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IDENTIDADE, MEMÓRIA E PERTENCIMENTO: A TRADIÇÃO DE

ARTÍFICES DOS ARCOS DA LADEIRA DA CONCEIÇÃO DA PRAIA

Izzadora Bastos de Sá Barreto1

Resumo: Este artigo faz uma breve reflexão sobre os ofícios realizados nos Arcos da
Ladeira da Conceição da Praia, que se encontram imersos no universo de símbolos que
caracterizam as tradições e a identidade dos artífices. Buscou-se aprender nas memórias
do trabalho e do lugar, na ancestralidade e nos afetos, o Patrimônio Cultural e Afetivo.
O texto também visa o recorte racial que envolve os processos de gentrificação em
espaços urbanos, tomando o Centro Histórico e Antigo de Salvador como referência. É
por meio da técnica de história oral, que o artigo agrega as contribuições dos
depoimentos obtidos através de entrevistas com os artífices, reconhecendo-os assim,
como colaboradores e sujeitos na construção de suas próprias histórias.

Palavras-chave: tradição, pertencimento, lugar, identidade, cultura.

Introdução

No dia 15 de Julho de 2014 os artífices dos Arcos da Ladeira da Conceição da


Praia, ocupantes dos arcos a diversas gerações desde o século XX, receberam uma
notificação com uma ordem de desocupação no prazo de 72 horas, entregue pela
Secretaria Municipal de Urbanismo de Salvador (SUCOM), a pedido do Instituto
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Simony Venancio, ocupante do arco nº 18, e
filha do falecido Senhor Hindelbrando Venancio, um dos célebres marmoristas e
referência na arte desse ofício, conta como recebeu a notificação:

Nada foi conversado, só chegou aqui com notificação, acho que foi dia 14 de junho de
2014. Chegou aqui a SUCOM, encheu de povo, de gente daqui. O povo da SUCOM,
cada qual com uma prancheta na mão. Assim mesmo, depois do meio dia, eu estava
almoçando. “Vocês estão notificados para sair em 72 horas daqui dos arcos”. A gente:
“como é que é isso?”, “assina aqui”. Mesmo se a gente assinasse ou não assinasse daria
no mesmo. Foram embora. Ficaram com uma via, e deixam a outra via para gente. Quer
dizer, foi um negócio verbal eles só chegaram aqui dizendo assim ô! (Entrevista de
Simony Venancio, 2016).

1
Graduanda do 1º semestre em Comunicação: Produção de Comunicação e Cultura pela UFBA –
Universidade Federal da Bahia. Bolsista na Pesquisa Fomento/Financiamento Estadual à Cultura pelo
Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (CULT). izzadorasa@gmail.com.
A notificação sem aviso prévio revela uma faceta da batalha política em curso
nos Arcos da Ladeira da Conceição da Praia, a comunidade de artífices deveria ser
desintegrada social e espacialmente para que fossem iniciadas as obras de requalificação
das suas edificações, que serviriam como novas residências artísticas.
O presente trabalho insere-se no âmbito das reflexões auferidas nas entrevistas
com os artífices da Ladeira da Conceição da Praia. Por meio da técnica de história oral,
o artigo tem como principal contribuição os depoimentos de Simony Venancio, Adalto
Venancio, José Adário e Edmilson Rodrigues, reconhecendo-os assim como
colaboradores e sujeitos na construção de suas próprias histórias.
Partindo do entendimento que os ofícios artesanais realizados nos Arcos
encontram-se imersos em um universo de simbolismos que caracterizam as tradições e a
identidade dos artífices, buscou-se aprender nas memórias do trabalho e do lugar, na
ancestralidade e nos afetos, o Patrimônio Cultural e Afetivo. Verifica-se também que o
texto visa o recorte racial que envolvem os processos de gentrificação em espaços
urbanos, tomando o Centro Histórico e Antigo de Salvador como referência, cuja há
região a tempos é foco de projetos turísticos de cunho higienista, bem como da
especulação imobiliária. Tais projetos não levam em consideração os contextos culturais
e sociais que pertencem historicamente ao lugar.
Inicialmente o texto aborda o processo histórico de construção dos Arcos da
Ladeira da Conceição da Praia, destacando sua importância simbólica na história de
Salvador. Em um segundo momento, propõe-se uma reflexão sobre as formas como se
expressam as tradições dos artífices nos Arcos. Logo, será destacado as relações que o
lugar estabelece na construção das identidades e nos sentimentos de pertencimento
cultural dos artífices. Por fim, ao atentar sobre os programas de requalificação das
edificações dos Arcos, torna-se possível problematizar a ótica na qual esses programas
estão sendo pensados e em que medida os modelos de cidade se criam a partir dessa
visão.
No sobe e desce da ladeira Salvador constrói o seu pilar

