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Marco Antonio Fuly

O Espaço da Infância na Narrativa de José Luandino Vieira: Lembranças,


Questionamentos e Ruptura

Rio de Janeiro
2017
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Faculdade de Letras
PÓS- GRADUAÇÃO STRICTU-SENSO / MESTRADO EM LETRAS

O Espaço da Infância na Narrativa de José Luandino Vieira: Lembranças,


Questionamentos e Ruptura

Por
Marco Antônio Fuly

Dissertação de Mestrado apresentada ao programa de


pós-graduação em Letras Vernáculas da Universidade
Federal do Rio de Janeiro como quesito para obtenção
do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literaturas
Portuguesa e Africanas)

Orientadora: Professora Doutora Maria Teresa Salgado


Guimarães da Silva

Rio de Janeiro
2017
Aos dois grandes amores da minha vida:
Minha esposa Mª Angélica Vilaça Fuly e o nosso fruto, Pedro Vilaça Fuly.
O Espaço da Infância na Narrativa de José Luandino Vieira: Lembranças,
Questionamentos e Ruptura

Marco Antônio Fuly


Orientador: Professora Doutora Maria Teresa Salgado Guimarães da Silva
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas
da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários
para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e
Africanas).

BANCA EXAMINADORA

Professora Doutora Maria Teresa Salgado Guimarães da Silva, Presidente – UFRJ

Professor Doutor Mário César Lugarinho – USP

Professora Doutora Gumercinda Nascimento Gonda – UFRJ

Professor Doutor Nasir Can, Suplente – UFRJ

Professora Doutora Cláudia Fabiana de Oliveira Cardoso, Suplente – UNISUAM

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2017
Agradecimentos

À professora Maria Teresa Salgado Guimarães da Silva por acreditar no meu potencial em
desenvolver um trabalho sério e comprometido no curso de Mestrado. Orientou-me com
dedicação e generosidade, pondo-se sempre disposta a ouvir e a fazer comentários precisos.
Espero continuar sob esta orientação no curso de Doutorado.

Ao professor Godofredo Oliveira Neto, pelas aulas brilhantes e trocas de ideias que me ajudaram
muito na composição deste trabalho.

À professora Stefania Rota Chiarelli pelas aulas acrescentadoras.

Às colegas Kézia e Maria Lúcia, parceiras de trocas de ideias e empréstimos de livros.

Aos atendentes da Cátedra Jorge de Senna que sempre me trataram com carinho e presteza nas
incontáveis consultas que realizei naquele espaço.

Aos funcionários da secretaria da Pós-graduação, sempre solícitos.

Aos colegas da Pós, pela convivência.

Aos amigos, pela paciência da espera.

A todos que de maneira direta ou indireta fizeram parte desta caminhada.


RESUMO

Esta dissertação pretende mostrar a transformação do pensamento do escritor angolano


José Luandino Vieira a respeito dos momentos políticos que antecederam a independência de
Angola. Utilizando como corpus literário as obras A Cidade e a Infância (1960), Lourentinho,
Dóna Antónia de Sousa Neto & Eu (1981) e Nosso Musseque (2013), todas escritas entre 1954 e
1972, embora suas publicações ocorreram mais tarde, este trabalho ajuda a entender o modo
como a pauta literária retratou as lembranças, os questionamentos e os desencantos do autor no
que se refere ao período mencionado. Neste sentido, apropriando-se ficcionalmente do espaço da
infância, assentado em um antigamente no qual as aventuras dos meninos do musseque são
evocadas constantemente por um narrador no presente, Luandino Vieira valoriza e dá voz ao ente
angolano comum, ao mesmo tempo em que denuncia as agruras do mundo colonial e se mostra
descontente com as utopias revolucionárias.

Palavras-chave: pensamento – independência – infância – Angola – colonial

RESUMEN

En este trabajo se pretende mostrar la transformación del pensamiento del escritor


angoleño José Vieira Luandino acerca de los momentos políticos que llevaron a la independencia
de Angola. Utilizando como un corpus literario funciona de la Ciudad y la infancia (1960),
Lourentinho, doña Antonia de Sousa Neto y yo (1981) y Nuestro Musseque (2013), todas escritas
entre 1954 y 1972, aunque sus publicaciones se produjeron más tarde, este trabajo ayuda a
entender la forma en la agenda literaria retrata los recuerdos, las preguntas y la desilusión del
autor lo que respecta a dicho período. En este sentido, la apropiación ficticia sala de la infancia,
sentado en un pasado en el que las aventuras de los chicos de barrios marginales se elevan
constantemente por un narrador en el presente, los valores Luandino Vieira y da voz a la de
Angola común, al tiempo que denunció las dificultades del mundo colonial y parece insatisfecho
con las utopías revolucionarias.

Palabras-clave: pensamiento - independencia - infancia – Angola – colonial


Sumário

Introdução .......................................................................................................................... 3

1. Legado de Berlim: Do (des)critério ocupacional ao musseque luandense .................. 16

2. Luanda, marco zero no percurso literário de José Luandino Vieira ............................ 24

3. O espaço da infância - Fronteira fluida entre o mundo real e o espaço ficcional ........ 36

4. A Cidade e a Infância - A memória que ativa o passado e problematiza o presente ... 49

5. Nosso Musseque - Território de resistência e questionamento ..................................... 77

6. Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto & Eu - Tempo de romper, o sonho

acabou! .......................................................................................................................... 92

7. Considerações finais ................................................................................................... 106

8. Referências bibliográficas .......................................................................................... 117


“Tenho 30 anos. Estou nas cadeias há 4, casado pouco mais de um
ano, tenho um filho de 4 anos e nunca me senti adulto. Sou um
adolescente que se retrai na sua própria adolescência. Sinto um
grande desfazamento entre mim e todos os meus companheiros
mais velhos e mais novos. Sou uma criança junto a eles.”
(José Luandino Vieira, 05-08-1965)
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Sinopse

Leitura das obras A Cidade e a Infância, Nosso Musseque e Lourentinho,


dona Antónia de Sousa Neto & Eu, de José Luandino Vieira, tendo como
objetivo entender a evolução do pensamento deste autor manifestado no
espaço da infância. Tal espaço, nestas narrativas, se configura como
instância de reflexão a respeito do território angolano nos anos que
antecederam a independência do país e, consequentemente, o fim da
colonização portuguesa.
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Introdução

José Luandino Vieira estreou no ambiente literário produzindo uma narrativa


orientada por uma estética que equilibra o idioma português com o código linguístico
bantu, sem com isso causar dano à compreensão de sua obra. A ousadia desta proposta,
inevitavelmente, se impôs – e ainda se impõe – como desafio à atenção do seu leitor,
embora o glossário no final de grande parte de sua obra minimiza o estranhamento.
Também em observação à sua estreia, não temos como ignorar que o mundo da arte
literária, naquele início dos anos 60, passou a ter entre seus pares um ente angolano que
se revelou um escritor talentoso, crítico e combativo. José Luandino Vieira (doravante
JVL) genialmente conseguiu alinhar os temas desenvolvidos na sua ficção aos fatos
emblemáticos que vinham ocorrendo na sociedade a qual estava inserido. E foi assim
que, cedo, esse ficcionista, comprometido com as suas convicções ideológicas, procurou
pontuar na sua escrita, com estilo e habilidade, o seu assumido inconformismo com a
colonização portuguesa dentro de seu país. Colonização esta que há tempo, por meio de
vários mecanismos e estratégias, vinha acirrando a política de repressão e exploração no
território angolano. Não obstante, tais práticas, desde o início, se configuraram como
motivos permanentes de revoltas e reações diversas por parte dos colonizados e das
pessoas sensíveis às injustiças humanas que foram produzidas naquele contexto.

Como sabemos, nenhuma forma de colonização – seja de exploração ou de


povoamento – ocorre de maneira amistosa, por mais que se intente. Ela será sempre
marcada por conflitos e tensões. E não teria como ser diferente; afinal, trata-se da
relação de domínio de um determinado povo no espaço ocupado por outro. Esta
condição de exploração, digamos assim, obriga as duas partes envolvidas no processo –
quem dominou e quem foi dominado – a buscarem a melhor maneira, se é que isso se
mostra possível, de minimizar os impactos e os traumas gerados por força da
circunstância. Nesse contexto de relação forçada, se instaura, por extensão da ação, a
sequência indelével de novas leis, novos desígnios, novas regras, novos costumes. É o
mundo colonial. Seu surgimento instaura-se no complexo legado da convivência
forçada entre o colonizador e o colonizado. Com o tempo, os efeitos dessa aproximação
vão gerar novas formas de sentir, pensar e agir; hábitos e costumes serão transformados
gradativamente. A sociedade colonial então, resultado da conjugação de todos esses
fatores, vai se configurar e estabelecer os espaços de convívios e a função de cada grupo
no novo ambiente social. No entanto, a tomar como referência a estreita relação
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colonizador/colonizado, podemos inferir, como endossa a própria história, que a


pirâmide social formada na colônia resulta na seguinte estrutura: na base, a grande
massa dominada, no geral a população autóctone; no topo, a pequena elite dominante,
formada por indivíduos do país invasor.

Kabengele Munanga, a respeito dos casos de colonizações europeias ocorridas


no continente africano, cujas características gerais – e da angolana em particular –
suscitaram variadas questões a serem analisadas neste trabalho, nos ajuda com os
seguintes esclarecimentos:

Convencidos de sua superioridade, os europeus tinham a priori


desprezo pelo mundo negro, apesar das riquezas que dele tiravam. A
ignorância em relação à história antiga dos negros, as diferenças
culturais, os preconceitos étnicos entre duas sociedades que se
confrontam pela primeira vez, tudo isso mais as necessidades
econômicas da exploração predispuseram o espírito europeu a
desfigurar completamente a personalidade moral do negro e suas
aptidões intelectuais (MUNANGA, 2009: 24).

Este panorama, em que os europeus desprezaram o mundo negro, foi se


agravando no decorrer do compartilhamento do mesmo território entre eles. Por todo o
tempo em que perdurou a colonização em África, vigoraram as diferenças entre os dois
mundos: o europeu e o africano. Como consequência, podemos apontar o clima de
tensão nas populações, que logo evoluiu para um estado de conflito permanente. Isto
muito dificultou o diálogo entre colono e colonizado. Nesta conjuntura de relação hostil,
agravou-se ainda mais a imagem do contraste entre os privilégios do branco em
detrimento da exploração do negro. Por isso, acrescenta ainda Munanga, que na
sociedade colonial havia o constante temor de ruptura com a ordem e com o equilíbrio
por parte da administração; uma vez que, para esta, era preciso, por todos os meios,
garantir a manutenção das regalias, ainda que à custa do sacrifício alheio. Para tanto,
com o consentimento da metrópole, utilizou-se sistematicamente dos órgãos de
segurança, tornando, assim, legítimos o uso da força e da truculência. Não obstante,
para que a indesejada turba não viesse a ocorrer de fato, o colonizador, na medida do
possível, procurou manter-se “intocável, explorando e pilhando a maioria negra,
utilizando-se de mecanismos repressivos diretos (força bruta) e indiretos (preconceitos
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raciais e outros estereótipos)” (Idem Op. Cit., p, 25). Com efeito, a tensão social
passou a ser um gargalo dentro daquele mundo cortado em dois (FANON, 2005), no
qual, a considerar o lado de quem se beneficiava daquele sistema, a “história que ele
escreve não é pois a história do país que ele despoja, mas a história da sua nação,
quando rouba, viola e esfomeia” (FANON, 2005: p. 68).

O mundo cortado em dois, que em razão disso nunca foi harmônico, começou a
tornar-se insustentável. Notoriamente, o desequilíbrio entre a insistência nos privilégios
para poucos e o martírio com a exploração de muitos, como previsto, colocou o colono
europeu e o colonizado africano em rota de colisão permanente. E a violência mais
explícita ocasionada por tamanho desajuste revelou-se, na sua deflagração, resposta e
justificativa ao mesmo tempo. Não gratuito, em toda a África colonizada, em
consequência das questões apontadas por Munanga e Fanon, observamos, a partir da
segunda metade do século XX, um levante decisivo por independência. A julgar o
empenho e as articulações dos movimentos político-revolucionários nos territórios que
padeciam com a dominação europeia, tal levante mostrou-se irreversível.

É então que, ao reportarmos às obras de José Luandino Vieira referentes a esses


momentos tão conturbados dentro do continente africano, mais especificamente em
Angola, buscaremos entender a evolução do pensamento deste autor. Este que, a partir
da primeira metade da década de 50 até, aproximadamente, 1972 – período em que se
situa a produção das narrativas que serão analisadas nesta dissertação e também marca a
primeira fase da escrita luandina –, demonstrou a construção de um ponto de vista
pessoal que foi se direcionando para a ruptura com certa utopia de que a pátria, quando
estivesse livre do julgo português, seria perfeita para se viver e capaz de contemplar os
anseios da sociedade angolana nos moldes daquela que se encontrava cristalizada em
um antigamente onírico evocado pelas lembranças da infância. Dito de outra maneira,
verificaremos como foi se consolidando o rompimento gradativo desse escritor com a
perspectiva assentada na idealização de que Angola viria a ser capaz, logo após a
independência, de garantir ao seu povo o direito de reconhecer-se como filho legítimo
da terra. Desse modo, movido por tal sentimento, almejaria o resgate das suas raízes
culturais africanas, voltando, assim, a reviver suas tradições ancestrais. Ou seja, que o
filho da terra viria a se orgulhar em falar novamente as suas línguas maternas – ainda
que enfrentasse a situação de impossibilidade de abandono da língua oficial imposta
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pelo colonizador – e cultuaria livremente os seus deuses; além de fortalecer-se


hegemonicamente no exercício de sua cidadania em uma pátria livre, justa e soberana.

Neste sentido, observaremos o modo como José Luandino Vieira apropriou-se


do espaço da infância para, a partir dele, inserir na pauta literária as três fases essenciais
para nossa investigação as quais, conforme a nossa compreensão, marcaram a evolução
de seu pensamento. As três fases são estas, a saber: a) o retorno a um passado glorioso e
pleno, recuperado em suas memórias evocativas, que se encontrava anulado pelo
presente problemático e tenso; b) seus questionamentos ao sistema colonial implantado
no país e ao conformismo leniente de alguns entes angolanos; c) seu desencanto com a
maneira como estavam sendo conduzidos os anseios e as discussões em torno da
necessidade efetiva de construção da identidade nacional.

Em tempo, faz-se necessário pontuarmos aqui que o tema referente à infância


não é inédito nos estudos da ficção luandina; outros pesquisadores já desenvolveram
pesquisas a esse respeito. É o caso de Roberta Guimarães Franco, em seu trabalho
intitulado Descortinando a inocência: infância e violência em três obras da literatura
angolana (2008). Neste, a autora reportou-se ao espaço da infância para falar da
violência que atravessou os principais momentos da história recente de Angola
abrangendo as fases colonial e pós-colonial; para tanto, ela desenvolveu sua orientação
de pesquisa tomando como corpus literário A Cidade e a Infância (1960), de Luandino
Vieira, além de obras de outros dois autores angolanos, a saber: As Aventuras de
Ngunga (1972), de Pepetela e Bom dia Camarada (2000), de Ondjaki. Outro trabalho
sobre a infância que se alude à ficção de Luandino Vieira foi realizado por Maria do
Carmo Sepúlveda Campos, intitulado Estórias de Angola: fios de aprendizagem em
malhas de ficção (2003). A pesquisadora, neste caso, fez uma análise profunda sobre a
atuação da pedagogia no período colonial em Angola. Seus estudos demonstram que tal
pedagogia, em alguns espaços, mostrou-se segregadora e, em outros, libertadora. Para
tanto, Campos analisou detidamente as obras de Luandino Vieira, Pepetela, Manuel Rui
e Arnaldo Santos, sendo todos eles escritores angolanos conceituados e de notória
representação artística no âmbito da literatura africana de expressão portuguesa
contemporânea. A contento, nas duas referências em questão, encontramos assertivas
valiosas que muito agregam ao conteúdo da nossa investigação iniciada neste trabalho,
o que nos motiva a fixá-las no corpo teórico a que nos apoiaremos ao longo de nossas
investigações. Em resumo, a pauta da violência no espaço da infância da qual se ocupou
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a pesquisa de Franco, bem como a dupla face da pedagogia colonial estudada por
Campos muito nos interessam, por trazerem, em comum com esta pesquisa, o
amadurecimento do discurso de crianças revelado através de personagens intimamente
ambientados no musseque angolano, o qual, como veremos, Luandino Vieira eleva à
condição de topônimo representativo do espaço da infância de onde foi capaz de
observar e criticar a realidade do mundo colonial, ao mesmo tempo em que revelou a
transformação do seu pensamento em relação ao projeto da utopia revolucionária.

Merece também destaque, ainda sobre o espaço da infância na narrativa


luandina, o trabalho de Salvato Trigo, intitulado Luandino Vieira: O logoteta (1984).
Neste, o autor, embora não seja este o tema o qual ocupou-se com mais afinco, cita
interessantes passagens a respeito do espaço da infância. Na verdade, este estudioso
português faz um longo apanhado na obra de Luandino Vieira abordando variados
aspectos gramaticais, literários, linguísticos, culturais, sociológicos e históricos,
posicionando, assim, o escritor angolano como um grande expoente da escrita produzida
em África. Contudo, pela própria natureza dessa pesquisa, direcionada a verificar vários
itens dentro das narrativas luandinas, não há a proposta específica, digamos assim, em
se aprofundar na pauta que nos interessa, apesar de ocorrer preciosos comentários a
respeito. Por isso, oportunamente em alguns momentos, nos serão de grata valia reportar
a eles.

A menção a todos estes os trabalhos neste espaço serve para mostrar o quanto a
obra luandina é rica, atraente e capaz de oferecer condições suficientes para o
desenvolvimento de pesquisas instigantes e de ampla necessidade para o conhecimento
da história e do povo de Angola, além de transbordar-se em temas que atendem a outros
interesses dentro e fora do âmbito acadêmico. José Luandino Vieira, sem dúvida,
colocou a literatura de seu país em diálogo com os cânones universais.

Retomando a proposta desta dissertação, comprovaremos cada fase da


transformação do pensamento desse escritor através da realização de análise
comparativa em três obras que retratam os acontecimentos significativos dos últimos
anos que antecederam a independência de Angola. Elas serão tomadas aqui como
corpus literário, por meio do qual viabilizaremos as intenções supracitadas. São estas,
as seguintes obras: A Cidade e a Infância (2007), Nosso Musseque (2003), Lourentinho,
Dona Antónia de Sousa Neto & Eu (1981). Cabe ressaltar, no entanto, que as três
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narrativas selecionadas, todas escritas entre os anos de 1954 e 1972 – período de notória
importância na história e na política de Angola –, não seguem a ordem de suas
publicações. Isto se deve às inúmeras dificuldades e contratempos encontrados por
Luandino Vieira na ocasião em que as escreveu; dentre elas, destacamos as motivações
políticas, as censuras, o cerceamento da liberdade do autor (primeiro em 1959 e depois
em 1961), as dificuldades financeiras, entre outros. Por sorte nossa, ou didatismo
intencional deste escritor, todas as obras vêm finalizadas com data de composição, o
que enriquece sobremaneira a proposta deste trabalho, tanto na otimização do tempo –
já que não haverá necessidade de comprovar a cronologia dos fatos –, como no teor das
assertivas, uma vez que seguiremos a linearidade dos eventos a que se referem. Para
efeito de justificativa e por ordem de escrita, A Cidade e a Infância data de 1954 a 1957
a sua composição, com a primeira publicação em 1960; Nosso Musseque foi escrito em
1961/1962, a primeira edição é de 2003 e Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto
&Eu foi escrito em 1972 e publicado em 1981. Contudo, o que nos interessa de
imediato, para a eficácia desta pesquisa, é enriquecer o tema proposto com as
informações sobre a época a qual elas se reportam. Interessante será também atentar
para a intenção estética nelas veiculada, bem como para o propósito da própria escrita.

A opção em desenvolver a análise dentro de uma linha evolutiva tem por


objetivo alinhar o contexto histórico-social a respeito do que foram os conturbados anos
que precederam a independência de Angola com a periodicidade das narrativas que
apontam a transformação do pensamento de Luandino Vieira a respeito desse momento
de luta e afirmação. Sendo assim, evidenciaremos na sua produção ficcional a seguinte
sequência: a história, as memórias, os questionamentos e a ruptura. E também, dentro
do interesse da nossa pesquisa, colocaremos em evidência o valor que esse ficcionista
atribuiu ao estilo de vida dos moradores do musseque e da força emanada deste lugar,
que se impôs na condição de espaço de resistência, construção e preservação da
identidade e da cultura do povo angolano.

Entendemos então que são muitos os desafios quando nos propomos a estudar a
obra de JVL. Trata-se de um escritor que se permite transitar, na sua narrativa, por
diversos assuntos referentes ao admirável mundo angolano. Este, diga-se de passagem,
possui características peculiares e mistérios que aguçam a curiosidade do leitor, além de
se imporem como desafio constante ao pesquisador. Neste sentido, para lograrmos bom
êxito na nossa intenção, lançaremos mão de alguns pressupostos teóricos que diversos
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estudiosos e pesquisadores do assunto africano, ou mesmo o próprio Luandino Vieira –


ao nos fornecer, por exemplo, explicações específicas e glossários no final de algumas
obras –, elaboraram no sentido de ampliar o conhecimento que se tem até agora. É
assim que nos reportaremos a Hampate Bâ, Albert Boahem, Majhemout Diop, Joseph
Ki-Zerbo, Frantz Fanon, Aimé Césaire e outros para balizarem a nossa compreensão
sobre a história da África, a visão colonialista portuguesa e o processo de colonização
do território angolano. No que se refere às memórias, serão de enorme valia os
pressupostos de Paul Ricoer, que alude na sua obra os vários tipos de memória e as
entrevistas de Michel Laban, que resgatam as memórias e considerações do próprio
Luandino Vieira. No capítulo sobre os questionamentos ao sistema colonial, levando a
reflexão para o caminho do desencanto do escritor com o discurso revolucionário,
lançaremos mão de uma série de pensadores, tais como: Homi Bhabha, Maria do Carmo
Sepúlveda Campos, Antônio Cândido, Rita Chaves, Frantz Fanon, entre outros. Por fim,
nos ajudarão na compreensão da fase que denominamos de ruptura com a utopia
revolucionária Stuart Hall, Kabengele Munanga, Albert Memmi, Achille Mbembe e
alguns outros, que falam, entre outros assuntos, de questões sobre identidade, colono e
colonizado.

Cabe a observação de que foram listados apenas parte dos autores os quais
pretendemos nos apoiar e cujas obras serão tomadas aqui como pressupostos teóricos.
Temos alguns outros a acrescentar, mas, para otimizar esta primeira parte do texto,
optamos por apontá-los com mais detalhamento no próprio desenvolvimento deste
trabalho e listá-los nas referências bibliográficas. Neste momento, nos interessa mais
apresentar o tema que será desenvolvido nesta dissertação, seu corpus literário, alguma
parte do suporte teórico e como será a condução da nossa análise.

Para finalizar, ao desenvolvermos uma reflexão sobre os momentos que


precederam a independência de Angola, perspectivado no espaço da ficção pelo olhar
dos indivíduos não adultos, nossa intenção será demonstrar que não foi só o país que
sofreu mudanças, JLV também se transformou. A sua percepção da realidade foi se
mostrando diferente a cada fase de sua escrita. Sendo assim, esperamos então
comprovar o quanto o espaço da infância revela-se como depositário da memória, da
utopia, do questionamento e da ruptura com tudo o que se refere ao mundo colonial e
também com os ideais revolucionários muito latentes naquela ocasião. Mostraremos
também o quanto a reflexão sobre estes temas mostrou-se propulsora de uma narrativa
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pioneira e impactante no seu processo inventivo, tanto pelo hibridismo linguístico como
pelo nível da estética conceitual, os quais nossas ferramentas de análise ocidentais
mostram-se dependentes de mais conhecimento a respeito do mundo africano (TRIGO,
1984). No entanto, a despeito de todos os desafios que se apresentam face às
complexidades as quais a obra luandina nos conduz, entendemos que esta pesquisa – na
verdade, mais uma a enriquecer e prestigiar a genialidade artística de José Luandino
Vieira – se fará consistente e contributiva para outros estudos sobre este surpreendente
escritor. A intenção é chegarmos, enfim, ao final deste trabalho, procurando comprovar
que, de algum modo, já estava claro para esse militante escritor a evidência de um
cenário em que os acirramentos políticos se expandiriam para além da discordância de
ideias e chegariam à eminência de um confronto civil. Fatos estes que pareciam
demonstrar o quão frágil era o projeto de nação idealizado por aqueles que julgavam ser
somente Portugal, com a sua política colonial austera, o tributário de todos os males que
a sociedade pós-colonial viria a padecer, a fim de afirmar sua soberania.
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Legado de Berlim: Do (des)critério ocupacional ao musseque luandense

“O que se encontra por detrás do


testemunho, portanto, é o próprio
valor do homem que faz o
testemunho, o valor da cadeia de
transmissão da qual ele faz
parte, a fidedignidade das
memórias individual e coletiva e
o valor atribuído à verdade em
uma determinada sociedade.”

(Hampatê Ba)

A sensibilidade artística, movida por oportuna inspiração criativa, colocou a


África na pauta literária de um livro icônico publicado em 1900 na Europa. Trata-se do
romance A Ilustre Casa de Ramires, de autoria do consagrado escritor português Eça de
Queirós. Esta obra, cujo lançamento se deu após a morte do seu autor, falecido em
agosto do mesmo ano da sua publicação, relata o presente e o passado de Portugal até
aquele momento. Ela marca, na concepção de muitos estudiosos da literatura lusitana, o
completo amadurecimento da narrativa queiroseana, a qual ficou conhecida como a
terceira fase do percurso literário desse que foi um dos maiores observadores e crítico
da sociedade portuguesa de sua época.

Reafirmando o tom irônico marcante em suas narrativas, Eça, no romance em


questão, procurou mostrar o que estava acontecendo com o território português no que
se refere às áreas política, social, histórica e ideológica naquele complicado final do
século XIX. No entanto, no que se refere ao contexto africano propriamente dito, o
escritor revelou-se um tanto reticente. Quer isto dizer que ele não apresentou notória
profundidade, ou mesmo uma atenção deveras significativa ao assunto. Curiosamente,
foram nos dois últimos capítulos da obra que o narrador reportou-se à aventura do
protagonista, o fidalgo Gonçalo Mendes Ramires, naquele continente. Não obstante,
narrado em episódios curtos e sem grandes detalhes, os quatro anos em que esta
personagem incursionou-se pelo desconhecido mundo africano lhe renderam riquezas.
Mas também suscitaram, em relação a seus pares europeus, reações adversas, como
podemos perceber no desabafo de outra personagem, o Gouveia:
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Tenho horror à África. Só serve para nos dar desgostos. Boa para
vender, minha senhora! A África é como essas quintarolas, meio a
morte, que a gente herda duma tia velha, numa terra muito bruta,
muito distante, onde não se conhece ninguém, onde não se encontra
sequer um estanco; só habitada por cabreiros e com sazões todo ano.
Boa para vender (ICR, p. 364).

Sem dúvida, o real interesse de Eça em A Ilustre Casa de Ramires era o de


revelar os problemas pelos quais passava a sociedade portuguesa daquele período. A
África, considerando as turbulências internas em Portugal, figurava-se tão-somente no
ambiente ficcional como um pano de fundo, muito discreto. Na verdade, diante do
episódio aventureiro de Gonçalo, a terra africana oferecia condições viáveis para a
execução de seu intento: colocar-se na galeria de aventuras “heroicas”, tal como os seus
antepassados. Neste sentido, este protagonista, então um homem sem expressão no
contexto social perante seus patrícios, resolve realizar o notório feito através do resgate,
por meio de uma novela, do brio histórico dos Ramires. Para tanto, adentrou-se naquela
“terra bruta” com a finalidade de enriquecer e, também, projetar-se como um exímio
realizador. A bravura executada em quatro anos, pelo menos na sua concepção, tornou-
se digna de ser também retratada no espaço literário criado por ele.

Na essência, Eça de Queirós, que se destacava na condição de homem culto,


diplomata, viajado e profundo conhecedor das questões de seu tempo, diga-se de
passagem, conhecia bem os assuntos referentes à África; afinal, o seu país tinha grandes
interesses por lá. Mas, a julgar pelo pouco que a obra A Ilustre Casa de Ramires nos
informa a respeito deste continente, nota-se que havia um inegável distanciamento das
narrativas do século XIX para com o tema relacionado ao mundo africano. Mais ainda,
mostra-nos o quanto o homem europeu ignorava quase tudo proveniente daquela terra
que lhe dava “desgosto” e era, no seu conceito, “boa para vender”. Ou seja, o foco
estava direcionado, sobretudo, ou tão-somente, para as questões econômicas que
poderiam ser gerados a partir da provável aproximação intercontinental. Segundo Carlos
Reis,
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Eça não [se] alinhou na retórica dos protestos exaltados e


inconsequentes contra a Inglaterra e os seus interesses, antes alertou
para a debilidade e para a inércia nacionais, responsáveis pela
incapacidade de afirmar um poder colonial mais desejado do efetivo
(REIS, 2014, p. 27).

Entendemos assim que o não detalhamento das aventuras da personagem


Gonçalo Mendes Ramires na África pode, a bom termo, também, ser interpretado como
uma tendência na ficção queiroseana em demonstrar o claro desacordo do ilustre autor
com aquele projeto de política ocupacional que começava a reacender a aptidão
expansionista lusitana. Diga-se de passagem, tal aptidão, ainda que remota, encontrava
espaço no imaginário social português. Na obra fica evidente a estratégia do narrador
queiroseano em se reportar ao assunto africano somente nos momentos finais da trama.
Tal postura nos sinaliza, inconteste, que o referido tema não era o mais importante a se
pensar naquele contexto. E, considerando a reflexão por este ponto de vista, fica a
sugestão de que tenha sido uma atitude intencional do talentoso escritor, como forma de
manifestar um disfarçado protesto pelo viés literário. Até porque, como vimos, o
pensamento de Eça de Queirós foi, por extensão, o pensamento da própria aristocracia
intelectual portuguesa, que não via com otimismo a insistência do governo de seu país
em estabelecer colônias em terras africanas. Por aquela ocasião, é bom que se diga,
Portugal tinha muitas mazelas internas sobre as quais precisava pensar e para as quais
precisava buscar soluções. A aventura em África, considerando as ponderações dos que
concordavam com o escritor, sairia cara sob muitos aspectos. Voltando à obra
queiroseana, Gonçalo Mendes Ramires regressou rico ao solo português; não ficaria
bem para ele, pelo menos na conjuntura ficcional, um retorno alardeado pela falência. A
ausência de detalhes sobre as condições efetivas da construção dessa riqueza ficou
obliterada dentro da narrativa e sugere que, no mundo real, as coisas não estavam tão
fáceis assim. Contudo, concordando com Edward Said (1995), a literatura produzida
nesse período contribuiu para fixar o imaginário de uma África subalterna.

Para o europeu do final do século XIX, havia um interessante leque de


opções, todas fundadas no pressuposto da subordinação e vitimização
do nativo. Uma delas é o prazer no uso do poder — o poder de
observar, governar, controlar e tirar proveito de territórios e povos
distantes. Destes derivam viagens de descoberta, a anexação, a
20

administração, um comércio rentável, expedições e exposições


eruditas, espetáculos locais, uma nova classe de governantes e
especialistas coloniais. Outra consiste num princípio ideológico para
reduzir e depois reconstituir o nativo como indivíduo a ser dirigido e
governado (SAID, 1995: 214).

Certamente, pelo que o cenário do processo de colonização portuguesa no


território africano apresentava no mundo real, as aventuras de qualquer indivíduo não
caberiam em apenas dois enxutos capítulos de um romance.

Continente partilhado, consequências irreparáveis

Se pelo viés literário a África ficou relegada a um certo apagamento dentro da


Europa, por outro lado, pelas diretrizes da história, percebemos que o cenário
internacional fervilhava de interesses financeiros, estratégicos, políticos e ideológicos
que os países deste continente perspectivavam em relação a ela.

A prova maior disso foi dada na Conferência de Berlim (1884/1885), que


repartiu o continente africano entre as potências coloniais e não respeitou as fronteiras
naturais estabelecidas muito antes da dominação europeia. As decisões políticas e
administrativas que foram tomadas neste evento mudaram radicalmente o panorama
geossocial dos territórios invadidos e suas consequências foram devastadoras e
traumáticas para diversos povos. Proposta por Portugal – que ainda sofria os reflexos da
perda do território brasileiro –, a Conferência notabilizou-se como um mecanismo
estratégico engendrado por este país, que intencionava legitimar seu domínio nas terras
africanas, para, assim, tentar fortalecer sua economia interna.

Vale lembrar que a corrida às terras da África e a implantação de colônias já


vinham ocorrendo antes dessa conferência e as consequentes alterações nos territórios
dominados, bem como na forma de tratamento interpessoal, há muito tempo se faziam
notar. Com relação às colônias portuguesas, por exemplo, Tânia Macedo (2008) escreve
a respeito de um período anterior à formação das cidades:
21

Antes disso, temos pequenos aglomerados urbanos em que era de


fundamental importância o porto, com seu posto de contabilidade cuja
principal função era o de “dar contas” do embarque de escravos e
“produtos da terra”. Somadas a ele, a cadeia e a igreja (representantes,
respectivamente, da Ordem laica e da divina) marcavam a presença da
“civilização ocidental” na África (MACEDO, 2008: 37).

O final do século XIX fica marcado, assim, pela necessidade e desejo de se


ocupar o espaço africano. Sobre estes assuntos, Albert A. Boahen (2011) observou a
pressa dos países europeus em estabelecerem seus domínios dentro da África:

Jamais se sucederam tantas e tão rápidas mudanças como durante o


período entre 1880 e 1935. Na verdade, as mudanças mais
importantes, mais espetaculares – e também mais trágicas –,
ocorreram num lapso de tempo bem mais curto, de 1880 a 1910,
marcado pela conquista e ocupação de quase todo o continente
africano pelas potências imperialistas e, depois, pela instauração do
sistema colonial. A fase posterior a 1910 caracterizou-se
essencialmente pela consolidação e exploração do sistema (BOAHEN,
2011: p. 1).

