e acumular um material
documental importante, que foi disponibilizado para esta pesquisa, com a aprovação desta
instituição.
Uma outra fonte de pesquisa se constituem das matérias divulgadas pela mídia
impressa, aporte fundamental para a apreensão da ação de denúncia, os jogos de formação da
opinião pública, pela qual os moradores atingidos explicitam o seu ponto de vista sobre a
questão, denunciam e publicizam sua condição diante da a intervenção mobilizando a opinião
pública em seu favor. Um arquivo com as reportagens de jornais locais catalogado facilitou o
processo da pesquisa.
capítulos iniciais tratam respectivamente do processo histórico e modificações sociais por que
passou o Centro Histórico de Salvador até sua 7ª Etapa de Revitalização, analisando como foi
constituída gradativamente a esfera pública no lastro dos embates e discussões desde o
anúncio desta intervenção no local estudado.
compreensão dos alcances da dinâmica política dos agentes sociais nessas arenas criadas,
recorrendo às noções de, vita activa, observando as formas de representação e julgamentos de
valor dos atores, que orientam práticas e percepções distintas sobre um mesmo espaço, a
partir do embate e disputa por projetos distintos, que forjam processos de avaliação e
reavaliação dos moradores sobre seus direitos diante da intercessão do planejamento público
sobre as suas condições de vida.
35
10
Aqui, podemos nos arriscar a dizer que essa concepção aproxima-se das atuais projeções para as
cidades orientadas segundo um olhar técnico dos especialistas em arquitetura e ou urbanismo, mas que não
levam em conta as singularidades, especificidades e a vida estruturada local, a exemplo do que ocorre na
implantação da 7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico de Salvador, objeto desta dissertação.
36
Para Santos, este período corresponde à chegada do governador geral em 1549, indo
até final do séc. XVI e se caracteriza como um primeiro momento de intervenção racional e
planificação da cidade que marca a formação dos bairros centrais da cidade. A mesma
reflexão, sob ponto de vista da racionalidade da cidade planejada foi trazida por Antônio
Heliodoro Lima Sampaio, quando ele também afirma, analisando a construção da cidade de
Salvador, que:
Milton Santos destaca dois momentos de intervenção sobre a cidade, intermediado por
uma fase de construção espontânea deste sitio (SANTOS, 2008: 144). Esta teve inicio no
começo do séc. XVII e teve longa duração. Vários fatores influenciaram esse processo de
urbanização espontânea da cidade: a extensão linear dos sobrados urbanos (moradia nos
andares superiores, comercio no térreo e área dos escravos) em função da falta de terras
públicas ou apropriação dos terrenos pelas obras religiosas; as migrações; segregação espacial
entre as prostitutas, soldados, pessoas de posses, pescadores, pobres, comerciantes; ruas
tortuosas; pequenas praças. (SANTOS, 2008, 107). A professora Ângela Gordilho detalha as
características das habitações daquela época em Salvador onde se pode identificar traços
habitacionais da área em estudo, do “Centro Histórico” de Salvador:
Fazem-se novos cais sobre aterros... sobre estes aterros são construídos
grandes imóveis de utilização comercial, sobretudo.
Em 1871, a Companhia Trilhos Centrais liga o “Centro Antigo” aos bairros da Vitória,
Graça, Barra, Federação, com planos de expansão até o Rio Vermelho, reflexo, segundo
Sampaio, do “evidente” dinamismo urbano fruto da própria emergência capitalista do período
(SAMPAIO, 1999: 68). Ainda conforme este autor a expansão em direção ao sul (Campo
Grande e Vitoria) significará a “materialização de segregação social dos brancos” e, como
parte do mesmo processo, nos bairros ao norte as massas mais pobres vão permanecendo ou
adensando o centro tradicional (ibidem, 72).
Esta mobilidade urbana das classes mais abastadas no final do sec. XIX propiciou o
adensamento do centro pelas classes populares, que encontravam a necessidade do teto, como
refletiu Ângela Gordilho. Para ela, os sobrados que vão sendo “deixados para trás” passam a
ser subdivididos em pequenos cubículos, “principalmente no Centro antigo”, multiplicado
unidades habitacionais que “irão dar origem aos futuros cortiços” (GORDILHO, 2000: 94). O
advento do transporte coletivo foi então fundamental para esta nova espacialização e
diferenciação dos territórios urbanos ali em processo de construção e reconstrução:
Para agravar a situação, surtos de cólera, febre amarela, tifo e tuberculose (início do
sec. XX) somam-se às influencias deste contexto de delineamento dos territórios da cidade,
principalmente seu centro, como evidentes fatores que remontam às intervenções políticas na
época. Este aspecto sanitário dos surtos de doenças, que causaram muitas mortes na cidade,
influenciou então a organização administrativa, voltada para o combate das endemias e,
urbanisticamente, trouxe uma consciência técnica e social de que as normas e as obras
públicas de saneamento básico eram condições para o combate às doenças. As constantes
epidemias influenciam então as “Posturas Municipais” que passaram a estabelecer normas e
controles sobre a higiene na cidade em geral. Pode-se afirmar que o problema da saúde se
reorientou, passando também a ser considerado como uma questão de engenharia. Segundo
Sampaio, o início do sec. XX trouxe para Salvador o paradigma da cidade moderna em três
condições básicas: de higiene, fluidez viária e estética da beleza. Para ele,
físico da população: que por isso mesmo, eles agem como obstáculos a
educação e ao desenvolvimento moral, que diminui a esperança de vida da
população operaria adulta, interrompem o crescimento das capacidades
produtivas (BEGUIN, 1991: 40)
Com esta gradativa desocupação o Centro Histórico passou a ser habitado por pessoas
empobrecidas, vendedores ambulantes, biscateiros, alfaiates, pescadores, prostitutas, artesãos,
malandros, capoeiristas, atraídos pela possibilidade de residir próximo do centro, onde
conseguiam desempenhar as atividades que lhes garantiam o sustento. Os velhos sobrados
foram abandonados e logo ocupados, alugados e sublocados pela população desabrigada. Esta
realidade trazia um novo aspecto para a área: muitos diziam que ali se encontrava a zona de
prostituição, ali se constituía uma área perigosa, de bandidagem, criando também um estigma
a esta área. Esta imagem de degradação física e moral vai ganhando força desde meados até
final do sec. XX, associando diretamente os seus moradores à imagem de degradação do
lugar.
com base na diferenciação da teoria do valor entre valor de uso e valor de troca, o que
determina contradições e diferenciações e desigualdades sobre o território. Segundo o autor,
quando estas forças produtivas atingem uma tal potência, acabam por criar uma contradição
principal - o espaço produzido globalmente e suas fragmentações, pulverizações,
despedaçamentos - resultante das relações de produção capitalista. (LEFEBVRE, 1969: 09)
Em Salvador, nos anos setenta, além da implantação dos grandes parques industriais,
efetiva-se a implantação de um moderno sistema viário, que dá acesso aos vales da cidade,
abrindo novas fronteiras urbanas. Abrem-se as avenidas Paralela, Centenário, Bonocô,
Antônio Carlos Magalhães, estrada CIA-Aeroporto, o Centro Administrativo da Bahia
desloca-se para este vetor norte (CAB), delineando-se novas ou outras centralidades. O
professor Milton Santos, na sua obra “Urbanização Brasileira” (1993) analisa este processo
como “urbanização corporativa”. A sua abordagem de “urbanização corporativa” ligada à
expansão capitalista o aproxima da perspectiva analítica de Lefebvre (industrialização e
urbanização), considerando a própria expansão da cidade de Salvador, principalmente após
1950, como resultado do crescimento industrial e suas consequências na atualidade.
Impressiona a atualidade das reflexões de Milton Santos, ainda mais quando confrontados
com os fatos da capital baiana (Salvador) no período atual. Santos chega a afirmar que o
próprio Poder Público torna-se “criador privilegiado da escassez”. Ou seja, legitimando a
ideologia de crescimento e modernidade das cidades acaba por implementar políticas públicas
não demandadas pela maioria da população.
A questão da ocupação do solo urbano coloca a questão: quem pode ocupar a cidade?
Para Lefebvre “Não é um pensamento urbanístico que dirige as iniciativas dos organismos
públicos e semipúblicos, é simplesmente o projeto de fornecer moradias o mais rápido
possível pelo menor custo” (LEFEBVRE, 1969: 23). Ou seja, com a industrialização
crescente e a explosão popular, as classes burguesas em confronto direto com as classes
populares (lembrando que Lefebvre contextualiza historicamente estas análises para meados
do séc. XIX) começavam a se perguntar: “...como por ordem nessa confusão caótica?”
(ibidem, p. 27).
42
Na década de 1930 ganha força uma nova mentalidade econômica para o “Centro
Histórico” da Cidade de Salvador acompanhando uma tendência internacional , que
repercutirá na abordagem dos planos, visões e das próximas intervenções espaciais e sociais
para este sitio, com destaque para “a institucionalização do turismo”. Segundo Lysiê Reis, a
Carta de Atenas de 1933 dá início à discussão em torno da preservação das “áreas de valor
monumental”, sendo que a partir de 1950 tornam-se mais pragmáticas as definições
internacionais para preservação através de normas, leis e delimitação do que seria considerado
“Centro Histórico”. As consequências destrutivas das duas grandes Guerras Mundiais do sec.
XX tiveram influência significativa na Europa para a constituição de uma política de
reconstrução e preservação destes centros antigos e, principalmente, os monumentos
históricos atingidos pelos bombardeios.
Porém, para Reis o conceito de “Centro Histórico” desde sua origem aparece confuso,
por tornar ambíguas as referências históricas de outras localidades da cidade, ser impreciso
quanto a sua delimitação geográfica (muitas vezes separadas apenas por uma rua) e congelar
parte da cidade como um “simulacro” cultural, patrimonial e histórico. A delimitação deste
44
território, ou sítio, ainda segundo Reis, pode estar determinada em função de interesses que
esperam “vender” o espaço para grupos distintos, anulando a identidade do lugar e
produzindo o “não-lugar” formador de outra identidade (REIS, 1998: 40, 46, 47). Próxima a
uma determinada preocupação em preservar e recuperar monumentos e centros urbanos
destruídos, seja pelas guerras, pelas intervenções de práticas destrutivas (“bota abaixo”, de J.
J. Seabra, em Salvador), ou pelo “abandono” e ocupação destes sítios pelas classes populares,
percebe-se em todo mundo e, em Salvador, particularmente, a vontade de viabilizar o
desenvolvimento turístico para estas áreas, tendo como atrativo a história, a cultura, a imagem
antiga e pitoresca que estes locais sugeriam.“Torna-se recorrente a comunhão entre a imagem
antiga e o ícone “Centro Histórico” como atrativo numa nova idéia de entretenimento” (REIS,
1998: 48)
Para Salvador, a realidade do seu centro em meados do sec. XX apontava para uma
área de realidade social híbrida, ocupada basicamente pelas classes populares que já
encortiçavam os casarios em função do seu relativo abandono, casas noturnas de alto luxo,
rede de comércio, igrejas, empresas e hotéis que serviam a outras classes sociais. A
reorientação da concepção de uso valorizando a vocação histórica e turística para o centro
estava explicita a tensão entre os projetos econômicos, agora com o capital turístico,
vinculado aos antigos proprietários de terrenos e casarões, dos comerciantes locais e a vida
das famílias de baixa renda que já ocupavam esta área central. Este sítio passa a ser outra vez
cobiçado pelas elites, como possível pólo turístico a ser revitalizado e, a partir desse novo
projeto, os seus habitantes considerados indesejáveis para este novo progresso.
planos. A tensão gerada pela possibilidade de permanência ou exclusão dos moradores das
classes populares pôde ser sentida durante todas as intervenções públicas futuras, destacadas a
seguir, onde se observa os movimentos do Poder Público quanto à estratégia de revitalização
da área, tendo como objetivo a manutenção da classe popular, que também remete a um
patrimônio cultural imaterial a ser preservado, ao mesmo tempo em que denotam os ditos
“problemas sociais” (prostituição, pobreza, habitabilidade, educação, etc.)
A pesquisa visava, entre seus objetivos conhecer a “atitude dos moradores com relação
a possibilidade de mudança do seu local para outros bairros” (IPAC, 1997, 32). Seus
resultados identificavam uma área híbrida de composição social, mas com incidência alta de
prostitutas e “desajustados”. Na sua conclusão, marcada com frases de efeito, a equipe chama
a atenção para as consequências de uma “ação de exclusão de parte dos moradores do Centro
Histórico” e atenta para uma “visão sistêmica dos problemas locais para a cidade como um
todo”:
Ali, estão, certo, prostitutas e desajustados, numa incidência muito alta. Mas
este fato terá que ser considerado em qualquer plano de reforma social da
área, como um elemento de diagnóstico social e não de repressão
sistemática. O mundo belo, vário e trágico do Pelourinho é apenas a moldura
colonial que se pretende conservar, da cidade maior em que se insere, e,
essencialmente, em nada é diverso dela (IPAC, 1997: 93)
O que se pode perceber nas análises (REIS, 1998; IPAC, 1997; QUEIROZ, 2006) é
que cada vez mais, e a partir da década de sessenta, mesmo com a tensão e as ambiguidades
dos discursos e planos do Governo para com o Centro Histórico e das lutas pela apropriação
do espaço, o que passa ser priorizado são os aspectos econômicos, inerentes ao bem cultural
requalificado, considerando-o como patrimônio cultural material, reorientando um novo
conceito e valores para a área, onde a imagem dos casarões, do sítio e dos monumentos
revitalizados assumem caráter simbólico para a contemplação externa do público,
prioritariamente o estrangeiro. Para David Harvey (1993), analisando o conceito de capital
simbólico de Pierre Bourdieu, a reabilitação e recuperação estariam a serviço do atrativo do
embelezamento e ornamentação, no caso do capital turístico, que se torna uma “ideologia
dominante”. Harvey, na sua obra “Condição Pós-Moderna”, destaca os novos modos de
intervenção urbana com base nas construções de cenários urbanos de “espetáculo”, onde o
“fetichismo” da imagem, denota uma preocupação direta com a aparência física urbana,
superficial, fundamentadas em bases competitivas e que oculta “significados
subjacentes”(HARVEY, 1993: 80 e 81). A citação abaixo de Harvey destaca um novo
paradigma do urbanismo contemporâneo que ajuda a entender a formação de um amplo
consenso sobre a vocação turística para o Centro Histórico de Salvador:
manutenção da população local, fato que será exposto e aprofundado no objeto de estudo aqui
referido, em relação à 7ª Etapa de Revitalização, em 2001.
Protesto Olodum
(Tatau)
...
Declara a nação
Pelourinho contra a prostituição
Faz protesto manifestação
E lá vou eu
(Bloco Afro Olodum, 2005: 292)
11
A terça feira no Centro Históricos é o dia da semana em que há a celebração na Igreja Rosário dos
pretos e os ensaios da banda Olodum, dia de movimento maior de pessoas no local
51
Até 1991, mais de 20 planos e ações tinham sido elaborados com vistas à reversão do
Estado de abandono em que se encontrava o Centro Histórico. Foram anos também em que as
pós-intervenções mostravam suas faces de crise, já em 1994, onde alguns segmentos de
comercio e lazer foram fechados, o que implicava alta rotatividade das lojas. Diversos fatores
começavam a ser levantados sobre as razões desta crise, tantos pelos órgãos financiadores,
sociedade civil, que rebatiam diretamente sobre o Estado. Esta avaliação crítica vai
condicionar as análises e e compor estudos que orientam as ações de revitalização da próxima
etapa, a 7ª Etapa, objeto de analise desta pesquisa.
