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LITERATURA BRASILEIRA

E CONTEMPORANEIDADE
LITERATURA BRASILEIRA
E CONTEMPORANEIDADE
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meio sem a prévia autorização desta instituição.

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico


da Língua Portuguesa.

Autoria do Conteúdo Projeto Gráfico


Silvana Moreli Vicente Dias UVA

Revisão Diagramação
Lydianna Lima UVA
Janaina Senna
Theo Cavalcanti
SUMÁRIO

Apresentação 6
Autor 8

Unidade 1

Ficções e dramas insólitos: rumo ao contemporâneo 10


• Nelson Rodrigues: especificidades da tragédia brasileira

• Dalton Trevisan: inventários urbanos

• Peripécias malandras na escrita de João Antônio

Unidade 2

As escritas de si: narração, memória e história 33


• O memorialismo e as trajetórias brasileiras em Zélia Gattai

• Caio Fernando Abreu: narrativa entre evocação e resistência

• Cristovão Tezza: máscaras ficcionais entre vida e arte


SUMÁRIO

Unidade 3

Lirismo em liberdade: poesia, polifonia e multimídia 52


• Ferreira Gullar: deslocamentos do poema sujo

• Poesia concreta ontem e hoje: a aventura da palavra

• Literatura, arte, multimídia e NTIC: linguagens em potência

Unidade 4

Literatura hoje, entre experimentação e missão 75


• Conceição Evaristo: “escrevivências” literárias

• Fronteiras e contaminações em Bernardo Carvalho

• Vozes periféricas, vozes impuras: mal-estar da sociedade no Racionais Mc’s


APRESENTAÇÃO

Olá, aluno! Seja muito bem-vindo!

Construiremos juntos este espaço da disciplina Literatura Brasileira e Contemporanei-


dade. Pretendemos abordar, neste momento, do ponto de vista crítico, eixos temáticos,
procedimentos estéticos, meios de expressão e formas de recepção da Literatura Bra-
sileira ocorridos ao longo da contemporaneidade. Nosso intuito é destacar a obra de
autores considerados paradigmáticos no período que vai de meados do século XX até as
primeiras décadas do século XXI.

Aqui, esperamos problematizar o cânone da Literatura Brasileira do Modernismo, abrindo


espaço para redefinições e reflexões sobre os deslocamentos substanciais operados no
campo literário desde a segunda metade do século XX. Ênfase será oferecida a vertentes
críticas que buscam tensionar as perspectivas dominantes, de modo a repensar e a re-
definir criticamente as linhas do cânone brasileiro, desde aquele herdado do século XIX,
passando pelo Modernismo, até chegar à segunda metade do século XX e ao início do
século XXI.

Entre os autores que serão abordados em nosso curso, figuram: Nelson Rodrigues (1912-
-1980), Zélia Gattai (1916-2008), Dalton Trevisan (1925), Décio Pignatari (1927-2012), Ha-
roldo de Campos (1929-2003), Ferreira Gullar (1930-2016), Augusto de Campos (1931),
João Antônio (1937-1996), Conceição Evaristo (1946), Caio Fernando Abreu (1948-1996),
Cristovão Tezza (1952), Bernardo Carvalho (1960) e o grupo de rap Racionais Mc’s. Nos-
so objetivo é contribuir para uma formação ampla de nossos estudantes, de modo que
possam compreender a literatura dentro de um conjunto heterogêneo de autores, obras
e gêneros literários.

Nesse processo tangenciaremos também aspectos relativos à formação do leitor literá-


rio em espaços escolares e não escolares, apontando tendências da produção literária

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em contextos de trocas simbólicas desenvolvidas na sociedade de informação e comu-
nicação. Daremos atenção, inclusive, às transformações da dinâmica da leitura no Brasil
e no mundo de hoje, de modo a se conhecerem e se estudarem as textualidades produzi-
das em mídias digitais. Ao discorrer sobre essas questões, pretendemos preparar nossos
estudantes para um ambiente educacional dinâmico, em que, cada vez mais, estarão
presentes as novas tecnologias, a relação entre a literatura, outras artes e outros saberes,
bem como os trânsitos interdisciplinares.

Esperamos que você, querido estudante, tenha um ótimo aproveitamento em nosso


curso. Bons estudos!

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AUTOR

Silvana Moreli Vicente Dias

Possui graduação em Licenciatura em Letras (Português e Inglês) pela Universidade Es-


tadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp (1999), mestrado (2003) e doutorado
(2008) em Letras pela Universidade de São Paulo – USP. Ganhou o prêmio CAPES de
Tese 2009, área de Letras/Linguística, pelo trabalho Cartas provincianas: correspon-
dência entre Gilberto Freyre e Manuel Bandeira, posteriormente publicado pela Editora
Global, de São Paulo (2017). Foi pesquisadora bolsista Nível I da Fundação Biblioteca Na-
cional – FBN-RJ (2008), selecionada por edital. Realizou pesquisa de pós-doutorado na
Università degli Studi di Roma “La Sapienza”, com ênfase em Metodologia e prática de edi-
ção crítica de textos modernos e contemporâneos (2009). Fez pós-doutorado no Instituto
de Estudos Brasileiros da USP (IEB-USP, 2010-2012) com bolsa FAPESP, desenvolvendo
o projeto de Edição com aparato crítico e estudo da correspondência de Gilberto Freyre
e de José Lins do Rego. Em seguida, fez novo pós-doutorado no IEB-USP (2012-2016)
com bolsa do Programa do Prêmio CAPES de Teses (Letras e Linguística), trabalhando
com temas como perspectivas críticas de estudo dos gêneros biográfico e epistolar;
formas e funções da correspondência; percursos da epistolografia brasileira do século
XX (Manuel de Oliveira Lima, Alfredo Freyre, Manuel Bandeira, Rodrigo Melo Franco de
Andrade, Gilberto Freyre, Otto Maria Carpeaux, José Lins do Rego e Cícero Dias); e as re-
lações comparadas entre o Modernismo brasileiro e o anglo-americano. Entre fevereiro
e julho de 2015 suspendeu atividades no Brasil para realizar pós-doutorado na Université
Sorbonne Nouvelle/Paris 3, com bolsa de pesquisa pós-doutoral no exterior pela CAPES,
dedicando-se à busca de manuscritos inéditos de escritores brasileiros, bem como a
reflexões metodológicas sobre edições crítico-genéticas em formato digital. Tem expe-
riência na área de Letras, com ênfase em preparo de edições, crítica genérica e crítica
textual; edições acadêmicas com aparato crítico; manuscritos de escritores, artistas e
intelectuais; análise e reflexões sobre a dinâmica dos gêneros híbridos na modernidade

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e na contemporaneidade; crônica, memorialismo e ensaio; poesia brasileira; curadoria de
exposições; linguística aplicada; humanidades digitais; e relações entre o Modernismo
brasileiro e a literatura anglo-americana. Tem experiência docente nos níveis fundamen-
tal, médio e superior. Desde o primeiro semestre de 2017 é professora na Universidade
Veiga de Almeida – UVA (RJ) nas modalidades presencial e a distância, orientando diver-
sos trabalhos de Iniciação Científica (PIC-UVA) e Trabalhos de Conclusão de Curso, bem
como participando da elaboração de materiais didáticos diversos. Faz parte do Núcleo
Docente Estruturante – NDE do curso de Letras EAD. Foi selecionada e aprovada, após
participar de curso de formação no segundo semestre de 2018, para integrar o sistema
BASis MEC-INEP do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Tei-
xeira (avaliação de cursos presenciais e a distância).

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UNIDADE 1

Ficções e dramas insólitos:


rumo ao contemporâneo
INTRODUÇÃO

A primeira unidade da disciplina Literatura Brasileira e Contemporaneidade busca ofe-


recer aos nossos estudantes caminhos para conhecerem e discutirem as especificida-
des da literatura brasileira de meados do século XX até o início do século XXI, sublinhan-
do, sobretudo, a maestria da forma literária irônica, densa e reflexiva de Nelson Rodrigues
(1912-1980), Dalton Trevisan (1925) e João Antônio (1937-1996).

Abordaremos diferentes gêneros literários no espaço dessas reflexões, tais como tea-
tro, crônica, conto, miniconto e ensaio, ressaltando como a heterogeneidade é marca do
período. Espera-se, assim, contribuir para que o estudante consolide-se como um leitor
crítico, capaz de reconhecer os vínculos entre reflexão epistemológica e análise crítica
na abordagem de conteúdos de Literatura Brasileira, sem descuidar de aspectos como a
historicidade e a dinâmica do texto literário e sua circulação em nosso país.

objetivo

Nesta unidade você será capaz de:

• Compreender a literatura brasileira de meados do século XX, sublinhando, espe-


cificamente, a maestria da forma de escrita irônica, densa e reflexiva de Nelson
Rodrigues (1912-1980), Dalton Trevisan (1925) e João Antônio (1937-1996).

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Nelson Rodrigues: especificidades da tragédia
brasileira

No primeiro tópico da disciplina nosso objetivo é


apresentar aspectos da produção literária de Nel-
son Rodrigues, pernambucano que viveu pratica-
mente toda sua vida, desde os anos formativos, na
cidade do Rio de Janeiro. Neste espaço, teremos a
oportunidade de lançar luz sobre a obra de um au-
tor multifacetado, oferecendo destaque para suas
peças – ricas em inovação formal e em referências
ao processo social brasileiro, permeado por para-
doxos – e para suas crônicas.

Nelson Rodrigues é reconhecido, no Brasil e no exte-


rior, como um dos principais dramaturgos em língua
Nelson Rodrigues (1912-1980): escri- portuguesa. Entretanto, antes de lançar-se para o
tor, jornalista, romancista, teatrólogo,
contista e cronista brasileiro. teatro, já era conhecido nacionalmente como repór-
ter policial, jornalista e cronista. Como profissional
da imprensa, colaborou com jornais como A Manhã, O Globo e Diários Associados. Em
gêneros ligados ao cotidiano e à produção jornalística, Nelson Rodrigues estreitava seus
laços com o público carioca. Morador da Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, declara-
va que suas experiências diversificadas, transitando por diferentes classes sociais, e suas
observações das composições familiares cariocas renderam-lhe um olhar apurado para
destrinchar os conflitos típicos da classe média e desnudar o ranço patriarcal do brasileiro.

Um aspecto aprendido dessa experiência multiforme atenta ao cotidiano — que marcaria


sua escrita literária — é a sensibilidade para o emprego de expressões da oralidade, da
fala das ruas cariocas, com gírias e outras variações linguísticas raramente presentes,
àquela época, em espaços como jornais, revistas ou livros. Pode-se dizer que Nelson Ro-
drigues aprofunda, nesse sentido, a aprendizagem com uma linguagem mais prosaica, já
iniciada com os primeiros modernistas.

O escritor dedicou-se a diversos gêneros propriamente literários, como teatro, romance,


contos e crônicas. Com relação aos gêneros ficcionais e à crônica — com suas carac-
terísticas híbridas —, deixaria uma obra marcada por linhas temáticas, como a dinâmica
dos relacionamentos amorosos (convencionais ou não), as memórias e o futebol. De

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seus romances, ficaram particularmente conhecidas obras como Meu destino é pecar
(1944), Núpcias de fogo (1948) e Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus pecados e
seus amores (1959). O leitor pode, ainda, contar com as seguintes edições de contos: A
vida como ela é: O homem fiel e outros contos (1992) e A dama da lotação e outros
contos e crônicas (1992). Por sua vez, as edições de crônicas são vastas e misturam
observação e memórias. Desse gênero literário marcado pela hibridez, temos: O óbvio
ululante: primeiras confissões (1968), O reacionário: memórias e confissões (1977) e
À sombra das chuteiras imortais – Crônicas de futebol (1992).

Nesses livros ou em textos dispersos em periódicos é possível acompanhar, inclusive,


um Nelson Rodrigues afinado com seu tempo, crítico mordaz de atitudes de sujeitos e
de coletividades. É sua a invenção da expressão “complexo de vira-latas”, uma das mais
conhecidas nacional e internacionalmente quando se discorre sobre as posturas ambí-
guas, amedrontadas, covardes — e um tanto quanto “bovaristas”, para falar como Maria
Rita Kehl (2018). A expressão é sempre chamada à baila para significar a atitude pusilâ-
nime do Brasil e dos brasileiros, mesmo diante de situações em que claramente gozam
de prestígio e solidez.

Ampliando o foco

No ano de 2018 a psicanalista e escritora Maria Rita Kehl lançou um instigante


livro que reúne uma rica produção ensaística dispersa em revistas científicas,
jornais, palestras etc. O eixo temático de seus escritos encontra-se — conforme
suas próprias palavras — na “questão dos restos mal elaborados da escravidão
na sociedade brasileira” (KEHL, 2018, p. 9). Segundo seu argumento principal, a
sociedade brasileira atualizaria, em diferentes momentos, desde o século XIX, o
mal de querer ser aquilo que não é, abrindo mão de enfrentar seus próprios dile-
mas e construir seus percursos autênticos. Desse modo, como uma espécie de
Madame Bovary — personagem do romance de Gustave Flaubert (1821-1880)
— dos trópicos, o brasileiro hesitaria entre ser racional, capitalista, republicano,
democrático ou — de outro modo — ser um representante de “arremedo das
aparências da civilização”, que atualizaria, na era do capitalismo avançado, a
escravidão moderna mais hedionda (cf. KEHL, M. R. O bovarismo brasileiro:
ensaios. São Paulo: Boitempo, 2018).

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Para compreender a conhecida expressão “complexo de vira-latas”, hoje comum em
diversas esferas sociais, inclusive acadêmica, deve-se remontar à Copa do Mundo de
1950. Apesar de sua reconhecida superioridade, o Brasil foi derrotado, àquela ocasião,
pelo Uruguai, por 2 x 1, em pleno Maracanã, no dia 16 de julho. Anos depois, às vésperas
da estreia do Brasil na Copa de 1958, precisamente no dia 31 de maio de 1958, Nelson
publicaria, na revista Manchete, a crônica que seria intitulada Complexo de vira-latas. Seu
ágil e perspicaz texto é finalizado do seguinte modo:

Por “complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em que o brasi-


leiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em
todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos “os
maiores” é uma cínica inverdade. Em Wembley, por que perdemos? Por-
que, diante do quadro inglês, louro e sardento, a equipe brasileira ganiu
de humildade. Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo, espetacular o
nosso vira-latismo. Na já citada vergonha de 50, éramos superiores aos
adversários. Além disso, levávamos a vantagem do empate. Pois bem:
— e perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito simples: —
porque Obdulio nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos.

Eu vos digo: — o problema do escrete não é mais de futebol, nem de téc-


nica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo.
O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem
futebol para dar e vender, lá na Suécia. Uma vez que se convença disso,
ponham-no para correr em campo e ele precisará de dez para segurar,
como o chinês da anedota. Insisto: — para o escrete, ser ou não ser vira-
-latas, eis a questão. (RODRIGUES, 1993, p. 52)

O desfecho do campeonato é conhecido: o Brasil venceu a Copa de 1958, sendo sagrado


campeão pela primeira vez. Crônicas como essa de Nelson são normalmente lembradas,
também, para defender a ideia de que o autor foi, além de um renomado dramaturgo,
um importante pensador do Brasil, capaz de elaborar sínteses literárias memoráveis e
de contribuir com a leitura de práticas inseridas no cotidiano do país, como o futebol.
Atividades como essa, por sua vez, alimentam reflexões e discursos ambíguos e proble-
máticos sobre o que é “ser brasileiro”, com grande impacto em um momento importante
de conquista de espaço no mundo.

Ao lado do brilhantismo presente em gêneros tipicamente ligados ao cotidiano, vê-se


também crescer a reputação de Nelson Rodrigues como dramaturgo. Embora tenha es-
treado com A mulher sem pecado (1941), foi com Vestido de noiva que alcançou fama e
reconhecimento na cena teatral, sob a direção de Zbigniew Ziembinski, em 1943.

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Convidado para editar suas peças teatrais em uma única edição, Sábato Malgadi assim
as dividiu: peças psicológicas, peças míticas e tragédias cariocas. Como peças psico-
lógicas, figuram A mulher sem pecado (1941, com direção de Rodolfo Mayer); Vestido
de noiva (1943, direção de Zbigniew Ziembinski); Valsa n.6 (1951, com Milton Rodrigues);
Viúva, porém honesta (1957, com Willy Keller); e Anti-Nelson Rodrigues (1974, direção
de Paulo César Pereio).

Fazem parte das peças míticas os seguintes textos: Álbum de família (1946, dirigida por
Kleber Santos); Anjo Negro (1947, dirigido por Zbigniew Ziembinski); Senhora dos afo-
gados (1947, com direção de Bibi Ferreira); e Doroteia (1949, com Zbigniew Ziembinski).

Por fim temos, no rol das tragédias cariocas: A falecida (1953, com direção de José Maria
Monteiro); Perdoa-me por me traíres (1957, com Léo Júsi); Os sete gatinhos (1958, com Willy
Keller); Boca de Ouro (1959, dirigida por José Renato); O beijo no asfalto (1960, com direção
de Gianni Rato); Bonitinha, mas ordinária (1962, com Martim Gonçalves); Toda nudez será
castigada (1965, com Zbigniew Ziembinski) e A serpente (1978, com Marcos Flaksman).

Escritor prolífico, Nelson Rodrigues alcançou fama logo após sua estreia. Sua segunda
peça, Vestido de noiva, revolucionou a linguagem do teatro no Brasil, até o momento
fundamentalmente tradicional, convencional e distante das pesquisas e das conquistas
estéticas ocorridas desde o primeiro Modernismo. A peça foi concebida para transcorrer
em três distintos planos, que se intercalam no palco: a realidade, a alucinação e a memó-
ria. Para o autor, embora houvesse possibilidade de ser bem-sucedida do ponto de vista
intelectual, esperava-se criar incômodo na plateia, chateá-la, agredi-la.