Pela história disse que isso aqui foi do tempo dos escravos né. Eu acho que pedreiro
nenhum, obra nenhuma ia colocar pedrinha por pedrinha, é uma obra de arte (Simony
Venancio – Marmorista, 2016).

Nas primeiras décadas do século XIX, teve início o processo de urbanização das
encostas da montanha que separa as Cidades Alta e Baixa, visando impedir os
sucessivos deslizamentos e desabamentos nas encostas e conter sua ocupação. As obras
de contenção foram realizadas entre as décadas de 1850 e 1860, que deram forma
definitiva às Ladeiras da Conceição e Misericórdia. A ladeira da Conceição da Praia é
uma das mais antigas ligações entre a Cidade Alta e Baixa, localiza-se no sopé da
montanha onde foi erguida, ainda no século XVI, a ermida de Nossa Senhora da
Conceição da Praia (ANDRADE, 2002).
Essenciais rotas de ligação entre a praia e a cumeada, as duas ladeiras eram, no
entanto, extremamente íngremes tornando árdua a subida de pessoas e animais com
carga. Em virtude disso, em 1878, optou-se pela construção de uma ladeira de
inclinação mais suave. Assim, o presidente em exercício, Barão Homem de Melo,
contratou os serviços da Empresa de Transportes Urbanos de Antônio de Lacerda para
construir sobre a Ladeira da Conceição da Praia a Ladeira da Montanha, tendo os 23
arcos como sustentação (MUÑOZ, 2010).
Finalizados em 1879 os Arcos da Ladeira da Conceição da Praia foram erguidos
por mãos negras e escravas, com o objetivo inicial de servir como pilares de apoio para
a montanha. mas em seguida começaram a ser utilizados como moradia e comércio de
ferreiros, serralheiros, carpinteiros, marmoristas, sapateiros, entre outros. Muitos destes
eram ex-escravos e fixaram ali seus lugares de trabalho.
Seu Adalto Venancio, tem 74 anos e é um dos marmoristas mais antigos dos
Arcos, ele conta umas das técnicas singulares utilizadas pelos escravos na construção
das edificações: “Na massa eles botavam só barro, cal e óleo de baleia. Não tem
cimento nenhum, e essas pedras aí pra tirar: três dias. Aí nenhuma dessas estruturas
tem ferro, nem cimento.” (Adalto Venancio – Marmorista, 2016).
Os Arcos estão localizados no limite de demarcação entre o Centro Antigo e o
Centro Histórico de Salvador – maior conjunto arquitetônico do período colonial da
América Latina, e o primeiro mercado de escravos do continente. Tombado pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em 1984, e
reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (UNESCO) como Patrimônio Cultural da Humanidade em 1985. 2

A tradição cultural dos artífices

Os arcos estão aí, resistindo ao tempo e desafiando a arquitetura, pode ser com a ajuda
dos preto velho, dos caboclos, ele estão aí (Edmilson Rodrigues – serralheiro, 2016).

As representações de tradições que foram construídas e se estabeleceram nos


Arcos da Ladeira da Conceição da Praia, se expressam nas relações entre tradição,
cultura e identidade, que ultrapassam o tempo e mantiveram os seus significados
simbólicos de pertencimento nos ofícios artesanais. A tradição está nas expressões mais
singelas do tempo, nela a essência da identidade toma posse dos objetos manualmente
construídos, compondo a história e as relações de sociabilidade. Para Williams a
tradição é uma versão intencionalmente seletiva de um passado modelador e de um
presente pré-moldado, que se torna poderosamente operativa no processo de definição e
identificação social e cultural (1979 apud CASTRIOTA, 2014, p.3).