Intelectuais, como Jorge Amado, questionava a feição “marginal” atribuída pelo senso
comum aos habitantes do Centro Histórico. Eles negavam e revertiam os termos de marginal
e/ou delinquente da área, para “pobre”, em direção oposta aos termos utilizados nos
documentos de políticas públicas. Outra dimensão assumida por eles considerava
positivamente a valorização dos trabalhos de conservação patrimonial feita pelos próprios
moradores em relação aos imóveis ocupados, desmistificando a imagem de que estas pessoas
depredavam esta riqueza material e histórica.
Portanto, a imagem de degradação e abandono, tanto físico quanto social, dessa área,
formulado pelos documentos oficiais através dos argumentos justificadores dos planos de sua
revitalização advinha dos poderes públicos e não das pessoas que ali moravam. Afinal, como
pude acompanhar durante o processo de pesquisa e trabalho no campo, os valores e interesses
das famílias em permanecerem neste local, uma moradia localizada no centro da cidade, não
deveria ser desperdiçada por um contingente enorme de famílias “sem teto”. Para eles e ao
que parecia, os casarões, não lhes chamavam atenção pelo seu valor patrimonial e histórico,
mas sim pela sua necessidade de habitar, e habitar no Centro da cidade. A “revitalização”,
agora avaliada em termos da permanência ou não destas pessoas, assume o desafio entre os
que se acham usurpados dos seus patrimônios e consideram que devem assim reverter-lhes à
propriedade publica, patrimonial, turística privada, e, de outro lado, os que, na medida do
(im)possível, acabaram por tornar este patrimônio moradia e fonte da própria subsistência.
Para Moura e Simões “o pecado maior do Maciel não é a prostituição ou o vício, mas a
pobreza, que ocupa o espaço que o grande capital quer tomar” (1985: 44). Essa análise
destaca a percepção do processo de Percebe-se de revitalização como higienização social, que
pode remeter ao debate sobre as terminologias do novo no prefixo do “RE” (revitalização,
restauro, reforma, requalificação, reabilitação, recuperação, repovoamento, regeneração,
renovação, renascimento urbano, onde contem sempre outra “RE” supostamente necessária à
“boa execução” das restantes: a RE -locação.
Diante dos processos e projetos de intervenção urbana com metas de transformar uma
determinada área, moradias, bairros em um ambiente mais “saneado”, “requalificado”,
“higienizado”, “revitalizado”, observam-se concomitantemente as consequências desses
processos simbólicos e institucionais sobre as relações vividas pelos moradores que, muitas
vezes, são caracterizados como “marginais”, “proletários”, “miseráveis”, “pobres”. Essa
perspectiva não é novidade e acompanhou todo o processo histórico de urbanização na Europa
do sec. XIX. Assim, antes mesmo de analisarmos os dados mais específicos da 7ª Etapa de
recuperação do Centro Histórico de Salvador, retomamos algumas preocupações e propostas
de intervenção urbanísticas em áreas cuja avaliação, seja pelo Poder Público ou privado,
remetia a uma vontade de transformar os ambientes ocupados em locais higienizados, ainda
na Europa sec. XIX e seu amplo processo de urbanização. Neste sentido, as reflexões de
François Beguin (1991) e de Christian Topalov (1996) são contribuições fundamentais para o
entendimento da gênesis dos “problemas urbanos” e das propostas dos “reformadores” na
Inglaterra pós-industrial.
Beguin no seu artigo “As Maquinarias inglesas do conforto” mostra uma ambiguidade
na preocupação social dos interventores, nas chamadas “questões sociais”, nos centros
urbanos da Inglaterra, onde mais do que proporcionar políticas públicas demandadas e
construída em conjunto com as classes operárias, estava intrínseca a preocupação em criar
ambientes de “conforto”, para que o proletariado da época pudesse viver de forma adequada
aos padrões preestabelecidos pela classe burguesa, influenciando, assim, uma maior
produtividade para o processo industrial e capitalista. Ele conceituou este fato como “uma
atenção dedicada ao custo econômico e social do desconforto”. (BEGUIN, 1991: 40)
Obviamente não se pretende aqui fazer uma comparação direta entre a Inglaterra do
sec. XIX e o Centro Histórico de Salvador do sec. XXI analisado nesta pesquisa. O esforço
está em estabelecer correlações sobre a determinação de fatos que, apesar da reconhecida
diferenciação histórica e distanciamento físico, geográfico, cultural e conjunturais,
reproduzem situações aproximadas, de fundamental importância para o entendimento
histórico dos processos históricos de reforma urbana e seus efeitos na atualidade dos projetos
de revitalização. Uma questão, por exemplo, que toca esta análise, diz respeito à reprodução
de um julgamento de valor moral sobre os segmentos em situação de pobreza, a degradação
física do local habitado e os supostos hábitos “desviantes”.
Harvey chama a atenção para o zoneamento das áreas de intervenção que passam a ser
ditados pelo mercado, mais do que pelo princípio do planejamento urbano, ainda que as
estratégias do mercado estejam em geral próximas às do Estado. Desta maneira, reflete a
preocupação do controle político ou do compromisso do Estado em estar “reconstruindo”,
“reformulando”, “renovando” o tecido urbano, principalmente ao tratar a situação de uma
Europa destruída pelas duas guerras mundiais e tendo, então, como um dos caminhos para o
desenvolvimento econômico o próprio atrativo urbano das suas cidades. Para tanto, segundo o
autor, a “eliminação” das habitações populares em determinados espaços se formam em
estratégias de “valorização” de um ambiente “recuperado” e com um novo destino, um
negócio para atrair capital.
“gentrification” (p. 79), termo atualmente bastante usado para designar uma mudança dos
aspectos socioespaciais de áreas urbanas, onde processos de revitalização acabam por realocar
moradores “ditos” incompatíveis com o novo valor, ou capital simbólico, agregado a uma área
de destino ao uso das “classes médias” ou “altas”.
Como afirma Neil Smith (2006), em estudo publicado no livro “De volta à cidade; dos
processos de gentrificação às políticas públicas de revitalização dos centros urbanos”, as
terminologias, revitalização, reforma, regeneração, etc., acabam por “mascarar” em discursos
os reais objetivos das intervenções. O termo “regeneração urbana”, por exemplo, é refletido
pelo autor como uma terminologia biomédica, utilizada para regeneração do fígado ou de uma
floresta e por isso a metáfora é reveladora.
Esta é uma das tensões implícitas ao contexto de luta dos moradores afetados pela 7ª
Etapa de Revitalização do Centro Histórico de Salvador, objeto dessa dissertação, onde os
moradores, apesar de assumidamente apresentarem seus esforços e limites em manter esse
“patrimônio vivo”, também não podem se apropriar de um bem considerado publico, a ponto
do seu uso se tornar excludente para a utilização de outras classes da sociedade. Por outro
lado, o papel do Estado, como ator regulador do uso do espaço público ao excluir os
moradores como atores legítimos na defesa dos seus direitos parece se deslocar em favor de
outros interesses de forças do mercado, ao desconsiderar a participação mais efetiva e
horizontal do diálogo e construção conjunta de alternativas e efetivação dos seus direitos
constitucionais, seja na possibilidade de permanência dos moradores, seja por um processo de
relocação considerado e aceito como justo pelas partes.
b) Prisões ilegais, sem flagrante delito como manda a lei, e, segundo alguns
moradores as pessoas são obrigadas a confessar o que não fizeram...
c) Invasão de domicilio...
12
Relatório A atuação da policia na área do Maciel, janeiro de 1984, elaborado pela Pastoral da Mulher
Marginalizada, p.21 (apud Simões e Moura, 1985, p.47).
61
Porém, o plano para a área tinha uma maior preocupação com a estrutura física, o
desenvolvimento do turismo e a ênfase no econômico. O valor cultural material sempre
justificou mais o interesse pelas “reformas” do Centro Histórico do que o valor cultural
imaterial representado tanto nas manifestações do povo que ali vivia, quanto pelos próprios
personagens da história da Bahia e do Brasil. A imagem da cultura do povo, do bem imaterial
foi muitas vezes utilizada para a mobilização dos recursos em projetos que, em tese, visavam
a permanência dos moradores locais, sensibilizando possíveis financiadores. Fato que será
melhor apresentado, e detalhado quando da análise da 7ª Etapa de Revitalização do centro
Histórico. Porém, cabe ainda elucidar alguns fatos referentes à natureza semântica do “RES”,
como o novo, o vigoroso, o virtuoso, que recobre convencimentos e sentidos para os projetos
de revitalização da área.
Reis (1998), em capítulo específico (capítulo III). analisa a “relocação dos moradores”
nas primeiras etapas de recuperação do Centro Histórico, com elementos importantes que
explicitam como ocorrem os projetos de recuperação e seus efeitos e consequências sobre a
13
Comissão de Revitalização do Centro Histórico de Salvador, iniciativa das antigas e tradicionais
entidades religiosas, culturais e assistências da freguesia da Sé. Em 1982 empreenderam uma ação coletiva em
defesa do Centro sob seus atributos (SIMÕES E MOURA, 1985, p. 49).
62
vida dos moradores das classes populares que habitavam o local. Segundo ela, pelos dados
divulgados pelo IPAC, para desocupação dos imóveis e a realização das obras foram
cadastrados todos os moradores e comerciantes da área e oferecidos a eles três tipos de
opções: uma indenização em dinheiro e o compromisso de abandonar a área; relocação
definitiva (mudar para um imóvel especialmente recuperado, pagando aluguel e com contrato
juridicamente válido); e a relocação provisória, opção válida para proprietários de imóveis
degradados, que poderiam ficar residindo provisoriamente em imóvel adaptado até retornar
para o de sua propriedade.
[...] houve opção maciça pelas indenizações, pois estas, calculadas caso a
caso, levavam em consideração o tamanho da família, o tempo de moradia
no “Centro Histórico” o que resultava numa indenização em valores
bastantes atrativos, pois a renda familiar média era menos de US$100 por
mês; o que não lhes permitia poupar, absolutamente, nada. Assim, 85% dos
moradores indenizados puderam adquirir casas populares em bairros
proletários ou de periferia (IPAC, 1995: 21 apud REIS, 1998: 94)
Ao final desta análise a autora refuta o último dado de que 85% dos moradores
puderam adquirir imóveis em bairros proletários por não haver qualquer tipo de documento
público que comprovasse tal afirmativa (idem: 94). O uso restrito para habitação e a
prioridade ao comércio também se tornou uma estratégia de relocar os moradores locais com
vistas a construção de um shopping a céu aberto, com lojas, serviços, bares, restaurantes,
teatros, cinemas. Estava posto em prática a corrente ideológica propagada da vocação turística
e fundada no capital simbólico do espaço transformado em mercadoria de valor de troca e de
consumo, mais que o de uso.
O advento da 7ª Etapa, mais uma vez recoloca o debate acerca dos sentidos e conflitos
dos processos de revitalização e relocação. A análise dessas questões é rica para o
entendimento analítico da ação dos atores ai envolvidos, qualificando o lugar específico da
perspectiva do entendimento das tensões de formação do espaço público, ainda que numa
escala reconhecidamente de pequena grandeza, quanto á sua repercussão.
A 7ª Etapa traz em si uma novidade quanto à avaliação do Poder Público ele põe em
questão menos a discussão sobre a viabilidade ou não de transformação ideal do espaço para
apenas o comércio e volta-se para a discussão da permanência dos moradores. As
ambiguidades que rondam o processo de negociação de quem deveria ter o direito de
permanecer ou ficar morando no Centro Histórico reaparece durante todo processo de
63
Este embate vai constituindo gradativamente uma esfera pública para as questões
singulares, específicas de cada morador e envolve o uso de diferentes recursos, a construção
de conceitos de cada ator sobre si mesmo e sobre os “outros”, a mobilização de diferentes
recursos, como o uso da mídia como esfera de debate, socialização de opiniões e, sobretudo
de denúncia. Essa dimensão da esfera pública criada, mesmo que singular, expressa o lugar de
confluência da palavra, do agir humano em direção a possíveis acordos, da luta social, onde as
pessoas e, consequentemente, os órgãos e instituições envolvidas operam processos de
diferenciação das concepções e também de formação de consensos sobre interesses nem
sempre conciliáveis.
A ambiguidade dos argumentos usados nos documentos oficiais constituiu-se uma das
características marcantes do conflito que envolveu a 7ª Etapa. O dossiê Como Salvador se
Faz; Dossiê de Luta por Moradia, organizado por nove grupos populares, entre os quais
associações, comissões, conselhos representativos de bairros e comunidades de Salvador em
parceria com o CEAS – Centro de Estudos e Ação Social, e que teve ampla participação dos
moradores atingidos pela 7ª Etapa, já denunciava esta ambiguidade. Este dossiê analisa os
argumentos utilizados pelo Poder Público nestes dois documentos referentes ao projeto, acima
citados, no momento em que os moradores e a sociedade tomaram conhecimento do início da
reforma desta 7ª Etapa. O primeiro, “Pesquisa Socioeconômica e Ambiental” realizada pela
CONDER em 2000 e apresentada aos órgãos financiadores, reconhece a identidade desta área
como centro de referência cultural e da cidadania, assentada no movimento negro, como se
pode ler a seguir:
Convém ressaltar que a área em questão manteve sua identidade como centro
de referência cultural e de cidadania para grande parte da população da
cidade (...). Esta identidade se estruturou com base no movimento cultural
negro, firmado ao longo dos últimos anos (...). Há, inclusive, quem o
considere o “núcleo simbólico da identidade da cidade”. Verifica-se,
sobretudo, que o Pelourinho é um espaço onde as classes pobres adquirem
representatividade através de sua cultura, essencialmente negra (CONDER,
2000: 7 apud Articulação de Luta por Moradia, 2003).
O segundo documento, que o Dossiê de Luta por Moradia tomou por referência na sua
análise foi o “Relatório Síntese de Andamento”, onde consta outra opinião e concepção sobre
a “Área de Intervenção” que, diferentemente do primeiro, considera como um local
“degradado e perigoso”. Esse argumento, utilizado por parte do Governo do Estado da Bahia,
através da CONDER, expressa um juízo de valor moral tanto em relação à área quanto aos
seus moradores. Em um trecho, assim se refere o Relatório ao local:
A área de 7ª Etapa é vista como um local degradado e perigoso, reduto de
marginais, prostitutas, travestis e desocupados, sendo vulgarmente chamada
de “cracolândia”, devido à existência de pontos de tráfico e consumo de
67
Essa caracterização retoma uma imagem dos moradores como invasores, marginais,
delinquentes e outras degradações mais. Novamente este documento oficial destaca o tema da
insalubridade: aparentemente neutro, ele ressurge como que para justificar a posterior
necessidade de “remoção” da população local. A constituição da 7ª Etapa como objeto da
ação pública enquadra-se então no discurso e fins da ação oficial do governo da Bahia, que
reconhece, de um lado, o direito do morador e da sua importância como sujeito de um projeto
em construção e, de outro, o acusa de “insalubre”, exigindo medidas saneadoras para o local.
A qualificação do território como área de risco e marginal, realidade bem conhecida dos
órgãos públicos, tornar-se-iam, por um lado, “argumento(s)” justificador(es) de uma ação
possível de “saneamento social” e “moral”, reforma, revitalização, relocação, remanejamento,
limpeza da área, afastando-se cada vez mais dos objetivos primeiros do projeto. Na
contraposição a essa (des) qualificação social os moradores da área contra-argumentam,
expressando sentimento de injustiça e requerendo o reconhecimento de seus direitos sobre o
“lugar” .
