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Rio de Janeiro
2017
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Faculdade de Letras
PÓS- GRADUAÇÃO STRICTU-SENSO / MESTRADO EM LETRAS
Por
Marco Antônio Fuly
Rio de Janeiro
2017
Aos dois grandes amores da minha vida:
Minha esposa Mª Angélica Vilaça Fuly e o nosso fruto, Pedro Vilaça Fuly.
O Espaço da Infância na Narrativa de José Luandino Vieira: Lembranças,
Questionamentos e Ruptura
BANCA EXAMINADORA
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2017
Agradecimentos
À professora Maria Teresa Salgado Guimarães da Silva por acreditar no meu potencial em
desenvolver um trabalho sério e comprometido no curso de Mestrado. Orientou-me com
dedicação e generosidade, pondo-se sempre disposta a ouvir e a fazer comentários precisos.
Espero continuar sob esta orientação no curso de Doutorado.
Ao professor Godofredo Oliveira Neto, pelas aulas brilhantes e trocas de ideias que me ajudaram
muito na composição deste trabalho.
Aos atendentes da Cátedra Jorge de Senna que sempre me trataram com carinho e presteza nas
incontáveis consultas que realizei naquele espaço.
RESUMEN
Introdução .......................................................................................................................... 3
3. O espaço da infância - Fronteira fluida entre o mundo real e o espaço ficcional ........ 36
acabou! .......................................................................................................................... 92
Sinopse
Introdução
raciais e outros estereótipos)” (Idem Op. Cit., p, 25). Com efeito, a tensão social
passou a ser um gargalo dentro daquele mundo cortado em dois (FANON, 2005), no
qual, a considerar o lado de quem se beneficiava daquele sistema, a “história que ele
escreve não é pois a história do país que ele despoja, mas a história da sua nação,
quando rouba, viola e esfomeia” (FANON, 2005: p. 68).
O mundo cortado em dois, que em razão disso nunca foi harmônico, começou a
tornar-se insustentável. Notoriamente, o desequilíbrio entre a insistência nos privilégios
para poucos e o martírio com a exploração de muitos, como previsto, colocou o colono
europeu e o colonizado africano em rota de colisão permanente. E a violência mais
explícita ocasionada por tamanho desajuste revelou-se, na sua deflagração, resposta e
justificativa ao mesmo tempo. Não gratuito, em toda a África colonizada, em
consequência das questões apontadas por Munanga e Fanon, observamos, a partir da
segunda metade do século XX, um levante decisivo por independência. A julgar o
empenho e as articulações dos movimentos político-revolucionários nos territórios que
padeciam com a dominação europeia, tal levante mostrou-se irreversível.
a pesquisa de Franco, bem como a dupla face da pedagogia colonial estudada por
Campos muito nos interessam, por trazerem, em comum com esta pesquisa, o
amadurecimento do discurso de crianças revelado através de personagens intimamente
ambientados no musseque angolano, o qual, como veremos, Luandino Vieira eleva à
condição de topônimo representativo do espaço da infância de onde foi capaz de
observar e criticar a realidade do mundo colonial, ao mesmo tempo em que revelou a
transformação do seu pensamento em relação ao projeto da utopia revolucionária.
A menção a todos estes os trabalhos neste espaço serve para mostrar o quanto a
obra luandina é rica, atraente e capaz de oferecer condições suficientes para o
desenvolvimento de pesquisas instigantes e de ampla necessidade para o conhecimento
da história e do povo de Angola, além de transbordar-se em temas que atendem a outros
interesses dentro e fora do âmbito acadêmico. José Luandino Vieira, sem dúvida,
colocou a literatura de seu país em diálogo com os cânones universais.
narrativas selecionadas, todas escritas entre os anos de 1954 e 1972 – período de notória
importância na história e na política de Angola –, não seguem a ordem de suas
publicações. Isto se deve às inúmeras dificuldades e contratempos encontrados por
Luandino Vieira na ocasião em que as escreveu; dentre elas, destacamos as motivações
políticas, as censuras, o cerceamento da liberdade do autor (primeiro em 1959 e depois
em 1961), as dificuldades financeiras, entre outros. Por sorte nossa, ou didatismo
intencional deste escritor, todas as obras vêm finalizadas com data de composição, o
que enriquece sobremaneira a proposta deste trabalho, tanto na otimização do tempo –
já que não haverá necessidade de comprovar a cronologia dos fatos –, como no teor das
assertivas, uma vez que seguiremos a linearidade dos eventos a que se referem. Para
efeito de justificativa e por ordem de escrita, A Cidade e a Infância data de 1954 a 1957
a sua composição, com a primeira publicação em 1960; Nosso Musseque foi escrito em
1961/1962, a primeira edição é de 2003 e Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto
&Eu foi escrito em 1972 e publicado em 1981. Contudo, o que nos interessa de
imediato, para a eficácia desta pesquisa, é enriquecer o tema proposto com as
informações sobre a época a qual elas se reportam. Interessante será também atentar
para a intenção estética nelas veiculada, bem como para o propósito da própria escrita.
Entendemos então que são muitos os desafios quando nos propomos a estudar a
obra de JVL. Trata-se de um escritor que se permite transitar, na sua narrativa, por
diversos assuntos referentes ao admirável mundo angolano. Este, diga-se de passagem,
possui características peculiares e mistérios que aguçam a curiosidade do leitor, além de
se imporem como desafio constante ao pesquisador. Neste sentido, para lograrmos bom
êxito na nossa intenção, lançaremos mão de alguns pressupostos teóricos que diversos
15
Cabe a observação de que foram listados apenas parte dos autores os quais
pretendemos nos apoiar e cujas obras serão tomadas aqui como pressupostos teóricos.
Temos alguns outros a acrescentar, mas, para otimizar esta primeira parte do texto,
optamos por apontá-los com mais detalhamento no próprio desenvolvimento deste
trabalho e listá-los nas referências bibliográficas. Neste momento, nos interessa mais
apresentar o tema que será desenvolvido nesta dissertação, seu corpus literário, alguma
parte do suporte teórico e como será a condução da nossa análise.
pioneira e impactante no seu processo inventivo, tanto pelo hibridismo linguístico como
pelo nível da estética conceitual, os quais nossas ferramentas de análise ocidentais
mostram-se dependentes de mais conhecimento a respeito do mundo africano (TRIGO,
1984). No entanto, a despeito de todos os desafios que se apresentam face às
complexidades as quais a obra luandina nos conduz, entendemos que esta pesquisa – na
verdade, mais uma a enriquecer e prestigiar a genialidade artística de José Luandino
Vieira – se fará consistente e contributiva para outros estudos sobre este surpreendente
escritor. A intenção é chegarmos, enfim, ao final deste trabalho, procurando comprovar
que, de algum modo, já estava claro para esse militante escritor a evidência de um
cenário em que os acirramentos políticos se expandiriam para além da discordância de
ideias e chegariam à eminência de um confronto civil. Fatos estes que pareciam
demonstrar o quão frágil era o projeto de nação idealizado por aqueles que julgavam ser
somente Portugal, com a sua política colonial austera, o tributário de todos os males que
a sociedade pós-colonial viria a padecer, a fim de afirmar sua soberania.
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(Hampatê Ba)
Tenho horror à África. Só serve para nos dar desgostos. Boa para
vender, minha senhora! A África é como essas quintarolas, meio a
morte, que a gente herda duma tia velha, numa terra muito bruta,
muito distante, onde não se conhece ninguém, onde não se encontra
sequer um estanco; só habitada por cabreiros e com sazões todo ano.
Boa para vender (ICR, p. 364).
(Hampatê Ba)
Diante deste cenário, Luanda foi se firmando como uma cidade moderna; virou
centro administrativo fora de Lisboa. Projetou-se também como centro de irradiação
política e cultural. Mais do que isso, foi palco dos grandes acontecimentos que
marcaram a história do país, como veremos mais adiante.
Esta extração de riqueza da África tinha um alto preço a ser pago. E o elemento
mais penalizado a esta condição foi o colonizado, que sofreu na pele, por assim dizer, as
ações da administração colonial em busca dos lucros que poderiam ser gerados a partir
de seus esforços. Por isso, os anos que sucederam a década de 1930 foram penosos para
as colônias africanas, pois a metrópole portuguesa, em crise, passou a ter dependência
mais direta dos resultados da exploração nos territórios sob seu domínio.
Cabe ressaltar, no entanto, que essas questões não se deram de modo pacífico,
houve muita resistência e luta. Obviamente que a dita história oficial não costuma
mencionar o quanto a consolidação do processo colonial foi sangrenta e consistente.
Assim, retornando ao Grupo de Trabalho História e Etnologia, que se reportou à história
do país pelo ponto de vista dos africanos, encontramos a seguinte justificativa para a
conscientização de um revolucionário a respeito da necessidade de se tomar
conhecimento da “História de Angola”:
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luxo, a fixação de grandes empresas e a bela paisagem urbana fazem dela um lugar caro
e desejável para se viver. Especialmente para uma parcela pequena da população que
possui razoável poder aquisitivo capaz de fornecer condição efetiva de estabelecer
moradia nos seus termos. O atual perfil da elegante cidade, que ostenta progresso e
riqueza, contrasta com a imagem que se vê em outros lugares dentro do país. E, a
começar pelo enorme contingente que mora nos bairros mais pobres e mais afastados da
capital, alguns estudos dão conta de que em Angola detectam-se índices alarmantes de
pessoas próximas à linha da miséria.
Luandino Vieira chega em África na segunda metade dos anos de 1930, por
volta de três anos de idade. Seus pais, como muitos portugueses naquela época, foram
para Angola com o objetivo de fixar-se na terra e recomeçar a vida. A sua convivência
com os africanos por toda a sua infância e juventude foram elementos determinantes
para esse escritor assumir-se angolano, como sempre se declarou; além de despertar
muito cedo uma consciência política e social. Observamos isso na entrevista que ele
concedeu a Michel Laban:
Era estranho realmente ouvir [...] meu pai falar com todos os
preconceitos raciais que a sociedade, que a sua educação, a sua
inserção numa sociedade colonial lhe dava, enquanto que,
simultaneamente, convivia com esses sobre os quais aplicava os
preconceitos e discriminação. Mais: não só convivia, dependia
(LABAN, 1980: 13).
