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E CONTEMPORANEIDADE
LITERATURA BRASILEIRA
E CONTEMPORANEIDADE
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meio sem a prévia autorização desta instituição.
Revisão Diagramação
Lydianna Lima UVA
Janaina Senna
Theo Cavalcanti
SUMÁRIO
Apresentação 6
Autor 8
Unidade 1
Unidade 2
Unidade 3
Unidade 4
Entre os autores que serão abordados em nosso curso, figuram: Nelson Rodrigues (1912-
-1980), Zélia Gattai (1916-2008), Dalton Trevisan (1925), Décio Pignatari (1927-2012), Ha-
roldo de Campos (1929-2003), Ferreira Gullar (1930-2016), Augusto de Campos (1931),
João Antônio (1937-1996), Conceição Evaristo (1946), Caio Fernando Abreu (1948-1996),
Cristovão Tezza (1952), Bernardo Carvalho (1960) e o grupo de rap Racionais Mc’s. Nos-
so objetivo é contribuir para uma formação ampla de nossos estudantes, de modo que
possam compreender a literatura dentro de um conjunto heterogêneo de autores, obras
e gêneros literários.
6
em contextos de trocas simbólicas desenvolvidas na sociedade de informação e comu-
nicação. Daremos atenção, inclusive, às transformações da dinâmica da leitura no Brasil
e no mundo de hoje, de modo a se conhecerem e se estudarem as textualidades produzi-
das em mídias digitais. Ao discorrer sobre essas questões, pretendemos preparar nossos
estudantes para um ambiente educacional dinâmico, em que, cada vez mais, estarão
presentes as novas tecnologias, a relação entre a literatura, outras artes e outros saberes,
bem como os trânsitos interdisciplinares.
7
AUTOR
8
e na contemporaneidade; crônica, memorialismo e ensaio; poesia brasileira; curadoria de
exposições; linguística aplicada; humanidades digitais; e relações entre o Modernismo
brasileiro e a literatura anglo-americana. Tem experiência docente nos níveis fundamen-
tal, médio e superior. Desde o primeiro semestre de 2017 é professora na Universidade
Veiga de Almeida – UVA (RJ) nas modalidades presencial e a distância, orientando diver-
sos trabalhos de Iniciação Científica (PIC-UVA) e Trabalhos de Conclusão de Curso, bem
como participando da elaboração de materiais didáticos diversos. Faz parte do Núcleo
Docente Estruturante – NDE do curso de Letras EAD. Foi selecionada e aprovada, após
participar de curso de formação no segundo semestre de 2018, para integrar o sistema
BASis MEC-INEP do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Tei-
xeira (avaliação de cursos presenciais e a distância).
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UNIDADE 1
Abordaremos diferentes gêneros literários no espaço dessas reflexões, tais como tea-
tro, crônica, conto, miniconto e ensaio, ressaltando como a heterogeneidade é marca do
período. Espera-se, assim, contribuir para que o estudante consolide-se como um leitor
crítico, capaz de reconhecer os vínculos entre reflexão epistemológica e análise crítica
na abordagem de conteúdos de Literatura Brasileira, sem descuidar de aspectos como a
historicidade e a dinâmica do texto literário e sua circulação em nosso país.
objetivo
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Nelson Rodrigues: especificidades da tragédia
brasileira
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seus romances, ficaram particularmente conhecidas obras como Meu destino é pecar
(1944), Núpcias de fogo (1948) e Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus pecados e
seus amores (1959). O leitor pode, ainda, contar com as seguintes edições de contos: A
vida como ela é: O homem fiel e outros contos (1992) e A dama da lotação e outros
contos e crônicas (1992). Por sua vez, as edições de crônicas são vastas e misturam
observação e memórias. Desse gênero literário marcado pela hibridez, temos: O óbvio
ululante: primeiras confissões (1968), O reacionário: memórias e confissões (1977) e
À sombra das chuteiras imortais – Crônicas de futebol (1992).
Ampliando o foco
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Para compreender a conhecida expressão “complexo de vira-latas”, hoje comum em
diversas esferas sociais, inclusive acadêmica, deve-se remontar à Copa do Mundo de
1950. Apesar de sua reconhecida superioridade, o Brasil foi derrotado, àquela ocasião,
pelo Uruguai, por 2 x 1, em pleno Maracanã, no dia 16 de julho. Anos depois, às vésperas
da estreia do Brasil na Copa de 1958, precisamente no dia 31 de maio de 1958, Nelson
publicaria, na revista Manchete, a crônica que seria intitulada Complexo de vira-latas. Seu
ágil e perspicaz texto é finalizado do seguinte modo:
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Convidado para editar suas peças teatrais em uma única edição, Sábato Malgadi assim
as dividiu: peças psicológicas, peças míticas e tragédias cariocas. Como peças psico-
lógicas, figuram A mulher sem pecado (1941, com direção de Rodolfo Mayer); Vestido
de noiva (1943, direção de Zbigniew Ziembinski); Valsa n.6 (1951, com Milton Rodrigues);
Viúva, porém honesta (1957, com Willy Keller); e Anti-Nelson Rodrigues (1974, direção
de Paulo César Pereio).
Fazem parte das peças míticas os seguintes textos: Álbum de família (1946, dirigida por
Kleber Santos); Anjo Negro (1947, dirigido por Zbigniew Ziembinski); Senhora dos afo-
gados (1947, com direção de Bibi Ferreira); e Doroteia (1949, com Zbigniew Ziembinski).
Por fim temos, no rol das tragédias cariocas: A falecida (1953, com direção de José Maria
Monteiro); Perdoa-me por me traíres (1957, com Léo Júsi); Os sete gatinhos (1958, com Willy
Keller); Boca de Ouro (1959, dirigida por José Renato); O beijo no asfalto (1960, com direção
de Gianni Rato); Bonitinha, mas ordinária (1962, com Martim Gonçalves); Toda nudez será
castigada (1965, com Zbigniew Ziembinski) e A serpente (1978, com Marcos Flaksman).
Escritor prolífico, Nelson Rodrigues alcançou fama logo após sua estreia. Sua segunda
peça, Vestido de noiva, revolucionou a linguagem do teatro no Brasil, até o momento
fundamentalmente tradicional, convencional e distante das pesquisas e das conquistas
estéticas ocorridas desde o primeiro Modernismo. A peça foi concebida para transcorrer
em três distintos planos, que se intercalam no palco: a realidade, a alucinação e a memó-
ria. Para o autor, embora houvesse possibilidade de ser bem-sucedida do ponto de vista
intelectual, esperava-se criar incômodo na plateia, chateá-la, agredi-la.
A peça inicia-se com o atropelamento de Alaíde, mulher de 25 anos, casada com o industrial
Pedro Moreira. Aos poucos, conforme o andamento das cenas nas quais ganham força os
planos da alucinação e da memória, percebe-se que ali está um personagem problemático,
ambicioso, ousado, delirante. Entretanto, na mesa de hospital, à beira da morte, totalmente
entregue ao acaso, mostra-se sem força para controlar seu destino. Com sua deturpada
autoimagem, suas tendências bovaristas ficam claras quando percebemos que transfere
para Madame Clessi (personagem do plano da alucinação, morta por um adolescente no
início do século) seus sentimentos de grandeza. Segundo Sábato Malgadi:
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tesã foi só um passo. Acidentada, na alucinação, Alaíde vai à busca, em
primeiro lugar, da mundana. Percorre caminhos imaginários, até final-
mente encontrá-la. Os diálogos atingem alguns dos mais belos momen-
tos da mitologia personalíssima do dramaturgo. (MALGADI, 1993, p. 19)
São muitas as questões que Nelson Rodrigues levanta, até mesmo apontando para as
bases de processo modernizador carregado de tensões e contradições, como sugere
Adriana Facina:
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contribuição com a escrita dinâmica e autoral de Nelson. Hoje, ele é considerado por
muitos o maior dramaturgo brasileiro de todos os tempos e uma das vozes de maior
atuação, sobretudo na segunda metade do século XX, de modo que apreciar seu legado
é fundamental para quem deseja conhecer um pouco mais sobre os movimentos literá-
rios e artísticos brasileiros da era contemporânea.
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Dalton Trevisan: inventários urbanos
Seu estilo seco, direto, elíptico, econômico, repetitivo, sem qualquer complacência
diante da miséria humana, foi notado por seus primeiros leitores críticos desde o iní-
cio de sua trajetória.
