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Examinada por:
_________________________________________________
Presidente, Profª. Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco - UFRJ
_________________________________________________
Profª. Doutora Gumercinda Gonda - UFRJ
_________________________________________________
Profª. Doutora Renata Flávia da Silva - UFF
_________________________________________________
Profª. Doutora Ângela Beatriz de Carvalho Faria – UFRJ - suplente
_________________________________________________
Profª. Doutora Edna Maria dos Santos – UERJ - suplente
Rio de Janeiro
Agosto de 2009
OS FIOS DA MEMÓRIA E DA HISTÓRIA EM DE RIOS
VELHOS E GUERRILHEIROS: O LIVRO DOS RIOS
Rio de Janeiro
Agosto de 2009
Agradeço:
Nossa leitura, com base na relação história e ficção, investiga como o texto literário
de Luandino Vieira repensa, criticamente, e recria, através da memória,
acontecimentos históricos ocorridos no passado de guerra, em Angola. Devido ao
tempo já transcorrido e às fraturas identitárias do sujeito que narra, as lembranças
deste se encontram fragmentadas. Nossa análise do romance De rios velhos e
guerrilheiros: o livro dos rios, de José Luandino Vieira, tem o propósito de interpretar
metáforas e imagens literárias relacionadas a momentos históricos vivenciados, no
outrora, pelo narrador ex-guerrilheiro, presentes em suas recordações. Estruturamos
nossa dissertação em dois grandes capítulos. No primeiro, “Rios da memória:
conceitos e reflexões”, apresentamos, teoricamente, os conceitos de memória e
história, nos quais nos baseamos. No segundo, intitulado “Kene Vua e o fluir da
linguagem, da memória e da história”, analisamos propriamente o romance,
estudando o narrador, as personagens e o discurso literário. Esse segundo capítulo
foi dividido em quatro subcapítulos: no primeiro, abordamos as memórias do
colonialismo por intermédio das recordações conflituosas de Kene Vua e de seu
repensar crítico do passado e do presente; no segundo, focalizamos as personagens
e discutimos como são tênues as fronteiras entre a história e a ficção; no terceiro,
comentando os traços do texto oraturizado do romance em questão, trouxemos a
figura do velho Kinhoka Nzaji, examinando no discurso deste as marcas da oratura e
da ancestralidade reinventadas pela escrita, bem como a importância do velho na
cultura tradicional angolana; por último, nos detivemos no deslindamento de
invenções da linguagem usadas pelas personagens e no estudo das artimanhas do
narrar perpassadas por monólogos interiores e intenso lirismo.
ABSTRACT
Our reading, with base in the relationship history and fiction, investigates as
Luandino Vieira's literary text rethinks, critically, and it recreates, through the memory,
historical events happened in the war past, in Angola. Due to the time already
elapsed and to the fractures of identity of the subject that person narrates, the
memories of this they find fragmented. Our analysis of the romance Of old and
guerrilla rivers: the book of the rivers, of José Luandino Vieira, has the purpose of
interpreting metaphors and literary images related to moments lived reports, in the
formerly, for the narrator former-guerrilla fighter, presents in their memories. We
structured our dissertation in two great chapters. In the first, "Rivers of the memory:
concepts and reflections", we presented, theoretically, the concepts of memory and
history, us which were based. In the second, entitled "Kene Vua and flowing of the
language, of the memory and of the history", we analyzed the romance properly,
studying the narrator, the characters and the literary speech. That second chapter
was divided in four parts: in the first, we approached the memoirs of the colonialism
through Kene Vua's conflicting memories and of yours to rethink critical of the past
and of the present; in the second, we focused the characters and we discussed how
they are tenuous the borders between the history and the fiction; in the third party,
commenting on the lines of the text with oral stucture of the romance in subject, we
brought the illustration of old Kinhoka Nzaji, examining in the speech of this the
marks of the orality and of the ancestral reinvented by the writing, as well as the
importance of the old in the Angolan traditional culture; last, we stopped in
demarcating of inventions of the language used by the characters and in the study of
the tricks of narrating, elapsed by interior monologues and intense lyricism.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ......................................................................................................09
...................................................................................................................................49
.................................................................................................................................. 70
...................................................................................................................................92
4. CONCLUSÃO .....................................................................................................110
magia africana.