Foi preso pela primeira vez em 1959. Por pouco tempo, se comparado à sua
segunda entrada no sistema prisional da PIDE, em 1961, quando foi condenado a 12
anos de prisão sob acusação de terrorismo. Passou por vários campos de detenção, até
ser finalmente solto em 1972. Ao longo dos anos em que esteve preso, escreveu a maior
parte de sua obra. E, concordando com Margarida C. Ribeiro e Roberto Vecchi (2015),
na esfera metafórica,
podemos dizer que existe um homem com o nome civil de José Vieira
Mateus da Graça que, à semelhança de uma parte consistente de
presos do Tarrafal, é um prisioneiro político, mas se evade para as
ruas de Luanda através dos vários livros que escreve neste lugar, sob o
nome de José Luandino Vieira (RIBEIRO e VECCHI, 2015: 22).
A liberdade percebida na escrita luandina, esta que “se evade para as ruas de
Luanda através dos vários livros” que escreveu, se confirmou pela construção de frases
geralmente justapostas, curtas, algumas invertidas, outras incompletas dando evidente
sinal de transgressão e ruptura metodológica com o sistema linguístico do idioma
implantado pelo colonizador ao país africano. A adesão opcional do autor pelo uso da
parataxe, como é conhecida a sequência de frases curtas e simples, sugere uma
aproximação maior entre a sua escrita e a narrativa oral, a qual ele procurou sempre
prestigiar. Entendendo de outra maneira, Luandino Vieira buscou reproduzir na sua obra
a voz do povo angolano, a voz que ele ouviu desde a tenra idade. O modo como ele
apresentou na escrita a fala de suas personagens muito se aproxima ao jeito das pessoas
falarem pelas ruas de Luanda, principalmente nos musseques. Desta forma, percebemos
o quanto o seu estilo de escrever, intencionalmente, se distancia das regras gramaticais
da língua oficial. Ou seja, em última instância, a escrita luandina se afasta do idioma
imposto pelo colonizador português para forjar, literariamente, um código linguístico
repleto de desvios, hibridismos e estruturas agramaticais buscando aproximar-se da voz
e expressão do homem comum de sua terra.
Landino Vieira também atentou para a mesma realidade que Waldir Oliveira
observou. E, na condição de militante inquieto, empenhou-se nas ações possíveis contra
esta e outras injustiças; em nenhum momento se conformou. Provavelmente, a sua
sensibilidade de escritor o capacitou a enxergar e a compreender um pouco mais adiante
do que enxergou e compreendeu o ilustre visitante e estudioso de assuntos africanos.
Não é, pois, um mero acaso a presença enfática do tom combativo, envolto na
linguagem artística, que percebemos em sua narrativa. Combate este que nos foi
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revelado dentro de uma moldura estética que, tal como em um quadro no qual as cores
certas preenchem os traços de uma paisagem que precisa ser observada nos detalhes,
esse escritor habilidoso expôs, com refinada elegância, mas de formas contundente, a
realidade que precisava ser radicalmente mudada. Foi assim que ele, com inegável
talento, encontrou, através da arte, o caminho eficaz para dar ciência ao mundo do
quanto as relações de convivência dentro de Angola estavam seriamente inflamadas.
O autor de Luuanda viu também o quanto a sua cidade amada, Luanda, e outros
centros, estavam à mercê das políticas habitacionais que, antes mesmo daquela época, já
atuavam sistematicamente em prol do descentramento da população mais pobre. Tais
políticas em muito favoreceram a transformação dos espaços urbanos em redutos
majoritários da etnia branca que, por extensão, formava a elite financeira do país.
Assim, com muito pouca ou nenhuma opção, os antigos moradores de cidades, em
grande parte os negros, assentaram-se nas regiões ao entorno delas. Estes novos espaços
de habitação foram gradativamente crescendo e, além de moradias da camada popular
com menos poder aquisitivo, foram se consolidando como redutos identitários. Devido
as suas características naturais, como a de se implantarem em locais com predominância
de barro vermelho no solo, receberam o nome de musseques; neles, se consolidaram a
preservação da cultura e das línguas africanas, além de se estabelecerem como locais de
resistência ao sistema colonial.
criar, recriar ou mesmo (des)criar, sem fronteiras, mesmo ante às circunstâncias em que
tais atividades são eclipsadas por alguma espécie de censura insana.
Eu sei, como tu, que é muito difícil viver na época e no território que
nos coube – depois da nossa infância e de uma adolescência e uma
juventude onde se criaram algumas ilusões que o tempo veio destruir.
Mas isso demonstra que tínhamos visto mal e devemos procurar
novamente o meio, o caminho, para aqueles fins, pois esses estão
certos. É difícil, assim escrevendo e nestas condições, dizer-te mais
(LABAN, 1977: 95).
A época “que é muito difícil viver” foi retratada nas três obras que serão
tomadas aqui como geradoras de reflexões: A Cidade e a Infância, Nosso Musseque e
Lourentinho, Dóna Antónia de Sousa Neto & Eu. Isso mostra o quanto Luandino Vieira,
de um modo geral, buscou equilibrar na sua narrativa a Luanda na qual estava a
testemunhar sofrimentos e vivenciar prisão, ou seja, aquela que foi o território que
coube a ele e ao poeta, com o topônimo cuja carta ao amigo encarregou-se de lembrar;
este que a infância, a adolescência e a juventude possibilitaram a criação de “ilusões
que o tempo veio destruir”.
3
O espaço da infância
Fronteira fluida entre o mundo real e o espaço ficcional
No fascínio de transcorrer por esta fronteira fluida – que ora se apresenta serena,
clara e retilínea, e ora se mostra agitada, opaca e sinuosa – adentramos no espaço da
infância revelado por José Luandino Vieira. Para tanto, pesquisaremos três narrativas
ficcionais escritas por ele entre os anos de 1954 e 1972. Com relação a este período, faz-
se importante observar de que se trata de um recorte histórico/ficcional dos fatos que se
estenderam até os três anos antes da independência de Angola. Esta época nos chama a
atenção por revelar a disposição do povo angolano em lançar mão de armas e acreditar
que se aproximava o fim da colonização. Foi um tempo assombroso para o território
angolano. Momentos terríveis de endurecimento do regime colonial, de prisões, de
combates sangrentos entre os movimentos revolucionários e as milícias de defesa do
estado português. Cabe ainda pontuar, como mostram as narrativas luandinas, que havia
a urgência em se discutir, por parte daqueles que lutavam pela independência de
Angola, algumas questões relevantes para o futuro da nação. Não havia clareza, por
exemplo, a respeito do que se pretendia construir após a efetiva consolidação da saída
do opressor.
Luandino Vieira remete-se ao que estava ocorrendo, sem abdicar do que tinha ocorrido
e sem abrir mão do que ainda estava por ocorrer. O momento demandava luta e
reflexão.
Nosso Musseque, escrito nos anos 1961/1962, entenderemos o que foi essa segunda fase
do autor. Trata-se do instante em que ele se propõe a problematizar uma série de
assuntos referentes à realidade colonial e também expõe as incertezas sobre o futuro
político da nação angolana. Nesta obra, verifica-se que a narrativa mostra-se orientada
pela percepção de um narrador, o qual, em semelhança com a experiência pessoal do
próprio escritor, chegou também no musseque com a família quando ainda era bem
menino. Adentramos, então, uma vez mais no espaço da infância. Agora pela
perspectiva dessa personagem, um garoto que não só narra os fatos que ocorrem ao seu
redor, mas que se mostra totalmente inserido no ambiente mussequino, onde viveu as
melhores etapas de sua vida. O relato fascinante, que às vezes cede a voz para outros
narradores, nos conduz ao conhecimento do estilo de vida dos habitantes do musseque.
E, a partir dele, percebemos algumas situações que apontam a relação de tensão e afeto
os quais, em vários momentos, afloraram naquele território de acontecimentos
surpreendentes.
Pela proposta das duas novelas, que trazem para a cena literária dois temas até
então inéditos nas narrativas luandinas – o ambiente rural e a loucura –, perceberemos a
dimensão das inquietações do autor no que dizia respeito àqueles momentos de tensões
e incertezas pelos quais passavam a sociedade angolana. Daí a sinalização do seu
desencanto e da sua ruptura com os ideais revolucionários, os quais se pretendiam
implantar no país após a retirada do opressor colonial. Na verdade, percebe-se o
ceticismo do escritor em relação a tudo o que estava acontecendo naqueles instantes
finais da colonização portuguesa. Em outras palavras, José Luandino Vieira explicita a
sua discordância com as propostas que os movimentos de mobilização pela
independência angolana intencionavam implantar após a consolidação desta.
O espaço da infância
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espaço da infância nas narrativas de José Luandino Vieira. A partir desse contexto,
tentar entender o seu pensamento em relação às questões sociais, políticas, históricas,
culturais, entre outras, inerentes ao território angolano na era colonial. Tudo isto
levando-se em consideração as transformações das circunstâncias e do ponto de vista do
próprio escritor, revelados por meio de algumas de suas obras que foram produzidas no
período de 1954 a 1972.
a morte e a vida são duas faces duma mesma realidade: a criança vem
dos Antepassados e o homem volta para eles. Essa visão simultânea
não significa, porém, que o homem africano não distinga a tripla
dimensão temporal. O que acontece é que ele pouca importância
concede a essa distinção (TRIGO, 1984: 149).