A peça inicia-se com o atropelamento de Alaíde, mulher de 25 anos, casada com o industrial
Pedro Moreira. Aos poucos, conforme o andamento das cenas nas quais ganham força os
planos da alucinação e da memória, percebe-se que ali está um personagem problemático,
ambicioso, ousado, delirante. Entretanto, na mesa de hospital, à beira da morte, totalmente
entregue ao acaso, mostra-se sem força para controlar seu destino. Com sua deturpada
autoimagem, suas tendências bovaristas ficam claras quando percebemos que transfere
para Madame Clessi (personagem do plano da alucinação, morta por um adolescente no
início do século) seus sentimentos de grandeza. Segundo Sábato Malgadi:

Como se processa a transferência? Informa-se que Alaíde descobriu, no


sótão da casa em que, solteira, passou a residir com a família, o diário de
Madame Clessi. Daí ao desejo de identificar-se ilusoriamente com a cor-

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tesã foi só um passo. Acidentada, na alucinação, Alaíde vai à busca, em
primeiro lugar, da mundana. Percorre caminhos imaginários, até final-
mente encontrá-la. Os diálogos atingem alguns dos mais belos momen-
tos da mitologia personalíssima do dramaturgo. (MALGADI, 1993, p. 19)

Depois de Vestido de noiva — que explorava muitos temas praticamente inexistentes em


palcos brasileiros —, o autor lança-se em uma experiência mais chocante para o público
e para a crítica, com Álbum de família, de 1945. A peça — que traz uma sequência nada
realista de incestos ocorridos no interior de uma família, entre pai, mãe, filhos e filha — foi
censurada à época e somente liberada em 1965. Inaugura-se, então, o conjunto de peças
míticas, também conhecidas como “desagradáveis”. Segundo Nelson Rodrigues, as pe-
ças míticas serão as “obras pestilentas, fétidas, capazes, por si sós, de produzir o tifo e a
malária na plateia”. (MAGALDI, 1993, p. 37). Como afirma Magaldi, nesse momento ocor-
re um exercício de “autenticidade absoluta”, pois aqui não há jogo de máscaras sociais,
mas sim personagens guiados por instintos primitivos, lances de uma tragédia radical-
mente distante de qualquer civilidade. O andamento desse conjunto de peças demonstra
bem que o autor não contemporiza.

São muitas as questões que Nelson Rodrigues levanta, até mesmo apontando para as
bases de processo modernizador carregado de tensões e contradições, como sugere
Adriana Facina:

Nelson desconfiava profundamente da capacidade da civilização em


produzir seres humanos melhores e mais felizes, pois a coerção da civili-
dade não conseguiria domar os instintos, especialmente os sexuais, que
tenderiam a gerar, entre os homens, mais canalhas do que santos. Por-
tanto, a redenção humana dependeria de uma educação de sentimen-
tos e desenvolvimento de talentos individuais que pudessem expressar,
como cultura, o que há de melhor, a metade santa de nossa coletividade.
Surge daí a sua visão do amor romântico como o sentimento capaz de
tornar bons os seres humanos, assim como a sua crença na capacidade
libertadora do futebol, que pode fazer cada brasileiro sentir-se “desagra-
vado de velhas fomes e santas humilhações”. (FACINA, 2004, p. 315)

As opções de Nelson Rodrigues — provocativas, reflexivas, irônicas — o levaram a certo


isolamento de seu público e da crítica, pelo menos no que diz respeito a suas peças.
Gêneros mais ligados ao cotidiano, como a crônica, ganham, no Brasil, uma enorme

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contribuição com a escrita dinâmica e autoral de Nelson. Hoje, ele é considerado por
muitos o maior dramaturgo brasileiro de todos os tempos e uma das vozes de maior
atuação, sobretudo na segunda metade do século XX, de modo que apreciar seu legado
é fundamental para quem deseja conhecer um pouco mais sobre os movimentos literá-
rios e artísticos brasileiros da era contemporânea.

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Dalton Trevisan: inventários urbanos

Avançando um pouco no terreno


multifacetado da literatura contem-
porânea do século XX, apresenta-
mos, neste tópico, algumas linhas da
obra de Dalton Trevisan. Nascido em
1925, é um escritor cuja estreia está
muito ligada aos fluxos modernistas,
embora sua formação inicial tenha
ocorrido quando o movimento mo- Dalton Trevisan (1925): escritor brasileiro, famoso por
derno já tinha alcançado suas princi- seus livros de contos. Foto: Reprodução/RPC.

pais conquistas, como veremos. Seu


prestígio nas cenas literárias brasileira e mundial pode ser notado pelos vários prêmios
recebidos, como o Prêmio Portugal Telecom de Literatura (2003), o Prêmio Literário da
Fundação Biblioteca Nacional (2008, 2015) e o Prêmio Camões (2012), entre outros.
Pelos temas e figuras que desfilam em suas histórias ligadas a vampiros e a universos
sombrios, e também por sua aversão a transitar na arena pública — recusa-se a dar en-
trevistas, a comparecer a eventos —, Dalton Trevisan é conhecido também como “Vam-
piro de Curitiba”, figura esta que se torna uma espécie de personagem que perambula no
universo preferencial de suas narrativas: as ruas da capital paranaense.

Seu estilo seco, direto, elíptico, econômico, repetitivo, sem qualquer complacência
diante da miséria humana, foi notado por seus primeiros leitores críticos desde o iní-
cio de sua trajetória.

Do ponto da composição pode-se afirmar que Dalton Trevisan radicalizou as caracte-


rísticas dessa forma literária, como economia, tensão e concatenação bem articulada,
visando ao efeito único da narrativa curta (cf. GOTLIB, 1985; CORTÁZAR, 1975). Nesse
sentido, tende a um minimalismo pungente que “faz de cada detalhe um índice de ex-
tremo desamparo e da extrema crueldade que rege os destinos do homem sem nome
na cidade moderna” (BOSI, 1975, p. 17). Sua poética, segundo Bosi, não quer desnudar
as experiências do sujeito narrador, mas o fundo da miséria comum. Nesse contexto, o
espaço em que desfilam imagens seriadas e dessacralizadas, com enfoque de um hu-
mano dessubjetivado, situa-se sobretudo na distópica e nada amena cidade de Curitiba,
sua “província, cárcere, lar” literário.

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O autor oficialmente fez sua estreia literária com o livro Novelas nada exemplares, em
1959. Antes, porém, realizou uma incursão que deixou marca no periodismo moder-
no do país, com a provocadora e irreverente revista Joaquim (1946-1948), ao lado de
Erasmo Pilotto e Antônio P. Walger. Pode-se dizer que esse foi seu espaço formativo,
em que exerceu a produção literária e a crítica combativa, em diálogo intenso com
as conquistas modernistas que, àquela altura, estavam em processo de franca sedi-
mentação. Ao longo de sua publicação, apresentou desenhos de Poty Lazzarotto e
colaborações de intelectuais e escritores como Antonio Candido, Carlos Drummond
de Andrade, José Paulo Paes, Mário de Andrade, Otto Maria Carpeaux, Sérgio Milliet,
Wilson Martins, entre outros. A revista apresentava uma proposta de modernização
alternativa que aprofundava as conquistas do Modernismo das décadas de 1920 e
1930, articulando vozes altissonantes que, ao se opor ao Modernismo Paranista de
tendência local e provinciana no sentido restritivo (tendo como referência o conven-
cional Emiliano Perneta), procuravam romper com a tradição simbolista e positivista
então hegemônica desde fins do século XIX.

Os conflitos e tensões que emergem da revista indicam como os outsiders de Joaquim


buscaram “minar a esfera autorreferente” dos estabelecidos paranistas, para falar como
Norbert Elias (para saber mais sobre a relação conflituosa entre grupos, cf. ELIAS, 2000).
Os estabelecidos paranistas estariam imersos em um conservadorismo literário e po-
lítico que destoava — e muito — da ebulição revolucionária modernista, com seu tom
coloquial, mescla de gêneros e ironia não conformista, características exemplarmente
presentes nas poéticas de autores como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel
Bandeira e Drummond desde as décadas de 1920 e 1930. Referências úteis para acom-
panhar aspectos desse período formativo de Dalton Trevisan são trabalhos de autoria
de Miguel Sanches Neto, Luiz Claudio Soares de Oliveira e de Berta Waldman — esta,
pode-se afirmar, especialista incontornável quando se fala sobre o contista. Os críticos
dedicados à obra de Dalton Trevisan ressaltam a irreverência, mistura de compaixão
com repulsa, com que o autor lida com elementos cotidianos muito ligados ao chão
histórico. Essa dinâmica sócio-histórica pode ser notada, por exemplo, no modo como
o próprio escritor se coloca em sua relação com o público:

Notícia policial, frase no ar, bula de remédio, pequeno anúncio, bilhete de


suicida, o meu e o teu fantasma no sótão, confidência de amigo, a leitura
dos clássicos etc. O que não me contam eu escuto atrás da porta. O que
não sei eu adivinho... (TREVISAN, 1974, p. 9-10)

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Para notarmos como o autor trabalha os elementos relacionados à sua cidade, vamos
dar um enfoque ao conto Minha cidade, publicado inicialmente no número 6 da revista
Joaquim e depois republicado, com alterações substanciais, em outras edições, como
no livro Mistérios de Curitiba (1968) e em Em busca da Curitiba perdida (1992). O texto
é construído com base em tensões claras entre literariedade e literalidade, experiência
pessoal e coletiva. Parte-se, então, de aspectos da província para compor uma obra
literária em que o espaço seriado surge como palco para a encenação de narrativas
curtas. Observem-se as diferenças entre ambas as edições nos trechos abaixo, com
supressões, acréscimos e reescritas substanciais:

Curitiba, que não tem pinheiros, esta Curitiba eu canto. Curitiba, em que
o céu não é azul, esta Curitiba eu canto. Não a Curitiba para o turista ver,
esta Curitiba eu canto [...]. (TREVISAN, 1946, p. 18)

Curitiba, que não tem pinheiros, esta Curitiba eu viajo. Curitiba, onde o
céu azul não é azul, Curitiba que viajo. Não a Curitiba para inglês ver,
Curitiba me viaja [...]. (TREVISAN, 2000, p. 7)

Com a distância no tempo, ao resgate lírico da cidade, que parece mais forte na primeira
versão, acrescenta-se um olhar narrativo “desempenhando um papel de descobridor,
de pesquisador empírico das manifestações do real” (SANCHES NETO, 1998). Também
se aprofundam discursos de resistência, como a recusa do Modernismo de fachada,
de linhas retas, considerado arrojado para os padrões brasileiros pós-modernos, mas
não autêntico. Nesse sentido, Trevisan segue firme em um discurso afinado com o jul-
gamento que expoentes do Modernismo fazem com relação às suas trajetórias, com
aproximação e distanciamento críticos com relação a certos aspectos da vanguarda.
Eis um homem que tende a deixar-se conduzir livremente em meio às multidões des-
personalizadas, aprofundando o sentido histórico de sua experiência pessoal e coletiva.

A partir de 1974, com O pássaro de cinco asas, o escritor radicaliza mais ainda a redu-
ção da linguagem, com emprego da frase fragmentada, elíptica, enxuta, com períodos
coordenados e orações paratáticas. Segundo Berta Waldman:

[...] a medida de um escritor, principalmente nos países periféricos como


o Brasil, deriva, em grande parte, de um tipo de agudeza — da agudeza
para perceber que a complexidade do mundo contemporâneo também
se expressa ali, e que uma representação artística eficaz dele contribui
para a imagem do conjunto. (WALDMAN, 2007)

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Na trilha de Berta Waldman, a linguagem de Trevisan reduplica os estereótipos sociais,
de modo que, na passagem do histórico ao ficcional, ficam evidentes as representações
da violência e da alienação em que homens e mulheres estão inseridos. Essas histórias
— com a crueldade das relações humanas, o grotesco de facetas pouco modernas e o
cotidiano violento — são ainda constantemente revistas e reescritas, de modo que há
também um movimento paródico (um modo de vampirização típico do autor) dos dis-
cursos que enfocam Curitiba e alcançam o universal, em um movimento dialético entre
estreitamento local e ubiquidade que só ocorre em grandes obras.

Para finalizar, Arnaldo Franco Junior faz uma leitura da obra literária de Dalton Trevisan
aproximando-a com a fotografia, flagrando na escrita uma espécie de obra aberta, sem-
pre receptiva a novas experimentações, criando-se um cânone que atenderia ao padrão
seriado. Segundo o crítico, encontra-se na obra de Trevisan:

a) ênfase documental, fait divers, apresentação naturalista de pedaços


de vida; b) ilusão de identidade entre coisa e representação: reprodutibi-
lidade técnica e serialidade, que elimina distinção entre original e cópia;
c) sentido criado pela repetição; d) relações intra e intertextuais: pedaços
de vida, simulacro. (FRANCO JUNIOR, 2010)

Essa leitura converge para o sentido fortemente realista da obra do autor, que dá aber-
tura para a fixação de inúmeros personagens marginais — doentes mentais, assassinos,
ladrões, cafajestes, mulheres e crianças violentadas, cafetinas etc.—, o espaço da livre-
circulação da barbárie, sem qualquer moderação e sentimento de culpa. São imagens
de degradação e de desagregação, sem um centro de convergência e equilíbrio. Desse
espaço de uma Curitiba captada por lentes ora afetivas, ora repulsivas, nascem as fa-
cetas várias de um rico inventário urbano, literariamente trabalhado por meio da escrita
límpida e impactante de Dalton Trevisan.

21
Peripécias malandras na escrita de João
Antônio

João Antônio (1937-1996): jornalista e escritor brasileiro. Foto: Divulgação.

João Antônio, escritor e jornalista, foi um dos nomes mais destacados de sua geração.
Suas aproximações com a imprensa marcaram-no desde o início de sua produção.
Nascido em 1937, começa o curso de jornalismo na Faculdade Cásper Líbero em 1958,
abandonado poucos anos depois, em um período em que suas ocupações eram muito
precárias.

Sua obra mais conhecida, o livro de contos Malagueta, Perus e Bacanaço, de 1963,
lançou-o cedo ao centro da produção cultural brasileira. No entanto, sua gênese teve
muitos obstáculos. Conta-se que um incêndio tomou conta da casa de sua família,
onde residia. De lá, saíram apenas com a roupa do corpo. Os escritos de João Antônio,
como os manuscritos de Malagueta, Perus e Bacanaço, queimaram-se. Para rees-
crever o livro, ele teria se fechado na Biblioteca Municipal Mário de Andrade por longo
período, tendo como recurso apenas sua memória.

O bem-acabado livro Malagueta, Perus e Bacanaço desperta a atenção de importantes


críticos. Inclusive, Antonio Candido preparou belíssimo prefácio ao livro para uma segun-

22
da edição que acabou não saindo. O texto foi divulgado posteriormente no número 19
da revista Remate de Males, dedicada inteiramente ao escritor. O penúltimo parágrafo do
ensaio é eloquente:

Uma das coisas mais importantes da ficção literária é a possibilidade


de “dar voz”, de mostrar em pé de igualdade os indivíduos de todas as
classes e grupos, permitindo aos excluídos exprimirem o teor da sua hu-
manidade, que de outro modo não poderia ser verificada. Isso é possível
quando o escritor, como João Antônio, sabe esposar a intimidade, a es-
sência daqueles que a sociedade marginaliza, pois ele faz com que exis-
tam, acima da sua triste realidade. Nos contos deste livro, mas sobretudo
nos finais, ele é um verdadeiro descobridor, ao desvendar o drama dos
deserdados que fervilham no submundo; dos que vivem das lambujens
da vida e ele traz com a força da sua arte ao nível da nossa consciência,
isto é, a consciência dos que estão do lado favorável, o lado dos que
excluem. Sob este aspecto, João Antônio faz para as esferas malditas
da sociedade urbana o que Guimarães Rosa fez para o mundo do sertão,
isto é, elabora uma linguagem que parece brotar espontaneamente do
meio em que é usada, mas na verdade se torna língua geral dos homens,
por ser fruto de uma estilização eficiente. (CANDIDO, 1999, p. 88)

Antonio Candido aponta que a força da escrita de João Antônio está no modo como
parece misturar-se com a realidade que retrata. Porém, não é mero relato espontâneo,
que brota de modo quase instintivo. O escritor teria encontrado um modo particular de
expressar-se literariamente. As cidades e seus vícios oferecem uma ambientação disfó-
rica para os malandros, que acabam fracassando.

O resultado de sua primeira incursão como escritor foi fora do comum. Ganhou inúmeros
prêmios e teve rápida ascensão profissional. Passou a trabalhar no Jornal do Brasil e,
posteriormente, transitou por veículos da imprensa como a revista Realidade, o jornal O
Pasquim, a revista Manchete, entre outros. O ritmo voltado para atender às necessidades
da grande imprensa muda inteiramente quando o autor decide aplicar-se apenas à produ-
ção literária em fins da década de 1960. De fato, após esse afastamento da redação, volta
a dedicar-se à literatura com afinco, e uma série de livros seus passa a circular nas pra-
teleiras das grandes livrarias, com periodicidade, tais como: Leão-de-chácara, de 1975;
Malhação do Judas carioca, de 1975; Casa de Loucos, de 1976; Lambões de Caçarolas
(Trabalhadores do Brasil), de 1977; Calvário e Porres do Pingente Afonso Henriques
de Lima Barreto, de 1977; Ô Copacabana!, de 1978; Dedo-duro, de 1982; Meninão do

23
caixote, de 1984; Abraçado ao meu rancor, de 1986; Zicartola e que tudo mais vá pro
inferno!, de 1991; Guardador, de 1992; Um herói sem paradeiro, de 1993; Patuleia, de
1999; Sete vezes rua, de 1996; e Dama do Encantado, de 1996.