É com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano; e esta inserção
é como um segundo nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato
68
pelo menos se torne um conhecimento social, público. Este novo elemento introduzido, esta
ação irruptiva, e, no nosso caso, a reforma e revitalização do lugar de intervenção, interrompe
o processo ordinário da vida cotidiana. Nas exposições dos primeiros anúncios públicos da 7ª
Etapa de Revitalização do Centro Histórico podem ser observados, tanto nas matérias
publicadas pela mídia impressa ou nos documentos públicos que o justificam ou que refletem
sobre suas implicações, os primeiros impactos no cotidiano da área, e os diálogos vão
gradativamente expandindo as alianças e comunicando intenções distintas forjando uma
esfera política. Arendt considera que o mundo público é um “espaço que ilumina” e revela
“onde eu estou”, “com quem estou” e “com quem dialogo” e este processo é intersubjetivo.
Ou seja, para a autora a melhor forma de um ator revelar verdadeiramente quem é supõe que
ele se expresse no espaço público. Neste sentido, o debate entre os atores diante do anúncio da
7ª Etapa de Revitalização do Centro Histórico envolve tanto a crítica e a denúncia de uma
situação de risco como representa também um processo de autoavaliação, reavaliação e
definição constante de “quem eu sou”, o que quero, o que “eles querem”; o que é justo,
definindo as suas ações e suas vontades e vendo-se como parte de uma sociedade mais ampla.
Por outro lado, as observações desta esfera pública segundo Arendt possibilitam
também observar-se a pluralidade e as singularidades, igualdades e diferenças entre os atores.
No caso estudado, o processo de avaliação da intervenção pelos moradores significa tanto um
mecanismo de construção de sua igualdade como cidadãos moradores da cidade como reflete
sua condição histórica que o levou à ocupação de uma área tombada como “patrimônio
histórico”. Ao mesmo tempo, ele delineia suas diferenças, as subjetividades, as múltiplas
maneiras de viver no e do espaço urbano referido. Esse processo de diferenciação será mais
detalhado no próximo capítulo.
Hannah Arendt afirma que a “condição humana” implica uma igualdade no tratar da
mesma maneira uma situação, seja pela voz, palavras, audição, sons, linguagens, sinais. As
diferenças estariam na maneira e na alteridade de cada sujeito constituir seu poder de
expressão pelo saber próprio, constituído na contra face das desigualdades históricas e sociais
vivenciadas. Esse processo que opera ao mesmo tempo o seu reconhecimento como cidadão e
a singularidade do seu lugar político e social vai gradativamente se delineando no decorrer do
enfrentamento e luta desses moradores, quando a participação popular constitui-se uma
possibilidade real de expressão desses indivíduos e cidadãos para o público, mesmo
considerando os limites no exercício do poder da fala, que muitas vezes se constituíram em
barreiras de um mundo dialógico mais plural e democrático, como sugerido por Arendt.
70
matéria, estão se afastando do local, em função da citada “banda podre”, definindo, desta
forma, uma segmentação positiva das pessoas em condição de pobreza, entre o “pobre
socorrido” pela ação caritativa da Igreja – os pretensos bons pobres - e os “pobres moradores
da área”, de alta periculosidade.
No mês de outubro do mesmo ano (2000), a 7ª Etapa foi então anunciada ao público,
também através do jornal A Tarde, informando os custos das obras e a nova feição pensada
para a área, já indicando que implicaria uma substituição da sua população residente pela
ocupação de funcionários públicos para habitarem os casarões.
Em dois momentos distintos da mesma matéria fica explicita a real estratégia do Poder
Público em relação à reforma da chamada 7ª Etapa: a desqualificação dos atuais moradores e
a afirmação de uma estratégia de substituição da população para a área, trazendo, para
reocupá-la, funcionários públicos, através de planos habitacionais. Era a esfera pública,
expressando os interesses dos atores envolvidos.
de realizar objetivos coletivos” sendo que para ela o poder implica a capacidade da
comunicação orientada para o entendimento recíproco (ROUANET e FREITAG, 2001: 101).
As palavras e os argumentos do Governo do Estado da Bahia pareciam se impor como o mais
legítimo sobre o interesse dos moradores, utilizando-se inclusive da pressão psicológica e
moral para alcance das suas metas. A pressão era tamanha que, depois de caracterizar o grupo
de moradores como supostamente perigoso, formado por traficantes, usuários de crack,
prostitutas, travestis, caracterização que justificava moralmente o deslocamento das pessoas
da área, por parte dos gestores do governo, um morador antigo e idoso, entrou num quadro
depressivo e veio a falecer de um infarto após uma das audiências públicas que ele acabara de
participar. E aqui podemos arriscar dizer que as palavras podem ter força e violência.
Esse jogo hábil das palavras em vista ao alcance de um fim, realizado sem
entendimento mútuo dentro da esfera pública, para Arendt, é entendido como violência, já que
suprime a capacidade de efetivação da esfera pública funcionar em termos do exercício
democrático e possibilitar que este diálogo seja comunicativo e recíproco. Assim, o que vem a
público pode ser ouvido por todos e favorece a riqueza do mundo dialógico entre atores, que,
mesmo com capacidades e poderes diferenciados, essa sua expressão pública gera informação,
formação e possibilidade de reação. “As presenças de outros que vêem o que vemos e ouvem
o que ouvimos garante-nos a realidade do mundo e de nós mesmos” (ARENDT, 1983: 60).
aparência, ou seja, aquilo que é visto e ouvido por nós e pelos outros, constituindo uma
realidade que vem a público e tem testemunho; e a segunda, que se refere a tudo que é comum
a todos nós em diferentes do lugar particular que nos cabe dentro dele. (VALLADARES,
2009: 40). Mas, ainda segundo a autora, “Hannah ao tentar definir a relação da esfera pública
com a mídia ela define como a esfera das aparências, ocasião e condição em que se gera a
opinião pública (VALLADARES, 2009: 42)
Em janeiro de 2001 a 7ª Etapa é outra vez anunciada no jornal A Tarde que, enquanto
instrumento de informação pública, passou a se constituir, neste processo específico, na
principal instância de exposição dos interesses diversificados entre moradores e governo,
expondo sentimentos, vontades, valores e metas dos grupos envolvidos no conflito,
contribuindo para a formação da opinião pública em relação à reforma. Na matéria abaixo,
intitulada “Centro Histórico ganhara novo bairro”, já é sugestivo de um questionamento:
novo bairro em Centro Histórico? No local onde a tradição cultural teria que ser preservada,
surgiria um “novo bairro”?
O Governo do Estado da Bahia não parecia esconder sua meta, mesmo que ela fosse
contraditória aos objetivos que antes haviam sido formulados para os órgãos financiadores e,
nesta mesma matéria de janeiro de 2001, outra vez ele demarca os seus objetivos e sentidos de
sua ação em relação à área de intervenção:
A voz dos moradores começava a ecoar através de seus representantes na mídia que
expõem os sentimentos de quem se sentiam “injustiçados” pela forma como vinham sendo
tratados nas negociações e nos anúncios da mídia impressa. Desta forma este grupo de
moradores começava a expor e se vai se constituindo gradativamente um ator na esfera
publica, dando lugar a um processo de construção de sua identidade, suas singularidades e
direitos, conforme processo de diferenciação analisado por Arendt:
74
Aqui se percebe como essas esferas públicas e arenas de negociação, entre o governo e
os moradores, são de fato hierarquizadas e ao contrário do que os seus princípios anunciam,
não exercem o poder dialógico defendido por Hannah Arendt, mas se constituem num poder
ao mesmo tempo sutil e autoritário da força da persuasão, da manipulação da verdade e das
75
informações e coercitivo na imposição de uma vontade. Salientamos que esse poder refere-se
ao poder da fala, o poder de representação e representatividade, o poder de expressão, e, de
outro lado, o poder impositivo e ao mesmo tempo coercitivo e contraditório do uso da
violência simbólica nesses espaços de negociação.
Recorrendo à noção grega de polis, Arendt fala na isonomia grega e na civitas romana,
onde o conceito de poder não se assentava na relação mando-obediência e não identificava
poder e domínio. Viver numa polis tinha o significado de decidir mediante as palavras e a
persuasão e não através da força ou pela violência. Forçar alguém mediante violência, ordenar
ao invés de persuadir, constituíam modos pré-políticos de lidar com as pessoas, próprios do
76
lar e da vida em família, “na qual o chefe da casa imperava com poderes incontestes e
despóticos, ou da vida nos impérios bárbaros da Ásia, cujo despotismo era frequente
comparado à organização doméstica” (ARENDT, 1983: 36).
Aqui pontuamos uma critica ao pensamento da autora, quando nos projetos ou planos
de intervenções urbanas, por exemplo, as terminologias técnicas ou a pouca participação
anterior no processo de decisório deixa as pessoas a serem atingidas, principalmente as do
meio popular, numa perspectiva de participação mais restrita, constituindo-se esses espaços de
discussão mais uma possibilidade de exercício da crítica, da resistência e de luta por
modificações muitas vezes pontuais. Parece-me que tanto aqui (espaço público para pensar a
urbe em seus modelos e intervenções), quanto na polis grega, o domínio da palavra, dos
discursos e também do conhecimento era restrito a poucos. A linguagem e os termos
utilizados, podem até chegar aos ouvidos de todos os presentes no mesmo instante, mas
acredita-se que as terminologias técnicas não chegam ao alcance interpretativo da maioria.
Enfim, não se percebe no pensamento arendtiano, a compreensão de que as estruturas
desiguais estão imbricadas em violências estruturais.
Com isso,..., H. Arendt tem que pagar o preço de: a) excluir da esfera
política todos os elementos estratégicos, definindo-os como violência; b) de
isolar a política dos contextos econômicos e sociais em que está imbuída
através do sistema administrativo; c) de não poder compreender as
manifestações da violência estrutural (FREITAG e ROUANET, 2001, p.
110-111).
Desta forma foi possível considerar esses moradores como um ator social nesta esfera
pública em formação. O governo não apresentou todas as possibilidades de direito dos
moradores, a exemplo das alternativas de permanência, do reconhecimento do usucapião
(muitas famílias estavam lá por mais de 20 anos), de clareza quanto ao pagamento da
indenização, definindo a relocação dos moradores para áreas distantes do Centro da cidade,
ferindo, assim, os direitos implícitos do Estatuto da Cidade. A reação dos moradores
atingidos se faz a partir da constatação de uma infração legal de direitos por parte da
intervenção. Com essa dimensão de um direito infringido, um grupo de moradores resolveu
buscar apoio de assessorias parlamentares, advogados e entidades da sociedade civil para
expor as pressões que vinham sofrendo em relação à sua remoção da área. Este momento
caracterizado pela denúncia desses moradores, eles se representam como cidadãos de direitos
e seus assessores diante da Lei existente delineiam um sentimento de injustiça no âmbito das
esferas públicas, como porta-vozes desses moradores, dando maior visibilidade a essa
situação e expondo a situação à opinião pública.
defesa dos seus interesses através da exposição dos problemas inerentes a esta Etapa de
Revitalização do Centro Histórico. Procuraram então o gabinete do deputado estadual Zilton
Rocha (PT- Partido dos Trabalhadores), partido então de oposição ao Governo do Estado da
Bahia (PFL), pois sabiam que o mandato de Zilton já havia acompanhado algumas lutas de
resistência dos moradores do Centro Histórico, especificamente a que se referia ao Prédio dos
Alfaiates, e então ele poderia apoiar a luta comunitária.
Foi através das denúncias na mídia que tomei contato com a história de luta dos
moradores da 7ª Etapa, como assessor do Centro de Estudos e Ação Social - CEAS. A
primeira etapa do trabalho de assessoramento aos moradores nesta etapa consistiu
inicialmente em conhecer a história das famílias atingidas pela 7ª Etapa, fazer um
“mapeamento informal” do perfil do grupo organizado e conhecer de perto esta “voz” dos
afetados pelo projeto, que ecoava na esfera pública. O relato abaixo faz parte de um relatório
institucional do CEAS de autoria própria, no qual resumi algumas dessas observações.
Um dos primeiros documentos públicos produzidos pela AMACH teve sua versão
escrita em português e inglês, para atingir o público que circundava pelo Centro Histórico,
constituído por Brasileiros e estrangeiros. Nele os moradores expõem não só o tratamento
desumano e desrespeitoso, mas seu valor próprio, sua valorização enquanto ser humano e
também a sua importância como referência cultural para a área a ser reformada e convidava a
todos a apoiá-los.
Mas o povo baiano, como sempre, resiste de forma corajosa à opressão que
lhe é imposta e convida você a participar desta luta, para mais uma vez
derrotar aqueles que querem retirar a nossa dignidade... (AMACH, 2002a).
28 de Setembro, numero 45. Teve como objetivo elucidar qual o sentimento e a representação
desses moradores em relação ao lugar de moradia (o Centro Histórico) e como os presentes
percebiam a ação do Governo sobre o local. A plenária foi divida em cinco grupos e, com
metodologia orientadora do trabalho, foram elaboradas questões para que cada presente
pudesse responder: “Onde eles estão?”, “O que é o Pelourinho para eles, para o Governo e
outras pessoas?” e “Como está sendo implantada a 7ª Etapa?”.
“...é o lugar onde vivemos e tiramos nossa sobrevivência. Não desejo sair, a
menos que seja com uma idealização justa, em último caso.”;
“Lugar onde vivo, tiro meu sustento e moro. Na boa moradia , o melhor
lugar para eu ganhar meu pão”;
significava: “meninas para o sexo”, “tirar retratos das nossas meninas”, “o brega chique”, “a
arquitetura”, “a 28 de Setembro [local de moradia] e outras partes não reformadas, não
existem”; é uma “atração cultural”.
As falas e opiniões dos moradores se constituíam em reação aos discursos e ações que
já estavam sendo implementadas pelo Governo do Estado da Bahia na área da intervenção. O
governo se utilizava de diversos artifícios (persuasão, violência, inverdades, pressão,
especulação) para conseguir uma negociação favorável à saída dos moradores, sendo uma
dessas ações o não reconhecimento daquelas pessoas como pessoas de direito,
desconhecendo-lhe o direito à moradia por não serem proprietárias. Do mesmo modo,
apartavam essas pessoas da cultura local ou da área a ser revitalizada.
objetivos justificadores da intervenção pelo governo. Habermas definia a validade das regras
do que ele chamava de “acção comunicativa” como:
As voltas que o mundo deu foram cruéis com ela. Não estava em seu plano
sair dali nem aceitar proposta pouco tentadora. Mas a filha Ana Maria teve
câncer e ela, sem recursos, acabou cedendo ao auxílio relocação da
CONDER. Eunice passou meio século morando no mesmo local. O primeiro
14
Necessário esclarecer aqui que esta pesquisa não pretende fazer um exercício da “ação comunicativa”
mas apenas constatar que a ação dos atores na esfera pública se faz através de mecanismos comunicativos, que
envolvem estratégias de dominação.
83
contato com o repórter foi tímido: “tudo bem Dona Maria?” pergunta-se. “Ta
nada... senão eu não estava na reportagem, né?... gastei os dois mil e pouco
com remédio e táxi com minha filha e não deu pra nada...”, conta”
(CASTRO, 2004c: 03) 15
“Você acha que eu, com este tanto de filhos, vou pra Coutos? Vou aceitar
este dinheiro que a CONDER está dando? Só saio do Centro Histórico para
outro lugar no Centro Histórico! Se não me derem outra casa por aqui, só
saio dentro de um caixão” (CASTRO, 2004c: 03) 16.