Aprofundando um pouco mais a sua análise, Boahem entendeu que o


colonialismo, na sua forma mais expressiva na África, perdurou desde a década de 1880
até a década de 1960, ainda que, no caso do sistema colonial imposto por Portugal, essa
instância temporal tenha sido mais extensa, prolongando-se até a segunda metade da
década de 1970. Contudo, concluiu ele, que há de se ter a compreensão de que na
“história de um povo e de um continente, esse período é mais do que breve” (Idem Op.
Cit. p. 919). Isto significa dizer, boahenamente pensando, que o espaço africano, tanto
quanto seu povo e a sua história, é bastante anterior à invasão dos países europeus. Não
é adequado imaginar que a partir da chegada do homem europeu os africanos
começaram a ter uma história. Nem no entendimento dos mais leigos em assuntos
africanos há espaço para tamanha aberração. Sabemos, no entanto, que a propaganda
colonial, pautada em algumas correntes ideológicas, sustentou este mito no imaginário
do não europeu. Mas não cabe aqui dissertar sobre essa questão, a não ser a constatação
22

de que as sequelas do regime colonial ainda se mostram devastadoras e irreparáveis.


Fato é que o que se sucedeu à África desde as primeiras relações de negócio, nos
primórdios do contato com o homem da Europa até a Conferência Berlim, foi terrível e
cruel; mas o que foi feito a partir deste evento não tem como mensurar. Como resultado
prático, povos, famílias, grupos étnicos e sentimentos foram divididos; traumas
indescritíveis. Por outro lado, em alguns casos, tal divisão colocou no mesmo território
grupos rivais, criando um gigantesco problema cujo reflexo ainda se faz perceber em
alguns países. A avassaladora ganância europeia fortaleceu a imposição de regimes
coloniais e não só partilhou a terra, mas, sobretudo, golpeou em cheio a alma do homem
africano, uma vez que desconsiderou sua história, sua cultura, sua tradição e suas
fronteiras geográficas; foi algo inimaginável, cujo efeito, por muito tempo – ou para
sempre – será sentido em todo o continente.

Outro agravante ao homem africano motivado pelo acordo geopolítico firmado


na Conferência de Berlim foi a política de incentivo à ocupação da sua terra. Razão esta
pela qual se conduziram para aquele continente um contingente de aventureiros,
comerciantes, militares, religiosos e várias outras representações, grande parte com
intuito de fixar-se em definitivo. No caso de Portugal, por exemplo, documentos dão
conta da saída de cerca de 110 mil habitantes portugueses com destino à África, até
1950. Motivos diversos os levaram para lá; entre eles podemos destacar os incentivos
tentadores por parte do governo da metrópole, que chegava a fazer, inclusive,
propagandas com esse fim.

Inevitavelmente, as novas formas de convivências em África foram se


processando; muitas das vezes um tanto hostis, tanto da parte dos africanos como da
parte dos europeus. Em alguns momentos, e não foram poucos, a resistência africana se
fez presente e motivou o enfrentamento, que era reprimido pela violência das armas do
colonizador. Isto nos leva a entender que não há razões para se afirmar que as relações
sociais foram amigáveis nas colônias. Os acordos firmados em Berlim, caso tinham por
previsão homogeneizar o continente africano, subestimaram um mundo que, por
diversos fatores, sempre se mostrou heterogêneo. Deixaram de considerar a história de
um lugar que sempre teve divergências entre povos. Algumas, ainda hoje, sem solução;
o que mostra, dada a complexidade que é o espaço africano, que o radicalismo daqueles
acordos serviu muito mais para acirrar ânimos do que para apaziguá-los.
23

E surge o musseque em Angola

Neste primeiro momento, estaremos falando do musseque de uma forma bem


geral, considerando-o como consequência direta da ausência de uma política
habitacional que fosse capaz de atender a necessidade emergencial da massa popular
angolana sem condição financeira de fixar moradia dentro das cidades. Este espaço, a
despeito da condição de pobreza que, em muitos casos, como veremos mais adiante, se
tornou extrema, se configurou como território de fomento da cultura africana, por ser
ele local onde as pessoas, boa parte oriunda de áreas rurais, se reagruparam e cultivaram
suas tradições. Quer isto dizer que, o musseque em Angola foi naturalmente ambiente
de resistência e preservação da identidade e do modus vivendi de seu povo.

A origem do messeque em Angola remonta a uma sucessão de fatores sociais,


políticos, culturais e históricos que, no conjunto, contribuíram para a formação e
crescimento desse lugar nos arredores das principais cidades do país, sobretudo na
capital, Luanda. Ora, se pensarmos que a Conferência de Berlim impulsionou a
necessidade de ocupação em África por parte dos países europeus, neste sentido, ela
contribuiu para o surgimento dos bairros pobres, uma vez que foi mais natural para as
elites que se formaram no processo colonial buscarem os espaços urbanos para se
assentar. Isto, em muito, contribuiu para o afastamento da grande massa, no geral, os
negros e os mestiços, das cidades. Estas se tornaram predominantemente habitadas
pelos novos colonos, predominantemente brancos europeus. Embora, como veremos, a
cor da pele, neste caso, não constituía um fator determinante de aquisição de recursos
suficientes para manter alguém morando em áreas urbanas, digamos assim. Na narrativa
de Luandino Vieira veremos casos de indivíduos brancos morando em musseque,
exatamente por não conseguirem se sustentar em locais mais caros, como se tornaram as
cidades.

A grande maioria de negros e mestiços formou um contingente expressivo de


pessoas que se viram negadas da condição efetiva de se estabelecer dentro dos centros
urbanos. Esta situação foi gerada tanto pela chegada de novos colonos, como pela falta
de condições financeiras. Sem opção, o contingente foi assentando-se nas regiões de
chão de barro vermelho, que ficavam nos arredores das cidades. Nasceram assim os
bairros pobres com barracos de pau a pique, inicialmente. Mas aos poucos essas
24

cubatas, como foram chamadas, se transformaram em habitações melhores. Com o


crescimento contínuo das cidades, vieram os consequentes afastamentos desses bairros
para locais mais distantes. Esses bairros foram denominados de musseques. Anabela
Quelhas (2006) fez a seguinte descrição:

O musseque é fechado sobre si mesmo, num entrelaçado complexo e


orgânico de ruelas, “pracetas” e corredores. As ruas são estreitas,
verdadeiros corredores ou espaços de passagem, com largura de um
homem, desconhecendo qualquer tipo de planeamento, respondendo
apenas à possibilidade de acesso peatonal aos espaços mais recônditos
do coração do musseque, ocupando apenas os pequenos espaços
sobrantes entre cada construção. Estes corredores são delimitados
pelas próprias construções e vedações, sustentadas por estacas, e
fechadas com diversos materiais recuperados nos lixos e abandonados
nas obras (lata e desperdícios), fazendo lembrar verdadeiras paliçadas,
interrompidas por janelas e portas com as mesmas características
(QUELHAS, 2006: s/n).

Mais avante, entenderemos melhor a dinâmica deste “entrelaçado complexo e


orgânico” e a sua importância, enquanto constructo identitário, na história recente de
Angola. Importou-nos até aqui entender o distanciamento na literatura do século XIX
para com o tema referente ao continente africano, uma vez que na esfera político-
econômica, que aguçava o interesse principalmente de Portugal, esta pauta mostrava-se
relevante. Vimos também como a Conferência de Berlim, de certa maneira, fortaleceu a
colonização em África e, no território angolano, ofereceu condições propícias para que,
ao longo do tempo, surgissem mais musseques nos arredores das cidades,
principalmente em Luanda. A opção em não aprofundar o tema a respeito dos
musseques neste capítulo deve-se ao fato de intencionarmos fazê-lo mais adiante.
25

Luanda, marco zero no percurso literário de José Luandino Vieira

“Lá onde não existe a


escrita, o homem está ligado
à palavra que profere. Está
comprometido por ela. Ele é
a palavra, e a palavra
encerra um testemunho
daquilo
que ele é.”

(Hampatê Ba)

A fundação de São Paulo da Assunção de Loanda ocorreu em 1576 e a


realização deste feito se de deu pela iniciativa do explorador português Paulo dias de
Novais. Este lugar, ainda no século XV, quando as primeiras relações de comércio se
iniciaram no litoral africano entre os portugueses e os nativos da terra, começou a
despertar interesses variados devido a sua localização. Tanto é que, no século XVI,
tornou-se um estratégico entreposto de abastecimento de escravos que eram enviados ao
Brasil para trabalharem nas plantações de cana-de-açúcar. A atividade comercial de
exportação de mão-de-obra escrava na região de Luanda, um tanto lucrativa aos
colonizadores, perdurou, com notória relevância até quase meado do século XIX. Em
1850 o tráfego negreiro, como ficou conhecido a tal prática, chegou ao fim. Não foi por
atitude espontânea dos seus defensores, mas, sim, por conta de pressões internacionais,
principalmente da Inglaterra, que se opunha com veemência contra esse negócio.

Contudo, Luanda continuou atraente aos interesses do colonizador. Por diversas


razões, pelas vias oficiais, instalaram-se nos seus termos expressiva quantidade de
militares, agências de missões religiosas, comerciantes de diversos segmentos e
autoridades governamentais. A despeito de toda esta demanda de pessoal, chegaram
também os familiares e muitos aventureiros, entre outros. Fato é que a ocupação desse
território foi cada vez mais se acentuando nos anos seguintes, causando ali visíveis
alterações no panorama geossocial, uma vez que a população negra, pobre e não
europeia foi sendo empurrada para a sua periferia. Este fenômeno, fortemente
influenciado pela política habitacional implantada nas colônias, posteriormente
espalhou-se para as cidades vizinhas. E os musseques luandenses começaram a se
26

consolidar como opção de moradia ao contingente excluído dos centros urbanos de


Angola.

Diante deste cenário, Luanda foi se firmando como uma cidade moderna; virou
centro administrativo fora de Lisboa. Projetou-se também como centro de irradiação
política e cultural. Mais do que isso, foi palco dos grandes acontecimentos que
marcaram a história do país, como veremos mais adiante.

Colono privilegiado, colonizado subjugado

E a história da colonização em Angola, muito marcada pelo que ocorreu em


Luanda a partir das últimas décadas do século XIX, passou a ter assim dois fatores
emblemáticos a considerar: o colono privilegiado e a do colonizado subjugado. A este
respeito, de forma até mais ampliada, o parecer do Grupo de Trabalho História e
Etnologia (1965), criado pelo MPLA, nos traz o seguinte esclarecimento:

O trabalho dos colonialistas neste período foi principalmente o


trabalho de consolidar o seu domínio sobre os povos africanos. Foi
também o de praticar a integração dos povos africanos nas estruturas
coloniais, capitalistas, de forma a que eles perdessem a sua unidade
política, onde ela havia, e não pudessem resistir ao aumento da
exploração. Por isso a história deste período (1896 a 1940) é a história
das lutas finais entre os povos livres ou quase livres e os colonialistas
(capitalistas); é a história da preparação para o ultra-colonialismo que
se seguirá no período seguinte e que se caracteriza pela exploração
directa do trabalho dos africanos, pela apropriação pelos capitalistas
dos meios de produção em geral, por uma segregação racial e por uma
negação total dos direitos do Homem (GTHE, 1965: 167).

E a dita integração dos povos africanos nas estruturas coloniais se deu de


variadas maneiras. Alguns exemplos são: a implantação do ensino escolar pautado no
modelo português, a obrigatoriedade da utilização do idioma do colonizador nas
repartições administrativas e, mais tarde, já com José Norton de Matos, convicto
27

defensor do colonialismo, determinou-se que o ensino aos colonos em África se desse


no idioma oficial, o português, proibindo assim o aprendizado em línguas nativas. É
óbvio que estas e outras medidas austeras não foram germinadas somente no solo
colonizado, faziam parte de uma orientação maior advinda diretamente de Portugal.
Este processo fica melhor explicado por Majhmout Diop (2011), ao contar-nos que em
Portugal

a política colonial tomará outros rumos em 1930, ocasião em que


António Salazar, conselheiro financeiro do regime militar que em
1926 derrubara a república liberal, se torna ministro dos assuntos
coloniais. Uma das suas principais medidas visava criar uma ditadura
civil semifascista – o Estado Novo – ela consistia em subordinar os
interesses econômicos das colônias aos interesses da metrópole. Para
enfrentar a grande crise econômica mundial e a interrupção do fluxo
de remessas de fundos portugueses de além Atlântico, Portugal
reduziria radicalmente os serviços da administração metropolitana e
imporia com todo o rigor uma nova política cujo objetivo era extrair a
riqueza da África (DIOP, 2011: p. 73).

Esta extração de riqueza da África tinha um alto preço a ser pago. E o elemento
mais penalizado a esta condição foi o colonizado, que sofreu na pele, por assim dizer, as
ações da administração colonial em busca dos lucros que poderiam ser gerados a partir
de seus esforços. Por isso, os anos que sucederam a década de 1930 foram penosos para
as colônias africanas, pois a metrópole portuguesa, em crise, passou a ter dependência
mais direta dos resultados da exploração nos territórios sob seu domínio.

Cabe ressaltar, no entanto, que essas questões não se deram de modo pacífico,
houve muita resistência e luta. Obviamente que a dita história oficial não costuma
mencionar o quanto a consolidação do processo colonial foi sangrenta e consistente.
Assim, retornando ao Grupo de Trabalho História e Etnologia, que se reportou à história
do país pelo ponto de vista dos africanos, encontramos a seguinte justificativa para a
conscientização de um revolucionário a respeito da necessidade de se tomar
conhecimento da “História de Angola”:
28

Conhecer a nossa história é, pois, saber como se desenvolveram os


vários povos que habitam em Angola; como lutaram entre si; como se
uniram; como lutaram contra o invasor europeu; como foram
influenciados pelo colonialismo; como reagiram a ele; como se
formou a unidade do povo que luta pela libertação dos mais
explorados. É saber como esse povo, que hoje luta heroicamente,
lança as bases de um grande país que será independente e que, ao lado
de muitos outros povos de todo mundo, participará na liquidação da
opressão e participará no Progresso da Humanidade (GTHE, 1965: pp,
5, 6).

Esta narrativa, com um tom grandiloquente, como se percebe, aponta a todo


instante para a disposição que os vários povos que habitam em Angola sempre
demonstraram em reagir e lutar contra o “invasor europeu”, contra a influência do
colonialismo. Ela também reporta-se a um entusiasmo em combater aquele que veio de
fora para aprisionar o povo. E mostra a certeza da vitória heroica que colocaria a nação,
independente, em condição de participar do “Progresso da Humanidade”.

Fica evidente então, entendendo os dois pareceres, que o projeto de Portugal,


que consistia em subordinar os interesses econômicos das colônias aos interesses da
metrópole, não se efetivou de maneira leniente, condescendente; esbarrou-se no
inconformismo e no espírito combativo dos angolanos. Quer isto dizer que o privilégio
e a subjugação a que nos referimos no início, que colocaram sob tensão a convivência
entre colono e colonizado no mesmo espaço, marcaram mais um dos episódios de
embates permanentes cujos pormenores, quer no texto maquiado da história oficial, quer
no heroísmo motivador do discurso autóctone, ficam na dimensão que a nossa
interpretação possa alcançar. E, sem dúvida, expõem mais uma condição de
insustentabilidade que o mundo colonial fomentou.

O progresso que desagrega

A cidade de Luanda, hoje capital de Angola, é o marco zero do percurso


literário de José Luandino Vieira. Esta importante metrópole, que se encontra localizada
na costa do Oceano Atlântico, possui um movimentado fluxo de pessoas e configura-se
como o maior pólo econômico do país. Sua arquitetura moderna, os condomínios de
29

luxo, a fixação de grandes empresas e a bela paisagem urbana fazem dela um lugar caro
e desejável para se viver. Especialmente para uma parcela pequena da população que
possui razoável poder aquisitivo capaz de fornecer condição efetiva de estabelecer
moradia nos seus termos. O atual perfil da elegante cidade, que ostenta progresso e
riqueza, contrasta com a imagem que se vê em outros lugares dentro do país. E, a
começar pelo enorme contingente que mora nos bairros mais pobres e mais afastados da
capital, alguns estudos dão conta de que em Angola detectam-se índices alarmantes de
pessoas próximas à linha da miséria.

Há cerca de cinquenta anos, no auge das transformações sociais implantadas


pelo colonialismo português, Luandino já denunciara, em Luuanda, publicada em 1964,
a violência provocada pela miséria e fome. No conto de abertura da obra, observamos o
drama da fome vivido por vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos, no conto com esse mesmo
homônimo. Sem condições econômicas de proverem o sustento básico, avó e neto
encontravam-se em lamentável estado de extrema pobreza e dor. Na fala do menino
Zeca essa situação de desespero fica mais evidente: “– Vamos comer é o quê? Fome é
muita, vavó! De manhã não me deste meu matete. Ontem pedi jantar, nada! Não posso
viver assim...” (Luu, 18). A narrativa não detalha as circunstâncias que levaram a
família a esse quadro de penúria. Porém, em entrevista, o autor contextualiza a vida das
personagens com o momento de apogeu econômico que alguns angolanos negros
experimentaram naquela primeira metade do século XX, antes de serem banidos da
condição econômica pelo acirramento do processo colonial:

Em Luanda havia uma camada de angolanos, africanos, que tinham


chegado ao comércio por grosso durante os anos 20-30 e que,
portanto, digamos que vavó Xíxi era uma senhora burguesa de uma
elite burguesa nacional. E o processo histórico fez com que ela
progressivamente fosse destruída, se fosse proletarizando e, claro, até
chegar àquela situação que é verdadeira, de depender, para matar a
fome durante a semana, de uma refeição que um neto jovem, perdido
numa cidade moderna como Luanda, tinha que angariar de qualquer
maneira, inclusive deitando mão daquilo que a lei chamava
delinquência, criminalidade (LABAN, 1977: p. 24).
30

Como se observa, a modernização de Luanda, mais do que um aspecto


geoeconômico capaz de promovê-la como metrópole de imensa projeção, trouxe
consigo instrumentos de exclusão os quais, progressivamente, foram funcionando no
sentido de achatar socialmente a “camada de angolanos, africanos” que, outrora,
gozavam de certa condição financeira dentro daquele espaço, porque trabalhavam e se
permitiram acumular. A mudança no panorama social fez de pessoas como vavó Xíxi, o
menino Zeca Santos e tantos outros que pertenciam àquela “elite burguesa nacional”,
legítimos filhos da terra, negros em sua maior parte, como veremos mais adiante,
elementos apagados no sistema colonial. Colocou-os às margens da economia, do
espaço social, do ambiente educacional e de quase tudo que lhes pudesse promover o
mínimo de cidadania. Em resumo, condicionou-os a um processo histórico lamentável,
conforme observou Luandino Vieira, que progressivamente, os empurrou para a
delinquência, os conduziu à marginalidade, os destruiu. Foi assim que, na natureza das
circunstâncias depauperáveis, retornando à ficção luandina, em relação à vida pregressa
de vavó Xíxi, concordamos com a síntese de Conceição Lima de que se trata de

um texto simples; e simples também são as suas personagens centrais:


Nga Xíxi, aliás, Dona Cecília de Bastos Ferreira, morou outrora no
Bairro dos Coqueiros, numa casa de pequeno sobrado, e possuía um
negócio de venda de panos; nessas lides, era auxiliada por várias
discípulas. O marido deslocava-se regularmente ao mato, onde
mantinha uma extensão desse negócio, e era sempre acompanhado de
um número considerável de empregados. Era grande o respeito que os
vizinhos nutriam pelos Bastos Ferreira (LIMA, 2009: 107).

Ou seja, o apogeu do passado na vida dessas personagens só reforça a


proposta da denúncia que a narrativa de Luandino Vieira insere nessa obra. Luuanda
aponta o que havia sido e o que passou a ser a história dos negros dentro da cidade de
Luanda a partir dos anos 20-30, quando saíram da condição de elite burguesa nacional e
chegaram aos anos 50 e 60 como miseráveis na sociedade colonial.

A escrita livre de um escritor preso


31

Luandino Vieira chega em África na segunda metade dos anos de 1930, por
volta de três anos de idade. Seus pais, como muitos portugueses naquela época, foram
para Angola com o objetivo de fixar-se na terra e recomeçar a vida. A sua convivência
com os africanos por toda a sua infância e juventude foram elementos determinantes
para esse escritor assumir-se angolano, como sempre se declarou; além de despertar
muito cedo uma consciência política e social. Observamos isso na entrevista que ele
concedeu a Michel Laban:

Era estranho realmente ouvir [...] meu pai falar com todos os
preconceitos raciais que a sociedade, que a sua educação, a sua
inserção numa sociedade colonial lhe dava, enquanto que,
simultaneamente, convivia com esses sobre os quais aplicava os
preconceitos e discriminação. Mais: não só convivia, dependia
(LABAN, 1980: 13).

Assim, com a estranheza das declarações do pai e, certamente, com as de outros


partícipes com a mesma linha de pensamento, Luandino Vieira viu a cidade de Luanda
crescer, viu o sistema colonial endurecer-se na forma de tratamento para com o
colonizado, engajou-se, com outros participantes do mesmo pensamento, na militância
política contra a opressão e desejou a independência de Angola, a pátria amada na qual
foi criado e pela qual se empenhou a lutar. Utilizou-se da sua arma melhor, a escrita, a
qual, segundo ele, já praticava desde os 13 anos.

Morador desde menino em musseque e testemunha atenta a tudo que estava


acontecendo a sua volta, esse premiado escritor apropriou-se dos fatos que marcaram a
sua vida, a sua infância, a sociedade angolana e o mundo daquela época como
ingredientes indispensáveis dentro dos seus textos. Atribuiu a eles um significado
próprio que, em sua narrativa ficcional, mostrou-se eficaz em pontuar a assumida
postura de discordância para com a política de colonização europeia no continente
africano, mais especificamente com o regime colonial no território angolano. Pagou
caro por isso; seu engajamento custou-lhe a liberdade. Porém, ainda assim, mesmo
afastado de bens tão preciosos ao homem – família, amigos, a liberdade enfim –,
continuou cultivando na sua produção artística os seus convictos posicionamentos
políticos e anti-coloniais.
32

Foi preso pela primeira vez em 1959. Por pouco tempo, se comparado à sua
segunda entrada no sistema prisional da PIDE, em 1961, quando foi condenado a 12
anos de prisão sob acusação de terrorismo. Passou por vários campos de detenção, até
ser finalmente solto em 1972. Ao longo dos anos em que esteve preso, escreveu a maior
parte de sua obra. E, concordando com Margarida C. Ribeiro e Roberto Vecchi (2015),
na esfera metafórica,

podemos dizer que existe um homem com o nome civil de José Vieira
Mateus da Graça que, à semelhança de uma parte consistente de
presos do Tarrafal, é um prisioneiro político, mas se evade para as
ruas de Luanda através dos vários livros que escreve neste lugar, sob o
nome de José Luandino Vieira (RIBEIRO e VECCHI, 2015: 22).

A liberdade percebida na escrita luandina, esta que “se evade para as ruas de
Luanda através dos vários livros” que escreveu, se confirmou pela construção de frases
geralmente justapostas, curtas, algumas invertidas, outras incompletas dando evidente
sinal de transgressão e ruptura metodológica com o sistema linguístico do idioma
implantado pelo colonizador ao país africano. A adesão opcional do autor pelo uso da
parataxe, como é conhecida a sequência de frases curtas e simples, sugere uma
aproximação maior entre a sua escrita e a narrativa oral, a qual ele procurou sempre
prestigiar. Entendendo de outra maneira, Luandino Vieira buscou reproduzir na sua obra
a voz do povo angolano, a voz que ele ouviu desde a tenra idade. O modo como ele
apresentou na escrita a fala de suas personagens muito se aproxima ao jeito das pessoas
falarem pelas ruas de Luanda, principalmente nos musseques. Desta forma, percebemos
o quanto o seu estilo de escrever, intencionalmente, se distancia das regras gramaticais
da língua oficial. Ou seja, em última instância, a escrita luandina se afasta do idioma
imposto pelo colonizador português para forjar, literariamente, um código linguístico
repleto de desvios, hibridismos e estruturas agramaticais buscando aproximar-se da voz
e expressão do homem comum de sua terra.

Ora, se entendermos esta questão como um projeto literário de um cidadão,


prisioneiro político, militante convicto e profundo conhecedor da cultura a qual espelha
na sua ficção, concluiremos que a narrativa luandina funda uma estética que evidencia a
fala percebida no cotidiano angolano, esta que era desprezada pelos cânones, ao mesmo
33

tempo que procura desconstruir o pedantismo gramatical da língua portuguesa, alçada


como idioma oficial em seu país.

Chegam os prédios, saem as casas de zinco

O estudioso de assuntos africanos, Waldir Freitas Oliveira (s/d), em visita às


principais cidades de Angola na década de 1960, percebeu a ausência de “negros
angolanos ricos” ou mesmo “ocupando posições importantes”. Assim disse ele:

Mas percorrendo as ruas de Luanda, Lobito, Benguela e Nova Lisboa,


pude verificar a completa distinção existente entre os elementos das
duas raças. Os negros são invariavelmente os ocupantes dos mais
insignificantes postos e ofícios, e mesmo as suas habitações estão
agrupá-las em bairros específicos, situados na periferia das cidades.
Não há negros angolanos ricos nem ocupando posições importantes
quer na administração quer no comércio local. Se bem que haja
mestiços, geralmente não originais de Angola, ocupando uma posição
bem melhor que a dos negros (OLIVEIRA,[s/d]: p. 34).

Este depoimento nos esclarece o quanto a questão do negro angolano dentro de


Angola, naqueles anos que antecederam a independência do país, estava insustentável.
Oliveira pode “verificar a completa distinção existente entre os elementos das duas
raças”, a saber, negros e brancos, que, dentro do sistema colonial, como já vimos,
estavam em instâncias diferentes no que diz respeito aos direitos humanos. E esta era
uma temática impulsionadora da revolta popular angolana, entre outras tantas. No ano
seguinte à visita do estudioso, em 1961, deu-se início à luta armada, que foi
fundamental para o processo de construção da independência do país.

Landino Vieira também atentou para a mesma realidade que Waldir Oliveira
observou. E, na condição de militante inquieto, empenhou-se nas ações possíveis contra
esta e outras injustiças; em nenhum momento se conformou. Provavelmente, a sua
sensibilidade de escritor o capacitou a enxergar e a compreender um pouco mais adiante
do que enxergou e compreendeu o ilustre visitante e estudioso de assuntos africanos.
Não é, pois, um mero acaso a presença enfática do tom combativo, envolto na
linguagem artística, que percebemos em sua narrativa. Combate este que nos foi
34

revelado dentro de uma moldura estética que, tal como em um quadro no qual as cores
certas preenchem os traços de uma paisagem que precisa ser observada nos detalhes,
esse escritor habilidoso expôs, com refinada elegância, mas de formas contundente, a
realidade que precisava ser radicalmente mudada. Foi assim que ele, com inegável
talento, encontrou, através da arte, o caminho eficaz para dar ciência ao mundo do
quanto as relações de convivência dentro de Angola estavam seriamente inflamadas.

O autor de Luuanda viu também o quanto a sua cidade amada, Luanda, e outros
centros, estavam à mercê das políticas habitacionais que, antes mesmo daquela época, já
atuavam sistematicamente em prol do descentramento da população mais pobre. Tais
políticas em muito favoreceram a transformação dos espaços urbanos em redutos
majoritários da etnia branca que, por extensão, formava a elite financeira do país.
Assim, com muito pouca ou nenhuma opção, os antigos moradores de cidades, em
grande parte os negros, assentaram-se nas regiões ao entorno delas. Estes novos espaços
de habitação foram gradativamente crescendo e, além de moradias da camada popular
com menos poder aquisitivo, foram se consolidando como redutos identitários. Devido
as suas características naturais, como a de se implantarem em locais com predominância
de barro vermelho no solo, receberam o nome de musseques; neles, se consolidaram a
preservação da cultura e das línguas africanas, além de se estabelecerem como locais de
resistência ao sistema colonial.

E retornando a essa Luanda que excluiu gradativamente os seus habitantes com


menos recurso, percebemos, de forma mais clara, através dos relatos salientados na
produção ficcional luandina, os efeitos da chegada do progresso nessa metrópole
quando atentamos para a narração embargada transmitida no depoimento do menino-
narrador do romance Nosso Musseque. Ao relembrar aquela infância de aventuras e
deleites, em que ele e seus companheiros entregavam-se sem responsabilidade aos
impulsos da idade, põe-se agora a lamentar profundamente as rápidas transformações do
espaço e o consequente afastamento dos seus antigos amigos: “Hoje, olho triste [...]
para [os bairros] Cinco, Kinaxixi, Bairro Operário, mas os meninos já não estão lá
para brincar como antigamente” (NM, 154).

Os amigos, bem como a maior parte da vizinhança, como podemos constatar, se


mudaram para outros bairros; foram para locais mais afastados e, certamente, com
muito menos estruturas de saneamento. Foram vítimas do apetite voraz do capital
35

financeiro que promoveu a expansão imobiliária em Luanda e nos arredores. Ainda no


campo do lamento em relação à perda, outro narrador, agora em A Cidade e a Infância,
observa, com tristeza, o novo cenário urbano que relegou a antiga geografia local às
imagens e situações do passado:

Hoje muitos edifícios foram construídos. As casas de pau-a-pique e


zinco foram substituídas por prédios de ferro e cimento, a areia
vermelha coberta pelo asfalto negro e a rua deixou de ser a Rua do
Lima. Deram-lhe outro nome.
[...]
Ali cresceram as crianças. [...] Casa de zinco com grande quintal de
goiabeiras e mamoeiros. Laranjeiras e limoeiros. Muita água. Rodeado
de cubatas, capim e piteiras, era assim o musseque Braga, onde hoje
fica o luminoso e limpo Bairro do Café (CI, 49).

A Luanda de hoje tem “prédios de ferro e cimento”, é outra configuração. O


antigo musseque Braga virou um bairro diferente, um novo local que é “luminoso e
limpo”. Esta cidade transformada, moderna e rica afastou-se, em definitivo da
população de baixo poder aquisitivo, virou território segregado de uma minoria branca.
Não perdeu, certamente, a sua dimensão simbólica que a história e a literatura lhe
conferiram; todavia, aquela metrópole, que ergueu-se como espaço metonímico da
nação angolana, que encantou aventureiros, invasores, colonos, colonizados e escritores
está com nova roupagem, identifica-se mais com o capital predador que lhe acoberta do
que com o seu povo que lhe devota.

A Luanda de Luandino Vieira

Godofredo de Oliveira Neto, com razão, expressou na revista Teia Literária,


edição de 2009, um parecer conclusivo que traduz com precisão o entendimento que
alguns teóricos, sobretudo os de tendência mais filosófica, tentaram, sem efeito,
explicar. Ele afirmou que “não se pode esquecer de que o compromisso do texto
literário é só consigo próprio” (p. 367). Tal assertiva aponta indubitavelmente para a
ausência de restrição na escrita literária, uma vez que no manto da ficção abriga-se o
ilimitável, considerando a própria dimensão que o termo sugere. Dito de outro modo,
dentro do processo imaginário há uma liberdade legitimada que credencia o escritor a
36

criar, recriar ou mesmo (des)criar, sem fronteiras, mesmo ante às circunstâncias em que
tais atividades são eclipsadas por alguma espécie de censura insana.

É neste sentido que a Luanda de Luandina Vieira apresenta-se ressemantizada na


pauta literária. Sem ignorar os intempéries que macularam a História da África, em
particular a de Angola, este angolano por opção apropriou-se do compromisso que a
Literatura tem com ela mesma, conforme Oliveira Neto, para se permitir, livremente,
criar, no seu espaço da escrita, uma Luanda que é a metonímia da nação. A cidade
luandina se situa, assim, numa dimensão espaço-temporal deveras além do limite
geossocial que a realidade ignóbil apresenta. Nesse lugar, então, no qual a liberdade
reina absoluta, onde a fluidez das ideias desconhece a barreira do encarceramento a que
o autor estava submetido, surge a sua Luanda cercada de musseques que, na amplitude
da sua inspiração artística, formam a simbiose toponímica que faz de ambos – Luanda e
musseques – um espaço único na percepção do gênio criador. A respeito do musseque
em si, na apreciação de Tânia Macedo (2008), dos anos de 1950 até os inícios dos anos
de 1980 este encontrou-se bastante tematizado em termos quantitativos. Inclusive, para
designar essa produção, pode-se mesmo falar de uma “prosa de musseque”. Macedo cita
que

por meio da representação literária do musseque como centro da


cidade da escrita, assiste-se não apenas a uma escolha estética por
parte dos produtores culturais, mas também à construção de um
completo modelo ideológico, caracterizando uma “imagem do
mundo” própria, nacional (MACEDO, 2008: 122).

Embora a cidade de Luanda tenha se revelado imponente em um antigamente –


de aventuras, histórias, cantos, mitos, lendas, ritos, vizinhança, conversações, meninos,
brincadeiras, ralhas, musseques... – evocado pela narrativa ficcional, José Luandino
Vieira jamais deixou de considerar na sua obra que aquele lugar tinha problemas sérios
que demandavam soluções, que estava colonizado e que tinha nos seus musseques a
blindagem contra os efeitos da colonização. Aquele cotidiano tenso em que ele, na
prisão, sofria tanto quanto os companheiros livres, uma vez que nos dois lados a
opressão se mostrava atuante, municiou seu imaginário com recordações de episódios
do passado os quais ele ressignificou na produção literária, ao mesmo tempo que lhe
37

serviam de necessários escapes mentais. Sobre este tempo cruel, do campo de


prisioneiros do Tarrafal, escreveu ao poeta e amigo, Ernesto Lara:

Eu sei, como tu, que é muito difícil viver na época e no território que
nos coube – depois da nossa infância e de uma adolescência e uma
juventude onde se criaram algumas ilusões que o tempo veio destruir.
Mas isso demonstra que tínhamos visto mal e devemos procurar
novamente o meio, o caminho, para aqueles fins, pois esses estão
certos. É difícil, assim escrevendo e nestas condições, dizer-te mais
(LABAN, 1977: 95).

