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O cineasta sertanejo Josafá Duarte: narrativas de vida e obra no contexto contemporâneo

O CINEASTA SERTANEJO JOSAFÁ DUARTE:


NARRATIVAS DE VIDA E OBRA NO CONTEXTO
CONTEMPORÂNEO

Paulo Passos de Oliveira


Universidade Federal de Goiás

Raimundo Martins
Universidade Federal de Goiás

resumo Este artigo apresenta narrativas de vida e trabalho do produtor, ro-


teirista e cineasta Josafá Ferreira Duarte, morador do distrito de Sal-
gado dos Mendes, município de Forquilha, zona norte do Estado do
Ceará. Analisa o seu contexto de produção, traçando vínculos com a
pós-modernidade, a partir de rupturas de paradigmas que envolvem
as viradas “cultural”, “pictórica” e “linguística”. Para este artigo fo-
ram realizadas duas entrevistas: a primeira, presencial, em agosto de
2013; a segunda, por telefone, em maio de 2016. Tomamos como refe-
rência quatro filmes realizados pelo cineasta e o blog no qual ele di-
vulga seu trabalho. Partindo das entrevistas e dialogando com vários
autores, refletimos acerca das narrativas de vida e obra de Josafá,
colocando em perspectiva questões da contemporaneidade. Despro-
vido de recursos financeiros e instrumentais, sem formação técnica
e teórica em cinema e distante dos grandes centros produtores de
audiovisual, o trabalho de Josafá mostra a proliferação de signos e
mudanças nos regimes de visualidade que, proporcionadas pela cul-
tura e pelas novas tecnologias, alcançaram o sertão de Salgado dos
Mendes, possibilitando o desenvolvimento do cinema popular.
Palavras-chave: Josafá Duarte. Pós-modernidade. Virada cultural. Vi-
rada pictórica. Virada linguística.

abstract THE FILMMAKER SERTANEJO JOSAFÁ DUARTE:


NARRATIVES OF LIFE AND WORK IN THE
CONTEMPORARY CONTEXT
This article presents narratives of life and work of the producer,
writer and filmmaker Josafá Ferreira Duarte, resident of Salgado dos
Mendes, district of Forquilha, a little town on the northern part of
the Ceará state. It analyses his production context tracing links with

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postmodernism based on paradigms breaks involving the “cultural”,


the “pictorial” and “language” turns. For this article two interviews
were carried out: the first, personally, took place in August of 2013;
the second, by telephone, in May 2016. We took as references four
films made by the filmmaker and the blog in which he reveals his
work. Using the interviews and dialoguing with several authors, we
reflect on the narratives context of life and work of Josafá, putting in
perspective contemporary issues. Devoid of financial and instrumen-
tal resources, without technical and theoretical training in cinema,
and distant from the large audiovisual production centers, Josafá’s
work shows the proliferation of signs and changes in the regimes of
visualities that, provided by culture and new technologies, reached
the backlands of Salgado dos Mendes, making possible the develop-
ment of popular cinema.
Keywords: Josafá Duarte. Postmodernism. Cultural turn. Pictorial
turn. Language turn.

resumen EL CINEASTA CAMPONES JOSAFÁ DUARTE: NARRATIVAS


DE VIDA Y OBRA EN EL CONTEXTO CONTEMPORÁNEO
Este artículo presenta narrativas de vida y obra del productor, escri-
tor y director de cine Josafá Ferreira Duarte, que habita la localidad
de Salgado dos Mendes, provincia de Forquilha, en la parte norte del
estado de Ceará. Analiza su contexto de producción trazando víncu-
los con la posmodernidad a partir de cambios de paradigmas envol-
viendo los giros “cultural”, “pictórico” y “lingüístico”.
​​ Para este artí-
culo se realizaron dos entrevistas: la primera, presencial, en agosto
de 2013; la segunda, por teléfono, en mayo de 2016. Hemos tomado
como referencias cuatro películas realizadas por el cineasta y el blog
que divulga su trabajo. Utilizando las entrevistas y dialogando con
varios autores, reflexionamos acerca de las narrativas de vida y obra
de Josafá, colocando en perspectiva cuestiones contemporáneos.
Desproveído de recursos financieros e instrumentales, sin formación
técnica y teórica en el cine y distante de los principales centros de
producción audiovisual, el trabajo de Josafá muestra la proliferación
de signos y los cambios en los regímenes de visualidades que, pro-
porcionados por la cultura y las nuevas tecnologías, llegaron al in-
terior de Salgado dos Mendes, posibilitando el desarrollo del cine
popular.
Palabras clave: Josafá Duarte. Posmodernidad. Giro cultural. Giro pic-
tórico. Giro lingüístico.