15
A senhora de 72 anos, virou carinhosamente a mascote da AMACH e do grupo que passou a recorrer à
participação e justiça no caso da 7ª Etapa. Ela foi a única pessoa que assinou a negociação com o Governo e teve
seu direito de permanecer na área garantido, depois de muita pressão das famílias e pessoas envolvidas contra o
Governo do Estado da Bahia. Porém, veio a falecer em janeiro de 2011, sem ter alcançado o sonho de morar na
sua casa “revitalizada ou reformada” e a ela foi dedicada esta dissertação.
16
No ano de 2007, depois de muitos conflitos, debates, ações judiciais, brigas com o governo do Estado,
com a associação de moradores, já com seu direito assegurado de permanecer em sua casa, depois da reforma
que o Poder Público iria fazer esta mulher foi morta na rua 28 de Setembro, bem próximo da tão sonhada casa
reformada. Sua frase exposta no Jornal a Tarde foi tristemente escrita em sua historia
84
Conforme argumenta Pedro Demo (1988), a busca da participação se faz muitas vezes
em campo conflitante e deve ser conquistada, “puxada de dentro”, iniciada com a capacidade
crítica de reconhecimento de uma possível perda simbólica, material, cultural, política, do
reconhecimento dos direitos e deveres, do reconhecimento enquanto ator social, protagonista
86
que busca participar do processo de debate sobre a intervenção, que, no caso aqui estudado,
acaba por intervir diretamente na vida das pessoas.
Neste capítulo iremos refletir sobre os limites encontrados para a efetiva participação
popular neste projeto público de intervenção, analisando o conflito e a luta dos moradores
pela moradia e sobrevivência individual, e a passagem da demanda no plano de uma luta de
caráter singular, mas coletiva. O diálogo teórico com Pedro Demo passa a noção de
“conquista participativa”, que, segundo ele, não se constitui uma dádiva, concessão ou algo
preexistente, e sim um processo de conquista, o que o faz concluir que a falta de participação
pode representar o ponto de partida da sua busca: “primeiro encontramos a dominação, e
depois, se conquistada, a participação” (DEMO, 1988: 18-19)
Diversos recursos foram mobilizados. Como uma das principais linhas de ação criada,
aparece o diálogo dentro do campo jurídico, que foi de fundamental importância para a
discussão e inclusão dos moradores no campo do Direito. O resultado desta linha de ação no
campo jurídico alterou a relação e participação da AMACH no projeto. Foi instituído o
Comitê Gestor da 7ª Etapa, paritário e composto com a presença da AMACH e apenas dois
dos “amigos”, que naquele momento de constituição do comitê (2005) ainda se faziam
presentes no diálogo e busca de participação (Comitê Gestor). A observação desse processo
remete às reflexões de Hannah Arendt, mais especificamente a noção de ação comunicativa,
pois nestas esferas foram apresentados os principais argumentos e informações sobre a 7ª
Etapa, desde seus objetivos teóricos e práticos, até a busca e limites de um consenso entre os
atores.
Lembramos que o recorte temporal da pesquisa vai até o ano de 2007, quando da
entrega das primeiras chaves aos moradores. Nesse sentido vale indagar: até que ponto a luta
se traduziu em resultados concretos? O que de proveito houve na formação participante do
grupo envolvido? Quantas casas ao todo foram entregues? Detalhar os projetos sociais e o que
parece ter ficado no imaginário desta luta.
para poder contrapor-se e elaborar propostas, para uma população pouco afeita a leitura e à
participação política. Esta necessidade e busca demanda tempo na identificação e análise dos
dados colocados, tempo este que se faz também em obstáculo, pois confronta com o tempo de
execução da política de intervenção e o tempo da busca e efetivação desta participação.
população caracterizada por renda muito baixa, ocupada com atividades irregulares, com
carência de educação formal, moradias adensadas, falta de estrutura urbanística, ou seja, as
inúmeras “mazelas sociais” que atingem esses indivíduos e que simbolicamente são
mobilizadas como qualificadoras e desqualificadoras desses moradores.
ser os legítimos cuidadores do “patrimônio” ali presente, como se pode observar em matéria
publicada no jornal Folha de São Paulo, num depoimento da direção do IPAC:
Marginal tem que ser tratado pela polícia ou órgãos de assistência, não pelo
patrimônio histórico... Não pode haver romantismo: marginal não pinta a
casa, joga fezes na rua (FOLHA DE SÃO PAULO, 03.10.1994 apud
ARTICULAÇÃO DE LUTA POR MORADIA, 2003: 34)
A situação de vida era realmente tão adversa que as próprias pessoas que ali habitavam
pareciam não acreditar na possibilidade de se verem dialogando com o Poder Público e
participando do projeto da 7ª Etapa, como cidadãos de direito. Pedro Demo (1990),
analisando a desigualdade social nos processos de construção da emancipação e cidadania,
percebe que não só a questão material é limitador para este alcance. Segundo o autor existem
outras formas de desigualdade e o desigual não seria apenas quem não tem, mas quem “não
é”, ou “não sabe”, ou “nada espera” (DEMO, 1990: 59).
Essa afirmativa de Demo pode ser observada em parte dos moradores, quando do
início do processo de participação para a discussão do projeto e defesa dos seus direitos. Um
sentimento de impotência diante da sua sobrevivência física, da convivência com uma
realidade dura de falta das condições mais básicas (banheiro, água, esgoto, teto, comida), de
não acreditar na possibilidade de construção de uma organização gerida por eles próprios, a
desconfiança com o outro, as estratégias de busca de oportunidade de renda para atender a
uma necessidade imediata e assim fazer “negociações” com o Governo. Seguindo esta linha
de reflexão o questionamento de Elenaldo Teixeira sobre os desafios para a participação de
grupos populares com esta realidade de vida se faz relevante:
para que as famílias que não tinham documento de posse e habitavam o imóvel a ser
recuperado pudessem sair, estas passavam a ter um registro de negociação cadastrado na
CONDER e perderiam o direito de permanecer no local. Consequentemente, o interesse a
busca da participação no Projeto de Revitalização, também consistia não só na resistência de
permanência, mas na possibilidade de ter o valor do auxílio relocação em mãos. Para pessoas
que viviam na base da sobrevivência diária o acesso a um valor monetário era um grande
atrativo, o que levou à saída da maioria das famílias da área motivadas por esse recurso. Lysiê
Reis (2007) descreve bem este processo:
Este movimento de saída dos moradores, por “auxílio relocação”, era tenso. Muitos
deles, incrédulos da possibilidade de uma outra negociação mais justa, sem interesse em ir
“morar em bairro” (como muitos expressavam sobre a alternativa da ida para outros bairros
como Jardim Valéria, Coutos...), sentindo-se acuados com a pressão do Governo, e a pressão
por sobrevivência aceitavam a oferta mas permanecia um sentimento de injustiça, e se
sentiam excluídos e expulsos. Algumas destas pessoas moravam na casa há mais de 50 anos e
não tiveram qualquer direito de interpretação diante da lei. Foi, por exemplo, o caso exposto
no capítulo anterior sobre uma moradora idosa, que aceitou o auxílio relocação para poder
comprar remédio pra filha, que estava em Estado terminal de câncer. Deixou a sua casa e,
logo depois, a filha veio a falecer, ficando sem casa e sem filha. Alguns trechos de três
matérias diferentes de jornais locais podem resumir o nível de diálogo estabelecido com o
Governo e o sentimento gerado nas pessoas que se viam diante da possibilidade de saída de
suas residências.
Estado desapropriar. Você conhece bem a área, têm casas onde têm 50, 60,
70 pessoas morando. Nós já tiramos cerca de 1.500 pessoas de lá de dentro,
tranquilamente, sem nenhum problema... Há pessoas morando de forma
degradante. Não são famílias, são pessoas que com R$ 2 mil podem voltar
pra suas terras de origem”, avaliou. (WEINSTEIN, 2002: 3)
A questão da propriedade tem sido, até agora, o cerne do embate que mistura
moradores que se apropriaram do que estavam esquecido (mas que são
chamados de invasores pelo Governo), proprietários desaparecidos,
inquilinos que viveram sublocando espaços e pessoas que receberam o
“auxílio-relocação”, mas retornaram, ou seja, aqueles que o Governo achava
que estavam satisfeitos. (REIS, 2007)
relocação, sendo que no dia do mutirão para aplicação dos questionários foram entrevistadas
105 famílias.
Dados processados desta pesquisa indicam que 46,2% disseram estar ocupando o
imóvel que residia sem pagar qualquer tipo de aluguel nem ter os documentos de posse,
38,7% moravam de aluguel e 13,2% eram proprietários. Quanto à negociação e proposta do
Governo as respostas dos moradores informavam que: 68,9% já tinham sido procurados pelo
Governo para negociar a saída, sendo que o órgão público mais presente nestas negociações,
segundo os entrevistados, foi a CONDER, com 86,6% das repostas, seguido do IPAC, com
12,% e da CODESAL, com 1,4%. Mais da metade afirmou (60,6%) ter acertado a saída com o
pagamento do auxílio-relocação; 3% a saída sem auxílio relocação; 9,1% aceitaram a
relocação para outro bairro; 27,3% não fez qualquer tipo de acordo e 81% afirmaram querer
permanecer em seu local de moradia (CEAS, 2004)
época, sendo que 10,9% mencionaram não ter renda alguma (CONDER, 2005: 21). 32,0%
eram empregados sem vínculo, sendo que 9,7% eram biscateiros, 11,7% camelôs, 13,6%
trabalhadoras do lar, e 6,7% se disseram desempregados (CONDER, 2005, p. 29).
entender, refletir e construir sua fala, quando de uma diferença do poder de participação dos
indivíduos. Para os que conseguiam avançar na sua compreensão da situação ficava a
impaciência com os limites do outro e, para este último, o sentimento cada vez mais intenso
de que o caminho para a participação ou seria impossível ou estaria em designar e legitimar o
poder nas mãos da AMACH, das lideranças populares ou do grupo de “amigos”, onde a
desconfiança, seja pelas relações interpessoais conflitavas, pelas experiências de vida, não
deixava espaço para positivar ações coletivas, pela falta de esperança no outro, que muitas
vezes estava ai também presente.
Estes dados sobre trabalho, renda e educação, somados ainda aos aspectos da
insalubridade da forma de morar, da baixa autoestima, do estigma de “miseráveis, marginais e
relegados” parecem trazer para as estas pessoas envolvidas a não aptidão necessária para a
participação em esferas públicas, em espaços de diálogos políticos. O que pode parecer aqui
como um problema afeto à esfera privada, acaba por ter uma relação direta com a esfera
pública, que se constitui diante do projeto de intervenção urbano, aqui estudado. Adriano
Correia (2008), no artigo sobre “A questão social em Hannah Arendt”, sugere alguns dilemas
da participação: “realmente a liberdade, a vida política, a vida do cidadão é um luxo; uma
felicidade adicional para se tornar apto apenas depois de as solicitações do processo vital
terem sido satisfeitas” (ARENDT, 1997: 106. apud CORREIA, 2008: 103). Ainda segundo
Correia, existem críticas que pontuam que Arendt distingue radicalmente em sua análise as
relações econômicas da política (M. P. D‟ ENTREVÉS, 1994; BENHABIB, 1996, apud
CORREIA, 2008: 105). Porém, o que se percebe é que Arendt não elucida como as questões
sociais, de interesse ou vividas por uma coletividade, possam ser admitidas no domínio
político sem converter o espaço público em busca das demandas ou interesses privados
(CORREIA, 2008: 110). Esta, que aqui podemos considerar uma “ambiguidade da
participação”, apresentava-se no caso em estudo num dilema entre o esforço coletivo de luta
ou participação nas esferas públicas e os interesses emergenciais e individuais das pessoas
envolvidas, muitos deles consequentes da dura condição objetiva de vida que faziam com que
“oportunidades” e “oportunismo”, na resolução dos seus problemas individuais, fossem
“interpretados” como ação de e para todos.
públicas (VALLADARES, 2009: 25). O que se percebe, e que, de certo modo, muitas vezes
fica ambíguo, é o imperativo da busca por benefícios pessoais, de motivação privada (o
acesso à casa própria) que se reforça pelo caminho de uma luta conjunta como estratégia de
enfrentamento do governo. Esse problema parecia mais presente quanto mais as pessoas iam
se afastando da AMACH, e poucas permaneciam, sendo estas mais beneficiadas com
resultados positivos por estarem presentes, quando da negociação favorável.
Desta forma a esfera privada não poderia se sobrepor à pública, porque, no próprio
entendimento dos moradores, sob influência direta do grupo de apoio -os amigos-, viver na
esfera privada significava “não ser ouvido”, “não ser visto”, “não exercer o poder e o direito
de voz” e, mais do que isso, não poderia apresentar, ou ter a aparência, de que o ganho
privado estava principalmente em jogo. Se considerada a análise de Arendt, uma ação jamais
é possível no isolamento, pois este isolamento pode privar as pessoas da sua capacidade de
agir, diminuindo sua força. Neste sentido, quando o grupo de moradores foi procurar o
Ministério Público, ainda de forma “espontânea”, ao se verem coagidas a assinar a negociação
com CONDER e sair de suas casas, o próprio Promotor de Justiça responsável pela
Promotoria da Cidadania, aprovou a criação de um “sujeito coletivo” que pudesse influenciar
o sistema político, influenciar a intervenção. Essa entidade coletiva seria, então, a AMACH
criada como um canal institucional de voz dos moradores atingidos. Para a promotoria, foi
97
importante esta iniciativa dos moradores em constituir este “sujeito coletivo” que emanasse
força e legitimasse as possíveis futuras ações políticas e jurídicas.
Importante retornar às concepções de Arendt para subsidiar a análise dos fatores que
limitam a participação dos moradores da 7ª Etapa, e avançar nas análises sequentes sobre as
esferas públicas criadas e os diferentes poderes de expressão dos atores envolvidos, na sua
construção como sujeitos públicos, diante da implantação deste projeto de revitalização. O
conceito arendtiano de esfera pública sugere um potencial de emancipação que, para Correia,
está aliado a uma valorização da dignidade política.
O autor, em sua análise sobre a obra de Arendt, percebe também que ela, de certo
modo, também identificava que as questões da esfera privada, esfera social e a própria
econômica podem resultar na dificuldade de entendimento e participação da esfera pública,
contradizendo assim, em parte os críticos de Arendt (CORREIA, 2008: 111). O autor, ao final
do texto, parece deixar muito claro que “ a condição humana” para a participação, não estaria
apenas no nascimento dos seres diante de um fato social, mas principalmente diante das
questões das igualdades e, mais especificamente, desigualdades dos atores envolvidos.
Alain Touraine considerava que para ser movimento social, pode até tratar-se de uma
questão social particular, mas é necessário que se constitua como uma ação de impacto
também geral. Para este autor o movimento social seria
“...um tipo muito particular de ação coletiva, em que uma categoria social,
sempre particular, questiona uma forma de dominação social,
simultaneamente particular e geral, invocando contra ela valores e
orientações gerais da sociedade.” (TOURAINE, 1988: 130).
Touraine, assim, afirma que os movimentos sociais não só são sujeitos de lutas por
demandas ou reivindicações particulares ou pontuais (grupos de interesse ou instrumento de
pressão política), mas estão voltados para “... sempre... abolir uma relação de dominação,
fazer triunfar um princípio de igualdade...” (TOURAINE, 1999: 115). A busca então do que
ele chama de “conflito central”, um conflito mais de critica sistêmica, perpassaria o
reconhecimento das diversas identidades e diferenças, reconhecimento dos valores
historicamente construídos, busca dos “inimigos comuns ou inimigo comum”, ação coletiva e
transformação da sociedade como um todo.