Isso aí ficou uma história né, uma história na família, você viu que foi uma coisa do pai
dele que fazia antigamente, agora eu estou aqui e tem um irmão também que trabalha
com isso, mas não trabalha aqui, tem o outro irmão que trabalha mais embaixo na
mesma área de mármore. Eu acho legal, gente tá dando continuidade na história
(Entrevista de Simony Venancio, 2016).

Edward Shils evidencia como as conquistas da geração passada vivem na


geração do “presente” – cada geração sendo o seu próprio “presente”, e como as
tradições – cuja essência parece ser a preservação –, de fato, variam. Mudam, crescem e
2
Os arcos e as muralhas da encosta do Centro Histórico de Salvador serão recuperadas e requalificados
pelo PAC Cidades Históricas. Portal IPHAN Bahia, mar. 2014. Disponível em:
<http://iphanba.blogspot.com.br/2014/03/os-arcos-e-as-muralhas-da-encosta-do.html>. Acesso em: 18
mai. 2016
diminuem (1981 apud CASTRIOTA, 2014). A cultura é a fonte de ligação de todas as
relações simbólicas e de pertencimento que a tradição está atrelada, os artífices da
Ladeira da Conceição da Praia compõe um conjunto de elementos culturais que
constroem suas identidades e sentimentos.
De acordo com Katharina Weiler, ao analisar o processo de avaliação e
transmissão das técnicas artesanais na Índia, ela entende que as tradições estão
intimamente ligados com a continuidade e a natureza processual da cultura, sendo que
por trás do conceito de tradição escondesse tanto a ideia de passagem e da aceitação de
formas culturais (2013 apud CASTRIOTA, 2014).
Ofícios antigos, como os de ferreiro, serralheiro e marmorista permaneceram há
diversas gerações, e mesmo tendo adquirindo diversas nuances, modificaram e
preservaram saberes do tempo e do lugar. O uso de novos equipamentos reconfiguram
algumas formas do saber tradicional transmitido, pois não haveria, assim, uma cultura
estática, e o próprio processo de transmissão incorporaria possibilidade de mudanças,
através das quais as culturas se mantêm flexíveis e pode absorver as inevitáveis
variações trazidas pelo tempo (CASTRIOTA, 2009, p.3).
Os artífices são conhecidos como operários especializados num determinado
ramo de atividade que realizam trabalhos manuais. Para os artífices mais antigos dos
Arcos da Ladeira da Conceição da Praia, a noção de “ser artíficie” implica o ofício e a
arte culturalmente adquirida pelas suas experiências vividas, anseios individuais e
coletivos, envolvendo o reconhecimento social da posse de um saber, de um “saber
fazer” construído a partir das habilidades e experiência desta ocupação (DADOY, 1989
apud TOMASI; SILVA, 2007) e que, indispensavelmente foi transmitido por meio da
relação mestre – observador – aprendiz.

Eu fiquei um ano olhando e vendo ele fazer, quando estava com um ano eu já estava
capengando. E ele dizendo que estava errado, "Não está igual ao meu! Não passa" mas
mesmo assim eu tentando. Ele nunca dizia que estava certo, ai depois de três anos eu
peguei o tombo, já ia pro fogo quando ele saía. Quando ele chegava estava lá o chão
qualhado de ferramenta de som [referência ao agogô] (Entrevista de Zé Diabo, 2016).
José Adário, conhecido internacionalmente como Zé Diabo, atualmente trabalha
com seu filho conhecido como Diabinho no arco nº26, e começou como aprendiz de
ferreiro há mais ou menos 56 anos atrás. Ainda muito jovem Zé Diabo lembra que entre
uma lição e outra, pegava água na Ladeira da Preguiça para que seu mestre tomasse
banho, e que uma das suas funções na oficina era levar na cabeça as ferramentas de
orixás produzidas para serem vendidas no Mercado Modelo. Ele conta como chegou nos
Arcos:

Meu tio, mestre Erlou Brás, foi que me trouxe pra aprender o ofício. Com 10 anos eu era muito
abusado, então, do colégio eu vinha pra cá pra aprender o ofício, foi difícil aprender, foi difícil
demais, foi meu mestre que me ensinou o ofício. Aprendi lá no 18 [arco nº 18]. E daí eu aprendi
com ele e dei seguimento. Meu mestre veio no 18. Porque aqui [arco nº 26] eu tenho 42 anos. Ele
veio porque o pai dele era armeiro, trabalhava com arma de fogo, espingarda (Entrevista de Zé
Diabo, 2016).