45
É esta criança que o escritor angolano valorizou sobremaneira em sua obra. Ela
vem dos Antepassados, prova indelével, na orientação cultural africana, de que a vida se
perpetua na continuidade. José Luandino Vieira colocou a criança, quase que no total de
suas narrativas, na posição de protagonista ou em condição relevante de proximidade
com ela. Mais do isso, ele a outorgou como porta-voz do seu pensamento. Muito, ou
quase tudo do que ele pensou em termos de estética literária, se fez transmitir pela fala
ou pela ação de uma criança. Algumas vezes, encontramos uma personagem adulta que
se volta para um antigamente desejado e se faz enunciar por meio de um menino em
resgate ao seu próprio passado. Não é, portanto, exagero afirmar que o olhar do
ficcionista para o espaço da infância aparece adornado por um certo respeito e
reverência. É quase uma instância mítica. Por meio desse espaço, o escritor se propôs a
transmitir o seu pensamento carregado de críticas ao sistema colonial. Ao mesmo
tempo, a partir dele, imaginou um modelo de sociedade alicerçada nos valores da
tradição ancestral do autóctone angolano. Fica claro, então, que, ao retratar o
antigamente, Luandino Vieira traz intencionalmente para a cena literária a noção de
que, conforme nos afirma Rui Bueti,
Vale ainda reforçar que o espaço da infância também será tomado na dissertação
como representação metonímica do contexto histórico de Angola. Isto por que Luandino
Vieira o tomou como referência dos fatos que ocorreram e dos que estavam ocorrendo
até aquele momento da concepção de sua escrita. Partindo desse ponto, o autor
esteticamente conseguiu alinhar suas narrativas à sua experiência de vida e levou para a
cena literária suas memórias, seus questionamentos, seus ideais revolucionários, suas
desilusões, suas discordâncias. Em resumo, ele tratou de utilizar-se do texto ficcional
como ambiente adequado para veiculação da sua postura crítica. Ao mesmo tempo,
retornou ao antigamente para exaltar o seu desejo de liberdade para o país. Aquele
momento passado, o espaço da infância em si, fica entendido por ele como a dimensão
adequada para a realização de alguns feitos não toleráveis ao mundo adulto. E, por isso,
47
1
Evangelho Segundo São Matheus (Bíblia Sagrada, edição revista e atualizada pela Sociedade Bíblica do
Brasil – SBB).
48
José Luandino Vieira não ignorou na sua narrativa, com menor ou maior grau de
intensidade em determinadas épocas, a necessidade de evidenciar uma realidade que
precisava ser contada, entendida, questionada e transformada. Em Angola, na verdade
quase em todo território africano que passou pelo processo de colonização, a arte
literária desenvolveu-se em diálogo com a história. Particularizando o caso angolano,
que tomaremos como depositário da reflexão a que se pretende neste trabalho, Rita
Chaves diz que a sua “literatura confirma-se como um exercício crítico, empenhada na
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colonização, percebemos a expansão do espaço periférico, que se afastou cada vez mais
afastado do centro urbano. Este, por sua vez, ficou cada vez mais restrito a um pequeno
grupo. Não obstante, o negro foi a maior vítima desse processo: perdeu o relativo
prestígio social, a cidadania e o seu espaço original. Presenciou a ascensão do homem
branco, foi colonizado e, nos casos mais extremos, perdeu sua referência ancestral, a
qual sistematicamente foi sendo substituída pelos valores ocidentais.
A escrita de José Luandino Vieira, além de tudo o que foi dito até este momento,
se destaca ainda como portadora da sua assumida posição política. Com esta postura, ele
logo se notabilizou como um escritor que, artisticamente, reivindica os valores
ancestrais africanos do respeito com terra, com a cultura, com as línguas nativas e com
as tradições religiosas. Também deu voz aos autóctones, cujos costumes foram
subvertidos ou anulados pelo intento do projeto colonial. Tornou-se, assim, um escritor
combativo e empenhado nas suas convicções de fazer valer tudo o que diz respeito à
promoção de seu país. Pagou caro; o preço foi a restrição de sua liberdade. Ao
tomarmos as três obras, A Cidade e a Infância, Nosso Musseque e Lourentinho, Dona
Antónia de Sousa Neto & Eu, na condição de corpus literário deste trabalho,
pretendemos também render tributo a esse gênio da arte de narrar. José Luandino Vieira
é o griot da moderna ficção angolana.
Já em Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto & Eu, José Luandino Vieira
não só questionou e criticou o sistema colonial, como também, pela dimensão da
infância, sinalizou a sua descrença no futuro da sociedade angolana. Constatamos isso,
por ele inserir na pauta literária o mundo rural de Angola. E, a partir dele, reflete sobre
as transformações impostas pelo progresso excludente na cidade de Luanda.
Encontramos isso na primeira narrativa, Kinaxixi Kiami. Na segunda, Estória de
Família, o dolorido quadro da patologia da mente, protagonizada por uma menina
apresentada como louca, simbolicamente demonstra o pessimismo do autor ainda antes
da efetiva independência do país se consolidar. Assim, veremos nesta ficção que a
libertação da nação angolana, tão almejada, demonstrava clara evidência da necessidade
de intervenções menos ufanista. Ou seja, havia a necessidade de se pensar no futuro
daquela pátria. Por isso, esta obra será entendida aqui como o momento de ruptura do
autor com a utopia revolucionária e, ao mesmo tempo, sua ânsia de ver o seu país com
condições efetivas de equacionar suas dificuldades internas.
A Cidade e a Infância
A memória que ativa o passado e problematiza o presente
A Cidade e a Infância
Trata-se de uma obra composta por dez contos. Eles são apresentados em ordem
cronológica de criação e que abrangem um período que vai do ano de 1954 a 1957. Esse
conjunto de narrativas publicado em 1960, portanto um ano antes da segunda e mais
duradoura prisão do escritor, reporta-se a situações cotidianas ambientadas, em grande
parte, dentro dos bairros pobres nos arredores da cidade de Luanda. No panorama geral,
as aventuras dos meninos angolanos servem como pano de fundo para variados temas
sobre os quais o autor, quase sempre pela observação da criança, propõe-se a
desenvolver. Criança esta, geralmente um menino, que anda acompanhado do seu grupo
e transita livremente pelos espaços do musseque. Suas ações são relembradas pela
memória afetiva de um narrador que, já adulto, volta-se para o passado e traz para a
cena literária diversas situações que conduzem à reflexão a respeito do presente e do
futuro de Angola. Neste sentido, a partir de um fato ocorrido no cotidiano, esse narrador
resgata o passado das aventuras, brincadeiras e desafios vivenciados em um
antigamente da infância livre. É assim que na narrativa de Luandino Vieira,
concordando com Miriam Barbosa, a “memória arranca o passado de sua imobilidade
de coisa morta. [E] tem o poder de ressuscitar, de fazer renascer a vida” (BARBOSA,
2002: 17). Outrossim, nesta memória ativa, esse autor inseriu a sobreposição do tempo
tomando como base a experiência de um passado pulsante que habilmente, pelo talento
sensível comum na sua escrita, foi conectado com o presente elevando a narrativa para
uma dimensão temporal que mescla a ideia de passado/presente/futuro quase que num
só instante.
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Tudo isso em criança, fui vivendo e mais tarde fui relatando. Isso me
deu a riqueza – o que eu penso ser a riqueza – de uma experiência que
se prolongou até aos dez, doze anos e que serviu para a aquisição de
valores culturais africanos, valores angolanos, que continuamente a
margem africana da cidade estava elaborando, e que, depois, no liceu,
quando chegou a idade em que eu comecei a ler outras coisas, fui
interpretando de outro modo, e que foram realmente o germe da minha
consciência política. Quero dizer que eu, e os outros, quase todos os
que viviam ali naquele bairro, quase todos os que eram crianças
naquele tempo, fizemos primeiro a aprendizagem de valores que, mais
tarde, viemos a ver que estavam correctos (LABAN, 1977: 15).
É assim que as reflexões suscitadas em cada conto neste primeiro livro vão em
direção ao entendimento de que o espaço da infância tornou-se o ambiente adequado
para a veiculação de tudo que José Luandino Vieira pensa a respeito dos fatos que
marcaram os períodos recentes anteriores à independência angolana, bem como um
grande tributo à cultura do povo angolano. Nesta intenção, os protagonistas, negros,
brancos ou mulatos, quase sempre meninos moradores de musseques, mesclam-se
dentro das estórias e nelas são alçados à condição de porta-vozes desse escritor que
discorre na pauta literária a respeito de várias temáticas que pontuam as complexidades
de um lugar subjugado pela colonização e, por isso, tensionado em todas as instâncias
observadas da relação conflituosa entre colonizado e colonizador, como veremos a
seguir.
narra é a chave necessária que Luandino Vieira abre ao passado para revelar, por meio
das experiências da infância, respostas e possíveis soluções ao presente sempre tenso,
simbolicamente configurado como mundo dos adultos. Mais ainda, as dez narrativas são
a postura crítica de um autor que, através da estética literária, se empenha em subverter
o discurso colonial que intenta apagar os valores culturais da nação angolana, bem como
as suas línguas e as suas tradições. E junto com as histórias resgatadas nos chegam
também o protagonismo de cada menino que corre nas areias vermelhas dos musseques,
mergulha na lagoa do Kinanxixi ou adentra a Grande Floresta, espaços, entre outros
mais, que se permitem o uso maior da liberdade, da resiliência e da resistência de um
povo que, naquele momento, como cita o narrador de História de Angola, é a “História
da luta das massas angolanas contra o avanço do colonialismo, do capitalismo, do
imperialismo, e, portanto, da exploração do homem pelo homem” (1965: 179).
Outro fator que torna A Cidade e a Infância uma obra de difícil compreensão,
dentre alguns mais, é a questão da linguagem; área emblemática quando se refere a este
autor, que genialmente conjugou o idioma português com o código linguístico bantu,
conferindo à sua escrita um caráter híbrido que lhe tornou uma marca. Em A dupla
tradução do outro cultural em Luandino Vieira, Conceição Lima (2009) diz que este
escritor “contribuiu para o desmantelamento da dicotomia centro/margem, que a
entidade colonizadora convencionou: é o discurso da oposicionalidade a delimitar o seu
espaço” (LIMA, 2009: 17). Lima entende esta postura de Luandino Vieira, na verdade
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sua estética, como uma espécie de atitude política contra a língua do opressor. Por isso
ela complementa, destacando que ele,
Fato é que adentrar a análise da obra luandina pelo mecanismo da sua linguagem
é um caminho amplo e desloca, em muito, a real intenção deste trabalho, que é a de
tecer uma reflexão sobre o espaço da infância na obra de José Luandino Vieira.
Todavia, fica o registro a despeito da genialidade artística desse que é considerado um
dos maiores nomes da moderna literatura angolana, que conseguiu compor as suas
narrativas em duas estruturas linguísticas muito diferentes entre si, sem deixar o leitor à
deriva na possibilidade de incompreensão ou mesmo ausente do deleite que a sua ficção
proporciona.