1. INTRODUÇÃO
intitulado De rios velhos e guerrilheiros – O livro dos rios, no que tange ao exercício
necessidades do presente.
autoral recria tais fatos históricos, uma vez que os mesmos se misturam aos vários
níveis narrativos da obra. Além disso, no que diz respeito aos propósitos desta
identificar, em meio a essa linha tênue que separa ficção e história, se há, ou não,
recriação ficcional das lutas coloniais efetuado pela escrita ficcional de O livro dos
rios.
José Luandino Vieira, cujo nome de batismo é José Mateus Vieira da Graça,
Ourém, em 4 de maio 1935. Foi para Angola com pouco mais de um ano de idade.
Seus pais, Joaquim Mateus da Graça Júnior e Maria Alice Vieira, portugueses muito
Luanda.
escreveu dois pequenos contos: Duas histórias de pequenos burgueses, mas, nesse
Esta obra apresenta uma estética narracional mais amadurecida, de acordo com a
qual o autor funda uma linguagem própria, fazendo, por exemplo, da recriação dos
esse livro tenha sido apreendido e sumariamente destruído, ainda na tipografia, pela
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Guetos, favelas da cidade de Luanda, capital de Angola.
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várias outras como: Luuanda (1964); Velhas histórias (1974); A vida verdadeira de
guerrilheiros – O livro dos rios (2006), obra – que faz parte de uma trilogia, cujos
segundo e terceiro livros ainda vão ser editados – publicada, após longo silêncio
literário.
segundo é uma espécie de criação autobiográfica, marcada por uma análise crítica
contexto angolano.
nasceu em Portugal, mas passou toda sua infância no musseque do Braga. Ali,
vivenciou momentos que lhe serviram, a posteriori, de base para suas narrativas, e
às suas “memórias do cárcere”, no Tarrafal, em Cabo Verde, onde foi detido pela
maioria das vezes, a vida dos musseques. Já em seu romance, De rios velhos e
cidade para o refúgio das matas e dos rios. Esse narrador, um guerrilheiro que luta
pela liberdade de seu país, embrenhava-se pelas florestas. Ele traz ao presente de
sua narração lembranças desses tempos e marcas profundas deixadas pela guerra.
não podemos nos esquecer que a referida obra data da década de 70 –, enfatizando
importante nome a embasar nossas linhas teóricas. Essa sua obra pauta-se pela
grupo. Para este autor, o “fio” das ideias, das reflexões e dos sentimentos que o
uma nação. Para Halbwachs, o termo “memória histórica” evidencia não serem
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memória e história a mesma coisa, embora a segunda não possa existir sem a
contínuo e, assim sendo, somente poderá ser compreendida como algo plural, ou
O livro dos rios, de José Luandino Vieira, e os referidos textos teóricos – além de
nossa dissertação.
costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades
GOFF, 1990, p. 476). Esta definição parece ser a mais adequada para começarmos
a reflexão que aqui se propõe, pois nos introduz no universo das lembranças sociais,
refletir acerca de elementos culturais que fazem parte da história, seja ela recente,
dedicou a estudos sobre memória – baseia-se, segundo Ecléa Bosi, na idéia dos
a classe social, com a escola, com a religião, com a profissão, enfim, com os grupos
Cada ser humano carrega suas lembranças pessoais, porém está inserido em
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memória individual é perpassada pelas diversas memórias que nos rodeiam. Estas
ela em situações nas quais precisa confirmar algumas de suas lembranças ou dar-
A junção dessas memórias se justifica, haja vista que, para retomar seu
lembranças dos outros, reportando-se a referências que existem fora dele e que são
pessoas. Essas memórias são as que não foram vivenciadas diretamente. Contudo,
integram os conhecimentos que cada indivíduo tem de si, de seu país e do mundo.
vivida, e não apenas na história aprendida, que se pode ancorar nossa memória
imediato, seu sentido histórico, é porque, naquela época, sentia que os outros
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acontecimento.