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O autor oficialmente fez sua estreia literária com o livro Novelas nada exemplares, em
1959. Antes, porém, realizou uma incursão que deixou marca no periodismo moder-
no do país, com a provocadora e irreverente revista Joaquim (1946-1948), ao lado de
Erasmo Pilotto e Antônio P. Walger. Pode-se dizer que esse foi seu espaço formativo,
em que exerceu a produção literária e a crítica combativa, em diálogo intenso com
as conquistas modernistas que, àquela altura, estavam em processo de franca sedi-
mentação. Ao longo de sua publicação, apresentou desenhos de Poty Lazzarotto e
colaborações de intelectuais e escritores como Antonio Candido, Carlos Drummond
de Andrade, José Paulo Paes, Mário de Andrade, Otto Maria Carpeaux, Sérgio Milliet,
Wilson Martins, entre outros. A revista apresentava uma proposta de modernização
alternativa que aprofundava as conquistas do Modernismo das décadas de 1920 e
1930, articulando vozes altissonantes que, ao se opor ao Modernismo Paranista de
tendência local e provinciana no sentido restritivo (tendo como referência o conven-
cional Emiliano Perneta), procuravam romper com a tradição simbolista e positivista
então hegemônica desde fins do século XIX.
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Para notarmos como o autor trabalha os elementos relacionados à sua cidade, vamos
dar um enfoque ao conto Minha cidade, publicado inicialmente no número 6 da revista
Joaquim e depois republicado, com alterações substanciais, em outras edições, como
no livro Mistérios de Curitiba (1968) e em Em busca da Curitiba perdida (1992). O texto
é construído com base em tensões claras entre literariedade e literalidade, experiência
pessoal e coletiva. Parte-se, então, de aspectos da província para compor uma obra
literária em que o espaço seriado surge como palco para a encenação de narrativas
curtas. Observem-se as diferenças entre ambas as edições nos trechos abaixo, com
supressões, acréscimos e reescritas substanciais:
Curitiba, que não tem pinheiros, esta Curitiba eu canto. Curitiba, em que
o céu não é azul, esta Curitiba eu canto. Não a Curitiba para o turista ver,
esta Curitiba eu canto [...]. (TREVISAN, 1946, p. 18)
Curitiba, que não tem pinheiros, esta Curitiba eu viajo. Curitiba, onde o
céu azul não é azul, Curitiba que viajo. Não a Curitiba para inglês ver,
Curitiba me viaja [...]. (TREVISAN, 2000, p. 7)
Com a distância no tempo, ao resgate lírico da cidade, que parece mais forte na primeira
versão, acrescenta-se um olhar narrativo “desempenhando um papel de descobridor,
de pesquisador empírico das manifestações do real” (SANCHES NETO, 1998). Também
se aprofundam discursos de resistência, como a recusa do Modernismo de fachada,
de linhas retas, considerado arrojado para os padrões brasileiros pós-modernos, mas
não autêntico. Nesse sentido, Trevisan segue firme em um discurso afinado com o jul-
gamento que expoentes do Modernismo fazem com relação às suas trajetórias, com
aproximação e distanciamento críticos com relação a certos aspectos da vanguarda.
Eis um homem que tende a deixar-se conduzir livremente em meio às multidões des-
personalizadas, aprofundando o sentido histórico de sua experiência pessoal e coletiva.
A partir de 1974, com O pássaro de cinco asas, o escritor radicaliza mais ainda a redu-
ção da linguagem, com emprego da frase fragmentada, elíptica, enxuta, com períodos
coordenados e orações paratáticas. Segundo Berta Waldman:
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Na trilha de Berta Waldman, a linguagem de Trevisan reduplica os estereótipos sociais,
de modo que, na passagem do histórico ao ficcional, ficam evidentes as representações
da violência e da alienação em que homens e mulheres estão inseridos. Essas histórias
— com a crueldade das relações humanas, o grotesco de facetas pouco modernas e o
cotidiano violento — são ainda constantemente revistas e reescritas, de modo que há
também um movimento paródico (um modo de vampirização típico do autor) dos dis-
cursos que enfocam Curitiba e alcançam o universal, em um movimento dialético entre
estreitamento local e ubiquidade que só ocorre em grandes obras.
Para finalizar, Arnaldo Franco Junior faz uma leitura da obra literária de Dalton Trevisan
aproximando-a com a fotografia, flagrando na escrita uma espécie de obra aberta, sem-
pre receptiva a novas experimentações, criando-se um cânone que atenderia ao padrão
seriado. Segundo o crítico, encontra-se na obra de Trevisan:
Essa leitura converge para o sentido fortemente realista da obra do autor, que dá aber-
tura para a fixação de inúmeros personagens marginais — doentes mentais, assassinos,
ladrões, cafajestes, mulheres e crianças violentadas, cafetinas etc.—, o espaço da livre-
circulação da barbárie, sem qualquer moderação e sentimento de culpa. São imagens
de degradação e de desagregação, sem um centro de convergência e equilíbrio. Desse
espaço de uma Curitiba captada por lentes ora afetivas, ora repulsivas, nascem as fa-
cetas várias de um rico inventário urbano, literariamente trabalhado por meio da escrita
límpida e impactante de Dalton Trevisan.
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Peripécias malandras na escrita de João
Antônio
João Antônio, escritor e jornalista, foi um dos nomes mais destacados de sua geração.
Suas aproximações com a imprensa marcaram-no desde o início de sua produção.
Nascido em 1937, começa o curso de jornalismo na Faculdade Cásper Líbero em 1958,
abandonado poucos anos depois, em um período em que suas ocupações eram muito
precárias.
Sua obra mais conhecida, o livro de contos Malagueta, Perus e Bacanaço, de 1963,
lançou-o cedo ao centro da produção cultural brasileira. No entanto, sua gênese teve
muitos obstáculos. Conta-se que um incêndio tomou conta da casa de sua família,
onde residia. De lá, saíram apenas com a roupa do corpo. Os escritos de João Antônio,
como os manuscritos de Malagueta, Perus e Bacanaço, queimaram-se. Para rees-
crever o livro, ele teria se fechado na Biblioteca Municipal Mário de Andrade por longo
período, tendo como recurso apenas sua memória.
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da edição que acabou não saindo. O texto foi divulgado posteriormente no número 19
da revista Remate de Males, dedicada inteiramente ao escritor. O penúltimo parágrafo do
ensaio é eloquente:
Antonio Candido aponta que a força da escrita de João Antônio está no modo como
parece misturar-se com a realidade que retrata. Porém, não é mero relato espontâneo,
que brota de modo quase instintivo. O escritor teria encontrado um modo particular de
expressar-se literariamente. As cidades e seus vícios oferecem uma ambientação disfó-
rica para os malandros, que acabam fracassando.
O resultado de sua primeira incursão como escritor foi fora do comum. Ganhou inúmeros
prêmios e teve rápida ascensão profissional. Passou a trabalhar no Jornal do Brasil e,
posteriormente, transitou por veículos da imprensa como a revista Realidade, o jornal O
Pasquim, a revista Manchete, entre outros. O ritmo voltado para atender às necessidades
da grande imprensa muda inteiramente quando o autor decide aplicar-se apenas à produ-
ção literária em fins da década de 1960. De fato, após esse afastamento da redação, volta
a dedicar-se à literatura com afinco, e uma série de livros seus passa a circular nas pra-
teleiras das grandes livrarias, com periodicidade, tais como: Leão-de-chácara, de 1975;
Malhação do Judas carioca, de 1975; Casa de Loucos, de 1976; Lambões de Caçarolas
(Trabalhadores do Brasil), de 1977; Calvário e Porres do Pingente Afonso Henriques
de Lima Barreto, de 1977; Ô Copacabana!, de 1978; Dedo-duro, de 1982; Meninão do
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caixote, de 1984; Abraçado ao meu rancor, de 1986; Zicartola e que tudo mais vá pro
inferno!, de 1991; Guardador, de 1992; Um herói sem paradeiro, de 1993; Patuleia, de
1999; Sete vezes rua, de 1996; e Dama do Encantado, de 1996.