Dentre seus vários títulos destacaria aqui o livro Abraçado ao meu rancor, que recebeu o
prefácio de Alfredo Bosi, intitulado Um boêmio entre duas cidades. O crítico apontou uma
“ânsia deambulatória” na escrita de João Antônio, de modo que a composição literária
comporta as oscilações e os antagonismos entre ordem e desordem, positivo e negativo
de uma sociedade contraditória e profundamente desigual. Entregues à própria sorte, es-
ses personagens vivem uma espécie de jogo irracional, que ilumina sua impotência e sua
humanidade contraditória. Ao mesmo tempo, aprofundam-se as relações entre matéria
narrada e sujeito, que transparecem por meio das escolhas narrativas realizadas no livro
Abraçado ao meu rancor, como se nota a seguir:

Carrego um peso, ainda que vago, permanente; e se me ponho nos táxis,


é com aborrecimento. Detestável ir a todos esses buracos, desentocaiar
vagabundos, localizar salões de sinuca e me mover do carro. Devia tro-
car de ônibus, que os bondes sumiram, o asfalto cobriu os trilhos como
cobriu os paralelepípedos. Eu que me mexa pelos trens suburbanos ou
pelos ônibus tão lentos desta cidade. Ruins, enormes, cheios onde se
fala pouco. Mas será, pelo menos, decente ou limbo com esta gente,
afinal uns pobres-diabos sem eira nem beira, sobrevivendo Deus sabe.
Diacho. Quando os conheci e gostei deles, quando me estrepei e sofri na
mesma canoa furada, a perigo e a medo, eu não tinha esses refinamen-
tos, não. Mudei. Sou outra pessoa; terei tirado de onde estas importân-
cias e lisuras? De teu pai não foi, mano. (ANTÔNIO, 2001, p. 76-77)

Aos poucos, cada vez mais a máscara autoral compartilha muitas das características
dos personagens das narrativas em terceira pessoa, os quais, em geral, estão sempre
à margem. A narrativa de Abraçado ao meu rancor é estruturada em primeira pessoa.
E, de fato, como parece transparecer no trecho acima, João Antônio aos poucos pare-
ce ter se despojado de bens materiais, vivendo uma vida simples, com pouco trânsito
em espaços públicos, preferindo distanciar-se de sentidos que o aproximassem das
convenções burguesas.

Ao longo das décadas continuou — é importante assinalar — a dar voz a personagens


marginalizados: operários, malandros, desempregados, jogadores de pelada, viciados de
todo tipo. Enfatiza, talvez como estratégia de comunicação com o público, que a criação

24
— mesmo quando em primeira pessoa — continua muito ligada às vivências do cotidiano,
inspirando humanidade, empatia, revolta diante da luta diária pela sobrevivência. Autor e
personagem aproximam-se por suas trajetórias de exclusão e de resistência às conse-
quências nefastas da marginalidade.

Apesar de parecer estar entregue à espontaneidade e aos estímulos diretos captados


por sua vida, o fato é que João Antônio aos poucos passou a lapidar sua imagem. Fa-
mília e trabalho são instâncias das quais o escritor participa, mas com distanciamento
crescente, na medida em que passa a viver de seu trabalho. É possível notar também
um crescente movimento no sentido de controle de sua trajetória, que iria culminar com
a doação de seu grande arquivo pessoal à Universidade Estadual Paulista de Assis (SP),
intermediada por seu único filho, Daniel Pedro. Livros com dedicatórias de amigos e co-
legas de ofício, como Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade, manuscritos,
primeiras edições, discos, extensa correspondência ativa e passiva — diferentes itens, de
grande interesse público, podem ser consultados e estudados no Acervo João Antônio,
em Assis. Segundo a pesquisadora Telma Maciel da Silva, nas cartas é possível notar
como o subjetivo, o histórico e o literário se fundem. Inclusive, missivas podem ter ele-
mentos que claramente aproximam-se dos contos. A seguir, é possível ler, em uma carta
enviada a Jácomo Mandatto, como o escritor sente a necessidade de se expressar de
modo irônico, reflexivo e inconformado:

O que sofri, Jácomo? Sei lá. Ninguém sabe. Um aviso do organismo? O


coração, o pulmão, o sangue, tudo está bom. Tensões, revoltas internas,
nojo, saco cheio com a situação geral, alguma estafa, é isso que tenho:
a consciência do fardo pesado que havemos de carregar neste país que
não é dirigido nem pela direita. É uma canalhocracia que nos dirige (leia-
-se: nos taxa, nos explora, nos arranca a pele). (Carta enviada por João
Antônio a Jácomo Mandatto, com datação em 1º de julho de 1980 –
apud SILVA, 2008, p. 155)

Para quem deseja conhecer aspectos da produção de João Antônio vale a pena conferir
o número 19 da revista Remate de males, publicada pelo Departamento de Teoria Lite-
rária da Unicamp, a qual apresenta importantes contribuições críticas, com ensaios de
Antonio Candido (anteriormente mencionado), Vilma Arêas, Fábio Lucas, Flávio Aguiar e
Antonio Arnoni Prado (cf. REMATE DE MALES, 1999). Há muitas vertentes a serem explo-
radas a partir da leitura crítica da obra do escritor.

25
A boa acolhida do escritor, ao longo dos tempos, tem se mantido, inclusive após sua
morte, ocorrida em 1996. Nesse contexto, para Bruno Zeni:

A tensão entre o que é factual e o que é ficção, entre marca histórica e


forma literária, guarda o segredo da riqueza textual do escritor e não há
qualquer boa leitura da obra de João Antônio que fuja ao desafio de inter-
pretá-la a partir dessa espécie de paradoxo: a partir de uma prosa que se
aproxima do documento e do memorialístico João Antônio criou um es-
tilo ao mesmo tempo seco e afetivo, simples em seu apreço pela palavra
cotidiana e refinado na conjugação da oralidade com o talento de fazer
da variedade da fala um instrumento comum de narração e constituição
dos seus personagens. (ZENI, 2008, p. 77)

Esse modo de narrar equilibrado e próximo à vida cotidiana manterá um público muito
atento às novidades de autoria de João Antônio. Mais ainda, o sistema que se forma ao
redor de sua pessoa vai tornar ainda mais complexa a relação do autor com a crítica e
o público. O resultado disso é que o escritor continua a fascinar leitores e a instigar a
crítica especializada. Assim, não há como compreender os principais lances da Litera-
tura Brasileira Contemporânea se ignorarmos a centralidade de sua prática literária e
de seu pensamento.

MIDIATECA

Para ampliar seu conhecimento veja o material complementar da Unidade 1,


disponível na midiateca.

26
NA PRÁTICA

Na prática, o nosso estudante e futuro licenciado em Letras deverá conhecer e ler,


de modo crítico, obras e estilos autorais representativos da Literatura Brasileira de
meados do século XX até as primeiras décadas do século XXI, de modo a preparar
projetos didáticos com conteúdos especificamente voltados para a Escola Básica.

Quando enfocamos, por exemplo, o Ensino Médio, devemos recordar a importância


da obra de Nelson Rodrigues, revolucionária para o campo da dramaturgia brasileira.
Assim sendo, é fundamental não só ter consciência de como as obras se inserem na
dinâmica da literatura e da arte do país, mas também como podem ser produtivamen-
te abordadas em espaços de escolarização. Leia-se, abaixo, uma interessante abor-
dagem desenvolvida no contexto do Ensino Médio, sob a responsabilidade de João
Gabriel P. N. de Paula, Ibrahim Alisson Yamakawa e Mirian Hisae Yaegashi Zappone:

O texto dramático tem como essência a ação, a dinamicidade e a fluidez


garantindo uma leitura mais envolvente e motivadora para os estudantes
de Ensino Médio, que hoje acham em filmes de cinema e TV, na internet
e em outros meios de comunicação formas ficcionais mais atraentes de
rápido consumo. Imediatismo da sociedade — ninguém quer apostar em
algo cujos resultados são demorados e muitas vezes incertos. Conquan-
to, o teatro também tem o seu lugar na sociedade, e o gênero dramático
encontra-se difundido no meio social sob outras formas.

A teatralidade está presente em diferentes meios de comunicação sendo


que “através dos veículos de comunicação de massa, o drama transfor-
mou-se em um dos mais poderosos meios de comunicação entre os se-
res humanos” (ESSLIN, 1978 apud PASCOLATI, 2009, p. 93). Em oposição
aos gêneros literários frequentemente cultivados dentro do ambiente es-
colar, entre eles o romance, conto, crônica e poesia, o teatro, enquanto gê-
nero literário, tem uma particularidade que permite aproximar o estudante
de Ensino Médio da leitura de textos literários: a leitura dramática. (PAULA;
YAMAKAWA; ZAPPONE, 2012, p. 8)

A ampliação do senso estético e o desenvolvimento de um repertório amplo serão


centrais para a solidez da formação do futuro professor. A prática de sala de aula
deverá refletir a adequação de materiais didáticos, planos de aula, projetos inte-
gradores e sequências didáticas, em perspectiva interdisciplinar, para envolver um
público escolar cada vez mais globalizado, conectado e versado no uso das novas
Tecnologias da Informação e Comunicação.

27
Resumo da Unidade 1

Na Unidade 1 estudamos aspectos da Literatura Brasileira de meados do século XX em


diante, com destaque para a maestria da forma de escrita irônica, densa e reflexiva de
Nelson Rodrigues (1912-1980), Dalton Trevisan (1925) e João Antônio (1937-1996). Obras
desses escritores, consideradas centrais no contexto da literatura produzida após a con-
solidação do movimento modernista, foram discutidas, apontando-se elementos de sua
formação literária e crítica que pudessem indicar a complexidade e o potencial de senti-
dos de suas obras.

CONCEITO

Nelson Rodrigues (1912-1980); Dalton Trevisan (1925); João Antônio (1937-


‑1996); violência e marginalidade na literatura brasileira.

28
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ZENI, B. G. Fachada, sinuca e afasia: Alcântara Machado, João Antônio e Fernando Bo-
nassi. São Paulo: Serviço de Comunicação Social, FFLCH-USP, 2008.

31
UNIDADE 2

As escritas de si: narração,


memória e história
INTRODUÇÃO

Quando enfocamos a Literatura Brasileira Contemporânea é incontornável o fato de


que vivemos em um momento de grande hibridismo e mistura, tanto no que diz respei-
to às formas como aos temas. Desconstruídas as grandes narrativas e as separações
nítidas entre realidade e ficção, complexifica-se ainda mais o universo da criação artís-
tica e literária, em diálogo ativo com a sociedade e a história que lhe dão suporte.

Com o advento das Novas Tecnologias da Informação e Comunicação, outros textos


verbais, não verbais e híbridos, que trabalham extensamente com a ambiguidade en-
tre vida e obra, passam a circular na esfera pública. Assim, na esteira dos estudos de
Leonor Arfuch (2010), é possível enfrentar criticamente uma série de obras antes lidas
em especial no universo da cultura de massas ou da cultura digital, como entrevistas,
perfis, retratos, testemunhos, histórias de vida, relatos de autoajuda, talk shows, reality
shows e blogs, entre outros. Esses gêneros merecerão uma atenção nas próximas uni-
dades da disciplina.

Nesta unidade procuramos enfocar gêneros já reconhecidos pela tradição moderna que
voltam com força na contemporaneidade. Ao lado dos gêneros híbridos acima men-
cionados, juntam-se alguns gêneros autobiográficos, por assim dizer, canônicos, como
autobiografias, biografias, cartas, diários, memórias, crônicas etc. Esses — que outrora
tinham uma presença mais periférica — passam a receber uma atenção destacável, em
um campo antes dominado por gêneros considerados mais nobres no contexto da lite-
ratura produzida até, pelo menos, meados do século XX, como romance, novela, conto,
poesia e teatro.

33
É nesse contexto de misturas, experimentações e vontade de imergir no cotidiano, na
vida comezinha, sem distanciá-las dos grandes movimentos históricos, que entram as
obras de autores brasileiros como Zélia Gattai (1916-2008), Caio Fernando Abreu (1948-
-1996) e Cristovão Tezza (1952). Vamos discorrer um pouco sobre suas produções e de-
senvolver alguns exercícios analíticos procurando demonstrar sua força crítica e reflexiva
no âmbito da literatura brasileira produzida nas últimas décadas.

objetivo

Nesta unidade você será capaz de:

• Discutir aspectos relativos à ficção contemporânea brasileira, com destaque


para produções que tangenciam as escritas de si, misturando as fronteiras entre
ficção e realidade, memória e história, como diários, autobiografias, memórias e
autoficções, com destaque para as obras de Zélia Gattai (1916-2008), Caio Fer-
nando Abreu (1948-1996) e Cristovão Tezza (1952).

34
O memorialismo e as trajetórias brasileiras
em Zélia Gattai

A escritora Zélia Gattai nasceu na


cidade de São Paulo em 1916. Filha
de imigrantes italianos, cresceu em
uma São Paulo que se modernizava a
passos largos, tendo um olhar sensí-
vel para captar as especificidades de
uma formação marcada por aspectos
da tradição ítalo-brasileira. Com hu-
mor, leveza e sensibilidade, compõe
o retrato complexo de uma época em
Zélia Gattai (1916-2008): escritora e memorialista.
Foto: Divulgação. plena transformação em seu primei-
ro livro, Anarquistas, graças a Deus
(1979). Depois dessa importante obra, surgem os seguintes títulos de sua autoria: Um
chapéu para viagem (1982), Pássaros noturnos do Abaeté (1983), Senhora dona do
baile (1984), Reportagem incompleta (1987), Jardim de inverno (1988), Pipistrelo das
mil cores (1989), O segredo da Rua 18 (1991), Chão de meninos (1992), Crônica de uma
namorada (1995), A casa do Rio Vermelho (1999), Città di Roma (2000), Jonas e a Se-
reia (2000), Códigos de família (2001), Jorge Amado: um baiano romântico e sensual
(2002), Memorial do amor (2004) e, fechando esse ciclo de produção vertiginosa, Vacina
de sapo e outras lembranças (2006).

Um dos fios condutores de sua obra literária são as memórias pessoais e familiares,
que se entrelaçam com ficção e história. A identificação de Zélia Gattai com a militân-
cia anarquista — como o próprio título de sua primeira obra já sugere — remonta tanto
à convivência com ela na vida privada como à sua circulação, sobretudo de seus pais,
nessa São Paulo em rápida mudança. O Movimento Operário Anarquista, muito atuante
nas primeiras décadas do século XX, deixou marcas nas trajetórias desses personagens
que vibram em suas memórias de estreia. Em especial entre 1917 e 1920, o Movimento
Operário Anarquista se fortaleceu e encontrou coesão ideológica e organização, tendo
alcançado importantes conquistas, em especial na Greve de 1917, apesar da grande re-
pressão por parte do governo paulista.

Zélia Gattai, caçula de cinco irmãos, com pai prestador de serviços, acompanhou esses
fluxos em tenra idade, tendo escrito as memórias dos deslocamentos familiares como

35
suas próprias memórias. O lastro entre as gerações é sugerido, por exemplo, pela estru-
tura dialogada de sua obra, dando voz a personagens silenciados pela morte. Vejamos
como a verossimilhança do relato é reforçada pelas escolhas da escritora Zélia Gattai,
que maneja bem a escrita ágil e permeada de recursos de forte comunicabilidade. Leia-
‑se, por exemplo, um trecho do livro Cittá di Roma (2002):

As histórias que titio contava eram quase todas minhas conhecidas, ou-
vidas nos serões lá de casa, na versão de meus pais, mas, vez ou outra,
cabia-me um detalhe novo, por exemplo, o da bandeira brasileira, que só
tio Guerrando lembrava.
[A VIAGEM]
A travessia de Gênova para o porto de Santos foi longa e penosa, contava
tio Guerrando. “Não posso esquecer. Amontoados e tristes como gado a
caminho do matadouro, os imigrantes enjoavam nos porões escuros e
quentes, ao lado das caldeiras do navio, um verdadeiro inferno. A gente
ia aguentando sem reclamar. Todo mundo tinha um medo insuportável
de ficar doente e acabar morrendo em alto-mar.
“Vocês sabiam, não é?”, explicava titio, “nos navios daquela época não ha-
via frigorífico para conservar os cadáveres, e os corpos de quem morresse
durante a travessia eram jogados no mar”. (GATTAI, 2002, p. 13-14)

Para refletir

A narrativa autobiográfica na Literatura Brasileira: relações entre indivíduo


e sociedade

Silviano Santiago, um dos grandes nomes da crítica literária brasileira no Brasil,


escreveu fartamente sobre a produção memorialística em nosso país. Em um
de seus textos mais importantes, intitulado Prosa literária atual no Brasil, pu-
blicado no livro Nas malhas da letra, ressalta que não é tão simples classificar
obras contemporâneas ou analisá-las do ponto de vista crítico. Quando há clara
tendência autobiográfica, inclina-se a rotulá-la como excessivamente subjetiva,
quando, na verdade, pode ser uma obra de seu tempo, capaz de refratar impor-
tantes questões filosóficas, históricas, políticas ou sociais. Leia-se:

A experiência pessoal do escritor, relatada ou dramatizada, traz como


pano de fundo para a leitura e discussão do livro problemas de ordem

36
filosófica, social e política. Não há dúvidas de que, no palco da vida ou
da folha de papel, o corpo do autor continua e está exposto narcisisti-
camente, mas as questões que levanta não se esgotam na mera auto-
contemplação do umbigo, como quer uma crítica neoconservadora da
produção cultural do Brasil. Sobretudo nos melhores casos. A narrativa
autobiográfica é o elemento que catalisa uma série de questões teóricas
gerais que só podem ser colocadas corretamente por intermédio dela.
A peça de teatro não foi um meio eficaz que Sartre encontrou para expli-
car pontos teóricos da sua filosofia? (SANTIAGO, 1989, p. 31)

Foi, porém, com Anarquistas, graças a Deus que a autora não só se firmou como uma
voz literária no Brasil de finais do século XX, como também renovou o gênero “memó-
rias”, o qual, em nossa tradição, sempre esteve presente — como exemplo, pode-se
conferir a belíssima trajetória literária de Pedro Nava —, mas não como face de uma
linha hegemônica.