Segundo Le Goff, ninguém vive o presente imediato, já que todo indivíduo liga
coisas e fatos graças à “função adesiva” das memórias pessoal e coletiva que se
época passada, ele era a prova de que vivenciara um universo temporal anterior.
no presente, pois é, com a ajuda de fatos emprestados a este, que são retomados
estruturar num bloco único, em que, por vezes, se perde a individualidade de cada
ocorre sem que o indivíduo se dê conta de que aquela imagem não se trata de um
Não podemos dizer que as lembranças são estáticas, uma vez que elas
estabelece com os objetos de lembrança. Sobre esse assunto, Ecléa Bosi deixa
para o fato de que “(...) pela memória, o passado não só vem à tona das águas
inteiramente dentro de nossa memória, tal como foi para nós; porém, alguns
acordo com a leitura que viemos desenvolvendo até o presente momento, parece
claro não ser essa a visão de Halbwachs. Para este teórico, as imagens do passado
ele participa, visto que o universo social é “(...) onde estão todas as indicações
íntimo de cada ser humano; passado esse que será atualizado pela consciência na
totalidade da nossa experiência” (Idem, p. 47). Por isso, se diz que a ponte entre o
presente e o passado é feita pela memória. Contudo, não podemos perder de vista a
irrecuperável e nunca poderá ser revista como “de fato foi”, somos levados a concluir
Muitas vezes, as lembranças são tão cruéis, que melhor será olvidá-las. Há
ganha uma significação particular na História, pois nesta “(...) o estudo da memória
história” (LE GOFF, 1990, p. 426). É por conta disso, fazendo nossas as palavras de
Le Goff, que “(...) hoje, os historiadores se interessam cada vez mais pelas relações
(Idem, p. 10).
mãe das nove musas procriadas no curso de nove noites passadas com Zeus.
Mnemosine concedia aos homens a recordação dos heróis e seus grandes feitos. A
deusa, contudo, também presidia a poesia lírica, devido ao seu caráter subjetivo.
passado, a testemunha inspirada nos “tempos antigos”, na idade das origens. Nos
dias atuais, a memória parece ter perdido essa aura mítica, embora mantenha seus
traços marcados pela subjetividade. Ela guarda lembranças indiretas, registros que
passado e presente não são estáticos. Sabe-se, hoje, que o passado depende
sociedade.
pela tensão entre o “ontem” – que continua sendo sempre interpretado – e o “hoje”.
memória e história.
livro intitulado Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva, que “(...) o
mas, sim, uma captura do presente” (SARLO, 2007, p. 9). A referida pesquisadora
a leitura de O livro dos rios, de José Luandino Vieira. No corpo dessa narrativa,
entre outros elementos, e que foram aqui explicitados, serão fundamentais para
penetrarmos nos rios da memória de Kene Vua e Kapapa. Tais personagens, a partir
independência em Angola.
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escrever grande parte de suas obras. Os escritos de Luandino desta época trazem
de Angola, não só em seu último livro, De rios velhos e guerrilheiros: o livro dos rios,
como também nos anteriores. Suas obras, além de denunciarem a violência das
de recriação da linguagem.
colonizador,
ícones de saberes marginais que pretendem tomar para si – seja na guerra das
armas, seja na guerra das palavras – o lugar de destaque que lhes fora
Luandino, em O livro dos rios, utiliza a metáfora do rio como o fluir do tempo;
contexto, destaca-se uma personagem que realiza sua travessia pelos rios da
geografia e da memória: Kene Vua, o “Sem Azar”, persona tantas vezes confundível
com a entidade autoral – algumas vezes identificada como Kapapa, outras como
Diamantininho. À medida que cruza o rio, Kene Vua vai rearrumando suas
Isto é: conheço rios. De uns dou relação; de outros memória. Rios raivosos,
rebeldes, rebelados; rios d’água suja, cega de sangue; raros rios calados de
medo debaixo do voo dos helicópteros, rios de pele d’água arripiada; rios de
escorregar rude, pedreguentos, retintos de lama e choro (...) (VIEIRA, 2006,
p. 17)
cola à voz enunciadora e nos vai revelando suas impressões acerca da história e do
destacáveis da biografia de Luandino, o que nos leva a afirmar que O livro dos rios
autobiográfico não é estabelecido. Quem recorda seu próprio passado é Kene Vua.