Dentre seus vários títulos destacaria aqui o livro Abraçado ao meu rancor, que recebeu o
prefácio de Alfredo Bosi, intitulado Um boêmio entre duas cidades. O crítico apontou uma
“ânsia deambulatória” na escrita de João Antônio, de modo que a composição literária
comporta as oscilações e os antagonismos entre ordem e desordem, positivo e negativo
de uma sociedade contraditória e profundamente desigual. Entregues à própria sorte, es-
ses personagens vivem uma espécie de jogo irracional, que ilumina sua impotência e sua
humanidade contraditória. Ao mesmo tempo, aprofundam-se as relações entre matéria
narrada e sujeito, que transparecem por meio das escolhas narrativas realizadas no livro
Abraçado ao meu rancor, como se nota a seguir:
Aos poucos, cada vez mais a máscara autoral compartilha muitas das características
dos personagens das narrativas em terceira pessoa, os quais, em geral, estão sempre
à margem. A narrativa de Abraçado ao meu rancor é estruturada em primeira pessoa.
E, de fato, como parece transparecer no trecho acima, João Antônio aos poucos pare-
ce ter se despojado de bens materiais, vivendo uma vida simples, com pouco trânsito
em espaços públicos, preferindo distanciar-se de sentidos que o aproximassem das
convenções burguesas.
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— mesmo quando em primeira pessoa — continua muito ligada às vivências do cotidiano,
inspirando humanidade, empatia, revolta diante da luta diária pela sobrevivência. Autor e
personagem aproximam-se por suas trajetórias de exclusão e de resistência às conse-
quências nefastas da marginalidade.
Para quem deseja conhecer aspectos da produção de João Antônio vale a pena conferir
o número 19 da revista Remate de males, publicada pelo Departamento de Teoria Lite-
rária da Unicamp, a qual apresenta importantes contribuições críticas, com ensaios de
Antonio Candido (anteriormente mencionado), Vilma Arêas, Fábio Lucas, Flávio Aguiar e
Antonio Arnoni Prado (cf. REMATE DE MALES, 1999). Há muitas vertentes a serem explo-
radas a partir da leitura crítica da obra do escritor.
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A boa acolhida do escritor, ao longo dos tempos, tem se mantido, inclusive após sua
morte, ocorrida em 1996. Nesse contexto, para Bruno Zeni:
Esse modo de narrar equilibrado e próximo à vida cotidiana manterá um público muito
atento às novidades de autoria de João Antônio. Mais ainda, o sistema que se forma ao
redor de sua pessoa vai tornar ainda mais complexa a relação do autor com a crítica e
o público. O resultado disso é que o escritor continua a fascinar leitores e a instigar a
crítica especializada. Assim, não há como compreender os principais lances da Litera-
tura Brasileira Contemporânea se ignorarmos a centralidade de sua prática literária e
de seu pensamento.
MIDIATECA
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NA PRÁTICA
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Resumo da Unidade 1
CONCEITO
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Referências
ANTÔNIO, J. Abraçado ao meu rancor. In: ANTÔNIO, J. Abraçado ao meu rancor. São
Paulo: Cosac & Naify, 2001, p. 67-126.
BOSI, A. Situação e formas do conto brasileiro contemporâneo. In: BOSI, A. O conto bra-
sileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix; Edusp, 1975.
BOSI, A. Um boêmio entre duas cidades. In: ANTÔNIO, J. Abraço ao meu rancor. Rio de
Janeiro: Guanabara, 1986.
CANDIDO, A. Na noite enxovalhada. Remate de males, Campinas, n. 19, 1999. Disponível em: ht-
tps://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/issue/view/366. Acesso em: 18 fev. 2020.
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KLINGER, D. I. Escritas de si, escritas do outro: autoficção e etnografia na narrativa la-
tino-americana contemporânea. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) – Instituto
de Letras da Uerj, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2006. Disponível em: http://
www.bdtd.uerj.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=124. Acesso em: 19 fev. 2019.
MALGADI, S. A peça que a vida prega. In: RODRIGUES, N. A sombra das chuteiras imor-
tais. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 11-131.
MORAES, V. de. A construção do escritor. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 30, n. 62,
p. 681-700, set.-dez. 2017.
30
REMATE DE MALES. Campinas, n. 19, 1999. Disponível em: https://periodicos.sbu.uni-
camp.br/ojs/index.php/remate/issue/view/366. Acesso em: 18 fev. 2020.
RODRIGUES, N. A sombra das chuteiras imortais. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SILVA, T. M. João Antônio: Arquivo literário como fonte de memória. Revista de Literatu-
ra, História e Memória, v. 4, n. 4, p. 151-162, 2008. Disponível em: http://e-revista.unioes-
te.br/index.php/rlhm/article/view/1210/997. Acesso em: 20 fev. 2020.
TREVISAN, D. Minha cidade. Revista Joaquim, Curitiba, n. 6, p. 18, nov. 1946. Edição
facsimilar.
ZENI, B. G. Fachada, sinuca e afasia: Alcântara Machado, João Antônio e Fernando Bo-
nassi. São Paulo: Serviço de Comunicação Social, FFLCH-USP, 2008.
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UNIDADE 2
Nesta unidade procuramos enfocar gêneros já reconhecidos pela tradição moderna que
voltam com força na contemporaneidade. Ao lado dos gêneros híbridos acima men-
cionados, juntam-se alguns gêneros autobiográficos, por assim dizer, canônicos, como
autobiografias, biografias, cartas, diários, memórias, crônicas etc. Esses — que outrora
tinham uma presença mais periférica — passam a receber uma atenção destacável, em
um campo antes dominado por gêneros considerados mais nobres no contexto da lite-
ratura produzida até, pelo menos, meados do século XX, como romance, novela, conto,
poesia e teatro.
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É nesse contexto de misturas, experimentações e vontade de imergir no cotidiano, na
vida comezinha, sem distanciá-las dos grandes movimentos históricos, que entram as
obras de autores brasileiros como Zélia Gattai (1916-2008), Caio Fernando Abreu (1948-
-1996) e Cristovão Tezza (1952). Vamos discorrer um pouco sobre suas produções e de-
senvolver alguns exercícios analíticos procurando demonstrar sua força crítica e reflexiva
no âmbito da literatura brasileira produzida nas últimas décadas.
objetivo
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O memorialismo e as trajetórias brasileiras
em Zélia Gattai
Um dos fios condutores de sua obra literária são as memórias pessoais e familiares,
que se entrelaçam com ficção e história. A identificação de Zélia Gattai com a militân-
cia anarquista — como o próprio título de sua primeira obra já sugere — remonta tanto
à convivência com ela na vida privada como à sua circulação, sobretudo de seus pais,
nessa São Paulo em rápida mudança. O Movimento Operário Anarquista, muito atuante
nas primeiras décadas do século XX, deixou marcas nas trajetórias desses personagens
que vibram em suas memórias de estreia. Em especial entre 1917 e 1920, o Movimento
Operário Anarquista se fortaleceu e encontrou coesão ideológica e organização, tendo
alcançado importantes conquistas, em especial na Greve de 1917, apesar da grande re-
pressão por parte do governo paulista.
Zélia Gattai, caçula de cinco irmãos, com pai prestador de serviços, acompanhou esses
fluxos em tenra idade, tendo escrito as memórias dos deslocamentos familiares como
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suas próprias memórias. O lastro entre as gerações é sugerido, por exemplo, pela estru-
tura dialogada de sua obra, dando voz a personagens silenciados pela morte. Vejamos
como a verossimilhança do relato é reforçada pelas escolhas da escritora Zélia Gattai,
que maneja bem a escrita ágil e permeada de recursos de forte comunicabilidade. Leia-
‑se, por exemplo, um trecho do livro Cittá di Roma (2002):
As histórias que titio contava eram quase todas minhas conhecidas, ou-
vidas nos serões lá de casa, na versão de meus pais, mas, vez ou outra,
cabia-me um detalhe novo, por exemplo, o da bandeira brasileira, que só
tio Guerrando lembrava.
[A VIAGEM]
A travessia de Gênova para o porto de Santos foi longa e penosa, contava
tio Guerrando. “Não posso esquecer. Amontoados e tristes como gado a
caminho do matadouro, os imigrantes enjoavam nos porões escuros e
quentes, ao lado das caldeiras do navio, um verdadeiro inferno. A gente
ia aguentando sem reclamar. Todo mundo tinha um medo insuportável
de ficar doente e acabar morrendo em alto-mar.