A ensaísta Maria Luiza Tucci Carneiro inicia uma conhecida palestra sobre Zélia Gattai fa-
lando sobre o impacto de Anarquistas, graças a Deus em nosso sistema literário. Obser-
ve-se como a ensaísta estabelece como fios condutores de sua leitura a representação
de São Paulo e a utopia vivida por homens comuns, em busca de dias melhores e justiça
social. A sombra desses discursos retorna com força em finais do século XX, quando se
pensava que já estivessem superadas as percepções do anarquismo e do comunismo
como crime. Zélia Gattai, então, é um sopro de memória, “vida que explode”, responsável
por tecer uma estória complexa em que história, enredo e memória se entrecruzam em
delicada teia discursiva:

A leitura das memórias de Zélia Gattai, registradas em Anarquistas, gra-


ças a Deus, traz até nós o cotidiano fantástico de uma São Paulo que não
volta mais. Nas páginas deste livro — cuja primeira edição veio à público
em 1979 — a “vida explode”, como muito bem afirmou Jorge Amado,
também testemunho dos tempos em que ser anarquista ou comunista
era crime. Anarquistas, graças a Deus nos oferece a rara oportunidade
de desvendar, ao sabor das lembranças, a ação de um grupo de homens
e mulheres que, movidos por suas utopias, ajudaram a fazer história.
Mulheres de fibra, jovens atrevidos, filhos de imigrantes italianos — a
maioria anarquistas, antifascistas, anticlericalistas — sonhadores como

37
tantos outros anônimos que, malditos por suas ideias, foram conside-
rados “perigosos à ordem pública e à Segurança Nacional”. (CARNEIRO,
2002, p. 1)

A relação entre memória e história fica patente desde a estreia de Zélia. Questões como
paradoxos entre ética e estética, verdade e ficção, texto e contexto encontram em Zélia
uma zona em que a escrita literária é capaz de romper localismos puros, sectarismos
ou pendor narcisista exagerado. Mais ainda, Zélia — com voz sempre em “tom menor”
— mostra-se sensível à miséria social brasileira que a cerca, o que se coaduna com a
preocupação social de uma anarquista que compartilha, com seus familiares mortos, o
sonho de um mundo melhor e mais justo, para além do Oceano Atlântico.

38
Caio Fernando Abreu: narrativa entre
evocação e resistência

Caio Fernando Abreu (1948-1996)


foi um escritor que operou na con-
tramão dos discursos, questionan-
do-se e enfocando seus medos e
angústias, com grande abertura para
a subjetividade. Jornalista e escritor
com obra reconhecida no Brasil e no
exterior, privilegiou gêneros como ro-
mance e conto. Nasceu em Santiago
do Boqueirão (RS) em 1948 e faleceu
Caio Fernando Abreu (1948-1996): jornalista, drama-
precocemente em 1996, na cidade turgo e escritor brasileiro. Foto: Divulgação.
de Porto Alegre.

Em 1968, em pleno recrudescimento do período ditatorial no Brasil, foi perseguido pelo


Departamento de Ordem Política e Social – Dops. Naquele momento, Hilda Hilst, que
morava em Campinas, escondeu-o em seu sítio. Após esse período recluso, saiu do Bra-
sil, exilando-se em países europeus como Espanha, França, Inglaterra, Países Baixos e
Suécia. Voltou para Porto Alegre em 1974. Já em 1983, mudou-se para o Rio de Janeiro;
depois, para São Paulo, em 1985.

O conjunto de sua obra é substancialmente escrito nesse período de repressão e incer-


tezas para a intelectualidade brasileira. Inclusive violências, pessimismos e perseguições
deixam marcas em inúmeras trajetórias e sujeitos políticos. Desmandos colocam a cul-
tura sob censura, de modo que esses sentidos carregados de negatividade, amargor e
acidez marcam fortemente o discurso literário.

39
Para refletir

As consequências do regime militar de 1964 para o campo literário e artís-


tico nacional

De acordo com Mariza Veloso e Angélica Madeira, o regime militar de 1964,


em suas duas décadas de regime ditatorial, limitou profundamente as con-
dições de desenvolvimento cultural, artístico e literário no país. Segundo as
autoras:

No Brasil, com a implantação do regime militar de 1964, ocorrem re-


definições políticas e ideológicas que transformam, de modo radical,
as condições de produção cultural e artística. Assiste-se ao desman-
telamento dos grupos políticos, artísticos e científicos estabelecidos
e instala-se o controle rígido da produção cultural pela censura. Essa
ruptura política suscita diferentes respostas, reveladoras das posições
conflitantes e, muitas vezes, antagônicas, sustentadas pelos artistas e
intelectuais do período.
O campo intelectual sofre transformações profundas. Após o afas-
tamento e a aposentadoria compulsória de professores e pesquisa-
dores, que representavam alguma forma de ameaça ao novo regime,
as universidades passam por uma reforma substantiva, visando prin-
cipalmente à sua especialização e à implantação de uma política de
pós-graduação eficaz: os grupos de pesquisa se institucionalizam e,
com a criação de associações científicas, a produção de saber se sis-
tematiza e profissionaliza. (VELOSO; MADEIRA, 2000, p. 183)

Enfocaremos, aqui, o livro Morangos mofados, de 1982, escrito em plena abertura eco-
nômica. Os 18 contos do livro são distribuídos nas seguintes partes: O mofo, Os moran-
gos e Morangos mofados. A dedicatória do livro é emblemática da família estética e cul-
tural com a qual o escritor quer ver-se ligado: John Lennon, Elis Regina, Henrique do Valle,
Rômulo Coutinho e de Azevedo e todos os amigos mortos; Caetano Veloso, Maria Clara
Jorge e Sônia Maria Barbosa, bem como seus amigos vivos. Clarice Lispector e Osman
Lins oferecem as epígrafes do livro.

A negatividade do livro apresenta-se sob uma chave dialética ao sugerir hermetismo e


alegoria representados por meio do “mofo” e sua podridão, que afetam toda uma geração
em situação claustrofóbica; dos “morangos” ácidos, que trazem vida e humor em doses

40
homeopáticas; e dos “morangos mofados”, quando é aventada pelo movimento dialético
uma solução, ainda que opaca. Os contos apresentam uma mistura de registros, com
lirismo e pendor narrativo; coloquialidade e formalidade; melancolia e leveza; fortes rela-
ções entre indivíduo, história e sociedade.

O conto de abertura do livro Morangos mofados, intitulado Diálogo, dedicado a Luiz


Arthur Nunes, mostra bem como os discursos são corrompidos a ponto de o trânsito
comunicativo ser totalmente bloqueado à compreensão. Não há dialogicidade, mesmo
com a estrutura dialogada do conto, com vozes que se presentificam formalmente, em
um contínuo. Apesar de todas as estratégias ali presentes, com alternância de vozes, pre-
valece o que Roman Jakobson chama de Função Fática da linguagem, cuja finalidade é
constituir, prolongar ou descontinuar a comunicação. Estamos aqui em um momento de
amarga solidão, de ruído perturbador que encontra correspondência nos tempos som-
brios e violentos da ditadura:

A: Você é meu companheiro.


B: Hein?
A: Você é meu companheiro, eu disse.
B: O quê?
A: Eu disse que você é meu companheiro.
B: O que é que você quer dizer com isso?
A: Eu quero dizer que você é meu companheiro. Só isso.
B: Tem alguma coisa atrás, eu sinto.
A: Não. Não tem nada. Deixa de ser paranoico.
B: Não é disso que estou falando.
A: Você está falando do quê, então?
B: Eu estou falando disso que você falou agora.
A: Ah, sei. Que eu sou teu companheiro.
B: Não, não foi assim: que eu sou teu companheiro. [...] (ABREU, 2019)

Vemos, assim, que o Diálogo é vazio na medida em que, apesar de um diálogo con-
vencional, da estrutura teatral, não há significação atuante, mas, sim, uma opacidade
constitutiva. O que resta é o vazio da experiência, o ruído, a incerteza. De fato, para a
intelectualidade, é um momento de grande angústia, fortemente marcado pelas dúvidas
com relação aos passos tomados pela redemocratização, em pleno governo de João

41
Figueiredo. Porém, abordar esse momento certamente não é algo simples, como bem
enfatiza Jaime Ginzburg ao falar do conto Os companheiros, de Morangos mofados:

Abordando vários elementos ligados às práticas de resistência, como os


codinomes, os esconderijos e a obscuridade, o melancólico texto elabo-
ra seu lamento de violência e, através de imagens como os morcegos e
o vento frio, propõe a continuidade da presença do temor e da incerteza.
(GINZBURG, 2005, p. 45)

As dúvidas vão pairar no ar, formando uma densa suspensão de desconfianças que não
se decantarão.

O livro de contos Morangos mofados é o quarto livro de Caio Fernando Abreu, que tam-
bém publicou outras coletâneas nesse gênero: Inventário do irremediável (1970), O ovo
apunhalado (1975), Pedras de Calcutá (1977), Os Dragões não conhecem o Paraíso
(1988) e Ovelhas Negras (1995). Também é autor de romances como Limite Branco
(1971) e Onde andará Dulce Veiga? (1990), além de peças de teatro, traduções e en-
saios diversos. Tornando mais complexa a relação do autor com a tradição e com as
formas que então circulavam no mundo à época de sua produção literária, importa dizer
que, segundo Nelson Luís Barbosa (2008), Caio Fernando Abreu não só trabalhou com
aspectos da memória e da autobiografia, mas também aprofundou suas experimenta-
ções estéticas ao tocar a autoficção — gênero literário eminentemente contemporâneo
trabalhado pelos teóricos franceses Serge Doubrovsky e Vincent Colonna, com base na
identificação entre autor, narrador e personagem — em diversas passagens, o que se
pode observar por meio do confronto de seus romances, contos e crônicas com sua cor-
respondência epistolar. Desse modo, há um amplo universo a ser explorado em leituras
críticas mais detidas de sua obra.

Após passagem pela França no início da década de 1990, a Convite da Casa dos Es-
critores, é diagnosticado portador de HIV, em um momento em que não há tratamento
possível. Passa seus últimos meses de vida ao lado de seus pais, cuidando de seu jardim.
Morre em Porto Alegre em 1996.

42
Cristovão Tezza: máscaras ficcionais entre
vida e arte

A obra de Cristovão Tezza, autor pa-


ranaense nascido em 1952, é bas-
tante diversificada. Seu romance O
filho eterno (2007) — colecionador
de prêmios diversos, como o Portugal
Telecom 2008, o São Paulo de Litera-
tura de Melhor Livro do ano 2008, o
Jabuti de Melhor Romance de 2008 e
Cristovão César Tezza (1952): escritor brasileiro. o APCA de 2007 — é considerado por
Foto: Divulgação muitos críticos seu principal livro. O
romance apresenta, em terceira pes-
soa (o que é um grande diferencial com relação à construção discursiva mais comum da
autoficção, em primeira pessoa), um enredo do qual fazem parte o pai — jovem professor,
que se dedica entusiasmadamente à atividade literária — e um filho com síndrome de
Down. Ao lado desse grande personagem que é o filho, ocorrem passos da formação do
profissional da escrita. Esse, portanto, lapida aos poucos seus recursos literários, com
altos e baixos, constituindo — ao lado do filho — o grande personagem da narrativa.

Observemos como Cristovão Tezza elabora uma narrativa ágil, sensível, com aspectos
dialógicos muito evidentes, de grande potencial comunicativo:

Súbito, o médico — por quem nunca sentiu simpatia, e portanto nada


espera dele — abre as portas basculantes, como sempre sem sorrir. Ne-
nhuma novidade na ausência de sorriso, daí porque, pai moleque, mal
ocultando a garrafinha de uísque, não se perturbou. O homem tirava as
luvas verdes das mãos, como quem encerra uma tarefa desagradável —
por alguma razão foi essa a imagem absurda, certamente falsa, que lhe
ficou daquele momento.
— Tudo bem? — ele pergunta, por perguntar: a cabeça já está no mês
seguinte, sete meses depois, um ano e três meses, cinco anos à frente, o
filho crescendo, a cara dele.
— É um menino. — Também nenhuma surpresa: eu tinha certeza de que
seria mesmo o filho da primavera, ele teria dito, se falasse. — A mãe está
muito bem. E desapareceu por onde veio. (TEZZA, 2007)

43
As expectativas sobre a chegada esperada do filho misturam-se com as posturas e os
pensamentos ambíguos diante do mundo. Aos poucos, revelando-se seus desafios, con-
fessa a mesquinhez de certas atitudes e perspectivas, como se tivesse desejado sempre
para si algo muito grande, porque especialmente preparado, resiliente, imbatível em suas
qualidades. Porém, coleciona fracassos. É com esses fracassos que precisa lidar, tendo
de fazer escolhas diante de uma jornada hostil e cheia de negativas. Como afirma Jus-
celino Pernambuco:

O filho eterno pôs à prova a capacidade de criação do artista e de con-


trole do objeto estético. Ele tinha em mãos um enredo pronto: tornara-se
pai de um filho com síndrome de Down. Não estava preparado para ser
pai, rejeitava essa ideia e, de repente, se vê diante da situação. Era um
jovem ainda desnorteado diante da vida, rebelde, sem profissão definida,
revoltado contra tudo, situado politicamente à esquerda na luta contra
o regime militar em curso no Brasil, sonhava ser escritor, mas por ora
só acumulara fracassos diante de editoras e concursos literários. (PER-
NAMBUCO, 2012, p. 190)

A humanização e o amadurecimento daquele pai ocorrem também porque não se furta


de sua “missão”, compreendida de um ponto de vista estético e ético. Aprende a viver um
dia após o outro, passando a colher os frutos de uma relação com a vida que implica
também aprender com os limites, com a vida que não domina. Nesse passo, cria uma
relação única com seu filho, de dedicação e — por que não? — superação, como notamos
no fechamento do livro:

— Hoje tem jogo, filho!


O menino sorri, exultando:
— Hoje tem?!
— Tem! Atlético e Fluminense!
— Então vamos chamar o Christian!
O Christian é o vizinho atleticano — em todo jogo, monta-se na casa uma
arquibancada de fanáticos.
— Sim, ele também vem.
— Isso! Vamos ganhar! Quatro a zero! — e ele mostra a mão espalmada,
olha para os dedos, ri e acrescenta: — Opa! Errei! Cinco a zero!
— Vai ser um jogo muito difícil — o pai pondera, torcedor pessimista. —
Que tal dois a um?
O menino pensa. Ergue a mão novamente, agora com três dedos.

44
— Três a zero, só. Que tal? — Tudo bem. Mas vai ser duro. Você está pre-
parado?
— Estou! Eu sou forte! — Ele ergue o braço, punho fechado: — Nós vamos
conseguir!
— Vamos ver se a gente ganha.
O menino faz que sim, e completa, braço erguido, risada solta:
— Eles vão ver o que é bom pra tosse!
É uma das primeiras metáforas de sua vida, copiada de seu pai, e o pai ri
também. Mas, para que a imagem não reste arbitrária demais, o menino
dá três tossidinhas marotas. Bandeira rubro-negra devidamente desfral-
dada na janela, guerreiros de brincadeira, vão enfim para a frente da tele-
visão — o jogo começa mais uma vez. Nenhum dos dois tem a mínima
ideia de como vai acabar, e isso é muito bom. (TEZZA, 2007)

A narrativa encerra-se assim: “Nenhum dos dois tem a mínima ideia de como vai acabar,
e isso é muito bom”. É a vida comum, homens comuns, comprometidos com valores
universais, de beleza e empatia na vida cotidiana. Observe-se, assim, como a opção pela
terceira pessoa é certeira ao avançar o gênero autoficcional para o terreno desconhecido,
de modo que a liberdade estética conduz, igualmente, ao terreno do não controlado, da
surpresa, ainda que saiba aonde se chegará — sabemos, àquela altura da publicação do
livro, que Cristovão Tezza não é um escritor desconhecido, nem inexperiente, nem mes-
mo profissionalmente fracassado.

Para refletir

A produção autoficcional na contemporaneidade: uma visada geral

O conceito de “autoficção” foi cunhado pelo escritor e crítico francês Serge


Doubrovsky em 1977. De lá para cá, houve uma proliferação de estudos
críticos voltados para o caráter autoficcional na literatura contemporânea,
acompanhada por uma crescente produção literária que lida com as fronteiras
não nítidas entre realidade e ficção. Conforme afirma a especialista no tema
Jovita Marai Gerheim Noronha:

No que diz respeito a seus antecessores, certos críticos, dentre os


quais o próprio Doubrovsky, estimam que o neologismo veio nomear

45
uma prática que, de fato, já existia. Quanto à sua sucessão, a pala-
vra se encontra hoje dicionarizada na França (dicionários Larousse e
Robert) e cada vez mais se propaga além das fronteiras desse país
para definir práticas de autoescrita, como se constata atualmente en-
tre nós. E essa disseminação é operada em três esferas: os escritores
que se apropriam do termo para definir suas próprias obras; mundo
acadêmico, no qual a investigação sobre essa categoria conceitual
toma corpo em eventos e comunicações, em teses, dissertações e
artigos; a mídia especializada, que mobiliza o termo em entrevistas e
resenhas. Além disso, a etiqueta “autoficção” não se restringe mais ao
campo da literatura, estendendo-se às outras artes. [...] De fato, tanto
a fortuna crítica da autoficção, quanto sua apropriação pelos autores
para designar suas obras deixam antes a impressão de um debate ver-
tiginoso, à maneira de Pirandello. (NORONHA, 2014, p. 7-8)

Aprendemos, ao final, que a leitura pode, ainda sim, conduzir-nos para um terreno novo
e inexplorado, em que os jogos de máscaras, comprometidos com o autêntico da expe-
riência, podem nos guiar para um encontro singular com as vidas escritas.