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têm algo das experiências vividas por Luandino. Pelo exposto, concluímos que O
livro dos rios se caracteriza como uma biografia romanceada de Kene Vua. Ao longo
terra. Como exemplo, podemos evocar um dos momentos em que a memória afetiva
liberta, António Agostinho Neto: “(...) Agostinho Neto despediu connosco: era
setembro, meus pés se incharam de lágrimas nos pambos da vida (...)” (VIEIRA,
2006, p. 98-99)
acerca dos relatos de vida e outros “documentos vividos”. Paula Morão ainda
a ideia de que existe uma certa ligação entre a instância autoral e a personagem-
excerto que se segue, essa voz autoral desvenda o mistério da tatuagem desenhada
mulato de Massangano”:
que esta narrativa de Luadino Vieira não escamoteia sua profunda relação com as
singular – também narradora, de nome Kene Vua – demonstrar o quanto foi violenta
Confiei então só em meu rio, meu Kwanza, e olhei no cacimbo que a chuva
tossia para cima de mim, como um fumo de cassuneira. Mas a ilha não
estava lá. Não está. A mina do peito explodiu, terror. ”Calma! – eu xinguei
meu coração assustado. “Calma, porra!” – rezei. “Calma, camarada!” – três
vezes, como deve de fazer sempre um revolucionário. Até parar o sangue.
(VIEIRA, 2006, p. 25)
que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o
futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para libertação e
alguém que enfrentava a realidade crua da guerra, fazendo tudo para se manter
“Kene Vua...”, isto era: eu – e eu não senti se era meu nome o chamado, se
era mais cuspo dele, desculpa de me falar à toa. Eu ou ele, as palavras não
podiam mentir quando todos ali no maqui, guerrilheiros e partisanos, povo
em geral, membros do comando da zona, responsáveis e comitês, íamos
votar a justiça: enforcar o ladrão do povo (VIEIRA, 2006, p.39)
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angolana. Kene Vua defende a causa do colonizado, bem como o papel deste na
defesa e valorização de sua cultura que, durante séculos, fora considerada “inferior”
Navegando pelos rios de sua memória, o narrador Kene Vua é pontual ao destacar
assume que o seu eu mais antigo, Diamantininho, já estava “dividido” por heranças e
O livro dos rios ficcionaliza, com maestria, a difícil realidade vivida por Angola,
durante guerra colonial. No entanto, para além disso, surge um interesse crescente
transporta para o presente narrado, por meio de suas memórias, tensões sociais e
teria ocorrido no ano de 1920 – como assinalam as palavras não do narrador, mas
as do próprio autor, em nota: “(...) data em que Elias Caturra me situou a batalha
(...), no médio Kwanza.” (VIEIRA, 2006, p. 91) – surge como um bom exemplo para
latim; então viram todos que isso era um sinal para pelejarem. (Idem, p. 93)
assimilação vocabular que tanto atinge o soberano local como o militar português.
que esse refletir faz parte de sua concepção de mundo. Assim sendo, acreditamos
que, ao erigir sua peregrinação pelos desvãos da memória, mergulhada nas águas
doces que afluem do Kwanza, o narrador de O livro dos rios nos transmite a ideia da
território que pretendiam dominar, os colonizadores costumavam fazer uso dos mais
para não perder a posse sobre a terra angolana. Dentre as diversas armas
angolanas.
vivências como Kene Vua, Kapapa e Diamantininho. Em cada fase de sua vida, o
capitão português Lopo Gravinho de Caminha – para quem seu pai trabalhava e com
quem conviveu por anos –, para, enfim, se engajar à luta de libertação, chamava-se
Kapapa, nome dado por seu avô, quando ele pescou a sua primeira raia. Kene Vua
que, como vimos, quer dizer “sem azar”, foi o nome de guerra adotado ao integrar a
guerrilha. Diamantino era, por sua vez, seu nome de batismo, escolhido por seu pai.