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O cineasta sertanejo Josafá Duarte: narrativas de vida e obra no contexto contemporâneo

Josafá Duarte: uma biografia em anônima, como cidadãos que, desconhecendo


as adversidades, atuam em seus próprios con-
construção... textos, construindo suas próprias narrativas, en-
tre tessituras, diálogos e negociações sempre di-
Josafá Ferreira Duarte é morador do distrito de
nâmicas, entrecortadas por dificuldades e con-
Salgado dos Mendes, onde vivem cerca de 500 flitos, sonhos e paixões. (MARTINS, 2013, p. 13)
pessoas, localidade do município de Forquilha,
zona norte do Estado do Ceará. Ele pertence Afonso Brazza ganhava a vida como bombei-
a um grupo de realizadores de cinema oriun- ro militar. Simião Martiniano era camelô. Josafá
dos de regiões que não possuem os aparelhos vive como agricultor. Pelas razões apresenta-
culturais legitimados socialmente: galerias de das, a história de Josafá merece ser contada.
arte, bibliotecas, museus e salas de cinema. Aos 56 anos, Josafá Duarte finalizou 23 fil-
O sujeito deste artigo não recebeu educação mes de ficção entre curtas, médias e longas-
formal e institucionalizada no campo audiovi- metragens. Seu processo de realização cine-
sual, ou mesmo em outras artes ou em cultura matográfica começou em 2006. As produções
visual. Entretanto, ao contrário do que supõe deste fazedor de filmes possuem uma particu-
o determinismo social fatalista – e perigoso –, laridade: a motivação política.
ele ingressou, no ano de 2012, em um curso O cineasta de Salgado dos Mendes define-
superior de Pedagogia realizado em módulos, se como alguém que gosta da terra. É filiado ao
que concluiu em julho de 2016. Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Forqui-
O grupo de fazedores de filme cresce em lha e já atuou no Movimento dos Trabalhadores
todo o Brasil: Manoel Loreno (Mantenópolis – Rurais sem Terra (MST). Foi através deste grupo
ES), Martins Muniz, Hugo Caiapônia (ambos de que Josafá participou de ocupações de latifún-
Goiânia – GO), e José de Oliveira, mais conheci- dios improdutivos em Pentecoste, na região
do como Zé Pintor (São Carlos – SP) são apenas do Médio Curu, a 89 km da capital Fortaleza,
quatro exemplos dentre vários outros. Estes no Ceará, entre o final do século XX e início do
cineastas foram antecedidos por Afonso Bra- XXI. Josafá relata que foi informado por funcio-
zza (Gama – DF – 1955-2003), Simião Martinia- nários do Instituto Nacional de Colonização e
no (Recife – PE – 1932-2015) e, provavelmente, Reforma Agrária (Incra) que estava ameaçado
vários que não chegaram a ter minimamente a de morte por fazendeiros da região. Depois de
notoriedade dos cineastas aqui citados. A as- cinco anos vinculado a movimentos sociais e,
sociação entre eles não se circunscreve a aca- em especial, ao MST, decidiu que era hora de
demias, sindicatos ou agremiações, mas per- parar. O grupo já havia conseguido assentar
tence a uma costura simbólica realizada pelo 40 famílias na fazenda Lagoa Grande, em Pen-
fazer cinematográfico cotidiano. tecoste. Nesse período, ficou sob proteção da
O ambiente deste artigo: Polícia Federal por 10 dias. Foi quando decidiu
retornar a Forquilha, distrito de Salgado dos
[...] reporta-se ao trabalho de cidadãos comuns
Mendes. Era o ano de 2002.
que, movidos a paixão pelo cinema, dedicam
seus esforços para assegurar, não só para si, Pronto: agora vou tentar me aquietar. Aí, a pri-
como também para suas comunidades, [...] a meira coisa que eu fiz foi criar um jornal. O jor-
aventura de contar suas próprias histórias, ain- nal Sociedade Salgadense. Vou começar, então,
da que em condições precárias, e à revelia dos a denunciar o que eu tava vendo de errado,
sempre onerosos orçamentos das produções ci- né?! Um jornal independente. Aí eu comecei a
nematográficas disponíveis no mercado do en- fazer o cinema, que eu vi que era algo que po-
tretenimento. [...] Tomam parte, sim, da corveia dia atingir mais e ir mais longe. Eu pensei que ia