Apesar do enfoque em trajetórias conhecidas e em acontecimentos reais, o próprio autor


paradoxalmente defende a necessidade da escrita literária como distanciamento, força
construtiva e impessoalização. Em suas palavras:

[...] a grande chave técnica do livro porque não me envolvi. A terceira


pessoa me deu liberdade para lidar com o narrador. Eu trabalho escan-
caradamente com dados biográficos: eu tenho um filho com síndrome
de Down e esse é o tema central do livro. (TEZZA apud MARTINS, 2011)

Trabalhar com dados biográficos não significa excesso de narcisismo e subjetivação.


Essa lição de escrita e vida Cristovão Tezza nos oferece com toda perfeição e justeza.

46
MIDIATECA

Para ampliar seu conhecimento veja o material complementar da Unidade 2,


disponível na midiateca.

NA PRÁTICA

Leonor Arfuch (2002) concebe o termo “espaço biográfico” para pensar sobre
novos gêneros discursivos que avançam na contemporaneidade, acompanhan-
do o desenvolvimento das “novas tecnologias da presença”. Mas também há
um avanço indiscutível de gêneros autobiográficos reconhecidos pela tradição
moderna, como autobiografia, memórias, diários, cartas, crônicas etc.

Nesse sentido, podemos dizer que o espaço dilatado do eu na época de hoje


contribui, como nunca antes, para a ampliação dos arquivos literários, históri-
cos e culturais e, consequentemente, das potenciais relações entre ética, esté-
tica e política (ARFUCH, 2010). As obras de Zélia Gattai, Caio Fernando Abreu e
Cristovão Tezza demonstram bem o potencial significativo dessa literatura que
toca em questões como as relações entre vida e arte, entre eu e o mundo, entre
subjetividade, literatura, história e sociedade.

Analisar produções que dialogam ativamente com as escritas de si pode ser


um objetivo das aulas de Língua Portuguesa e suas Literaturas, de Crítica e
Teoria Literária, de estudos críticos voltados para artes, cultura e sociedade,
entre outros. Mais ainda, produções que transitam livremente no âmbito do es-
paço biográfico na contemporaneidade tendem a sensibilizar o leitor de hoje,
ampliando seu repertório e seu poder de construir sentidos complexos sobre o
mundo que o cerca.

47
Resumo da Unidade 2

Na Unidade 2 foi possível desenvolver uma leitura panorâmica de importantes escritores


da Literatura Brasileira Contemporânea, que produziram obras fundamentais de meados
do século XX até as décadas iniciais do século XXI. O foco foi dado ao tratamento fic-
cional de elementos da subjetividade, dando relevo ao conceito de escritas de si, memo-
rialismo, crônicas e autoficção, com destaque para as obras de Zélia Gattai (1916-2008),
Caio Fernando Abreu (1948-1996) e Cristovão Tezza (1952).

CONCEITO

Figurações da subjetividade; relações entre literatura, história e sociedade; es-


paço biográfico na Literatura Contemporânea Brasileira.

48
Referências

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PROVOCAÇÕES RECEBE O ESCRITOR CRISTOVÃO TEZZA – BLOCO 1. Entrevista a Cristo-


vão Tezza conduzida por Antônio Abujamra. São Paulo, TV Cultura. Disponível em: https://
www.youtube.com/watch?v=tadIvxiLDSM&feature=youtu.be. Acesso em: 10 mar. 2020.

PROVOCAÇÕES RECEBE O ESCRITOR CRISTOVÃO TEZZA – BLOCO 2. Entrevista a Cris-


tovão Tezza conduzida por Antônio Abujamra. São Paulo, TV Cultura. Disponível em: ht-
tps://www.youtube.com/watch?v=xA2t_hl4fR8. Acesso em: 10 mar. 2020.

50
ROCHA, J. C. de C. R. A guerra de relatos no Brasil contemporâneo. Ou “a dialética da
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SANTIAGO, S. Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
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martinsfontespaulista.com.br/anexos/produtos/capitulos/249095.pdf. Acesso em: 10
mar. 2020.

51
UNIDADE 3

Lirismo em liberdade: poesia,


polifonia e multimídia
INTRODUÇÃO

Ao abordar a poesia contemporânea brasileira, deparamo-nos com um território hete-


rogêneo, marcado pela desestabilização dos discursos hegemônicos, o que demanda
a necessidade de encarar a diversidade como um elemento constitutivo dos tempos
de hoje. Há muitas linhas críticas e criativas, as quais se aproximam e se distanciam
da tradição, ora para aprofundar seus parâmetros, ora para marcar suas posturas de
resistência e de divergência.

Assim, algo que parece comum a diversas tendências é a constante indagação sobre
seus limites, o que afirma a condição de autorreflexão e crise da linguagem, da sintaxe,
do sentido. O movimento entre crise e expansão é bem abordado por Celia Pedrosa em
seu artigo Poesia e crítica de poesia hoje: heterogeneidade, crise, expansão (PEDRO-
SA, 2015).

Ao lado dessa experiência com linguagem verbal, a poesia contemporânea também in-
corpora elaborações promissoras como construção formal, semântica, sensorial etc.,
com sua migração para os meios digitais e computacionais. Imagem, ritmo, texturas,
sonoridades e movimentos passam a ser ressignificados ao se transportar do universo
analógico para o digital.

Todos esses elementos serão discutidos ao longo desta unidade. Esperamos que os
conteúdos aqui tratados despertem em você, estudante, a vontade de conduzir novas
pesquisas e de conhecer a poesia desenvolvida nos dias de hoje no Brasil.

53
objetivo

Nesta unidade você será capaz de:

• Analisar as principais vertentes da poesia brasileira na contemporaneidade, en-


fatizando como procedimentos poéticos se deslocam explorando novos espaços
e novas configurações, com destaque para a obra de Ferreira Gullar (1930-2016),
Augusto de Campos (1931), Haroldo de Campos (1929-2003) e Décio Pignatari
(1927-2012).

54
Ferreira Gullar: deslocamentos do poema
sujo

Ferreira Gullar viveu as contradições de seu


tempo e de seu espaço, elaborando-as por
meio de uma escrita poética, memorialística,
cronística e ensaística de qualidade incon-
teste. Membro da Academia Brasileira de Le-
tras, sua obra foi aclamada por seus pares,
por seu público e por críticos especializados.
Além de escritor de gêneros propriamente li-
terários, também se dedicou à tradução e foi
um intenso combatente por meio da palavra
empenhada, enviando periodicamente seus
artigos para jornais de grande circulação no
Brasil. Escreveu importantes livros, como A Ferreira Gullar (1930-2016), em foto de 1970
para o jornal Correio da Manhã.
luta corporal (1954), Dentro da noite veloz
(1975), Poema sujo (1976), Na vertigem do dia (1980), Em alguma parte alguma (2010),
entre outros.

Nascido no Maranhão, cedo mudou-se para o Rio de Janeiro, onde consolidou sua car-
reira literária. Participou do movimento da poesia concreta, assim como da exposição
concretista de 1956 — que será estudada no próximo tópico da disciplina —, mas poucos
anos depois, por divergências várias, afastou-se do movimento.

Com os artistas plásticos Lygia Clark (1920-1988) e Hélio Oiticica (1937-1980), fundou o
movimento neoconcreto, distanciando-se definitivamente dos pressupostos da poesia
concreta, criticada por ele por seu excesso de tecnicismo, de formalismo e de herme-
tismo, entre outros argumentos. Reforçaram, então, que a arte não é somente forma ou
objeto desprovido de conteúdo e de emoção: expressividade e subjetividade encontram
espaço por meio das produções neoconcretas que se apoiam na sensibilidade e na pers-
pectiva humanizadora da arte.

Assumiu, em 1961, a presidência da Fundação Cultural do Distrito Federal. Participou ati-


vamente dos Centros Populares de Cultura, os chamados CPCs, muito ativos entre 1962
e 1964, quando foram fechados após o Golpe Militar de 1964. Ferreira Gullar praticou
a poesia engajada, com um lirismo comprometido com as classes populares, com os

55
problemas sociais brasileiros e com os impasses do momento histórico. Nesse período,
publicou o cordel João Boa-morte, cabra marcado pra morrer (1962). Sua obra já se
aproximava do chão brasileiro, e, por tal motivo, passou a ser perseguido pela ditadura
então vigente — inclusive, foi militante do Partido Comunista Brasileiro.

Para refletir

Ao se falar sobre a crítica literária dedicada a compreender a dinâmica do con-


temporâneo, desenham-se algumas linhas: por exemplo, há aquela que aponta
que é impossível abarcar a multiplicidade do que é produzido em cena; de outro
lado, há uma vertente atenta ao modo como o contemporâneo se relaciona com
a modernidade e com os textos que lhe são coetâneos, destacando seus diálo-
gos, suas conexões, suas releituras, suas apropriações e seus distanciamentos.
Do ponto de vista crítico, também pode-se observar a dialética entre ênfase no
significante e destaque da complexidade do significado (histórico, político, cultu-
ral etc.). Essas tensões foram vividas pela geração de críticos atuantes nas déca-
das de 1960 e 1970, em plena Ditadura Militar, como afirma Alfredo Bosi:

Voltando ao Brasil [da Itália], em 1962, pude participar de um dos


momentos mais esperançosos de nossa vida política: a união estra-
tégica de todas as forças progressistas (socialistas, comunistas, tra-
balhistas, cristãs de esquerda, democratas radicais) em torno de um
projeto histórico, a luta pelas reformas de base, que se estendem até
março de 1964, quando o golpe udeno-militar desbaratou os militan-
tes e inaugurou a ditadura. Paradoxalmente, esse clima intensamen-
te politizado, que expulsou da nossa universidade os mestres mais
engajados (cito o nome de Florestan Fernandes, que vale por todos),
foi quase imediatamente substituído pela onda universitária do es-
truturalismo linguístico, muito pouco sensível aos dramas de nossa
história política, e da história em geral... [...] (ENTREVISTA COM AL-
FREDO BOSI SOBRE CRÍTICA LITERÁRIA, 2013, p. 314).

A atuação política de Ferreira Gullar, fortemente combativa e questionadora, o levou ao


exílio entre agosto de 1971 e março de 1977. Foram longos anos fora do Brasil, em que as
incertezas sobre os tempos foram vividas com angústia e pessimismo. Marcélia Guima-
rães Paiva, em sua tese de doutorado, debruça-se sobre a construção poética em Ferreira

56
Gullar, que incorpora a condição de “exilado”. Para tanto, reforça a imagem de “morada”.
Segundo a autora, o exílio pode ser compreendido por meio de diversas facetas:

O exílio possui muitas facetas. Ele pode estar relacionado à situação de


ser clandestino em seu próprio país, de viver em um espaço conhecido
que rejeita o exilado, de não ter identificação pessoal, de estar em si-
tuação de interrupção do diálogo com a família e com os participantes
de seu círculo de convívio, de viver em permanente estranhamento do
outro ou em um espaço onde se habita que se converte em outro país.
Essas diversas situações impõem ao exilado um conjunto de tarefas,
tais como não perder a memória do exílio, fazer inventário de perdas, de-
fender-se de acusação de transgressão da lei, não abandonar sua língua
e conseguir asilo. Essas ações, em um poema de exílio, são básicas para
se construir a morada. Essa construção é abalada pela perspectiva da
volta. (PAIVA, 2017, p. 18)

Um acontecimento dramático no contexto do exílio — quando o autor, então em Buenos


Aires (depois de estadas em Moscou, Santiago e Lima), acredita ser iminente sua queda
nas mãos da polícia — dá ensejo à escrita do Poema sujo, de 1975. Esse funcionaria
como uma espécie de sobrevivência lírica em um universo de perdas — tanto as ocor-
ridas de fato como as que se anunciam. Estratégias da memória e da escrita sensível
mobilizam um conjunto de imagens que se esquivam do universo da fuga e da desespe-
rança que estão a seu redor. Assim, retoma aspectos memorialísticos que passam por
sua vida no Maranhão, no Rio de Janeiro, nos trânsitos do exílio, suas experiências amo-
rosas, suas leituras poéticas etc., com uma mistura de inúmeros tons e registros, como
elementos formais e informais, prosa e poesia, passando pelas diversas classes sociais
e pelos desafios mais intensos de sua época.

Aqui, sonoridade e ritmo embalam um sujeito em busca de preservar sua autonomia cria-
tiva, ciente das ameaças, pronto para lutar pelo fio de vida que lhe resta, com a profun-
didade que esse compromisso lhe incita. Nesse sentido, conforme Paiva (2017) sugere,
o autor constrói uma morada pela linguagem. Leiam-se algumas das estrofes do longo
Poema sujo para se notarem essas e outras questões:

[...] Que importa um nome a esta hora do anoitecer em São Luís


do Maranhão à mesa do jantar sob uma luz de febre entre irmãos
e pais dentro de um enigma?

57
mas que importa um nome
debaixo deste teto de telhas encardidas vigas à mostra entre
cadeiras e mesa entre uma cristaleira e um armário diante de
garfos e facas e pratos de louças que se quebraram já

um prato de louça ordinária não dura tanto


e as facas se perdem e os garfos
se perdem pela vida caem
pelas falhas do assoalho e vão conviver com ratos
e baratas ou enferrujam no quintal esquecidos entre os pés de erva-ci-
dreira [...]

corpo que se para de funcionar provoca


um grave acontecimento na família:
sem ele não há José Ribamar Ferreira
não há Ferreira Gullar
e muitas pequenas coisas acontecidas no planeta
estarão esquecidas para sempre corpo-facho corpo-fátuocorpo-fato

[...] Mas sobretudo meu


corpo nordestino
Mais que isso
maranhense
mais que isso
sanluisense
mais que isso ferreirense
newtoniense
alzirense
meu corpo nascido numa porta-e-janela da Rua dos Prazeres
ao lado de uma padaria sob o signo de Virgo
sob as balas do 24º BC
na revolução de 30
e que desde então segue pulsando como um relógio
num tic tac que não se ouve
(senão quando se cola o ouvido à altura do meu coração)
tic tac tic tac
enquanto vou entre automóveis e ônibus
entre vitrinas de roupas
nas livrarias
nos bares
tic tac tic tac

58
pulsando há 45 anos
esse coração oculto
pulsando no meio da noite, da neve, da chuva
debaixo da capa, do paletó, da camisa
debaixo da pele, da carne,

combatente clandestino aliado da classe operária


meu coração menino. (GULLAR, 2016)

O prefácio à edição do Poema sujo recentemente publicado pela Companhia das Letras,
de autoria de Antonio Cicero, traz apreciações de outros autores sobre o mais conhecido
poema de Gullar, como esta de Otto Maria Carpeaux: “[...] mereceria ser chamado ‘Poema
nacional’, porque encarna todas as experiências, vitórias, derrotas e esperanças do homem
brasileiro. É o Brasil mesmo, em versos ‘sujos’ e, portanto, sinceros” (CARPEAUX apud
CICERO, 2016, e-book). O autor sabe que há um hiato irresolúvel entre vida e escrita — e é
nesse hiato que o sujeito se inscreve de modo a fazer com que, para falar como Viviana
Bosi (2017), seu passado perdido e reconquistado se torne sua identidade. Segundo Bosi:

A pluralidade que o poema convoca, fazendo irromper o menino e o ado-


lescente dentro do homem, junto às muitas vozes do seu passado, seja
em breves sequências narrativas, seja pela imersão nas sensações vi-
venciadas (fiapos de cor, luz, cheiros que se entramam dentro de si, bi-
chos e corpos que nascem da terra), transforma-se numa multiplicidade
de pontos de vista. (BOSI, 2017, p. 426)

De fato, o poema incorpora e elabora literariamente dados multifacetados de uma trajetó-


ria feita de rica experiência formativa, estudo disciplinado, domínio técnico, compromisso
social e imensa solidão pelo isolamento, consequência esta das fugas sucessivas pelas
quais passou o escritor para preservar sua integridade física, psicológica e sua autono-
mia criativa e reflexiva. Ao mesmo tempo, um monumento da poesia nacional se ergue,
como resistência ao estado de coisas e à crueldade que exalavam aqueles tempos.

59
Poesia concreta ontem e hoje: a aventura
da palavra

Com a breve análise da poesia de Ferreira Gullar to-


camos rapidamente em um dos movimentos mais
conhecidos e criativos da literatura brasileira: o mo-
vimento da poesia concreta. Suas bases — lançadas
em uma década de grande euforia e de confiança
crescente na democracia como sistema político ga-
rantidor do progresso dos povos, a década de 1950
— continuam a render frutos no novo milênio. Veja-
mos alguns aspectos do movimento e como figu-
ras-chave, como Haroldo de Campos, Augusto de
Campos e Décio Pignatari, imprimiram sua energia
de propulsão vanguardista, com forte ressonância
no exterior, em um país que — a despeito dos avan-
ços técnicos evidentes — continuaria subdesenvolvi- Capa da primeira revista
do e externamente dependente. Noigandres, de 1952.

O movimento concretista busca aprofundar os elementos desenvolvidos pela arte mo-


derna, muito bem representada por expoentes como Piet Mondrian (1872-1944), Wassily
Kandinsky (1866-1944) e Max Bill (1908-1994), para citar alguns nomes. O movimento
abstracionista de vanguarda tende a enfatizar a concretude versus a abstração, o obje-
tivismo versus o subjetivismo, a geometria calculada versus o caos disforme, desarticu-
lado da matéria bruta. A técnica, desse modo, busca aprofundar o aprendizado com os
materiais, a serem depreendidos por meio da geometria e do cálculo.