A época “que é muito difícil viver” foi retratada nas três obras que serão
tomadas aqui como geradoras de reflexões: A Cidade e a Infância, Nosso Musseque e
Lourentinho, Dóna Antónia de Sousa Neto & Eu. Isso mostra o quanto Luandino Vieira,
de um modo geral, buscou equilibrar na sua narrativa a Luanda na qual estava a
testemunhar sofrimentos e vivenciar prisão, ou seja, aquela que foi o território que
coube a ele e ao poeta, com o topônimo cuja carta ao amigo encarregou-se de lembrar;
este que a infância, a adolescência e a juventude possibilitaram a criação de “ilusões
que o tempo veio destruir”.

Luanda, portanto, foi o lugar em que Luandino Vieira passou a infância e


também projetou o seu olhar para o mundo colonial em que estava inserido. Olhar este,
ao mesmo tempo sensível e crítico, que se fez evidenciar na ficção pela experiência dos
meninos; alguns na condição de narradores, outros, como protagonistas de alguma
aventura pelas ruas do musseque.

Podemos depreender assim, para concluir, que a Luanda de Luandino configura-


se como um espaço duplo sobre o qual, pela perspectiva ficcional, encontram-se
faceados a realidade de um presente tensionado pelo combate ao sistema colonial
português e o regozijo de um passado que celebra o espaço da infância em um
antigamente bom de se viver.
38

3
O espaço da infância
Fronteira fluida entre o mundo real e o espaço ficcional

“Tudo isso, em criança, fui vivendo


e mais tarde fui relatando. Isso me
deu a riqueza – o que eu penso ser
a riqueza – de uma experiência que
se prolongou até aos dez, doze anos
e que serviu para a aquisição de
valores culturais africanos...”
(Luandino Vieira)

O espaço da infância na obra de José Luandino Vieira constitui uma fronteira


fluida entre o mundo real e o espaço ficcional. Isto se deve ao fato de que este escritor
viveu as experiências de menino criado em musseque, o que contribui para que suas
lembranças da infância se diluam naturalmente para o contexto da sua escrita.
Somando-se a estes fatores, testemunhamos, pelo exercício da leitura, uma habilidade
artística capaz de produzir narrativas com um requinte estético que impressiona o leitor.
José Luandino Vieira é um alquimista na arte de construir literatura. Não obstante, foi
na fluidez dessa fronteira, na qual se mesclou os fatos ocorridos com as cenas
inventadas, que se deu a inexplicável alquimia da escrita desse autor. E o espaço da
infância, assim, assentado em um antigamente, revela-se numa instância ficcional
amplamente explorada por personagens ávidas de aventuras, mas também portadores de
pensamentos e discursos críticos. Pensamentos estes os quais, na essência, traduzem a
postura combativa do escritor contra o regime colonial europeu no território africano.

Como veremos, a infância nessa fronteira fluida apresenta-se em primeiro plano.


Ela está quase sempre atrelada a um contexto que lhe exige mobilidade. Na narrativa
luandina a criança pensa, age, interage. Algumas vezes, mostra-se surpreendentemente
capaz de problematizar o mundo adulto e chega a fazer coisas incomuns para a sua
idade, mas que são perfeitamente concebíveis na esfera ficcional. Em outros momentos,
revela-se um ser inocente, frágil e essencialmente infantil; acomoda-se ao fato de
revelar aquilo que é comum a uma criança: brinca, estuda, aventura-se e questiona.
39

No fascínio de transcorrer por esta fronteira fluida – que ora se apresenta serena,
clara e retilínea, e ora se mostra agitada, opaca e sinuosa – adentramos no espaço da
infância revelado por José Luandino Vieira. Para tanto, pesquisaremos três narrativas
ficcionais escritas por ele entre os anos de 1954 e 1972. Com relação a este período, faz-
se importante observar de que se trata de um recorte histórico/ficcional dos fatos que se
estenderam até os três anos antes da independência de Angola. Esta época nos chama a
atenção por revelar a disposição do povo angolano em lançar mão de armas e acreditar
que se aproximava o fim da colonização. Foi um tempo assombroso para o território
angolano. Momentos terríveis de endurecimento do regime colonial, de prisões, de
combates sangrentos entre os movimentos revolucionários e as milícias de defesa do
estado português. Cabe ainda pontuar, como mostram as narrativas luandinas, que havia
a urgência em se discutir, por parte daqueles que lutavam pela independência de
Angola, algumas questões relevantes para o futuro da nação. Não havia clareza, por
exemplo, a respeito do que se pretendia construir após a efetiva consolidação da saída
do opressor.

Considerando os fatos apresentados, cujo contexto histórico e ambiente social


foram esteticamente retratados pela ficção, buscaremos entender, pela perspectiva das
crianças, a evolução do pensamento luandino. Neste sentido, veremos como o escritor
utilizou-se, em suas narrativas, do espaço para demonstrar a experiência – ou o ponto de
vista – de personagens não-adultas para problematizar alguns temas a respeito de
posicionamentos ideológicos, políticos, sociais e de outras naturezas que careciam de
reflexões mais aprofundadas. Tudo isso ainda naqueles anos em que se aproximava a
desejada queda do sistema colonial no país.

A evolução da linha de pensamento observada nas obras de Luandino Vieira


naquele período tem como ponto de partida a compreensão de que o referido autor
passou toda sua infância, adolescência e juventude no musseque, em Luanda. Por isso,
apropriando-se dessa experiência, ele se inscreve nas histórias que produziu. Portanto,
orientadas pelas circunstâncias, as fases vividas pelo escritor foram se transformando e
revelando pareceres críticos a respeito do passado, do presente e do futuro da nação.
Sobretudo, conforme nos apontam os mesmos textos literários, levando em
consideração aquela realidade de crises e embates que dificultavam quaisquer
prognósticos naqueles momentos tão cruciais para a então indefinida história angolana.
Diante da avidez dos combates em prol da liberdade, a perspectiva crítica de José
40

Luandino Vieira remete-se ao que estava ocorrendo, sem abdicar do que tinha ocorrido
e sem abrir mão do que ainda estava por ocorrer. O momento demandava luta e
reflexão.

José Luandino Vieira conferiu ao espaço da infância uma dimensão que


ultrapassa os contornos do período em que as narrativas aqui analisadas se pautam. Esta
assertiva ficará mais esclarecida nas análises das obras escolhidas para estudarmos a
evolução do pensamento desse escritor nessa fase da pré-independência angolana.

A primeira obra a ser estudada é A Cidade e a Infância. Nela, mostraremos que o


pensamento do autor nos anos de 1950 – considerando o contexto histórico da produção
da narrativa – apontava para certa crença na possibilidade de se construir o futuro da
nação angolana com base nas experiências do passado. Passado este que, na instância
ficcional, assenta-se em um antigamente glorioso nas aventuras dos meninos do
musseque. Ainda que atravessado pelo ambiente de guerra, que potencializava em
demasia algumas problemáticas circunstanciais, esse passado revelava-se, na essência
da escrita luandina, revestido de plenitude e anseios percebidos na dimensão das
crianças. É assim que Luandino Vieira insere na pauta literária as memórias de uma
época feliz dentro de um território – o musseque – de resistência cultural. Este lugar,
mesmo experimentando diversas transformações na forma de convivência entre os pares
que nele habitavam, ou servindo de cenário para as emblemáticas questões advindas do
mundo colonial, revelou-se um ambiente que ainda guardava a pureza de um espaço
típico. O musseque era repleto de significado, majoritariamente habitado por entes
angolanos e compartilhado por meninos ávidos por aventuras. Ou seja, tratava-se de um
espaço o qual, pelo exercício do imaginário do escritor, tornou-se mais ampliado, livre,
atemporal e quase que paradisíaco:

Por detrás da Agricultura existia a Grande Floresta. Grande Floresta


para nós miúdos de oito anos que fizemos dela o centro do mundo, a
sede do nosso grupo de “cobóis”. Mafumeiras gigantes, cheias de
picos, habitadas por sardões, plim-paus, picas, celestes, rabos-de-
junco (CI, 11).

Em seguida, a partir desse lugar etéreo, o “centro do mundo”, tomaremos ciência


do segundo momento da evolução do pensamento de Luandino Vieira. No romance
41

Nosso Musseque, escrito nos anos 1961/1962, entenderemos o que foi essa segunda fase
do autor. Trata-se do instante em que ele se propõe a problematizar uma série de
assuntos referentes à realidade colonial e também expõe as incertezas sobre o futuro
político da nação angolana. Nesta obra, verifica-se que a narrativa mostra-se orientada
pela percepção de um narrador, o qual, em semelhança com a experiência pessoal do
próprio escritor, chegou também no musseque com a família quando ainda era bem
menino. Adentramos, então, uma vez mais no espaço da infância. Agora pela
perspectiva dessa personagem, um garoto que não só narra os fatos que ocorrem ao seu
redor, mas que se mostra totalmente inserido no ambiente mussequino, onde viveu as
melhores etapas de sua vida. O relato fascinante, que às vezes cede a voz para outros
narradores, nos conduz ao conhecimento do estilo de vida dos habitantes do musseque.
E, a partir dele, percebemos algumas situações que apontam a relação de tensão e afeto
os quais, em vários momentos, afloraram naquele território de acontecimentos
surpreendentes.

Nosso Musseque é uma narrativa composta de algumas histórias aparentemente


desconexas. Também é notória a ausência de linearidade. Nele, o autor suscita alguns
questionamentos a respeito do modelo de mundo que seria mais adequado para a
sociedade pós-colonial. Afinal, a despeito da perspectiva de liberdade, havia a
necessidade inerente de se pensar como se daria a condução da pátria independente.
Eleva-se ainda nessa obra o espaço do musseque. Este lugar fica evidenciado como um
ambiente complexo, com sérias divergências entre os seus convivais, acolhedor de
outros indivíduos que perdiam a condição de se manterem na cidade. Por outro lado,
como veremos, trata-se de um território que foi capaz de resistir o sistema colonial
preservando as raízes culturais do autóctone angolano.

A terceira fase do pensamento luandino tem como orientação de leitura a obra


Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto & Eu, escrita em 1972. Nesta narrativa,
composta por duas novelas, verifica-se a consolidação da ruptura de José Luandino
Vieira com a utopia revolucionária. A primeira narrativa é uma história que retrata as
aventuras de uma personagem fora dos termos de Luanda. Trata-se de um rapaz que, à
distância, tece algumas reflexões a respeito de como a cidade de Luanda perdeu as
características de sua época de infância. Na segunda, retrata atitude insana de uma
personagem, na verdade uma menina, que, acometida de doença mental, acaba com a
festa de casamento de sua irmã. Festa esta em que os convidados são oriundos de
42

diversos lugares, dentro e fora de Angola. Destaca-se também a presença de indivíduos


angolanos pertencentes a grupos étnicos distintos. Nessa celebração matrimonial, todos
se respeitam cordialmente e comentam sobre diversas questões a respeito do momento
político pelo qual o país estava atravessando naquele momento.

Pela proposta das duas novelas, que trazem para a cena literária dois temas até
então inéditos nas narrativas luandinas – o ambiente rural e a loucura –, perceberemos a
dimensão das inquietações do autor no que dizia respeito àqueles momentos de tensões
e incertezas pelos quais passavam a sociedade angolana. Daí a sinalização do seu
desencanto e da sua ruptura com os ideais revolucionários, os quais se pretendiam
implantar no país após a retirada do opressor colonial. Na verdade, percebe-se o
ceticismo do escritor em relação a tudo o que estava acontecendo naqueles instantes
finais da colonização portuguesa. Em outras palavras, José Luandino Vieira explicita a
sua discordância com as propostas que os movimentos de mobilização pela
independência angolana intencionavam implantar após a consolidação desta.

A proposta desse artigo é explicar, com um pouco mais de detalhes, os caminhos


que percorreremos na dissertação de mestrado. Nesta, buscaremos entender a evolução
do pensamento de José Luandino Vieira desde a sua estreia como escritor, em 1960, até
a escrita de Kinaxixi Kiami, em 1972. A escolha deste recorte temporal – 1954 a 1972 –
se deve ao fato do mesmo encobrir, com eficiência, um período emblemático na história
de Angola, que se via às vésperas da sua independência. Desse modo, todos estes
fatores conjugados tornaram tal período revestido de um simbolismo o qual este
trabalho se encarregará de contemplar através da análise das três obras supracitadas, que
formam o corpus literário escolhido. Contudo, a despeito da correlação factual, que
alinha a trajetória pessoal do ficcionista com o processo histórico da nação, elegemos o
espaço da infância como ambiente fecundo nas suas narrativas. Isto nos ajuda na
compreensão sobre como se deu a transformação do olhar de Luandino Vieira para os
desígnios políticos que se desenhavam no seu país naqueles momentos áridos de
consolidação da luta pela libertação do território angolano

O espaço da infância
43

Como já dissemos, Luandino Vieira confere ao espaço da infância uma


dignidade que ultrapassa ideologicamente o limite da periodização etária. Quer isto
dizer que este autor impõe como fronteira entre o mundo da criança e o mundo do
adulto tão-somente a dimensão temporal a que eles se fixam. Assim, o narrador que se
remete ao passado, ao antigamente, permite-se blindar das intempéries do presente e
joga luz àquele momento solene, de convívio intenso, agradável e amplo que era o da
infância no espaço do musseque. A condição de pertencimento a esse lugar,
perspectivado pelo olhar de um indivíduo não-adulto, é surpreendente. Os garotos,
desobrigados da responsabilidade inerente a esta fase, tornam o fato de viverem no
musseque, algo maravilhoso. Sejam eles autóctones ou achegados, sentem-se alguém
especial. Guardado as características físicas, emocionais e comportamentais que lhes
são peculiares, tais personagens configuram como portadoras do pensamento do autor
em relação à vida local e ao mundo colonial. Não é, pois, gratuita a constatação de que
os “miúdos de oito anos” – que poderiam ter dez, doze... dezesseis –, absolutos naquele
território, que lhes era “o centro do mundo”, são representantes desse ponto de vista
livre e autônomo que se revela, sem comedimento, em vários momentos nas narrativas
luandinas.

A bem da verdade, a menção da idade das personagens nas obras que


analisaremos não parece ser a grande preocupação de José Luandino Vieira; poucas são
as citações que a ela se reportam. O autor, ao que parece, optou por deixar o seu leitor
livre para imaginar a melhor faixa etária que, por ventura, pudesse se adequar à
personagem – ou às personagens – dentro de cada contexto que imaginou. Todavia, até
como forma de compensação conceitual, tornou-se recorrente nos seus textos a
utilização de nomenclaturas mais clássicas, digamos assim, como: menino, garoto,
miúdo, rapaz, moço, jovem e termos correlatos. Encontramos também no romance
Nosso Musseque, por exemplo, duas expressões kimbundas: monandengue (criança,
jovem) e mona (criança, filho), traduzidas pelo próprio autor no glossário situado no
final da obra.

Ressaltamos que não é do interesse da pesquisa fomentar discussão a respeito do


que vem a ser uma criança. A psicologia, a sociologia e outras ciências analisam melhor
essa pauta. Conduzir o tema nesta direção desviará a intenção da nossa pesquisa, visto
serem muitos os conceitos; alguns, inclusive, complexos demais para desenvolvê-los
aqui. A proposta do trabalho, como já mencionamos, é investigar a apropriação do
44

espaço da infância nas narrativas de José Luandino Vieira. A partir desse contexto,
tentar entender o seu pensamento em relação às questões sociais, políticas, históricas,
culturais, entre outras, inerentes ao território angolano na era colonial. Tudo isto
levando-se em consideração as transformações das circunstâncias e do ponto de vista do
próprio escritor, revelados por meio de algumas de suas obras que foram produzidas no
período de 1954 a 1972.

A opção pelo uso da expressão delimitadora espaço da infância deve-se ao fato


de a mesma nos parecer abrangente e satisfatória. Isto considerando as discussões que
estamos propondo neste trabalho. O espaço da infância será entendido aqui como o
ambiente da liberdade ampla assentada no universo da criança. A delimitação etária, já
vimos, estende-se até o limite do chamado mundo adulto. Neste sentido, os dois
sintagmas nominais em questão são, amiúde, duas instâncias em oposição permanente,
tanto no significado real, como no espaço ficcional, porque trazem no seu escopo mais
do que a simples ideia da fronteira da idade. Ou seja, também na figuração da
linguagem, espaço da infância e mundo adulto elevam-se nas narrativas luandinas como
etapas diferenciadas da vida. Eles se contrastam e, por isso mesmo, se revelam na
dimensão atemporal possibilitada pela instância literária.

A criança de Luandino Vieira

José Luandino Vieira, pela sua criação dentro do contexto sociocultural


angolano e por ser um profundo conhecedor das tradições de seu povo, entendeu a
importância da criança pelo princípio filosófico africano. Este, segundo Salvato Trigo,
considera que a criança está inserida num processo natural cosmogômico que interpreta
a ideia de passado, presente e futuro como marcas temporais totalizantes. Neste
entendimento ancestral,

a morte e a vida são duas faces duma mesma realidade: a criança vem
dos Antepassados e o homem volta para eles. Essa visão simultânea
não significa, porém, que o homem africano não distinga a tripla
dimensão temporal. O que acontece é que ele pouca importância
concede a essa distinção (TRIGO, 1984: 149).
45

É esta criança que o escritor angolano valorizou sobremaneira em sua obra. Ela
vem dos Antepassados, prova indelével, na orientação cultural africana, de que a vida se
perpetua na continuidade. José Luandino Vieira colocou a criança, quase que no total de
suas narrativas, na posição de protagonista ou em condição relevante de proximidade
com ela. Mais do isso, ele a outorgou como porta-voz do seu pensamento. Muito, ou
quase tudo do que ele pensou em termos de estética literária, se fez transmitir pela fala
ou pela ação de uma criança. Algumas vezes, encontramos uma personagem adulta que
se volta para um antigamente desejado e se faz enunciar por meio de um menino em
resgate ao seu próprio passado. Não é, portanto, exagero afirmar que o olhar do
ficcionista para o espaço da infância aparece adornado por um certo respeito e
reverência. É quase uma instância mítica. Por meio desse espaço, o escritor se propôs a
transmitir o seu pensamento carregado de críticas ao sistema colonial. Ao mesmo
tempo, a partir dele, imaginou um modelo de sociedade alicerçada nos valores da
tradição ancestral do autóctone angolano. Fica claro, então, que, ao retratar o
antigamente, Luandino Vieira traz intencionalmente para a cena literária a noção de
que, conforme nos afirma Rui Bueti,

o onírico da infância, com o seu igualitarismo racial e social [...], é a


plataforma base que permite a futura ruptura de consciência face às
agruras do mundo real, pois que a dignidade e a igualdade humanas
encontradas na infância se esboroam na realidade colonial. O mundo
adulto aparece como a negação da infância, porque, entre outras
contradições, ele é a guerra [...] (BUERTI apud LABAN, 1980: 283).

É desse universo “onírico da infância” que advém o citado respeito, traduzido


em reverência. E não só pelo mundo da criança e a tudo o que ele representa, mas,
também, pelo passado de morador de musseque. Este que se configura como um espaço
representativo da identidade e da cultura de Angola, o qual a obra luandina colocou em
evidência. Não há dúvida, portanto, que, para Luandino Vieira, a sua infância no
musseque foi a melhor fase de sua vida. Por isso mesmo, este autor de A Cidade e a
Infância elegeu tal fase como fonte de inspiração indispensável para assentamento da
sua narrativa. Disso nos convencemos, não somente pelos diversos excertos nos quais
ele mesmo depõe, mas também pelo reforço de algumas declarações nesse sentido que
foram documentadas por pesquisadores e/ou admiradores de sua obra. Helena Riáusova,
46

para ficarmos em apenas um exemplo, afirma que, a Luandino Vieira, em “primeiro


lugar, interessa-lhe o processo de formação das noções éticas. Daqui a grande atenção
que o autor presta à infância, período decisivo para colocar as bases do caráter, de
toda a personalidade” (RIÁUSOVA apud LABAN, 1980: 296). Sendo assim, mais do
que simples lembrança, o passado – e com ele tudo que representa a infância –, para
além da herança cultural angolana, foi a fonte primaz da escrita desse escritor inquieto,
que habilmente reconstruiu o antigamente, questionou o agora e duvidou do depois.

O espaço da infância é o assunto que tomaremos aqui como ponto em comum de


A Cidade e a Infância, Nosso Musseque e Lourentinho, Dona António de Souza Neto &
Eu, apesar da constatação inequívoca de que estas três obras aproximam-se em outros
temas. Um deles encontra-se na relação emblemática entre o presente e o passado que
estas narrativas colocam em evidência. Nelas, quase sempre, ocorre um flash back para
responder, questionar, justificar ou apenas lembrar-se de algo, alguém ou fato que se
encontra em espelhamento com alguma situação do presente. Outro ponto em comum é
a interrupção na sequência das histórias permitindo a inclusão de outras, originando,
assim, narrativas sobrepostas. Esta ação reforça o que entendemos aqui como intenção
do escritor em aguçar a curiosidade do leitor. Este se vê seduzido a buscar, pelo
exercício da leitura, o desfecho das cenas literárias. Enfim, entre outros elos de
aproximação temática nas obras supracitadas, destacamos o discurso anti-colonial. Este,
por vezes sutil e, às vezes, mais explícito, não fica despercebido. E traz consigo a
eminente preocupação de Luandino Vieira com o que, naquele momento, convinha
chamar de futuro da nação angolana.

Vale ainda reforçar que o espaço da infância também será tomado na dissertação
como representação metonímica do contexto histórico de Angola. Isto por que Luandino
Vieira o tomou como referência dos fatos que ocorreram e dos que estavam ocorrendo
até aquele momento da concepção de sua escrita. Partindo desse ponto, o autor
esteticamente conseguiu alinhar suas narrativas à sua experiência de vida e levou para a
cena literária suas memórias, seus questionamentos, seus ideais revolucionários, suas
desilusões, suas discordâncias. Em resumo, ele tratou de utilizar-se do texto ficcional
como ambiente adequado para veiculação da sua postura crítica. Ao mesmo tempo,
retornou ao antigamente para exaltar o seu desejo de liberdade para o país. Aquele
momento passado, o espaço da infância em si, fica entendido por ele como a dimensão
adequada para a realização de alguns feitos não toleráveis ao mundo adulto. E, por isso,
47

tornou-se a instância da fluidez do pensamento; bem como o lugar propício a certa


permissividade comum às aventuras das crianças.

A prerrogativa que exime a imputação de pena ou responsabilidade às ações


aventureiras comuns no espaço da infância encontra relativo respaldo na cultura
ocidental cristã levada à África pelas agências missionárias europeias. Estas, orientadas
pelo princípio bíblico, consideraram as crianças como portadoras de uma pureza nata;
logo, herdeiras, por excelência do reino dos céus. É o que nos mostra o episódio narrado
no evangelho de São Matheus:

Trouxeram-lhe então [a Jesus] algumas crianças, para que lhes


impusesse as mãos, e orasse; mas os discípulos os repreendiam. Jesus,
porém disse: Deixai os pequeninos, não os embaraceis de vir a mim,
porque dos tais é o reino dos céus (MT 19: 13, 14)1

Lembramos, no entanto, que definição de infância modificou-se ao longo do


tempo e, por isso, encontra-se carregada de conceitos escorregadios. Remete-se à Idade
Moderna, por exemplo, o momento em que a criança passou a ser entendida como um
ser social e reconhecida na sua vontade própria. Contudo, ao que se observa na evolução
das sociedades, ocorre, no geral, a atribuição de uma ingenuidade para essa fase. Neste
sentido, compete à família, bem como ao grupo social no qual a criança encontra-se
inserida, a responsabilidade pelo seu desenvolvimento cultural, físico, psicológico e
social. Todas estas áreas, conjugadas, são indispensáveis à sua sobrevivência e se
consolidam por meio das agências sociais, como escola, da igreja, do clube e dos
vínculos afetivos diversos. Conforme Manuel Sarmento,

O mundo da criança é muito heterogêneo, ela está em contato com


várias realidades diferentes, das quais vai aprendendo valores e
estratégias que contribuem para formação de sua identidade pessoal e
social. Para isso contribuem a sua família, as relações escolares, as
relações de pares, as relações comunitárias e as atividades sociais que
desempenham, seja na escola ou na participação de tarefas familiares.

1
Evangelho Segundo São Matheus (Bíblia Sagrada, edição revista e atualizada pela Sociedade Bíblica do
Brasil – SBB).
48

Esta aprendizagem é eminentemente interativa; antes de tudo o mais,


as crianças aprendem com as outras crianças, nos espaços de partilha
comum (SARMENTO, 2004: p, 14).

Contudo, na representação ficcional luandina, a ideia de pureza e ingenuidade


aplicada ao espaço da infância fica diluída. Em vários momentos, as personagens que
pertencem ao mundo infantil, ou infanto-juvenil, para usarmos uma terminologia mais
apropriada à intermediação das duas fases, se encontram em condições de se
posicionarem criticamente ante ao mundo dos adultos que as cercam. E isto pode ser
alçado como uma das formas de Luandino Vieira problematizar a cultura religiosa
imposta pelo colonizador português. Veremos que as crianças na obra deste autor não só
estudam, brincam, brigam e convivem com os familiares; são, também, pequenos
indivíduos que questionam, confrontam, criticam, agem e reagem, conforme as
circunstâncias. Na verdade, revelam-se nas narrativas como elementos inconformados.
São capazes de realizar feitos notórios nos contextos socioculturais nos quais estão
inseridas. Não é, portanto, gratuito que, em aproximando a literatura com os reais
acontecimentos, percebemos que tais atitudes ocorreram nos momentos em que a
história de Angola encontrava-se solicitante de ações efetivas. Afinal, havia um cenário
de tensões e embates que demandava todas as formas de mobilizações possíveis
naqueles instantes que antecederam a independência do país. Por isso, as personagens
dessa fase pré-adulta, digamos assim, representam a disposição em não esmorecer. É o
que demonstrava aquela sociedade, então colonizada, ante ao recrudescimento da ação
colonial contra os que militavam em prol da libertação de Angola.

O limite do urbano e a expansão do periférico

José Luandino Vieira não ignorou na sua narrativa, com menor ou maior grau de
intensidade em determinadas épocas, a necessidade de evidenciar uma realidade que
precisava ser contada, entendida, questionada e transformada. Em Angola, na verdade
quase em todo território africano que passou pelo processo de colonização, a arte
literária desenvolveu-se em diálogo com a história. Particularizando o caso angolano,
que tomaremos como depositário da reflexão a que se pretende neste trabalho, Rita
Chaves diz que a sua “literatura confirma-se como um exercício crítico, empenhada na
49

desmontagem da mitologia da sociedade colonial e na constituição do projeto que se


abriu com a perspectiva da libertação” (CHAVES, 2010: 13). Não é, contudo, exagerada
a menção de que, na história recente desse país, o consenso apregoa a ausência de uma
vertente única a respeito dos fatos que se lhe acometeram. Por esta razão, endossando a
prerrogativa de Antonio Cândido (2006), quando se exagera a verdade ela chama mais
atenção. Fica-nos então o alerta para o cuidado em se fazer qualquer afirmação
definitiva sobre o que se deu no mundo angolano. Afinal, é o próprio teórico que
complementa:

Mas também, nada mais perigoso, porque um dia vem a reação


indispensável e a relega injustamente para a categoria do erro, até que
se efetue a operação difícil de chegar a um ponto de vista objetivo,
sem desfigurá-la de um lado nem de outro (CÂNDIDO, 2006: 13)

Neste entendimento de que não existe história única, perceberemos com o


escritor angolano que a infância no musseque foi uma experiência coletiva. Portanto,
digna de ser narrada por muitas vozes. Sem desfigurá-la de um lado nem de outro,
conforme Cândido, ela, através das muitas personagens, segue o seu curso. A
desmontagem da mitologia da sociedade colonial, retomando Chaves, tornou-se um dos
empenhos da ficção luandina.

As três obras que iremos estudar reportam-se a um ou mais de um musseque.


Em A Cidade e a Infância e em Nosso Musseque ocorrem fatos mais ampliados a
respeito da rotina cotidiana dos moradores dentro desse espaço. Já em Lourentinho,
Dona Antónia de Sousa Neto & Eu, pelo fato da personagem principal aventurar-se
mais pela região rural de Angola, o foco narrativo se estabelece, em boa parte da obra,
distante do eixo urbano. Entretanto, em vários instantes, o jovem Lourentinho permite-
se lembrar da cidade onde nasceu e passou a sua infância. Trata-se do bairro de
Kinaxixi, no entorno de Luanda, onde havia uma linda lagoa. Fica bem clara nessas
narrativas a existência de uma fronteira entre os dois espaços que se opunham no regime
colonial: o musseque e a cidade. Neste sentido, entendendo o asfalto como limite
simbólico, o conflito geossocial entre a classe pobre e a classe rica era, por extensão,
uma espécie de classificação étnica entre o negro africano e o branco europeu no mundo
colonial. E, como uma das consequência dessa tensão permanente no processo de
50

colonização, percebemos a expansão do espaço periférico, que se afastou cada vez mais
afastado do centro urbano. Este, por sua vez, ficou cada vez mais restrito a um pequeno
grupo. Não obstante, o negro foi a maior vítima desse processo: perdeu o relativo
prestígio social, a cidadania e o seu espaço original. Presenciou a ascensão do homem
branco, foi colonizado e, nos casos mais extremos, perdeu sua referência ancestral, a
qual sistematicamente foi sendo substituída pelos valores ocidentais.

A memória, o questionamento e a ruptura

A escrita de José Luandino Vieira, além de tudo o que foi dito até este momento,
se destaca ainda como portadora da sua assumida posição política. Com esta postura, ele
logo se notabilizou como um escritor que, artisticamente, reivindica os valores
ancestrais africanos do respeito com terra, com a cultura, com as línguas nativas e com
as tradições religiosas. Também deu voz aos autóctones, cujos costumes foram
subvertidos ou anulados pelo intento do projeto colonial. Tornou-se, assim, um escritor
combativo e empenhado nas suas convicções de fazer valer tudo o que diz respeito à
promoção de seu país. Pagou caro; o preço foi a restrição de sua liberdade. Ao
tomarmos as três obras, A Cidade e a Infância, Nosso Musseque e Lourentinho, Dona
Antónia de Sousa Neto & Eu, na condição de corpus literário deste trabalho,
pretendemos também render tributo a esse gênio da arte de narrar. José Luandino Vieira
é o griot da moderna ficção angolana.

Para concluir, a nossa análise sobre o espaço da infância se dará em A Cidade e


a Infância, que é uma obra composta de dez contos escritos entre os anos de 1954 a
1957 e que teve a sua publicação em 1960. Nela adentraremos as memórias de uma
infância feliz que nos remete às aventuras irresponsáveis dos meninos nas florestas, rios
e lagoas. Veremos as histórias contadas por um mais velho, as cantorias e danças em
torno das fogueiras, os desafios das advinhas enigmáticas, os sons da língua kimbunda,
o mundo africano, enfim. É também nesta obra que começamos a ver a chegada da
cidade; inicia-se, assim, o processo de afastamento do ambiente urbano dos territórios
ocupados pelas classes economicamente mais baixas e, como consequência, o
distanciamento étnico-social gerador de muitos preconceitos. Observaremos ainda a
tentativa de negação da história do homem negro africano, que foi induzido ao processo
51

de assimilação dos valores do branco europeu, além de outras pautas retroalimentadoras


das injustiças e barbáries direcionadas ao ente colonizado.

Em o Nosso Musseque verificaremos o modo de como Luandino Vieira, pelo


olhar da infância, revela um espaço do musseque que é vivo, vibrante e influenciador.
Espaço este totalmente estimado pelos seus moradores e que, pela instância da ficção,
elevou-se como reduto de resistência ao colonialismo. O musseque nesta obra foi alçado
como guardião das raízes culturais do povo angolano. Mas, ao mesmo tempo, se
mostrou como um lugar heterogêneo, capaz de acolher indivíduos não negros que a ele
se achegaram devido à ausência de recursos suficientes para lhes manter morando na
cidade. Foi também em Nosso Musseque que o autor lançou uma série de
questionamentos sobre a realidade colonial e propagou a necessidade da mobilização
popular em prol da libertação efetiva da nação.

Já em Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto & Eu, José Luandino Vieira
não só questionou e criticou o sistema colonial, como também, pela dimensão da
infância, sinalizou a sua descrença no futuro da sociedade angolana. Constatamos isso,
por ele inserir na pauta literária o mundo rural de Angola. E, a partir dele, reflete sobre
as transformações impostas pelo progresso excludente na cidade de Luanda.
Encontramos isso na primeira narrativa, Kinaxixi Kiami. Na segunda, Estória de
Família, o dolorido quadro da patologia da mente, protagonizada por uma menina
apresentada como louca, simbolicamente demonstra o pessimismo do autor ainda antes
da efetiva independência do país se consolidar. Assim, veremos nesta ficção que a
libertação da nação angolana, tão almejada, demonstrava clara evidência da necessidade
de intervenções menos ufanista. Ou seja, havia a necessidade de se pensar no futuro
daquela pátria. Por isso, esta obra será entendida aqui como o momento de ruptura do
autor com a utopia revolucionária e, ao mesmo tempo, sua ânsia de ver o seu país com
condições efetivas de equacionar suas dificuldades internas.