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me aposentar dessa vida de militância, né, mas e o uso das diferentes tecnologias necessárias
não: eu vi que tinha outro capítulo da história para a execução de trabalhos audiovisuais são,
da minha vida que era esse, lutar pela minha
ainda hoje, uma provação para Josafá. Para
própria comunidade. (OLIVEIRA, 2013)
vencer os desafios, o produtor se cerca de jo-
Servido de uma câmera emprestada, o vens que possuem expertise técnica suficiente
agricultor tornava-se cineasta. A necessidade para manipular câmeras e computadores.
de fazer era superior ao saber fazer. Intuiti- Atualmente, o diretor forquilhense realiza
vamente, ele supunha que o cinema teria um entre três e quatro produções por ano. Os fil-
alcance maior em uma sociedade com baixo mes costumam ser lançados de forma festiva
grau de escolaridade formal, portanto, ver um em algum espaço público na comunidade, que
filme causaria maior efeito do que ler uma no- pode ser a parede de uma igreja ou a única
tícia. Assim nasceu o primeiro filme de Josafá quadra poliesportiva do distrito. Depois, são
Ferreira Duarte: “A história de um galo assado” feitas cópias vendidas a preço quase de custo.
(DUARTE, 2006). Entretanto, com a possibilidade de fabricação
A própria comunidade torna-se responsá- de cópias a partir de DVDs, as produções do
vel pela criação do processo cinematográfico. cineasta de Salgado dos Mendes acabam sen-
Envolve-se na produção, maquiagem, costura do multiplicadas e vendidas por camelôs. Mas
figurinos, prepara e serve o lanche, atua, junta não são negociadas apenas por vendedores
elementos materiais para compor a arte e os informais de Forquilha. Os filmes de Josafá,
cenários, labuta na parte técnica. Assim surgiu atualmente, podem ser encontrados em ban-
o coletivo Cinecordel, nome que homenageia cas de Sobral, na capital Fortaleza, e em vários
a literatura popular presente no interior de estados da Federação, como Tocantins, Mara-
algumas partes do Nordeste do Brasil. O ci- nhão, Piauí e Pernambuco, somente para citar
neasta Josafá homenageava também seu pai, alguns. O filho do produtor de cinema, que é
cordelista. Assim se fortalecem laços sociais caminhoneiro, encontrou um DVD de um filme
dentro de um grupo. de Josafá disponível para venda em uma banca
de jornal de Pernambuco. Ele se sente incomo-
O grupo é da própria comunidade. É tudo de
dado com a pirataria?
agricultores, analfabetos de pai e mãe, pode se
dizer assim, né?! Pessoas que não sabem nem Eu fico assim feliz em saber que em outro Es-
escrever o nome, botam é o dedo. Mas eu me tado bem distante aqui da minha comunidade
senti à vontade porque é o meu povo, é a minha as pessoas estão assistindo e estão copiando.
gente, né?! Então, eu sou também trabalhador Né?! Isso é maravilhoso. Isso incentiva eu a
braçal e estava também na minha comunida- continuar fazendo as minhas produçõezinhas
de e eu me sentia à vontade. Então, eu dizia: caseiras, né, com o objetivo de formar [...] cida-
vamos fazer o filme, vamos filmar que história? dões (sic.) mas mais conscientes em termos da
Pronto... (OLIVEIRA, 2013) politicagem, da política... (OLIVEIRA, 2013)

Com o passar do tempo, depois de cinco fil- Além disso, a multiplicação das cópias per-
mes, Josafá foi aprendendo de tudo um pouco: mite a interiorização de elementos culturais da
manusear câmeras, usar um computador que região. As produções do cineasta de Salgado
lhe foi presenteado, e fez alguns cursos ligados dos Mendes, majoritariamente balizadas pelo
ao universo audiovisual na sede de Forquilha gênero comédia, têm histórias inspiradas em
e em Sobral, município vizinho e cidade polo personagens e situações típicas do cotidiano
da região. Mas a apropriação das ferramentas daquela comunidade.