Repare que aos olhos desse amigo, o narrador não passa de um ilustre estranho;
porém, aos olhos do narrador o – agora estranho – ainda é o ilustre chefe. O amigo vê
tão-somente um homem, entre tantos outros que atravessam o seu caminho; o narrador,
ao contrário, revê o grande amigo, a sua história e o passado em comum. A presença do
amigo lhe remete à memória, ao espaço da possibilidade de recordar. Alguma coisa é
despertada a partir daquele acaso encontro; são duas imagens identificadas numa única
representação: aquela que se cristalizou na infância e que agora se apresenta recuperada
pela memória do narrador; e aquela que se mostra na figura real do amigo, como um
transeunte pedinte. No mesmo encontro: chefe e farrapo humano; aventuras de infância
e desventuras de adulto; passado e presente. Atentemos para o fato de que o termo
farrapo, usado pelo narrador para definir o estado atual do amigo, traduz a ideia de uma
pobreza extrema, abatimento; sugere algo que vai além do visível, é a deterioração do
ser. Por outro lado, a expressão chefe da Grande Floresta remete à ideia de autoridade,
alguém revestido de poder, posição gloriosa. Assim, lado a lado na narrativa,
chefe/farrapo marcam as duas fases do amigo-interlocutor; glamour e decadência em
um mesmo indivíduo. E marca também duas épocas: aventuras de infância (ascensão) e
desventuras de adulto (decadência). Tudo isso consolidado diante de um narrador
surpreso e um interlocutor sem memória.
58
A frustração de não ter ali toda a avidez de uma amizade reconstruída encontra
alívio na possibilidade que o narrador se permite vivenciar, através da ligação afetiva
que ele recria a partir da imagem do chefe. Olhar para o interlocutor era enxergar um
“farrapo da vida”; olhar para o amigo era enxergar o chefe, aquele que “conseguiu
subir a uma mafumeira”. São dois lados da mesma moeda: o amigo atual/o chefe do
passado, fundidos no mesmo ente ali presente. Com qual deles a estrutura psíquica do
narrador está com condições efetivas de lidar: O amigo atual, “o produto das fases que
atravessara” (p. 13); ou o amigo do passado, aquele que “desde pequeno que era o
chefe do bando” (p. 11)? A “ligação afetiva” autenticada pela identificação do
indivíduo louvada por Freud fica neutralizada neste contexto pelo desconforto dual
desse narrador.
Outra linha de reflexão suscitada nesse texto nos conduz à ausência de memória
desse interlocutor. Curiosamente, seu nome também não nos é revelado. Sem detalhes,
o narrador informa que as “companhias que a vida lhe trouxe modificaram-no” (p. 12).
Trata-se, assim, de uma história pessoal anulada. Os notórios feitos (subida na
mafumeira, ataques ao Kinaxixi, mergulhos na água suja, reuniões na Grande Floresta)
só fazem sentido na memória evocativa do narrador. Isso nos remete ao regime colonial
que se sobrepunha a Angola nos doloridos anos anteriores a 1975. O colonizador
europeu, combativamente inclinado à neutralização da vontade política, social,
econômica e cultural da população, fatos estes que, por si só, já trazem sequelas
gravíssimas à construção da identidade individual e, por extensão, à identidade coletiva,
tentou reduzir (em alguns casos conseguiu) o colonizado ao perverso estado de
assimilação de seus valores. E, em casos mais extremos, arquitetou o afastamento do
homem africano de suas tradições, de suas línguas nativas e de suas memórias. Segundo
Salvato Trigo:
Veja o quanto no antigamente a sua fase de menino era abrangente e boa. Havia
brincadeiras, sonhos, escola e alegria. Mas “o conhecimento dos factos e dos homens” o
desencaminhou. Então, em sequência, desinteressou-se pelo “estudo porque morreram
suas ilusões”. A ponto de a própria família desacreditar na possibilidade de um futuro
promissor. E, para complicar ainda mais, ele sequer desenvolveu aptidões para
trabalhar. Ou seja, tudo, outrora, estava indo bem; sua vida seguia o rumo adequado:
brincava, frequentava a escola, tinha sonhos. Em resumo, era uma criança feliz,
realizada, completa. As coisas iam bem antes dele ingressar-se no mundo dos adultos;
até conhecer os “factos” que revelam as malícias das pessoas. Nunca mais foi o mesmo.
Aquela promessa de um indivíduo bem-sucedido, que se desenhava pelas condições que
a vida lhe apresentava, sucumbiu ao conhecimento de outras ofertas; desviou-se do seu
destino, se perdeu e, mais tarde, foi preso.
62
Este conto é o relato de uma tragédia anunciada. Aquele que tinha tudo para dar
certo se transforma, pela intervenção das influências, em lástima para a família e
delinquente na sociedade. Chama-nos então a atenção para a observação de dois
contextos que se opõem nessa narrativa: o espaço da infância e o mundo dos adultos.
Quer isto dizer que não somente a escola, mas as outras instituições dentro do
regime colonial também fomentaram a retórica alienante de que todos os valores que
procediam do colonizador eram bons para promoverem a formação do colonizado e, por
extensão, ajudariam a este tornar-se um indivíduo realizado e feliz.
63
Então, quando esse indivíduo desperta de seu sono, agora em liberdade, ele,
simbolicamente, desperta também para a vida, que sempre esteve adormecida –
primeiro pela alienação da infância, depois, já adulto, pela entrega dissoluta à influência
dos amigos –. Na sua reflexão final, ele conclui que é tempo de renascer, de assumir-se
como alguém capaz de pensar e desenhar o seu destino. Tirou lições das experiências
pelas quais passou. E, a respeito de sua nova fase, assim nos conta o narrador: “Toda a
lição da Vida fora bem estudada. Agora sairia de sorriso nos lábios com o sol a brincar
nos seus cabelos e procurar emprego. Um emprego manual. Seguiria com a vida. Devia
vivê-la” (p. 24). Ou seja, aquele a quem a própria família desacreditava e o sistema
colonial alienou, subverteu e condenou, agora se sustentará com o suor do seu rosto.
Pagou sua dívida com a sociedade, saiu da prisão para a vida. Despertou! A prisão desse
homem foi, ao mesmo tempo, a sua punição e o seu despertar de consciência. Foi o
cerceamento de suas ações e a porta de sua liberdade. Entrou nela como um ladrão e sai
dela como um trabalhador. Com efeito, para concluir, esta narrativa de Luandino Vieira
problematiza a alienação, mas ao mesmo tempo nos faz refletir sobre a resiliência
angolana, capaz de gerar respostas imprevistas que a ficção faz valorar.
Entretanto, tudo mudou quando uma menina vistosa mudou para o bairro e os
meninos ficaram atraídos por ela. Assim o narrador descreve os fatos:
José Luandino Vieira, neste conto, utiliza-se do espaço da infância para nos
mostrar o quanto a visão do colonizado, no que dizia respeito à referência cultural de
seu povo, bem como à sua tradição ancestral, estava deslocada para o modelo
legitimado pelo colonizador. Em outros termos, concordando com Trigo, o angolano,
sobretudo os mais jovens, aprenderam a cultivar sua percepção estética pela orientação
ocidental, abandonando, assim, os valores herdados de seus antepassados. Desse modo,
pelo que denuncia a narrativa em questão, a menina branca, totalmente diferente das
meninas negras, passou a significar muito mais para os meninos daquela comunidade. O
senso de estética, que deveria ter como base original a matriz africana, por assim dizer,
não lhes comunicava tanto quanto o padrão estético levado à África portuguesa pelo
67
momento que necessita ser revivido; trata-se do momento em que os meninos eram
“livres ao sol, nus da cintura para cima e dos joelhos para baixo, correndo aquele
mundo deles...” (p. 58).
Impossibilidade de amar
Esta obra reporta-se a estes temas tão inflamados nos anos de 1950:
distanciamento étnico, fronteiras sociais, divisão geográfica e impossibilidade afetiva.
Ricardo e Marina são símbolos de um espaço dividido, onde negros e brancos eram
separados por um asfalto que lhes servia de limitação topográfica e simbolismo
ideológico. Atravessada pela temática do preconceito, esta narrativa revela o quanto
esse assunto constituiu-se como uma das questões mais emblemáticas da sociedade
colonial. Kabengele Munanga nos ajuda a entender melhor a dureza deste tema:
70
E mais uma vez, como agora se percebe em A Cidade e a Infância, foi pelo
espaço da infância que a narrativa luandina colocou em evidência o racismo, a exclusão,
a fronteira geossocial e outras atrocidades que ocorreram no regime colonial em
Angola.
Desta relação, que se estendeu até a morte desse homem, nasceram duas filhas
mulatas: Joana e Bebiana. Estas, representantes de um grupo social oriundo da relação
de um branco com uma negra, no caso delas, estavam fadadas à discriminação por parte
dos indivíduos das duas outras etnias predominantes em Angola, exatamente pela
posição intermediária que a sua herança racial as relegava, pois não eram brancas nem
negras.
necessidades sob qualquer pretexto. Por isso, fomentava a ideia de que elas casassem
com um homem branco. E justificava:
O que Don’Ana evidenciou na sua fala reflete a dura realidade que se passava no
ambiente colonial, que delimitou o espaço do branco e o espaço do negro, mas não
assentou o mulato, que pertence à ascendência mestiça resultante da coabitação de
indivíduos das etnias branca e negra. E dada a possibilidade de ganho salarial maior
direcionada ao primeiro, ou seja, ao indivíduo de cor branca, a preocupação da ex-
quitandeira tinha total razão de ser. Diante deste cenário, a pergunta do narrador, que é
branco, carregada de ceticismo face ao interesse de Bebiana por ele, foi adequada:
“Gostaria Bebiana mesmo de mim ou seria eu só mais um degrau na sociedade?” (pp.
64, 65). Crítico, ele constatou o quanto seria proveitoso à pretendente o enlace
matrimonial, bem como aos seus descendentes, ainda que o preço desse generoso gesto
fosse o apagamento da história pessoal da matriarca, pela ausência de vestígio na pele
dos netos da avó, que é negra. E conclui:
A assimilição serviente
diferente da sua, não pertencia à etnia da qual descendiam, logo, não era digno de suas
considerações.