Em resumo, por meio dessas três obras, buscaremos entender as transformações


do pensamento do autor sobre todo o processo que antecedeu a independência de
Angola. Vale ainda mencionar, entretanto, que, em pontuais momentos, outros títulos da
produção literária de Luandino Vieira terão seus conteúdos agregados aos objetivos
deste trabalho. O espaço da infância será o grande ambiente para que possamos entender
que a literatura produzida por esse escritor, no que se refere ao período da pré-
52

independência, é dotada de características peculiares que carecem de estudos mais


aprofundados. Neste sentido, a presente dissertação se apresenta como mais um esforço
na tentativa de compreensão sobre o que foi a sociedade colonial angolana nas décadas
de 50, 60 e 70 pelo olhar atento e crítico desse brilhante e renomado escritor: José
Luandino Vieira.
53

A Cidade e a Infância
A memória que ativa o passado e problematiza o presente

“Pois existem coisas


que não se explicam,
mas que se
experimentam e se
vivem.”
(Hampatê Ba)

A Cidade e a Infância

Trata-se de uma obra composta por dez contos. Eles são apresentados em ordem
cronológica de criação e que abrangem um período que vai do ano de 1954 a 1957. Esse
conjunto de narrativas publicado em 1960, portanto um ano antes da segunda e mais
duradoura prisão do escritor, reporta-se a situações cotidianas ambientadas, em grande
parte, dentro dos bairros pobres nos arredores da cidade de Luanda. No panorama geral,
as aventuras dos meninos angolanos servem como pano de fundo para variados temas
sobre os quais o autor, quase sempre pela observação da criança, propõe-se a
desenvolver. Criança esta, geralmente um menino, que anda acompanhado do seu grupo
e transita livremente pelos espaços do musseque. Suas ações são relembradas pela
memória afetiva de um narrador que, já adulto, volta-se para o passado e traz para a
cena literária diversas situações que conduzem à reflexão a respeito do presente e do
futuro de Angola. Neste sentido, a partir de um fato ocorrido no cotidiano, esse narrador
resgata o passado das aventuras, brincadeiras e desafios vivenciados em um
antigamente da infância livre. É assim que na narrativa de Luandino Vieira,
concordando com Miriam Barbosa, a “memória arranca o passado de sua imobilidade
de coisa morta. [E] tem o poder de ressuscitar, de fazer renascer a vida” (BARBOSA,
2002: 17). Outrossim, nesta memória ativa, esse autor inseriu a sobreposição do tempo
tomando como base a experiência de um passado pulsante que habilmente, pelo talento
sensível comum na sua escrita, foi conectado com o presente elevando a narrativa para
uma dimensão temporal que mescla a ideia de passado/presente/futuro quase que num
só instante.
54

Os dez contos que compõem a obra inaugural de Luandino Vieira, A Cidade e a


Infância, como já dissemos, trazem no seu escopo as aventuras desmedidas de uma
infância com vários momentos felizes e outros nem tanto. Nesses contos deparamos
com a apreensão crítica das crianças em relação às problemáticas da realidade do
mundo adulto. Por extensão, trata-se de narrativas que, de certa forma, refletem a
importância das experiências do passado vivenciadas pelo próprio autor no tempo de
menino, quando este transitava pelos ambientes dos musseques em Angola, bem como o
seu pensamento combativo e discordante com o sistema colonial implantado por
Portugal no seu país.

Tudo isso em criança, fui vivendo e mais tarde fui relatando. Isso me
deu a riqueza – o que eu penso ser a riqueza – de uma experiência que
se prolongou até aos dez, doze anos e que serviu para a aquisição de
valores culturais africanos, valores angolanos, que continuamente a
margem africana da cidade estava elaborando, e que, depois, no liceu,
quando chegou a idade em que eu comecei a ler outras coisas, fui
interpretando de outro modo, e que foram realmente o germe da minha
consciência política. Quero dizer que eu, e os outros, quase todos os
que viviam ali naquele bairro, quase todos os que eram crianças
naquele tempo, fizemos primeiro a aprendizagem de valores que, mais
tarde, viemos a ver que estavam correctos (LABAN, 1977: 15).

É assim que as reflexões suscitadas em cada conto neste primeiro livro vão em
direção ao entendimento de que o espaço da infância tornou-se o ambiente adequado
para a veiculação de tudo que José Luandino Vieira pensa a respeito dos fatos que
marcaram os períodos recentes anteriores à independência angolana, bem como um
grande tributo à cultura do povo angolano. Nesta intenção, os protagonistas, negros,
brancos ou mulatos, quase sempre meninos moradores de musseques, mesclam-se
dentro das estórias e nelas são alçados à condição de porta-vozes desse escritor que
discorre na pauta literária a respeito de várias temáticas que pontuam as complexidades
de um lugar subjugado pela colonização e, por isso, tensionado em todas as instâncias
observadas da relação conflituosa entre colonizado e colonizador, como veremos a
seguir.

A obra A Cidade e a Infância é um mosaico de temas complexos referentes ao


mundo colonial. O retorno ao “antigamente” atualizado pela memória do elemento que
55

narra é a chave necessária que Luandino Vieira abre ao passado para revelar, por meio
das experiências da infância, respostas e possíveis soluções ao presente sempre tenso,
simbolicamente configurado como mundo dos adultos. Mais ainda, as dez narrativas são
a postura crítica de um autor que, através da estética literária, se empenha em subverter
o discurso colonial que intenta apagar os valores culturais da nação angolana, bem como
as suas línguas e as suas tradições. E junto com as histórias resgatadas nos chegam
também o protagonismo de cada menino que corre nas areias vermelhas dos musseques,
mergulha na lagoa do Kinanxixi ou adentra a Grande Floresta, espaços, entre outros
mais, que se permitem o uso maior da liberdade, da resiliência e da resistência de um
povo que, naquele momento, como cita o narrador de História de Angola, é a “História
da luta das massas angolanas contra o avanço do colonialismo, do capitalismo, do
imperialismo, e, portanto, da exploração do homem pelo homem” (1965: 179).

A Cidade e a Infância, como dissemos, é um livro complexo e bastante


desafiador para o leitor que não conhece minimamente os processos históricos que
deram em Angola, sobretudo a partir do final do século XIX. No seu conjunto, como já
foi citado, variadas temáticas são suscitadas nesta obra. Embora, pela dimensão do
contexto histórico, os contos que a compõem remetem-se aos anos de 1950 e 1960,
períodos emblemáticos nas conjunturas política e social desse país, que vivia a
expectativa de ruptura definitiva com o sistema colonial imposto por Portugal. Basta
recordar, para efeito de acréscimo, que em 1961, ano em que José Luandino Vieira
inicia o cumprimento da pena prisional de doze anos, condenado pelo seu envolvimento
na mobilização política contra o regime opressor português, registrou-se também o
começo do confronto armado que visava a libertação definitiva da nação, fato este que
se consolidou em 1975, ano da independência angolana.

Outro fator que torna A Cidade e a Infância uma obra de difícil compreensão,
dentre alguns mais, é a questão da linguagem; área emblemática quando se refere a este
autor, que genialmente conjugou o idioma português com o código linguístico bantu,
conferindo à sua escrita um caráter híbrido que lhe tornou uma marca. Em A dupla
tradução do outro cultural em Luandino Vieira, Conceição Lima (2009) diz que este
escritor “contribuiu para o desmantelamento da dicotomia centro/margem, que a
entidade colonizadora convencionou: é o discurso da oposicionalidade a delimitar o seu
espaço” (LIMA, 2009: 17). Lima entende esta postura de Luandino Vieira, na verdade
56

sua estética, como uma espécie de atitude política contra a língua do opressor. Por isso
ela complementa, destacando que ele,

ao usar com destreza estratégias discursivas subversivas para


descentralizar a norma portuguesa, colocando realce sobre a
importância da língua e da escrita na construção da identidade, ter
contribuído para a criação e afirmação da ‘norma’ angolana (Idem Op.
Cit., p, 17).

Fato é que adentrar a análise da obra luandina pelo mecanismo da sua linguagem
é um caminho amplo e desloca, em muito, a real intenção deste trabalho, que é a de
tecer uma reflexão sobre o espaço da infância na obra de José Luandino Vieira.
Todavia, fica o registro a despeito da genialidade artística desse que é considerado um
dos maiores nomes da moderna literatura angolana, que conseguiu compor as suas
narrativas em duas estruturas linguísticas muito diferentes entre si, sem deixar o leitor à
deriva na possibilidade de incompreensão ou mesmo ausente do deleite que a sua ficção
proporciona.

Sem memória, sem passado e sem história

Iniciando a incursão na obra A Cidade e a Infância, nossa análise sobre o


espaço da infância começa a partir do primeiro conto intitulado de Encontro de acaso.
Nele, o narrador, em primeira pessoa, tem um encontro casual com um amigo de
infância. Encontro este que, logo no primeiro momento, já é marcado por um
desconforto, como ele notifica: “Um encontro cruel que me lembrou a meninice
descuidada” (p. 11). Trata-se de um amigo que esse narrador não diz o nome, mas a ele
se refere como “meu chefe da Grande Floresta” (p. 13). Isto por que esse interlocutor
foi um líder entre os meninos, era alguém respeitado pelo grupo. E agora, no momento
presente da narrativa, revela-se alguém desprovido de memória, um moribundo: “o
produto das fases que atravessara” (p. 13). O narrador fica triste diante do
distanciamento do amigo, e desabafa: “Já não me conhecia. Era-lhe estranho. E eu
quase chorava ao ver ali o meu chefe da Grande Floresta, que não me cumprimentava,
farrapo da vida” (p. 13).
57

Nota-se que a imagem atual do ex-chefe entre os meninos não está em


consonância com a imagem que ele trazia registrada em sua memória, que era a de
alguém bem apresentado, vigoroso, robusto, um líder. Agora, ante a presença frágil e
dispersa do amigo, somente a aparência o remete à imagem da infância: “Ele não
parecia ver que eu era o mesmo. Mas eu (...) via o mesmo chefe” (p. 13). Sobre a
identificação que a aparência do amigo evocava, Freud a conceitua como “a mais
antiga manifestação de uma ligação afetiva a uma outra pessoa” (FREUD, 2011, p.
46). Ou seja, ao identificar nesse moribundo interlocutor a imagem do antigo “chefe da
Grande Floresta”, o narrador retoma as experiências memoráveis que selaram a amizade
de ambos naquela infância de brincadeiras e aventuras. E lamenta o fato de que, naquele
momento, todas as lembranças estavam apagadas na mente do amigo. Isto gera o fator
angustiante que vai permear todo enredo desse conto: a necessidade de se restabelecer o
afeto de uma amizade tão marcante que jamais poderia ser esquecida ou, por ora,
apagada. A questão agora é tentar entender como e o porquê desse estado tão arruinado
do antigo parceiro.

Repare que aos olhos desse amigo, o narrador não passa de um ilustre estranho;
porém, aos olhos do narrador o – agora estranho – ainda é o ilustre chefe. O amigo vê
tão-somente um homem, entre tantos outros que atravessam o seu caminho; o narrador,
ao contrário, revê o grande amigo, a sua história e o passado em comum. A presença do
amigo lhe remete à memória, ao espaço da possibilidade de recordar. Alguma coisa é
despertada a partir daquele acaso encontro; são duas imagens identificadas numa única
representação: aquela que se cristalizou na infância e que agora se apresenta recuperada
pela memória do narrador; e aquela que se mostra na figura real do amigo, como um
transeunte pedinte. No mesmo encontro: chefe e farrapo humano; aventuras de infância
e desventuras de adulto; passado e presente. Atentemos para o fato de que o termo
farrapo, usado pelo narrador para definir o estado atual do amigo, traduz a ideia de uma
pobreza extrema, abatimento; sugere algo que vai além do visível, é a deterioração do
ser. Por outro lado, a expressão chefe da Grande Floresta remete à ideia de autoridade,
alguém revestido de poder, posição gloriosa. Assim, lado a lado na narrativa,
chefe/farrapo marcam as duas fases do amigo-interlocutor; glamour e decadência em
um mesmo indivíduo. E marca também duas épocas: aventuras de infância (ascensão) e
desventuras de adulto (decadência). Tudo isso consolidado diante de um narrador
surpreso e um interlocutor sem memória.
58

A frustração de não ter ali toda a avidez de uma amizade reconstruída encontra
alívio na possibilidade que o narrador se permite vivenciar, através da ligação afetiva
que ele recria a partir da imagem do chefe. Olhar para o interlocutor era enxergar um
“farrapo da vida”; olhar para o amigo era enxergar o chefe, aquele que “conseguiu
subir a uma mafumeira”. São dois lados da mesma moeda: o amigo atual/o chefe do
passado, fundidos no mesmo ente ali presente. Com qual deles a estrutura psíquica do
narrador está com condições efetivas de lidar: O amigo atual, “o produto das fases que
atravessara” (p. 13); ou o amigo do passado, aquele que “desde pequeno que era o
chefe do bando” (p. 11)? A “ligação afetiva” autenticada pela identificação do
indivíduo louvada por Freud fica neutralizada neste contexto pelo desconforto dual
desse narrador.

No artigo Psicanálise e teoria da literatura: dois saberes solidário, Leonardo


Mendes (2005) comenta o esforço que o mesmo Freud desprendeu para expressar seus
estudos sobre a mente humana, ao passo que, segundo este, o “escritor criativo” parece
ter acesso “a verdades psicológicas profundas” (p. 1). Trata-se de um processo criativo
que não passa pelos fundamentos da verdade científica; o poeta verdadeiro, diz-nos
Mendes, é posicionado nos pressupostos freudianos como um “psicólogo intuitivo”.
Ou seja, alguém dotado de uma capacidade de perscrutar os labirintos da alma humana
pelo exercício do fazer literário. Fato é que estudos posteriores vão dando conta de
como, a partir de Freud, literatura e psicanálise oferecem vasto caminho de análises e
conclusões. Não obstante, as tentativas de confrontá-las nos pontos em comum e/ou nos
pontos afastados norteiam inúmeros artigos, dissertações e teses, acreditamos, desde
àquela época; isso mostra que essa aproximação não é recente, conforme Frayze (2005,
p. 45). Ainda hoje, dada a complexidade do tema, as duas têm gerado reflexões e
fascínios longe de conceitos definitivos. Citando Eagleton (1994, p. 262), Mendes diz
que para Freud o inconsciente “trabalha por meio de uma lógica estética, condensando
e deslocando imagens a seu bel-prazer, com inventividade do artista mais experiente e
oportunista” (Mendes, 2005, p. 3). É neste deslocamento inconsciente de “imagens”
com “inventividade” que a dicotomia marcada pela felicidade e frustração vai
construindo possibilidades reflexivas caras ao narrador-personagem perante o encontro
acidental com o amigo de infância o qual a pauta literária, em o Encontro de Acaso,
colocou em evidência.
59

Outra linha de reflexão suscitada nesse texto nos conduz à ausência de memória
desse interlocutor. Curiosamente, seu nome também não nos é revelado. Sem detalhes,
o narrador informa que as “companhias que a vida lhe trouxe modificaram-no” (p. 12).
Trata-se, assim, de uma história pessoal anulada. Os notórios feitos (subida na
mafumeira, ataques ao Kinaxixi, mergulhos na água suja, reuniões na Grande Floresta)
só fazem sentido na memória evocativa do narrador. Isso nos remete ao regime colonial
que se sobrepunha a Angola nos doloridos anos anteriores a 1975. O colonizador
europeu, combativamente inclinado à neutralização da vontade política, social,
econômica e cultural da população, fatos estes que, por si só, já trazem sequelas
gravíssimas à construção da identidade individual e, por extensão, à identidade coletiva,
tentou reduzir (em alguns casos conseguiu) o colonizado ao perverso estado de
assimilação de seus valores. E, em casos mais extremos, arquitetou o afastamento do
homem africano de suas tradições, de suas línguas nativas e de suas memórias. Segundo
Salvato Trigo:

O colonizado, na circunstância, interiorizará, pouco a pouco, um


enorme complexo de culpa que o leva a desejar esquecer-se mesmo
que teve um passado. Por outro lado, a poderosa máquina de
propaganda do sistema colonial, desde a burocracia administrativa à
escola e à missão religiosa, congrega esforços a fim de provocar no
colonizado uma contínua amnésia cultural (Trigo, 1981, p. 28).

Assim, ao interlocutor-amigo, desmemoriado e ofuscado, só lhe resta pedir: “–


Olá, pá, não pagas nada?!” (p. 11). Não há dúvida de que qualquer indivíduo que se
encontra na condição de farrapo da vida sinaliza claramente a marca do fracasso
pessoal; é a decadência materializada na imagem do ser. A ideia de tragédia, ao
analisarmos este conto, se consolida. Ora, se entendermos que as impossibilidades do
presente se concretizam no passado, chegaremos à conclusão de que ao recorrer à
infância o narrador encontra elementos essenciais de construção de felicidade. Em
outros termos, é como se no passado todo o ideal de felicidade fora consumado. Dito
isto, ao considerarmos que o território angolano, naquele contexto, estava debaixo de
um regime autoritário e opressor, o narrador, de certa forma, nutre a necessidade
eminente de desprender-se desse presente. Isto marca o ideário literário dessa obra que,
denunciando o inconformismo com as agruras do regime autoritário e cruel, reforça o
60

fato importante do quanto a memória constitui um paradigma de resistência ao sistema


colonial. Ao evocar as experiências do passado, Encontro de Acaso estabelece
frontalmente a denúncia de quão trágicas e finitas estavam sendo as experiências
vivenciais daquela sociedade; muito distante do gozo e da liberdade que se assentaram
na infância. Para o narrador, o cotidiano estava fadado ao limite; segundo ele, vivia-se
“cada um com a sua cela nesta imensa prisão” (p. 12). Neste sentido, interlocutor e
narrador sofrem as agruras da ausência: o primeiro não tem passado e o segundo não
tem presente. São duas carências que se revelam nesse fatídico encontro de acaso. E a
dita verdade psicológica profunda, tão estimulante na literatura e necessária à
psicanálise, parece conduzir a felicidade de um encontro inesperado à inquietude do
questionamento viável, na qual a inventividade do artista oportunista, conforme Freud,
genialmente nos gera estranheza e fascínio.

José Luandino Vieira, assim, retoma o passado para problematizar o presente. E


mais uma vez também se verifica que na dimensão do espaço da infância este autor
encontra elementos essenciais para questionar aquela conjuntura social perversa a que o
colonizado estava fadado e que se empenhava em lhe degenerar o seu passado; no caso
analisado, um ente subtraído de suas lembranças e totalmente desarticulado do seu
presente. Um homem pedinte, errante, sem memória, sem história e, por extensão, sem
identidade; totalmente dependente do olhar complacente do outro. Esta situação de
penúria absoluta encontra ressonância no que diz Memmi:

A desvalorização do colonizado se estende assim a tudo o que ele


toca: inclusive ao seu país, que é feio, quente demais, espantosamente
frio, malcheiroso, de clima viciado, com a geografia tão desesperada
que o condena ao desprezo e à pobreza, à eterna dependência
(MEMMI, 2007: 104).

A imagem da tragédia social que Luandino Vieira evidencia na literatura


encontra balizamento naquilo que Memmi denuncia enquanto prática recorrente no
mundo colonial. Ou seja, a implantação de um sistema de exclusão que a todo momento
enxergou o colonizado como alguém indigno e desprezível, totalmente desvalorizado
dentro da moldura social que adornava o quadro da colonização.
61

Alienação, subversão e remissão

O conto seguinte é O Despertar. Trata-se do relato pessoal de um ex-prisioneiro


no seu primeiro despertar fora da prisão. Suas primeiras impressões dão conta das
modificações que o lugar em que morava sofreu durante o período em que esteve na
cadeia. Assim a narrativa dá conta desse primeiro momento: “Abre a janela do quarto
perdido na confusão do bairro e olha. Fora o Sol está a nascer. E com ele renasce a vida
adormecida” (p. 19). Como se vê, esse homem encontra-se atônito em um ambiente
agitado, mas está disposto a dar um sentido para sua vida adormecida. A partir daí, ele
entrega-se aos pensamentos sobre o seu passado e faz reflexões sobre sua ingenuidade
de menino e as questões do mundo adulto que lhe destinaram, como conseqüência de
uma vida desvairada, à privação da liberdade.

De pequeno, sonhos de brinquedos a brincarem no coração, pasta a


tiracolo, a escola. Depois o Liceu. Momentos de alegria. Mas com o
tempo veio o conhecimento dos factos e dos homens. Perdeu o
interesse no estudo porque morreram as suas ilusões. A família nunca
lhe vaticinara grandes futuro. Não tinha qualidades de trabalho (p. 20).

Veja o quanto no antigamente a sua fase de menino era abrangente e boa. Havia
brincadeiras, sonhos, escola e alegria. Mas “o conhecimento dos factos e dos homens” o
desencaminhou. Então, em sequência, desinteressou-se pelo “estudo porque morreram
suas ilusões”. A ponto de a própria família desacreditar na possibilidade de um futuro
promissor. E, para complicar ainda mais, ele sequer desenvolveu aptidões para
trabalhar. Ou seja, tudo, outrora, estava indo bem; sua vida seguia o rumo adequado:
brincava, frequentava a escola, tinha sonhos. Em resumo, era uma criança feliz,
realizada, completa. As coisas iam bem antes dele ingressar-se no mundo dos adultos;
até conhecer os “factos” que revelam as malícias das pessoas. Nunca mais foi o mesmo.
Aquela promessa de um indivíduo bem-sucedido, que se desenhava pelas condições que
a vida lhe apresentava, sucumbiu ao conhecimento de outras ofertas; desviou-se do seu
destino, se perdeu e, mais tarde, foi preso.
62

Este conto é o relato de uma tragédia anunciada. Aquele que tinha tudo para dar
certo se transforma, pela intervenção das influências, em lástima para a família e
delinquente na sociedade. Chama-nos então a atenção para a observação de dois
contextos que se opõem nessa narrativa: o espaço da infância e o mundo dos adultos.

É condizente reparar que, ao fazer referência sobre o passado pelas lembranças


da personagem, o narrador nos apresenta um modelo de mundo bom para se viver.
Podemos constatar que o texto retrata uma infância feliz, com tudo organizado, traz a
certeza de um amanhã de glórias. Em outros termos, estamos diante de uma forma de
sociedade ideal, sem desagravos, plena e destinada ao acerto. Mas na verdade, trata-se
de um mundo que foi arquitetado pela ideologia colonial, que procurou alienar a
mentalidade do colonizado para um desenho social em que tudo era supostamente
perfeito, ou caminhando para a perfeição. Repare que esse homem, quando era garoto,
não percebia as agruras do mundo adulto, apenas brincava, estudava e sonhava; estava
orientado por um discurso de que as coisas cooperavam para o seu crescimento, bem
como para a sua felicidade. Discurso este que era apresentado, por exemplo, na sutileza
da pedagogia da escola que se impunha, conforme Laura Padilha, “com sua tentativa
sistemática de apagamento dos valores de origem, sejam naturais, sejam socioculturais”
(PADILHA apud CAMPOS, 2002: p. 17). Neste sentido, a história pregressa do então
ex-prisioneiro é extremamente simbólica dentro narrativa, por apontar uma inocência
infantil que tinha a realidade ardilosamente mascarada pelo sistema. E isso, sem dúvida,
favorecia, inexoravelmente, a alienação. Contudo, a este respeito, não nos afastemos da
percepção, concordando com Maria do Carmo Sepúlveda Campos, de que o

processo de alienação, no entanto, é longo, pois as mudanças ocorrem


quase que imperceptivelmente e as relações cotidianas que geram a
transformação não constituem momentos estanques, mas um conjunto
de ações que se processam em diferentes espaços (CAMPOS, 2002: p.
24).

Quer isto dizer que não somente a escola, mas as outras instituições dentro do
regime colonial também fomentaram a retórica alienante de que todos os valores que
procediam do colonizador eram bons para promoverem a formação do colonizado e, por
extensão, ajudariam a este tornar-se um indivíduo realizado e feliz.
63

Entretanto, esse momento da alegria idealizada no espaço infância, nesse mesmo


conto, é problematizado pela realidade cruel do mundo adulto. Assim o narrador nos
apresenta os fatos que o levaram ao rompimento com aquele tempo memorável de
garoto:

Apareceram então os amigos. Os conhecimentos. Amigos que o


despertaram. Que o arrancaram do bairro tranquilo de ruas de barro
vermelho e o levaram para a agitação das luzes e da espuma das
bebidas.
Começou a perder o respeito e a confiança nos outros. Ele encontrava,
nos sítios para onde o levaram, pessoas que sempre julgara modelos.
Pessoas de grandes responsabilidades. Chefes de família. Os amigos
contavam-lhe histórias de fraudes e negócios escuros de quase todos
os que lhe haviam mostrado como exemplos de honestidade. De
exemplo a seguir.
E quando a bebida lhe chegava ao cérebro e as prostitutas o excitavam
ele ria. Ria muito alto. Os homens respeitáveis, na sombra do bar,
ficavam a olhar aquele aprendiz da Vida que se ria com os olhos
molhados na direção deles, amargamente pousados neles (pp. 21, 22).

Sim, os amigos apresentaram a ele outro modelo de mundo. O “aprendiz da


Vida”, em pouco tempo, conheceu muita coisa contrária aos seus valores adquiridos
quando ainda era menino. E, em meio à “agitação das luzes e espuma das bebidas”,
descobriu a hipocrisia dos homens que ele tomava como exemplos de honestidade,
excitou-se e riu com as prostitutas, ouviu histórias de falcatruas e, exposto a toda forma
de comportamentos escusos, corrompeu-se. Mais tarde, necessitado de dinheiro e
abandonado pelos amigos, roubou. Foi pego, julgado, condenado e preso.

Luandino Vieira intitulou esse conto de O Despertar. De fato, quando


observamos a imagem inicial da personagem despertando, somos tentados a pensar que
ali se encontra a motivação necessária que adequou o tema ao texto. Mas não é o que
ocorre no percurso da narrativa. O que vemos é que o sofisma do discurso colonial, que
colocou a infância como a idealização da alegria, da harmonia e da promoção do
indivíduo, foi amplamente negado pela realidade do mundo adulto, que corrompeu e
subverteu os valores adquiridos, gerando tristeza, desajuste e aprisionamento.
Entendemos, assim, que o autor colocou na pauta literária dois assuntos a serem
pensados quando estudamos a colonização em Angola: a alienação, que cedo se fez
64

veicular através dos espaços institucionais e vitimou o colonizado já a partir do seu


processo de aprendizagem, levando-o a desejar para si os valores europeus em negação
aos costumes africanos de sua cultura; e a subversão, que vem a ser revelada no mundo
adulto, quando o colonizado percebe que o sistema colonial está configurado para lançá-
lo às margens da sociedade.

Então, quando esse indivíduo desperta de seu sono, agora em liberdade, ele,
simbolicamente, desperta também para a vida, que sempre esteve adormecida –
primeiro pela alienação da infância, depois, já adulto, pela entrega dissoluta à influência
dos amigos –. Na sua reflexão final, ele conclui que é tempo de renascer, de assumir-se
como alguém capaz de pensar e desenhar o seu destino. Tirou lições das experiências
pelas quais passou. E, a respeito de sua nova fase, assim nos conta o narrador: “Toda a
lição da Vida fora bem estudada. Agora sairia de sorriso nos lábios com o sol a brincar
nos seus cabelos e procurar emprego. Um emprego manual. Seguiria com a vida. Devia
vivê-la” (p. 24). Ou seja, aquele a quem a própria família desacreditava e o sistema
colonial alienou, subverteu e condenou, agora se sustentará com o suor do seu rosto.
Pagou sua dívida com a sociedade, saiu da prisão para a vida. Despertou! A prisão desse
homem foi, ao mesmo tempo, a sua punição e o seu despertar de consciência. Foi o
cerceamento de suas ações e a porta de sua liberdade. Entrou nela como um ladrão e sai
dela como um trabalhador. Com efeito, para concluir, esta narrativa de Luandino Vieira
problematiza a alienação, mas ao mesmo tempo nos faz refletir sobre a resiliência
angolana, capaz de gerar respostas imprevistas que a ficção faz valorar.

O novo padrão de beleza

O Nascer do Sol é o terceiro conto. Nele, a memória da infância se faz revelar


nas aventuras quase sem fim dos meninos do musseque. Era tempo de ser criança, de
brincar no capim, jogar bola no chão de barro vermelho, de caçar passarinho, de sentar-
se em torno da fogueira para ouvir histórias, de ir para a escola. Também era “o tempo
da paz e do silêncio entre as cubatas à sombra de mulembas” (p. 29). A vida da
garotada seguia seu rumo, entre traquinagens e convivência rotineira com os moradores
de um lugar que lhes permitia a plenitude de serem simplesmente garotos. Faziam
algumas coisas às claras, mas, por vezes, à “tardinha reuniam-se no velho cajueiro,
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centro do mundo para eles, e puxavam fumadas às escondidas. Cigarros baratos.


Chupeta e DK 1” (p. 30).

Entretanto, tudo mudou quando uma menina vistosa mudou para o bairro e os
meninos ficaram atraídos por ela. Assim o narrador descreve os fatos:

[Ela] trouxe atrás de si o alvoroço para os garotos. Na saia vermelha e


na bicicleta. Nos olhos negros. E todos os dias, quando o Sol se
escondia por detrás da torre do Liceu e pintava o céu de laranja-claro,
ela saía a passear. Direita no selim, os cabelos negros ao vento. Os
garotos sonhadores, habitantes dum reino até ali sem raparigas,
sentavam-se nos montes de areia e pedra das construções e ficavam a
olhá-la. Olhavam-na e sorriam-se. Discutiam.
– Ela olhou para mim!
– Para ti? Com esse cabelo? (pp. 30, 31)

A menina de cabelos negros ao vento, de saia vermelha e pedalando a sua


bicicleta ao pôr do Sol passou a ser o grande frisson daquela garotada de tempo livre.
Desse instante em diante nada mais passou a fazer sentido para eles, tudo girava em
torno da gloriosa expectativa de vê-la passar sedutora na bicicleta e, talvez, lhes
direcionar a cortesia de um sorriso sem destino específico. Desde a chegada dela, todos
os dias, a “vida absolutamente livre até ali, parava agora às quatro horas [...]” (p. 31),
para que pudessem contemplar a musa desses pequenos sonhadores. Zito, Toneca,
Margaret, Toninho e outros, “habitantes dum reino até ali sem raparigas”, agora
disputam o território no coração daquela mocinha recém-chegada. E, por ela, até
discutiam.

O tema desse conto é o despertar do desejo sexual no espaço da infância.


Naquele reino em que os garotos eram reis absolutos, com total compartilhamento do
espaço em que transitam e sem limite de tempo para as brincadeiras; mas com a
chegada da menina, tudo mudou. Todos querem ser o primeiro, todos querem o melhor
lugar de contemplação, todos se achegam no instante exato dela passar, pontualmente às
quatro horas. Mas o efeito dos desejos estendeu-se mais, modificou-lhes também os
comportamentos. Vejamos a narrativa: “Não sei quando foi que alguns começaram a
aparecer sempre lavados e calçados. Talvez depois que a menina da bicicleta começou
a falar-lhes. E a sorrir” (p. 32).
66

A atenção da menina, em oferecer diálogo e sorriso, levou os meninos ao banho


e à preocupação em pôr sapatos. Enfim, tornou-os bem mais arrumados, coisas que a
época do futebol no chão de barro vermelho e das aventuras nas matas pudesse, sequer,
cogitar, ou que, provavelmente, considerando as idades, nenhuma mãe, ainda que
fazendo severas ameaças, conseguiria.

Essa menina de traços europeus, que tanto fascinou os miúdos, representa a


idealização que o sistema colonial implantou na mentalidade do colonizado. Certamente
havia outras meninas naquele local, porém aquela veio de fora, com costumes e estética
diferentes, foi a que lhes despertou os desejos naturais a quaisquer meninos com as
mesmas idades. A referência de beleza e atração voltou-se para ela, com seus “cabelos
negros ao vento”. A situação que se instaurou a partir da chegada dessa mocinha
naquele “reino até ali sem raparigas”, mostra-nos claramente o quanto os valores
culturais africanos foram deixados de lado pela nova geração na sociedade colonial.
Não interessava aos meninos a procura por jovenzinhas angolanas naquele espaço de
convivência, estas, ao que sugere a narrativa, sequer eram vistas por eles, pequenos
súditos “dum reino sem raparigas”. O novo padrão, aquele que lhes foi implantado pelo
colonizador, que valorizava o mundo europeu com sua cultura, era o que lhes atraía.
Conforme Trigo, é “a alienação cultural que se instala. Assim, os filhos do colonizado
distanciam-se cada vez mais do seu passado [...]. Assimilam um modus vivendi e um
modus cogitandi ocidentalizados” (TRIGO, 1984: pp, 28-29). Esses meninos foram
forjados pela orientação estética do ocidente implantada pela religião, pela escola, pelo
cinema, pelo teatro, pelos periódicos, pela administração, pela sociedade colonial enfim,
e, por isso, estavam induzidos a não perceberem alguma beleza nas raparigas locais.

José Luandino Vieira, neste conto, utiliza-se do espaço da infância para nos
mostrar o quanto a visão do colonizado, no que dizia respeito à referência cultural de
seu povo, bem como à sua tradição ancestral, estava deslocada para o modelo
legitimado pelo colonizador. Em outros termos, concordando com Trigo, o angolano,
sobretudo os mais jovens, aprenderam a cultivar sua percepção estética pela orientação
ocidental, abandonando, assim, os valores herdados de seus antepassados. Desse modo,
pelo que denuncia a narrativa em questão, a menina branca, totalmente diferente das
meninas negras, passou a significar muito mais para os meninos daquela comunidade. O
senso de estética, que deveria ter como base original a matriz africana, por assim dizer,
não lhes comunicava tanto quanto o padrão estético levado à África portuguesa pelo
67

homem europeu. Portanto, para concluir, trata-se da vitória do processo de assimilação,


que muito se intensificou nos anos precedentes às guerras revolucionárias pela
independência das colônias lusitanas, sobretudo por meio das instituições constituídas,
como vimos, na sociedade colonial.

O hoje sufocante, o ontem libertado

Em A Cidade e a Infância, conto que se identifica com o título do livro, Zito, já


adulto e muito doente, cercado pela família, estava amuado e a “cabeça ardia em febre.
O corpo doía de sempre deitado. Os olhos brilhantes e o hálito quente” (p. 47). Neste
cenário de morbidez e agravo pela doença, ele, a partir do som causado pela chegada de
um automóvel, pôs-se a recordar os fatos que se passaram na sua infância, quando era
um menino na cidade de Luanda que, naquela época, começava a se desenvolver, mas
que a “rua era de areia vermelha. Poucas casas novas. Apenas o edifício do Lima, loja
e padaria” (p. 48). Tratava-se de um local ainda em fase inicial de habitação, mas que
já pré-anunciava a expansão imobiliária que viria alguns anos mais tarde. Naquele lugar,
repleto de casas de pau-a-pique com telhado de zinco, havia espaço para a “mulata
maluca que fazia as brincadeiras da miudagem com pedradas e asneiras [...]” (p. 48),
onde “às vezes passava também aquele negro velhinho, o Velho Congo. E os pequenos
negros, mulatos e brancos, calções rotos e sujos, corriam-no à pedrada...” (p. 48).