“Vocês sabiam, não é?”, explicava titio, “nos navios daquela época não ha-
via frigorífico para conservar os cadáveres, e os corpos de quem morresse
durante a travessia eram jogados no mar”. (GATTAI, 2002, p. 13-14)
Para refletir
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filosófica, social e política. Não há dúvidas de que, no palco da vida ou
da folha de papel, o corpo do autor continua e está exposto narcisisti-
camente, mas as questões que levanta não se esgotam na mera auto-
contemplação do umbigo, como quer uma crítica neoconservadora da
produção cultural do Brasil. Sobretudo nos melhores casos. A narrativa
autobiográfica é o elemento que catalisa uma série de questões teóricas
gerais que só podem ser colocadas corretamente por intermédio dela.
A peça de teatro não foi um meio eficaz que Sartre encontrou para expli-
car pontos teóricos da sua filosofia? (SANTIAGO, 1989, p. 31)
Foi, porém, com Anarquistas, graças a Deus que a autora não só se firmou como uma
voz literária no Brasil de finais do século XX, como também renovou o gênero “memó-
rias”, o qual, em nossa tradição, sempre esteve presente — como exemplo, pode-se
conferir a belíssima trajetória literária de Pedro Nava —, mas não como face de uma
linha hegemônica.
A ensaísta Maria Luiza Tucci Carneiro inicia uma conhecida palestra sobre Zélia Gattai fa-
lando sobre o impacto de Anarquistas, graças a Deus em nosso sistema literário. Obser-
ve-se como a ensaísta estabelece como fios condutores de sua leitura a representação
de São Paulo e a utopia vivida por homens comuns, em busca de dias melhores e justiça
social. A sombra desses discursos retorna com força em finais do século XX, quando se
pensava que já estivessem superadas as percepções do anarquismo e do comunismo
como crime. Zélia Gattai, então, é um sopro de memória, “vida que explode”, responsável
por tecer uma estória complexa em que história, enredo e memória se entrecruzam em
delicada teia discursiva:
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tantos outros anônimos que, malditos por suas ideias, foram conside-
rados “perigosos à ordem pública e à Segurança Nacional”. (CARNEIRO,
2002, p. 1)
A relação entre memória e história fica patente desde a estreia de Zélia. Questões como
paradoxos entre ética e estética, verdade e ficção, texto e contexto encontram em Zélia
uma zona em que a escrita literária é capaz de romper localismos puros, sectarismos
ou pendor narcisista exagerado. Mais ainda, Zélia — com voz sempre em “tom menor”
— mostra-se sensível à miséria social brasileira que a cerca, o que se coaduna com a
preocupação social de uma anarquista que compartilha, com seus familiares mortos, o
sonho de um mundo melhor e mais justo, para além do Oceano Atlântico.
38
Caio Fernando Abreu: narrativa entre
evocação e resistência
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Para refletir
Enfocaremos, aqui, o livro Morangos mofados, de 1982, escrito em plena abertura eco-
nômica. Os 18 contos do livro são distribuídos nas seguintes partes: O mofo, Os moran-
gos e Morangos mofados. A dedicatória do livro é emblemática da família estética e cul-
tural com a qual o escritor quer ver-se ligado: John Lennon, Elis Regina, Henrique do Valle,
Rômulo Coutinho e de Azevedo e todos os amigos mortos; Caetano Veloso, Maria Clara
Jorge e Sônia Maria Barbosa, bem como seus amigos vivos. Clarice Lispector e Osman
Lins oferecem as epígrafes do livro.
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homeopáticas; e dos “morangos mofados”, quando é aventada pelo movimento dialético
uma solução, ainda que opaca. Os contos apresentam uma mistura de registros, com
lirismo e pendor narrativo; coloquialidade e formalidade; melancolia e leveza; fortes rela-
ções entre indivíduo, história e sociedade.
Vemos, assim, que o Diálogo é vazio na medida em que, apesar de um diálogo con-
vencional, da estrutura teatral, não há significação atuante, mas, sim, uma opacidade
constitutiva. O que resta é o vazio da experiência, o ruído, a incerteza. De fato, para a
intelectualidade, é um momento de grande angústia, fortemente marcado pelas dúvidas
com relação aos passos tomados pela redemocratização, em pleno governo de João
41
Figueiredo. Porém, abordar esse momento certamente não é algo simples, como bem
enfatiza Jaime Ginzburg ao falar do conto Os companheiros, de Morangos mofados:
As dúvidas vão pairar no ar, formando uma densa suspensão de desconfianças que não
se decantarão.
O livro de contos Morangos mofados é o quarto livro de Caio Fernando Abreu, que tam-
bém publicou outras coletâneas nesse gênero: Inventário do irremediável (1970), O ovo
apunhalado (1975), Pedras de Calcutá (1977), Os Dragões não conhecem o Paraíso
(1988) e Ovelhas Negras (1995). Também é autor de romances como Limite Branco
(1971) e Onde andará Dulce Veiga? (1990), além de peças de teatro, traduções e en-
saios diversos. Tornando mais complexa a relação do autor com a tradição e com as
formas que então circulavam no mundo à época de sua produção literária, importa dizer
que, segundo Nelson Luís Barbosa (2008), Caio Fernando Abreu não só trabalhou com
aspectos da memória e da autobiografia, mas também aprofundou suas experimenta-
ções estéticas ao tocar a autoficção — gênero literário eminentemente contemporâneo
trabalhado pelos teóricos franceses Serge Doubrovsky e Vincent Colonna, com base na
identificação entre autor, narrador e personagem — em diversas passagens, o que se
pode observar por meio do confronto de seus romances, contos e crônicas com sua cor-
respondência epistolar. Desse modo, há um amplo universo a ser explorado em leituras
críticas mais detidas de sua obra.
Após passagem pela França no início da década de 1990, a Convite da Casa dos Es-
critores, é diagnosticado portador de HIV, em um momento em que não há tratamento
possível. Passa seus últimos meses de vida ao lado de seus pais, cuidando de seu jardim.
Morre em Porto Alegre em 1996.
42
Cristovão Tezza: máscaras ficcionais entre
vida e arte
Observemos como Cristovão Tezza elabora uma narrativa ágil, sensível, com aspectos
dialógicos muito evidentes, de grande potencial comunicativo:
43
As expectativas sobre a chegada esperada do filho misturam-se com as posturas e os
pensamentos ambíguos diante do mundo. Aos poucos, revelando-se seus desafios, con-
fessa a mesquinhez de certas atitudes e perspectivas, como se tivesse desejado sempre
para si algo muito grande, porque especialmente preparado, resiliente, imbatível em suas
qualidades. Porém, coleciona fracassos. É com esses fracassos que precisa lidar, tendo
de fazer escolhas diante de uma jornada hostil e cheia de negativas. Como afirma Jus-
celino Pernambuco:
44
— Três a zero, só. Que tal? — Tudo bem. Mas vai ser duro. Você está pre-
parado?
— Estou! Eu sou forte! — Ele ergue o braço, punho fechado: — Nós vamos
conseguir!
— Vamos ver se a gente ganha.
O menino faz que sim, e completa, braço erguido, risada solta:
— Eles vão ver o que é bom pra tosse!
É uma das primeiras metáforas de sua vida, copiada de seu pai, e o pai ri
também. Mas, para que a imagem não reste arbitrária demais, o menino
dá três tossidinhas marotas. Bandeira rubro-negra devidamente desfral-
dada na janela, guerreiros de brincadeira, vão enfim para a frente da tele-
visão — o jogo começa mais uma vez. Nenhum dos dois tem a mínima
ideia de como vai acabar, e isso é muito bom. (TEZZA, 2007)
A narrativa encerra-se assim: “Nenhum dos dois tem a mínima ideia de como vai acabar,
e isso é muito bom”. É a vida comum, homens comuns, comprometidos com valores
universais, de beleza e empatia na vida cotidiana. Observe-se, assim, como a opção pela
terceira pessoa é certeira ao avançar o gênero autoficcional para o terreno desconhecido,
de modo que a liberdade estética conduz, igualmente, ao terreno do não controlado, da
surpresa, ainda que saiba aonde se chegará — sabemos, àquela altura da publicação do
livro, que Cristovão Tezza não é um escritor desconhecido, nem inexperiente, nem mes-
mo profissionalmente fracassado.