Na casa de Faustino não tinha quartos, tinha apenas um espaço em que todos,
um total de cinco pessoas, acomodavam-se para dormir. Seus dois irmãos, menores,
ficavam à mercê das circunstâncias de rua, brincavam empoeirados por todo o dia. Era a
vida do musseque a qual Faustino bem conhecia, pois era lá a sua origem, ainda que o
ofício lhe pôs a serviço do branco na cidade. Também estava lá o outro tipo de criança
que percebemos neste conto, aquela que não mora em prédio e brinca com os pés
descalços na areia. Trata-se daquela criança que estava na condição de filha do
colonizado, que morava em casebre no musseque e, por isso, amargava o infortúnio de
ser deixada de lado no sistema colonial. Dessa origem veio Faustino, que ainda residia
em lugar pobre, praticamente sem espaço adequado para ele e sua família. A sua
ocupação como zelador em um lugar que lhe exigia a subserviência, sua realidade
concreta de vida pobre, sua condição de jovem negro sem qualquer privilégio, tudo isso
mostrava a Faustino o quanto o seu mundo encontrava-se distante daquele que ele lia
nos livros e revistas. A educação que ele adquiriu na escola só lhe servia para
contemplar e desejar aquilo que a sua realidade negava. Seus valores estavam moldados
a reverenciar aquilo que pertencia ao modelo cultural do homem branco. A este
respeito, esclarece-nos Munanga:
77
Ora, a maior parte das crianças [no regime colonial] está nas ruas. E
aquela que tem a oportunidade de ser acolhida não se salva: a
memória que lhe inculcam não é de seu povo; a história que lhe
ensinam é outra; os ancestrais africanos são substituídos por gauleses
e francos [lusitanos, no caso angolano] de cabelos loiros e olhos azuis;
os livros estudados lhe falam de um mundo totalmente estranho, da
neve e do inverno que nunca viu, da história e da geografia das
metrópoles; o mestre e a escola representam um universo muito
diferente daquele que sempre a circundou (MUNANGA, 2009: p. 35).
Frente a estas questões, Luandino Vieira mostra nesse conto duas instâncias do
espaço da infância: aquela ambientada na cidade, onde crianças reproduziam as atitudes
dos adultos, os quais concebiam o negro como um serviçal para a manutenção de seus
privilégios de indivíduos brancos; e aquela que se remetia ao ambiente dos musseques,
no qual a vida dos meninos reduzia-se a brincadeiras nas ruas de areia, totalmente
alheios ao que acontecia no mundo real. Com isso, mais uma vez esse autor coloca em
relevo o distanciamento entre o mundo minimizado do colonizado e o mundo austero do
colonizador. Através dos dois tipos de criança, melhor dizendo, das duas representações
do espaço da infância, percebemos o olhar crítico desse autor em relação à intenção
cruel do sistema colonial de subjugar o negro e elevar o branco.
Operário poeta
78
Eu também aqui no meio dos teus amigos. Mas não vou triste. Não.
Porque uma morte como a tua constrói liberdades futuras. E haverá
outros a quem as máquinas não despedaçarão, pois as máquinas serão
escravas deles, que as hão-de idealizar, construir.
E os poetas como tu hão-de cantá-las porque elas serão um
instrumento de libertação. Cantá-las no papel branco a tinta negra
ainda antes de elas nascerem.
Por isso não vou triste, não. Não sou talvez o teu único amigo branco,
mas os outros não tiveram coragem de te vir acompanhar. E são para ti
estas rosas vermelhas que trago (p. 88).
Por isso não vou triste, não. Não sou talvez o teu único amigo branco,
mas os outros não tiveram coragem de te vir acompanhar. E são para ti
estas rosas vermelhas que trago. São a paga da tua estima por mim, a
tua amizade que eu sentia quando tu e eu nos encontrávamos, à beira-
mar, ou quando naqueles dias à noite atravessávamos os dois a baía
das águas sem fim. A nossa baía de Luanda (p. 88).
E assim se encerra todo o sentido desse conto, uma amizade capaz de suplantar
as limitações da política racial fomentada no regime colonial. Se a inviabilidade do
mundo dos adultos desencorajou os homens, por serem brancos, a não prestarem a
última homenagem a um companheiro negro cuja amizade, inclusive, brotou nas
primeiras séries escolares, a possibilidade do espaço da infância é alçada nessa narrativa
como legitimadora da ausência total de fronteira de qualquer natureza. Isso reforça,
mais uma vez, a postura subversiva de Luandino Vieira em utilizar-se da perspectiva da
criança para deitar por terra os valores coloniais, que promoviam o apartamento entre os
indivíduos. Estes, brancos, negros e mulatos, se viram obrigados, dadas as
circunstâncias históricas, a conviverem no mesmo território que a colonização,
retomando Fanon, fez questão de cortá-lo em dois.
Sentia, sentia tudo, mas as palavras não chegavam à boca. Ele via,
porém, nos olhos ingênuos do João, nos olhos espantados de
Calumango, que as palavras que ele sabia estavam também dentro
deles (p. 94).
A história desse menino mulato teve um desfecho um tanto infeliz. Saindo para
cometer um furto, ele foi flagrado por um policial. Assim o narrador expõe o fato:
O menino mulato faleceu. Sua história, triste, quase uma tragédia anunciada,
originou-se no drama social em que uma mulher, negra, entregou-se, ou foi tomada,
como objeto sexual a um homem branco, sem qualquer intenção de assumir um
compromisso afetivo ou mesmo presunção de responsabilidade paterna, e gerou filhos
mulatos. Mais tarde, na sequência das mazelas, uma irmã, sugestivamente na mesma
trajetória de Bebiana e Marcelina, que analisamos nas narrativas seis e sete, desejosa de
gerar filhos com pele clara, lançou-se nos braços de um homem branco, dando-se a
possibilidade de vir a promover-se socialmente. E, para findar, um menino, sem
nenhuma estrutura familiar, que abandonou a escola e aventurou-se em delitos, teve a
vida ceifada prematuramente, como consequência natural de uma prática que predestina
para tal fim quem a ela se dedica.
Este é o panorama trágico de uma história com começo, meio e fim tristes. O
que fica evidenciado é o desajuste de uma família, se é que podemos entender dessa
forma, advinda de relações em que o homem branco, etnia favorecida dentro do modelo
colonial, passa a ser visto como elemento de promoção social. Na verdade, pelo que
revelam as narrativas, isso quase sempre não acontece, tendo em vista que esse
indivíduo não desenvolve afeto, ou mesmo a responsabilidade, pelos seus descendentes
e sequer assume o papel de chefe de família. E o resultado é a forte tendência de
acontecer o que se sucedeu ao Armindo: envolver-se em crimes que, mais cedo ou um
pouco mais tarde, gerarão finais desastrosos. Semelhantes a alguns outros casos que já
tratamos aqui.
Mais uma vez, para encerrar, José Luandino Vieira, se apropriou do espaço da
infância e construiu outra história que denuncia a crueldade social impetrado pelo
sistema colonial à etnia mulata. O menino Armindo, assim como as meninas Bebiana e
Marcelina são os representantes desse mundo complexo de exclusão e desestrutura
familiar a que o ente mulato estava submetido. O mundo dividido em dois, observado
por Fanon, que se estruturava nas etnias branca e negra, colocou às margens,
socialmente falando, o mulato. Este, na condição de resultado intermediário, digamos
assim, foi o fruto da coabitação de ambas etnias predominantes no mundo colonial. E o
autor evidenciou na pauta literária.
83
Nosso Musseque
Território de resistência e questionamento
Nosso Mussuque
Este romance foi escrito entre os anos de 1961 e 1962 por José Luandino Vieira,
quando este se encontrava na prisão da PIDE, em Luanda, como informa a nota anexada
na apresentação do próprio livro, que, curiosamente, foi concebido no ano em que a luta
pela independência de Angola ganha um novo contorno: o emprego da arma de fogo por
parte dos revolucionários contra os soldados portugueses.
regime colonial. Reforça-se isto na concepção de Milton Santos, quando ele nos orienta
que
em África como forma de estabelecer o domínio europeu, que foi, por força das
circunstâncias, modificando o panorama geopolítico nas colônias. A Conferência de
Berlim (1884/1885), por exemplo, que repartiu o continente africano entre as nações
que dele se apoderaram, potencializou a necessidade de ocupar ao máximo extensos
espaços na nova terra, o que muito favoreceu o deslocamento, no caso português, de
militares, funcionários administrativos, religiosos, comerciantes e aventureiros para lá.
Fernando Mourão (1978), em A sociedade angolana através da literatura, chega a
comentar, a respeito da chegada de brancos em larga escala em Angola no período
colonial, o infortúnio gerado pela perda de posição, segundo ele, a uma “pequena
burguesia negra, com posições subalternas na administração e no comércio a par de
outras” (p. 25). Ainda na mesma obra, citando o estudo realizado por Carlos Ervedosa,
ele observa que o
Foi exatamente neste topônimo, com sua idiossincrasia, que José Vieira Mateus
da Graça chegou, ainda criança, com seus pais, antes dos três anos de idade, na segunda
metade da década de 1930. No musseque angolano o escritor passou toda a sua infância,
adolescência e juventude; a sua notória admiração pela cidade de Luanda lhe rendeu a
alcunha de Luandino, que mais tarde foi assumido como nome artístico. Neste lugar
aprendeu a língua e a cultura do povo kimbundo e teve contato também com outras
etnias que ajudam a compor a complexa nacionalidade do país. Sua identificação com
Angola é total e irrestrita, fato que sempre fez questão de pontuar. A Michel Laban, ele
disse: “Mas... se por qualquer motivo [...], tivesse que abandonar Angola, nunca podia
viver com outra nacionalidade, quero dizer que o máximo até onde eu vejo, é ser um
exilado angolano em qualquer lado” (LABAN: 1977, p. 21). No mesmo texto, na
verdade uma entrevista, Luandino Vieira reforçou o quanto sua infância foi intensa,
profunda e cheia de aventuras, as quais, agora, lhe servem de inspiração às histórias que
suas obras retratam. E acrescentou que isto se dá “porque [a sua infância] foi feita em
condições de convivência no musseque, musseque da cidade de 1938, 37, 39, 40, 41”
(LABAN: 1977, p. 13).