Essa conexão entre o passado e o presente, descrevem os processos de


aprendizagem nos quais as formas (trans)culturais podem ser recebidas e transformadas,
para, mais uma vez, ser aprendidas, testadas e corrigidas (WEILER in FALSER;
JUNEJA apud CASTRIOTA, 2013). A tradição e sua relação com o tempo atua de
forma operativa no processo amplo da identidade social e cultural, tanto para o local
onde ela se insere, quanto para o grupo na qual ela é expressa.

O lugar na construção da identidade e do pertencimento

Quem é Simone? Uma das artífices da Ladeira da Conceição da Praia. É Simone!


(Entrevista de Simony Venancio, 2016).

Como diversas comunidades negras que ocupam casarões abandonados no


Centro Histórico de Salvador, os artífices dos Arcos da Ladeira da Conceição criaram e
(r)existiram a uma composição urbana hegemônica, que tende a alocar os grupos
marginalizados em periferias distantes do centro das cidades. O espaço urbano é uma
metáfora para a diferença racial percebida (SURGRUE,1996 apud PERRY, 2012,
p.170). Foram nos vazios dos arcos que sustentam uma das principais ladeiras de
Salvador – Ladeira da Montanha que se manifestaram espacialmente, há diversas
gerações, uma cultura que une os artífices aos arcos.
O processo de construção da identidade dos artífices está também
intrinsecamente ligado ao das resistências negras que ocupam o Centro Histórico. Eles
fazem parte da história, ocuparam e ressignificaram espaços que eram antes dos seus
algozes, é nesse lugar que se constroem e se estabelecem suas identidades e suas
tradições. Foi no vai e vem das Ladeiras que ligam a cidade alta e baixa que as carroças
fartas de cana-de-açúcar, eram arduamente puxadas por negros escravizados.
Entendendo que a identidade é um processo de identificações historicamente
apropriadas que conferem sentido ao grupo (CRUZ, 1993 apud RODRIGUES, 2012,
p.3), devendo ser compreendida como processo culturalmente construído e repleto de
significados (CASTELLES, 2000, apud MOREIRA; HESPANHOL, 2008, p. 56).
Reconhecer os aspectos culturais e as relações de pertencimento com o lugar
onde os artífices exercem seus ofícios, nos permite entender a importância do lugar
como uma construção social da identidade, são nos Arcos da Ladeira da Conceição da
Praia que as tradições foram mantidas e estão ligadas a todo Centro Histórico. Nos
Arcos que seus ofícios são reconhecidos socialmente e historicamente, neles estão o
centro de valores indispensáveis para a identidade dos artífices (MOREIRA;
HESPANHOL, 2008).
Seu Edmilson Rodrigues, é ferreiro e tem 64 anos e cresceu na Ladeira da
Conceição da praia e na região do Centro Histórico de Salvador. Ele aprendeu a
profissão de ferreiro e serralheiro com um dos mais antigos artífices ocupantes dos
arcos, Mestre Caneleira. Foi nos Arcos da Ladeira da Conceição que ele aprendeu a arte
de fazer portões ornamentais, um ofício extremamente artesanal e que durante muitos
anos foi símbolo de elegância e poder aquisitivo nos bairros nobres de Salvador. Ele
conta, de forma afetuosa o sentimento que o une ao lugar onde ele vive, trabalha e se
relaciona:

Isso aqui é nossa vida! Você faz, constrói tudo em um lugar, trabalha, passa gerações,
passa para outras pessoas algum aprendizado que você já tem. Na realidade isso aqui é
uma faculdade, isso aqui você aprende em tudo, aprendi a lidar com as pessoas, aprendi
a lidar com os colegas, e com o público, isso aqui é uma verdadeira universidade.
Muitos que passaram por aqui, sempre voltam. Isso aqui é a casa de mãe. Isso aqui é
uma família. É a mesma coisa que você tirar um peixe da água, é a mesma coisa a gente
aqui. Você constrói uma vida em um lugar, em termo espiritual, moral, familiar e tudo, e
depois simplesmente, não comporta mais naquele lugar, como é que você fica? Você vai
construir, depois de uma certa idade, tantos anos que passou naquele lugar, vir pra outro
lugar construir? Outra vida? Começar outra vida? Não existe isso. (Entrevista de
Edmilson Rodrigues, 2016)