99
outros bairros, reuniões no Ministério Público, fóruns, seminários, etc.) e as pressões de sua
vida privada (cuidado com a casa, com os filhos, família, companheiros).
No ano de 2008 a Equipe Urbana do CEAS fez uma avaliação e constatou esta
presença feminina marcante em todas as suas áreas de trabalho nos bairros populares da
cidade de Salvador onde havia atuado nos últimos anos (2000-2008), a saber: Bairro da Paz,
Gamboa de Baixo, Marechal Rondon, Santa Bárbara, Centro Histórico, Alto das Pombas .
Esta avaliação foi publicada no artigo “A voz das mulheres na luta popular por moradia em
Salvador” que trazia as experiências de grupos de mulheres do contexto popular e associações
de moradores, com destaque para a AMACH (CEAS, 2008: 81-100). Relevante trazer os
dados estatísticos apresentados pelo CEAS com referência aos indicadores dos anos de 2000 a
2005, período específico da delimitação cronológica desta pesquisa, para entendimento do
perfil desta mulher que também luta na defesa de seus direitos em espaços públicos mais
amplos de reivindicação dos direitos.
É esta mulher, com este perfil de maior vulnerabilidade expresso nos números e
estatísticas que compõe a maioria das pessoas representativas na busca pela participação no
projeto da 7ª Etapa. São vendedoras ambulantes, cozinheiras, biscateiras, trabalhadoras
autônomas, comerciantes, pedintes, desempregadas, mulheres em situação de prostituição,
mulheres envolvidas com atividades ilícitas, donas de casa, costureiras, artesãs, mães de
santo, que estiveram e continuam em parte presentes em busca do diálogo e requerendo um
lugar de participação no projeto da 7ª Etapa. São mulheres com baixo grau de escolaridade,
102
em sua quase totalidade desempregadas, mas que cuidam da casa, do bairro, da associação de
moradores. O CEAS assim expôs sua realidade de vida, lembrando aqui que esta parte da
análise se refere diretamente às mulheres que compõem a AMACH:
... sem renda, tendo que tomar conta da casa (muitas vezes sem casa), dos
filhos, dos maridos, da comida (ou falta dela), as mulheres transcendem o
espaço da casa e ampliam sua preocupação para com o bairro, a rua, a
comunidade, a cidade, o outro. O papel da mulher acompanhada pela equipe
é, principalmente, um papel político e a predominância das mulheres na
AMACH, nos grupos organizados, nas comissões de moradores... refletem
esta afirmação (CEAS, 2008: 86)
Gohn chama atenção para o fato de que o número e a participação das mulheres é tão
expressivo nas lutas populares que seria mais legitimo tratar de “atrizes sociais” das ações
coletivas (2010: 95). Esta observação é bastante pertinente também à AMACH, Associação
dos Moradores e Amigos do Centro Histórico, que poderia muito bem chamar-se Associação
das Moradoras e Amigas do Centro Histórico, tamanha a predominância das mulheres. Nos
seis anos de observação, trabalho e pesquisa (2001-2007) as principais pessoas que estiveram
à frente da associação mostravam a presença de duas presidentes e de um grupo composto por
15 mulheres e 5 homens, sendo que este número sofreu variações no decorrer do tempo, mas
em nenhum momento foi percebida uma presença maior ou mais intensiva dos homens dentro
ou protagonizando a participação popular na Etapa.
Para esclarecer o ponto aqui tratado, as dificuldades alegadas neste discurso referiam-
se a fortalecer a organização do “movimento pró-moradia”, mantido basicamente por
mulheres que convivem com o desemprego, as casas em risco de desabamento, cuidado com a
família, preconceito de raça e gênero, violência, tráfico de drogas. Foram muitos momentos
em que elas se faziam presentes nas reuniões com suas crianças no colo, que saiam para
preparar a mesa de casa ou os afazeres domésticos e ainda assim encontrar tempo e criar
estratégias, junto com as entidades e grupos de apoio, para mobilizar uma área onde o
desemprego e/ou subemprego, o alto índice de uso e tráfico de crack e a prostituição eram
uma realidade. O desafio estava não só em criar as condições para a participação ou conquista
de direitos de moradia, mas de conciliar este desafio com a administração, ou presença, de
aspectos da sua vida privada, do conviver com os companheiros, do cuidado com sua casa, da
educação, acompanhamento e formação dos filhos e netos.
Ana Alice Alcântara Costa (1998), em seu estudo “As donas do poder; mulheres e
política na Bahia” revela esta trama e o poder das mulheres frente ao processo de construção
da sua participação política associada aos cuidados com a família. Para a autora o espaço da
mulher tem sido sempre o exercício na esfera privada e, por isso mesmo, para analisar sua
participação na esfera pública é necessário perceber sua presença nas duas esferas, já que a
mulher tem assumido papeis concomitantemente nestas (COSTA, 1998: 11). Ela ainda pontua
algumas condições que se constituem obstáculos da esfera privada para participação da
mulher na esfera pública, com destaque para:
fragilidades e ambiguidades da luta dos moradores na sua relação com a ação de reforma e
modificação da área.
17
Poligonal é um conjunto de segmentos de reta consecutivos e não pertencentes a mesma reta e, no caso
aqui estudado os traços das retas tiveram a função de envolver as ruas de implementação do projeto de
revitalização como apresentado no capítulo introdutório desta dissertação.
106
Comumente ouve-se dos órgãos públicos que as intervenções têm um limite de tempo
para serem efetuadas, sob o risco dos recursos voltarem aos órgãos financiadores, além do
tempo do mandato de governo vigente (4 anos) que pode acabar por atropelar o processo.
Dentro do campo das responsabilidades do governo na execução da intervenção da 7ª Etapa,
existe ainda a necessidade de atender às pressões da sociedade em ver logo as obras prontas,
uma expectativa que aumenta quando se trata dos centros urbanos onde o número de
transeuntes e observadores comuns é maior que no restante da cidade. A relação simbólica
criada com o patrimônio da humanidade, no caso de um “Centro Histórico”, aumenta ainda
mais essa pressão em ver o “patrimônio” restaurado, a possibilidade de atrativo turístico e
107
Por parte do governo atuavam também as influencias dos prazos e tempos da máquina
burocrática. Segundo o “Relatório síntese de andamento”, documento adquirido pela
AMACH após intervenção e pedido do Ministério Público do Estado da Bahia, elaborado pelo
Programa Monumento, responsável por gerir o projeto da 7ª Etapa, as sete metas elencadas
teriam seus desembolsos financeiros no período entre 2001 a 2004 (MINISTÉRIO DA
CULTURA E OUTROS, 2002: 08), com previsão de término de execução neste ultimo ano.
Quando do inicio do diálogo participativo com a AMACH, podemos perceber, através de
observação e presença direta, a preocupação que os técnicos do governo demonstravam diante
da possibilidade de participação e diálogo com os moradores e com a AMACH vir a atrasar as
obras e, com isto, inviabilizar o projeto de recuperação. A primeira apresentação oficial do
Projeto de Revitalização da 7ª Etapa, para a AMACH, por parte da CONDER e do Programa
Monumenta, ocorreu apenas em 28 de novembro de 2004, na sede deste órgão, no Centro
Histórico, quando a associação via pressão jurídica conseguiu compor uma esfera pública de
diálogo. Nesta reunião, o então coordenador do Programa expôs em parte esta preocupação
relativa ao tempo de execução:
O programa era pra ter acabado em 2004 e até agora mal começamos. Vocês
ganharam o direito de permanecer e participar, mas não há muito que
intervir, a gente diz se a AMACH deve e como deve participar... Os recursos
estão previstos para acabar em 2006 e o projeto está fechado, sendo inclusive
aprovado pelo IPHAN. Modificá-lo e anulá-lo demandaria muito tempo,
talvez 10 anos. (CEA, 2004)
As obras dentro do sítio histórico têm que obedecer aos padrões e referências exigidos
pelo IPHAN, o que requereria mais tempo para iniciar a execução. Os técnicos e arqueólogos
deste órgão, quando encontravam achados arqueológicos nas casas em obras paravam todo
trabalho para a pesquisa e estudo dos sambaquis18. Também era necessário destinar um tempo
para organizar as licitações e aprovar os contratos de trabalho, sendo que qualquer
intervenção externa a este processo, uma ação dos moradores, por exemplo, atrasaria o tempo
18
Sambaqui (do tupi tamba'kï; literalmente "monte de conchas"), também conhecidos como concheiros,
casqueiros, berbigueiros ou até mesmo pelo termo em inglês shell-mountains, são depósitos construídos pelo
homem constituídos por materiais orgânicos, calcários e que, empilhados ao longo do tempo vem sofrendo a
ação de intempérie; acabaram por sofrer uma fossilização química, já que a chuva deforma as estruturas dos
moluscos e dos ossos enterrados, difundindo o cálcio em toda a estrutura e petrificando os detritos e ossadas
porventura ali existentes. (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Sambaqui)
108
reconhecidamente difícil do trâmite burocrático. Parecia ser necessário adiantar as ações para
dar conta do programa de execução, sendo que a desapropriação dos imóveis estava como a
primeira meta a ser cumprida. Lysiê Reis, analisando as primeiras etapas de intervenção neste
sítio histórico também reconheceu essa dimensão do tempo como uma variável dificultadora
da efetiva participação social nos projetos:
Com as lembranças vivas na memória, Ana Paula diz que não consegue
dormir desde aquela noite. “tenho medo que o casarão caia em cima de mim
109
Segundo Arendt esta distinção singular vem à tona no discurso e na ação, onde os
homens se manifestam uns com os outros (ARENDT, 1983: 189). O governo impunha uma
pressão ao tempo de execução e a seus técnicos, com o controle das informações e dados em
mãos, e se viam muitas vezes diante de uma difícil realidade de dialogar com um grupo sem
informações e, ainda, tendo que assumir os prazos e cumprir as metas físicas e financeiras do
programa. Desta maneira, mais do que provocar o debate e a participação, o governo apenas
apresentava suas proposições prontas nas esferas públicas de discussão constituídas no debate
através da imprensa, das assembléias e fóruns criados. Os distintos referenciais da discussão
confrontavam as propostas e pareciam inviabilizar a intervenção o que acabava por colocar o
governo diante de uma situação difícil de ver recursos parados e obras inacabadas e dos
moradores angustiados se verem prestes a serem colocados para fora de casa ou verem elas
ruírem em suas cabeças.
Tratar dos caminhos encontrados para a participação dos moradores na 7ª Etapa requer
atenção para com os desafios encontrados, mas também conhecer as estratégias e a própria
construção das esferas de negociação e embates públicos criados. Neste caso o papel do grupo
de amigos, a sua influência na transmissão dos conhecimentos técnicos a serviço da AMACH,
a construção dos canais de denúncia e as ações políticas e jurídicas constituem-se em
elementos analíticos importantes. Sabe-se que a própria implementação da 7ª Etapa como fato
irruptivo de um tempo “novo” articula e envolve a ação entre os moradores atingidos, os
técnicos do Governo do Estado e o os processos de retorno e “rebate” dos moradores. No
estudo em análise, a esfera pública não aparece pronta e formalmente instituída, mas ganha
forma, ora pela mediação jurídica, ora pelas denúncias na mídia, ora assume o formato de
assembléias públicas até se formalizar num Comitê Gestor da 7ª Etapa, instituindo um espaço
de negociação e mediação entre os interesses diversificados.
Recompor estas esferas é perceber o que Hannah Arendt (1983) analisa sobre as
diferenças entre os homens, entre suas ações, quando alguma coisa, algo novo, interrompe o
processo ordinário da vida cotidiana. Dentro das teses dessa autora, a palavra, seus
significados, as verdades, falsidades, ambiguidades, traduções, dissimulações, assumem o
ponto de partida para entendimento dos limites e construção dos atores numa esfera pública, a
exemplo da aqui estudada. A participação nesta esfera reúne um conhecimento dos termos
tratados e, portanto, construir um caminho para o entendimento e diálogo é um desafio que
traz perspectivas importantes a serem apresentados. Como Arendt, no caso em análise apesar
da importância que os agentes, os grupos de amigos da AMACH, possam ter na construção
da participação de terceiros, dos moradores nas esferas mediadoras criadas para as
negociações da 7ª Etapa, “não precisa necessariamente ser especialista ou profissional
qualquer para se tornar um pensador e ter a capacidade para fazer julgamentos políticos
autênticos”, e assim, parte das lideranças populares aqui observadas foram formadas
(VALLADARES, 2006: 19).
É neste que a política se constitui como processo construtivo e não como um sistema
dado e formal, conforme analisa Demo (1988). A política que se forma e se constitui pela
interação dialógica e contraditória entre os diferentes atores e atrizes, entre as pessoas e
grupos envolvidos são pressupostos necessários para o embate e diálogo em prol dos
113
Dentro do objeto de pesquisa, quando trazemos o termo e a busca dos caminhos para a
participação popular, encontramos o surgimento de um espaço que evidencia, aparenta,
mostra, apresenta, publiciza as ações e interesses. Foram assim encontradas nas matérias de
jornal analisadas no capitulo anterior, que apresentavam para toda sociedade os termos e
lógicas presentes na realidade da intervenção. Como foi assim também que as arenas jurídicas
serviram para aprofundar o conhecimento dos pontos de vistas e singularidades dos
envolvidos. Através desta participação, foi possível ouvir a voz das pessoas em “denuncias
vivas”, em depoimentos das suas vidas, em documentos públicos, dossiês, mídia impressa,
ações judiciais. O uso da expressão pública vem aqui como meio de ir contra uma
determinada política de não democratizar as informações e de apresentar todas as alternativas
possíveis aos envolvidos. Esta postura, comumente direcionada aos governos autoritários, ao
Poder Público e ao Governo do Estado da Bahia quanto as informações da implementação
desta intervenção, pôde também ser encontrada em momentos na AMACH, que, diante de um
manancial de informações acaba por não conseguir transmitir para o coletivo, seja em função
de limites, acima expostos, seja em função de um determinado afastamento para com as
pessoas menos participativas.
Neste caminho, a presença dos “amigos” (parceiros solidários com a luta) contribuiu
na para a formação de um grupo, seja na organização das reuniões semanais da AMACH, no
desenvolver dos contra argumentos que o governo impunha, na socialização dos direitos
constituídos, na busca de outras experiências semelhantes na cidade de Salvador, nos contatos
com a mídia, na formulação de cartas denuncias para toda sociedade. Mas, ao mesmo tempo
nos leva a indagar sobre o caráter dessa representação, que não cabe aqui desenvolver.
A busca pela participação dos moradores na defesa dos seus direitos, diante da 7ª
Etapa de Revitalização do Centro Histórico de Salvador, contou com a colaboração de
instituições e profissionais que se envolveram na defesa e no apoio às reivindicações dos
atingidos. Este grupo esteve mais presente nos anos de 2001 e 2002 e, com o passar dos anos,
permaneceram apenas três instituições mais diretamente envolvidas: o Ministério Público,
acompanhando o desenrolar das negociações acordadas entre as partes, o CEAS e a UEFS.
Cabe esclarecer que algumas destas instituições, quando do início da intervenção (UNEGRO,
PT, Sindsaúde, SindVigilante), eram da oposição partidária ao grupo político que estava
governando o Estado da Bahia (PFL), responsável, consequentemente, pelo planejamento e
execução do projeto de revitalização aqui em análise.
a dinâmica e fortalecimento das demandas nas assembléias públicas, etc. Além destes fatores,
a próprio interesse ou aproximação deste grupo, já revela o campo de diálogo e embate
constituído.