Como assinala Laura Padilha, “percebem-se, assim, por esse jogo de nomeação, os
presente e o futuro incerto, sem qualquer linearidade –, sua infância é, por vezes,
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evocada, ilustrada pelas lembranças de seu pai, pelas do senhor português, capitão
Angola. Ele, branco, nascido em Portugal, fora para Luanda ainda criança. Sendo
filho de colonos portugueses pobres, viveu a maior parte de sua infância nos
musseques de Luanda, o que fez com que ele refletisse, em suas obras, acerca da
o fato de que:
(...) José Luandino Vieira “con-figura” imagens sociais que apontam para a
ação política. (...) José Luandino Vieira inverte esse direcionamento vetorial
e, de dentro para fora, leva o social a implicar criativamente o nacional,
repensando-o em função do conjunto da sociedade angolana (ABDALA
JÚNIOR. Apud: CHAVES, MACEDO & VECCHIA, 2007, p.27-28).
brancos pobres, mestiços, negros assimilados e uma grande soma de negros não
Irene Ramalho e António Sousa Ribeiro, intitulada Entre ser e estar: raízes,
arbitrariedades.
negros na segunda metade da década de 50, houve grande endurecimento por parte
foram chamados “brancos de segunda”, por serem mais ligados à África do que à
Europa. Por outro lado, insuflados pelas ideias, muitas vezes radicais, desses
Portugal. Ao longo da leitura de O livro dos rios, podemos perceber ecos dessa
da merda' (...) 'Filho do colono, cafuso da merda...'” (VIEIRA, 2006, p. 40); ao referir-
que o cerca, no momento em que recorda. Kene Vua mergulha num conflito íntimo,
quando não se reconhece mais como o sujeito que já foi e nem referenda as
mesmo.
desvios e dos escoderijos na mata, Kene Vua revela, em seu discurso, que ainda
não há espaço para o questionamento das certezas que o levaram a executar o ex-
companheiro:
Hoje, ainda baloiça toda a pequenina vida dele na minha consciência, não
guardo memória: fiz o que alguém tinha de fazer e o Kalukala, rio de tantas
matas e bases de apoio e acolho e passagem, já era minha testemunha (Idem,
p.19).
Vua, convertidas em texto narrativo. O grande cerne da questão, que põe Kene Vua
“estado” de certeza relativa à traição do guia. Afinal, essa certeza costuma ser
leitura que são inerentes ao estado presente da subjetividade. Na citada frase: “Fiz o
embora imbuído de um tom assertivo em relação ao que “tinha de fazer”, é traído por
uma contradição: enquanto afirma não guardar memória do que fez, suas
Nesse sentido, Kene Vua vive o contraste ideológico entre o que foi e o que é,
entre o que pensava e o que pensa, entre o passado e o presente, de modo que a
Ao contar as decisões que levaram à morte de Batuloza, Kene Vua vai sendo
para a busca de sua identidade, visto que, embora o passado condicione o presente,
não existe, nas lembranças de Kene Vua, entre essas duas instâncias de tempo,
(RIBEIRO. Apud: FONSECA, 2003, p. 29) do sujeito. Por conta disso, Kene Vua
concordância com a estudiosa referida acima, entendemos que “(…) todo hiato é
A memória é, para Kene Vua, a via principal para o reencontro com suas
referências, dentre elas, a imagem de seu avô, que poderia ajudá-lo a reestruturar
instâncias destruídas dentro do “Eu, Kene Vua”. Depois da morte de Batuloza, Kene
Vua exercita o reencontro com sua identidade mais remota, infantil, o seu “Eu,
Kapapa”. Para essa outra face do guerrilheiro, o "Eu, Kapapa", os saberes do avô
todavia, falam.
Kapapa queria poder ter ali, novamente, a figura do avô, queria novamente
poder contar com seus conselhos, desejo que o leva, pouco a pouco, a reinventar e
tornarem uma única voz. Esse combinar de vozes corrobora a teoria de Halbwachs,
que, em seus estudos sobre os meandros da memória coletiva, evoca a ideia de que
“(…) nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos
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pensamento ancestral no presente, por intermédio, por exemplo, das mudanças que
necessária para quem busca suas origens. Portanto, a figura do avô, vinculada à
histórico de vivências capaz de oferecer para Kene Vua o suporte necessário para a
protagonista-narrador percebe que “voltar a ser Kapapa” não passa de uma utopia,
pois o outrora é algo em que podemos aportar, mas não alterar ou modificar. Voltar a
ser “Kapapa” nunca livraria “Kene Vua” de suas marcas mais recentes.