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Óia, meus filmes sempre têm mostrado a cultu- dade inata” de realização de filmes do povo
ra: do trabalhador rural, do homem que traba- forquilhense. Josafá conquistou o prêmio de
lha na roça, da mulher que faz chapéu, do rei-
Melhor Diretor pelo curta-metragem “Cadê
sado, do cantador, entendeu, do caba que com-
pra e não paga, né, do caba que é traído pela
meu zóculos” (DUARTE, 2015), que também re-
mulher, entendeu, os apelidos, essas coisas da cebeu os prêmios de Melhor Ator, concedido
minha terra. Então, a minha história está ligada a José Gustavo, interpretando o prefeito Pedro
à história deles. (OLIVEIRA, 2013) Sola, e de Melhor Atriz, para Marliza Duarte, vi-
vendo Rosa do João de Sousa.
A obra de Josafá Duarte ganha capilarida-
O poder público foi obrigado a reconhecer
de, visibilidade e borrifa informações da cultu-
o trabalho desempenhado pelo agricultor de
ra de Forquilha, especialmente de Salgado dos
Mendes, em direção ao Brasil. Enquanto isso, Salgado dos Mendes, e procurou obter visibi-
o próprio fazedor de filmes investe na forma- lidade com ele. Mas Josafá conseguiu contra-
ção de crianças de sua comunidade, visando à partidas. Agora, além de produtor e realizador,
continuidade da sua atividade e à formação de à frente do coletivo Cinecordel, e com o apoio
público, oferecendo oficinas e exibindo seus da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará,
filmes. ele comanda um cineclube que exibe filmes
Josafá Duarte precedeu e estimulou o apa- em localidades do interior de Forquilha.
recimento de outros criadores do cinema for- “Cadê meu zóculos” (DUARTE, 2015) repre-
quilhense como Ronaldo Roger, Paulo Talentos sentou outros voos para o cinema forquilhen-
e Aureliano Shekinah. Essa repercussão e di- se. O equipamento, emprestado pelo cineas-
vulgação levaram os cineastas de Forquilha, ta Rosemberg Cariry (Corisco & Dadá, 1996),
liderados por Josafá, a concederem entrevista permitiu melhor acabamento e finalização ao
para uma equipe de jornalismo da TV Cidade – filme de Josafá. O curta foi agraciado com o
afiliada da Record no Ceará – no ano de 2013. prêmio do júri popular do V Festival Brasileiro
O grupo de amigos realizou um festival au- do Cinema Digital, em Jijoca de Jericoacoara,
tônomo de cinema no ano de 2014: I Festival de no Ceará, o primeiro prêmio de porte nacional
Cinema de Forquilha, no período de 14 a 16 de para um filme realizado em Forquilha. Este fil-
fevereiro. Nessa edição, o precursor do cinema me ganhou novas imagens, virou longa-metra-
no município foi agraciado com os troféus de gem e foi exibido pela primeira vez, em 2016,
Melhor Filme e Melhor Diretor. Dos represen- na televisão aberta – TV Diário, canal do gru-
tantes do poder público, compareceu o secre- po Diário do Nordeste, disponível no Ceará.
tário de Cultura, que apoiou o evento. Além desta produção, a mesma emissora levou
O poder público municipal levou quase ao ar “O homem que queria enganar a mor-
uma década para reconhecer o trabalho do co- te” (DUARTE, 2014), em um programa chamado
letivo Cinecordel. Com o sucesso da primeira Diário do Cinema.
edição do festival, o prefeito de Forquilha, se- Atualmente, parte do trabalho de Josafá
cretários, deputado federal e estaduais com- pode ser vista no blog Forquilha Cinecordel,
pareceram à festa de premiação na segunda bem como no YouTube. Sobre o YouTube, cabe
edição do festival, em 2015, transformando a narrar uma curiosidade. Em entrevista feita no
festa em palanque, em que o whisky era servi- mês de maio de 2016, por telefone, a esposa de
do exclusivamente para autoridades políticas Josafá, Noélia Duarte, interrompeu nossa con-
e para os irmãos da maçonaria. Nessa noite, versa para informar que o canal via internet pa-
em vários discursos, foi destacada a “capaci- gou a Josafá 100 dólares convertidos em reais

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depois que “Por debaixo dos panos” (DUARTE, blico a possibilidade de conjugar ‘percepção
2010) – que os camelôs do Ceará rebatizaram crítica’ e ‘prazer estético’, contrariando os câ-
com o título “Zé das Cachorras” – atingiu mais nones de uma prática erudita e desmistifican-
de 100 mil visualizações. Josafá não havia lem- do o rito da contemplação como uma fruição
brado de contar a novidade (OLIVEIRA, 2016a). individualizada”.
O YouTube se tornou, então, uma fonte for- Dobers e Strannegard, referenciados por
te de divulgação do trabalho dos cineastas Martins (2015), nos dizem que o prazer estético
populares. Agora, em 2016, este canal assume proporcionado pelo mundo icônico na contem-
um importante papel de exposição de novos poraneidade permite a introdução por parte
trabalhos de Josafá. Ainda durante a conversa da estética de significados nos objetos trans-
por telefone, sem adiantar maiores detalhes, o formando-os em conceitos que mobilizam os
cineasta de Salgado dos Mendes informou que estilos de vida e criam disposições corporais.
havia idealizado e começara a gravar uma sé- É possível afirmar que, intuitivamente, o ci-
rie específica com cinco episódios para o You- neasta forquilhense – bem como outros faze-
Tube (OLIVEIRA, 2016a). dores de cinema – tenha encontrado no cine-
Em entrevista concedida por Josafá em ma as qualidades de fruição que considerava
2013, que não está publicada, há uma passa- necessárias para a transmissão de suas ideias.
gem emblemática: “Eu quero que Forquilha Para além do jornal Sociedade Salgadense, que
se transforme num polo de cinema. Eu quero continua sendo publicado, o cinema oferece
transformar na capital do cinema popular na- condições para o espectador ver casos cria-
cional. Então, hoje eu já tenho esse desafio” dos em locais que ele reconhece e situações
(OLIVEIRA, 2013). Atualmente, em folhetos de com as quais está familiarizado. O morador de
propaganda da Prefeitura Municipal de Forqui- Salgado dos Mendes, de Forquilha, e do inte-
lha, pode ser lido: “Forquilha, capital nordesti- rior do Ceará, reconhece-se nas paisagens, nos
na do Cinema Popular”. sotaques, na arquitetura, nos adereços, bem
como nos costumes e práticas revelados em
Josafá Duarte: a pós- tom farsesco e tingidos pela comédia, aproxi-
modernidade e o contexto das mando a sua realidade daquela apresentada
nos filmes. Para aqueles que veem os filmes
viradas cultural, pictórica e
de Josafá e não participam do universo criado
linguística pelas tramas, o envolvimento com a história
O trabalho como fazedor de cinema efetiva- é possível devido ao reconhecimento de uma
do por Josafá Duarte localiza-se entre o final linguagem cinematográfica convencional, pelo
do século XX e início do XXI. O barateamento que é típico, e pela graça quase circense.
do custo do equipamento básico de gravação O universo do cineasta de Forquilha está
e edição de vídeos – vídeocâmaras, computa- imerso nos seus filmes. Este universo diz res-
dores com programas de edição de imagens peito ao fenômeno da cultura, que deve ser
– permitiu que interessados na produção au- compreendida dentro de sua dinamicidade e
diovisual pudessem contar suas histórias in- plasticidade.
dependentemente do conhecimento formal do Raimundo Martins (2015, p. 20) explica que
processo de realização de filmes. Para Raimun- “a pluralização da palavra ‘cultura’ intensificou
do Martins (2015, p. 19), “a criação e dissemina- a dimensão social dessas transformações que
ção da imagem em movimento oferece ao pú- passaram a ser conhecidas como um fenôme-