19
PELORES. Direção, fotografia e produção de Marília Hughes Guerreiro e Aline Frey. Salvador: [s.n.],
2004. 30 min.
116
Dois outros apoios, estes agora mais relacionados à infraestrutura para as reuniões da
AMACH, foi recebido de dois sindicatos. O Sindsaúde, locado na rua da Independência, o
ponto de encontro das reuniões semanais da AMACH entre os anos de 2001 e 2002; e o
SindVigilante, na rua do Gravatá, que serviu de espaço para as reuniões em 2002 e 2003. A
disponibilidade desses espaços físicos foram importante, pois pensar naquele momento em
reuniões dentro da “poligonal da 7ª Etapa” significava usar as habitações ou bares e isso
aumentaria a rotatividade das presenças na reunião, a dispersão e a possibilidade de a
associação assumir compromissos com o proprietário do imóvel, seja ele de moradia ou
comércio. Além destes fatores, num ambiente de extrema tensão na área, a todo o momento
era colocada a possibilidade de se ter nessas reuniões a presença de informantes do governo,
que poderiam levar informações da AMACH para o Poder Público. Por diversas vezes foram
então justificadas as reuniões nestes espaços por eles serem mais afastados da área e, assim,
diminuir a hipótese de fazer ouvir assuntos ainda internos à AMACH.
deputado estadual Zilton Rocha (PT). Este próprio também se constituiu amigo destacado, o
Ministério Público do Estado da Bahia, o CEAS – Centro de Estudos e Ação Social e a UEFS
(Universidade Estadual de Feira de Santana) representada pela professora Lysiê Reis. Estas
duas últimas representações terão papel desempenhado durante todo processo de
acompanhamento e participação nas esferas públicas criadas com a 7ª Etapa, cuja descrição
do seu papel será mais detalhada na sequência deste estudo.
O papel das advogadas ganha destaque pois a mobilização da justiça como ator
mediador decisivo nessa luta e os resultados daí decorrentes, foram de suma importância para
dar legitimidade à ampliação da participação popular no projeto da 7ª Etapa, como atores de
direitos legitimamente reconhecidos. Esse trabalho jurídico se caracteriza por dois níveis de
atuação. Uma das advogadas, por ser uma antiga frequentadora da área, com amizade próxima
aos moradores, trazia mais um aporte de assistência na mobilização e organização dos
moradores, do que uma assessoria jurídica propriamente dita, tendo articulado a visita dos
moradores ao gabinete de Zilton Rocha. A segunda advogada, integrava à época a Comissão
de Justiça e Paz da Arquidiocese de Salvador – a CJP – e, mesmo que esta instituição não se
constituísse em grupo de apoio ou assessoria direta à AMACH, sua aproximação geográfica
com a “poligonal da 7ª Etapa” e o vínculo de trabalho e amizade desta advogada com o
deputado Zilton Rocha e sua equipe fizeram com ela se aproximasse desta mobilização dos
moradores.
O Centro de Estudos e Ação Social (CEAS) uma organização criada desde 1967, pela
Companhia de Jesus, e que busca contribuir para a superação da miséria e da exclusão social
iniciou sua aproximação com os moradores em 2002, tendo sua atenção chamada pelas
notícias vinculadas na imprensa. Dentro deste Centro analisava-se a importância em
acompanhar aqueles moradores por acreditar que, uma possível conquista de direito naquela
localidade da cidade, poderia influenciar outros embates por moradia no centro de Salvador.
O CEAS por ter acompanhado a AMACH de 2002 a 2008, conseguiu estar presente e
acompanhar diversos momentos de participação e construção das esferas de negociação e
diálogo, o que contribuiu muito para o conhecimento das informações aqui analisadas,
diretamente pela minha condição de assessor à época dessa organização. O trabalho de
assessoria realizado pelo CEAS consistiu inicialmente em acompanhar as reuniões da
AMACH, construir o diálogo com o Ministério Público, mobilizar e visitar os moradores,
incentivar a participação, interpretar e fazer os moradores entenderem os termos e
terminologias do projeto, construir denúncias e ações diretas, articular o grupo com as outras
118
experiências assessoradas pela Equipe Urbana desta instituição. Como resultado dessa ação de
aproximação e ampliação da luta através do trabalho CEAS cabe citar a Articulação de Luta
por Moradia (ALM) como grupo de apoio à AMACH.
Desta articulação participavam mais associações de oito bairros populares que estavam
sofrendo intervenções urbanísticas próximas ao que estava ocorrendo com a área da 7ª Etapa
de Revitalização do Pelourinho. Com o diferencial, de que essas oito outras experiências e
bairros não se constituírem local de patrimônio histórico, todas tinham a CONDER como
agente da intervenção, passavam por problemas de relocação e baixos valores do auxílio-
relocação, a falta de diálogo e de informações sobre os projetos de intervenção. Com a
participação na ALM, observou-se que um grupo que constituía a AMACH ampliou sua visão
sobre os problemas da cidade e das moradias populares, construíram manifestações e ações
em conjunto, se solidarizaram com as vivências de cada local, participaram de ações
específicas em outros bairros, criaram laços e relações e, por fim, construíram, em parceria
com o CEAS, um dossiê com a história desses bairros, tendo como foco a análise das
intervenções no momento, no documento “ Como Salvador se Faz: Dossiê da Lutas das
Comunidades Populares de Salvador-Bahia pelo Direito de Moradia” (2003).
Com o passar dos anos, entre 2003 a 2008, este grupo de apoio foi gradativamente se
afastando, permanecendo o CEAS e a UEFS, na pessoa da professora Lysiê Reis (a próxima a
ser apresentada como membro de apoio aos moradores). Foi um período de ampliação do
poder e mobilização dos moradores para fortalecer e legitimar a AMACH. Neste anos, o
CEAS conseguiu acompanhar e articular diversas ações com a AMACH , destacando-se entre
elas a construção da visita do relator da ONU pelo direito à habitação. A entidade
acompanhou diversas reuniões da AMACH com o Governo do Estado e Governo Federal,
assim como as audiências no Ministério Público. Também ai, com os encaminhamentos da
Ação Civil Pública, o CEAS passou a assessorar diretamente a AMACH no Comitê Gestor,
esfera pública de discussão dos pontos de impasse do projeto da 7ª Etapa.
Antes da análise mais específica dos diálogos e embates nas esferas públicas
constituídas com este projeto de Revitalização do Centro Histórico de Salvador, na sua 7ª
Etapa, é necessário, para o entendimento aqui proposto, apresentar as estratégias usadas pelos
moradores já mobilizados em conjunto com as entidades e profissionais “parceiros”, para o
fortalecimento, denuncia e pressão para constituição de um espaço, uma esfera, mais
democrática dentro da construção e execução da intervenção urbanística aqui estudada. Neste
sentido podemos dimensionar esta estratégia em dois caminhos, um de cunho mais jurídico,
com a construção de ações junto ao Ministério Público e outro na forma de organização de um
grupo representativo dos moradores que constituíram denuncias na mídia, ações diretas,
mobilização de rua, atos, articulações com outras experiências, construção de documentos
denuncias, constituição de uma movimentação política por participação, do que os moradores
chamavam “do nosso movimento por moradia”.
Este grupo organizado na AMACH passa a utilizar a imprensa como meio principal
para emanar sua voz, como relatado no capítulo anterior. Esta estratégia foi de fundamental
importância tanto pela disseminação do conhecimento e informação sobre a intervenção na 7ª
Etapa e a formulação dos sentimentos de injustiça sobre os moradores atingidos, como para a
sociedade. Valladares, ao analisar o poder da mídia na esfera pública de acordo com Hannah
Arendt observa como ali se efetivam a troca de idéias, que permitiam também ao conjunto da
sociedade participar (VALLADARES, 2009: 43). Durante todo processo de acompanhamento
das ações de implantação do projeto da 7ª Etapa, dentro do recorte temporal analisado, o uso
da imprensa como estratégia da AMACH em influenciar nos resultados do projeto foi
observado e o grupo parecia acreditar que as informações ou denuncias poderiam ali exercer
influência sobre a sociedade. Mas não só a mídia impressa foi utilizada, foram também
encaminhados diversos documentos e cartas denúncias por e-mail para as entidades da
sociedade civil, Defensoria Pública do Estado da Bahia, Ministério Público do Estado da
Bahia, ampliando o raio de ação dentro deste campo da denuncia e eco da voz dos moradores.
A produção dos folhetos, documentos públicos, textos, etc. foi amplamente usada
como estratégia de mobilização e “o grupo de amigos” aqui tinha o papel principal de ouvir as
questões trazidas pelos moradores nas reuniões, selecionar junto com eles as principais
situações que deveriam ser expostas no momento e produzir conteúdos de impacto para os
leitores que recebiam tais materiais nas ruas, das mãos dos moradores como, principalmente,
fazer mobilizar outros moradores que ainda não participavam da AMACH. Entre os diversos
folhetos produzidos, um deles se destacava não só pelo conteúdo, mas pelo resultado que ele
alcançou, tendo sido distribuído por todo Centro Histórico em um mês de campanha contra as
ações do Governo do Estado da Bahia. Após a AMACH ter conhecido os reais objetivos do
projeto de reforma da 7ª Etapa, algumas pessoas passavam a se aproximar desta associação e
após a leitura do conteúdo desses instrumentos as pessoas chegavam à reunião com um deles
em mãos, querendo saber dos seus direitos ou juntar-se ao grupo para pressionar o Governo
do Estado.
O que fazer?
Cuidado, o próximo rodo pode passar por sua casa; sua arma é a
mobilização!! (AMACH, [entre set. e out.] 2002)
Para manter os moradores mobilizados ou, pelo menos, informados, era necessária
uma regularidade das reuniões da AMACH, semanalmente, mesmo com presença restrita de
123
pessoas20. Para tanto foi utilizado, pelo um grupo representativo da AMACH e o grupo dos
amigos, o recurso alternativo de visitas nas casas para apresentar para as famílias que
permaneceram nas casas o que estava sendo colocado dentro do projeto da 7ª Etapa, quais as
estratégias pensadas para o embate com o governo e as possibilidades de ganhos e perdas. Um
trabalho constante, que teve uma ampla ação entre os anos de 2002 e 2003, onde,
principalmente no CEAS foi criada a meta de trazer para dentro da AMACH, pelo menos, um
representante de cada rua da “poligonal da 7ª Etapa”, para constituir o grupo constante da
AMACH, diretoria ou não. Também neste momento foram intensificados os encontros de
formação, com temas de relevância para os moradores, como o Estatuto da Cidade, a
educação patrimonial (coordenado pela professora de arquitetura da UEFS) ou a história de
outras experiências de lutas populares em Salvador. Ali se constatou os limites da
participação popular, determinados pela desconfiança, falta de tempo, descrença nas pessoas
envolvidas na AMACH ou grupo de amigos, “falta de vontade”, apatia, comodismo, falta de
alteridade, dificuldade em entender o que o grupo tentava passar de informação para elas.
20
Durante o ano de 2003, a maioria das reuniões da AMACH ocorriam em média com quatro moradoras
mais a presença do representante do CEAS e da representante da professora da UEFS.
124
pudessem elucidar os fatos para a Promotoria. O Ministério Público passa então a ser forte
aliado da AMACH e, em consonância com as outras instituições e moradores que se faziam
presentes inicia uma série de exigências e questionamentos ao Governo do Estado da Bahia,
representado na situação pela CONDER. Foi só através das ações do Ministério Público que o
grupo da AMACH teve acesso aos escritos dos projetos da 7ª Etapa. Foi justamente o
conteúdo contraditório deste projeto que fez com o Ministério Público ajuizasse Ação Civil
Pública, com pedido de ordem de liminar contra o Governo do Estado da Bahia. Ambas as
estratégias adotadas no campo da justiça geraram fortaleceram a esfera pública de embate
cujas ações serão apresentadas abaixo. Ressalta-se aqui que essas advogadas voluntárias que
atuaram no início também acabaram por ter papel importante na mobilização dos moradores,
nas denuncia da situação na mídia, em ações diretas, manifestações públicas, etc., expressada
também na matéria “Pobres fora do pelô”:
expresso no conceito de vita activa, onde não haveria nenhum elemento mediador entre os
homens, a não ser a própria linguagem. Na experiência em análise foi percebido, em um
momento específico, quando da Construção da Ação Civil Pública e dos resultados dela, o
papel do Ministério Público como agente mediador do conflito entre os moradores e do
Governo do Estado da Bahia. Neste caso também cabe indagar até que ponto o discurso
jurídico criado estava próximo de uma construção popular, tamanha a abstração de alguns dos
argumentos, de difícil entendimento, como o do “patrimônio cultural imaterial” para justificar
a permanência e valorização das pessoas que ali estavam morando. Este distanciamento entre
o discurso jurídico e o agente direto fazia com que o “papel dos amigos” fosse importante não
só para ajudar na construção argumentativa, principalmente pelas advogadas na construção da
ADIN e do Ministério Público, na Ação Civil Pública, como para a tradução da ação em
linguagem popular, pelas principais lideranças do meio popular e entidades como CEAS e
UEFS, para que as pessoas pudessem entender o que estava sendo encaminhado nas esferas
jurídicas a seu favor.
perante o Tribunal de Justiça da Bahia. Nesta ação foi contestada a autorização concedida pela
Assembléia Legislativa do Estado da Bahia ao Poder Executivo para este doar à CONDER
imóveis localizados no Centro Histórico de Salvador. Para tanto a ADIN apresentou como
argumento a defesa da permanência dos moradores na área por conta do seu valor cultual que
também constitui o espaço do Centro Histórico, preservando assim o patrimônio material e
imaterial a um só tempo. Também esta Ação contestava que, se a “Pesquisa socioeconômica e
ambiental da 7ª Etapa”, organizada pela CONDER mencionava que esta intervenção deveria
dar ênfase a uma política de revitalização social, de educação patrimonial e de geração de
emprego e renda para a população pobre da área, visando sua fixação por constituir-se na
verdadeira identidade nacional e internacional do Pelourinho (CONDER, 2000: 03), os
moradores estariam justamente dentro do perfil colocado para a permanência. Desta forma o
PT contestava assim o decreto desapropria tório que atingia os moradores:
Ainda dentro dos argumentos e teses defendidos pela ADIN, ela argui o projeto quanto
a relocação dos moradores com base no “Mérito” da 7ª Etapa que fere o princípio da
dignidade da pessoa humana, tendo como fonte normativo-constitucional no Art. 2 da Lei
Fundamental da Bahia. Com base nesses argumentos estava um conceito patrimonial de que
para promover a proteção do patrimônio histórico cultural o Estado tem que conservar os
modos de criar, fazer e viver mantidos no âmbito territorial do Centro Histórico (PT, 2003:
17). Ainda somavam a construção dos argumentos a possibilidades concretas dos moradores
tirarem do local seu sustento, seja no biscate, nos comércios, na expressão cultural dos artistas
plásticos, capoeiristas, etc., revelando um modo peculiar de uso do espaço para sua
sobrevivência:
Como Arendt argumenta que a esfera pública é o espaço que ilumina e revela o agente
diante do discurso e da ação (ARENDT, 1983: 188-199), a contestação da Ação Direta de
128
Em setembro de 2002 ocorreu uma reunião, marcada como a primeira, onde as partes
se encontravam diante do Ministério Público. Naquele momento a AMACH estava
representada pela sua presidenta, e o grupo de “ amigos” como o CEAS, as três advogadas, o
Projeto Força Feminina, a Arquidiocese de Salvador (ASA) e, do lado da CONDER pelo seu
advogado e uma assistente social. Durante toda reunião foi exposta a situação das
negociações, da intervenção e a realidade dos moradores, por parte da AMACH e do grupo de
amigos. Pelo lado da CONDER, o advogado sustentava os termos do decreto desapropriatório
e as propostas oferecidas aos moradores. Ao final deste encontro, foi afirmado pelo advogado
da CONDER verificar a possibilidade da participação de representante da AMACH nas
negociações com os moradores, acompanhado de um advogado vinculado a esta associação.