Os Arcos são a referência cultural dos artífices, é onde criam e expressam os


sentimentos de pertencimento. É nesse lugar que a identidade, o acumulo de histórias
individuais e coletivas se entrelaçam, é uma rede de significações e sentidos, tecidos
pela história e pela cultura. O lugar tem usos e sentidos e, portanto, abarca a vida social,
a identidade e o reconhecimento (CARLOS, 1996). Quando se trata do lugar, o que vem
a tona é a memória afetiva, coletiva e a identitária 3 dos artífices, que se dá nas diversas
dimensões culturais atribuídas ao Arcos. Intervir no lugar é desencadear uma rede de
sentimentos que marcam a vida e as personalidades desses sujeitos que tecem
diariamente a sua própria história.

Patrimônio Cultura e Afetivo: Projetos e Conflitos

Na arquitetura dos afetos4, nos bens materiais e imatérias é que o patrimônio


cultural e afetivo permanecem vivos nos artífices que ocupam os Arcos da Ladeira da
Conceição da Praia, ele é o elemento fundamental na construção da identidade, das
tradições, do lugar e da memória e, simultaneamente, é a própria materialização dessas
expressões coletivas e individuais (Choay, 1992; Schiele, 2002; Peralta & Anico, 2006
apud DONIZETE, 2012).

3
Segundo Halbwachs, a identidade reflete todo o investimento que um grupo faz, ao longo do tempo, na
construção da memória. Portanto, a memória coletiva está na base da construção da identidade. Esta
reforça o sentimento de pertença identitária e, de certa forma, garante unidade/coesão e continuidade
histórica do grupo. (1992, apud DONIZETE, 2012)
4
Como é possível pensar numa cidade sem pensar nas pessoas que a habitam, nos corpos que afetam e
são afetados, que geram potências e constroem laços afetivos que, como redes, sustentam o viver
cotidiano. A Arquitetura dos Afetos é a grande construção da vida das pessoas; uma construção afetiva
que não pode ser vendida nem comprada e, muito menos, indenizada (CAO, S, 2013).
As edificações dos Arcos da Ladeira da Conceição da Praia estão inseridas na
poligonal de tombamento do IPHAN desde 1984, e em área de proteção rigorosa,
segundo Lei Municipal nº 8550/2014. Apesar do discurso de proteção e a relevância
histórica e cultural do lugar, durante anos os arcos foram esquecidos pelo poder público,
as reformas internas e externas foram realizadas com o tempo pelos próprios artífices.
Apenas em 1991 foi realizada a pintura das suas fachadas, e em 2014 foi alvo de
projetos de “revitalizações” e transformação em “residências artísticas”.

Aí eu disse, ora! Querem trocar de artistas?! Aqui também nós somos artistas a tanto
tempo, tanto tempo que agente labuta com isso aí. Obra de arte! Todo serviço aqui, o
trabalho com ferro, você vê as obras de Edmilson mesmo. E as da gente, Ave Maria! Eu
sou suspeito de falar do mármore, por que eu trabalho a tanto tempo também, uma obra
de arte se você analisar bem o serviço que a gente faz aqui (Entrevista de Adalto
Venancio, 2016).

Em janeiro de 2014, foi divulgado o edital de licitação do Programa de


Aceleração e Crescimento (PAC) das Cidades Históricas que aplicaria R$142,1 milhões
na capital baiana com 23 intervenções em monumentos, equipamentos e edifícios
históricos (Portal Brasil)5. Um dos projetos destinados à cidade de Salvador neste edital
era a requalificação das edificações localizadas nos Arcos da Montanha. Segundo Carlos
Amorim, superintendente do IPHAN na Bahia à época, “A intervenção na sua estrutura
física visa proporcionar melhor atendimento à comunidade e aos turistas no que diz
respeito à sua funcionalidade e atrativo turístico” (Portal IPHAN)6.