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no”, e cita Peter Burke para definir o contexto cultura não pode ser entendida – como pre-
do que é definido como “virada cultural” (cul- tendia o marxismo ortodoxo – nos termos de
tural turn): um efeito ideológico supraestrutural (LUNA,
2010).
[...] uma ‘virada cultural’ mais ampla em termos
de ciência política, geografia, economia, psico- A epistemologia e as análises do campo
logia, antropologia e ‘estudos culturais’. Hou- das manifestações visuais passam a ser relati-
ve um deslocamento nessas disciplinas, pelo vizadas e colocadas em contextos específicos,
menos entre uma minoria de acadêmicos, que considerando contingências sociais, políticas e
passaram da suposição de uma realidade imu- econômicas. Esta virada permitiu o surgimen-
tável (a teoria da escolha racional em eleições
to do próprio termo “cultura visual”, que que-
ou em atos de consumo, por exemplo) para um
bra a dicotomia razão/emoção. Neste sentido,
interesse nos valores defendidos por grupos
particulares em locais e períodos específicos.
o local e as contingências permitem especial
(BURKE apud MARTINS, 2015, p. 8) configuração nas produções dos sujeitos, im-
bricando imagem/vida, rompendo com o dis-
Pensar a cultura, aqui, é considerar a ação curso autônomo da obra de arte.
dos sujeitos de uma dada sociedade, bem A experiência que o sujeito contemporâneo
como suscitar uma reflexão sobre aqueles que estabelece com a imagem o leva a refletir sobre
pensam o fenômeno da cultura. O sujeito pas- o mundo fragmentado. O devir sujeito permite
sa a ser produzido no devir de uma cultura que pensar o mundo como devir mundo, portanto,
passa a ser afetada por inúmeras conjunções. mundo em constante construção. Isso tornou-
Dessa forma, em certa medida, os sujeitos pas- se possível graças a outra importante virada: a
sam a ser vistos como produtos da cultura. No “virada pictórica” (pictorial turn).
âmbito da cultura visual, esta virada explici- Segundo Imanol Aguirre, Walter Benjamim
ta que a arte é mais do que um inventário de antecipou a ideia de que a “virada pictórica”
obras e “gênios criadores”. A proliferação de compõe a maneira de relação estabelecida en-
imagens possibilitou a construção e a revisão tre o político e o estético:
da ideologia e da identidade dos sujeitos con-
Ao estabelecer uma relação entre a multipli-
temporâneos.
cação das imagens e suas consequências na
O termo cultura, segundo Raymond Williams
vida pública, Benjamim chamou a atenção so-
(1965), descreve um modo de vida integral por bre outro dos fenômenos em que claramente
onde se expressam certos significados e valo- se concentraram os estudos de cultura visual e
res presentes no conjunto de instituições da seu correlato educativo: os efeitos que este re-
vida social. A cultura não é imanente nem está gime de visualidade tem na estetização da vida.
(AGUIRRE, 2011, p. 79)
limitada às esferas autônomas da arte ou da
educação, mas possui uma existência material Dessa forma, pode-se afirmar que o cinema
cujas formas devem ser reinventadas por to- nasce político. A relação entre cinema e políti-
dos aqueles grupos excluídos tradicionalmen- ca pode ser compreendida sob muitos aspec-
te das instituições culturais – por classe, gêne- tos, mas aqui esta aproximação pode ser feita
ro, raça ou orientação sexual – comprometidos como aquela em que os enunciadores – polí-
com a tarefa de imaginar as formas de partici- ticos e cineastas – falam às massas em uma
pação adequadas para sustentar uma cultura perspectiva que envolve poder, linguagem, cri-
comum e redistribuir o valor cultural. Esta luta ticidade e ética. Josafá age politicamente ao
fica redefinida como luta cultural e, assim, a tratar de política. Portanto, seria exagerado