O que poderia ser analisado como uma vitória pontual, tamanha a preocupação naquele
momento sobre as formas como os moradores estavam sendo submetidos à negociação, foi
visto com desconfiança pelo grupo da AMACH e, ao final da reunião, já no lado de fora da
sala, todos analisavam que o advogado da CONDER parecia, de fato, não estar atento para a
situação de embates criada pois ele acabara de abrir uma possibilidade de diálogo, que não
estava sendo cogitada nem pelos moradores nem pelos grupos que os acompanhavam, para o
momento.
pela frente; ele afrouxou a gravata, respirou e saiu da reunião para preparar o Governo para a
situação de confronto que se formara e suas repercussões.
O Ministério Público então ajuizou uma Ação Civil Pública21 com pedido de ordem
liminar contra o Governo do Estado e a CONDER, tendo como objetivo principal conter o
processo de expulsão dos moradores. A mídia imediatamente divulgava esses resultados e
tornava ainda mais público a trama e as questões inerentes a ela, naquele momento, junto à
opinião pública. O jornal A Tarde publicou matéria de uma página inteira com o título
“CONDER acusada de fazer assepsia social”, em 21 de novembro de 2002, onde anunciava
que o Ministério Público, na construção da sua Ação Civil entendia que o Governo da Bahia
estava promovendo uma “assepsia social”, ou seja “[...] uma espécie de faxina em que a
pobreza do Pelourinho é a sujeira” (A TARDE, 2004, p.3).
Reis (2004) analisando esses embates, mostra que o Promotor de Justiça e Cidadania
do Ministério declarou ser a primeira vez que se deparava com desapropriações realizadas
com pessoas dentro dos imóveis e com base na reportagem acima, apresenta o
questionamento do promotor: “[...] por que não deixam os moradores no local e cobram deles
também uma quantia, como fazem em Coutos?” (A TARDE, 2004: 7, apud REIS, 2004: 05).
O Ministério Público considerava que a desapropriação de imóveis para destinação a outra
pessoa violava as regras da própria lei de desapropriação, agravada no caso de que dentro do
projeto encaminhado aos órgãos financiadores, constava que estas seriam destinadas a uma
população de baixa renda. Assim a Ação Civil Pública questionava as diferenças entre o
projeto inscrito no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e sua execução na
prática, o que acabou por interromper a execução das obras até que as questões fossem
apuradas e esclarecidas. Em duas matérias do jornal A Tarde os objetivos desta ação foram
esclarecidos à sociedade:
21
Ação de número 38.148-7/2002.
132
Da mesma forma como ocorreu na ADIN, o Estado da Bahia manifesta-se dentro dos
procedimentos jurídicos, e oferece, “tempestivamente”, Contestação à Ação Civil Pública
(PGE, 2003). Nesta Contestação, o Estado responde a todas as questões levantadas na Ação
Civil Publica e entre estas argumenta que a situação a que foi relegada o Centro Histórico tem
ampla responsabilidade dos moradores locais que passaram a significar local de pobreza e
periculosidade (PGE, 2003, p. 03). Desta maneira a Contestação contra-argumenta o
abandono dos imóveis, resultante da ação e impossibilidade dos seus moradores manterem
eles de pé e a situação desumana em que moravam as famílias, argumentos que justificavam a
intervenção do Governo e a relocação dos moradores do local:
A situação é tão deprimente que basta uma mera visita a área para perceber a
veracidade desses dados (referindo aos dados de insalubridade das moradias,
grifo meu)... Diante da escassez de verba pública..., logrou o Estado da Bahia
incluir a restauração e revitalização da 7ª Etapa no projeto Monumenta...,
importando em afluxo de nova clientela e criando expectativa de
comerciantes e agentes imobiliários... (PGE, 2003: 05 e 06)
Nas palavras do governo do Estado nesta Contestação, a remoção seria uma ação
legítima para com estes moradores. Sem reconhecer na área e nos moradores qualquer tipo de
cultura imaterial a ser preservada, considerando que as pessoas que ali habitavam apenas
exibiam a face “ da pobreza e miséria” e que os símbolos culturais a serem valorados
apareciam nas indumentárias (roupas, culinárias, dialetos, formas de expressão) do que nas
próprias pessoas propriamente ditas, os termos da Contestação do governo à ADIN, reforça
mais uma vez uma visão moral desqualificadora desses moradores da perspectiva do seu valor
cultural. Naquele momento, diante da representação social que os técnicos do governo e o
próprio Estado explicitaram foi importante entender a reação dos moradores sobre a situação.
Eles se reconheciam enquanto pessoas no limiar da pobreza, sabiam que existiam muitas
famílias que viviam do tráfico e da prostituição, mas que elas não eram a maioria e que a
cultura, ora colocada nestas peças jurídicas como patrimônio imaterial, era, para eles, a sua
forma de viver no e do local de moradia. Muitos deles eram catadores de latinha para
reciclagem, mestres de capoeira, eletricistas, mães de santo, cabeleireiros, baianas de acarajé,
comerciantes, artistas plásticas, cozinheiras, poetas, costureiras, desempregados, guardadores
de carro, músicos.
suas pessoas os valores culturais a serem preservados in loco. Naquele momento, muitos deles
afirmavam que eles seriam o patrimônio a ser preservados, chegando a ponto de um dos
moradores, com fortes problemas com o uso do crack, colocar que mais do que os casarões,
eles como pessoas é que deveriam ser revitalizados22. Mas, mesmo diante deles, este
reconhecimento como patrimônio cultural parecia ambígua e tensa, devido às contradições
sociais vividas no dia a dia, seja em viver neste bairro, no observar a vida do vizinho, nas
ruas, ou na própria organização da AMACH. Porém, por mais contraditória que pudesse ser a
realidade das famílias e vidas ali expostas em relação ao valor simbólico de patrimônio
cultural imaterial, nada poderia ser mais absurdo para elas, o grupo de amigos e por parte dos
formadores de opinião (pesquisadores, jornalistas, Igrejas, sociedade civil) que a
argumentação usada pelo governo no texto da Contestação, de que o modo de viver daquelas
pessoas não seria “cultura” a ser preservada:
O que sobra, mais uma vez com devido respeito, é uma “cultura”, em
verdade um “modo de viver” produzido pelas condições de pobreza, de
dominação socioeconômica, de exclusão.... Realmente queremos manter
convenientemente, essas pessoas como personagens de Jorge Amado?
Nossos “sacis” (meninos viciados em crack) não seriam a versão moderna
dos “capitães de areia”? Nossas meninas, as novas velhas Tietas, atrações do
turismo sexual? Que espetáculo a vida entre brigas com peixeiras modernas,
os lavadores de carros protegendo nossos bens, como um carnaval sem fim a
que assistimos de arquibancada!!! (PGE, 2003: 11)
Nesses termos o governo, não reconhece o modus vivendi dos moradores da 7ª Etapa
do Centro Histórico de Salvador como “cultura popular típica”. O anúncio da intervenção da
7ª Etapa e toda esfera de debate criada, que possibilitou a explicitação e confronto de projetos
distinto, de pensar e agir político explicitava ali as marcas das ambiguidades, contradições,
conceitos e julgamentos morais sobre os moradores como vítimas de si mesmos. As palavras,
definitivamente aqui especificadas dentro da esfera pública, apresentam não só a dimensão da
comunicação (conflitiva), mas revelam também os agentes nas relações de poder, como
afirma Celso Lazer, na introdução da obra A Condição Humana (ARENDT, 1988: XI). E,
explicitando a relação efetiva de força na esfera pública gerada para a discussão da
intervenção da 7ª Etapa, assim finaliza o documento contestatório do Governo do Estado da
Bahia, sobre a preservação do valor imaterial a ser preservado: “Não há, na hipótese, cultura
popular a ser protegida!” (PGE, 2003: 12)
22
Sugestão da construção de um centro de tratamento para dependentes químicos feita durante reunião
com o CEAS para construção da pauta de reivindicações.
136
É importante destacar aqui algumas das estratégias lançadas e suas consequências para
a esfera pública que envolvia o projeto urbano aqui estudado. Com a resistência de alguns
moradores a saírem das casas, a mídia foi sendo cada vez mais mobilizada pelo grupo e a 7ª
Etapa foi se transformando em pauta constante dos jornais locais. Com o título “Moradores
resistem a deixar os casarões no Centro Histórico”, o jornal A Tarde destacava uma frase
significativa emitida por um dos moradores: “não sou caranguejo pra voltar pra trás”,
referindo-se à sua decisão de permanecer em sua casa e não voltar para seu interior de origem
após estar vivendo por mais de 20 anos na casa onde habitava. (A Tarde, 2003: 06). Enquanto
a mídia ia divulgando informações, e dando voz aos atores que constituíam o embate, os
moradores passavam a articular ações de maneira a fortalecer a AMACH.
Como resultado concreto desta articulação, foi elaborado um “Dossiê de Luta por
Moradia”, um documento com a história de vida e luta dos bairros envolvidos. Na parte que
trata especificamente sobre o Centro Histórico, o documento lista a construção das
reivindicações dos moradores. Para a redação deste documento o CEAS realizou uma reunião
com cerca de 15 moradores, em um dia de muita chuva em um dos casarões em ruína e,
138
também, habitado, e nesta reunião foram tirados nove pontos que sintetizavam as principais
demandas dos moradores da 7ª Etapa. O destaque desses pontos é que foi justamente a partir
deles que o Ministério Público posteriormente acabou por elencar algumas das cláusulas do
TAC (Termo de Ajustamento de Conduta), quando da vitória da Ação Civil Pública para o
Governo do Estado da Bahia. Desta forma, o dossiê acabou se constituindo um instrumento de
pressão e sensibilização da sociedade para com as demandas e a realidade de vida dos
moradores, posterior à intervenção da 7ª Etapa.
23
O rastafarianismo, também conhecido como movimento rastafari ou Rastafar-I (rastafarai) é um
movimento religioso que proclama Hailé Selassié I, imperador da Etiópia, como a representação terrena de Jah
(Deus). (fonte: pt.wikpedia.org-movimento_rastaf%C3%A1ri)
140
nova forma de ocupação dos centros históricos, como moradia das “classes baixas”), deu
sequência a audiência e disse conhecer o perfil dos moradores atuais da área, porém ponderou
que pela linha do financiamento da Caixa Econômica Federal – PAR, só quem ganha de três a
seis salários mínimos teria condições de ser beneficiado pelo projeto, fato que “não contempla
a maioria dos moradores do local” , reconheceu. Mas, segundo ele, como os moradores se
organizaram e questionaram todo o processo, o Governo Federal está estudando o caso e
analisando outras linhas de financiamento. E concluiu que o projeto da 7ª Etapa está com a
tramitação parada e esta só continuará com a aprovação dos moradores locais organizados,
“foi uma vitória conquistada por vocês”. Ali ele anunciava o que todos queriam ouvir, que a
Ação Civil Pública realmente tinha conseguido parar a transferência dos recursos e que,
assim, o Ministério da Cultura e o Governo do Estado da Bahia se viam obrigados a
dialogarem com os moradores afetados pela intervenção da 7ª Etapa. Assim, colocava-se
outra forma de presença dos moradores na sua relação com os demais atores. Ao final da
audiência houve um convite para que o MinC fosse até a área para visitar as família e realizar
uma reunião com os moradores da 7ª Etapa, e o pedido foi acatado.
Apesar das condições de vida dos moradores locais caracterizar-se pela falta de opção
de sobrevivência, e levá-los a envolver-se com atividades ilícitas, a questão não é tão simples
assim. O tráfico e uso de crack, ao mesmo tempo em que poderia parecer naturalizado no
local, causava revolta dos próprios moradores da área (às vezes até dos próprios usuários e
141
traficantes), muitas vezes só percebido por longo tempo de convívio e certo vinculo de
confiança estabelecido. Muitos se revoltam quando escutam de alguns a justificativa de que
“pela falta de oportunidade tenho que traficar”. Outros se dizem presos a esta vida e a essas
atividades em função da necessidade e da possibilidade de um ganho para o sustento de toda a
família. Acreditar ou não, e compreender realmente se passa é um desafio a ser analisado
todos os dias nesta área de trabalho afetada pelas mazelas urbanas. Conviver com ratos, casas
rachando, fome, drogas, violência de todos os níveis e tipos, doenças, ameaças de expulsão,
sem espaço público de lazer, quadras de esporte (nem nas ruas há espaço pra um “golzinho”),
educação de qualidade, emprego, renda, lazer, parecia fazer destes moradores uma tragédia
em si. Mas os diversos outros exemplos de pessoas trabalhadoras faziam o contraponto das
condições de reprodução desses bairros relegado e não reconhecido.
desenvolvido pelo Governo do Estado da Bahia. De fato, este era um momento extremamente
importante para o movimento de defesa da moradia no Centro Histórico, já que em todos estes
anos de expulsão e reformas não se tem registro da comunidade ter sido realmente ouvida
pelos órgãos públicos envolvidos.
de exclusão dos benefícios das pessoas que "já negociaram", aludindo a forma como foram
feitas tais negociações (com policiamento, na noite de natal, com apresentação apenas de duas
opções...) e solicitando portanto que fossem esquecidas. Desta forma foi mantida a posição de
estudar uma alternativa que busque englobar a parcela que sempre viveu e morou no local e
que querem o direito de permanecer.
A propriedade das casas também foi questionada por uma das moradoras locais
presentes na reunião que argumentava que as pessoas não estão só lutando por permanecer no
Centro Histórico e sim continuar morando em uma casa que faz parte de sua vida e que é sua
referência. Para confrontar os dados apresentados pela CONDER em relação ao universo de
famílias da área foi proposto fazer-se um novo cadastro da AMACH para saber-se quantas
famílias ainda estão morando, quantas já negociaram, porque negociaram, como e o que se
quer para com a área. Os resultados desta reunião, que presenciamos enquanto assessor do
CEAS, estão relatados num depoimento meu à época e que integra o mesmo relatório do
CEAS:
ocasião da compatibilização, para que estes pudessem também ser beneficiados, o que foi
acatado pelo Ministério Público e, consequentemente, pelos órgãos públicos envolvidos.
interesses até então só possibilitada na mídia e nas poucas audiências ou reuniões com os
envolvidos, por outro, se constituía num espaço de restrição participativa pois era composto
por representantes de poucas instituições, o que acabou por reduzir o alcance desse
instrumento quanto ao acompanhamento dos embates e informações que ali ocorriam em
reuniões fechadas, do que as formas mais públicas (das audiências e da mídia...).
Antes de detalhar parte dos embates ali ocorridos, uma questão logo de início
preocupava os membros do Comitê da parte da sociedade civil. Como o Comitê Gestor foi
instituído para ser um espaço de deliberação, onde as possíveis questões levantadas pelas
famílias seriam ali votadas, era necessário ter uma composição paritária entre governo e
sociedade civil. Como estas questões estavam quase sempre relacionadas com os impasses
entre o governo e os moradores, representados pela AMACH, seria natural que, da parte da
sociedade civil, fossem mantidas entidades próximas a AMACH, para que as votações e
deliberações fossem justificadas por uma “esfera democrática”.