No Brasil, na década de 1940, é o poeta João Cabral de Melo Neto (1920-1999), autor
de O Engenheiro (1945), que inicialmente firmou as premissas de uma linguagem
calculada como escopo principal do fazer literário. Na década de 1950, essas questões
foram postas como centrais no debate artístico nacional pelas mãos de poetas como
Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari. O trio editou a histórica
revista Noigandres em 1952, marcando época (as edições posteriores da revista
também agregaram Ronaldo Azeredo e José Lino Grünewald, circulando até 1962). Para
o estudioso do assunto Omar Khour, o grupo Noigandres forçou, inclusive, uma visada

60
diferente daquilo que então se compreendia como tradição modernista, de modo que
suas reverberações foram além da ruptura inicial, mais aguerrida:

O conjunto da obra poética do Concretismo acrescentou muito à criação


do século XX e, através de um cuidadoso exercício comparativo, pode-
remos concluir que a melhor poesia concreta produzida mundialmente
foi a do Brasil e mais especificamente da Pauliceia e a feita por poetas a
ela ligados de alguma forma. O Grupo Noigandres arregimentou Ronal-
do Azeredo e, depois, José Lino Grünewald. A Poesia Concreta brasileira
não ficou apenas nas já importantes faturas dos anos 50, da chamada
fase ortodoxa (heroica) em que vigorou um projeto coletivo de produção:
evoluiu, apresentou novos projetos, congregou mais poetas, explicitou
individualidades. A Poesia Concreta obrigou os apreciadores das Letras
a repensar a tradição. (KHOURI, 2006, p. 22)

Paralelamente, ocorreram movimentações no Rio de Janeiro em torno de nomes como


Lygia Clark, Hélio Oiticica e Ferreira Gullar — sobre as quais tratamos no tópico anterior.
Esses grupos fizeram concertações, manifestos, exposições etc., de modo que, paulati-
namente, os dissídios foram se desenrolando, com acontecimentos que são vistos hoje
como marcos incontestáveis. Em 1956, ocorreu a Exposição Nacional de Arte Concreta,
em São Paulo; em seguida, movimentos tensivos ao grupo paulista incorporam-se em
1957, na Exposição do Rio de Janeiro. Já em 1959, as divergências ficam claras com o
posicionamento do grupo carioca ao propor o neoconcretismo, na contramão do tecni-
cismo paulista.

É interessante notar o frutífero diálogo entre diversas artes nesse período. Literatura, es-
cultura, pintura, arquitetura, música etc. buscam territórios de produção e de reflexão que
sejam mutuamente estimulantes. Inclusive, o discurso crítico que acompanha essas pro-
duções torna-se praticamente indispensável. Desses grupos, nascem teóricos e críticos
que alcançam posição-chave na cena cultural brasileira, como Haroldo de Campos, que
também possui vasta produção como tradutor (em vertente que se poderia chamar de
tradução-transcriação) e teórico da literatura.

61
Importante

Uma das faces mais prolíficas do movimento concretista tem a ver com a refle-
xão sobre a poesia, a literatura e a arte deixada pelos autores. Nesse contexto,
Haroldo de Campos ocupa uma posição ímpar como teórico e crítico, como
bem sugere Lino Machado, na passagem a seguir:

Com certeza, as categorias utilizadas podem ser articuladas a conceitos


privilegiados no ensaísmo do próprio Haroldo de Campos [...]. Apontemos
alguns [...]: as noções hauridas em Roman Jakobson, de ‘poética sincrô-
nica’ (diálogo com o passado a partir de uma perspectiva crítica fincada
no presente, não numa pretensa ‘neutralidade’ de reconstituição histórico-
filológica), ‘função poética’ (ênfase na materialidade dos signos) e ‘função
metalinguística’ (atenção ao desdobrar-se da literatura sobre si mesma,
em exercício lúdico de autoproblematização); o ‘dialogismo’ de Mikhail Ba-
khtin, rebatizado como ‘intertextualidade’ por Julia Kristeva (a remessa in-
findável que os discursos fazem uns aos outros); a consideração do ‘texto’
(herdada quer das práticas da vanguarda, quer da teorização literária dos
anos 1960) como algo em que as fronteiras entre poesia e prosa tendem
a diluir-se; as várias contribuições da semiótica (em especial a de Peirce),
com sua ênfase na diversidade das espécies de signos...” (MACHADO,
2013, p. 262-263).

Vimos, portanto, que Haroldo de Campos ocupa posição central como tradutor, pensa-
dor, teórico da literatura e crítico de literatura e de arte. Seu legado múltiplo pode ser
conferido por meio de títulos memoráveis, como as obras poéticas Galáxias (1984) e
Crisantempo (1998), ao lado de importantes livros de crítica literária, como Morfologia
do Macunaíma (1973), A arte no horizonte do provável (1972) e Transcriação (2015,
organização de Marcelo Tápia e Thelma Médici Nóbrega).

Por sua vez, Décio Pignatari, escritor multifacetado, tradutor e professor, autor de Poe-
sia pois é poesia (1977), dedicou-se a inúmeros gêneros literários — poesia, contos,
romance, memórias, teatro, crônicas, além do ensaísmo e de estudos de cunho teó-
rico-metodológico voltados para a área de Comunicação e Semiótica. Sua ênfase é
claramente voltada para a comunicação poética centrada na potência do signo visual,
como vemos a seguir:

62
Beba coca-cola, de 1957. Autoria de Décio Pignatari.
Disponível em: http://s3-sa-east-1.amazonaws.com/des-
complica-blog/wp-content/uploads/2015/10/beba_coca_
cola.jpg. Acesso em: 3 abr. 2020.

Observe-se como esse ícone do movimento concretista incorpora visualidade, musica-


lidade, ritmo, estreita junção entre linguagem verbal e não verbal, em subversiva correla-
ção, a ponto de se constituir como uma marca de antipropaganda capitalista. Assim, a
comunicação multissemiótica pode ser dinamizada para estimular crítica e convidar ao
criterioso julgamento. Coca-cola seria cloaca?

Palavra e visualidade são faces inseparáveis não só para Décio Pignatari, mas também
para os expoentes do grupo, que não deixam as premissas de seu principal legado. Nesse
passo, Augusto de Campos — considerado por muitos o grande poeta do grupo — conti-
nua a instigar as gerações sucessivas, mesmo porque não se furta do enfrentamento dos
principais impasses da poesia nos novos tempos. Por exemplo, em Pós-tudo, poema de
1984, em momento político brasileiro crucial no contexto da abertura democrática, per-
gunta-se (e pergunta-nos), em primeira pessoa: “depois de tudo, restaria (subjetividade,
alteridade mundo) mudo?”. Leia-se, a seguir, outra obra-prima do movimento concretista:

63
Pós-tudo (1984). Autoria de Augusto de Campos.
Disponível em: https://image.slidesharecdn.com/concre-
tismo-120828180322-phpapp02/95/concretismo-16-728.
jpg?cb=1346178062. Acesso em: 2 abr. 2020.

Augusto de Campos, nascido em 1931, continua produtivo e inventivo, ocupando posição


de destaque na poesia brasileira, em especial naquela que explora os espaços do univer-
so digital. O autor de títulos como Poetamenos (1953), Expoemas (1985), Não poemas
(2003), bem como de célebres traduções de Mallarmé e E.E. Cummings, prossegue, des-
se modo, sua trajetória de busca de novas formas e renovadas expressões poéticas.

64
Literatura, arte, multimídia e NTIC: linguagens
em potência

Falar do legado da poesia concreta necessariamente conduz às reflexões sobre os ter-


renos móveis, híbridos e dinâmicos da poesia realizada em formato digital. Entretanto,
antes de tecer considerações sobre o universo da produção poética em específico,
façamos uma breve incursão sobre os âmbitos da arte multimidiática.

As aproximações hoje entre arte e tecnologia são muito vastas e encontram-se ao


nosso alcance pela rede mundial de computadores. Aqui podemos vivenciar aquilo que
denominamos realidade ubíqua, que atravessa espaços e tempos. Podem-se mencio-
nar, por exemplo, realizações de grande força sensorial, de estranhamento e de comu-
nicação e de interação no universo da arte digital, da web arte, do videoarte, das insta-
lações, das performances e da realidade virtual interativa. Nomes que vêm produzindo
com criatividade e perspicácia ao reconhecer aspectos centrais desses tempos são
Gilbertto Prado (artista multimídia, professor da ECA-USP, com obras presentes no site:
http://www2.eca.usp.br/cap/gilbertto/english/index.html) e Guto Lacaz (artista multi-
mídia, com vasta obra gráfica, plástica e multimidiática, presente no site http://www.
gutolacaz.com.br/).

Ampliando o foco

As experiências desenvolvidas por Max Bense estão nos primórdios da ligação


entre poesia, literatura e computação. Leia-se:

Apesar de ainda nos dias de hoje serem pouco conhecidas de gran-


des públicos, inclusive no meio literário, experimentações poéticas
com linguagem de computação foram realizadas já na década de 50
do século XX pelo grupo liderado pelo filósofo e matemático alemão
Max Bense, o qual, à época, fora influenciado pelas reflexões em torno
da cibernética, introduzidas por Norbert Wiener. Em um artigo recente
sobre a contribuição de Bense para a história da literatura digital, Eli-
sabeth Walther esclarece que os primeiros experimentos de literatu-
ra em computador ocorreram devido à presença de Wiener, em julho

65
de 1955, como palestrante convidado na Escola Técnica de Stuttgart,
onde Bense atuava. Sua palestra foi capaz de empolgar uma série de
estudantes de diferentes áreas, dentre os quais ‘alguns jovens mate-
máticos e técnicos em eletrônica (Rul Gunzenhäuser, Sigfried Maser)
sentiram-se especialmente estimulados a realizar certos trabalhos a
partir da forte dependência da estética com relação à matemática [...],
abordada por Bense em seus ensaios e palestras’ (WALTHER, 2012, p.
39).” (KIRCHOF, 2013, p. 129-130).

As Novas Tecnologias da Informação e Comunicação – NTIC têm o poder não só de


aproximar o criador de seu público, alimentando-se uma comunidade de leitores cada
vez mais versada no ambiente tecnológico e nos recursos de inovação, mas também
tornam cada receptor um criador em potencial, um fruidor do patrimônio cultural da
humanidade que pode oferecer uma contribuição reflexiva, analítica e criativa em um
debate e numa área inventiva que apenas deu seus passos iniciais.

No campo da literatura infantojuvenil, uma experiência criativa foi publicada pela Edito-
ra Global pelos escritores-artistas Ana Cláudia Gruszynski — responsável pelo projeto
gráfico e pela capa — e Sérgio Capparelli — escritor que desconstrói o verso tradicional
em busca de uma comunicação imediata, de tipo icônica, com seu público. Algumas
dessas produções podem ser visitadas no site: http://www.ciberpoesia.com.br/. Os au-
tores estimulam, inclusive, a interação e a criação a partir da experiência multimidiáti-
ca. O livro Poesia visual (2000) recebeu o selo Altamente Recomendável pela FNLIJ
2001 (Fundação Nacional do Livro Infantojuvenil) (CAPPARELLI; GRUSZYNKSI, 2001).

Para encerrar, um artista multimidiático reputado como dos principais no Brasil é André
Vallias. Formado em Direito, designer gráfico e criador multimidiático de profissão, o es-
critor e designer fez suas primeiras incursões pela poesia visual em 1985. Influenciado
por Vilém Flusser, trabalhou com importantes nomes da poesia multimidiática. Autor
de poemas complexos, matemáticos e com impactante leitura social, como Oratório
(2003) e Totem (2014, finalista do Prêmio Oceanos de Literatura), André Vallias é um
artista que lança mão da convergência de som, cores, formas, palavras e movimento,
como vemos a seguir, pelas imagens fixadas para nossa leitura:

66
Página digital do poema Oratório, de André
Vallias. Disponível em: https://andrevallias.
com/oratorio/. Acesso em: 4 abr. 2020.

Em Oratório, a cidade do Rio de Janeiro é representada pela topografia recortada, en-


tre planos e morros, como um jogo de euforia e disforia em que retrato e paisagem
se relacionam de modo abrupto e desconexo. Da cidade dos dias de hoje, tomada
pela carência, abrem-se sentidos que desmontam o Rio antigo ocupado pela elite. Por
exemplo, como afirma Rejane Rocha, a Rocinha fora palco de corridas automobilísticas
do circuito da Gávea nos anos 1930. Hoje, eis um labirinto sem nexo, símbolo máximo
da desintegração das grandes cidades, palco de pobreza, de injustiças, de indigências.
Do Rio de Janeiro como simulacro de urbe (portanto, não civilizada, não humana, não
racional, apenas imagens superficiais que permitem uma leitura da forma sem fundo),
comunica-nos o poema digital de fortes ressonâncias. Observe-se a seguir:

é omnipresente
o simulacro
oco e alvo
que a urbe
estatui: christus
redemptor
hominis
no pináculo
da tentação
? ou

67
o astro
que segura
a rosa diminuta
na proa da nau
desgovernada? (VALLIAS, 2003)

Aliás, o texto pode ser lido em múltiplas direções. Como afirma Rocha (2016), como um
oratório, a poesia dá visibilidade às diversas facetas da cidade que seduz (cidade do
samba, da paisagem deslumbrante, do monumento) e que repele (com suas violência e
hostilidade). Está aqui um exemplo de que é necessário conhecer a tradição do verbo,
as imagens conectadas a espaços distópicos, os movimentos populares que dão con-
sistência ao viver cotidiano carioca. A literatura eletrônica é capaz, então, de congregar
e potencializar o universo de sentidos, pela tensão, pela contradição, pela atenção re-
dobrada que lhe será exigida.

Portanto, vemos que há muitas possibilidades de leitura no universo da produção di-


gital. Recomenda-se, nesse sentido, que se busquem formar leitores capazes de en-
xergar “um objeto simbólico manipulável, o qual está em equilíbrio entre o caos e a
ordem, a informação redundante e a informação relevante, entre o significado ambíguo
e o significado determinado” (GOICOECHEA, 2010, p. 359 apud KIRCHOF, 2013, p. 139).
Nas mãos de poetas que dominem as linguagens verbais e as não verbais, a poesia
digital poderá, por certo, explorar dimensões inimagináveis para o universo da palavra
exclusivamente escrita.

MIDIATECA

Para ampliar seu conhecimento veja o material complementar da Unidade 3,


disponível na midiateca.

68
NA PRÁTICA

Ler a poesia contemporânea brasileira é uma experiência de ricos matizes. Mui-


tas são as correntes e as trajetórias individuais, que se inserem em um panora-
ma que oscila — e faz largo uso das contradições nesse ir e vir — entre tradição
e modernidade, entre retenção e aceleração temporal progressista, entre o liris-
mo subjetivista e a técnica hiper-racional.

Os novos tempos — com seus impasses sociais e culturais insolúveis, como


desenvolvimento sem inclusão social, direitos políticos sem vivência da cida-
dania — refratam-se nas problemáticas da poesia contemporânea brasileira.
Em nossa unidade, detalhamos especificidades de autores e destacamos a mi-
gração da poesia do analógico para o digital. Constatada essa transformação,
muitos caminhos práticos se abrem, quer seja do ponto de vista da criação, da
crítica ou da leitura em ambientes de escolarização. Especificamente sobre os
caminhos a serem explorados na escola, algumas dificuldades são apontadas
por Alamir Aquino Correa:

Da leitura dos capítulos sobre ensino de literatura digital, sal-


tam interessantes argumentos como: (a) a relação comba-
tiva da literatura digital com o conjunto canônico, este já a
exigir enorme esforço didático; (b) a condição ambígua des-
sa produção digital a navegar entre literatura, artes visuais
e performance; (c) a interdisciplinaridade necessária para
tratar de objeto complexo e híbrido; (d) ainda o maior espaço
para as chamadas disciplinas “normais”, com tradição de es-
pecialidade, ou seja, aquelas fundadas em estilos de época
ou no cânone de grandes autores; (e) a dificuldade do esta-
belecimento de uma experiência mais comum diante desse
objeto, por sua recursividade e multilinearidade; e (f) não há
fortuna crítica de maior porte, fragilizando a avaliação e o
ensino, a obrigar maior subjetividade e atividade por parte do
alunado, talvez um material complexo demais para vários de-
les. (CORRÊA, 2016, p. 242)

69
Por suas palavras constatamos que os desafios são muitos para que as leituras
em espaços de escolarização se tornem habituais, criando repertório e estimu-
lando a formação de comunidade de leitores. Recomenda-se, também por isso,
uma leitura muito atenta aos textos verbais e multissemióticos, considerando-
‑se seus problemas, seus impasses e suas contradições e relacionando-os à
crítica especializada, à tradição ensaística de leitura de poesia — que ainda pou-
co explorou os caminhos do universo computacional.

Nas perspectivas inventivas, críticas ou pedagógicas, os caminhos são vários.


Os nossos estudantes seguramente poderão responder de modo positivo aos
desafios dos novos tempos.

70
Resumo da Unidade 3

Foi possível observar, no estudo da Unidade 3, que a poesia vem explorando territórios
que eram impensáveis antes do Modernismo, como o encrespamento de sua relação
com a história e a sociedade; a relação complexa entre signos verbais e não verbais;
combinações multissemióticas caminhando para universos de sonoridade, texturas e co-
res; uma abertura incomensurável para o novo, inclusive para o campo de outras artes e
para os hibridismos, antes vistos como um território alheio à expansão da literatura e da
poesia. Nesse passo, analisamos as principais vertentes da poesia brasileira na contem-
poraneidade, com destaque de temas, procedimentos e indagações sobre a relação da
poesia com o universo da cultura digital, com a técnica e com outras artes. Especifica-
mente, foi possível ler a obra de escritores e criadores como Ferreira Gullar (1930-2016),
Augusto de Campos (1931), Haroldo de Campos (1929-2003) e Décio Pignatari (1927-
2012), entre outros, cujas trajetórias incorporam o espírito dos novos tempos.

CONCEITO

A poesia de Ferreira Gullar; a poesia de Augusto de Campos; a poesia de Harol-


do de Campos; a poesia de Décio Pignatari; poesia digital.