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afirmar que o cinema feito por Josafá é meta- volvimento tecnológico dos meios de comuni-
político? cação de massa audiovisuais, como o próprio
Josafá Duarte faz cinema em consonância cinema, o rádio, a televisão e, mais recente-
com as condições e possibilidades do momen- mente, as mídias digitais. Esses dispositivos
to histórico em que vive. Realiza narrativas fí- que vêm sendo desenvolvidos a partir da se-
lmicas com base naquilo que lhe foi dado ver. gunda metade do século XIX tornaram o mun-
O cineasta forquilhense está inserido em um do mais próximo.
momento denominado por William Mitchell A cultura pós-moderna sobrevive na necessi-
(2005) como virada pictórica, período em que dade da imagem e no desejo em função do objeto.
as artes invadem a vida cotidiana, há a ruptura A imagem, ao contrário da linguagem – estrutu-
aurática das obras de arte – como preconiza- rada por regras sistemáticas –, fundamenta-se na
do por Benjamin, em seu artigo referência: “A memória perceptual inconsciente. Portanto, esta
obra de arte na época da sua reprodutibilidade característica pós-moderna é também uma carac-
técnica” (BENJAMIN, 1990) – e uma proliferação terística da sociedade de consumo.
incessante de signos através de tecnologias Em entrevista realizada em 2013, Josafá ti-
de informação e comunicação. Estas caracte- tubeia quando questionado sobre os filmes
rísticas fazem parte do regime de visualidades que o inspiraram.
da contemporaneidade que vários autores no-
[...] tem uns filmes que eu gosto, uns seriado
meiam pós-modernidade. que eu assisti quando era pequeno, que era
Efland, Freedman e Sthur (2003) esclarecem menino quando assistia, mas me inspirar num
que o conceito de pós-modernidade evolui na filme, em si, eu acho que eu desconheço. [...]
mesma velocidade que outros conceitos rela- Mas dos filmes que eu adoro, assisti aquele, é...
tivamente modernos. Uma explicação possível “Casablanca” [Michael Curtiz, 1945]! Foi um clás-
sico que eu assisti mais de 50 vezes e eu gosto
encontra-se no fato de que ainda não há um
de assistir pela história, pela qualidade do fil-
afastamento histórico de nossa experiência me, pela fotografia, né, e eu também gosto, as-
contemporânea, de tal forma que as cisões e sim, de filme de guerra... É, é um filme em preto
mudanças na contemporaniedade criam um e branco que eu assisti mais de 50 vezes mas eu
conceito fluido, no sentido que nos é apresen- gosto, eu gostei da história, muito bonito o fil-
tado por Bauman (2000). Para Jameson (1996), me, né?! [...] Eu gosto muito de comédia, né?! Eu
gosto do filme “O auto da Compadecida” [Guel
o momento pós-moderno teria começado na
Arraes, 1999], né?! (OLIVEIRA, 2013)
segunda metade do século XX, com a radica-
lização da expressão monetária que remete a A promessa política da arte está em sua de-
trocas flutuantes e modulações cifradas e ima- sagregação, na oposição entre o “sensorium”
teriais. da arte e a “estetização da vida cotidiana”. A
É possível designar o ambiente e os fenô- política estética autonomista considera que
menos sociológicos que tornam possíveis a “a grande arte” testemunha o irrepresentável,
troca artística. Nesse sentido, trata-se de um o lugar do “outro” que conduz ao que Aguirre
ceticismo tocante às concepções modernas de (2011) chama de formas de estetização mer-
progresso, de hierarquização do conhecimen- cantil da vida.
to e da objetividade em um mundo fragmenta- Olhar a “estetização da vida cotidiana”, e,
do e plural. mais além, a “estetização da cultura”, permite
A experiência subjetiva do homem da mo- compreender o novo regime das visualidades
dernidade foi se intensificando com o desen- e da sensibilidade adotado na pós-moderni-

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dade. No texto de Aguirre (2011), a estetização (1985), apropriando-se de conceitos