Para refletir
45
uma prática que, de fato, já existia. Quanto à sua sucessão, a pala-
vra se encontra hoje dicionarizada na França (dicionários Larousse e
Robert) e cada vez mais se propaga além das fronteiras desse país
para definir práticas de autoescrita, como se constata atualmente en-
tre nós. E essa disseminação é operada em três esferas: os escritores
que se apropriam do termo para definir suas próprias obras; mundo
acadêmico, no qual a investigação sobre essa categoria conceitual
toma corpo em eventos e comunicações, em teses, dissertações e
artigos; a mídia especializada, que mobiliza o termo em entrevistas e
resenhas. Além disso, a etiqueta “autoficção” não se restringe mais ao
campo da literatura, estendendo-se às outras artes. [...] De fato, tanto
a fortuna crítica da autoficção, quanto sua apropriação pelos autores
para designar suas obras deixam antes a impressão de um debate ver-
tiginoso, à maneira de Pirandello. (NORONHA, 2014, p. 7-8)
Aprendemos, ao final, que a leitura pode, ainda sim, conduzir-nos para um terreno novo
e inexplorado, em que os jogos de máscaras, comprometidos com o autêntico da expe-
riência, podem nos guiar para um encontro singular com as vidas escritas.
46
MIDIATECA
NA PRÁTICA
Leonor Arfuch (2002) concebe o termo “espaço biográfico” para pensar sobre
novos gêneros discursivos que avançam na contemporaneidade, acompanhan-
do o desenvolvimento das “novas tecnologias da presença”. Mas também há
um avanço indiscutível de gêneros autobiográficos reconhecidos pela tradição
moderna, como autobiografia, memórias, diários, cartas, crônicas etc.
47
Resumo da Unidade 2
CONCEITO
48
Referências
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martinsfontespaulista.com.br/anexos/produtos/capitulos/249095.pdf. Acesso em: 10
mar. 2020.
51
UNIDADE 3
Assim, algo que parece comum a diversas tendências é a constante indagação sobre
seus limites, o que afirma a condição de autorreflexão e crise da linguagem, da sintaxe,
do sentido. O movimento entre crise e expansão é bem abordado por Celia Pedrosa em
seu artigo Poesia e crítica de poesia hoje: heterogeneidade, crise, expansão (PEDRO-
SA, 2015).
Ao lado dessa experiência com linguagem verbal, a poesia contemporânea também in-
corpora elaborações promissoras como construção formal, semântica, sensorial etc.,
com sua migração para os meios digitais e computacionais. Imagem, ritmo, texturas,
sonoridades e movimentos passam a ser ressignificados ao se transportar do universo
analógico para o digital.
Todos esses elementos serão discutidos ao longo desta unidade. Esperamos que os
conteúdos aqui tratados despertem em você, estudante, a vontade de conduzir novas
pesquisas e de conhecer a poesia desenvolvida nos dias de hoje no Brasil.
53
objetivo
54
Ferreira Gullar: deslocamentos do poema
sujo
Nascido no Maranhão, cedo mudou-se para o Rio de Janeiro, onde consolidou sua car-
reira literária. Participou do movimento da poesia concreta, assim como da exposição
concretista de 1956 — que será estudada no próximo tópico da disciplina —, mas poucos
anos depois, por divergências várias, afastou-se do movimento.
Com os artistas plásticos Lygia Clark (1920-1988) e Hélio Oiticica (1937-1980), fundou o
movimento neoconcreto, distanciando-se definitivamente dos pressupostos da poesia
concreta, criticada por ele por seu excesso de tecnicismo, de formalismo e de herme-
tismo, entre outros argumentos. Reforçaram, então, que a arte não é somente forma ou
objeto desprovido de conteúdo e de emoção: expressividade e subjetividade encontram
espaço por meio das produções neoconcretas que se apoiam na sensibilidade e na pers-
pectiva humanizadora da arte.
55
problemas sociais brasileiros e com os impasses do momento histórico. Nesse período,
publicou o cordel João Boa-morte, cabra marcado pra morrer (1962). Sua obra já se
aproximava do chão brasileiro, e, por tal motivo, passou a ser perseguido pela ditadura
então vigente — inclusive, foi militante do Partido Comunista Brasileiro.
Para refletir
56
Gullar, que incorpora a condição de “exilado”. Para tanto, reforça a imagem de “morada”.
Segundo a autora, o exílio pode ser compreendido por meio de diversas facetas:
Aqui, sonoridade e ritmo embalam um sujeito em busca de preservar sua autonomia cria-
tiva, ciente das ameaças, pronto para lutar pelo fio de vida que lhe resta, com a profun-
didade que esse compromisso lhe incita. Nesse sentido, conforme Paiva (2017) sugere,
o autor constrói uma morada pela linguagem. Leiam-se algumas das estrofes do longo
Poema sujo para se notarem essas e outras questões:
57
mas que importa um nome
debaixo deste teto de telhas encardidas vigas à mostra entre
cadeiras e mesa entre uma cristaleira e um armário diante de
garfos e facas e pratos de louças que se quebraram já
58
pulsando há 45 anos
esse coração oculto
pulsando no meio da noite, da neve, da chuva
debaixo da capa, do paletó, da camisa
debaixo da pele, da carne,
O prefácio à edição do Poema sujo recentemente publicado pela Companhia das Letras,
de autoria de Antonio Cicero, traz apreciações de outros autores sobre o mais conhecido
poema de Gullar, como esta de Otto Maria Carpeaux: “[...] mereceria ser chamado ‘Poema
nacional’, porque encarna todas as experiências, vitórias, derrotas e esperanças do homem
brasileiro. É o Brasil mesmo, em versos ‘sujos’ e, portanto, sinceros” (CARPEAUX apud
CICERO, 2016, e-book). O autor sabe que há um hiato irresolúvel entre vida e escrita — e é
nesse hiato que o sujeito se inscreve de modo a fazer com que, para falar como Viviana
Bosi (2017), seu passado perdido e reconquistado se torne sua identidade. Segundo Bosi:
59
Poesia concreta ontem e hoje: a aventura
da palavra
No Brasil, na década de 1940, é o poeta João Cabral de Melo Neto (1920-1999), autor
de O Engenheiro (1945), que inicialmente firmou as premissas de uma linguagem
calculada como escopo principal do fazer literário. Na década de 1950, essas questões
foram postas como centrais no debate artístico nacional pelas mãos de poetas como
Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari. O trio editou a histórica
revista Noigandres em 1952, marcando época (as edições posteriores da revista
também agregaram Ronaldo Azeredo e José Lino Grünewald, circulando até 1962). Para
o estudioso do assunto Omar Khour, o grupo Noigandres forçou, inclusive, uma visada
60
diferente daquilo que então se compreendia como tradição modernista, de modo que
suas reverberações foram além da ruptura inicial, mais aguerrida:
É interessante notar o frutífero diálogo entre diversas artes nesse período. Literatura, es-
cultura, pintura, arquitetura, música etc. buscam territórios de produção e de reflexão que
sejam mutuamente estimulantes. Inclusive, o discurso crítico que acompanha essas pro-
duções torna-se praticamente indispensável. Desses grupos, nascem teóricos e críticos
que alcançam posição-chave na cena cultural brasileira, como Haroldo de Campos, que
também possui vasta produção como tradutor (em vertente que se poderia chamar de
tradução-transcriação) e teórico da literatura.
61
Importante
Uma das faces mais prolíficas do movimento concretista tem a ver com a refle-
xão sobre a poesia, a literatura e a arte deixada pelos autores. Nesse contexto,
Haroldo de Campos ocupa uma posição ímpar como teórico e crítico, como
bem sugere Lino Machado, na passagem a seguir:
Vimos, portanto, que Haroldo de Campos ocupa posição central como tradutor, pensa-
dor, teórico da literatura e crítico de literatura e de arte. Seu legado múltiplo pode ser
conferido por meio de títulos memoráveis, como as obras poéticas Galáxias (1984) e
Crisantempo (1998), ao lado de importantes livros de crítica literária, como Morfologia
do Macunaíma (1973), A arte no horizonte do provável (1972) e Transcriação (2015,
organização de Marcelo Tápia e Thelma Médici Nóbrega).
Por sua vez, Décio Pignatari, escritor multifacetado, tradutor e professor, autor de Poe-
sia pois é poesia (1977), dedicou-se a inúmeros gêneros literários — poesia, contos,
romance, memórias, teatro, crônicas, além do ensaísmo e de estudos de cunho teó-
rico-metodológico voltados para a área de Comunicação e Semiótica. Sua ênfase é
claramente voltada para a comunicação poética centrada na potência do signo visual,
como vemos a seguir:
62
Beba coca-cola, de 1957. Autoria de Décio Pignatari.