morte, reflexões que Kapapa nunca teria articulado como suas e que, na figura de
uma ideologia que sempre repugnou, ou seja, com o ato de Kene Vua executar um
Kapapa, mas, no passado da luta, Kene Vua estava em acordo com “a disciplina da
guerrilha” (VIEIRA, 2006, p.38). Tal disciplina passa a ser questionada pela
primeiro, reescrevendo sua própria história, acaba por vivenciar três papéis sociais,
com o objetivo de relembrar os fatos ocorridos a partir de um outro olhar. Esse olhar
diferenciado é filtrado pela perspectiva do como “Se fosse hoje”, segundo palavras
Kene Vua deixa evidente sua crise de consciência, quando rememora suas
para matar o sapador, ele, como narrador, se exclui da ação que lhe fora imposta,
tentando omitir seu compromisso em relação a tal ato: “(...) lhe fizeram” (Idem, p.
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personagens e suas identidades: ora Kapapa, ora Kene Vua. O resultado disso é o
fato de que, no pensamento de Kapapa, aquele que morrera como inimigo ressurgia
como o mártir de um engano, um herói que clamaria por “justiça”. Dessa forma, a
surgiu a partir de uma antítese: ser contrário ao outro (Kene Vua e Kapapa) e, acima
de tudo, ter como paradigma uma noção de limite, ou ainda, de uma imagem
Sousa Santos,
redescobrir um ser humano antitético, que se questiona a todo tempo, por intermédio
‘quem sou eu?’ Como não poderia deixar de ser, a personagem obtém a resposta a
partir de uma imagem metafórica, segundo a qual se vê como um rio que flui
modernidade, entre o pré e o pós-colonial, e, principalmente, entre seu avô, seu pai
confundem.
renegada com a instância ancestral não o deixa perceber o sentido de sua vida no
que acaba por buscar, por intermédio de suas memórias pessoais, respostas para o
sociedade angolana. É o recriar dessa memória de Kene Vua que vai direcionar o
‘rumo’ de sua vida e a imagem que ele tem dos ‘rios’ e de sua travessia por eles. Tal
de uma geração de angolanos. Uma vez mais, essa geração, “a da utopia”, mobiliza
a atenção e contribui para a reflexão acerca desse presente que, com o fim da
Conheci rios.
De todos direi – dos velhos rios de arrugadas margens, uma teia de muíjes
e jindombes, dos que eram macotas nos sobados de tantas nascentes, e
rios desalforriados agora, avassalados que estão em livros de atlas, os
antepassados rios de sangue, enxurrados na memória dos homens; dos
futuros rios falaria, nascidos que vão ser de uma água gorda, lama saindo
nos fundos dos mares, esgotos peregrinos. (VIEIRA, 2006, p. 67)
Kene Vua se apresenta como uma personagem instigante, que vai ao fundo
das águas, fazendo ecoar vozes das suas memórias. Para repensar a época do
(mas ouvi cantar nossa mãe Kwanza de boca aberta m’adormeceu em seu
xuaxo de folhas de água dia que Agostinho Neto foi em Massangano –
relâmpago dos óculos; palavra d’ordem cate o Kunene; e estrela na
bandeira rubinegra (VIEIRA, 2006, p. 21).
peculiaridade não impeça que seu texto seja incluíndo entre as obras que discutem,
dentro do percurso literário angolano. Tais temas ressurgem nos ‘rios’ da memória e
sentido de sua vida, trazendo à tona fatos e sentimentos que muitos angolanos
insistem em esquecer.
nos, em primeira pessoa, a atribulada trajetória de sua vida, evidenciando, num jogo
guerrilheiro:
obriga-o a se voltar para os espaços mais íntimos do seu outrora. Articulando uma
busca pelo sentido maior de sua vida, Kene Vua capta o passado por meio de seus
geografia. Dos becos e vielas que marcaram as cenas captadas por Luandino em
Luanda, o autor passa em O livro dos rios, por intermédio do guerrilheiro Kene Vua,
simbólica através dos ‘rios’ que ajudam a fecundar as terras de seu país, e, quiçá,
sobre o seu passado, procura atribuir-lhe algum sentido capaz de explicar melhor o
seu presente.
imagem dos rios, ganha nova expressão em ‘Eu, o Kapapa’, nome ancestral de
banhar-se nas mesmas águas de um rio, pois essas águas nunca serão as mesmas.
refere-se à força da circularidade mítica como uma das bases de suas memórias:
Só, que na guerra civil da minha vida, eu, negro, dei de pensar: são rios
demais – vi uns, ouvi outros, em todas mesmas águas me banhei é duas
vezes (Idem, p. 15).