em que cheguei naquele musseque pela mão de pai [...]” (NM, p. 89). Outra semelhança
entre os dois ocorre na assumida propensão dele para produzir ficção em cima de fatos
circunstanciais. Verifica-se isto na passagem em que ele discorre sobre a história do
amigo Xoxombo e da situação vexatória que lhe rendeu apelido e chacota por parte dos
demais companheiros. Sobre o fato, se não conseguir contar direito, ele assume toda a
culpa: “É minha, que meti literatura aí onde tinha vida e substituí calor humano por
anedota. Mas vou contar na mesma” (NM, p. 17). Interessante, a este respeito, é
confrontar esta atitude do narrador, em meter literatura em cima de um acontecimento,
com o que disse o próprio autor a respeito, entenderemos assim, dessa assumida
vocação: “Mais tarde interpretei isso como sendo um sinal de que, de qualquer modo,
tinha uma vocação para narrar, para contar...” (LABAN, 1977: p. 11). Escritor e
narrador se espelham em Nosso musseque, externando o propósito incontido de narrar,
de contar; trata-se de um exercício assumido pelo autor tanto na vida real, como na
ficção. Isso revela, na prática, a intenção de Luandino em resgatar, através da literatura,
esta atividade oriunda de uma tradição cultural que valorizava a oralidade. Em outros
termos, JLV põe em relevo, neste romance, a arte da oratura como um hábito recorrente
dentro do musseque. Prova disso são as várias histórias contadas pelas personagens em
algumas passagens. Podemos destacar, por exemplo, o caso de don’Ana. Na narrativa,
ela sempre era bem recebida pelos meninos porque lhes contava histórias com alegria e,
além disso, costumava “pôr adivinhas, como só ela é que sabia” (NM, p. 49). Em outra
passagem, o narrador destaca a mania de contar e inventar do Zeca: “Não é bem como
ele fala: o Zeca, cadavez que conta, mete sempre as partes dele e, quando a gente vai
ver, ninguém sabe mais onde este onde está a mentira” (NM, p. 31) e acrescenta em
outro momento: “O Zeca Bunéu fala e a gente sente” (NM, p. 162). E no incentivo do
velho capitão Abano: “Voltou para falar connosco, continuou dizer que, agora
sozinhos, o melhor mesmo era fazer um jornal, contar os casos do nosso musseque [...]”
(NM, p. 166).
que lá habita e que, nas arestas daquele sistema, desenvolveu condições adequadas para
reafirmar seu construto identitário, por isso sente-se na obrigação de defendê-lo.
Justifica-se aí então o desprezo, evoluído para certa hostilidade, que se percebe nessa
obra direcionado ao ente não identificado com aquele lugar. Sobretudo, quando este
traz consigo o pensamento e as atitudes repugnantes da cultura colonialista, os quais o
colonizado do musseque resiste e, a seu modo, confronta.
A amiga branca
econômica de continuarem a residir no centro urbano, que era bem mais estruturado e
caro; por isso mesmo, constituiu-se como reduto da elite branca e de alguns poucos com
uma certa situação financeira capaz de lhes possibilitar a permanência por lá. A
mudança, então, para um local mais barato, no caso deles, não foi uma questão de
escolha, mas, sobretudo, por falta de opção; afinal, não tem como admitir que alguém
voluntariamente abdicaria de se estabelecer na cidade para fixar-se num espaço tão mal
assistido pela administração, como era o musseque. Torna-se oportuna, portanto, a
observação de Mourão dando conta de que no regime colonial em Angola, “ao lado dos
brancos ricos, aparece uma classe média branca que, muitas vezes, ombreia com os
mestiços e negros, principalmente em Luanda e Benguela, na luta pelo pão de cada dia”
(MOURÃO, 1978: p. 22).
preservar sua identidade comunitária que, até onde fosse possível, descolava-se dos
valores fomentados pelo colonizador europeu.
Albertina, neste cenário, por sua simpatia e entrega, teve receptividade bem
diferente; a ela deu-se o oposto de tudo o que se viu com sô Luís. A moça branca,
meretriz e sem poder aquisitivo soube se achegar, compartilhar e aceitar a cultura do
local, ainda que totalmente distante da sua. Rapidamente ambientou-se e foi aceita; não
quis mudar nada, por isso não encontrou rejeição. Isso aponta para a compreensão de
que o musseque tem o seu modus vivendi; quem a ele se achega precisa entender e
respeitar este princípio. Ser negro ou ser branco, considerando o fato de que todos ali
estavam em situação de pobreza, logo, “na luta pelo pão de cada dia”, como diz
Mourão, perece não se constituir como fator impeditivo a uma convivência
relativamente razoável. No entanto, a questão da aceitação ou da rejeição se reforça tão-
somente no modo de como o novo morador se assenta nesse local que, por si só, dado o
contexto histórico-cultural vigente, apontava para um ambiente social em constante
ebulição e passível de intempéries de consequências imprevisíveis.
dentro e fora do círculo familiar. No entanto, tempos depois, no dia em que os soldados
abusaram de uma jovem da comunidade e ofenderam a um velho, a revolta da moça
aflorou, e, mediante ao conformismo de seu idoso pai, para quem os militares estavam
certos em conter a fúria do povo que clamava por justiça, reagiu energicamente ao
pedido por respeito que ele lhe fez para com as autoridades e, elevando a voz, ponderou:
“Respeito como então? Batem-te na tua porta, insultam-te na tua filha e você fica com
seu respeito, sua educação, não liga nessas coisas, não é? Fala que o povo só quer
vinho e roubo, [...] que já não tem homens como antigamente” (NM, p. 176). A partir
daí, a tensão entrou novamente na pauta literária e a discussão se estendeu a ponto do
narrador observar que a “peleja de uma menina saliente, de dezesseis anos, com seu
velho pai que sabia tudo, é o que as pessoas falavam no nosso musseque” (NM, p.
177).
E nesta imersão no musseque que a narrativa nos conduz, deparamos com outro
momento de tensão e afeto: o que se deu no plano da ascensão e decadência sociais
representados nas histórias de sô Augusto e nga Xica. A começar pelo marido, o
narrador mostra o deslumbre de apogeu que esta personagem, sô Augusto,
experimentou no passado, foi no tempo em que este senhor gozava de prestígio e afeto
dentro da família e no musseque. Assim a narrativa dá conta de que, quem “não lhe
tivesse conhecido antigamente não podia acreditar logo que Augusto João Neto tinha
sido encarregado geral da electricidade, na grande oficina lá em baixo, no Bungo,
onde já existia muito tempo” (NM, p. 69). Era um homem respeitado e admirado por
todos naquele local. Sá Domingas lembra: “Aiuê! Quem lhe conheceu... O patrão até
vinha lhe trazer no carro, mana! De carro, cá em cima! O rapaz estava trabalhar no
Bungo...” (NM, p. 68). Casado com Nga Xica, que também era notória no tempo em
que seu marido estava em alta, digamos assim. Entretanto, falando do seu atual estado,
o narrador recorda: “... nga Xica, agora magrinha e feia, bessangana bonita como era
nos seus tempos de rebitas e massembas” (NM, p. 68). O afeto de outrora transformou-
se em tensão no momento em que sô Augusto foi demitido por conta da chegada do
filho do dono, um engenheiro, que veio tomar conta da oficina. Deprimido, entregou-se
à bebida e mergulhou a família na miséria social, a ponto do narrador observar que “a
diferença entre Augusto João Neto de antigamente e sô Augusto de agora era tão
grande que a gente não acreditava” (NM, p. 69). Esta personagem foi vítima de um
processo excludente que se deu em Angola motivado pela chegada de novos colonos.
Muitos destes, possuidores de capacidade técnica, quando não diplomados, foram, por
força da circunstância, tirando os espaços dos negros do mercado de trabalho, como
aconteceu com sô Augusto. O resultado disso foi o aumento do contingente negro na
marginalização e a contribuição para o pensamento de que o autóctone angolano não
tinha condições de executar tarefa laboral de maior complexidade. Ora, na esteira de um
processo de colonização que precisava alocar o colono português nas terras africanas, a
manutenção do mito de que a sua capacidade técnica era superior a do negro favoreceu
a ocupação dele nas funções de maiores relevâncias. Sô Augusto é uma personagem
através da qual Luandino Vieira denuncia o quanto ficou inviável ao colonizado a
possibilidade de ascensão sócio-econômica no período colonial; pior ainda, como
vimos, é que aqueles que estavam ocupados no mercado de trabalho e dele sustentavam
95
Fica evidente que Nosso Musseque é uma obra que mostra a força de um lugar e
a sua resistência ao regime colonial. Não só isso, revela também o seu ambiente interno,
sua gente, seu dia a dia, suas tensões e seus afetos. Como já foi dito, este romance é
uma sucessão de histórias reveladas a partir da perspectiva de um narrador que as
discorre segundo as suas recordações. Com isso, bem ao estilo do autor, não há entre
elas uma linearidade, pelo contrário, são narrativas fragmentadas que a todo instante vão
sendo retomadas e concluídas na medida em que a leitura avança. Neste repertório de
fatos, o leitor tem diante de si uma obra labiríntica que vai, aos poucos, como em um
quebra-cabeça, formando o seu sentido; em outros termos, construindo a sua lógica.
Ora, se são muitas as histórias, muitos são também os seus protagonistas. Neste
particular, as personagens e suas ações são planificadas e o que se destaca na narrativa é
o ente coletivizado. Quer isto dizer que em Nosso Musseque realça-se a figura do todo,
a saber: nativos, achegados e o próprio musseque. E este lugar, em semelhança
aproximada ao que se percebe em O Cortiço, romance naturalista escrito por Aluízio
Azevedo, publicado em 1890, revela-se vivo e atuante no cotidiano das pessoas que nele
residem. Convém relembrar que a narrativa azevedeana dá conta das penúrias
observadas na vida dos moradores de um cortiço no Rio de janeiro, no final do século
XIX, as quais são evidenciadas em tom de denúncia dentro da obra; em paralelo, o autor
revela um ambiente complexo, cheio de vivacidade e configurado como representação
da sociedade brasileira daquela época. Em Nosso musseque, levando-se em
consideração o estilo e a proposta do seu autor, bem como o local, a cultura e a época,
também há denuncia a respeito da condição desassistida na vida de alguns dos seus
habitantes e se constitui, no aspecto figurativo da obra, como representação da
sociedade colonial de Angola. E o topônimo, na condição de personagem, atua na cena
literária em diversas ocasiões: “Durante muitos meses o musseque arranjou uma calma
de todos os dias [...]” (NM, 19); “[...] todo musseque sabia ela falava só bom dia-boa
tarde...” (NM, 22); “[...] e o musseque gozou um vento fresco...” (NM, 43); “Mas
nosso musseque estava quieto e calado” (NM, 106); “[...] quando já era tarde e nosso
musseque dormia...” (NM, 149); “Foi assim que todo o musseque acordou...” (NM,
152).