71
Referências

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74
UNIDADE 4

Literatura hoje, entre


experimentação e missão
INTRODUÇÃO

Evidentemente, há muitas portas de entrada para pensarmos a situação atual da litera-


tura em nosso país. Sabemos que, apesar de inúmeros revezes na produção nos dias de
hoje — devido a cortes nas áreas educacional e de produção cultural, impactando o fluxo
de bens culturais em nossa sociedade —, resistem nomes importantes, que cultivaram
um diálogo muito próximo com seu público, os quais contam com uma cadeia de pre-
paro e distribuição de produtos literários e artísticos e têm encontrado legitimação signi-
ficativa por meio de leitores entusiastas. Estes acompanham suas produções literárias,
observam a atuação de jornalistas culturais e da mídia em geral e, eventualmente, sabem
quais são os nomes com boa recepção na academia.

Nesta unidade que encerra nossas reflexões sobre literatura contemporânea, daremos
destaque a escritores que exemplificam uma das tensões mais marcantes em nosso
campo literário: a dissonância entre missão (ou engajamento) e experimentação. As
vozes dissonantes, por vezes, encontram-se às margens do campo literário, de modo
que sua legitimidade para produzir literatura é permanentemente posta em questão,
tensionando, com sua presença, nosso entendimento do que é (ou deve ser) o literário.
Nessa linha, destacamos o nome de Conceição Evaristo e a produção híbrida do grupo
de rap brasileiro Racionais Mc’s, ambos com forte sentido de relevância social. No entan-
to, essas mesmas vozes dissonantes podem conviver com outras que dialogam com a
experimentação, a qual é bastante presente desde, pelo menos, o Modernismo brasileiro,
como Bernardo Carvalho.

76
Assim, entre experimentação e missão, há um movimento pendular que tem — como bem
afirma Nicolau Sevcenko em seu clássico Literatura como missão (2003) — estimulado
nossas percepções e vivências literárias há mais de cem anos. Nesse contexto, vamos
conhecer as linhas gerais de importantes obras contemporâneas, oferecendo elementos
para que nosso estudante de Letras se sinta estimulado a acompanhar os debates que
ocorrem em nosso meio social.

objetivo

Nesta unidade você será capaz de:

• Analisar, com base na tensão entre experimentalismo e crítica social, a he-


terogeneidade da ficção e da poesia brasileiras produzidas na atualidade,
destacando autores e obras presentes tanto na academia como em espaços
públicos amplos.

77
Conceição Evaristo: “escrevivências”
literárias

Para iniciar esta unidade dedicada à autora Conceição Evaristo, nossa representante do
Bildungsroman afro-brasileiro [romance de formação], nas palavras de Assis Duarte (2006),
passando pela literatura cerebral e crítica de Bernardo Carvalho e chegando à arte de resis-
tência do grupo Racionais Mc’s, discutiremos a definição do que é literatura, sabendo que
essa resposta pode ser aventada no terreno da especulação. A diversidade dos aspectos
aqui retomados pretende demonstrar o quanto a heterogeneidade é a tônica das expres-
sões artístico-literárias no Brasil do hoje. Os modos de leitura alteram-se, e a relevância
de certas obras, em detrimento de outras por vezes mais óbvias, apenas comprova que é
difícil — ou mesmo impossível — enquadrar as balizas da literatura em terrenos marcados
pela imobilidade, por um sentido “estético estático”, pelo a-historicismo.

Um dos mais importantes teóricos da literatura da contemporaneidade, o francês


Antoine Compagnon aponta para uma dificuldade de compreensão categórica e para
a demarcação de uma essência do que é o literário. Quando nos deparamos com
autores como Conceição Evaristo, Bernardo Carvalho e o grupo Racionais Mc’s, bastante
diferentes entre si, fica muito evidente que sua expressão literária, por princípio e definição,
é explorar as fronteiras do cânone de diferentes maneiras, recriando formas de cultivar
um público e de participar de um difícil debate com a coletividade e a tradição estética.

Para refletir

O que é literatura? Literariedade e preconceito

Na seção Literariedade ou preconceito, do capítulo A literatura, Antoine


Compagnon afirma em seu O demônio da teoria:

Ao procurar um critério de literariedade [conceito dos formalistas russos


segundo os quais a literatura pode ser definida por procedimentos que
causem estranhamento na recepção], caímos numa aporia a que a
filosofia da linguagem nos habituou. A definição de um termo como
literatura não oferecerá mais que o conjunto das circunstâncias em que

78
os usuários de uma língua aceitam empregar esse termo. É possível
ultrapassar essa formulação de aparência circular? Um pouco, porque
os textos literários são justamente aqueles que uma sociedade utiliza,
sem remetê-los necessariamente a seu contexto de origem. Presume-
se que sua significação (sua aplicação, sua pertinência) não se reduz
ao contexto de sua enunciação inicial. É uma sociedade que, pelo uso
que faz dos textos, decide se certos textos são literários fora de seus
contextos originais. [...] Retenhamos disso tudo o seguinte: a literatura
é inevitável petição de princípio. Literatura é literatura, aquilo que as
autoridades (os professores, os editores) incluem na literatura. Seus
limites às vezes se alternam, lentamente, moderadamente [...], mas é
impossível passar de sua extensão à sua compreensão, do cânone
à essência. Não digamos, entretanto, que não progredimos, porque o
prazer da caça, como lembrava Montaigne, não é a captura, e o modelo
de leitor, como vimos, é o caçador” (COMPAGNON, 1999, p. 44-46).

A formação clássica literária de Antoine Compagnon em território francês o coloca na de-


licada posição de refletir sobre a pluralidade de vozes, expressões e gêneros híbridos na
contemporaneidade. Sabemos que não é papel da universidade insistir em uma posição
elitista e excludente, mas também defendemos que há especificidades reflexivas, criati-
vas e humanistas das quais não podemos nos furtar. A literatura é movência, é potência.
Conceição Evaristo é um grande exemplo de uma autora que conquistou um espaço em
diálogo ativo, autêntico e franco com as formas estéticas consagradas, sua própria exis-
tência, a experiência de seus antepassados, suas memórias pessoais e coletivas e seu
contexto histórico-político, deixando abertos os efeitos da sociedade excludente, violenta
e patriarcal que tolhe os destinos, a criatividade e a existência de milhares de brasileiros
que estão — por diversos motivos — à margem.

Como afirma o autor Silviano Santiago em reportagem para a revista Exame em 2019,
Conceição Evaristo “traz de volta a ideia de que o livro tem a função e a literatura, missão
a cumprir” (O QUE ESPERAR..., 2019). A obra de Conceição Evaristo encarna diversas ten-
sões que perpassam produções contemporâneas, como a difícil relação entre a tradição
literária (que se pauta pelas qualidades intrínsecas ao objeto, sua chamada “literarieda-
de”) e a escolha feita, no calor da hora, por produtores, pelas instâncias de circulação
e de legitimação (como editoras, revistas literárias e universidades) e pelo público leitor.
A escrita comunicativa e sensível de Conceição Evaristo demonstra que há uma grande
permeabilidade às experiências literariamente trabalhadas em seus contos, romances e
poemas. Certamente seu trânsito para a academia não foi livre de contrariedade e reveses:

79
E então começa um outro problema, o nosso problema como pesqui-
sadores de literatura. Ao estudar um escritor (ou uma escritora) nessa
situação — uma Conceição Evaristo no início de carreira, por exemplo,
mulher, negra, pobre, moradora da periferia de Belo Horizonte, ex-em-
pregada doméstica — precisamos transferir para sua obra nossa própria
legitimidade como estudiosos. (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 12)

As dificuldades, como pesquisadores e es-


tudiosos da literatura, para equacionarmos
a questão da legitimidade (o que inclui,
obviamente, nossa própria legitimidade
como potenciais estudiosos e pesquisado-
res de sua obra) aos poucos são vencidas,
o que constatamos pelos inúmeros tra-
balhos dedicados à autora, como artigos
científicos, teses e dissertações. Concei-
ção vem entrando no universo acadêmico
apresentando uma rica expressão literária,
que questiona e nos questiona diante de
uma sociedade marcada pela hierarquia,
pela agressividade, pela violência patriar-
cal não resolvida desde a formação escra-
vista, deixando marcas estruturais que são
vivenciadas cotidianamente por mulheres, Maria da Conceição Evaristo de Brito (Belo Horizon-
te, 29 de novembro de 1946): escritora brasileira.
homens e crianças, principalmente nas Foto: Richner Allan/Divulgação.
grandes periferias.

Nascida em 29 de novembro de 1946, mineira, Conceição Evaristo coloca no centro do


debate a condição da mulher negra em sua plenitude, com sua interioridade rica de ma-
tizes e como sujeito inserido em um mundo contraditório e hostil. Seus personagens
são, em geral, afrodescendentes que recebem um tratamento complexo, não caricatural.
Sua perspicácia na construção de personagens ricos vem da convivência com sua mãe,
Joana, mulher que criou nove filhos com dificuldades e que — tal como Carolina Maria
de Jesus — colecionava cadernos achados e os preenchia com escritos diversos, de re-
flexões a anotações diárias (OCUPAÇÃO CONCEIÇÃO EVARISTO, 2017). Imersa em rica
oralidade, Conceição estudou para ser professora primária e seguiu para o Rio de Janeiro
em 1973, onde exerceu sua profissão e fez mestrado pela Pontifícia Universidade Católi-
ca do Rio de Janeiro e doutorado pela Universidade Federal Fluminense.

80
Sua atuação literária tomou forma por sua participação, na década de 1990, na histórica
série Cadernos negros, produzida pelo grupo Quilombhoje, ligado aos movimentos so-
ciais para a promoção dos direitos dos afrodescendentes e para a divulgação de suas
produções literárias, culturais e de seus modos de vida. Desde 1978, a série é um meio
consolidado para a expressão de vivências, das experiências coletivas e da visão de mun-
do de pessoas e comunidades marcadas pela histórica exclusão

Ampliando o foco

Para conhecer mais sobre os Cadernos negros, pesquise sobre a série no site
do coletivo cultural Quilombhoje.

O conjunto de sua obra já é destacável, incluindo títulos como Ponciá Vicêncio (2003,
romance), Becos da memória (2006, romance), Poemas da recordação e outros movi-
mentos (2008), Insubmissas lágrimas de mulheres (2011, contos), Olhos d’água (2014,
contos), Histórias de leves enganos e parecenças (2016, contos) e Canção para ninar
menino grande (2018, romance). As memórias — ou seus restos — são a principal ma-
téria-prima para Conceição Evaristo. Para a autora, é no encalço de suas sombras, ou
seus vestígios, que sua escrita se erige, ou suas “escrevivências” — palavra formada por
justaposição que remete a expressões como “escrita”, “vivência” e “sobrevivência” — ar-
quitetam-se. Para a autora:

[...] a memória é também vítima do esquecimento, invento, invento. In-


ventei, confundi Ponciá Vicêncio nos becos de minha memória. E dos
becos de minha memória imaginei, criei. Aproveitei a imagem de uma
velha Rita que eu havia conhecido um dia. E, ainda desses mesmos be-
cos, posso ter tirado de lá Ana e Davenga. Quem sabe Davenga não era
primo de Negro Alírio? E, por falar em becos da memória, voltei hoje de
manhã à Rua Albita.

Outra. Dali só reconheci a terra. Sim a terra, o pó, o barranco sobre o qual
está edificado o “Mercado Cruzeiro”, no final da rua. Observei que a edifica-
ção do prédio conservou na base parte do barranco sem cimentá-lo. Pude
contemplar o solo, base da base da construção. Em um ponto qualquer da-
quele espaço, literalmente está enterrado o meu umbigo. Sem que ninguém
percebesse alisei o chão e catei alguns fragmentos. (EVARISTO, 2009)

81
A caracterização de seus personagens sempre reforça elementos de dor, abandono e
solidão. O romance de estreia, Ponciá Vicêncio, pode ser caracterizado como a escrita
das perdas pessoais e coletivas que atravessam o povo afro-brasileiro. Para Assis Duarte
(2006), é possível arriscar que o romance encarna o procedimento do brutalismo poé-
tico. Um dos temas mais fortes é a busca das identidades pessoal e coletiva, tão bem
marcada na passagem seguinte:

Ponciá Vicêncio sabia que o sobrenome dela tinha vindo desde antes do
avô de seu avô, o homem que ela havia copiado de sua memória para o
barro e que a mãe não gostava de encarar. O pai, a mãe, todos continua-
vam Vicêncio. Na assinatura dela, a reminiscência do poderio do senhor,
de um tal coronel Vicêncio. O tempo passou deixando a marca daqueles
que se fizeram donos das terras e dos homens. E Ponciá? De onde teria
surgido Ponciá? Por quê? Em que memória do tempo estaria escrito o
significado do nome dela? Ponciá Vicêncio era para ela um nome que
não tinha dono. (EVARISTO, 2003, p. 27)

Ponciá Vicêncio, neta de escravos, é filha de um homem humilhado constantemente pelo


menino branco na condição de pajem, morto precocemente. Sua família, então, passa a
se resumir a Luandi, o irmão, e a Maria, sua mãe. Decide, então, como tantos sujeitos sem
perspectiva, emigrar para a cidade grande e sustentar sua família de longe. Constitui novo
núcleo familiar com um homem violento. Após diversos abortos, uma tristeza profunda a
acomete. Só se reergue quando reencontra sua mãe e seu irmão, núcleo que lhe oferece
a possibilidade de humanização. Nesse contexto, são perspicazes as palavras de Assis
Duarte (2006) quando afirma que “[...] a narrativa configura-se como um Bildungsroman
feminino e negro ao dramatizar a busca quase intemporal da protagonista, a fim de
recuperar e reconstituir família, memória, identidade” (DUARTE, 2006, p. 306).

Os gestos de resistência, com sua linguagem que reforça um espaço marcado pela etnici-
dade e pela identidade negra, avolumam-se a ponto de marcar uma pausa à sua errância,
com fio de esperança. Não é raro recordar-se de uma filiação da autora aos nomes de Ma-
ria Firmina dos Reis e de Carolina Maria de Jesus. Oferece-se um testemunho que perdu-
ra, legado às novas gerações, para formarem-se comunidades de leitores cada vez mais
conscientes das violências e das agruras que habitam o discurso, a literatura e a vida.

82
Fronteiras e contaminações em Bernardo
Carvalho

Bernardo Carvalho, carioca nascido em


1960, é um autor contemporâneo de gran-
de visibilidade na cena pública brasileira.
Jornalista de formação e de profissão
(graduado pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro e mestre pela
Escola de Comunicações e Artes da Uni-
versidade de São Paulo, com dissertação
sobre Wim Wenders), sedimentou uma
carreira literária exitosa, reconhecida pelo
público e pela crítica literária, tanto acadê-
mica como de ampla circulação.

Porém, esses atributos não o tornam um


escritor de fácil compreensão ou assimi-
lação: contra quaisquer facilidade e previ-
sibilidade, a cada livro se reinventa e cria
Bernardo Teixeira de Carvalho (Rio de Janeiro, novos mundos, cuja organicidade só pode
1960): escritor, tradutor e jornalista brasileiro. ser confirmada a partir das balizas da ex-
Foto: Domínio público.
perimentação sempre renovada. Entre
seus livros, estão a coletânea de estreia
Aberração (1993) e os romances Onze
(1995), Os bêbados e os sonâmbulos (1996), Teatro (1998), As iniciais (1999), Medo de
Sade (2000), Nove noites (2002, ganhador do Prêmio Portugal Telecom), Mongólia (2003),
O filho da mãe (2009), Reprodução (2013) e Simpatia pelo demônio (2016). Seus cenários
são múltiplos, estranhos e, tomados em seu conjunto, fortemente globalizados. Só para
citar alguns desses espaços ao redor do globo, temos Mongólia (que lhe deu os prêmios
da Associação Paulista dos Críticos de Arte – APCA e Jabuti); as localidades de Grózni, São
Petersburgo, Moscou e Vladivostok, presentes no livro trágico O filho da mãe; e o aeroporto
entre Brasil e China, de Reprodução, também premiado com o Jabuti.

Se o lugar do estrangeiro não é alhures, ele pode se encontrar a um passo de nós. Assim,
edificam-se romances que igualmente conduzem um discurso muito sensível às questões
da representação do outro e da construção identitária. Aqui falaremos brevemente sobre um

83
de seus romances mais fundados na experiência histórica de uma grande cidade brasileira: O
sol se põe em São Paulo (2007). Ele apresenta um narrador-protagonista fundamentalmente
deslocado: nem autenticamente do Japão, nem, em verdade, do Brasil, move-se por São Pau-
lo, em bairros como a Liberdade, pelo interior da cidade e por Tóquio, carregando segredos
da participação de japoneses na Segunda Guerra Mundial. O enredo é sumarizado por Luiz
Guilherme Sakai (2011) do seguinte modo, tendo como base principal um restaurante do tra-
dicional bairro japonês de São Paulo: “Trata-se de Setsuko, que, no decorrer da narrativa, apa-
recerá com outro nome, Michiyo, e que deseja ter registrada a história dos relacionamentos
amorosos com Jokichi, seu marido e rico industrial, e com Masukichi, um ator de teatro cô-
mico japonês”. Há, portanto, um triângulo amoroso com inúmeros desdobramentos, encar-
nando as identidades múltiplas da pós-modernidade, para dialogar com Stuart Hall (1998).