A restauração do centro urbano é orientada unicamente pela valorização e preservação


simbólica do produto histórico, diferenciado da realidade contemporânea, apagando a
memória da escravidão e da violência racial e de gênero (por exemplo, a violência
associada ao Pelourinho, instrumento colonial de tortura, no Centro Histórico) (PERRY,
2012, p.184).

5
Aberta primeira licitação do PAC Cidades Históricas. Portal Brasil, jan.2014. Disponível em:
<http://www.brasil.gov.br/cultura/2014/01/aberta-primeira-licitacao-do-pac-cidades-historicas>. Acesso
em: 18 mai. 2016
6
Os arcos e as muralhas da encosta do Centro Histórico de Salvador serão recuperadas e requalificados
pelo PAC Cudades Históricas. Portal IPHAN Bahia, mar. 2014. Disponível em:
<http://iphanba.blogspot.com.br/2014/03/os-arcos-e-as-muralhas-da-encosta-do.html>. Acesso em: 18
mai. 2016
O projeto inicial, que ainda não era de reconhecimento dos artífices, previa a
reforma das fachadas e dos interiores, que pretendia “modernizar o espaço com uma
linguagem contemporânea e demoraria aproximadamente 12 meses para ser
concluído”(Portal IPHAN). O projeto de revitalização dos Arcos fornece o lugar ideal
nos planos do governo municipal para compor o campo artístico das pretensões turística
e higienistas da região do Centro Histórico de Salvador.

Uma visão modernista de cidade tende a incluir o ressurgimento estético de pontos


históricos ‘feios, sujos e maltratados’ como reminiscências ‘limpas, puras e distintas’ do
passado. A história se torna um rentável produto para consumo público nas cidades
modernas. A lógica implícita aí é que a apropriação desses espaços urbanos dá novos
significados higienizados ao passado, representando a cidade como mais saudável,
menos perigosa e mais gostosa para quem vive nela (LACARRIEU apud PERRY, 2012,
p. 182).

Perry afirma que, sobre o projeto de modernização envolve o abandono social


deliberado por parte do governo da cidade e a deterioração subsequente dos prédios
históricos, seguida pela remoção forçada de residentes durante e depois das renovações
(SANTOS, 1996 apud 2012, p.184). Os artífices que historicamente ocupam os Arcos
da Ladeira da Conceição da Praia tomaram conhecimento do projeto quando foram
notificados que teriam 72 horas para desocupar os Arcos. O poder público tenta
produzir uma requalificação não consultiva, que segrega e exclui a participação de
comunidades cujas vivências se dão nesses espaços, reproduzindo um modelo de cidade
que não dialoga com a comunidade que será afetada, aquela que gera potências e
constroem o seu patrimônio atrelado a sua vida.

Um choque viu! Eles queriam que em 72 horas a gente entregasse. Já pensou! Você
morando, trabalhando no lugar. E até porque, eu acredito assim, se ele mandar tirar a
gente daqui pra qualquer outro lugar, não tem como a gente ir, e nem nos acostumar
(Entrevista de Adalto Venancio, 2016).

Percebe-se que, historicamente as “requalificações” em ocupações negras


pertencentes ao Centro Histórico de Salvador, é seguida pela remoção forçada dos
residentes, durante e depois das renovações, que gentrificam e transformam a essência
desses lugares. Atualmente, os artífices se unem a outros grupos que foram e continuam
sendo afetados por práticas de gentrificação no Centro de Salvador. Os grupos negros
que resistem e lutam pelo direito a cidade e a seus territórios, questionam o desrespeito
aos valores culturais e sociais por parte de órgãos do governo estadual e municipal, que
traduzem um modelo de cidade cada vez mais hegemônico e higienista.