A AMACH, durante toda sua história e até aquele momento, havia feito aliança e
parcerias com diversas instituições, o que levou à sigla dos “Amigos” (parceiros e aliados),
aqui nesta pesquisa indicados como “os amigos da AMACH”. Porém, dentro da composição
de representantes do Comitê Gestor apareceu uma entidade que nem a AMACH, nem os
“amigos que ali se constituíam” (CEAS e UEFS) conheciam: A Cooperação para o
Desenvolvimento da Moradia Humana – CDM. Não foi observada a presença desta entidade
em qualquer das reuniões do Comitê, e seu lugar na representação foi questionado por
diversas vezes pela AMACH, CEAS e UEFS, sem qualquer tipo de explicação pelos órgãos
do governo ou do Ministério Público, o que levou a que este grupo especulasse sobre sua
presença.
O Comitê Gestor foi dando sequência aos encontros e reuniões. Nessas os conflitos
entre os saberes técnicos e populares se expressaram, a possibilidade de apresentação das
metas, cronogramas e ações do projeto por parte do governo e pelos moradores já a décadas
eram ali colocadas. Porém, para que estas demandas chegassem até o Comitê, seria necessário
garantir a representação da AMACH, do CEAS e da UEFS legitimados pelos moradores, que,
com seus limites de tempo e recursos, suas dificuldades em processar as informações, as suas
próprias contradições e ambiguidades e, em alguns casos, diferenças com estas instituições,
faziam desta participação no Comitê outro grande desafio. Desta maneira, por diversas vezes,
foi feita uma solicitação, por parte da AMACH, UEFS e CEAS, de que os órgãos públicos
148
Esta solicitação foi pouco atendida. O Comitê Gestor passava por legitimar uma esfera
restrita de decisões, muitas vezes burocratizada, como espaço público de negociação.
Retomamos aqui o diálogo com Hannah Arendt, sobre as condições da representação e
legitimidade do Comitê Gestor. Ali existiam múltiplas possibilidades de ação, mas ao mesmo
tempo era um espaço que precisava de suporte institucional (mediação do Ministério Público,
por exemplo), mesmo com as características de uma dinâmica dialógica entre os interessados
por meio da expressão de discursos e formulação da ação. Para Arendt o mundo público é o
espaço que ilumina e esfera ideal para o ator dizer verdadeiramente quem ele é, onde está e
com quem dialoga. O Comitê, analisado segundo a perspectiva indicada por Arendt, cumpria
sua missão de se constituir em instância pública de intermediação. Porém, o perigo, segundo
interpretação de Freitag e Rouanet, estava na natureza desta “mediatização”, podendo ser um
espaço de fácil decisão e rapidez dos encaminhamentos, onde a população seria representada
pela associação ou entidades da sociedade civil (FREITAG e ROUANET, 2001: 106). Ou
seja, o Comitê se tornara um espaço onde o poder de voz dos cidadãos, ou dos moradores
seriam expostos, sem, contudo, representar, na prática, uma decisão de forma mais ampla.
Para dar conta desta lacuna, as reuniões da AMACH semanais era o local onde as pessoas, em
número restrito e rotativo, podiam informar-se sobre as informações das reuniões do Comitê e
pautar novas questões a serem pontuadas neste.
A outra grande dificuldade na participação dos moradores e das duas entidades que
compunham a sociedade civil diante do Comitê Gestor, estava na constituição de um diálogo
tecnocrático, que dificultava o entendimento de todos. O primeiro impasse, por exemplo, foi
entender os traços da poligonal, os mapas da área e as razões porque uma casa estaria dentro
do programa, outra não, e o que diferenciava a escolha de uma reforma ser realizada para
contemplar o plano habitacional popular e outra um plano direcionado para classe média.
Desta maneira, na primeira reunião de apresentação do projeto por parte do Coordenador do
programa Monumenta, então vinculado a CONDER, houve uma dúvida para aquele grupo que
compunha o Comitê Gestor, levantada por uma das moradoras e que pode revelar o grau, a
natureza e a distância existente entre as partes ali constadas. A moradora, observando o mapa
da poligonal preso à parede, perguntou quem tinha traçado aquelas linhas, e revoltou-se: como
poderiam ter traçado um linha bem no meio da rua e a casa dela ser contemplada por uma
149
reforma e a da família da frente, bem do outro lado da rua, não. Ao final das suas questões ela
explicitou sua avaliação em relação ao trabalho dos técnicos: “Não vejo linha na frente de
minha casa... Gostaria de dizer uma coisa a vocês: vocês entendem de traços e nós
entendemos de gente” (Moradora da 7ª Etapa, 1ª Reunião do Comitê Gestor para apresentação
do projeto, em 28 de novembro de 2004).
Ademais, ainda quando do apresentar do projeto no âmbito do Comitê Gestor, que por
diversas vezes foi solicitado pela AMACH que fosse feito para todos os moradores, outros
limites foram apresentados. As informações trazidas diretamente em todas as reuniões
estavam sendo ditas de forma bem direta e o Projeto da 7ª Etapa parecia estar já todo traçado,
sem possibilidade de mudanças significativas. Segundo informações anotadas em relatório,
foi ali explicitado que o Governo Federal (MinC/IPHAN) criou o Programa Monumenta/BID
e para o Brasil este programa é responsável pelo resgate patrimonial de 28 cidades. Em
Salvador o Monumenta/BID atuava na 7ª Etapa e, segundo afirmativa do técnico da
CONDER, responsável pelo programa, não havia possibilidade de trabalhar com a parte
interna dos imóveis e o Governo do Estado da Bahia então resolveu fazer um programa
habitacional. Ainda segundo explanação a poligonal já estava definida antes do programa e
seria destinada para implantação das suas secretarias municipais (como um Centro
Administrativo Municipal). O BID investe 50% (Empresta ao Gov. Federal); o Governo do
150
Estado da Bahia 20% e o Governo Federal participa com 30%, num total de R$18,348
milhões de reais.
Ali, mais uma vez, observa-se a contradição da dimensão do tempo para reconstrução
de todo um projeto que já estava aprovado e em execução, quando o Ministério Público
intervém e obriga o governo a dialogar. É o imperativo do tempo dos recursos já aprovados,
das licitações das obras, e da execução do cronograma. Esta perspectiva ficou bem explícita
quando ao detalhar do mapa, e na sequência da apresentação da CONDER constatou-se que
os locais da intervenção das obras já estavam definidos. O local da creche, o estacionamento,
as habitações, a construção da Universidade de Artes e Design Berlim-Bahia, a ampliação do
Liceu. As únicas áreas livres apresentadas, foram a parte superior do estacionamento, que,
segundo sugestão do técnico no momento da reunião, poderia ser transformada em quadra ou
num centro comercial. Ainda segundo anotações de observação direta daquela reunião, O
programa de execução deveria ser acabado em 2004 e até aquela data, segundo afirmativa do
técnico, mal haviam sido iniciadas as obras, sendo que os recursos financeiros estavam
previstos para terminarem em 2006. Assim, o projeto parecia que estava já fechado e anulá-lo
ou modificá-lo demandaria muito tempo.
sido explicitadas o que demandaria tempo impossível de execução para contemplar novas
demandas.
A escolha das casas por programa foi sempre questionada até os dias atuais de
finalização desta pesquisa. As dúvidas e desconfianças quanto às justificativas dadas são
paralelas à tristeza, revolta e incompreensão do porque, depois de tanta luta, ter ainda de sair
da casa de origem o que acabou por afetar o sentimento das pessoas que permaneceram. A
primeira justificativa argumentou que foi em função de adiantar para o PSH as casas que já
estavam avançadas quanto a sua regularização jurídica (desapropriação e alienação em nome
da CONDER). O governo, assim, argumentava que as pessoas, em sua grande maioria, não
poderiam retornar para as suas casas de origem, pois elas seriam contempladas por outro
programa habitacional, este dirigido para os funcionários públicos e que ela não teriam
condições de pagar. Depois, foi apresentada uma segunda justificativa de que as diferenças no
atendimento das casas por programa resultavam do Estado físico do imóvel no momento da
contratação das obras. Quanto mais precário estivesse o imóvel, menos gastos para reforma e
restauro, pois a estrutura seria toda destruída em vez de reformada internamente para
construção de uma nova, contemplando então o programa habitacional popular em função do
menor gasto. Se o imóvel estivesse em bom Estado interno, as obras teriam um gasto maior,
pois seria necessário restaurar parte do imóvel, o que demandaria mais trabalho e recursos,
sendo então estas casas direcionadas ao público com subsídio de maior valor.
Para Arendt:
Parece-me que tanto aqui (espaço publico para pensar a urbe, o Centro Histórico em
seus modelos e intervenções) quanto na polis grega o domínio da palavra, dos discursos e
também do conhecimento era restrito a poucos. A linguagem e os termos utilizados, podem
até chegar aos ouvidos de todos os presentes num mesmo momento, mas as condições
153
Com isso, H. Arendt tem que pagar o preço de: a) excluir da esfera política
todos os elementos estratégicos, definindo-os como violência; (FREITAG E
ROUANET, 2001: 110-111).
A saída das casas de origem e escolha de outra, diante de um embate desigual e com o
Ministério Público cada vez mais afastado, acabou por ser digerida pela maioria dos
moradores que, mesmo não aprovando a decisão, acabou por aceitar a relocação para outro
endereço dentro da poligonal, restando, porém algumas famílias resistentes. Outras tiveram a
sorte de ter suas casas contempladas pelo programa habitacional popular, sem precisar mudar
de imóvel. Já estávamos no ano de 2005 quando se iniciaram os diálogos e apresentações dos
projetos arquitetônicos das casas. Detalhar este momento, tamanha as singularidades do
momento, demandaria um outro objeto de análise, pois ali estava definitivamente presente o
arcabouço técnico a ser discutido com os moradores: arquitetura, restauração, engenharia,
saneamento, estudos arqueológicos.
Na outra semana, então, houve uma reunião para apresentação das plantas das casas.
Havia uma ansiedade por parte de todos para saberem onde e como iam morar. O conteúdo da
154
fala do responsável pelo programa Monumenta, foi desestimulante; ele afirmava estar com as
plantas de 12 imóveis divididos em 52 apartamentos, mas, “achou desnecessário” apresentar
os 12 imóveis para o Comitê Gestor, mostrando apenas a planta de uma delas. Segundo sua
informação os imóveis estavam todos no mesmo nível de qualidade em relação aos dois
programas habitacionais, e eles também já estavam prontos e aprovados pelo IPHAN. Quando
uma das moradoras tentou questionar sobre possibilidade de mudança nos projetos das casas,
afirmando que elas estavam pequenas, ele foi outra vez incisivo, e afirmou uma frase decisiva
sobre a concepção desta participação: “Não vai ser a casa que vai se adaptar a Dona Maria,
mas vai ser Dona Maria que vai ter que se adaptar às casas”. Outra vez ele recorreu ao
imperativo do tempo, afirmando que modificar as plantas já aprovadas pelo IPHAN iria travar
todo processo de execução das obras: “o projeto vai ser aberto para vocês olharem. Vocês
vão ter o direito de criticar, mas as pessoas vão morar nos apartamentos de qualquer
forma”.
O gestor do programa foi substituído por uma arquiteta e urbanista com um perfil mais
conciliador. Porém as mudanças esperadas, seja em função do direcionamento das casas
segundo programas de financiamentos diferentes, contemplando faixas de renda também
diferentes, e os valores a quem ainda quisesse ser indenizado, ou a ampliação dos números de
moradia, não mudou. O diálogo foi ampliado com apresentações e audiências públicas para
que os moradores pudessem finalmente conhecer o projeto e as linhas de financiamento, mas
estes também não deram sequência As plantas de todas as casas foram disponibilizadas para a
AMACH que, com o auxílio da professora Lysiê Reis, teve o difícil trabalho de explicar a
cada família os projetos, ajudando-as a escolher suas moradias, ação que deveria ser feita pelo
155
O dia de hoje nos faz lembrar, com tristeza, das perdas e expulsões de
moradores que foram usurpados de seus direitos. Mas também o dia é de
alegria pelo reconhecimento da resistência, vitória e permanência de um
pequeno número, de 103 famílias, através da AMACH. Sabemos que é
pouco, mas nenhuma associação de moradores do Brasil havia até então
alcançado conquista semelhante em relação às áreas urbanas de caráter
patrimonial. Porém, chamamos a atenção das autoridades aqui presentes para
as outras famílias, da própria 7ª Etapa, que não foram contempladas neste
projeto, como também das outras áreas degradadas do Centro Histórico, para
que os cidadãos que lá sobrevivem tenham seus direitos de permanência,
trabalho e moradia garantidos. (AMACH, out. 2007)
156
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Resultados estes que podem ser analisados de uma perspectiva comparativa local com
as outras 6 etapas do processo de revitalização do Pelourinho, porque ali também foram
criadas as bases críticas de constituição dos agentes, moradores ou Poder Público, quanto aos
interesses e julgamentos sobre os efeitos dessa intervenção no local, o Centro Histórico de
Salvador. Porém, algumas singularidades ocorreram na 7ª Etapa, o que fomentaram
importantes aspectos de um processo de resistência, embates e diálogos entre os moradores,
os mediadores, e o Governo do Estado da Bahia.
um acontecimento disruptivo que faz emergir campos distintivos entre a cidade planejada, por
Poligonais, em recursos financeiros, sob olhares técnicos e administrativos e a cidade vivida
no dia a dia das pessoas, da maioria constituída do meio popular, com suas urgências e sua
dinâmica própria no uso desses espaços urbanos relegados e “revitalizados”.
A conquista de aluguéis, pagos pelo governo, para as famílias que tiveram seus
imóveis reformados, para posterior retorno a área habitada. A prioridade em assegurar a
integridade física de pessoas que habitavam imóveis sob risco de desabamento, sendo estas as
primeiras a irem para as casas alugadas. Os cursos profissionalizantes e a possibilidade de
geração de emprego e renda, seja como funcionários as poucas possibilidades nas obras, nas
festas locais, no projeto da cozinha comunitária (ainda em construção quando do findar desta
pesquisa). Contata-se aqui que a maioria dos resultados concretos veio como cascata de tantas
outras ações passadas, desde a mobilização comunitária, as reuniões da AMACH, a busca das
parcerias, as denuncias na mídia, as articulações com outras lutas, outros bairros que
acabaram por constituírem uma rede de relação, ação e solidariedade.
estabelecido, sob pena do Governo do Estado da Bahia sofrer medidas judiciais, um acordo
que impactou a todos envolvidos, seja vinculado aos moradores seja, principalmente, em
relação aos órgãos públicos envolvidos:
próprio garantido, mas este ainda não foi construído, e a associação funciona ainda em espaço
cedido pela CONDER. Uma creche comunitária e uma cozinha comunitária estão também
sendo construídas para que as família possam ser atendidas e trabalharem.
Mais do que o concreto, representado nas casas reformadas ou revitalizadas, o que por
fim realmente se percebe deste resultado foi que a esfera pública formada acabou por
possibilitar a denuncia e o reconhecimento dos agentes no projeto, como cidadãos com direito
de participar, do Poder Público, da sociedade civil, da mídia A participação dos moradores
possibilitou uma esfera de negociação com o Governo do Estado da Bahia, nas diferentes
gestões durante os embates, entre 2001 e 2007, tempo analisado nessa dissertação, que acabou
por reconhecer que o “diferente” pode, mesmo sob pressão, ser ouvido. Ser ouvido em uma
esfera dinâmica e desigual, onde seu próprio processo de constituição apresenta os caminhos e
limites para o alcance do objetivo; mesmo que este ainda esteja na fase da própria busca por
participação.
160
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