A despeito da condição de pobreza da época, Zito constata que “a infância


aparecia diluída numa cidade de casas de pau-a-pique, zinco e luandos, à sombra de
frescas mulembas onde negras lavavam roupa e à noite se entregavam” (p. 58). Todo
este cenário se passa pela memória de um narrador, o próprio Zito, acometido de uma
grave doença e que encontra alívio ao reviver momentos tão memoráveis de um passado
que lhe deixou marcas profundas na alma. Neste momento, ou a partir dele, a narrativa
desloca-se do tempo presente – em que ele encontra-se cercado pela mãe e irmãos – e
volta-se para o espaço da infância, o antigamente. Agora, o leitor tem diante de si um
cenário em que essa personagem divide o protagonismo com outros meninos e, a partir
de então, o mundo de crianças que brincam, que sorriem, que choram e que fazem
travessuras revela-se sem limite... É um espaço autêntico capaz de dar vazão à liberdade
de ser e de viver! Todavia, todo esse ambiente de total aventura nas árvores, de futebol
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na terra vermelha e de aventuras nas matas mudou. E o narrador observa que a


modernidade mexe na topografia da cidade:

Hoje muitos edifícios foram construídos. As casas de pau-a-pique e


zinco foram substituídas por prédios de ferro e cimento, a areia
vermelha coberta pelo asfalto negro e a rua deixou de ser a Rua do
Lima. Deram-lhe outro nome (p. 49).

O ontem da alegria, do riso, da cantoria, em que “os pequenos negros, mulatos e


brancos [com] calções rotos e sujos” (p. 48) se permitiam conviver compartilhando das
mesmas brincadeiras e aventuras, se transformou em um hoje de adulto doente, cercado
por prédios e que se refugia nas lembranças do passado glorioso. Assim, aquela infância
divertida, avivada e livre, agora evocada pela memória de Zito, encontra-se por ele
também desejada no atual ambiente de mundo adulto, concentrado e reduzido.

Sendo assim, A Cidade e a Infância é a marca visível do quanto a realidade


sufocante do hoje se declina ante a liberdade do antigamente. Trata-se, portanto, de um
conto em que Luandino Vieira discorre sobre duas linhas de tempo: a da personagem
adulto (o tempo presente da estória) e a da mesma personagem menino (tempo passado
da estória). Este é, por assim dizer, o primeiro nível da sobreposição do tempo; é o
momento atual, o hoje, e o momento antecessor, o ontem que, fundidos, caracterizam a
infância sem fronteira. Visto por este ângulo, este conto configura-se como uma espécie
de espelho na reflexão, em que, ao olhar para o passado, o autor reitera sua convicção
de que é possível reproduzi-lo. Não pela perspectiva de um ambiente hostil, um retorno
à casa de pau-a-pique e zinco, como se observou na urbanização que começava a surgir,
mas, sim, pelo paradigma da liberdade autêntica, esta que torna possível a convivência
de negros, mulatos e brancos sem as fronteiras topográficas que blindam a cidade e
afasta os musseques. Como parte da primeira fase da escrita de Luandino, percebe-se
claramente o quanto esta aposta é latente. Zito olha para trás e vê alegria, relativa
harmonia e desejada paz; vê aquilo que o seu mundo de adulto não lhe permite, a não
ser pelo espelho da memória. Sendo assim, estamos diante de uma narrativa que resgata
o passado, não com o tom melancólico de uma experiência que ficou em um
antigamente distante e, sim, como um espaço que precisa ser redesenhado, como um
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momento que necessita ser revivido; trata-se do momento em que os meninos eram
“livres ao sol, nus da cintura para cima e dos joelhos para baixo, correndo aquele
mundo deles...” (p. 58).

Impossibilidade de amar

Em A Fronteira de Asfalto, que é o quarto conto de A Cidade e a Infância,


deparamo-nos com a seguinte situação: Na dividida cidade de Luanda, Ricardo e
Marina se enamoram. Ele: negro, pobre, morador de musseque (bairro periférico e não
asfaltado); ela: branca, de família mais abastada, moradora do lado mais nobre da
cidade. Naquele contexto, a fronteira estabelecida pelo asfalto constitui-se em um marco
simbólico da divisão social entre a Luanda rica e os bairros mais pobres da cidade. A
aproximação entre os dois jovens foi vista pela família da moça como uma questão
problemática; a mãe, em conversa reservada, mostrou para a filha a sua indignação:
“Isso é muito bonito em criança. Duas crianças. Mas agora... um preto é um preto... As
minhas amigas todas falam da minha negligência da tua educação” (p. 42). Ante a este
cenário de rejeição, em tom de desabafo numa conversa com Marina, Ricardo reportou-
se ao tempo de infância onde o distanciamento entre ele e a amiga já se fazia notar: “A
minha mãe era a tua lavadeira. Eu era o filho da lavadeira. Servia de palhaço à menina
Nina. A menina Nina dos caracóis loiros” (p. 41). Este episódio, entre outros similares
que atravessam o conto, ilustra bem as duas polaridades estabelecidas naquele contexto
angolano colonial: de um lado estavam os brancos, verticalidade direta da elite que o
colonialismo português estabeleceu no país a partir do final do século XIX; do outro, os
negros africanos que, vitimados pela invasão europeia, foram subjugados e relegados às
margens de um sistema opressor e desigual em todas as esferas da convivência social.

Esta obra reporta-se a estes temas tão inflamados nos anos de 1950:
distanciamento étnico, fronteiras sociais, divisão geográfica e impossibilidade afetiva.
Ricardo e Marina são símbolos de um espaço dividido, onde negros e brancos eram
separados por um asfalto que lhes servia de limitação topográfica e simbolismo
ideológico. Atravessada pela temática do preconceito, esta narrativa revela o quanto
esse assunto constituiu-se como uma das questões mais emblemáticas da sociedade
colonial. Kabengele Munanga nos ajuda a entender melhor a dureza deste tema:
70

A desvalorização do negro colonizado não se limitará apenas a esse


racismo doutrinal, transparente, congelado em ideias, à primeira vista
quase sem paixão. Além da teoria existe a prática, pois o colonialista é
um homem de ação, que tira partido da experiência. Vive-se o
preconceito cotidianamente (MUNANGA, 2009: 33).

Ricardo e Marina, um negro e uma branca, são a representação mais visível de


uma fronteira que se expandiu para além do asfalto: delimitou a convivência entre as
raças, asfixiou a cultura, a língua e a história dos autóctones, pulverizou a guerra entre
Angola e Portugal. Através deles, dois meninos ainda, os quais, na intenção deste
trabalho abrangem o espaço da infância, Luandino Vieira nos mostra a face cruel do
preconceito e da exclusão, dentre tantas agruras fomentadas pelo regime colonial
vigente antes de 1975. O racismo, concluímos com Munanga, estava incorporado na
cultura colonial. Tratava-se, historicamente, de um conjunto

de condutas, de reflexos adquiridos desde a primeira infância e


valorizado pela educação, o racismo colonial incorporou-se tão
naturalmente aos gestos, às palavras, mesmo as mais banais, que
parece constituir uma das mais sólidas estruturas da personalidade
colonialista (Idem Op. Cit. p, 33).

A inocência da relação improvável dos dois enamorados custou a vida de


Ricardo. Acuado por um agente da lei, ao tentar pular um muro para falar com Marina,
“Ricardo sentiu medo. O medo do negro pela polícia” (p, 43). Pelas mesmas razões
supracitadas por Munanga, o “medo do negro” suscitado por Luandino Vieira se
justifica. Afinal, o negro no regime colonial não era bem quisto no espaço do branco, e
a morte dessa personagem, que na verdade configurou-se como uma sentença simbólica
imposta ao colonizado pobre pertencente à etnia negra, foi a paga pela ousadia em
acreditar na pureza de um sentimento afetivo que não teve guarida naquela sociedade
intolerante. Ricardo e Marina, quando pequenos faziam parte de um mundo em que
tudo, até o amor, torna-se possível no contexto da infância que, entre outras pautas,
ignora a problemática racial. Porém, ao se verem mais crescidos, percebem, pelo menos
ele, que o nobre sentimento, tão declamado em prosas e versos, encontrou-se totalmente
71

sufocado pela insanidade da personalidade colonialista, retomando a expressão de


Munanga.

E mais uma vez, como agora se percebe em A Cidade e a Infância, foi pelo
espaço da infância que a narrativa luandina colocou em evidência o racismo, a exclusão,
a fronteira geossocial e outras atrocidades que ocorreram no regime colonial em
Angola.

O problema em ser mulata

Bebiana é um conto que põe na cena literária a questão do mulato em Angola.


Nele deparamos com Don’Ana, uma senhora negra, antiga quitandeira que passou a dar
bailes em sua casa e “conhece os segredos das gentes novas e as histórias das gentes
velhas” (p. 61). Habilidosa em relembrar fatos ocorridos antigamente na cidade de
Luanda, “conta e conta como só ela sabe contar. Simples e verdadeira. Poética” (p. 61).
Quando nova, foi amante de um homem branco, comerciante, para quem trabalhava. Ela
relembra:

– ... fui sua lavadeira, cozinheira e depois deitava-me com ele.


Naquele tempo as mulheres brancas não vinham em Angola. Angola
era mesmo terra dos condenados como ele, febres, mosquito. Vinham
só os brancos ganhar dinheiro e iam gastar no Puto. Daí vivi com ele.
Me ensinou muitas coisas (p. 63).

Desta relação, que se estendeu até a morte desse homem, nasceram duas filhas
mulatas: Joana e Bebiana. Estas, representantes de um grupo social oriundo da relação
de um branco com uma negra, no caso delas, estavam fadadas à discriminação por parte
dos indivíduos das duas outras etnias predominantes em Angola, exatamente pela
posição intermediária que a sua herança racial as relegava, pois não eram brancas nem
negras.

Don’Ana, preocupada com o futuro das filhas e conhecedora dos conflitos


sociais que o país estava vivendo, queria muito que suas meninas não padecessem
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necessidades sob qualquer pretexto. Por isso, fomentava a ideia de que elas casassem
com um homem branco. E justificava:

[...] eu quero que elas casem antes de eu morrer também. Com


brancos. Elas têm educação, são bonitas. Precisam adiantar vida. Eu
gosto de falar mesmo naquilo que eu penso. Precisam adiantar vida.
Um branco ganha mais que um mulato ou negro (p. 64).

O que Don’Ana evidenciou na sua fala reflete a dura realidade que se passava no
ambiente colonial, que delimitou o espaço do branco e o espaço do negro, mas não
assentou o mulato, que pertence à ascendência mestiça resultante da coabitação de
indivíduos das etnias branca e negra. E dada a possibilidade de ganho salarial maior
direcionada ao primeiro, ou seja, ao indivíduo de cor branca, a preocupação da ex-
quitandeira tinha total razão de ser. Diante deste cenário, a pergunta do narrador, que é
branco, carregada de ceticismo face ao interesse de Bebiana por ele, foi adequada:
“Gostaria Bebiana mesmo de mim ou seria eu só mais um degrau na sociedade?” (pp.
64, 65). Crítico, ele constatou o quanto seria proveitoso à pretendente o enlace
matrimonial, bem como aos seus descendentes, ainda que o preço desse generoso gesto
fosse o apagamento da história pessoal da matriarca, pela ausência de vestígio na pele
dos netos da avó, que é negra. E conclui:

Os nossos filhos, mesmo com sangue negro, já seriam mais aceites, já


não haveria a lembrança da Don’Ana, velha quitandeira que se deu a
um branco, que me contava histórias. E se houvesse seria um episódio
romântico na família. Uma avó, uma bisavó negra, quitandeira! (p. 65)

Como se vê, pela representação ficcional, Luandino Vieira denuncia a tragédia


anunciada a respeito da extinção da memória de uma mulher negra, que gerou filha
mulata de um homem branco e esta, se entrega, entendamos assim, em casamento a um
homem branco com o objetivo específico de vir a gerar filhos brancos. Estes, de sangue
negro e com a pele branca, apagariam da história familiar a lembrança de que alguém,
no passado, não era branco e, sim, negro. Ou seja, preocupação em formar uma família
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feliz e realizada afetivamente não ocorria; buscava-se, por parte do mulato,


oportunidade de “embranquecer” a prole, a fim de que esta, dada a conjuntura das
mazelas sociais relegada às etnias negra e mulata, tivesse mais condição de se promover
economicamente dentro do mundo colonial. Afinal, reforçando a percepção de
Don’Ana, um “branco ganha mais que um mulato ou negro”.

Outra mulata infeliz

O conto seguinte, Marcelina, mantém-se na mesma temática de Bebiana a


respeito do mulato. Isto reforça o entendimento de que esta pauta é relevante à
preocupação de Luandino Vieira. A personagem que dá título ao texto, Marcelina, é
uma jovem mulata que ganha seus proventos em uma casa de prostituição, aonde
convive em um quarto de fundos com seus dois filhos, brancos, sendo o menor loiro,
frutos de suas relações com homens brancos. Mãe solteira, ela cultiva a esperança de
que o namorado, branco, venha de fato a assumi-la na condição de esposa, a fim de que
sua vida se torne menos sofrida. Em lamento pelo seu estado de rejeição social devido a
sua etnia mestiça, ela desabafa: “– Não tenho culpa. Não fui eu que quis isso. O meu pai
é branco, podia ter-me ajudado. Podia ter evitado [...] (p. 75)”.

Como já comentamos, a questão que assolou o mulato foi dramática dentro do


regime colonial, pois, não sendo branco nem negro, lhe faltou espaço na estrutura
social. Mais dramático ainda foi a posição da mulher que pertencia a essa etnia, que se
via praticamente destinada a envolver-se com homens brancos muito mais pela questão
sócio-financeira do que pelo lumiar de algum sentimento genuinamente afetivo, embora
fosse factível que isto viesse a ocorrer.

Os dois contos, Bebiana e Marcelina retratam o mesmo drama, que é a


exposição da dificuldade em ser mulato dentro da sociedade colonial. Curiosamente
Luandino optou por destacar duas representações femininas dando-nos a entender que a
estas, um pouco diferente do que ocorria ao elemento masculino, a discriminação foi
mais acentuada. Para Marcelina o drama foi ainda maior, por ser ela mulata, prostituta e
mãe solteira. Daí a necessidade proeminente de as duas cultivarem o mesmo ansejo, que
era o de se entregarem a um homem branco para se promoverem na escala social e,
assim, possibilitarem aos descendentes alguma vantagem por terem a pela clara.
74

A menina Bebiana e a jovem Marcelina são representações, como dissemos, de


um drama social acentuado no regime colonial; ser mulata já era em si condenação e
ruína. As duas personagens que, no espaço da infância, revelam seus dramas e agruras,
conduzem com suas experiências mais uma denúncia, entre outras apontadas até aqui,
de Luandino Vieira ao sistema vigente. Concluímos então, com o escritor, que a
disposição de Don’Ana em anular a sua ascendência africana entregando a sua menina
ao capricho descomprometido do homem branco e a dedicação, sem o mínimo de
critério, da sofrida Marcelina a esse ente, descendente de europeu, são, em última
análise, expressões de um desespero. Não havia, de fato, sentimento de amor em
nenhum dos dois casos, mas, sim, interesses apelativos de uma etnia, a mulata, em
lançar sua descendência para fora desse padecimento a que estava fadada naquele
contexto de exclusão por excelência.

A assimilição serviente

O conto Faustino mostra o espaço da infância dividido por duas classes de


criança que viviam em Angola na era colonial. Trata-se da criança branca, moradora da
cidade e da criança negra, habitante de musseque. A orientação comportamental de
ambas está intimamente relacionada ao espaço no qual convivem, como veremos nesta
história a ser analisada a seguir.

Faustino é um jovem negro que trabalha como zelador em um prédio residencial


na cidade de Luanda, cujos moradores são brancos e arrogantes. Para além dos afazeres
próprios do ofício, deram-lhe as incumbências extras de zelar pelo “elevador e pelos
meninos” (p. 79) que nele transitavam. Estes garotos não-negros, apropriando-se do
discurso que humilhava e ofendia o colonizado, com frequência xingavam esse serviçal,
chamado-o pelo apelido de Bóbi. Esta alcunha vinha a ser o nome do cachorro de uma
menina que residia no prédio. Mantendo-se cortês e serviente, não retrucava as
hostilidades das crianças, que sempre lhe chamavam também de negro e o
desdenhavam. Porém Faustino mantinha-se calmo e amigável, como se vê: “O menino
deita a língua de fora e Faustino sorri. Ele sorri sempre. Ganhou aquele jeito de sorrir,
apanhou aquele jeito, pois naquele trabalho tem de ser assim” (p. 79).
75

Faustino encontrava-se totalmente limitado naquele modelo de mundo que não


lhe permitia ser de outro jeito, pois dele dependia e, por isso, não tinha nenhuma
autonomia sobre seus atos. A demonstração de cordialidade e sorriso aos moradores era,
na verdade, seu mecanismo de defesa frente à ameaça permanente de prováveis
punições, caso agisse diferente do que se esperava de um colonizado, e negro, que
frequentava, ainda que na condição de trabalhador, o ambiente dos brancos. Prova disso
se deu no dia em que ele ralhou com um menino, filho de uma moradora. Esta, ao tomar
conhecimento do ocorrido, sem sequer apurar os fatos, mostrou-se indignada e o
ameaçou: “– Se tornas a maltratar o meu filho, já sabes. Vou lá abaixo ao escritório do
teu patrão e tu vais p’rá rua. Não querem lá ver o negro!” (p. 80). E Faustino, sem
direito a defesa, precisava submeter-se a este tipo de afronta, pois necessitava do
emprego para subsistir. Sua posição de serviçal negro remetia-o à condição do
subalterno que precisava sempre se calar e sorrir, por conveniência, como vimos, “pois
naquele trabalho tem de ser assim”.

As brancas crianças do prédio reproduziam o comportamento dos brancos pais.


Elas representam a ideologia de um sistema que tratava o empregado negro apenas
como um prestador de serviço que, dada a oferta de mão-de-obra desqualificada e
abundante no sistema colonial, era tomada por desprezível. Elas simplesmente
aprenderam a ser assim. Memmi ajuda-nos a entender este tipo de mentalidade com a
seguinte explicação:

O pequeno colonizador, o colonizador pobre, também se considerava,


e em um certo sentido realmente o era, superior ao colonizado;
objetivamente, e não apenas em sua imaginação. E isso também fazia
parte do privilégio colonial (MEMMI, 2007: p. 17).

Assim era o contexto o qual Faustino estava envolvido. Os moradores do prédio


não eram brancos ricos, mas eram brancos, e, por força da circunstância, pequenos
colonos. Gozavam, assim, do tal privilégio colonial, destacado por Memmi. As
crianças, na expansão desse processo, sentiam-se no direito que o próprio sistema os
outorgava: posicionavam-se como superiores ao negro, não se importavam quem ele era
ou fazia. Nas suas imaginações, viam apenas um elemento que, por ter uma cor
76

diferente da sua, não pertencia à etnia da qual descendiam, logo, não era digno de suas
considerações.

Faustino, o zelador negro, era um autêntico filho do musseque que, sem


formação mais qualificada, capaz de lhe promover a uma atividade profissional de mais
prestígio e com mais potencial de remuneração, se via reduzido a um ofício sem
expressão. Nos seus raros momentos livres, na pequena mesa em que ficava sentado,
costumava folhear livros. Forçava-se a ler, mesmo quando os “olhos abrem-se com as
palavras e o cérebro baralha-se com o que está escrito” (p. 80). Foi numa dessas
leituras que ele deparou com um texto sobre casa, casa com quartos, quartos com várias
funções: “O quarto disto. O quarto daquilo. O quarto da costura. O quarto das
crianças” (p. 80). Esta leitura o remeteu à dura realidade em que vivia com a sua família
e que lhe dava mais consciência ainda do quanto carecia do trabalho em que estava.
Percebeu ele que havia casas com o “quarto das crianças! Mas em casa dele os irmãos
pequenos – são dois que passam o dia a comer areia nas ruas dos musseques onde
brincam – dormem todos juntos com a irmã e a mãe!” (p. 80).

Na casa de Faustino não tinha quartos, tinha apenas um espaço em que todos,
um total de cinco pessoas, acomodavam-se para dormir. Seus dois irmãos, menores,
ficavam à mercê das circunstâncias de rua, brincavam empoeirados por todo o dia. Era a
vida do musseque a qual Faustino bem conhecia, pois era lá a sua origem, ainda que o
ofício lhe pôs a serviço do branco na cidade. Também estava lá o outro tipo de criança
que percebemos neste conto, aquela que não mora em prédio e brinca com os pés
descalços na areia. Trata-se daquela criança que estava na condição de filha do
colonizado, que morava em casebre no musseque e, por isso, amargava o infortúnio de
ser deixada de lado no sistema colonial. Dessa origem veio Faustino, que ainda residia
em lugar pobre, praticamente sem espaço adequado para ele e sua família. A sua
ocupação como zelador em um lugar que lhe exigia a subserviência, sua realidade
concreta de vida pobre, sua condição de jovem negro sem qualquer privilégio, tudo isso
mostrava a Faustino o quanto o seu mundo encontrava-se distante daquele que ele lia
nos livros e revistas. A educação que ele adquiriu na escola só lhe servia para
contemplar e desejar aquilo que a sua realidade negava. Seus valores estavam moldados
a reverenciar aquilo que pertencia ao modelo cultural do homem branco. A este
respeito, esclarece-nos Munanga:
77

Ora, a maior parte das crianças [no regime colonial] está nas ruas. E
aquela que tem a oportunidade de ser acolhida não se salva: a
memória que lhe inculcam não é de seu povo; a história que lhe
ensinam é outra; os ancestrais africanos são substituídos por gauleses
e francos [lusitanos, no caso angolano] de cabelos loiros e olhos azuis;
os livros estudados lhe falam de um mundo totalmente estranho, da
neve e do inverno que nunca viu, da história e da geografia das
metrópoles; o mestre e a escola representam um universo muito
diferente daquele que sempre a circundou (MUNANGA, 2009: p. 35).

Estes paradigmas referenciais que as leituras do jovem Faustino, em “livros


estudados que falam de um mundo totalmente estranho”, mostravam os quartos que a
ele e a sua família faltavam. Ou seja, evidenciavam elementos da cultura europeia muito
evidenciados pela ideologia colonial que suprimiam os valores culturais africanos. Seus
irmãos não se davam conta disso, brincavam nas areias dos musseques, expandiam-se
no espaço da infância onde as aventuras arteiras lhes conferiam o sentido de existir e, à
noite, espremiam-se em um cômodo com seus convivais para o inocente repouso que
lhes recobravam a energia diária necessária. Faustino, por outro lado, trabalhava na
cidade, sofria a arrogância dos brancos e lia nos livros a respeito de um mundo distante
do seu.

Frente a estas questões, Luandino Vieira mostra nesse conto duas instâncias do
espaço da infância: aquela ambientada na cidade, onde crianças reproduziam as atitudes
dos adultos, os quais concebiam o negro como um serviçal para a manutenção de seus
privilégios de indivíduos brancos; e aquela que se remetia ao ambiente dos musseques,
no qual a vida dos meninos reduzia-se a brincadeiras nas ruas de areia, totalmente
alheios ao que acontecia no mundo real. Com isso, mais uma vez esse autor coloca em
relevo o distanciamento entre o mundo minimizado do colonizado e o mundo austero do
colonizador. Através dos dois tipos de criança, melhor dizendo, das duas representações
do espaço da infância, percebemos o olhar crítico desse autor em relação à intenção
cruel do sistema colonial de subjugar o negro e elevar o branco.

Operário poeta
78

Quinzinho é o penúltimo conto do livro. Nele, o narrador reporta-se ao amigo,


Quinzinho, falecido num acidente na máquina em que trabalhava e relembra todo o
passado de amizade em que ambos viveram boas aventuras. Seguindo o cortejo fúnebre,
o pensamento da personagem que narra, em primeira pessoa, traduz-se em forma de
diálogo com esse ente, que além de operário era também poeta:

Eu também aqui no meio dos teus amigos. Mas não vou triste. Não.
Porque uma morte como a tua constrói liberdades futuras. E haverá
outros a quem as máquinas não despedaçarão, pois as máquinas serão
escravas deles, que as hão-de idealizar, construir.
E os poetas como tu hão-de cantá-las porque elas serão um
instrumento de libertação. Cantá-las no papel branco a tinta negra
ainda antes de elas nascerem.
Por isso não vou triste, não. Não sou talvez o teu único amigo branco,
mas os outros não tiveram coragem de te vir acompanhar. E são para ti
estas rosas vermelhas que trago (p. 88).

Nesta introspecção, uma série de temáticas vai atravessando o discurso desse


narrador. A mesma máquina em que o amigo se acidentou serve como uma crítica
metafórica das máquinas do sistema colonial que escravizam os homens em trabalhos
contínuos, ao passo que a poesia é vista nessa reflexão como instrumento de libertação.
Ironicamente, o morto era um trabalhador das máquinas e um construtor de poemas. E
frente a esse contraste entre a labuta que mata e a letra que traz vida, o narrador coloca
outra questão na pauta literária: a aproximação de um branco com um negro pelo laço
de uma grande amizade.

Até aqui temos pontuado o quanto se mostrou problemática a convivência entre


brancos e negros na sociedade colonial. As duas etnias, para além do distanciamento da
cor, figuram como representações da principal tensão da colonização, que colocou de
um lado o colonizador e de outro o colonizado. A violência permanente entre ambas era,
por assim dizer, lugar comum e quase que inevitável nesta relação. Até porque, como
não poderia deixar de ser, os interesses dessas duas matrizes sociais eram muito
diferentes. Fanon diz:

Esse mundo [colonial] compartimentado, esse mundo cortado em dois


é habitado por espécies diferentes. A originalidade do contexto
79

colonial é que as realidades econômicas, as desigualdades, a enorme


diferença dos modos de vida não conseguem nunca mascarar as
realidades humanas. Quando se percebe na sua imediatez o contexto
colonial, é patente que aquilo que fragmenta o mundo é primeiro o
fato de pertencer ou não a tal espécie, a tal raça (FANON, 2005: p.
56).

Ao colonizador interessava a submissão completa do colonizado; ao colonizado


interessava sua libertação consumada, que se daria com o fim da colonização. Todavia,
a pensar num cenário em que os dois grupos étnicos se viam obrigados a compartilhar
no mesmo território, ainda que a estratificação geossocial pontuava o espaço em que
ambos deviam se assentar – brancos estavam nas cidades asfaltadas e os negros nos
musseques sem asfalto –, a possibilidade de laço de amizade entre elementos das duas
etnias poderia ocorrer. Verificamos isso na afirmação do narrador, em diálogo mental
com o amigo negro que estava a ser sepultado, como forma de última homenagem aos
bons tempos de amizade:

Por isso não vou triste, não. Não sou talvez o teu único amigo branco,
mas os outros não tiveram coragem de te vir acompanhar. E são para ti
estas rosas vermelhas que trago. São a paga da tua estima por mim, a
tua amizade que eu sentia quando tu e eu nos encontrávamos, à beira-
mar, ou quando naqueles dias à noite atravessávamos os dois a baía
das águas sem fim. A nossa baía de Luanda (p. 88).

Ou seja, a ausência de coragem dos outros amigos brancos em acompanhar o


cortejo fúnebre de um amigo negro revela o quanto, na cultura colonial, essa
aproximação era problemática. Contudo, a despeito desse mundo colonizado cortado em
dois, citado por Fanon, a amizade do narrador e Quinzinho, citada na narrativa luandina,
tinha a sua raiz na infância em comum, no espaço da aventura em que ambos, juntos de
outras crianças, estabeleceram laços de companheirismo. Estudaram juntos, como
relembra: “Era na terceira classe e tu desenhavas automóveis e máquinas, pois nunca
gostaste de desenhar coisas pequenas. Isso era bom para nós, desenhar flores e
casinhas bonitas” (p. 88). E, naquela etapa da vida, o pertencimento ou não “a tal
espécie, a tal raça” não constituía fronteira para a convivência mútua acontecer, o que
80

desenhava automóveis e o que desenhava flores estavam no mesmo nível, se


integravam, se mesclavam, se permitiam: Eram amigos e pronto. E, por isso, a última
homenagem, sempre em diálogo interno: “Eras um poeta, Quinzinho, um poeta do
trabalho. E o teu amor pelas máquinas, por aquelas correias girando hipnoticamente,
trouxe-te a morte” (p. 89).

E assim se encerra todo o sentido desse conto, uma amizade capaz de suplantar
as limitações da política racial fomentada no regime colonial. Se a inviabilidade do
mundo dos adultos desencorajou os homens, por serem brancos, a não prestarem a
última homenagem a um companheiro negro cuja amizade, inclusive, brotou nas
primeiras séries escolares, a possibilidade do espaço da infância é alçada nessa narrativa
como legitimadora da ausência total de fronteira de qualquer natureza. Isso reforça,
mais uma vez, a postura subversiva de Luandino Vieira em utilizar-se da perspectiva da
criança para deitar por terra os valores coloniais, que promoviam o apartamento entre os
indivíduos. Estes, brancos, negros e mulatos, se viram obrigados, dadas as
circunstâncias históricas, a conviverem no mesmo território que a colonização,
retomando Fanon, fez questão de cortá-lo em dois.

A saga do mulato Armindo

Findamos a análise de A Cidade e a Infância com o conto Companheiros. Trata-


se de uma narrativa que, apesar de ser um tributo à amizade de quatro companheiros,
destaca mais uma vez a questão do mulato no mundo colonial. O ineditismo desta
narrativa se dá pelo fato de agora Luandino Vieira inserir na pauta literária um
representante masculino, o mulato Armindo, descrito pelo narrador como alguém que
tem “os olhos malandros, os ditos malandros” (p. 93).

Morador de musseque, esta personagem é reconhecido pelos comparsas como


um exímio contador de história. A respeito deste particular, o narrador cita:

Quando ele contava as histórias do barco de cabotagem. E repetia


quase religiosamente as palavras que ouvira do primo, marinheiro que
conhecia todos os portos da África e da Europa. Palavras que ele
queria explicar bem para João e Calumango, mas não podia. Palavras
que faziam de todos os portos do mundo, portos de todo o mundo.
81

Sentia, sentia tudo, mas as palavras não chegavam à boca. Ele via,
porém, nos olhos ingênuos do João, nos olhos espantados de
Calumango, que as palavras que ele sabia estavam também dentro
deles (p. 94).

Este era o Armindo. Bem quisto pelos companheiros, malandro, contador de


histórias. Porém, a sua condição de mulato não lhe reservou no contexto colonial algum
apreço. Sua situação estava tão lamentável, a ponto de o próprio narrador exclamar:
“Triste vida a do mulato!” (p. 94). Tal expressão foi proferida por ser este menino, o
Armindo, portador de algumas experiências desafortunadas na vida pessoal e na vida
familiar. No rastro da sua tragédia, cometia pequenos delitos, e a sua irmã, também
mulata, logo, portadora do drama que as meninas dessa etnia viviam, “dormia com sô
Pinto” (p. 94), o comerciante, homem branco, estabelecido no local em que viviam. A
outra face dura de sua história de vida se aflorava quando ele se punha a tocar sua gaita.
Neste momento o mulato, um garoto ainda, era tomado de pensamentos e emoções
íntimas; comovido, relembrava “a mãe – onde andaria agora a mãe? Vendendo-se pelo
musseque! –, o pai branco, a saída da escola” (p. 96).

Com essa personagem percebemos o quanto a etnia mulata estava martirizada no


mundo colonial. Armindo, apesar da habilidade em contar histórias, tocar gaita e ser
carismático, teve uma história de vida muito dolorida. A mãe se vendia no musseque, a
irmã se entregava a um branco, o pai abandonou a todos, parou de frequentar a escola e
cometia pequenos delitos. Daí a justificativa, a contento, da fatídica exclamação do
narrador: “Triste vida a do mulato!”.

A história desse menino mulato teve um desfecho um tanto infeliz. Saindo para
cometer um furto, ele foi flagrado por um policial. Assim o narrador expõe o fato:

A chave-francesa caiu no passeio e o ruído fez aparecer o polícia.


Pancadas de cassetete. A mão de ferro não o largava.

– A roubar a motorizada! Apanhei-te!

Batia. Mulato Armindo estava habituado. Reagiu. Mas o polícia era


forte, não o largava. As pancadas amoleciam-no (p. 97).
82

O menino mulato faleceu. Sua história, triste, quase uma tragédia anunciada,
originou-se no drama social em que uma mulher, negra, entregou-se, ou foi tomada,
como objeto sexual a um homem branco, sem qualquer intenção de assumir um
compromisso afetivo ou mesmo presunção de responsabilidade paterna, e gerou filhos
mulatos. Mais tarde, na sequência das mazelas, uma irmã, sugestivamente na mesma
trajetória de Bebiana e Marcelina, que analisamos nas narrativas seis e sete, desejosa de
gerar filhos com pele clara, lançou-se nos braços de um homem branco, dando-se a
possibilidade de vir a promover-se socialmente. E, para findar, um menino, sem
nenhuma estrutura familiar, que abandonou a escola e aventurou-se em delitos, teve a
vida ceifada prematuramente, como consequência natural de uma prática que predestina
para tal fim quem a ela se dedica.

Este é o panorama trágico de uma história com começo, meio e fim tristes. O
que fica evidenciado é o desajuste de uma família, se é que podemos entender dessa
forma, advinda de relações em que o homem branco, etnia favorecida dentro do modelo
colonial, passa a ser visto como elemento de promoção social. Na verdade, pelo que
revelam as narrativas, isso quase sempre não acontece, tendo em vista que esse
indivíduo não desenvolve afeto, ou mesmo a responsabilidade, pelos seus descendentes
e sequer assume o papel de chefe de família. E o resultado é a forte tendência de
acontecer o que se sucedeu ao Armindo: envolver-se em crimes que, mais cedo ou um
pouco mais tarde, gerarão finais desastrosos. Semelhantes a alguns outros casos que já
tratamos aqui.

Mais uma vez, para encerrar, José Luandino Vieira, se apropriou do espaço da
infância e construiu outra história que denuncia a crueldade social impetrado pelo
sistema colonial à etnia mulata. O menino Armindo, assim como as meninas Bebiana e
Marcelina são os representantes desse mundo complexo de exclusão e desestrutura
familiar a que o ente mulato estava submetido. O mundo dividido em dois, observado
por Fanon, que se estruturava nas etnias branca e negra, colocou às margens,
socialmente falando, o mulato. Este, na condição de resultado intermediário, digamos
assim, foi o fruto da coabitação de ambas etnias predominantes no mundo colonial. E o
autor evidenciou na pauta literária.
83

Nosso Musseque
Território de resistência e questionamento

“A questão de as coisas não serem


sempre sim nem um não, as coisas não
serem sempre o que são, mas serem
também o que não são”
(José Luandino Vieira)

Nosso Mussuque

É um romance em que o narrador-personagem, embora não se apresente


formalmente, é alguém que foi conduzido para aquele espaço e nele desenvolveu uma
íntima relação de convivência e acolhimento desde a infância, quando lá chegou, até a
fase adulta, que é o momento em que ele relembra suas experiências de menino e as
apresenta no discorrer da narrativa. Ancoradas apenas em suas lembranças, tais
experiências são narradas de forma não-linear conforme o fluir da memória desse
elemento, que se permite alternar os episódios segundo sua conveniência e, muitas vezes,
interrompe um fato e para o mesmo retorna bem mais adiante, após outros fatos,
deixando, assim, para o leitor, a responsabilidade de estabelecer os elos necessários para
que a narrativa lhe faça sentido. Isto gera a interação com a obra, além de tornar a leitura
um pouco mais lúdica.