da vida cotidiana aparece em alguns momen- marxianos,1 o aumento do valor de tro-
tos como um termo dado. Michael Feathersto- ca não apenas suprime o valor de uso
ne, no livro “Cultura de consumo e pós-moder- como permitiu à mercadoria um va-
nismo” (1995), discute em capítulo específico a lor secundário, que Baudrillard (1995)
estetização da vida cotidiana na modernidade nomeia “valor-signo”. A manipulação
e na pós-modernidade. O tema também é dis- comercial das imagens, mediada pela
cutido por Jameson (1996), Baudrillard (1991), publicidade, no ambiente midiático,
Kroker e Cook (1987) e Crary (1984), entre ou- determina a reativação dos desejos por
tros autores. meio das imagens. Atualmente, este
Featherstone (1995) afirma que é possível terceiro aspecto é fundamental para
pensar a estetização da vida cotidiana em três compreendermos a imagem inserida no
sentidos: ambiente da cultura.
1. Durante o período da modernidade, A discussão foi intensificada com argumen-
nas subculturas que promoveram os tos a favor ou contra a integração entre arte e
movimentos dadaísta, surrealista e da vida cotidiana. Ao tratarmos especificamente
vanguarda histórica na I Guerra Mun- da cultura visual, vamos além dessa discus-
dial e na década de 20 do século pas- são, no sentido de que não nos interessam as
sado, procurando apagar as fronteiras formas de arte per se, mas os objetos da vi-
entre arte e vida cotidiana. Desde a dé- sualidade que transcendem as artes visuais.
cada de 60, a arte pós-moderna, com A estetização da vida cotidiana transcende a
sua reação contra a institucionalização transformação da vida em obra de arte, mas
do modernismo, apoia-se nessa estra- encara a vida como regime estético.
tégia. É no seio das transformações da imagem
2. A estetização da vida cotidiana pode contemporânea que pode ser pensada esta es-
designar o projeto de transformar a vida tetização da vida cotidiana. Graças à prolifera-
em obra de arte. Tal projeto teria come- ção de imagens, e da possibilidade de criá-las,
çado no grupo Bloomsbury, na virada Josafá produz seu cinema. Neste processo de
do século XX, e foi compartilhado por posse de tecnologias de gravação de imagens
Oscar Wilde, no final do século XIX. Ror- e de seu tratamento, bem como de apropria-
ty (apud SHUSTERMAN, 1988) procura ção da narrativa cinematográfica, Josafá inven-
alargar novos gostos, sensações e pos- ta o cinema em Salgado dos Mendes.
sibilidades. Foucault (1984) menciona A produção cinematográfica de Josafá Duar-
Baudelaire, que aprova o “dândi” que te está articulada ao que Aguirre define como
faz de seu corpo, sentimentos e sensa- outra importante virada que permite analisar
ções, uma obra de arte, posteriormente o contexto da imagem contemporânea: a vira-
revelado no que autores chamam “esti- da linguística (language turn) (AGUIRRE, 2011,
lo de vida”. Uma vida que se constrói no p. 80).
prazer estético, associada ao consumo 1 Marxiano refere-se aos estudos feitos diretamente
de massa e à eleição de formas de viver. dos textos de Karl Marx, sobremaneira “O Capital”,
para compreender as conjunturas do capitalismo. Di-
3. Estetização da vida cotidiana designa fere-se de marxismo, que reúne todos os movimentos
o fluxo de signos e imagens que satu- de natureza social, política, cultural etc., de Marx e de
outros autores que construíram suas teorias a partir
ram a vida pós-moderna. Para Adorno de leituras dele.

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Paulo Passos de Oliveira; Raimundo Martins

Para entender a virada linguística, é inte- Conclusão


ressante definir e localizar o que se compreen-
Oriundo de um interior do Brasil distante dos
de como linguagem cinematográfica:
grandes centros, Josafá Duarte é alguém que
A linguagem no cinema não é formalizada. ‘É se relaciona com as imagens de sua época a
claro que o cinema não é uma linguagem, mas
partir das condições sociais em que vive. Este
gera seus significados por meio de sistemas (ci-
processo se constitui em dupla instância. Em
nematografia, edição de som e assim por dian-
te) que funcionam como linguagens’ (TURNER, primeira via, Josafá teve acesso a imagens ci-
1997). O cinema pode ser compreendido em pri- nematográficas a partir da TV e das poucas ve-
meira instância como comunicação; um segun- zes que foi ao cinema. Posteriormente, apare-
do passo necessário é colocar este processo de lhos de reprodução (videocassetes e reprodu-
comunicação dentro de um sistema maior gera-
tores de DVD) permitiram o ato de ver filmes.
dor de significados: a própria cultura.
Ver imagens cinematográficas é fundamental
Os teóricos dos estudos culturais, fazendo es- para se relacionar com elas, para desenvolver
pecial referência à semiótica, ‘argumentam que afetos e, enfim, apropriar-se da linguagem ci-
a linguagem é o principal mecanismo pelo qual
nematográfica, quando é o caso. Em outra via,
a cultura produz e reproduz os significados so-
ciais’ (TURNER, 1997). Linguagem é aquela que o barateamento do custo e a disponibilidade
vai além da língua verbal ou escrita. Mais do de ferramentas de registro de imagens (e som)
que isso, a cultura traz consigo um conjunto de em movimento, sua posterior edição, e a re-
valores do mundo físico e social. produção em mídias e na Internet permitiram
[Em suma,] O cinema também possui um con- ao cineasta de Forquilha a realização e a difu-
junto de códigos e convenções edificados ao são de sua obra.
longo da história para que seja construído o A militância política na vida de Josafá es-
sentido por parte do espectador, através de um tendeu-se à militância no cinema. Esta forma
acordo tácito que denota e permite a conota-
de manifestação nasce em um novo contexto
ção do mundo. (OLIVEIRA, 2016b)2
de visualidade que possibilita o desenvolvi-
Aguirre (2011) nos lembra que as visualida- mento crítico a partir da experiência estética.
des não nos remetem apenas à percepção da Na pós-modernidade, o realizador de Salgado
linguagem, mas às suas formas de leitura. Nesta dos Mendes participa de um contexto cultural
perspectiva, o mundo aparece como sistema de em que a imagem ganha aptidão para viajar –
signos no qual há espaço para questões relativas insere-se na cultura em um contexto de troca
aos significados e às narrativas. Através da “lei- – e se torna um capital financeiro (como fica
tura das imagens” é possível tomar consciência evidente através da indústria cinematográfica
do poder da cultura visual e dos mecanismos de hegemônica dos Estados Unidos). Na era da
dominação postos em jogo. O cinema, enquanto cultura de massa, o espaço da alta cultura e da
arte narrativa, é portador de signos circunscri- cultura popular é relativizado pela apropria-
tos a um campo estético e ao cotidiano. ção promovida pelo mercado que, neste caso,
permite o conhecimento acerca da diversidade
2 O artigo “Josafá Duarte e o cinema autodidata” foi de formas de narrativas fílmicas.
apresentado no V Colóquio Internacional Educación y
Visualidad: investigaciones pedagógicas em contextos Mas é na difusão proporcionada por ima-
híper-visuales, realizado em Montevidéu (Uruguai),
gens viajantes e pelo mercado dominante que
promovido pelo Instituto Escuela Nacional de Bellas
Artes – Universidad de la República – Núcleo de Inves- surgem as fissuras, a resistência, o cinema po-
tigación en Cultura Visual, Educación y Construcción
lítico. É na apropriação e na ressignificação da
de Identidad, que ocorreu entre 09 e 11 de maio de
2016. linguagem inventada por Hollywood que o ci-