Disponível em: http://s3-sa-east-1.amazonaws.com/des-
complica-blog/wp-content/uploads/2015/10/beba_coca_
cola.jpg. Acesso em: 3 abr. 2020.
Palavra e visualidade são faces inseparáveis não só para Décio Pignatari, mas também
para os expoentes do grupo, que não deixam as premissas de seu principal legado. Nesse
passo, Augusto de Campos — considerado por muitos o grande poeta do grupo — conti-
nua a instigar as gerações sucessivas, mesmo porque não se furta do enfrentamento dos
principais impasses da poesia nos novos tempos. Por exemplo, em Pós-tudo, poema de
1984, em momento político brasileiro crucial no contexto da abertura democrática, per-
gunta-se (e pergunta-nos), em primeira pessoa: “depois de tudo, restaria (subjetividade,
alteridade mundo) mudo?”. Leia-se, a seguir, outra obra-prima do movimento concretista:
63
Pós-tudo (1984). Autoria de Augusto de Campos.
Disponível em: https://image.slidesharecdn.com/concre-
tismo-120828180322-phpapp02/95/concretismo-16-728.
jpg?cb=1346178062. Acesso em: 2 abr. 2020.
64
Literatura, arte, multimídia e NTIC: linguagens
em potência
Ampliando o foco
65
de 1955, como palestrante convidado na Escola Técnica de Stuttgart,
onde Bense atuava. Sua palestra foi capaz de empolgar uma série de
estudantes de diferentes áreas, dentre os quais ‘alguns jovens mate-
máticos e técnicos em eletrônica (Rul Gunzenhäuser, Sigfried Maser)
sentiram-se especialmente estimulados a realizar certos trabalhos a
partir da forte dependência da estética com relação à matemática [...],
abordada por Bense em seus ensaios e palestras’ (WALTHER, 2012, p.
39).” (KIRCHOF, 2013, p. 129-130).
No campo da literatura infantojuvenil, uma experiência criativa foi publicada pela Edito-
ra Global pelos escritores-artistas Ana Cláudia Gruszynski — responsável pelo projeto
gráfico e pela capa — e Sérgio Capparelli — escritor que desconstrói o verso tradicional
em busca de uma comunicação imediata, de tipo icônica, com seu público. Algumas
dessas produções podem ser visitadas no site: http://www.ciberpoesia.com.br/. Os au-
tores estimulam, inclusive, a interação e a criação a partir da experiência multimidiáti-
ca. O livro Poesia visual (2000) recebeu o selo Altamente Recomendável pela FNLIJ
2001 (Fundação Nacional do Livro Infantojuvenil) (CAPPARELLI; GRUSZYNKSI, 2001).
Para encerrar, um artista multimidiático reputado como dos principais no Brasil é André
Vallias. Formado em Direito, designer gráfico e criador multimidiático de profissão, o es-
critor e designer fez suas primeiras incursões pela poesia visual em 1985. Influenciado
por Vilém Flusser, trabalhou com importantes nomes da poesia multimidiática. Autor
de poemas complexos, matemáticos e com impactante leitura social, como Oratório
(2003) e Totem (2014, finalista do Prêmio Oceanos de Literatura), André Vallias é um
artista que lança mão da convergência de som, cores, formas, palavras e movimento,
como vemos a seguir, pelas imagens fixadas para nossa leitura:
66
Página digital do poema Oratório, de André
Vallias. Disponível em: https://andrevallias.
com/oratorio/. Acesso em: 4 abr. 2020.
é omnipresente
o simulacro
oco e alvo
que a urbe
estatui: christus
redemptor
hominis
no pináculo
da tentação
? ou
67
o astro
que segura
a rosa diminuta
na proa da nau
desgovernada? (VALLIAS, 2003)
Aliás, o texto pode ser lido em múltiplas direções. Como afirma Rocha (2016), como um
oratório, a poesia dá visibilidade às diversas facetas da cidade que seduz (cidade do
samba, da paisagem deslumbrante, do monumento) e que repele (com suas violência e
hostilidade). Está aqui um exemplo de que é necessário conhecer a tradição do verbo,
as imagens conectadas a espaços distópicos, os movimentos populares que dão con-
sistência ao viver cotidiano carioca. A literatura eletrônica é capaz, então, de congregar
e potencializar o universo de sentidos, pela tensão, pela contradição, pela atenção re-
dobrada que lhe será exigida.
MIDIATECA
68
NA PRÁTICA
69
Por suas palavras constatamos que os desafios são muitos para que as leituras
em espaços de escolarização se tornem habituais, criando repertório e estimu-
lando a formação de comunidade de leitores. Recomenda-se, também por isso,
uma leitura muito atenta aos textos verbais e multissemióticos, considerando-
‑se seus problemas, seus impasses e suas contradições e relacionando-os à
crítica especializada, à tradição ensaística de leitura de poesia — que ainda pou-
co explorou os caminhos do universo computacional.
70
Resumo da Unidade 3
Foi possível observar, no estudo da Unidade 3, que a poesia vem explorando territórios
que eram impensáveis antes do Modernismo, como o encrespamento de sua relação
com a história e a sociedade; a relação complexa entre signos verbais e não verbais;
combinações multissemióticas caminhando para universos de sonoridade, texturas e co-
res; uma abertura incomensurável para o novo, inclusive para o campo de outras artes e
para os hibridismos, antes vistos como um território alheio à expansão da literatura e da
poesia. Nesse passo, analisamos as principais vertentes da poesia brasileira na contem-
poraneidade, com destaque de temas, procedimentos e indagações sobre a relação da
poesia com o universo da cultura digital, com a técnica e com outras artes. Especifica-
mente, foi possível ler a obra de escritores e criadores como Ferreira Gullar (1930-2016),
Augusto de Campos (1931), Haroldo de Campos (1929-2003) e Décio Pignatari (1927-
2012), entre outros, cujas trajetórias incorporam o espírito dos novos tempos.
CONCEITO
71
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a teoria da literatura e das mídias: concretismo, cibercultura e intermidialidade. Canoas:
ULBRA, 2012, p. 37-40.
74
UNIDADE 4
Nesta unidade que encerra nossas reflexões sobre literatura contemporânea, daremos
destaque a escritores que exemplificam uma das tensões mais marcantes em nosso
campo literário: a dissonância entre missão (ou engajamento) e experimentação. As
vozes dissonantes, por vezes, encontram-se às margens do campo literário, de modo
que sua legitimidade para produzir literatura é permanentemente posta em questão,
tensionando, com sua presença, nosso entendimento do que é (ou deve ser) o literário.
Nessa linha, destacamos o nome de Conceição Evaristo e a produção híbrida do grupo
de rap brasileiro Racionais Mc’s, ambos com forte sentido de relevância social. No entan-
to, essas mesmas vozes dissonantes podem conviver com outras que dialogam com a
experimentação, a qual é bastante presente desde, pelo menos, o Modernismo brasileiro,
como Bernardo Carvalho.
76
Assim, entre experimentação e missão, há um movimento pendular que tem — como bem
afirma Nicolau Sevcenko em seu clássico Literatura como missão (2003) — estimulado
nossas percepções e vivências literárias há mais de cem anos. Nesse contexto, vamos
conhecer as linhas gerais de importantes obras contemporâneas, oferecendo elementos
para que nosso estudante de Letras se sinta estimulado a acompanhar os debates que
ocorrem em nosso meio social.
objetivo
77
Conceição Evaristo: “escrevivências”
literárias
Para iniciar esta unidade dedicada à autora Conceição Evaristo, nossa representante do
Bildungsroman afro-brasileiro [romance de formação], nas palavras de Assis Duarte (2006),
passando pela literatura cerebral e crítica de Bernardo Carvalho e chegando à arte de resis-
tência do grupo Racionais Mc’s, discutiremos a definição do que é literatura, sabendo que
essa resposta pode ser aventada no terreno da especulação. A diversidade dos aspectos
aqui retomados pretende demonstrar o quanto a heterogeneidade é a tônica das expres-
sões artístico-literárias no Brasil do hoje. Os modos de leitura alteram-se, e a relevância
de certas obras, em detrimento de outras por vezes mais óbvias, apenas comprova que é
difícil — ou mesmo impossível — enquadrar as balizas da literatura em terrenos marcados
pela imobilidade, por um sentido “estético estático”, pelo a-historicismo.