Este romance foi escrito entre os anos de 1961 e 1962 por José Luandino Vieira,
quando este se encontrava na prisão da PIDE, em Luanda, como informa a nota anexada
na apresentação do próprio livro, que, curiosamente, foi concebido no ano em que a luta
pela independência de Angola ganha um novo contorno: o emprego da arma de fogo por
parte dos revolucionários contra os soldados portugueses.

Nele, percebemos que a tensão e o afeto entram na pauta literária colocando em


relevo um espaço – o musseque – capaz de revelar-se como um fenômeno geossocial
que, em Angola, pode perfeitamente ser apontado como fundamental na construção e
preservação da cultura, da memória, da identidade e da linguagem de uma considerável
parcela da sociedade angolana que foi colocada às margens durante a vigência do
84

regime colonial. Reforça-se isto na concepção de Milton Santos, quando ele nos orienta
que

o papel do lugar é determinante. Ele não é apenas um quadro de vida,


mas um espaço vivido, isto é, de experiência sempre renovada, o que
permite, ao mesmo tempo, a reavaliação das heranças e a indagação
sobre o presente e o futuro. A existência naquele espaço exerce um
papel revelador sobre o mundo (SANTOS: 2000, p.56).

Neste sentido, concordando com o geógrafo, o musseque pode ser entendido, na


obra luandina, como o “espaço vivido” que se projeta no contexto urbano das cidades
angolanas. Não só isto, é também um local de resistência, que se mostra
“determinante” ao evidenciar, mesmo debaixo de opressão e exclusão, o jeito de ser e
de viver de um contingente marginalizado, assalariado, discriminado e pobre. Não é,
portanto, gratuito que as histórias narradas em Nosso Musseque se assentam no contexto
da colonização e o ponto de vista priorizado nele é o do habitante desse lugar, o
colonizado. Ou seja, neste romance Luandino Vieira evidencia o musseque como um
espaço digno e, reforçando este conceito, coloca em relevância o sentimento e a voz do
seu povo que padeceu as agruras de um regime tirano que foi implantado nas colônias
de dominação portuguesa, subordinando-as às orientações de uma metrópole
dependente de toda forma de lucro que pudesse advir desses seus territórios em África.

Mas afinal, que espaço é este, o musseque?

Na origem do termo, musseque vem do kimbundo (mu + seque): areia vermelha.


Atribui-se o significado à cor predominante nos solos em que se originaram os bairros
pobres ao redor das cidades em Angola, sendo que os mais expressivos se implantaram
na periferia da sua capital, Luanda, ou nos entornos dos centros urbanos próximos.
Alguns deles, como o Makulusu, o Braga e o Kinaxixe, ganharam especial destaque na
literatura nacional pela relevância simbólica ou mesmo por serem os locais das
aventuras de infância de alguns escritores. O surgimento desses bairros pode em muito
ser atribuído à ausência de uma política habitacional que fosse capaz de organizar o
crescimento urbano que começou a despontar, por diversos fatores, antes mesmo do
processo de colonização. Podemos assim pensar nos incentivos à ocupação territorial
85

em África como forma de estabelecer o domínio europeu, que foi, por força das
circunstâncias, modificando o panorama geopolítico nas colônias. A Conferência de
Berlim (1884/1885), por exemplo, que repartiu o continente africano entre as nações
que dele se apoderaram, potencializou a necessidade de ocupar ao máximo extensos
espaços na nova terra, o que muito favoreceu o deslocamento, no caso português, de
militares, funcionários administrativos, religiosos, comerciantes e aventureiros para lá.
Fernando Mourão (1978), em A sociedade angolana através da literatura, chega a
comentar, a respeito da chegada de brancos em larga escala em Angola no período
colonial, o infortúnio gerado pela perda de posição, segundo ele, a uma “pequena
burguesia negra, com posições subalternas na administração e no comércio a par de
outras” (p. 25). Ainda na mesma obra, citando o estudo realizado por Carlos Ervedosa,
ele observa que o

crescimento do número de famílias europeias completas e,


fundamentalmente, o aumento da proporção de mulheres brancas (de
1/10 em 1830 passaria a 1/1, 100 anos depois), começa a levar o
homem branco a não necessitar de procurar a mulher negra, o que
determinaria, progressivamente, um desnível nos grupos humanos em
presença (MOURÃO: 1978, p. 24).

Tais informações assinalam o quanto o crescimento demográfico angolano se


deu de uma maneira rápida, sem grande controle da administração local e gerou
consequências de diversas ordens. Não há dúvida de que o contraste habitacional no
país, de alguma forma, tem nessas questões parte de sua causa. E pode somar-se a elas,
para efeito de ampliação do assunto em questão, fatores mais recentes que, conforme
Anabela Quellas (2006), ocorreram a partir de 1962, quando as populações rurais
começaram a migrar para a capital Luanda e arredores motivadas pelo crescimento da
construção civil e pelo lançamento da indústria. Assim, desprovidos de condições
econômicas para subsistirem nos centros urbanos, e, aviltadas por um regime de
exclusão deliberada, estas gentes

instalam-se nos musseques e reagrupam-se segundo as suas origens.


Os musseques passam a designar o espaço social dos colonizados,
assalariados, reduto da mão de obra barata e de reserva, ao
crescimento colonial, colocados à margem do processo urbano,
surgindo como espaço dos marginalizados, e cuja fisionomia está em
constante transformação.
86

(QUELLAS, Anabela. Apud: HTTP: //blogdangola.


blogspot.com/2008/10/musseques-de-luanda.html)

Foi exatamente neste topônimo, com sua idiossincrasia, que José Vieira Mateus
da Graça chegou, ainda criança, com seus pais, antes dos três anos de idade, na segunda
metade da década de 1930. No musseque angolano o escritor passou toda a sua infância,
adolescência e juventude; a sua notória admiração pela cidade de Luanda lhe rendeu a
alcunha de Luandino, que mais tarde foi assumido como nome artístico. Neste lugar
aprendeu a língua e a cultura do povo kimbundo e teve contato também com outras
etnias que ajudam a compor a complexa nacionalidade do país. Sua identificação com
Angola é total e irrestrita, fato que sempre fez questão de pontuar. A Michel Laban, ele
disse: “Mas... se por qualquer motivo [...], tivesse que abandonar Angola, nunca podia
viver com outra nacionalidade, quero dizer que o máximo até onde eu vejo, é ser um
exilado angolano em qualquer lado” (LABAN: 1977, p. 21). No mesmo texto, na
verdade uma entrevista, Luandino Vieira reforçou o quanto sua infância foi intensa,
profunda e cheia de aventuras, as quais, agora, lhe servem de inspiração às histórias que
suas obras retratam. E acrescentou que isto se dá “porque [a sua infância] foi feita em
condições de convivência no musseque, musseque da cidade de 1938, 37, 39, 40, 41”
(LABAN: 1977, p. 13).

Angolano e, como se vê, profundamente íntimo do ambiente o qual retrata na


perspectiva ficcional, este autor, em Nosso musseque, revela o lado de dentro desse
universo plural no qual cresceu, entendeu seus códigos e adquiriu legítima condição
para dele dizer várias coisas. Mostra-nos o cotidiano de uma população com baixa
condição sócio-econômica e, por meio de seu estilo característico, expõe o jeito dela
falar, conseguindo, inclusive, equilibrar o idioma kimbundo com o idioma português, o
que confere à sua narrativa um hibridismo linguístico que, a despeito do estranhamento
gerado ao leitor, em hipótese alguma compromete o entendimento da obra; pelo
contrário, enriquece o seu texto e confirma aquilo que se espera de um grande escritor:
uma escrita livre, inovadora e capaz de seduzir.

Tensão e Afeto num espaço em transição

O narrador, semelhante ao autor, também chegou no musseque ainda pequeno,


como cita: “Naquela manhã de cacimbo do mês de junho dum ano que já não lembro,
87

em que cheguei naquele musseque pela mão de pai [...]” (NM, p. 89). Outra semelhança
entre os dois ocorre na assumida propensão dele para produzir ficção em cima de fatos
circunstanciais. Verifica-se isto na passagem em que ele discorre sobre a história do
amigo Xoxombo e da situação vexatória que lhe rendeu apelido e chacota por parte dos
demais companheiros. Sobre o fato, se não conseguir contar direito, ele assume toda a
culpa: “É minha, que meti literatura aí onde tinha vida e substituí calor humano por
anedota. Mas vou contar na mesma” (NM, p. 17). Interessante, a este respeito, é
confrontar esta atitude do narrador, em meter literatura em cima de um acontecimento,
com o que disse o próprio autor a respeito, entenderemos assim, dessa assumida
vocação: “Mais tarde interpretei isso como sendo um sinal de que, de qualquer modo,
tinha uma vocação para narrar, para contar...” (LABAN, 1977: p. 11). Escritor e
narrador se espelham em Nosso musseque, externando o propósito incontido de narrar,
de contar; trata-se de um exercício assumido pelo autor tanto na vida real, como na
ficção. Isso revela, na prática, a intenção de Luandino em resgatar, através da literatura,
esta atividade oriunda de uma tradição cultural que valorizava a oralidade. Em outros
termos, JLV põe em relevo, neste romance, a arte da oratura como um hábito recorrente
dentro do musseque. Prova disso são as várias histórias contadas pelas personagens em
algumas passagens. Podemos destacar, por exemplo, o caso de don’Ana. Na narrativa,
ela sempre era bem recebida pelos meninos porque lhes contava histórias com alegria e,
além disso, costumava “pôr adivinhas, como só ela é que sabia” (NM, p. 49). Em outra
passagem, o narrador destaca a mania de contar e inventar do Zeca: “Não é bem como
ele fala: o Zeca, cadavez que conta, mete sempre as partes dele e, quando a gente vai
ver, ninguém sabe mais onde este onde está a mentira” (NM, p. 31) e acrescenta em
outro momento: “O Zeca Bunéu fala e a gente sente” (NM, p. 162). E no incentivo do
velho capitão Abano: “Voltou para falar connosco, continuou dizer que, agora
sozinhos, o melhor mesmo era fazer um jornal, contar os casos do nosso musseque [...]”
(NM, p. 166).

Assim, compilando fatos, histórias, memórias e narrativas, Nosso Musseque


configura-se como um romance diferente, no sentido de distanciar-se das formas
ocidentais deste gênero que, entre outras características, quase sempre valorizam o
protagonismo individual, o monolíngue e o processo linear na construção da narrativa.
Luandino rompe deliberadamente com estas estruturas e imprime nessa obra
características tributárias de sua tendência estética em produzir uma literatura que realça
88

a linguagem do povo angolano, o seu ritmo, a sua espontaneidade e o seu modo de


sentir a vida; nela não ocorre o heroísmo individualizante cujos feitos elevam a trama,
pelo contrário, as histórias que a compõem oportunizam, a seu tempo, alguma
personagem, mas também a outras, conferindo-lhes, no conjunto, um protagonismo
coletivo dentro do espaço que lhes é comum, ou seja, o musseque. O que importa a este
autor é demonstrar o modo como este lugar encontra-se em transformação e, por efeito,
como este processo se assenta na percepção dos que nele vivem, cujas ações e reações
transitam entre variados comportamentos, com destaque, nessa obra, para o
antagonismo entre a tensão e o afeto.

Por definição, tensão é um termo tomado por empréstimo da física; remete-se a


um estado de pressão, quer de ordem interna ou externa, sofrido por um corpo. No que
se refere às questões sociais, essa palavra se refere a desacordo ou a não-concordância
com algo ou alguém. Trata-se da discordância que gera uma ação contrária, o embate.
Em se tratando do musseque no período colonial, ela é quase que um estágio
permanente, ou seja: ela é interna e ela é externa. Em contraponto a este termo encontra-
se o afeto, que, neste contexto, trata-se de um sentimento de afeição que se tem por
alguém ou por alguma coisa e que se demonstra através do carinho, do apresso, da
dedicação, da ternura. Não gratuito, a polarização suscitada nesse romance entre estes
dois termos, tensão e afeto, se faz observar já a partir do título. O sintagma nominal
“nosso musseque” aponta para duas formas de interpretações capazes de sugestionar o
entendimento do leitor. A primeira é aquela que traduz a ideia de afeto, de acolhimento;
é a legitimação de um espaço – o musseque – que pertence ao coletivo, o que, neste
caso, se faz reforçar pela inclusão do pronome possessivo nosso. Na dimensão desta
compreensão, o que se vislumbra no desenvolvimento da narrativa é a rejeição a
qualquer lampejo de individualidade neste território; afinal, o musseque é um lugar,
dado a sua própria natureza de conjunto, propício à experiência comunitária, por isso é
tratado como nosso. A outra possibilidade de se entender o título do romance em
questão se consolida pela inevitável tensão gerada a partir do contexto sociocultural o
qual este se reporta. Neste caso, nosso musseque, enquanto expressão ou título, pode
sugerir uma postura ideológica do autor em deixar claro, a quem possa interessar tal
afirmação, que este espaço não é do outro; no caso, pelo contexto a que se reporta, não
pertence ao colonizador. Entendendo assim, as entrelinhas desse sintagma dão conta de
que, apesar de restringido pelo regime autoritário, o território tem um “dono”: o povo
89

que lá habita e que, nas arestas daquele sistema, desenvolveu condições adequadas para
reafirmar seu construto identitário, por isso sente-se na obrigação de defendê-lo.
Justifica-se aí então o desprezo, evoluído para certa hostilidade, que se percebe nessa
obra direcionado ao ente não identificado com aquele lugar. Sobretudo, quando este
traz consigo o pensamento e as atitudes repugnantes da cultura colonialista, os quais o
colonizado do musseque resiste e, a seu modo, confronta.

No espaço do branco os meninos não brincam

Esta última compreensão, entendida como tensão marcada pela delimitação


territorial, fica exemplificada em Nosso musseque com a chegada de uma família
branca. Assim aconteceu quando o branco sô Luis, com esposa e filho, mudou-se para o
musseque na condição de novo inquilino de uma casa em que “atrás, tinha muitas
árvores, goiabeiras, mangueiras e até mamoeiros, onde os meninos brincavam” (NM,
p. 36). O quintal, em princípio, era um local amplo, aberto e acessível a todos; podia-se
catar frutas para comer, ao mesmo tempo em que era usado para as brincadeiras da
criançada. Em suma, era o protótipo da configuração do espaço do musseque: meninos
transitando livremente pelos quintais da vizinhança e ambiente comum compartilhado
entre os moradores. A ideia de propriedade privada estava diluída pela ausência de
muros, cercas ou qualquer outra forma de demarcação limitante que pudesse estabelecer
impedimento ao impulso voluntarioso dos meninos e, por algumas vezes, dos adultos.
Contudo, com a chegada de sô Luis, mais ainda, com a sua decisão arbitrária de pôr
cerca no quintal, instauraram-se consequentes desconfortos e celeumas entre ele e os
moradores, afinal, até então, “os paus de manga e de goiaba cresciam e eram de todo o
musseque” (NM, p. 37). Não obstante, a reação veio a contento: “- Ngueta camuelo!
Esses brancos são assim. Olha só! Chegou dois dias e pronto! Começa já a dizer aquilo
é dele” (NM, p. 37). O preço pago pela ação de sô Luis em modificar um espaço que
era de todos foi o isolamento. Ele, a sua esposa (dona Eva) e seu filho (Nanito) tiveram
que aguentar diariamente “as mães e os miúdos entregando ao desprezo e aos ditos do
musseque aquela gente” (NM, p. 38). O desprezo foi a reação mais combativa que
poderia ser implantada à situação incômoda que a personagem sô Luis instaurou no
musseque. Um espaço que era de todos não poderia, de uma hora para outra, ser
delimitado pela intransigência de um estranho ao ambiente; e, para piorar, tratava-se de
90

um branco, polícia e recém-chegado. Nestas condições, ele se estabelecia na posição de


porta-voz do colono e do regime de opressão (FANON, 2005). Com isso, torna-se
evidente na figura de Sô Luis três condições propícias ao estado de tensão demandada
naquele momento: Sua origem, seu ofício e a sua postura. Ou seja, a etnia branca, a
imagem da repressão caracterizada pela farda e a atitude hostil, demonstrando
claramente a falta de afinidade com o lugar, naquele contexto, tornam-se elementos
propícios ao desafeto do morador do musseque. E o policial português não fazia questão
de mudar sua imagem. Tempos depois, envolvido em outra confusão, mostrou-se
disposto a expulsar, com a atitude arrogante de sempre, o menino Zito: “– Hão-de ver!
Limpo a merda deste musseque. Palavra de Luís Fonseca! Faço desta lataria um sítio
para pessoas civilizadas viverem!” (NM, p. 137). Em resumo, tudo nele conjecturava
para a não aceitação e para a repulsa por parte dos moradores daquele lugar.

A amiga branca

Todavia, em relação à outra personagem, também branca e recém-chegada, estes


mesmos habitantes agiram de maneira totalmente diferente: demonstraram afeto para
com ela. Trata-se de Albertina, uma mulher que chegou sem família, pobre e que foi
abandonada pelo amante assim que este alugou uma casa no musseque para ela morar.
Conversando com a vizinhança, ela lamenta: “Ele foi-se embora logo de manhã, na
noite que eu cheguei aqui. Eu já sabia que ele não ia voltar mais... É a vida!” (NM, p.
135). Em pouco tempo, a nova moradora caiu na graça das pessoas do musseque, apesar
dos termos pejorativos relacionados a ela, devido a sua atividade de meretriz, como se
observa nas palavras de don’Ana, conversando com sá Domingas: “Albertina, mulher
de todos é verdade, mas educada, respeitadora como ela não tinha ali” (NM, p. 39).
Estas virtudes que a personagem demonstrou junto a seus novos vizinhos serviram-lhe
como motivos de acolhimento e afeto naquele espaço tão peculiar. Em outro momento,
quando ela envolveu-se em uma briga com Aníbal Manco, o cobrador de aluguel, a
comunidade prontamente lhe prestou solidariedade: “– Deixa só, Albertina! Não chora!
A gente vai te ajudar...” (NM, p. 142).

O policial sô Luís e a prostituta Albertina têm em comum o fato de terem que se


inserir em um contexto totalmente diferente a que estavam acostumados. A decisão de
irem morar no musseque é uma demonstração inequívoca de que perderam a condição
91

econômica de continuarem a residir no centro urbano, que era bem mais estruturado e
caro; por isso mesmo, constituiu-se como reduto da elite branca e de alguns poucos com
uma certa situação financeira capaz de lhes possibilitar a permanência por lá. A
mudança, então, para um local mais barato, no caso deles, não foi uma questão de
escolha, mas, sobretudo, por falta de opção; afinal, não tem como admitir que alguém
voluntariamente abdicaria de se estabelecer na cidade para fixar-se num espaço tão mal
assistido pela administração, como era o musseque. Torna-se oportuna, portanto, a
observação de Mourão dando conta de que no regime colonial em Angola, “ao lado dos
brancos ricos, aparece uma classe média branca que, muitas vezes, ombreia com os
mestiços e negros, principalmente em Luanda e Benguela, na luta pelo pão de cada dia”
(MOURÃO, 1978: p. 22).

Então, o que motivou no musseque tratamentos tão diferentes dispensados aos


dois novos moradores: a sô Luís, tensão; a Albertina, afeto?

Já concluímos com Quellas que o musseque é o espaço social de gente de baixa


renda e de mão-de-obra barata, gente colonizada e à margem do crescimento urbano.
Todos que se encontravam em tais situações abrigavam-se nele. Neste sentido, negros e
brancos pobres estavam lá. A chegada de sô Luís e Albertina, por si só, não constituía
novidade alguma àquela comunidade; em princípio, apenas dois elementos vitimizados
pelo processo de exclusão econômica que os empurrava para fora da cidade e, por
conseguinte, para dentro do espaço periférico. Contudo, Albert Memmi, ao dizer que “a
situação colonial fabrica colonialistas assim como fabrica colonizados” (MEMMI:
2007, p. 93), nos ajuda a perceber que a postura do policial branco, português, em
colocar em prática o seu desejo de cercar o seu quintal, impedindo que os moradores
tivessem acesso às árvores frutíferas, nada mais é do que a reprodução de uma cultura
fortalecida na colônia que fabricava pessoas com mente colonialista, capazes de
imporem-se sobre o colonizado lhes oprimindo e restringindo a pouca liberdade. Sô
Luís queria reformatar um território que ele sequer conhecia e revelava-se cada vez
mais audaz; em outra confusão ele vociferou: “Este musseque tem que ser um bairro
decente!...” (NM, p. 39). A tensão gerada pelo inconformismo dos moradores em ver o
musseque, um ambiente autenticamente angolano, sendo transformado por força de um
novo morador com visão totalmente diferente em relação ao trato com a propriedade,
uma vez que esta não seria mais usufruída por todos, foi inevitável. Os protestos
seguidos de rejeição à família do policial esclarecem o quanto o musseque prima por
92

preservar sua identidade comunitária que, até onde fosse possível, descolava-se dos
valores fomentados pelo colonizador europeu.

Albertina, neste cenário, por sua simpatia e entrega, teve receptividade bem
diferente; a ela deu-se o oposto de tudo o que se viu com sô Luís. A moça branca,
meretriz e sem poder aquisitivo soube se achegar, compartilhar e aceitar a cultura do
local, ainda que totalmente distante da sua. Rapidamente ambientou-se e foi aceita; não
quis mudar nada, por isso não encontrou rejeição. Isso aponta para a compreensão de
que o musseque tem o seu modus vivendi; quem a ele se achega precisa entender e
respeitar este princípio. Ser negro ou ser branco, considerando o fato de que todos ali
estavam em situação de pobreza, logo, “na luta pelo pão de cada dia”, como diz
Mourão, perece não se constituir como fator impeditivo a uma convivência
relativamente razoável. No entanto, a questão da aceitação ou da rejeição se reforça tão-
somente no modo de como o novo morador se assenta nesse local que, por si só, dado o
contexto histórico-cultural vigente, apontava para um ambiente social em constante
ebulição e passível de intempéries de consequências imprevisíveis.

A menina Carmindinha: Uma voz dissidente em um mundo submisso

Entretanto, não é só com a chegada dos brancos ao musseque, simbolizada nas


figuras de sô Luís e Albertina, que esse romance se estrutura. Tensão e afeto em Nosso
Musseque tornam-se percebidos em algumas outras situações; diga-se de passagem,
neste livro, o território aludido, cuja representação simbólica ultrapassa a dimensão da
instância geoficcional, tudo o que diz respeito aos que nele habitam, de alguma forma,
despertará sentimento e reação, quer para o bem, quer para o mal. É o caso, agora, do
conflito de gerações que o narrador nos apresenta dentro da família do velho capitão
Bento Abano. A começar pelo afeto, sua filha, Carmindinha, sempre despontou-se como
moça prendada, “todas as horas arrumando, ajudando a mãe na cozinha, remendando
a roupa” (NM, p. 18). Era o orgulho da família e referência dentro da comunidade.
Seguia todos os preceitos do bom comportamento. Quando sá Domingas, a mãe,
intentou colocá-la num curso de costura em outro bairro, o pai negou e sustentou sua
postura conservadora na tradição familiar: “Filha minha tem a educação da mãe, a
educação da avó, a educação do nosso povo. Não deixo ela se perder na Baixa” (NM,
p. 22). Até este momento, a menina era revestida de um afeto recíproco com seus pares,
93

dentro e fora do círculo familiar. No entanto, tempos depois, no dia em que os soldados
abusaram de uma jovem da comunidade e ofenderam a um velho, a revolta da moça
aflorou, e, mediante ao conformismo de seu idoso pai, para quem os militares estavam
certos em conter a fúria do povo que clamava por justiça, reagiu energicamente ao
pedido por respeito que ele lhe fez para com as autoridades e, elevando a voz, ponderou:
“Respeito como então? Batem-te na tua porta, insultam-te na tua filha e você fica com
seu respeito, sua educação, não liga nessas coisas, não é? Fala que o povo só quer
vinho e roubo, [...] que já não tem homens como antigamente” (NM, p. 176). A partir
daí, a tensão entrou novamente na pauta literária e a discussão se estendeu a ponto do
narrador observar que a “peleja de uma menina saliente, de dezesseis anos, com seu
velho pai que sabia tudo, é o que as pessoas falavam no nosso musseque” (NM, p.
177).

O que fica evidenciado na mudança de atitude de Carmindinha, que outrora


nutria o afeto de seu pai pela devida obediência, mas que, depois, encoraja-se a ponto de
enfrentá-lo em discussão acalorada, originando a tensão, é o fato de que no musseque a
transformação da relação familiar, assim como em outros ambientes, já se encontrava
num processo irreversível de mudança. A autoridade do capitão Bento teria de se fazer
valer por outros caminhos, uma vez que não funcionava mais como era no formato do
passado. Em seu lamento com a filha, ele diz: “Antigamente, como eu dizia, a gente
podia exigir, a gente podia reclamar justiça! [...] Os seus concidadãos tinham-lhes
respeito, o povo tinha os seus chefes, eram reconhecidos... Não havia discussão. E
agora?...” (NM, p. 178). Ante a fala do progenitor, a menina retruca: “Isso tudo já
morreu, Senhor Capitão! Está morto, não serve para nada, papá!... [...]” (NM, p. 179).
Nesta reposta da filha o que fica muito evidente é a ruptura com um modelo de cultura
que quase não se sustentava mais perante a juventude, a tradição evocada pelo antigo
capitão já estava em declínio. A este respeito, na constatação de Salvato Trigo, as
“novas gerações africanas estão já bastante longe do espírito gerontocrático de seus
antepassados [...]” (TRIGO, 1981: p. 18). Isto mostra que o musseque, a despeito de sua
simbologia de resistência cultural e preservação da memória, que são fatos, não está
blindado da modernidade. Igual a todos outros lugares, as transformações, ainda que
mais gradativas neste espaço, é um caminho inerente a toda forma de organização
social.
94

Passado de glórias e presente de lamúrias

E nesta imersão no musseque que a narrativa nos conduz, deparamos com outro
momento de tensão e afeto: o que se deu no plano da ascensão e decadência sociais
representados nas histórias de sô Augusto e nga Xica. A começar pelo marido, o
narrador mostra o deslumbre de apogeu que esta personagem, sô Augusto,
experimentou no passado, foi no tempo em que este senhor gozava de prestígio e afeto
dentro da família e no musseque. Assim a narrativa dá conta de que, quem “não lhe
tivesse conhecido antigamente não podia acreditar logo que Augusto João Neto tinha
sido encarregado geral da electricidade, na grande oficina lá em baixo, no Bungo,
onde já existia muito tempo” (NM, p. 69). Era um homem respeitado e admirado por
todos naquele local. Sá Domingas lembra: “Aiuê! Quem lhe conheceu... O patrão até
vinha lhe trazer no carro, mana! De carro, cá em cima! O rapaz estava trabalhar no
Bungo...” (NM, p. 68). Casado com Nga Xica, que também era notória no tempo em
que seu marido estava em alta, digamos assim. Entretanto, falando do seu atual estado,
o narrador recorda: “... nga Xica, agora magrinha e feia, bessangana bonita como era
nos seus tempos de rebitas e massembas” (NM, p. 68). O afeto de outrora transformou-
se em tensão no momento em que sô Augusto foi demitido por conta da chegada do
filho do dono, um engenheiro, que veio tomar conta da oficina. Deprimido, entregou-se
à bebida e mergulhou a família na miséria social, a ponto do narrador observar que “a
diferença entre Augusto João Neto de antigamente e sô Augusto de agora era tão
grande que a gente não acreditava” (NM, p. 69). Esta personagem foi vítima de um
processo excludente que se deu em Angola motivado pela chegada de novos colonos.
Muitos destes, possuidores de capacidade técnica, quando não diplomados, foram, por
força da circunstância, tirando os espaços dos negros do mercado de trabalho, como
aconteceu com sô Augusto. O resultado disso foi o aumento do contingente negro na
marginalização e a contribuição para o pensamento de que o autóctone angolano não
tinha condições de executar tarefa laboral de maior complexidade. Ora, na esteira de um
processo de colonização que precisava alocar o colono português nas terras africanas, a
manutenção do mito de que a sua capacidade técnica era superior a do negro favoreceu
a ocupação dele nas funções de maiores relevâncias. Sô Augusto é uma personagem
através da qual Luandino Vieira denuncia o quanto ficou inviável ao colonizado a
possibilidade de ascensão sócio-econômica no período colonial; pior ainda, como
vimos, é que aqueles que estavam ocupados no mercado de trabalho e dele sustentavam
95

suas famílias, foram deliberadamente substituídos e jogados, por assim dizer, na


informalidade.

Fica evidente que Nosso Musseque é uma obra que mostra a força de um lugar e
a sua resistência ao regime colonial. Não só isso, revela também o seu ambiente interno,
sua gente, seu dia a dia, suas tensões e seus afetos. Como já foi dito, este romance é
uma sucessão de histórias reveladas a partir da perspectiva de um narrador que as
discorre segundo as suas recordações. Com isso, bem ao estilo do autor, não há entre
elas uma linearidade, pelo contrário, são narrativas fragmentadas que a todo instante vão
sendo retomadas e concluídas na medida em que a leitura avança. Neste repertório de
fatos, o leitor tem diante de si uma obra labiríntica que vai, aos poucos, como em um
quebra-cabeça, formando o seu sentido; em outros termos, construindo a sua lógica.
Ora, se são muitas as histórias, muitos são também os seus protagonistas. Neste
particular, as personagens e suas ações são planificadas e o que se destaca na narrativa é
o ente coletivizado. Quer isto dizer que em Nosso Musseque realça-se a figura do todo,
a saber: nativos, achegados e o próprio musseque. E este lugar, em semelhança
aproximada ao que se percebe em O Cortiço, romance naturalista escrito por Aluízio
Azevedo, publicado em 1890, revela-se vivo e atuante no cotidiano das pessoas que nele
residem. Convém relembrar que a narrativa azevedeana dá conta das penúrias
observadas na vida dos moradores de um cortiço no Rio de janeiro, no final do século
XIX, as quais são evidenciadas em tom de denúncia dentro da obra; em paralelo, o autor
revela um ambiente complexo, cheio de vivacidade e configurado como representação
da sociedade brasileira daquela época. Em Nosso musseque, levando-se em
consideração o estilo e a proposta do seu autor, bem como o local, a cultura e a época,
também há denuncia a respeito da condição desassistida na vida de alguns dos seus
habitantes e se constitui, no aspecto figurativo da obra, como representação da
sociedade colonial de Angola. E o topônimo, na condição de personagem, atua na cena
literária em diversas ocasiões: “Durante muitos meses o musseque arranjou uma calma
de todos os dias [...]” (NM, 19); “[...] todo musseque sabia ela falava só bom dia-boa
tarde...” (NM, 22); “[...] e o musseque gozou um vento fresco...” (NM, 43); “Mas
nosso musseque estava quieto e calado” (NM, 106); “[...] quando já era tarde e nosso
musseque dormia...” (NM, 149); “Foi assim que todo o musseque acordou...” (NM,
152).
96

Tensão e afeto, para concluir, são temas que se opõem nas experiências de vida
de cada personagem e se repetem em outras passagens não analisadas aqui. As histórias
condensadas em Nosso musseque, em que tais oposições se fazem evidenciar,
demonstram o quanto o musseque, território tão emblemático para o povo de Angola, é,
sobretudo, humano, tem seus erros e acertos naturais a todo contexto que conglomera
indivíduos; e, por isso mesmo, capaz de reações improváveis diante das situações. José
Luandino Vieira, que viveu este espaço tão angolano e a ele credita suas inspirações, foi
um cicerone perfeito ao nos conduzir para dentro de um mundo sui generis que, mesmo
sob o manto pesado do regime colonial, na escassez econômica e no acolhimento aos
desafortunados sociais, revela-se resiliente, subversivo e atuante na preservação da sua
matriz identitária. Mais ainda, este autor, que se projeta num narrador ávido por nos dar
a conhecer o que vem a ser este lugar único, consegue transmitir ao seu leitor o
sentimento que acomoda cada história, cada personagem, cada momento; coisa de quem
aprendeu e se orgulha, parafraseando uma frase sua nesse romance, em meter literatura
onde tem calor humano.

Nosso Musseque, como vimos, se delineia sob o olhar de uma criança e, como
tal, se pauta pelo prisma das recordações de um tempo de infância em que face à
repressão portuguesa emergiam também a necessidade de resistir para não sucumbir. De
várias formas o olhar dessa criança que observa, participa e nos narra os episódios
aponta para uma sociedade colonial que se revelava problemática desde os primórdios
de sua formação. Um exemplo claro pode ser apontado na postura das professoras em
relação aos meninos do musseque. Repare que a discriminação era tão visível que até
elas, que, em tese, seriam as mais preparadas para lidarem com a problemática social da
política de apartamento promovida pelo sistema colonial, utilizavam-se dela, reforçando
tal prática entre os entes angolanos, conforme o trecho a seguir:

E, pelo meio das filas, uma quantidade de miúdos desordenados que


tinham vindo sozinhos, corriam, brincavam, davam pinhões nos outros
e as suas gargalhadas e insultos perturbavam as sérias professoras que
falavam não havia direito deixarem vir assim a malandragem dos
musseques para o meio dos meninos educados (NM, p. 54).
97

Esta postura das professoras, que favorece ardilosamente a política de exclusão


social, contrasta com o modo de vida da cultura do musseque. Mesmo após calorosa
discussão por causa do cercamento do quintal por parte do policial sô Luis, a política de
aproximação e convivência se fez reinar, como se observa no seguinte trecho:

E, com o tempo assim a passar, fugiam as zangas como fumo; sá


Domingas e Bento Abano começaram outra vez a falar com seus
vizinhos brancos, vizinhança de pessoa pobre não pode continuar
zangada, é verdade mesmo (NM, p. 19).