96
Tensão e afeto, para concluir, são temas que se opõem nas experiências de vida
de cada personagem e se repetem em outras passagens não analisadas aqui. As histórias
condensadas em Nosso musseque, em que tais oposições se fazem evidenciar,
demonstram o quanto o musseque, território tão emblemático para o povo de Angola, é,
sobretudo, humano, tem seus erros e acertos naturais a todo contexto que conglomera
indivíduos; e, por isso mesmo, capaz de reações improváveis diante das situações. José
Luandino Vieira, que viveu este espaço tão angolano e a ele credita suas inspirações, foi
um cicerone perfeito ao nos conduzir para dentro de um mundo sui generis que, mesmo
sob o manto pesado do regime colonial, na escassez econômica e no acolhimento aos
desafortunados sociais, revela-se resiliente, subversivo e atuante na preservação da sua
matriz identitária. Mais ainda, este autor, que se projeta num narrador ávido por nos dar
a conhecer o que vem a ser este lugar único, consegue transmitir ao seu leitor o
sentimento que acomoda cada história, cada personagem, cada momento; coisa de quem
aprendeu e se orgulha, parafraseando uma frase sua nesse romance, em meter literatura
onde tem calor humano.
Nosso Musseque, como vimos, se delineia sob o olhar de uma criança e, como
tal, se pauta pelo prisma das recordações de um tempo de infância em que face à
repressão portuguesa emergiam também a necessidade de resistir para não sucumbir. De
várias formas o olhar dessa criança que observa, participa e nos narra os episódios
aponta para uma sociedade colonial que se revelava problemática desde os primórdios
de sua formação. Um exemplo claro pode ser apontado na postura das professoras em
relação aos meninos do musseque. Repare que a discriminação era tão visível que até
elas, que, em tese, seriam as mais preparadas para lidarem com a problemática social da
política de apartamento promovida pelo sistema colonial, utilizavam-se dela, reforçando
tal prática entre os entes angolanos, conforme o trecho a seguir:
Diante da provocação dos soldados, a reação veio quase que instantânea, pois
invadidas, suas mulheres serem insultadas e seus velhos levarem cuspidas na cara.
Situações, estas, capazes de inflamar reações adversas em qualquer modelo de
sociedade, seja ela colonial ou não. Quer isto nos dizer que Luandino, pelo olhar de uma
criança, não só desnudou as mazelas coloniais, mas, sobretudo, notabilizou o território
do musseque como uma reserva moral, forte, unido e capaz de reagir, ainda que com
arcos, paus, catanas e pedras. O musseque se estabelece, assim, como um organismo
autônomo dentro de um país neutralizado por um regime autoritário que não respeita
aqueles que estão à margem dos limites urbanos.
100
José Luandino Vieira já se encontrava preso há pelo menos onze anos quando
esta obra, Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto & Eu, foi concluída, em 1972. Tal
fato, naturalmente, lhe permitiu um olhar diferenciado para a realidade política de seu
país. A distância entre essa narrativa e A Cidade e a Infância e Nosso Musseque, obras
que analisamos anteriormente, ultrapassa os dez anos. No entanto, antes de adentrarmos
nos aspectos literários que remetem ao espaço da infância, objeto de nossa análise,
chama-nos a atenção o relato do autor em Papéis da Prisão (2015): “Aliás, a última
história que eu escrevi, ‘Kinaxixi Kiami! Meu Kinaxixi’, acabei-a dois meses antes de
sair em liberdade condicional” (p.1069). Este depoimento nos fornece uma pequena
dica de que o cidadão que foi preso em 1961 sob acusação de terrorismo encontrava-se
sob novas motivações. Os resquícios de uma crença na utopia revolucionária e os
questionamentos suscitados nas análises anteriores encontram-se superados nas duas
novelas que compõem esse livro. Por isso, Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto &
Eu configurou-se, no tocante à investigação que vimos realizando nesta dissertação, o
que consideramos como a terceira fase do pensamento luandino.
Pelo exposto, não é dificultoso concordar que JLV, nesse período, estava bem
mais amadurecido. A trajetória de sua vida, até aquele momento produzindo sua escrita
dentro dos variados presídios pelos quais passou, bem como as suas convicções
político-ideológicas confirmavam isso. Uma prova indelével desta assertiva foi o seu
fenômeno editorial Luuanda (1964) que, até aquele ano, acumulava duas premiações: O
Prêmio Literário Mota Veiga (1964), em Angola e o Grande Prêmio de Novelística da
Sociedade Portuguesa de Escritores (1965), em Portugal.
101
fora abandonada pelo pai da criança, um branco que não se viu comprometido em criar
o filho; ela tinha a esperança de que um outro homem branco a assumisse como esposa.
E analisamos ainda a dramática história do menino Armindo que, a despeito de ser um
exímio contador de história, alegrar seus companheiros e tocar gaita, levava uma vida
toda desajustada; por fraqueza e falta de acolhida social, passou a cometer alguns delitos
até ser morto pela polícia.
Lourentinho: “Critiquei, em minha alegria: Senhor, serpente assim, devias fazer sem
veneno algum...” (p. 50). Ante a esta declaração, o seu patrão alemão, que falava um
português repleto de “erre” colocou um ingrediente a mais na questão do mulatismo na
colônia. Lourentinho continua a narração: “Ele [o senhor Fóguer] me olhou,
estranhadamente, macio. E me deu sua bênção: ‘Primerro mulato com alma que
n’Angola vêrre!...’” (p. 50).
vinculado ao afeto e mais pautado na realidade que assolava o território em que nasceu,
por isso se angustia:
A novela Kinaxixi Kiami é a primeira narrativa de Luandino Vieira que traz para
o ambiente literário a região campestre. E, consequentemente, é o primeiro grande
distanciamento geográfico do musseque, espaço do assentamento da sua escrita.
Embora, em pensamento, essa personagem nunca se afastou de sua terra natal, a
“sempre a capital do mundo universo” (p. 13). Esta mudança de cenário, como é de se
esperar em um grande escritor, tem valor simbólico. Ela trouxe consigo uma alteração
no modo de entender, pelo viés da narrativa ficcional, o que estava ocorrendo no
106
A marca desse novo olhar, podemos assim entender, encontra-se pela distância
da observação a um Kinaxixi que “era a demasiada planície de um só rio, a vala nossa”
(p. 13). Ao mesmo tempo, tal marca se confirma com a percepção “dum antigamente
gasto” (p. 67) que encontra guarita na modificada atitude do amigo de infância dessa
personagem. A narrativa dá conta de que, ao retornar do campo para a sua cidade natal,
Luanda, Lourentinho reencontra aquele que fora um de seus melhores parceiros na
época de menino. Ambos cresceram juntos, brincaram pelas ruas do musseque e
aventuraram-se em banhos irresponsáveis na grande lagoa. Mas o sentimento do Zeca,
este antigo companheiro, para com o bairro onde nasceu secou-se.
Lourentinho lamenta com pesar ao perceber o quanto aquele seu amigo estava
diferente. O moço agora era o então encarregado de terraplanar toda aquela região,
outrora com lagoa e matas, para permitir a construção de prédios comerciais e
107
os meninos companheiros foram felizes: aquele “Kinaxixi todo de tudo, capins e chuva
de infância”.
Pelo momento histórico evidente, fica muito claro em Luandino Vieira o que
disse Frantz Fanon, a respeito da independência dos países colonizados:
Luandino Vieira viu tudo isso que Fanon destacou. Sua sensibilidade artística
criou esta personagem, Lourentinho, que, como ele, estava afastado fisicamente de
Luanda, mas que, ideologicamente nunca dela se ausentou. A distância de ambos, autor
e personagem, da sua cidade, lhes permitiu analisar de fora os acontecimentos políticos
e sociais daquele momento. E, de fato, tudo, ou quase tudo, infelizmente, veio a ocorrer.
Então, a ruptura prévia do autor com a utopia revolucionária tinha um porquê de ser. A
sensibilidade artística o permitiu enxergar aquilo que seus pares não viam, ou, em
alguns casos, não queriam ver. A sonhada independência de Angola, pelo moldes que a
política étnico-partidária estava pontuando, comprometeria a intenção maior de se
construir um país livre, justo, estável e soberano.
O espaço da infância, mais uma vez retomado nesta obra, foi o caminho
adequado para que José Luandino Vieira apontasse a fragilidade de um projeto de nação
que necessitava de ajustes. Os meninos Zeca e Lourentinho, nascidos e criados no
mesmo território, trilharam caminhos diferentes revelando dois tipos de visão sobre o
contexto político e ideológico do mundo angolano por ocasião dos momentos que
antecederam a independência de seu país.
O texto nos informa uma autêntica festa africana moldada nos parâmetros
angolanos. Os Mateus e os Sousa se unem em torno da celebração do casamento de
Jinga, a noiva por parte dos Sousa, e André Adão Mateus, ganga-zuzense (p. 83), por
parte dos Mateus. De todas as regiões de Angola surgem representantes das duas
famílias, principalmente da família Sousa, que, tendo por anfitrião a figura do
representante da guarda nacional, Damasceno, se da o luxo de trazer como convidados
alguns amigos brasileiros. No primeiro momento da narrativa, o enredo segue uma
trajetória natural de um evento entre entes familiares e convivais. Comes e bebes,
cantorias, contação de histórias e hábitos locais vão compondo o cenário de inter-
relação agradável de um ambiente intimista, mas que revela também pequenas ranhuras
político-ideológicas por parte de alguns dos presentes. Nada tão relevante capaz de
ofuscar o motivo maior da reunião: o casamento.