Para refletir
78
os usuários de uma língua aceitam empregar esse termo. É possível
ultrapassar essa formulação de aparência circular? Um pouco, porque
os textos literários são justamente aqueles que uma sociedade utiliza,
sem remetê-los necessariamente a seu contexto de origem. Presume-
se que sua significação (sua aplicação, sua pertinência) não se reduz
ao contexto de sua enunciação inicial. É uma sociedade que, pelo uso
que faz dos textos, decide se certos textos são literários fora de seus
contextos originais. [...] Retenhamos disso tudo o seguinte: a literatura
é inevitável petição de princípio. Literatura é literatura, aquilo que as
autoridades (os professores, os editores) incluem na literatura. Seus
limites às vezes se alternam, lentamente, moderadamente [...], mas é
impossível passar de sua extensão à sua compreensão, do cânone
à essência. Não digamos, entretanto, que não progredimos, porque o
prazer da caça, como lembrava Montaigne, não é a captura, e o modelo
de leitor, como vimos, é o caçador” (COMPAGNON, 1999, p. 44-46).
Como afirma o autor Silviano Santiago em reportagem para a revista Exame em 2019,
Conceição Evaristo “traz de volta a ideia de que o livro tem a função e a literatura, missão
a cumprir” (O QUE ESPERAR..., 2019). A obra de Conceição Evaristo encarna diversas ten-
sões que perpassam produções contemporâneas, como a difícil relação entre a tradição
literária (que se pauta pelas qualidades intrínsecas ao objeto, sua chamada “literarieda-
de”) e a escolha feita, no calor da hora, por produtores, pelas instâncias de circulação
e de legitimação (como editoras, revistas literárias e universidades) e pelo público leitor.
A escrita comunicativa e sensível de Conceição Evaristo demonstra que há uma grande
permeabilidade às experiências literariamente trabalhadas em seus contos, romances e
poemas. Certamente seu trânsito para a academia não foi livre de contrariedade e reveses:
79
E então começa um outro problema, o nosso problema como pesqui-
sadores de literatura. Ao estudar um escritor (ou uma escritora) nessa
situação — uma Conceição Evaristo no início de carreira, por exemplo,
mulher, negra, pobre, moradora da periferia de Belo Horizonte, ex-em-
pregada doméstica — precisamos transferir para sua obra nossa própria
legitimidade como estudiosos. (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 12)
80
Sua atuação literária tomou forma por sua participação, na década de 1990, na histórica
série Cadernos negros, produzida pelo grupo Quilombhoje, ligado aos movimentos so-
ciais para a promoção dos direitos dos afrodescendentes e para a divulgação de suas
produções literárias, culturais e de seus modos de vida. Desde 1978, a série é um meio
consolidado para a expressão de vivências, das experiências coletivas e da visão de mun-
do de pessoas e comunidades marcadas pela histórica exclusão
Ampliando o foco
Para conhecer mais sobre os Cadernos negros, pesquise sobre a série no site
do coletivo cultural Quilombhoje.
O conjunto de sua obra já é destacável, incluindo títulos como Ponciá Vicêncio (2003,
romance), Becos da memória (2006, romance), Poemas da recordação e outros movi-
mentos (2008), Insubmissas lágrimas de mulheres (2011, contos), Olhos d’água (2014,
contos), Histórias de leves enganos e parecenças (2016, contos) e Canção para ninar
menino grande (2018, romance). As memórias — ou seus restos — são a principal ma-
téria-prima para Conceição Evaristo. Para a autora, é no encalço de suas sombras, ou
seus vestígios, que sua escrita se erige, ou suas “escrevivências” — palavra formada por
justaposição que remete a expressões como “escrita”, “vivência” e “sobrevivência” — ar-
quitetam-se. Para a autora:
Outra. Dali só reconheci a terra. Sim a terra, o pó, o barranco sobre o qual
está edificado o “Mercado Cruzeiro”, no final da rua. Observei que a edifica-
ção do prédio conservou na base parte do barranco sem cimentá-lo. Pude
contemplar o solo, base da base da construção. Em um ponto qualquer da-
quele espaço, literalmente está enterrado o meu umbigo. Sem que ninguém
percebesse alisei o chão e catei alguns fragmentos. (EVARISTO, 2009)
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A caracterização de seus personagens sempre reforça elementos de dor, abandono e
solidão. O romance de estreia, Ponciá Vicêncio, pode ser caracterizado como a escrita
das perdas pessoais e coletivas que atravessam o povo afro-brasileiro. Para Assis Duarte
(2006), é possível arriscar que o romance encarna o procedimento do brutalismo poé-
tico. Um dos temas mais fortes é a busca das identidades pessoal e coletiva, tão bem
marcada na passagem seguinte:
Ponciá Vicêncio sabia que o sobrenome dela tinha vindo desde antes do
avô de seu avô, o homem que ela havia copiado de sua memória para o
barro e que a mãe não gostava de encarar. O pai, a mãe, todos continua-
vam Vicêncio. Na assinatura dela, a reminiscência do poderio do senhor,
de um tal coronel Vicêncio. O tempo passou deixando a marca daqueles
que se fizeram donos das terras e dos homens. E Ponciá? De onde teria
surgido Ponciá? Por quê? Em que memória do tempo estaria escrito o
significado do nome dela? Ponciá Vicêncio era para ela um nome que
não tinha dono. (EVARISTO, 2003, p. 27)
Os gestos de resistência, com sua linguagem que reforça um espaço marcado pela etnici-
dade e pela identidade negra, avolumam-se a ponto de marcar uma pausa à sua errância,
com fio de esperança. Não é raro recordar-se de uma filiação da autora aos nomes de Ma-
ria Firmina dos Reis e de Carolina Maria de Jesus. Oferece-se um testemunho que perdu-
ra, legado às novas gerações, para formarem-se comunidades de leitores cada vez mais
conscientes das violências e das agruras que habitam o discurso, a literatura e a vida.
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Fronteiras e contaminações em Bernardo
Carvalho
Se o lugar do estrangeiro não é alhures, ele pode se encontrar a um passo de nós. Assim,
edificam-se romances que igualmente conduzem um discurso muito sensível às questões
da representação do outro e da construção identitária. Aqui falaremos brevemente sobre um
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de seus romances mais fundados na experiência histórica de uma grande cidade brasileira: O
sol se põe em São Paulo (2007). Ele apresenta um narrador-protagonista fundamentalmente
deslocado: nem autenticamente do Japão, nem, em verdade, do Brasil, move-se por São Pau-
lo, em bairros como a Liberdade, pelo interior da cidade e por Tóquio, carregando segredos
da participação de japoneses na Segunda Guerra Mundial. O enredo é sumarizado por Luiz
Guilherme Sakai (2011) do seguinte modo, tendo como base principal um restaurante do tra-
dicional bairro japonês de São Paulo: “Trata-se de Setsuko, que, no decorrer da narrativa, apa-
recerá com outro nome, Michiyo, e que deseja ter registrada a história dos relacionamentos
amorosos com Jokichi, seu marido e rico industrial, e com Masukichi, um ator de teatro cô-
mico japonês”. Há, portanto, um triângulo amoroso com inúmeros desdobramentos, encar-
nando as identidades múltiplas da pós-modernidade, para dialogar com Stuart Hall (1998).
Herdeiro daqueles que se exilaram de suas terras, os vestígios do exílio o definem como um
descendente errante, para falar com Stefania Chiarelli (2007), como a expressão de um ho-
mem cujo próprio discurso se trava, não se compõe coerentemente e, por fim, é indecifrável
no território que não lhe pertence e que o repele por meio de atitudes xenófobas, sentidas na
pele. Imagens infernais, medos e pesadelos sobrevêm de modo impactante ao buscar os fios
que unem seus movimentos em um mundo globalizado em confronto com sua formação
infantil claustrofóbica:
É difícil explicar, mas para mim aquilo era a própria imagem do inferno e
dos meus pesadelos de infância. A primeira coisa que me veio à cabeça
foram as horas de estrada debaixo de sol a pino que minha irmã e eu
éramos obrigados a suportar pelo menos uma vez por ano, no Ano-Novo,
até Bastos, para visitar os tios. Desde pequeno, guardei a imagem de um
Japão de brincadeira, como um parque infantil, ao mesmo tempo pobre
e irreal, um mundo de canteiros caiados construído por anões no interior
de São Paulo. E por maior que fosse o bom gosto e a discrição daquele
jardim nos fundos de um sobrado falso no Paraíso, só conseguia me
lembrar da miniatura do monte Fuji, de cimento, na entrada do museu
da imigração japonesa em Bastos. Era uma sensação de horror, de não
caber neste mundo e de já não ter os meios, nem materiais nem imagi-
nários, de escapar a ele. (CARVALHO, 2007, p. 27-8)
Em sua viagem ao Japão, o protagonista — tão familiarizado com uma São Paulo igual-
mente problemática — vivencia um turbilhão de sentimentos. Seus passos e seu modo de
estar no mundo denunciam sua condição estrangeira. Aquele poderia ser um momento
de intenso lirismo, mas suas origens lhe escampam, sua identidade — talvez nunca edi-
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ficada — fissura-se. A convulsão vivida pela narração desdobrada entre narrador anôni-
mo, Setsuko e Michiyo, não se recompõe. As identidades fissuradas tornam-se, então, a
sustentação de uma existência precária, que é incorporada pelo texto e pelo contexto da
narrativa, o que leva Sakai (2011) a apontar o sentido do “ritual antropofágico” que Silviano
Santiago identifica nas narrativas contemporâneas latino-americanas (SANTIAGO, 2000).