Repare que a decisão de apaziguamento parte dos moradores antigos; há uma


consciência de que a paz é algo necessária, desejável e sempre bem-vinda; afinal, como
enfatiza o narrador, “vizinhança pobre não pode continuar zangada, é verdade mesmo”.
O fato de sinalizar que pobreza não é chamariz ou motivação de distúrbios entre
vizinhos, o texto dá conta de que a ideologia de afastamento ou celeuma fermentada
pelo sistema para dividir o povo angolano, no musseque, estava fadada ao fracasso,
mesmo que diante de um sô Luis que ameaçava a manutenção do status quo do lugar;
diga-se de passagem que partiram dele as expressões: “Este musseque tem de ser um
bairro decente!” (p. 39), “Hão-de ver! Limpo a merda deste musseque” (p. 137), “Vou
acabar com isto,ah vou!” (p. 141) e “A gente vai fazer a cama à vadiagem deste
musseque!” (p. 142). Observa-se claramente que sô Luis, na condição de morador e
mais ainda na condição de polícia, não era um promovedor da paz e da segurança da
população do musseque, pelo contrário, como demonstramos, dele partia a repressão e a
pretensão de “limpar” o bairro. Todavia, passando por cima do orgulho, da possível
rejeição ou mesmo de um certo desprezo, a decisão de se reaproximar dos vizinhos
brancos não foi um movimento isolado, e, sim, coletivo. Sá Domingas e Bento Abano
representam o desejo de todos da comunidade. E como consequência, continua o
narrador: “Durante muitos meses o musseque arranjou uma calma de todos os dias” (p.
19). A paz, tão necessária àqueles dias de tormentos político-sociais, em que o regime
colonial começava a mostrar sua face mais austera, os habitantes do musseque, a
despeito de suas condições de pobreza e periféricos, demonstram resistência identitária
ao apontar que o estilo de vida angolano não poderia ser alterado pelo jogo separatista
do colonizador; havia assim, por parte dos locais, uma tomada de consciência de que era
necessário resistir, ainda que, naquele momento, essa resistência se dava através de um
diálogo que parecia possível. Luandino Vieira, assim, aponta o quanto a resiliência
98

africana estava blindada aos paradigmas europeus de estratificação social imputado às


colônias.

Esta forma de resistir, através do diálogo, se transforma. Não é só o policial sô


Luis que extrapolou os limites da autoridade dentro do musseque; também “os soldados
não respeitavam, provocavam as pelejas” (NM, p. 168). Já era um clima de guerra e
muitas “vezes, numa esquina, um soldado ficava sangrar, a cabeça partida pela pedra
ou arco de barril saído da noite e ninguém mais encontrava, sabia, ouvia” (NM, p.
169). O povo reagia aos abusos de forma escamoteada, como vimos, uma vez que não
tinha os aparatos necessários a um confronto direto. Embora, diante de situações
insustentáveis, o narrador reporta-se que

as pessoas começaram falar era a revolta dos musseques, queriam


matar os soldados que andavam provocar as pessoas nessa manhã,
vinham a bater nas portas e janelas e chamando todas as mulheres e
meninas de putas, tinham cuspido na cara dos velhos, invadido mesmo
as cubatas (NM, p. 172).

Diante da provocação dos soldados, a reação veio quase que instantânea, pois

sem que ninguém passasse a palavra de musseque em musseque, as


pessoas agarraram nos arcos, nos paus, nas catanas, pedras, e vieram
nas ruas para defender as mulheres, pelejar com os soldados, morrer
se era preciso (p. 173).

O musseque, assim, estabelece-se como um guardião da honra angolana, um


foco de resistência e reação frente a um comportamento insano e provocador fomentado
pelos soldados. Neste sentido, ele desempenha importante papel em assegurar que os
valores da ética africana estavam, ali, resguardados, ainda que o preço fosse o de
“morrer se era preciso”. Nesta ficção, Luandino nos mostra que a representação do
musseque se constituiu buscando equacionar a situação de desequilíbrio social causado
pelo ente colonizador, principalmente no que concerne à violação aos princípios
fundamentais da convivência, como o direito de não admitir que suas cubatas sejam
99

invadidas, suas mulheres serem insultadas e seus velhos levarem cuspidas na cara.
Situações, estas, capazes de inflamar reações adversas em qualquer modelo de
sociedade, seja ela colonial ou não. Quer isto nos dizer que Luandino, pelo olhar de uma
criança, não só desnudou as mazelas coloniais, mas, sobretudo, notabilizou o território
do musseque como uma reserva moral, forte, unido e capaz de reagir, ainda que com
arcos, paus, catanas e pedras. O musseque se estabelece, assim, como um organismo
autônomo dentro de um país neutralizado por um regime autoritário que não respeita
aqueles que estão à margem dos limites urbanos.
100

Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto & Eu


Tempo de romper, o sonho acabou!

“E aqueles que foram vistos


dançando foram julgados
insanos por aqueles que não
podiam escutar a música.”
(Friedrich Nietzsche)

Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto & Eu

José Luandino Vieira já se encontrava preso há pelo menos onze anos quando
esta obra, Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto & Eu, foi concluída, em 1972. Tal
fato, naturalmente, lhe permitiu um olhar diferenciado para a realidade política de seu
país. A distância entre essa narrativa e A Cidade e a Infância e Nosso Musseque, obras
que analisamos anteriormente, ultrapassa os dez anos. No entanto, antes de adentrarmos
nos aspectos literários que remetem ao espaço da infância, objeto de nossa análise,
chama-nos a atenção o relato do autor em Papéis da Prisão (2015): “Aliás, a última
história que eu escrevi, ‘Kinaxixi Kiami! Meu Kinaxixi’, acabei-a dois meses antes de
sair em liberdade condicional” (p.1069). Este depoimento nos fornece uma pequena
dica de que o cidadão que foi preso em 1961 sob acusação de terrorismo encontrava-se
sob novas motivações. Os resquícios de uma crença na utopia revolucionária e os
questionamentos suscitados nas análises anteriores encontram-se superados nas duas
novelas que compõem esse livro. Por isso, Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto &
Eu configurou-se, no tocante à investigação que vimos realizando nesta dissertação, o
que consideramos como a terceira fase do pensamento luandino.

Pelo exposto, não é dificultoso concordar que JLV, nesse período, estava bem
mais amadurecido. A trajetória de sua vida, até aquele momento produzindo sua escrita
dentro dos variados presídios pelos quais passou, bem como as suas convicções
político-ideológicas confirmavam isso. Uma prova indelével desta assertiva foi o seu
fenômeno editorial Luuanda (1964) que, até aquele ano, acumulava duas premiações: O
Prêmio Literário Mota Veiga (1964), em Angola e o Grande Prêmio de Novelística da
Sociedade Portuguesa de Escritores (1965), em Portugal.
101

Nessa fase, a narrativa luandina apresenta como característica principal a


disposição do escritor em romper de maneira mais frontal, digamos assim, com os ideais
dos movimentos revolucionários. Mas fica aqui o registro de que JLV não os tinha
abandonado de todo nas narrativas anteriores. Em outras palavras, Lourentinho, Dona
Antónia de Sousa Neto & Eu marca a desvinculação completa de Luandino Vieira com a
proposta do frágil projeto de nação que até então se fazia perceber em suas outras
produções artísticas. Inclusive quando demonstrou pessimismo, descontentamento e
severas críticas não só ao sistema colonial vigente, mas também às incongruências
detectadas nas atitudes de seus pares.

Esta obra, na verdade, são duas histórias que se apresentam narradas em um


estilo que se aproxima bastante do gênero novelístico: Kinaxixi Kiami e Estória de
família (Dona Antónia de Sousa Neto). A primeira reporta-se à experiência da
personagem Lourentinho que, nascido e criado no Kinaxixi, em Luanda, onde passa
toda a infância no entorno da grande lagoa que confere nome ao bairro de seu
nascimento, desloca-se para a região rural de Angola para viver muitas aventuras. A
segunda refere-se a um pedido de casamento no qual todas as tradições daquela cultura,
no que diz respeito a esse ato, são consideradas no espaço literário. Nas duas narrativas
Luandino Vieira retomou uma tendência recorrente na sua escrita: discutir vários
assuntos referentes à cultura angolana. Por algumas vezes ele inseriu na pauta literária
questões de amplitude mais universais. Não obstante, também repetiu nelas a criação de
várias personagens oriundas das camadas populares daquela nação; em certa medida,
essas personagens se nivelam em importância dentro das tramas, o que mostra a
preocupação do autor em valorizar, como já dissemos, o povo colonizado no espaço da
ficção.

Para encerrar esta exposição, tanto em Kinaxixi Kiami, como em Estória de


Família, perceberemos um Luandino Vieira mais sectário e distanciado afetivamente
daquele antigamente de A Cidade e a Infância e Nosso Musseque, em que Luanda,
ainda que tomada por predadores mercantilistas que ofertaram o seu espaço aos
interesses imobiliários e a transformaram em um lugar caro de se viver, fecundava nas
entranhas de seus habitantes um sentimento de pertencimento e identificação. Ao trazer
o ambiente rural (KK) e a loucura (EF), dois temas ainda não explorados até então pelas
narrativas luandinas, o autor se afasta geograficamente da atmosfera urbana luandense,
tributária da inspiração de sua escrita, ao mesmo tempo em que enxerga na patologia
102

acometida na mente de uma criança a representação perfeita da enfermidade política que


ameaçava, naquele momento, às vésperas do que seria a celebração do casamento da
utopia revolucionária com a realidade histórica, transformar tudo o que se sonhou para a
Angola em uma guerra civil étnico-partidária.

Lourentinho, o menino mulato

A novela Kinaxixi Kiami poderia perfeitamente chamar-se As Aventuras de


Lourentinho. Isto porque esta personagem protagoniza as experiências em torno de uma
lagoa imensa que havia em sua cidade e depois, já na fase de rapaz, mudou-se para o
campo, onde viveu um longo tempo até retornar para Luanda, que é o lugar em que,
segundo ele, esperava ter a alegria de morrer. Na condição de mulato, que lhe era cara
naquele contexto, desde cedo demonstrou assentado ressentimento com o seu
progenitor, a quem sequer conheceu:

E sou filho é só de minha mãe – negra. De seus panos do antigamente


tive bondosa bênção até na morte. Me ensinou orgulho de não saber
quem é o meu pai, branco à-toa. Um homem, ela só disse, a vez única
– e eu aprendi o sinônimo de cão que mija em candeeiro, a ferrugem
já não é mais com ele (p. 15)

O sentimento do mulato Lourentinho, em entender-se como resultado da ação do


“cão que mija em candeeiro”, a saber, “a ferrugem”, é a síntese do drama sociológico
que esse indivíduo, filho, igual na ampla maioria angolana pertencente a essa etnia, de
mãe africana negra com o pai português branco, viveu no mundo colonial. A questão é a
mesma que vimos nas narrativas anteriores: o colonizador europeu apodera-se da filha
da África e lhe gera filhos – mulatos! E mais uma vez Luandino Vieira confere
importância a este assunto que tem os mesmos ingredientes e os agentes de sempre;
tanto é que em A Cidade e a Infância analisamos três histórias que versaram sobre o
tema. Foi assim que conhecemos a história da menina Bebiana, que praticamente estava
sendo oferecida pela mãe a um indivíduo branco, com a justificativa de que os seus
futuros netos, nascendo com a pele clara, poderiam ser mais bem sucedidos na
sociedade colonial. Vimos também a história da menina Marcelina, mãe solteira que
103

fora abandonada pelo pai da criança, um branco que não se viu comprometido em criar
o filho; ela tinha a esperança de que um outro homem branco a assumisse como esposa.
E analisamos ainda a dramática história do menino Armindo que, a despeito de ser um
exímio contador de história, alegrar seus companheiros e tocar gaita, levava uma vida
toda desajustada; por fraqueza e falta de acolhida social, passou a cometer alguns delitos
até ser morto pela polícia.

O orgulho do menino Lourentinho em não querer saber quem é o pai, o “branco


à-toa” mostra o quanto este elemento da etnia branca se beneficiava de, pelo menos,
duas regalias recorrentes que a sua condição étnica no sistema colonial lhe
proporcionava: a primeira foi de caráter moral, que, ao que parece, não o obrigava ao
exercício cívico-judicial de assumir a prole que era gerada das relações
descomprometidas com as mulheres negras da colônia; a segunda foi de caráter social,
uma vez que a pele clara desse indivíduo lhe conferia também algum prestígio, o que
despertava o desejo em algumas mulheres, sobretudo nas mulatas, de terem filhos com
ele como forma de “embranquecer” sua descendência. Em resumo, podemos concluir
que havia uma espécie de salvo conduto social que “liberava” esse elemento, o homem
branco português, para suas práticas sexuais inconsequentes, sem que isso se redundasse
em futura dor de cabeça com as responsabilidades familiares.

Contudo, José Luandino Vieira, perito escritor que é, e demonstrando


preocupação com a causa, jamais repetiria uma personagem mulata em sua obra se
fosse, tão-somente, para expor mais um caso de um elemento vitimado pelo sistema
colonial há muito denunciado na ficção literária. Havia, obviamente, uma intenção a
mais: mostrar o drama de uma etnia vilipendiada pelos de dentro e pelos de fora do
espaço angolano.

Em outro episódio dessa novela aconteceu de Lourentinho, morando fora de


Luanda, empregar-se numa fazenda na região rural dos Dembos. Lá ele se tornou chofer
do senhor Fóguer, um cientista alemão que residiu por algum tempo em Angola para
pesquisar as serpentes nativas do país. A maneira que o estudioso encontrou para obter
os animais que precisava foi a de remunerar os moradores da região por cada exemplar
vivo capturado. Assim a população do entorno começou a tornar a caça às cobras uma
fonte de renda e, quanto mais rara fosse, melhor o estrangeiro pagava. Certo dia,
levaram-lhe uma espécie raríssima. A beleza do animal chamou a atenção de
104

Lourentinho: “Critiquei, em minha alegria: Senhor, serpente assim, devias fazer sem
veneno algum...” (p. 50). Ante a esta declaração, o seu patrão alemão, que falava um
português repleto de “erre” colocou um ingrediente a mais na questão do mulatismo na
colônia. Lourentinho continua a narração: “Ele [o senhor Fóguer] me olhou,
estranhadamente, macio. E me deu sua bênção: ‘Primerro mulato com alma que
n’Angola vêrre!...’” (p. 50).

Como se vê, Lourentinho, aos olhos do pesquisador alemão era o “Primerro


mulato com alma “. Em outros termos, esse mulato sobrepunha-se aos outros, pois tinha
alma. Numa outra passagem, ao receber a visita de um amigo português, branco, o
senhor Fóguer lhe ofereceu um churrasco, mas deixou, como de costume, Lourentinho
fora da mesa. E assim este narrou o fato: “Eu, de longe, via – mulato respeitado é, mas
no comer só com portugueses outros. Em mesa de meu patrão alemão podia ver cobra
passear – angolano não [...]” (p. 44). A postura do alemão espelhava a forma como o
angolano em geral era visto pelo europeu. A bem da verdade, este só tinha o interesse
nas riquezas que as terras africanas podiam lhe gerar. Por mais que parecesse sentir
algum respeito por Lourentinho, o senhor Fóguer, com suas ações, demonstrava
claramente a regra do jogo social. Basta refletirmos sobre o gesto do alemão, que
deixava seu auxiliar fora da mesa, onde “podia ver cobra passear”. Com isso, a
genialidade artística luandina coloca em evidência que o preconceito étnico, que se deu
dentro e fora do mundo africano, ainda guardava forte marcas da visão europeia que
predominava desde os séculos anteriores: a de que o ente africano se igualava em
importância aos animais selvagens. A surpresa do estudioso alemão, o senhor Fóguer,
em “vêrre” o “primerro mulato com alma”, pontua a fina ironia de Luandino Vieira em
lidar com um tema caro dentro do espaço angolano e que precisava, com urgência, de
ser discutido com seriedade naquela sociedade que estava prestes a conquistar o status
de nação independente.

Kinaxixi Kiami: os meninos Lorentinho e Zeca no antigamente gasto

O deslocamento do menino Lourentinho da cidade de Luanda para o ambiente


rural pontua outro traço da ruptura do autor com o resquício da utopia revolucionária
que lhe restava e que era muito fomentada no espaço urbano. Neste sentido, o
distanciamento geográfico possibilitou ao protagonista luandense um olhar menos
105

vinculado ao afeto e mais pautado na realidade que assolava o território em que nasceu,
por isso se angustia:

Ah, irmão: tudo hoje é só nossas lágrimas no pó da alma, o verde


cheiro da terra quinaxíxica em baixo da chuva não tem mais. Planície
quinaxixe agora só acampamento, nómadas sedentários de terras e
solos – bebem, sujam, cidadanizam verdes, tudo pastos nos rebanhos
de suas ávidas macutas. Cegam o ar e o mar, civilização. Suicidaram
tudo. Que até prenderam minha alma – mafumeira de esbeltas
saudades, irmã gêmea... (p. 14)

Este trecho, quase que um cântico de lamentações profundas, mostra-nos a dor


de um angolano que, com “lágrimas no pó da alma”, testemunhou em que foi
transformado aquele lugar, outrora arborizado e adornado por uma bela lagoa. À
distância, o narrador percebe que “o verde cheiro da terra quinaxíxica em baixo da
chuva não tem mais”, “suicidaram tudo”; “quinaxixe agora só acampamento”, pois
chegaram por lá os senhores da “civilização”, que “bebem, sujam cidadanizam verdes”
e impuseram a atroz mudança no espaço físico por meio das suas “ávidas macutas”. A
força do capital predador – “ávidas macutas” – afastou o natural da terra, matou a lagoa
e trouxe os “sedentários” sem nenhum zelo afetivo com o território. Esta nova
realidade aponta o quanto o colonizado em Angola, visto como não pertencente à
civilização, logo, um alguém sem identidade, sem cultura, sem espaço social entre os
detentores do poder, estava relegado à condição de periférico. De longe, Lourentinho
viu seu mundo de infância feliz ruir com a ocupação do colono no seu antigo espaço e a
consequente expulsão dos antigos moradores. Tudo isso, sem dúvida, influenciou no
acirramento das reações.

A novela Kinaxixi Kiami é a primeira narrativa de Luandino Vieira que traz para
o ambiente literário a região campestre. E, consequentemente, é o primeiro grande
distanciamento geográfico do musseque, espaço do assentamento da sua escrita.
Embora, em pensamento, essa personagem nunca se afastou de sua terra natal, a
“sempre a capital do mundo universo” (p. 13). Esta mudança de cenário, como é de se
esperar em um grande escritor, tem valor simbólico. Ela trouxe consigo uma alteração
no modo de entender, pelo viés da narrativa ficcional, o que estava ocorrendo no
106

contexto histórico daquela época, principalmente na motivação dos agentes angolanos


que atuavam no espaço urbano. Afinal, a sociedade de Angola estava às véspera de se
vê livre do julgo colonial e, ao mesmo tempo, o colonizador português mostrava-se
disposto a não abrir mão do território colonizado. O embate inevitável dos dois
interesses gerou a guerra. Luandino Vieira, mesmo preso, acompanhava com interesse a
tudo que estava acontecendo do lado de fora e não há dúvida de que todo aquele tempo
encarcerado lhe conferiu o amadurecimento das reflexões a respeito de muitos assuntos.
E, considerando que àquela altura da situação a sua condição prisional caminhava para o
esperado desfecho – Luandino Vieira ganhou a liberdade condicional em 1972 –, sua
percepção do contexto já não poderia ser semelhante a de 1961, quando lhe foi subtraída
a liberdade. Entendemos então que a saída de Lourentinho do Kinaxixi para o campo
passou a ser o deslocamento ideológico do próprio autor, que se permitiu romper com a
perspectiva local e, ao mesmo tempo, muniu-se de uma visão mais distanciada, menos
contagiada pela euforia do momento.

A marca desse novo olhar, podemos assim entender, encontra-se pela distância
da observação a um Kinaxixi que “era a demasiada planície de um só rio, a vala nossa”
(p. 13). Ao mesmo tempo, tal marca se confirma com a percepção “dum antigamente
gasto” (p. 67) que encontra guarita na modificada atitude do amigo de infância dessa
personagem. A narrativa dá conta de que, ao retornar do campo para a sua cidade natal,
Luanda, Lourentinho reencontra aquele que fora um de seus melhores parceiros na
época de menino. Ambos cresceram juntos, brincaram pelas ruas do musseque e
aventuraram-se em banhos irresponsáveis na grande lagoa. Mas o sentimento do Zeca,
este antigo companheiro, para com o bairro onde nasceu secou-se.

Porque serviço era o aquele assim, o Zeca disse: terraplanar o terreno,


na cota não sei quê; derrubar a árvore, limpar; compactar nossa
afogada lagoa. Lhe olhei bem dentro dos seus óculos, queria os olhos
do antigamente – os de zangado profeta, puro (p. 65).

Lourentinho lamenta com pesar ao perceber o quanto aquele seu amigo estava
diferente. O moço agora era o então encarregado de terraplanar toda aquela região,
outrora com lagoa e matas, para permitir a construção de prédios comerciais e
107

condomínios residenciais. Tarefa árdua e inflamada, visto que os naturais da terra se


levantaram em protestos, manifestaram sua indignação. Contudo, a força das “ávidas
macutas” venceu. O espaço foi irreversivelmente alterado, assim como o sentimento de
quem nele viveu e fora captado pelo capital. Frente a este cenário de novas
intervenções, Lourentinho observa que o seu antigo mundo ruiu, até seu amigo não era
mais o mesmo: “Foi quando vi o Zeca tinha perdido a alma, era mesmo engenheiro:
veio com a polícia” (p. 68).

Ao que se percebe, Zeca, aquele amigo de infância, parceiro de aventuras


desmedidas, tornou-se um engenheiro que estava a serviço dos interesses daqueles que
promoviam as bruscas alterações na paisagem do bairro Kinaxixi. Até a lagoa, beleza
imponente do lugar, foi compactada por ordem do engenheiro. Conforme a crença
local, nela residia a deusa Kianda. Trata-se da sereia a quem os angolanos dedicam
devoção. Nesta obra, acreditavam ter sido ela a única responsável pelo salvamento de
Lourentinho, quando este, na época um menino de oito anos de idade, estava a sofrer
um afogamento. O ex-comparsa de infância, na perspectiva de Lourentinho, não tinha
mais “os olhos do antigamente”, “tinha perdido a alma”. O tempo, as ávidas macutas, a
civilização o modificaram profundamente. Lourentinho, ao contrário, que saiu para
morar em área rural – onde desenvolveu-se como homem –, não foi afetado por essa
modernidade predadora, que modificou o espaço e as pessoas. Conseguiu preservar a
sua alma. Porém, triste e abalado, ele contempla a única árvore que restou do seu tempo
de infância:

E minha mafumeira, adejar de silêncio, sem pássaros, sem família,


sozinha na cidade de ferro e pus – sangrava.

Fechei os olhos. Vi-a ao sol, dourada e nossa – nós: o Zeca; o Dinito


dos olhos amarelos, em prisão de manicômio; a Xana – única paixão
de todos; eu e o Gigi; o Xoa, chefe; vieram eles e os outros, os
Pinheiros e o Jão, Kinaxixi todo de tudo, capins e chuvas de infância.
A vala, a morte – eu; a sereia; a mafumeira, árvore do paraíso (p. 71)

Agora a mafumeira, “árvore do paraíso” encontra-se “sozinha na cidade de


ferro”, só mesmo nos devaneios que ela se apresenta “dourada e nossa”. Luanda,
outrora tão plena, era outra cidade totalmente diferente daquela assentada na sua
lembrança do passado. Só lhe resta então a saudade, a memória de um lugar onde ele e
108

os meninos companheiros foram felizes: aquele “Kinaxixi todo de tudo, capins e chuva
de infância”.

O campo buscado por Lourentinho, que o blindou da voluptuosa civilização que


se assenhorou de Luanda e lhe deu condições de observar aquele “Kinaxixi [...] capital
do sonho novo” (p.14), pode ser entendido como um espelhamento do campo de
concentração imposto a Luandino Vieira. Este, isolado no seu último espaço penal, o
Campo Prisional do Tarrafal, em Cabo Verde, pôde ver à distância todo o mal a que se
acometia em sua terra amada, Luanda. Mais do que isso, viu também a predação política
e social que se impunha naqueles turbulentos anos setenta. Figurativamente, seu
isolamento prisional o conservou convicto nas suas ideias e ideais revolucionários a
ponto de criar uma personagem que necessitou do afastamento para perceber, com
clareza, todas as mazelas do sistema colonial e todas as modificações na alma de seus
pares angolanos. O menino Zeca, com outros meninos, Dinito, Xana, Gigi, Xoa, Jão, foi
transformado em homem insensível, urbanamente modificado; todos sucumbiram com a
chegada de gente gananciosa, predadora, sem amor a terra. Lourentinho foi para o mato,
aprendeu sobre animais, conviveu com homens simples e conseguiu preservar a pureza
de alma que lhe acompanhava desde a tenra infância.

Percebemos, então, dois mundos em contradição: o de Lourentinho, buscando


preservar a herança da infância que conservava seu espaço de convivência com suas
amizades e tradições, e o do Zeca, contaminado pela ganância predadora da civilização
(o colonizador), que vende a alma ao sistema que transforma a terra e os homens. Com
essa novela, Luandino Vieira deixou claro que ele estava movido por um novo
sentimento em relação ao futuro do seu país. O simbolismo revelado por uma narrativa
produzida nos momentos derradeiros do próprio autor no campo de concentração e que
deslocou o protagonismo da personagem para o espaço rural é a senha definidora de
uma ruptura com a ideologia que foi modificada.

Pelo momento histórico evidente, fica muito claro em Luandino Vieira o que
disse Frantz Fanon, a respeito da independência dos países colonizados:

Nos países subdesenvolvidos que chegam à independência, existe


quase sempre um pequeno número de intelectuais honestos, sem ideias
políticas muito precisas, que, instintivamente, desconfiam dessa
109

corrida aos postos e aos privilégios, sintomática dos países


colonizados logo depois da independência. A situação particular
desses homens (arrimo de família numerosa) ou sua história
(experiência difíceis, formação moral rigorosa) explicam esse
desprezo tão manifesto pelos espertalhões e pelos aproveitadores. É
preciso usar esses homens no combate decisivo que se quer travar,
para uma orientação saudável da nação (FANON, 2005: 205).

A condição de Zeca, representação desses “intelectuais honestos, sem ideias


políticas muito precisas”, apontava para a insensibilidade geossocial; por isso
demonstrava certo “desprezo” pelo o que estava ocorrendo ao redor de si. Estava
assimilado pelo sistema, que lhe alienava ao trabalho sem questionamento e não se
importava com o entorno. Conforme Fanon, era o tipo de homem que carecia de “uma
orientação saudável da nação”. Por outro lado, Lourentinho, cuja visão nutriu-se da
experiência de morar fora do cenário urbano, logo, estava investido das memórias de
sua infância no musseque de Kinaxixi, valorizava – e muito! – o espaço em que nasceu
e cresceu, como disse, “sempre a capital do mundo universo – qualquer lado a gente
olhávamos se viam eram os curvos horizontes” (p. 13).

Já vimos que no plano da história, Angola, por ocasião da produção dessa


narrativa, estava às vésperas de tornar-se independente. Foi um período fecundo de
inúmeros ideais e interesses, quer das camadas populares, quer dos gestores políticos. A
preocupação de Luandino Vieira demonstrada na trajetória diferente das duas
personagens foi de chamar atenção para a falta de compromisso político-ideológico de
indivíduos como o engenheiro Zeca, que tinha perdido a alma, favorecia aos interesses
dos que suicidaram tudo. Abriria o espaço que viria a ser ocupado, como destacou
Fanon, “pelos espertalhões e pelos aproveitadores”. Daí a necessidade de alguém que,
ainda que tenha nascido naquele lugar, fosse capaz de observar de fora, como fez
Lourentinho. Com efeito, tal postura poderia, conforme Fanon,

evitar as peripécias dramáticas da época pós-independência, as


desventuras da unidade nacional, a degradação dos costumes, o cerco
do país pela corrupção, a regressão econômica e, a curto prazo, um
regime antidemocrático repousando sobre a força e a intimidação
(FANON, 2005: 206).
110

Luandino Vieira viu tudo isso que Fanon destacou. Sua sensibilidade artística
criou esta personagem, Lourentinho, que, como ele, estava afastado fisicamente de
Luanda, mas que, ideologicamente nunca dela se ausentou. A distância de ambos, autor
e personagem, da sua cidade, lhes permitiu analisar de fora os acontecimentos políticos
e sociais daquele momento. E, de fato, tudo, ou quase tudo, infelizmente, veio a ocorrer.
Então, a ruptura prévia do autor com a utopia revolucionária tinha um porquê de ser. A
sensibilidade artística o permitiu enxergar aquilo que seus pares não viam, ou, em
alguns casos, não queriam ver. A sonhada independência de Angola, pelo moldes que a
política étnico-partidária estava pontuando, comprometeria a intenção maior de se
construir um país livre, justo, estável e soberano.

O espaço da infância, mais uma vez retomado nesta obra, foi o caminho
adequado para que José Luandino Vieira apontasse a fragilidade de um projeto de nação
que necessitava de ajustes. Os meninos Zeca e Lourentinho, nascidos e criados no
mesmo território, trilharam caminhos diferentes revelando dois tipos de visão sobre o
contexto político e ideológico do mundo angolano por ocasião dos momentos que
antecederam a independência de seu país.

Agregação e ruptura em Estória de Família

O texto nos informa uma autêntica festa africana moldada nos parâmetros
angolanos. Os Mateus e os Sousa se unem em torno da celebração do casamento de
Jinga, a noiva por parte dos Sousa, e André Adão Mateus, ganga-zuzense (p. 83), por
parte dos Mateus. De todas as regiões de Angola surgem representantes das duas
famílias, principalmente da família Sousa, que, tendo por anfitrião a figura do
representante da guarda nacional, Damasceno, se da o luxo de trazer como convidados
alguns amigos brasileiros. No primeiro momento da narrativa, o enredo segue uma
trajetória natural de um evento entre entes familiares e convivais. Comes e bebes,
cantorias, contação de histórias e hábitos locais vão compondo o cenário de inter-
relação agradável de um ambiente intimista, mas que revela também pequenas ranhuras
político-ideológicas por parte de alguns dos presentes. Nada tão relevante capaz de
ofuscar o motivo maior da reunião: o casamento.
111

O cenário composto por Luandino Vieira não poderia ser melhor justificado do
que uma cerimônia nupcial, capaz de convergir para o mesmo espaço duas famílias de
etnias diferentes, convidados de distantes regiões e costumes, além de diversas
categorias sociais. Sem esconder as agruras naturais esperadas em um momento de tanto
antagonismo num único ambiente, o autor combina os conflitos domésticos com a
perspectiva inerente de uma possível convivência entre pares. Neste contexto, percebe-
se o flerte amoroso, a retórica poética, os contrapontos culturais, a vaidade insinuante e
as mazelas cotidianas dão evidente demonstração de que a sociedade angolana é capaz
de superar-se e motivar-se em prol do bem comum sem os ditames do regime opressor
que se estendia sobre aquela nação naquele conflituoso momento.

Intensificando a sugestão revolucionária que perpassa vários momentos dentro


da narrativa, é-nos apresentada Dona Antónia de Sousa Neto, “vocência sem favor. Vem
dos tempos do antigamente, lá onde a bela quindumba e os panos traçados fazem o sol
na mussemba...” (p. 75). Reivindicando a tradição gerontocrática pela qual se
conservam as matrizes culturais da sociedade angolana, esta personagem em muitos
momentos chama a atenção dos convidados com seus berros e palavreados proféticos.
As suas intervenções mostram a maneira elegante de Luandino denunciar a importância
de se prestar atenção às origens, às tradições que imprimem a identidade angolana. “Só
que, nesta hora, desterrada da história, deixa embranquecer os cabelos e sonha à
sombra murcha dos anos” (p. 75). Em meio aos agitos do mundo moderno, esta senhora
fica distante, debaixo de uma mandioqueira, praticamente despercebida. Ela é o símbolo
depreciado desta nova sociedade que se afasta das suas raízes atendendo aos ditames
dos valores coloniais, que trabalha ardilosamente pelo apagamento da identidade
africana.

A festa é animada. A força da representatividade angolana está presente nela.


Jinga, Damasceno e Dona Antónia de Sousa Neto são arquétipos de uma sociedade em
transição. Jinga é filha de Damasceno e neta de Dona Antónia. Esta noiva, apresentada
pelo narrador como “a caçula prometida” (p. 83), é a marca cultural de uma família
que, embora moderna para alguns temas, ainda preserva o cerceamento do direito
feminino da própria vontade. Num contexto em que a mulher é trocada por dote, o
termo “prometida” é a manifestação sutil do autor em anunciar seu repúdio a essa
prática. Não é, portanto, gratuito a euforia de seu pai perante os amigos e familiares.
Afinal, a filha mais nova está prometida a alguém com promissora capacidade de honrar
112

o lucro desse enlace; o jovem “André Adão Mateus, ganga-zuzense, é só sério,


conceituado superior empregado de firma com filiais no Congo” (p. 83).

Damasceno é o anfitrião da festa. Garboso e solene, ele mantém relações de


amizade com diversas personalidades e afins. Foi capaz de demonstrar seu bom
relacionamento com brasileiros, africanos, poetas, músicos, jornalistas e entes locais.

Dona Antónia é a matriarca. Avançada em idade e tida como delirante, refugia-


se debaixo de uma mandioqueira ao fundo do quintal de onde, entre baforadas de
cachimbo e momentâneas cochiladas, assiste a chegada dos convidados. Sua figura é a
própria tradição esquecida, mergulhada em seu mundo e isolada pela modernidade.

Jinga é o silêncio imposto; diante da crise de loucura de sua irmã, só fez chorar.
Prometida em casamento a um noivo de outro grupo étnico, sua participação na
narrativa é apagada. Embora não deveria, pois é para o evento dela que a estória se
criou.