Herdeiro daqueles que se exilaram de suas terras, os vestígios do exílio o definem como um
descendente errante, para falar com Stefania Chiarelli (2007), como a expressão de um ho-
mem cujo próprio discurso se trava, não se compõe coerentemente e, por fim, é indecifrável
no território que não lhe pertence e que o repele por meio de atitudes xenófobas, sentidas na
pele. Imagens infernais, medos e pesadelos sobrevêm de modo impactante ao buscar os fios
que unem seus movimentos em um mundo globalizado em confronto com sua formação
infantil claustrofóbica:

É difícil explicar, mas para mim aquilo era a própria imagem do inferno e
dos meus pesadelos de infância. A primeira coisa que me veio à cabeça
foram as horas de estrada debaixo de sol a pino que minha irmã e eu
éramos obrigados a suportar pelo menos uma vez por ano, no Ano-Novo,
até Bastos, para visitar os tios. Desde pequeno, guardei a imagem de um
Japão de brincadeira, como um parque infantil, ao mesmo tempo pobre
e irreal, um mundo de canteiros caiados construído por anões no interior
de São Paulo. E por maior que fosse o bom gosto e a discrição daquele
jardim nos fundos de um sobrado falso no Paraíso, só conseguia me
lembrar da miniatura do monte Fuji, de cimento, na entrada do museu
da imigração japonesa em Bastos. Era uma sensação de horror, de não
caber neste mundo e de já não ter os meios, nem materiais nem imagi-
nários, de escapar a ele. (CARVALHO, 2007, p. 27-8)

Em sua viagem ao Japão, o protagonista — tão familiarizado com uma São Paulo igual-
mente problemática — vivencia um turbilhão de sentimentos. Seus passos e seu modo de
estar no mundo denunciam sua condição estrangeira. Aquele poderia ser um momento
de intenso lirismo, mas suas origens lhe escampam, sua identidade — talvez nunca edi-

84
ficada — fissura-se. A convulsão vivida pela narração desdobrada entre narrador anôni-
mo, Setsuko e Michiyo, não se recompõe. As identidades fissuradas tornam-se, então, a
sustentação de uma existência precária, que é incorporada pelo texto e pelo contexto da
narrativa, o que leva Sakai (2011) a apontar o sentido do “ritual antropofágico” que Silviano
Santiago identifica nas narrativas contemporâneas latino-americanas (SANTIAGO, 2000).

O ímpeto inventivo de Bernardo Carvalho, mordaz e muitas vezes carregado de tintas pes-
simistas, não o separa do mundo que o cerca. Sua prosa concisa apresenta personagens
estranhos, bizarros, fracassados, cujas trajetórias são plenas de sentido no interior de
fronteiras estéticas muito claras. Fora dali, a estranheza oferece a tônica.

Segundo Daniel Augusto, do alicerce discursivo cuidadosamente concebido à sua disso-


lução, Bernardo Carvalho cria uma obra inovadora, pensada a partir de uma organização
formal muito clara:

O que é uma visada de alcance notável: parcela considerável dos bons


romances hoje, e da arte em geral, é feita de obras que dão sentido ao
mundo ao mesmo tempo que o dissolvem. É dessa experiência de tota-
lidade efêmera que os livros de Bernardo Carvalho tiram sua força e dão
seu arranjo particular: o que é sempre um corretivo eficaz em tempos de
literatura e realidade armadas pela paranoia. (AUGUSTO, 2004)

A falta de sentido, os delírios pessoal e coletivo, a solidão e a crise são aspectos que re-
tornam na escrita de Bernardo de Carvalho, sempre posta nas fronteiras tênues entre o
pessoal e o coletivo, a subjetividade e a objetividade, a ficção e a representação, a relação
entre a linguagem e a realidade representada pela narrativa. Nessa oscilação, poucos são
os gestos de amor e amizade; sobram os gestos de violência e barbárie, que — a despeito
da disforia que reverberam — recordam a importância de resistir em tempos de exceção,
pessimismo e quebra do sentido de existir, dos laços afetivos e das tênues redes que li-
gam uma coletividade em âmbitos local e global.

85
Vozes periféricas, vozes impuras: mal-estar
da sociedade no Racionais Mc’s

Racionais Mc’s: grupo brasileiro de rap. Foto: Divulgação.

O fechamento de nossa disciplina enfocará as relações entre poesia e música no Racionais


Mc’s, grupo formado em 1988 por Paulo Eduardo Salvador (Ice Blue) e Pedro Paulo Soares
Pereira (Mano Brown), da Zona Sul de São Paulo, com Edivaldo Pereira Alves (Edi Rock) e
Kleber Geraldo Luis (DJ KL Jay), da Zona Norte. O grupo, extensamente premiado, ganhou
maior visibilidade quando foi anunciado, em 2018, que seu álbum Sobrevivendo no Inferno
(1997) seria leitura obrigatória para o vestibular da Unicamp. A essa altura, a trajetória do
grupo — cujo primeiro álbum foi Raio X Brasil, de 1993 — já estava consolidada.

A discussão do valor literário, então, vem à tona quando comentamos sobre a produção
musical do grupo:

86
1 Quais são as conexões entre música e literatura?

2 Como estudá-las?

Quais caminhos percorrer para tirar das experiências híbridas de leitura o máxi-
3
mo grau de complexidade significativa?

Quais são as instâncias de legitimação que reforçam não só o valor acadêmico


4 do Racionais Mc’s, mas também sua potencialidade estética e suas relevâncias
política e ética para os debates na contemporaneidade?

Muitas perguntas podem ser feitas para que possamos pensar a centralidade do Racio-
nais Mc’s na passagem para o novo milênio. Os critérios de valoração são colocados,
nesse sentido, em perspectiva para que se possam agregar conceitos como expressão
subjetiva, história social, racismo estrutural, realidade periférica, desigualdade social, so-
ciabilidade de grupos marginalizados etc. Esses temas têm sido paulatinamente aborda-
dos em sala de aula para além dos contextos midiáticos em que já circulavam.

Nesse sentido, podemos aproveitar esse conjunto de questões para:

[...] refletir sobre nossos critérios de valoração, entender de onde eles


vêm, por que se mantêm de pé, a que e a quem servem... Afinal, o signifi-
cado do texto literário — bem como da própria crítica que a ele fazemos
— se estabelece num fluxo em que tradições são seguidas, quebradas
ou reconquistadas e as formas de interpretação e apropriação do que
se fala permanecem em aberto. Ignorar essa abertura é reforçar o papel
da literatura como mecanismo de distinção e da hierarquização social,
deixando de lado suas potencialidades como discurso desestabilizador
e contraditório. (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 16-17)

Discursos contraditórios, complexos, desestabilizadores e certamente contra-hegemôni-


cos marcam as temáticas que circulam nas letras de rap. Dialogam, portanto, com uma
longa tradição da crítica literária que procura ver, nas relações entre texto e contexto, forma
e sociedade, as perspectivas de resistência em que sujeitos e meios sociais se engajam
para buscar novos valores estéticos, éticos e uma maior justiça social (ALVARENGA, 2019).
São exemplares, nessa perspectiva já consolidada pelo cânone crítico, os textos O direito
à literatura, de Antonio Candido (1995), e Literatura e resistência, de Alfredo Bosi (1996).

87
Ampliando o foco

Racionais MC’s na academia: entrada em seu tempo ou tardia?

No ano de 2019, abordando, entre outros assuntos, a entrada do álbum Sobre-


vivendo no Inferno no vestibular da Unicamp, houve um debate no Instituto de
Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo – IEB-USP sobre a obra do
Racionais Mc’s. A reportagem de Bianca Muniz fez um apanhado das principais
discussões ocorridas no evento:

Quando se trata do rap dentro da universidade, os pesquisadores pos-


suem visões diferentes. ‘Para algumas formações culturais, o rap é
uma unidade distante da universidade’, relata Guto. Ele, que é um pes-
quisador do Sul e branco, comenta que Racionais foi reconhecido pela
academia muito recentemente. ‘É interessante perceber que ainda se
tem uma resistência muito grande em tratar Racionais como poesia,
como gênero literário. Mas devemos pensar que a resistência no Sul
é muito maior. Eles eram tratados como objeto de estudo em outros
lugares do Brasil, mas, no Sul, a resistência era forte’. Gabriela, que faz
parte do movimento negro, ressalta que a entrada do disco Sobrevi-
vendo no Inferno na lista de leituras obrigatórias da Unicamp não foi
surpresa para a comunidade acadêmica que estuda artistas negros.
‘É óbvia essa escolha. Óbvia, extremamente necessária, mas tardia’.

Apesar das falas dos outros pesquisadores, Guilherme discorda, dizendo


que a academia não descobriu o rap recentemente e que há produções
de pesquisa sobre o gênero desde os anos 90. ‘Foi a academia branca
[que] descobriu agora que pode e tem que entender o rap’. Mas, para ele,
o aumento de visibilidade para esses trabalhos ocorreu recentemente,
como resultado do aumento do acesso à universidade pelos negros, por
meio de ações afirmativas. Nesse sentido, a partir das reivindicações
de estudantes negros, a academia (predominantemente formada por
pesquisadores brancos) passou a discutir essas obras” (MUNIZ, 2019).

Antonio Candido vê um sentido humanizador que tangencia as expressões literárias, ar-


tísticas e culturais dos homens vivendo em diferentes meios sociais. A capacidade de fa-
bulação indica, nesse sentido, um modo único, singular de organizar o caos da existência
subjetiva e da experiência histórico-social. Segundo ele, a literatura abrange “[...] todas as
criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade,

88
em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, até as formas mais
complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações” (CANDIDO, 1995, p.
174). O autor não aventa qualquer possibilidade de haver povos sem expressão literária:
“[...] a literatura aparece claramente como manifestação universal de todos os homens
em todos os tempos” (CANDIDO, 1995, p. 174).

Podem-se questionar os pressupostos de Antonio Candido por serem hierarquizadores


desde a concepção inicial (afinal de contas, ele afirma uma complexidade variável); po-
rém, não deixam de ser uma porta de entrada para a sensibilização a um debate que,
infelizmente, ainda tende ao elitismo, deixando de fora grandes obras que não seguem
as formas literárias reconhecidas pelo cânone. Para Candido, todos têm o direito à litera-
tura como potenciais leitores e produtores — o que é evidentemente um chamado para
a vivência democrática do saber estético-literário e dos elementos culturais produzidos
pelos seres humanos em diferentes épocas e espaços. Vista desse modo dilatado e de-
mocrático, a produção cultural da periferia deve, sim, adentrar o âmbito dos estudos lite-
rários e culturais, inclusive porque é capaz de denunciar, viver dialeticamente os proble-
mas, responder de modo criativo ao mal-estar que cerca nossa civilização. Leia, a seguir,
um trecho de letra Fim de semana no parque, do Racionais Mc’s:

[...] Eles não têm videogames


Às vezes nem televisão
Mas todos eles contam com São Cosme e São Damião
A única proteção
No último Natal
Papel Noel escondeu um brinquedo prateado
Brilhava no meio do mato
Um menininho de dez anos achou um presente
Era ferro com doze balas no pente
E o fim de ano foi melhor pra muita gente
[...]
Olha só aquele clube que da hora.
Olha aquela quadra, olha aquele campo, olha
Olha quanta gente, tem sorveteria, cinema, piscina quente
[...]
Tem corrida de kart, dá pra ver. É igualzinho ao que eu vi ontem na TV
Olha só aquele clube que da hora,
Olha o pretinho vendo tudo do lado de fora
Nem se lembra do dinheiro que tem que levar pro seu pai [...]

(RACIONAIS MC’S, 1993)

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É nítido como o rap tem forte vínculo com a oralidade. Elementos da cultura popular se
entrelaçam em um discurso multifacetado, que vê diversos ângulos da urbe, em sua qua-
se totalidade, hostil. A expressão “olha só” tem um forte elemento dêitico, mostrando —
como “in loco”, performaticamente — aquilo que ali está, a riqueza e a ostentação, perto e
longe, ao alcance da vista e distante da experiência pessoal marcada pela carência e pela
escassez. O contexto histórico-social é denunciado pela inversão de valores (a violência
suga mesmo as datas festivas, o imaginário infantil) e pela ausência de potencial cons-
trução de novos valores civilizatórios pelo ambiente escolar — aquela criança, de tanto
olhar “tudo do lado de fora / nem se lembra do dinheiro que tem que levar pro seu pai”. É
uma criança que perambula pelas ruas, que começa a frequentar um “círculo vicioso” que
pode a transformar em “rejeitada”, “humilhada”, “marginal”, “discriminada”. Como resistir
— para usar as palavras de Bosi (1996) — em um mundo tão fechado, tão marcado pela
aporia, sem lógica, sem saída, senão pela luta política e pela poética? Política e poética
entrelaçam-se, de modo que qualquer perspectiva crítica necessariamente imanente ao
texto demonstrará seu poder de resistência, tanto ética como estética (para detalhes,
ALVARENGA, 2019). Os álbuns subsequentes do grupo continuaram a explorar temáticas
correlatas, ora denunciando a exclusão, ora com uma perspectiva ambígua diante do
desejo consumista, ou mesmo denunciando a violência policial. Várias são as nuanças
de álbuns como Nada como um dia após o outro dia (2002) e Cores & valores (2014) e
outras produções em videoclipes e singles.

Para encerrar, retomamos as palavras da escritora e psicanalista Maria Rita Kehl, que
aponta na voz “ameaçadora do rap” um discurso que passa pelo “lugar comunitário dos
manos”, aconselhando, orientando, oferecendo exemplos para um amplo conjunto de
sujeitos sem pai, em busca de sociabilidades alternativas às tradicionais, concretizando
aquilo que a autora chamará de “fratria órfã” da periferia. Mas a necessidade de reconhe-
cimento e de referência formativa não recai apenas no pai; com a ausência deste, passa
a recair entre os irmãos, normalmente chamados por apelidos, como uma espécie de
grande família. A autora, encaminhando-se para a finalização de seu ensaio Radicais,
raciais, racionais: a grande fratria do rap, afirma:

Que a autoestima e a dignidade dos rapazes negros da periferia não de-


pendam da aceitação por parte da elite branca, não significa que não pro-
duzam outros laços, outras formas de comunicação, inclusive com grupos
mais ou menos marginais a esta própria elite. Neste caso, a identificação
que começou pela cor da pele ampliou-se para abrigar outros sentidos:
exclusão, indignação, repúdio à violência e às injustiças, etc. Não somos
“todos” pretos pobres da periferia, mas somos muitos mais do que eles
supunham quando começaram a falar. (KEHL, 1999, p. 102-3)

90
Lançamos perguntas de difícil equacionamento, entretanto convidamos o leitor (nosso
estudante de graduação em Letras) a aproveitar o fechamento de nossa disciplina para
se abrir às novas formas de literatura, arte e cultura em circulação. É necessário reforçar
o potencial de resistência que a arte tradicionalmente nos coloca; resistindo, seguiremos
nossa trajetória de leitura, questionamento, reflexão, sensibilização e humanização. Que
a escola também seja um espaço de liberdade e de conquista da cidadania literária no
novo milênio!

MIDIATECA

Para ampliar seu conhecimento veja o material complementar da Unidade 4,


disponível na midiateca.

NA PRÁTICA

Poderíamos fazer inúmeros recortes, estimular o pensamento em diferentes


caminhos. Nesta unidade de encerramento da disciplina, pareceu-nos relevante
destacar que há uma produção literária impactante, academicamente aceita e
de ressonância em um público considerável que pode ser levada às escolas
básicas para a promoção da educação literária.

O diálogo com os estudantes certamente será mais produtivo se promover a


imersão em perspectivas que sejam vivenciadas por eles e por suas comunida-
des cotidianamente, ou seja, fatores como a experimentação artístico-literária
e a relevância social continuam firmes e influentes, podendo ser apresentados
aos estudantes. Fica-se, então, o sentido da literatura como objetos complexos,
híbridos e que participam de suas comunidades ativamente. São obras que
dificilmente se encaixariam em um modelo historiográfico-literário, fundado
na periodização da literatura, ou em um modelo de concepção pedagógico-li-
terária calcada nas escolhas e nas práticas docentes (SANTOS, 2017).

91
Podem-se, assim, enfocar essas obras segundo modelos concebidos de edu-
cação literária centrados nas escolhas e nos gostos dos estudantes, valorizan-
do seus saberes, suas vivências, sua experimentação e sua fruição estética.

Nesse sentido, a escola pode, na prática, buscar caminhos não institucionaliza-


dos, que fogem ao cânone já estabelecido, sem desmerecer a literatura canô-
nica, que também pode ser “apropriada” criativamente por seus leitores. À per-
gunta de Maria Lajolo “Será que é errado dizer que literatura é aquilo que cada
um de nós considera literatura?” (LAJOLO, 1982, p. 10 apud SANTOS, 2017, p.
278), o professor Oton Magno Santana dos Santos responde em sua tese:

Eu e os estudantes que participaram desta investigação concordamos


que não, pois a literatura marginalizada que lemos, em algum momen-
to das nossas vidas, foi a única possível, nem sempre no sentido físico,
mas principalmente no que diz respeito à dificuldade de apropriação.
Inclusive na própria escola parece haver um proposital distanciamento
entre a literatura que goza do status de cânone e o público discente.
Portanto, reivindico a cidadania literária a todas as literaturas que, de
algum modo, nos ajudam a escrever a nossa história de leitores e de
cidadãos. (SANTOS, 2017, p. 278-9)

Que essa cidadania literária seja cotidianamente construída, oferecendo-se


suporte, referências estéticas, conceitos e visões de mundo que permitam ao
aluno conhecer e fruir o objeto literário-estético contemporâneo em toda a sua
complexidade.

92
Resumo da Unidade 4

A Unidade 4 da disciplina Literatura Brasileira e Contemporaneidade enfocou a obra de


Conceição Evaristo, Bernardo Carvalho e do grupo de rap Racionais Mc’s, destacando
suas principais problemáticas, tensões e contradições. Desse modo, pretende-se ofere-
cer ao nosso leitor universitário condições para repensar a educação literária nas escolas
a partir do enfoque de obras contemporâneas, cuja legitimidade muitas vezes é cons-
truída a partir da dinâmica entre experimentação e missão ou, ainda, entre invenção e
engajamento.

CONCEITO

Tensões literárias; literatura como missão; literatura e experimentação; Concei-


ção Evaristo; Bernardo Carvalho; Racionais Mc’s.

93
Referências

ALVARENGA, T. A. de. O rap como resistência estética e ética: protagonismos periféricos


da poesia dos Racionais Mc’s em um projeto de letramento literário para o Ensino Médio.
Orientadora: Silvana Moreli Vicente Dias. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em
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