111
O cenário composto por Luandino Vieira não poderia ser melhor justificado do
que uma cerimônia nupcial, capaz de convergir para o mesmo espaço duas famílias de
etnias diferentes, convidados de distantes regiões e costumes, além de diversas
categorias sociais. Sem esconder as agruras naturais esperadas em um momento de tanto
antagonismo num único ambiente, o autor combina os conflitos domésticos com a
perspectiva inerente de uma possível convivência entre pares. Neste contexto, percebe-
se o flerte amoroso, a retórica poética, os contrapontos culturais, a vaidade insinuante e
as mazelas cotidianas dão evidente demonstração de que a sociedade angolana é capaz
de superar-se e motivar-se em prol do bem comum sem os ditames do regime opressor
que se estendia sobre aquela nação naquele conflituoso momento.
Jinga é o silêncio imposto; diante da crise de loucura de sua irmã, só fez chorar.
Prometida em casamento a um noivo de outro grupo étnico, sua participação na
narrativa é apagada. Embora não deveria, pois é para o evento dela que a estória se
criou.
O trio familiar é a representação típica dos danos que o sistema colonial fez em
angola. Jinga não tem voz, não tem vontade própria, não é senhora do seu destino.
Damasceno é um assimilado. Ocupando cargo institucional, encontra-se totalmente
imerso na orientação dos ditames do sistema; julga-se quase um lusitano ao empunhar
seu elmo contra o peito e proferir discurso dentro dos padrões do cânone português.
Dona Antónia é a velha esquecida. Totalmente apagada dentro da família e,
consequentemente, aos olhos da sociedade. De vez em quando berra, mas tal gesto surte
pouco efeito. Esta figura representa a tradição que já começa a ser esquecida. A
autoridade do ancião está relegada ao segundo plano dentro do sistema colonial, fato
incomum dentro da tradição africana que sempre viu nesse elemento uma matriz
estruturante dos desígnios comportamentais da sociedade.
Estória de Família é um conto que, junto com Kinaxixi Kiami, compõe o livro
Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto e Eu, publicado em 1981. Neste ano, por
sinal, José Luandino Vieira ganha a liberdade condicional, após cumprir doze anos de
prisão. Sua condenação foi motivada por suas ações políticas contra o regime colonial
português. Mesmo na prisão, local em que a obra foi escrita, ao que parece bem antes do
ano de publicação, o evidenciado tom ativista se faz notar. De certa forma, fica-nos
sinalizado que o autor já não acredita a esta altura nos rumos ideológicos que o
movimentos anti-colonial estavam tomando. Estória de Família constitui uma clara
ruptura com os ideários da independência. Pelo menos na sua formulação, já que o
movimento em si era um caminho sem volta. Os movimentos revolucionários estavam
no seu momento mais agudo, pré-anunciando o onze de novembro de 1975, data oficial
da independência de Angola.
Tété entra na cena literária já no final. Tudo já tinha acontecido: chegada dos
convidados, apresentações, discursos de Damasceno, berros de dona Antónia, leitura de
poesia, comes e bebes, desavenças políticas, presença da autoridade policial, cantorias,
brincadeiras de criança, agitos na cozinha e algumas coisas a mais. Dentro da
perspectiva da condução do enredo, a despeito da ausência da trajetória linear, como já
apontamos anteriormente, as situações abordadas caminhavam para o desfecho, sem
grandes novidades. Até então, o que se esperava da narrativa de Luandino Vieira vinha
se cumprindo: hibridismo linguístico, não-linearidade da narrativa, atemporalidade e
polaridade temática (tradição x modernidade; infância x adulto; idioma kimbundo x
idioma português; presente x passado). Nada tão significativo que já não tivesse
presente em outras obras desse autor. E, por isso mesmo, a presença de Teté revela-se
surpreendente. Não por ser ela mais uma personagem representativa ao espaço da
infância, objeto da análise. Mas, sobretudo, pelo que ela representa com seu atributo: ela
é louca, “verdade essa era”, enfatiza o narrador.
Com a inserção dessa personagem, tudo muda, do que até então conhecemos
sobre a pauta literária de José Luandino Vieira. Ao tematizar a loucura, o escritor
dimensiona a nossa análise para uma pauta incomum e sugestiva. Até então, discutimos
com ele temas diversos: estética, linguagem, colonialismo, política, história, infância,
musseque, amor, inquietação, angústia, velhice, cidade, país e outros. Loucura é,
portanto, surpreendente. Sem grande profundidade, ocorre a citação de uma loucura
apontada por meninos, em tom de brincadeiras de crianças, em uma passagem no conto
A Cidade e a Infância:
maluca” que atendia pelo nome de Talamanca, a qual, pelo seu estado de insanidade
mental, era alvo da chacota da miudagem. Esta é a única citação sobre a personagem,
demonstrando claramente que se trata de um episódio isolado, sem nenhum acréscimo à
estória que está sendo narrada pelo protagonista. Zinho a menciona sem relatar grandes
detalhes, o que confirma o postulado de que Luandino Vieira não explorou esse assunto
com a mesma profundidade e importância como o fez na obra analisada em curso.
A outra face dessa loucura em Estória de Família, pode ser entendida como o
olhar conclusivo de José Luandino Vieira sobre os rumos que o processo da pré-
independência estava seguindo. Naquela festa “de pedido”, com muitos convidados, que
“virou lição etnograstrológica para brasileiro ver”, todas as estratificações sociais de
Angola estavam representadas. Do assimilado Damasceno ao poeta revolucionário
Tomás Dias Gomes, das ativas velhas cozinheiras à isolada anciã Dona Antónia, da
“Ala-dos-namorados” festivos à noiva chorosa Jinga, da mestiça Olga ao “preto-claro”
Guilhermino, é possível caracterizar cada elemento representativo da formação étinico-
cultural do país. Mais ainda, o policial Beltrão, os brasileiros Belchior e Alfa, os
músicos congolenses e alguns “descendentes dos lusos”. Todos no mesmo espaço se
entendendo, ou buscando se entender de alguma forma. A menina louca neste cenário é
mais uma vez a utilização do espaço da infância por parte do autor para afirmar que esse
clima de festa encontra-se psicodélico em demasia, necessita-se reorientar a trajetória.
Mas naquele ambiente de folguedo e euforia quem poderia insurgir-se como porta-voz
da consciência senão uma louca? Ou seja, exatamente aquela que, como as crianças, não
117
que testemunha a história de seu país; não só isso, também está empenhado em torná-la
legítima e com fim proveitoso aos anseios do seu povo, capaz de se tornar dono de seu
próprio destino. O que fica claro, com esse episódio, é que Luandino Vieira sugere ser
uma loucura o excesso de ufanismo que pairava sobre a sociedade de Angola sem
considerar as complexidades que envolviam a estruturação e consolidação de uma nação
livre e soberana.
Considerações finais
(Hampatê Ba)
Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto & Eu foi a obra que escolhemos para
confirmar o que chamamos de período da ruptura. Ainda apropriando-se do espaço da
infância, JLV mostra a loucura da menina Tété. Esta, acometida de um surto psicótico,
acaba com a festa de casamento de sua irmã lançando excremento nos que se
121
José Luandino Vieira, sem dúvida, é um ícone na arte de escrever. Ele consegue
tratar de forma ampla os assuntos a que se propõe. Não há dúvida de que o espaço da
infância que pesquisamos neste trabalho configura tão-somente um dos ângulos
possíveis de demonstração do seu ponto de vista a respeito do mundo colonial. Com
efeito, este escritor explorou literariamente outras formas de apontar a transformação de
seus pensamentos, bem como de sinalizar as suas insatisfações. Não é demasiado
pontuar que estamos analisando a obra de um autor que se encontrava preso e
condenado pela sua adesão à militância política, e que nunca abdicou de suas
convicções. Mais ainda, procurou valorizar a cultura do povo de angola, o qual, na sua
observação, “estava completamente marginalizada pelo colonialismo, mas continuava
viva e lutando pela sobrevivência” (LABAN, 1977: 280). Porém, mesmo preso,
encontrou o caminho da liberdade artística e a ela laçou-se sem limite, produzindo obras
que colocaram a literatura de Angola em diálogo com os signos literários universais. E
tem provado que a questão colonial de modo algum está ultrapassada (Noa, 2015). Para
melhor compreensão, ele nos guiou, através de suas narrativas, às três linhas-mestras
que nortearam as reflexões suscitadas nesta pesquisa: a memória evocativa das
aventuras dos meninos do musseque, em A Cidade e a Infância; a ordem subvertida
pelo questionamento, em Nosso Musseque; a ruptura com a utopia revolucionária, em
Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto & Eu. Como vimos, a infância que
encontramos na narrativa luandina é aquela resgatada pela memória de um narrador
branco, que morou em musseques, tem amigos brancos, negros e mulatos, e possui uma
íntima relação de afeto com a cultura, com a língua banta e com o jeito de ser do
autóctone angolano. Mas que, mesmo narrando quase sempre em primeira pessoa,
concede a voz a várias outras personagens, dividindo, assim, o protagonismo com
indivíduos comuns dentre o povo. Dito de outra maneira, as histórias são contadas
privilegiando, em muitos dos casos, o ponto de vista de quem as viveu; ressaltam a
experiência do regime colonial.
Não tem como encerrar a jornada desta dissertação, que tanto privilegiou o
antigamente evocado no espaço da infância e considerou a evolução do pensamento
desse escritor que é, sem dúvida, um dos maiores ícones da expressão literária de
Angola. Durante o trajeto, atentamos para a sua capacidade inventiva e o seu olhar
sensível para o passado, para o presente e para o futuro. Sua produção artística
equilibra-se com sua postura política gerando narrativas capazes de nos comover,
surpreender e nos tornar cientes e conscientes a respeito dos processos históricos,
políticos, sociais e culturais de seu país. Neste sentido, empenhado na desmontagem dos
mitos coloniais e, ao mesmo tempo, valorizando o ponto de vista do ente angolano
comum, levou para o corpo do texto a ironia refinada, a crítica, a paródia política, a
representatividade, o afeto e tantos outros ingredientes. Assim, exatamente ele, José
Luandino Vieira, que escreveu a maior parte de seus livros de dentro das prisões pelas
quais passou, ainda achou-se na condição de dizer: “O meu amor à minha terra, Angola,
é apenas a forma do meu amor pela humanidade. Nunca serei um mau nacionalista”
(Vieira, 2015: 705).
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