O trio familiar é a representação típica dos danos que o sistema colonial fez em
angola. Jinga não tem voz, não tem vontade própria, não é senhora do seu destino.
Damasceno é um assimilado. Ocupando cargo institucional, encontra-se totalmente
imerso na orientação dos ditames do sistema; julga-se quase um lusitano ao empunhar
seu elmo contra o peito e proferir discurso dentro dos padrões do cânone português.
Dona Antónia é a velha esquecida. Totalmente apagada dentro da família e,
consequentemente, aos olhos da sociedade. De vez em quando berra, mas tal gesto surte
pouco efeito. Esta figura representa a tradição que já começa a ser esquecida. A
autoridade do ancião está relegada ao segundo plano dentro do sistema colonial, fato
incomum dentro da tradição africana que sempre viu nesse elemento uma matriz
estruturante dos desígnios comportamentais da sociedade.

Mas interessa-nos nesta obra a maneira explícita de como Luandino Vieira


insere o tema da loucura como veículo de contestação. Para tanto, entra na cena literária
uma figura que sibila. Usando-se da onomatopéia, o narrador insere uma sequência de
“ssssssss” trazendo o elemento fônico para a narrativa. Tété, como a personagem nos é
apresentada, difere de todos presentes na festa. Ela aparece de surpresa e protagoniza o
momento áureo da trama: lança excremento nos convidados e acaba com a celebração
do casamento da irmã.
113

Estória de Família é um conto que, junto com Kinaxixi Kiami, compõe o livro
Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto e Eu, publicado em 1981. Neste ano, por
sinal, José Luandino Vieira ganha a liberdade condicional, após cumprir doze anos de
prisão. Sua condenação foi motivada por suas ações políticas contra o regime colonial
português. Mesmo na prisão, local em que a obra foi escrita, ao que parece bem antes do
ano de publicação, o evidenciado tom ativista se faz notar. De certa forma, fica-nos
sinalizado que o autor já não acredita a esta altura nos rumos ideológicos que o
movimentos anti-colonial estavam tomando. Estória de Família constitui uma clara
ruptura com os ideários da independência. Pelo menos na sua formulação, já que o
movimento em si era um caminho sem volta. Os movimentos revolucionários estavam
no seu momento mais agudo, pré-anunciando o onze de novembro de 1975, data oficial
da independência de Angola.

A menina Tété: Loucura no espaço da Ruptura

O espaço da infância neste conto está colocado em duas instâncias. No primeiro


plano, as crianças, os “menores”, apresentam-se livres, peraltas e felizes; percebem o
mundo de forma diferenciado: “nos menores, risos e brincadeiras tudo era em seus
olhos” (p. 128). Não têm voz dentro da narrativa, são tão-somente arquétipos de um
momento propício ao que se espera de meninos em tenra infância: correrias, gritarias,
agitos e traquinagens. Naquele ambiente de festa, parentelas, convidados e afins, tudo
lhes estava propício ao jeito-criança-de-ser e de viver. Nenhuma se destaca, todas estão
no mesmo plano, cumprindo fielmente o caminho que lhes foi traçado: “risos e
brincadeiras”.

A segunda instância do espaço da infância está configurada na pessoa de Tété.


Ela mesma se apresenta: “Sou a senhorita Tereza de Sousa...” (p. 117). O narrador
também a apresenta, mas inclui um adjetivo que será determinante dentro da trama: “A
Teté, a louca, a verdade essa era” (p. 118). E traz uma informação emblemática à linha
que estamos analisando: “Mas era só uma criança – dos dez aos doze, pé descalço, o
dedo na boca ainda que trazia” (p. 119). Assim, o leitor passa a ter um quadro completo
a respeito de quem é essa personagem. Trata-se de uma menina, filha de Damasceno de
Sousa Neto que, diferente do restante das crianças presentes, tem voz dentro da
114

narrativa, embora não se encontre portadora da saúde mental. O narrador utiliza-se de


um tom enfático ao se referir ao seu estado psíquico: “a louca, a verdade essa era”.

Tété entra na cena literária já no final. Tudo já tinha acontecido: chegada dos
convidados, apresentações, discursos de Damasceno, berros de dona Antónia, leitura de
poesia, comes e bebes, desavenças políticas, presença da autoridade policial, cantorias,
brincadeiras de criança, agitos na cozinha e algumas coisas a mais. Dentro da
perspectiva da condução do enredo, a despeito da ausência da trajetória linear, como já
apontamos anteriormente, as situações abordadas caminhavam para o desfecho, sem
grandes novidades. Até então, o que se esperava da narrativa de Luandino Vieira vinha
se cumprindo: hibridismo linguístico, não-linearidade da narrativa, atemporalidade e
polaridade temática (tradição x modernidade; infância x adulto; idioma kimbundo x
idioma português; presente x passado). Nada tão significativo que já não tivesse
presente em outras obras desse autor. E, por isso mesmo, a presença de Teté revela-se
surpreendente. Não por ser ela mais uma personagem representativa ao espaço da
infância, objeto da análise. Mas, sobretudo, pelo que ela representa com seu atributo: ela
é louca, “verdade essa era”, enfatiza o narrador.

Com a inserção dessa personagem, tudo muda, do que até então conhecemos
sobre a pauta literária de José Luandino Vieira. Ao tematizar a loucura, o escritor
dimensiona a nossa análise para uma pauta incomum e sugestiva. Até então, discutimos
com ele temas diversos: estética, linguagem, colonialismo, política, história, infância,
musseque, amor, inquietação, angústia, velhice, cidade, país e outros. Loucura é,
portanto, surpreendente. Sem grande profundidade, ocorre a citação de uma loucura
apontada por meninos, em tom de brincadeiras de crianças, em uma passagem no conto
A Cidade e a Infância:

“Depois uma casa de pau-a-pique com telhado de zinco onde morava


a Talamanca, aquela mulata maluca que fazia as brincadeiras da
miudagem com pedradas e asneiras, quando eles lhe saíam à frente
puxando pelas saias e gritando Talamanca talamancaéééééééé” (CI,
p. 48)

Nesta citação, a loucura não oferece nada de representativo, é tão-somente um


tema vago. O narrador-personagem, Zinho, em pleno exercício de visita ao passado,
leva para a cena literária as peripécias de sua infância. Então, relembra uma tal “mulata
115

maluca” que atendia pelo nome de Talamanca, a qual, pelo seu estado de insanidade
mental, era alvo da chacota da miudagem. Esta é a única citação sobre a personagem,
demonstrando claramente que se trata de um episódio isolado, sem nenhum acréscimo à
estória que está sendo narrada pelo protagonista. Zinho a menciona sem relatar grandes
detalhes, o que confirma o postulado de que Luandino Vieira não explorou esse assunto
com a mesma profundidade e importância como o fez na obra analisada em curso.

Em Estória de Família, voltando à festa de casamento de Jinga e André, em


meio a comes e bebes, idas e vindas, falas e cantorias, a menina Teté surge de um modo
desconcertante entre os convivais. Ela se põe na cena literária da seguinte forma: “pé
descalço”, “cheiro de urina”, nada arrumada para a festa. Era alguém que, de fato, não
poderia estar ali naquele momento tão solene e intimista. Transfigurado ante “a rota e
descalça filha louca, a poeira sacudida de seus pés, coroa e grinaldas de flores
gentias” (p. 128), Damasceno ordena que a agarrem. Neste momento, “o ar se enche de
gritos e berros, corridas, cerca-cerca, tilinto de copos” (p. 128), um tumulto sem
dimensão. Todos se empenham em deter a louca. O Narrador assim descreve a cena:

Confusão; ordens, contra-ordens. Chovem detritos – cascas; ossos;


espinhas; cascabulho de dendéns, é uma chuva de fogo sobre as
nações em debandada. E cobrindo tudo a trombeta do anjo:
‘Suruuuucucuuuuu...’ Pânico: são pedras e vidros – voam pratos,
copos, os estilhaços cravam-se na pele do vento, tropear de sapatos
calçados (p.129).

Como se vê, a loucura configura-se como elemento desestabilizador de um


cenário que apresentava relativa harmonia. Apesar de alguns atritos eventuais, como o
agito das crianças, a tentativa de prisão por suspeita de insurreição política, as
discussões linguísticas em torno de palavras do português e do kimbundo e outros
eventos pontuais, nada se compara ao que se deu com a chegada de Tété, a menina
louca: “confusão” e “pânico”, “é uma chuva de fogo sobre as nações em debandada”.

Em seu artigo intitulado O Tema da Loucura na Literatura, na Pintura e no


Cinema – três diferentes perspectivas, Fernanda M. Vicente (2012) escreve que a
116

história da percepção da loucura traçada por Michel Foucault


revela que a atitude da comunidade e da sociedade para com os
loucos não se alterou com a passagem do tempo (1994:129). Os
loucos, como outrora os leprosos, são excluídos da sociedade,
encerrados num espaço para não perturbarem a ordem (p. 129).

Assim se deu a Tété, encerrada em um espaço para não perturbar a ordem. Em


meio a tantos gestos protocolares que o contexto do evento sugeria, a loucura não tinha
espaço, estava enfadada, como percebeu Foucault, a uma exclusão que “não se alterou
com a passagem do tempo”. Estória de família, com a inserção desse tema, aponta o
quanto a sociedade moderna africana se encontra moldada à cultura ocidental de isolar e
reprimir aqueles que se encontram destituídos de uma orientação mental saudável. Na
festa, à exceção da senhora Dona Antónia, que seguia seu sossego entre sono, sonhos,
visões e resmungos na sombra de uma mandioqueira no fundo do quintal, todos
buscavam represar a louca com suas loucuras. Entretanto, cabe aqui o adeno, não é
intenção deste trabalho enveredar-se em pesquisa a respeito de como a sociedade
africana lida com esse tema. Sem dúvida, quaisquer afirmações nessa direção seriam
colocadas em questionamento, visto que demandariam análises mais detidas e,
consequentemente, desviariam o foco do trabalho.

A outra face dessa loucura em Estória de Família, pode ser entendida como o
olhar conclusivo de José Luandino Vieira sobre os rumos que o processo da pré-
independência estava seguindo. Naquela festa “de pedido”, com muitos convidados, que
“virou lição etnograstrológica para brasileiro ver”, todas as estratificações sociais de
Angola estavam representadas. Do assimilado Damasceno ao poeta revolucionário
Tomás Dias Gomes, das ativas velhas cozinheiras à isolada anciã Dona Antónia, da
“Ala-dos-namorados” festivos à noiva chorosa Jinga, da mestiça Olga ao “preto-claro”
Guilhermino, é possível caracterizar cada elemento representativo da formação étinico-
cultural do país. Mais ainda, o policial Beltrão, os brasileiros Belchior e Alfa, os
músicos congolenses e alguns “descendentes dos lusos”. Todos no mesmo espaço se
entendendo, ou buscando se entender de alguma forma. A menina louca neste cenário é
mais uma vez a utilização do espaço da infância por parte do autor para afirmar que esse
clima de festa encontra-se psicodélico em demasia, necessita-se reorientar a trajetória.
Mas naquele ambiente de folguedo e euforia quem poderia insurgir-se como porta-voz
da consciência senão uma louca? Ou seja, exatamente aquela que, como as crianças, não
117

tem compromisso com as rédeas alienantes do sistema. Tété é o símbolo da


reivindicação autêntica da liberdade, sem a sutileza de uma falsa tolerância. Não era
tempo de festejar, era tempo de romper. E com este endurecimento ideológico,
alimentado pela sua condição escritor de encarcerado, que via por de trás das grades, os
equívocos de uma política de enfrentamento que precisava de ajuste, que Luandino
escreve o último notório ato da loucura de Tété: “E só então, humilhada e muda, como
quem esmola recebe, caga nas mão em concha – e asperge essa bênção excremental na
estúpida face do pobre mundo outra vez em fuga” (p. 131).

Ou seja, é preciso ouvir a Dona Antónia, a tradição, a memória; é preciso dar


voz às crianças, o futuro, a liberdade; é preciso rever as alianças, os pactos, os acordos;
é preciso entender a loucura, os caminhos, as limitações. É preciso romper com a
estupidez para não que na seja necessário fugir outra vez. Dessa forma, Luandino em
Estória de Família, mostra o que de fato estava ocorrendo em Angola nos últimos
períodos da pré-independência. Apesar da guerra, deflagrada a partir da segunda metade
da década de 1960, havia a urgência de se pensar o que seria da nação com a mudança
do regime. Quais eram os projetos a serem viabilizados quando a nação efetivamente
estivesse livre e dona de seu destino. A festa que trouxe convidados e afetos é o marco
simbólico de que o frenesi circunstancial estava a ofuscar uma realidade que precisava
ser pensada com seriedade e compromisso. Um dia Jinga e André casam, a música
cessa, os convidados se retiram, o evento chega ao fim; o que se faz no dia seguinte? De
maneira ilustrativa e irônica, Luandino está procurando mostrar que é loucura não
interromper a euforia naquele momento. Tété, na perspectiva dos presentes ao evento, é
aquela que precisava ser detida, tolida, cerceada, silenciada; é a louca. Detendo-a, o
clima de folguedo e euforia se restabeleceria; sua presença incomoda, provoca mal-
estar, desestabiliza. No entanto, é justamente ela, a louca, que se põe ao alto, de onde
consegue enxergar a todos; põe-se ao alto, de onde passa a ser vista por todos. A loucura
se torna o epicentro o qual, estrategicamente o autor lança o seu questionamento a um
futuro que estava por vir. A retirada do sistema colonial era ponto pacífico, a
mobilização revolucionária construía isso e a vontade do coletivo angolano apontava
para essa direção; a construção de um projeto pós-pátria livre era a necessidade
sinalizada nesta obra literária em questão. Luandino Vieira intenta assim questionar o
modelo de história e de identidade angolana que viria a se consolidar com a
independência do seu país. Estória de Família é o claro descontentamento de um escritor
118

que testemunha a história de seu país; não só isso, também está empenhado em torná-la
legítima e com fim proveitoso aos anseios do seu povo, capaz de se tornar dono de seu
próprio destino. O que fica claro, com esse episódio, é que Luandino Vieira sugere ser
uma loucura o excesso de ufanismo que pairava sobre a sociedade de Angola sem
considerar as complexidades que envolviam a estruturação e consolidação de uma nação
livre e soberana.

E assim, rompendo com a utopia derivante daquele mover histórico, vem a


constatação fatídica de que, apesar de tudo, tratava-se de um “sábado da era do senhor
dos exércitos, das crianças e dos loucos – a vida continua” (p. 131).
119

Considerações finais

“Lá onde não existe a


escrita, o homem está ligado
à palavra que profere. Está
comprometido por ela. Ele é
a palavra, e a palavra
encerra um testemunho
daquilo
que ele é.”

(Hampatê Ba)

Chegamos ao fim dessa incursão no espaço da infância na obra de José Luandino


Vieira. Percorremos os musseques e a cidade de Luanda através de algumas
personagens e/ou através de algumas das histórias contadas por elas. O intuito maior foi
alcançado: refletir a respeito da evolução do pensamento desse autor no que diz respeito
aos rumos que a sociedade angolana estava tomando nos anos que antecederam a
independência de Angola. Para tanto, elegemos como corpus literário três obras escritas
entre 1954 e 1972: A Cidade e a Infância, Nosso Musseque e Lourentinho, Dóna
Antónia de Sousa Neto & Eu.

Nestas narrativas percebemos três fases distintas do pensamento luandino. Por


isso, ao elegermos elas como textos geradores de nossas reflexões, procuramos entender
o modo como a pauta literária revelou a transformação do olhar de JLV a respeito dos
processos históricos pelos quais o território angolano passou desde a década de 1950 até
os dois primeiros anos da década de 1970. Ou seja, véspera da independência do país, a
qual se deu em 1975. Tais fases podem/devem ser interpretadas como importantes para
entendermos o que representou a percepção de JLV em relação ao mundo colonial e
suas implicações no presente e no futuro daquele país. Não obstante, vimos também que
o autor utilizou-se da representação da infância para problematizar o mundo adulto –
metáfora do sistema colonial. Neste sentido, para efeito da orientação metodológica que
utilizamos, este trabalho se estruturou na seguinte sequência: período da utopia, período
dos questionamentos e período da ruptura.
120

No período da utopia, observamos a valorização do passado. A obra em que


refletimos sobre este período foi A Cidade e a Infância. Nela, espaço da infância se
revela como um lugar de aventuras e liberdade plenas. O antigamente evocado pelas
lembranças de alguma personagem no presente demonstra o interesse da narrativa
luandina em resgatar as tradições culturais, a linguagem, os mitos e os ritos do povo
angolano; sobretudo do habitante de musseque. Ao mesmo tempo, confirma a postura
político-ideológica de JLV em contestar a dita versão oficial da história de Angola, que
não contempla o ponto de vista do colonizado. Portanto, para além das várias
possibilidades de se fazer leitura e análise dessa obra, podemos também entendê-la
como uma narrativa que rediscute o processo histórico. Conforme Francisco Noa
(2015):

Discutir o passado não é só para saber o que aí aconteceu nem


simplesmente para saber como ele influencia o presente, mas
sobretudo o que ele é, na verdade, se está concluído, ou continua sob
diferentes formas. Como ensina Cícero, não conhecer o passado é
permanecer sempre criança (NOA, 2015: p. 16).

Como vimos, Nosso Musseque é uma obra que mergulha no cotidiano do


habitante do musseque. Mantendo a proposta de valorização da cultura e da revisitação
ao passado, acompanhamos o estilo de vida dos meninos Zito, Zeca, Xoxombo, Tuneta,
Carmindinha e do próprio narrador, que também volta-se para o seu tempo de criança
naquela infância descuidada. Suas aventuras, suas histórias, suas formas de entender a
vida e seus questionamentos ao mundo dos adultos configuram, na essência, o ponto de
vista do autor a respeito de tudo o que estava acontecendo no mundo colonial. Mais
ainda, nesse romance JLV questiona também a utopia dos movimentos revolucionários
e o futuro de Angola. Por tudo isso, chamamos essa fase de período dos
questionamentos.

Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto & Eu foi a obra que escolhemos para
confirmar o que chamamos de período da ruptura. Ainda apropriando-se do espaço da
infância, JLV mostra a loucura da menina Tété. Esta, acometida de um surto psicótico,
acaba com a festa de casamento de sua irmã lançando excremento nos que se
121

encontravam presentes. Antes, porém, os convidados conversavam sobre várias


questões relacionadas ao mundo político, social, cultural e ideológico que marcava o
cotidiano do povo de Angola. Tais discussões giravam em torno de um banquete
promovido pela família da noiva. A loucura da menina representa, simbolicamente, o
rompimento total do autor com a utopia revolucionária. Apesar de sua postura
combativa ao regime colonial, JLV não estava convencido de que as propostas dos
movimentos pela libertação de Angola encontravam-se coerentes e adequadas. A sua
crença nos ideais revolucionários, nas duas obras anteriores, já se mostrava
enfraquecida; todavia, o que vemos na atitude da menina Tété é a evidência clara do
posicionamento crítico por parte do escritor em relação ao modo como as questões
estavam sendo conduzidas e a sua desconfiança no que diz respeito ao resultado
esperado.

No espaço da infância, observamos que a cidade de Luanda, assim como os


musseques, foi amplamente destacada nas três obras. Ela, de fato, é o espaço da escrita
literária angolana (Macedo, 2009). Foi nela que JLV assentou suas personagens, suas
histórias e o seu olhar para a nação angolana como um todo. E dela lhe emanaram a
inspiração, o amor pela pátria e as observações carregadas de sentidos e sentimentos
fecundos – tão evidentes no exercício da sua escrita –. Na condição de capital do país e
sede da administração colonial, Luanda configura-se no espaço da narrativa luandina
como metonímia da nação angolana. Pela dimensão histórica, carrega em si as marcas
de um processo de colonização perverso e das guerras dilacerantes que lhe sobrevieram
antes, durante e após o afastamento do colonizador português. Ainda influente na vida e
no imaginário do povo de Angola, Luanda, para usarmos a expressão de Edward Said
(1995), é a própria invocação do passado.

A invocação do passado constitui uma das estratégias mais comuns


nas interpretações do presente. O que inspira tais apelos não é apenas
a divergência quanto ao que ocorreu no passado e o que teria sido esse
passado, mas também a incerteza se o passado é de fato passado,
morto e enterrado, ou se persiste, mesmo que talvez sob outras formas.
Esse problema alimenta discussões de toda espécie — acerca de
influências, responsabilidades e julgamentos, sobre realidades
presentes e prioridades futuras (SAID, 1995: PP. 26-27).
122

A cidade de Luanda foi o marco zero do percurso da narrativa luandina. Nela,


local em que o escritor se criou desde a tenra idade de três anos, quando emigrou de
Portugal com os pais, ele conviveu toda sua infância, adolescência e juventude. Tais
períodos foram fundamentais no desenvolvimento de sua personalidade artística e
nortearam a sua apreensão crítica da realidade social e histórica. Luanda,
metonimicamente, representa na obra de JLV a totalidade do espaço angolano. Isso fica
claramente demonstrado através de sua escrita criativa, combativa, fascinante e de
refinada ironia. Não obstante, tamanho amor do escritor por essa cidade o induziu à
adoção do nome Luandino, entendido por ele como tributo e gratidão por tudo que
vivenciou naquele lugar. No conjunto da obra luandina, a cidade de Luanda, tal como os
musseques, encontra-se também em transformação. Ela se estabelece na dimensão de
espaço simbólico de um país cujo percurso literário/histórico ainda está em curso.
Luanda é um lugar privilegiado na dimensão literária e no imaginário do povo de
Angola.

Atualmente, pouco do que se vê em Luanda, com seus prédios luxuosos e


relativa ostentação, considerando o baixo poder aquisitivo da maior parte da população,
lembra aquele momento de agitação na política e na sociedade (Macedo, 2009), quando
o cidadão José Mateus Vieira da Graça entra na prisão, em 20 de novembro de 1961.
Foi este também o ano no qual se deflagrou a luta armada para derrubar o regime
colonial português, o que reforça a compreensão de que o ambiente, de fato, estava
tenso. Ao analisar estes acontecimentos à luz da literatura, em particular nas obras aqui
pesquisadas, percebemos quão eficientes e necessários foram os movimentos de
resistência. Neste sentido, fez jus destacarmos a importância do território que melhor
representou a preservação identitária angolana: o musseque. Este topônimo mostrou-se
capaz de subverter os desígnios da ideologia dominante imposta pelo colonizador aos
angolanos durante quatro séculos de subjugação e exploração. Por isso, o protagonismo
conferido ao musseque configurou, na escrita luandina, a grandeza de um espaço que se
encontrava em transformação, mas também que transformava aqueles que nele
habitavam. Ao nos conduzir para dentro dele através da perspectiva de alguma
personagem, JLV mostrou o ponto de vista do colonizado e, por extensão, o seu modo
de pensar, sentir, agir e reagir. Vimos, assim, a afirmação da proposta do escritor em
colocar na pauta literária o jeito de ser e de viver dos angolanos.
123

No percurso deste trabalho percebemos em JLV uma inquietação, que


habilmente pode ser traduzida como necessidade deste escritor de contar, de narrar e de
revelar. Não há dúvidas de que estamos diante de um escritor incomum. Sua obra é uma
sucessão de estórias e discute várias questões do passado, do presente e do futuro, além
de revelar o cerne da sociedade angolana. Nela deparamos com o drama do mulato, a
representação da mulher, o preconceito racial, a vida do colonizado, o cotidiano no
musseque, a expansão da cidade, o mundo colonial; enfim, alguns temas que nos levam
a refletir. Ao mesmo tempo, nesse universo de narração e narrativas, reforça-se, mais
uma vez, a íntima habilidade desse artesão das palavras que sempre criou alguma coisa
para nos contar. Tal habilidade, o próprio JLV interpreta “como sendo um sinal de que,
de qualquer modo, tinha uma vocação para narrar” (LABAN, 1980: p. 11). Deste
modo, podemos dizer que sua narrativa transita entre a verdade da ficção e a ficção da
verdade. O que revela a sua inegável capacidade de escrever criativamente os fatos que
a sua própria experiência de vida, a infância em particular, ajudou na composição da
cena literária. Tamanha destreza se consolidou através da construção de um modelo de
linguagem que se mostrou capaz de harmonizar o hibridismo gerado pelo uso
concomitante do idioma bantu com o código linguístico português; a linguagem literária
(Trigo, 1984).

JLV tem no seu currículo literário a experiência de mais de quarenta anos de


escrita. Ousado e criativo, seu estilo livre de construir literatura transita em variadas
formas de narrar. A estética luandina, digamos assim, encontra-se manifestada nos seus
contos, novelas, crônicas e romances, além de vários ensaios críticos e algumas poesias.
No espaço da infância, que é o tema o qual estamos tratando aqui, tal estética revela-se
nas três possibilidades de entendermos as transformações do pensamento desse escritor.
Nas narrativas destacadas, que também configuram como contrapontos aos contornos
do discurso oficial a respeito do processo histórico recente de Angola, conhecemos as
histórias de meninos e meninas. São personagens que se movimentam em aventuras na
lagoa do Kinaxixi, na Grande Floresta, nas ruas de Luanda e na terra vermelha dos
musseques. As experiências da infância de Ricardo, Marina, Zito, Zinho, Zeca Bunéu,
Xoxombo, Tuneta, Carmindinha, Tété, Lourentinho e alguns outros, nos ajudaram a
entender a vida cotidiana das pessoas comuns naquela época de combates e dissabores
no mundo dos adultos. Através deles JLV amplia o nosso entendimento a respeito do
que foi o mundo colonial e os seus efeitos na sociedade angolana. Por meio dessas
124

personagens também entendemos o modo como esse escritor acreditou, questionou e


rompeu com as utopias revolucionárias sem, no entanto, deixar de acreditar na busca
pela libertação de Angola do jugo da colonização portuguesa. Nas três obras aqui
analisadas, a valorização do passado, assentado em um antigamente bom para se viver,
apontou para o desejo de um futuro em que a nação angolana estivesse orientada pelos
valores culturais angolanos. Em outros termos, JLV insurge-se ideologicamente contra a
imposição da cultura do colonizador europeu, que suprimiu e ignorou as matrizes
culturais das tradições ancestrais.

O projeto de independência revelou-se, desde o início necessário, desejado e


caro em muitos sentidos para o povo de Angola. Inclinando um pouco a reflexão para a
dimensão literária, sem distanciar-se das questões políticas, ideológicas, sociais,
culturais e históricas, na obra luandina, assistimos a oposição de dois espaços que se
tornaram emblemáticos no regime colonial: A cidade (território urbano
predominantemente habitado pela elite branca) e o musseque (espaço periférico
habitado pela população mais pobre, negros em sua maioria). Nas três obras foi possível
observarmos o quanto a relação cidade/musseque mostrou-se sensível para o
entendimento de como se construiu a luta pela independência angolana, uma vez que
elas reportam-se ao período de 1954 a 1972. Mais ainda, a relação de tensão e afeto
desses dois topônimos retratados por JLV serviu de ampliação da compreensão a
respeito do que foi, de fato, a colonização portuguesa nesse país. Neste sentido,
conforme Rita Chaves (1999), os escritores angolanos também escrevem as
experiências que viveram.

Se saímos do particular e alcançamos o geral, ou seja, o conjunto da


literatura de Angola, reconhecemos que a formação da identidade
nacional é na realidade uma das linhas de força da consecução desse
sistema literário. Com décadas de diferença, os escritores angolanos
passam pela experiência que viveram os nossos românticos e
reviveram, de maneira diferenciada, os nossos modernistas: fazer uma
literatura que interviesse no processo de definição do país. Se a
questão parece-nos antiga, há que recordar que o país é novo:
passaram-se apenas 22 anos desde a sua independência e o problema
da função da obra literária e do papel social do escritor se recoloca,
senão com outras cores, pelo menos, com novos matizes. É preciso
examiná-los, ainda que não se disponha da perspectiva histórica que o
125

tempo há de abrir e que o instrumental analítico tenha sido forjado


para o estudo de outro universo cultural (CHAVES, 1999: 218).

José Luandino Vieira, sem dúvida, é um ícone na arte de escrever. Ele consegue
tratar de forma ampla os assuntos a que se propõe. Não há dúvida de que o espaço da
infância que pesquisamos neste trabalho configura tão-somente um dos ângulos
possíveis de demonstração do seu ponto de vista a respeito do mundo colonial. Com
efeito, este escritor explorou literariamente outras formas de apontar a transformação de
seus pensamentos, bem como de sinalizar as suas insatisfações. Não é demasiado
pontuar que estamos analisando a obra de um autor que se encontrava preso e
condenado pela sua adesão à militância política, e que nunca abdicou de suas
convicções. Mais ainda, procurou valorizar a cultura do povo de angola, o qual, na sua
observação, “estava completamente marginalizada pelo colonialismo, mas continuava
viva e lutando pela sobrevivência” (LABAN, 1977: 280). Porém, mesmo preso,
encontrou o caminho da liberdade artística e a ela laçou-se sem limite, produzindo obras
que colocaram a literatura de Angola em diálogo com os signos literários universais. E
tem provado que a questão colonial de modo algum está ultrapassada (Noa, 2015). Para
melhor compreensão, ele nos guiou, através de suas narrativas, às três linhas-mestras
que nortearam as reflexões suscitadas nesta pesquisa: a memória evocativa das
aventuras dos meninos do musseque, em A Cidade e a Infância; a ordem subvertida
pelo questionamento, em Nosso Musseque; a ruptura com a utopia revolucionária, em
Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto & Eu. Como vimos, a infância que
encontramos na narrativa luandina é aquela resgatada pela memória de um narrador
branco, que morou em musseques, tem amigos brancos, negros e mulatos, e possui uma
íntima relação de afeto com a cultura, com a língua banta e com o jeito de ser do
autóctone angolano. Mas que, mesmo narrando quase sempre em primeira pessoa,
concede a voz a várias outras personagens, dividindo, assim, o protagonismo com
indivíduos comuns dentre o povo. Dito de outra maneira, as histórias são contadas
privilegiando, em muitos dos casos, o ponto de vista de quem as viveu; ressaltam a
experiência do regime colonial.

A partir daí, acompanhamos, no discorrer das narrativas, algumas temáticas


apresentadas como tópicos indispensáveis para nosso conhecimento e reflexão crítica a
respeito do mundo colonial e as suas marcas na vida do colonizado. Vimos então na
126

obra A Cidade e a Infância: a perda da memória como mecanismo de supressão à


identidade do colonizado, em Encontro de Acaso; a alienação e a subversão do
colonizado, em O Despertar; o despertar da sexualidade, em O Nascer do Sol; a
impossibilidade da relação afetiva entre um negro e uma branca, em A Fronteira de
Asfalto; o passado feliz e o hoje adoentado, em A Cidade e a Infância; o drama de ser
mulata na sociedade colonial, em Bebiana; o drama em ser mulata e mãe solteira, em
Marcelina; a alienação complacente, em Faustino; a máquina que mata, em Quinzinho e
a saga do mulato, em Companheiros. Com Nosso Musseque, adentramos um território
em que a resiliência, o jeito de ser angolanos e o questionamento ao sistema colonial
são postos em evidência pelo texto ficcional. Por último, vimos, em Lourentinho, Dona
Antónia de Sousa Neto & Eu, a descrença na utopia. Assim, as aventuras dos meninos
no “antigamente”, desde as incursões na “Grande floresta” até os mergulhos na “lagoa
do kinaxixi”, vão dando espaço ao drama da impossibilidade do amor do menino negro,
Ricardo, com a menina loira, Marina, fronteirizados ainda pelo asfalto que distancia a
cidade rica dos brancos ante a periferia dos musseques, dos pretos pobres; o
inconformismo de Carmindinha ante a passividade do pai, em achar normal a violência,
disfarçada de restabelecimento da ordem, por parte dos soldados; a loucura da menina
Tété que lança excremento nos convidados em plena festa de casamento, conflitando a
beleza aparente com a realidade maniqueísta da assimilação degenerativa. Pela memória
ativa nas narrativas, reforçada pelo exercício crítico da linguagem que harmoniza o
código linguístico banto com a língua portuguesa, sincronizando o ambiente literário
com o trajeto da história, Luandino Vieira rompe com a visão utópica do discurso que
alimentava a possibilidade de uma nação livre, soberana e “descontaminada” das
armadilhas do poder. Ao mesmo tempo, ele revela uma perspectiva mais pessimista em
relação ao que estava por vir nos anos posteriores, como a própria história encarregou-
se de confirmar. Os fatos que sucederam a independência de Angola provaram que
diversas outras questões precisavam ser equacionadas. A maior prova desta assertiva foi
a guerra civil que eclodiu em 1975 e estendeu-se até 2002, confirmando o quanto a
percepção prévia que JLV demonstrou na sua ficção tinha razão de ser. E reforça o
entendimento de que, ao pensar no futuro daquela nação, a sua sensibilidade artística o
colocou à frente do seu tempo. Fato é que, pelo viés da sua escrita, ele conseguiu
ampliar a compreensão de que o que estava se propondo nos movimentos pela
libertação de Angola, acompanhado pelo entusiasmo popular e sem a percepção crítica
de que os rumos da nação precisavam ser repensados, poderia resultar em anos de
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disputas político-ideológicas ou mesmo de guerra, como realmente ocorreu. Contudo, a


ideia inicial de uma Angola livre, idealizada por alguns segmentos que lutaram pela sua
libertação, era justa. Especialmente para quem fez da escrita uma arma de combate
revolucionário e foi suprimido de sua liberdade por doze anos.

Não tem como encerrar a jornada desta dissertação, que tanto privilegiou o
antigamente evocado no espaço da infância e considerou a evolução do pensamento
desse escritor que é, sem dúvida, um dos maiores ícones da expressão literária de
Angola. Durante o trajeto, atentamos para a sua capacidade inventiva e o seu olhar
sensível para o passado, para o presente e para o futuro. Sua produção artística
equilibra-se com sua postura política gerando narrativas capazes de nos comover,
surpreender e nos tornar cientes e conscientes a respeito dos processos históricos,
políticos, sociais e culturais de seu país. Neste sentido, empenhado na desmontagem dos
mitos coloniais e, ao mesmo tempo, valorizando o ponto de vista do ente angolano
comum, levou para o corpo do texto a ironia refinada, a crítica, a paródia política, a
representatividade, o afeto e tantos outros ingredientes. Assim, exatamente ele, José
Luandino Vieira, que escreveu a maior parte de seus livros de dentro das prisões pelas
quais passou, ainda achou-se na condição de dizer: “O meu amor à minha terra, Angola,
é apenas a forma do meu amor pela humanidade. Nunca serei um mau nacionalista”
(Vieira, 2015: 705).
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