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O cineasta sertanejo Josafá Duarte: narrativas de vida e obra no contexto contemporâneo

nema de Josafá se estabelece com elementos As imagens transcendem as característi-


culturais locais. É a partir daí que seu cinema cas intrínsecas ao campo das artes, rompen-
se expande e se globaliza em mídias de DVD do com o interesse exclusivamente estético
pirata e em canais do YouTube. É na própria devotado a elas, apontando para outros cami-
arena da cultura em que a luta de Josafá se nhos, imbricados na direção da cultura. Agora,
estabelece na disputa por significados (MIR- a própria vida estetiza-se a partir das imagens.
ZOEFF, 2011). Neste sentido, problematizamos o ato de ver
Considerar este contexto permite-nos che- e de produzir visualidades. Não se trata exclu-
gar à conclusão de que alguém no interior de sivamente de subordinar as produções visuais
um país desigual como o Brasil, que vive longe – e o universo “visto” por Josafá – ao campo da
dos centros difusores, desprovido de uma rea- cultura, mas de compreender como estão ani-
lidade material abastada, sem equipamentos nhadas – em um sentido proposto por Mitchell
culturais legitimados pelos cânones oficiais – (2009) – as referências afetivas, linguísticas e
livrarias, bibliotecas, museus, galerias de arte, cinematográficas deste cineasta ao contexto
cinematecas – também está inserido no con- estudado pela cultura visual.
texto da virada cultural à qual Burke e Martins Em todo o contexto que relaciona a pro-
se referem (2015). dução de imagens e cultura, o mundo aparece
A virada cultural é indissociável da quebra como um texto a ser interpretado, compreen-
de outro importante paradigma da pós-mo- dido e difundido, em uma virada linguística. A
dernidade: a virada pictórica. Na concepção linguagem do cinema – esta mídia “ impura”,
de Mitchell (2005), a mudança nos regimes de para além da mídia visual – surge como algo
visualidade relaciona a proliferação de signos subjacente (MITCHELL, 2009). Assim, o cinema
visuais ao contexto da vida de seus produtores renasce como campo de possibilidade e de
e daqueles que os veem. luta política.

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O cineasta sertanejo Josafá Duarte: narrativas de vida e obra no contexto contemporâneo

Paulo Passos de Oliveira é Mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutorando
no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da Universidade Federal de Goiás. Grupo de Pesquisa Cultura
Visual e Educação (GPCVE) da Universidade Federal de Goiás. Telefone Celular: (62) 98149-9969. e-mail: paulopassos-
deoliveira@gmail.com

Raimundo Martins é Professor Titular na Faculdade de Artes Visuais (FAV) da Universidade Federal de Goiás. Coordena-
dor do Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual. Grupo de Pesquisa Cultura Visual e Educação (GPCVE) da
Universidade Federal de Goiás. Telefone Celular: (62) 99281-6030. e-mail: martins.raimar@gmail.com

Universidade Federal de Goiás (UFG). Campus Samambaia. Caixa Postal 131 – 74.001-970 – Goiânia (GO) – Brasil. Secre-
taria: Telefax (62) 3521-1440; –

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