O ímpeto inventivo de Bernardo Carvalho, mordaz e muitas vezes carregado de tintas pes-
simistas, não o separa do mundo que o cerca. Sua prosa concisa apresenta personagens
estranhos, bizarros, fracassados, cujas trajetórias são plenas de sentido no interior de
fronteiras estéticas muito claras. Fora dali, a estranheza oferece a tônica.
A falta de sentido, os delírios pessoal e coletivo, a solidão e a crise são aspectos que re-
tornam na escrita de Bernardo de Carvalho, sempre posta nas fronteiras tênues entre o
pessoal e o coletivo, a subjetividade e a objetividade, a ficção e a representação, a relação
entre a linguagem e a realidade representada pela narrativa. Nessa oscilação, poucos são
os gestos de amor e amizade; sobram os gestos de violência e barbárie, que — a despeito
da disforia que reverberam — recordam a importância de resistir em tempos de exceção,
pessimismo e quebra do sentido de existir, dos laços afetivos e das tênues redes que li-
gam uma coletividade em âmbitos local e global.
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Vozes periféricas, vozes impuras: mal-estar
da sociedade no Racionais Mc’s
A discussão do valor literário, então, vem à tona quando comentamos sobre a produção
musical do grupo:
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1 Quais são as conexões entre música e literatura?
2 Como estudá-las?
Quais caminhos percorrer para tirar das experiências híbridas de leitura o máxi-
3
mo grau de complexidade significativa?
Muitas perguntas podem ser feitas para que possamos pensar a centralidade do Racio-
nais Mc’s na passagem para o novo milênio. Os critérios de valoração são colocados,
nesse sentido, em perspectiva para que se possam agregar conceitos como expressão
subjetiva, história social, racismo estrutural, realidade periférica, desigualdade social, so-
ciabilidade de grupos marginalizados etc. Esses temas têm sido paulatinamente aborda-
dos em sala de aula para além dos contextos midiáticos em que já circulavam.
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Ampliando o foco
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em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, até as formas mais
complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações” (CANDIDO, 1995, p.
174). O autor não aventa qualquer possibilidade de haver povos sem expressão literária:
“[...] a literatura aparece claramente como manifestação universal de todos os homens
em todos os tempos” (CANDIDO, 1995, p. 174).
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É nítido como o rap tem forte vínculo com a oralidade. Elementos da cultura popular se
entrelaçam em um discurso multifacetado, que vê diversos ângulos da urbe, em sua qua-
se totalidade, hostil. A expressão “olha só” tem um forte elemento dêitico, mostrando —
como “in loco”, performaticamente — aquilo que ali está, a riqueza e a ostentação, perto e
longe, ao alcance da vista e distante da experiência pessoal marcada pela carência e pela
escassez. O contexto histórico-social é denunciado pela inversão de valores (a violência
suga mesmo as datas festivas, o imaginário infantil) e pela ausência de potencial cons-
trução de novos valores civilizatórios pelo ambiente escolar — aquela criança, de tanto
olhar “tudo do lado de fora / nem se lembra do dinheiro que tem que levar pro seu pai”. É
uma criança que perambula pelas ruas, que começa a frequentar um “círculo vicioso” que
pode a transformar em “rejeitada”, “humilhada”, “marginal”, “discriminada”. Como resistir
— para usar as palavras de Bosi (1996) — em um mundo tão fechado, tão marcado pela
aporia, sem lógica, sem saída, senão pela luta política e pela poética? Política e poética
entrelaçam-se, de modo que qualquer perspectiva crítica necessariamente imanente ao
texto demonstrará seu poder de resistência, tanto ética como estética (para detalhes,
ALVARENGA, 2019). Os álbuns subsequentes do grupo continuaram a explorar temáticas
correlatas, ora denunciando a exclusão, ora com uma perspectiva ambígua diante do
desejo consumista, ou mesmo denunciando a violência policial. Várias são as nuanças
de álbuns como Nada como um dia após o outro dia (2002) e Cores & valores (2014) e
outras produções em videoclipes e singles.
Para encerrar, retomamos as palavras da escritora e psicanalista Maria Rita Kehl, que
aponta na voz “ameaçadora do rap” um discurso que passa pelo “lugar comunitário dos
manos”, aconselhando, orientando, oferecendo exemplos para um amplo conjunto de
sujeitos sem pai, em busca de sociabilidades alternativas às tradicionais, concretizando
aquilo que a autora chamará de “fratria órfã” da periferia. Mas a necessidade de reconhe-
cimento e de referência formativa não recai apenas no pai; com a ausência deste, passa
a recair entre os irmãos, normalmente chamados por apelidos, como uma espécie de
grande família. A autora, encaminhando-se para a finalização de seu ensaio Radicais,
raciais, racionais: a grande fratria do rap, afirma:
90
Lançamos perguntas de difícil equacionamento, entretanto convidamos o leitor (nosso
estudante de graduação em Letras) a aproveitar o fechamento de nossa disciplina para
se abrir às novas formas de literatura, arte e cultura em circulação. É necessário reforçar
o potencial de resistência que a arte tradicionalmente nos coloca; resistindo, seguiremos
nossa trajetória de leitura, questionamento, reflexão, sensibilização e humanização. Que
a escola também seja um espaço de liberdade e de conquista da cidadania literária no
novo milênio!
MIDIATECA
NA PRÁTICA
91
Podem-se, assim, enfocar essas obras segundo modelos concebidos de edu-
cação literária centrados nas escolhas e nos gostos dos estudantes, valorizan-
do seus saberes, suas vivências, sua experimentação e sua fruição estética.
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Resumo da Unidade 4
CONCEITO
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Referências
CARVALHO, B. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
94
EVARISTO, C. Ponciá Vicêncio. 2. ed. Belo Horizonte: Mazza, 2005.
HOLLANDA, H. B. de. A política Hip Hop nas favelas brasileiras. Cadernos de Estudos
Culturais, v. 4, n. 8, 2012. Disponível em: https://periodicos.ufms.br/index.php/cadec/arti-
cle/view/3527. Acesso em: 18 abr. 2020.
KEHL, M. R. Radicais, raciais, racionais: a grande fratria do rap na periferia de São Paulo.
São Paulo Perspec, São Paulo, v. 13, n. 3, p. 95-106, jul.-set. 1999. Disponível em: http://
www.scielo.br/pdf/spp/v13n3/v13n3a12.pdf. Acesso em: 19 abr. 2020.
MUNIZ, B. Obra do Racionais Mc’s é reconhecida tardiamente pela academia e pela mí-
dia. Agência Universitária de Notícias USP, 12 nov. 2019. Disponível em: https://paineira.
usp.br/aun/index.php/2019/11/12/obra-do-racionais-mcs-e-reconhecida-tardiamente
-pela-academia-e-midia/. Acesso em: 20 abr. 2020.
OCUPAÇÃO CONCEIÇÃO EVARISTO. São Paulo: Itaú Cultural, 2017. Disponível em:
https://www.itaucultural.org.br/ocupacao/conceicao-evaristo/?utm_source=goo-
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RIsAMxfDRhDoM7aCMQCtBwkBaKve5mJa118alSKEO7ss0gjyOgz12HmFSykpAAaAho-
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95
O QUE ESPERAR DA LITERATURA BRASILEIRA EM 2019?. Estadão, “Estadão Conteúdo”,
São Paulo, 12 jan. 2019. Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/o-que-esperar-
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