E a gente tá aqui, por que estamos lutando! Complicado, a gente passou um período
muito tenso com essa notificação, muito tenso. Sem contar que agora a gente já tem o
apoio do pessoal do 2 de Julho [bairro], do MSTB, que é o Movimento Sem Teto, que
está com a gente, tem a Gamboa, a Preguiça e tem a Chacra. Então, estamos nos
reunindo. Tem reunião e todo mundo está junto, a ideia de um, a ideia de outro
(Entrevista de Simony Venancio, 2016)

Os artífices dos arcos da Ladeira da Conceição da Praia, assim como outros


grupos que resistem no Centro Antigo e Histórico de Salvador, lutam pela sua
permanência em lugares onde culturalmente estão construídas as suas representações
identitárias e o seu sentimento de pertencimento. A compreensão das raízes da opressão
racial presente nas politicas de revitalização é também necessária para entender que o
processo de gentrificação em Salvador são pautadas pela cor, e que os planos para a
Cidade não comporta grupos cujas suas essências se dão nesses lugares. Para as
comunidades pertencentes ao centro essa realidade se transforma em símbolo de luta e
emancipação coletiva para os artífices e outras comunidades negras do Centro.

É muito complicado, aí o povo tem mania de dizer que a escravidão acabou, mas
escravidão não acabou não, e o racismo também não, por que chamar alguém de preto,
ou você isso e você aquilo, é racismo. Você vai preso. Agora pra que racismo pior do
que isso aqui? Me diga aí, racismo da parte deles (Entrevista Simony Venancio, 2016).

Considerações Finais

Ao longo deste trabalho, buscou-se observar a inserção dos artífices dos Arcos
da Ladeira da Conceição da Praia, na perspectiva de aprender o complexo universo das
relações entre tradição, cultura e identidade e sua relação com o lugar. Com base nas
entrevistas realizadas com estes artífices se tornou possível discutir e problematizar as
vivências cotidianas encetadas pela reprodução dos gestos e saberes do ofício que
perpetuam por décadas. Pode-se perceber nas narrativas destes ferreiros, serralheiros e
marmoristas que as memórias do lugar criam a relação de pertencimento e personifica
as suas identidades.
Além disso, a maioria dos projetos que visam a renovação urbana em uma
cidade amplamente turística e contemporânea, tem sido frequentemente desastrosos às
comunidades negras e pobres que ocupam e resistem nesses territórios. A transitoriedade
da composição urbana, as forças sociais classificatórias e políticas que atuam e agem
conforme os interesses do mercado imobiliário, visam esses locais históricos cada vez
mais higienizados, e utilizando-se, apenas, das representações negras de forma
adjetivada e acessorial.
Enquanto as ações do IPHAN, IPAC, Governo Estadual e a Prefeitura de
Salvador não basearem suas ações politicas majoritariamente no fortalecimento das
comunidades pertencentes ao Centro Histórico e Antigo de Salvador, a falha com a
acentralidade do lugar e as diversas dimensões culturais será algo recorrente. A ausência
do IPHAN e IPAC nas suas políticas de preservação, reconhecimento, manutenção e
proteção de patrimônios culturais (matérias, imateriais e afetivos) e a falta de diálogo
com as comunidades que vivem e ressignificam esses lugares, demonstram uma
deficiência da atuação política desses órgãos, principalmente quando se trata de cidades
que estão nas vitrines do mercado imobiliário e do turismo. Portanto, a essência, os
significados e as posses desses patrimônios ficam a mercê desses mercados, que de
forma mais feroz, não levam em consideração a população e a cultura que está atrelada
a esses lugares.
O ativismo das comunidades negras, no que tange os artífices da Ladeira da
Conceição da Praia, representa a resistência política e cultural da comunidade frente a
uma cidade que estratifica social, racial e espacialmente as pessoas. A perseverança dos
artífices é algo vivo e ancestral, demonstradas no trabalho cotidiano e tradicional, nos
afetos com o lugar e nas memórias com relação à cidade e os arcos, sentimentos que
tornam os Arcos da Ladeira da Conceição da Praia não só parte, mas a história e a vida
desses artífices.

Referências
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Aberta primeira licitação do PAC Cidades Históricas. Portal Brasil, jan.2014.
Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/cultura/2014/01/aberta-primeira-licitacao-do-
pac-cidades-historicas>. Acesso em: 18 mai. 2016
Os arcos e as muralhas da encosta do Centro Histórico de Salvador serão recuperadas e
requalificados pelo PAC Cudades Históricas. Portal IPHAN Bahia, mar. 2014.
Disponível em: <http://iphanba.blogspot.com.br/2014/03/os-arcos-e-as-muralhas-da-
encosta-do.html>. Acesso em: 18 mai. 2016

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