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sua consciência, a dúvida, e até mesmo o questionamento sobre uma ideologia que
legitima e fundamenta suas ações pretéritas, as quais vêm à tona por meio de suas
tanto do ponto de vista temporal, quanto ideológico, o que fica nítido, por exemplo,
na citação a seguir:
Não podemos mais duvidar de que a figura de Kapapa representa para Kene
narrador de O livro dos rios parece decepcionar-se com algumas atitudes pretéritas
retorno de Kene Vua às suas fontes, seu reencontro com suas nascentes. Afinal,
compreender como começa o rio significa também entender como começa a estória
ficção. Parece interessante lembrar que tal relação tem suscitado, ao longo dos
anos, muitos debates, seja entre historiadores, seja entre literatos, propiciando
discussões voltadas para os tênues limites observados entre essas duas áreas do
saber.
José Américo Motta Pessanha é um dos estudiosos que demonstra que não
faz sentido estabelecer limites rígidos entre literatura e história. Segundo Pessanha,
dela, a relação entre ficção e história assume nova formulação”. (PESSANHA. Apud:
SANTOS, 2003, p. 189). Ana Mônica Lopes, em sua dissertação intitulada Ficção e
aconteceu e o outro o que poderia ter acontecido', distinguindo dessa forma o texto
literário do texto histórico”. (LOPES, 2002, p. 35). Ainda que possamos destacar na
nessas distintas formas de rever o outrora, uma linha limítofre, o que permitiria a
consideração “os elementos que cada área coloca à disposição do investigador, sem
história nos é dado por Luandino Vieira, no livro De rios velhos e guerrilheiros – O
livro dos rios. Nele, várias questões alusivas à configuração da identidade nacional
país são inegáveis. Visto isso, fazemos nossas as palavras de um outro escritor
angolano, João Melo, que declara, no ensaio intitulado “O destino de todos os rios é
o mar”: “(...) o lançamento deste romance constitui uma reflexão ampliada e uma
De maneira geral, podemos dizer que, em toda a sua obra, Luandino Vieira
escrita.
atravessando todo país. É no rio e nas matas que a personagem Kene Vua passa a
maior parte do tempo. “Tudo se maravilha nesse antigamente, mas tenho de sair
embora nesta água de meu rio. E ouço de novo aquele silêncio perigoso do barco de
borracha.”. (VIEIRA, 2006. p. 24-25) Neste romance, o verbo poético, como o rio,
popular dos musseques angolanos – fala esta que, marcada pelo encontro entre o
angolano não apresenta uma dicção folclorizada, pois a ficção do autor capta o
Sua escrita se faz arma de denúncia, à semelhança daquilo que Edward Said
declarar que “(...) o papel (...) do escritor é desafiar o silêncio imposto e se levantar
MORAES, 2004, p.40). Este mesmo teórico observa, ainda, que uma das
características das narrativas que, como aquelas escritas por Luandino, questionam
costumes e as tradições daqueles que deram suas vidas pela libertação de Angola.
de questionamento identitário que circula por toda a obra: tal forma de narrativa
Gritei, berrei: “Porra!...” Parou, meia volta volver. “Porra!... Minha vida tem
de mudar!...” E ele, Henrique Dias, sempre comandante, sungou as velhas
calças do camuflado, ajeitou a tocareva no cinto sem deixar de andar para
mim: “Não tem de mudar, Kene Vua! Tem de melhorar...” – a gente falava
sempre a mesma coisa das coisas diferentes, não adiantava (VIEIRA, 2006,
pp.58 - 59).
francês identifica que: “(...) o texto já não tem a frase por modelo; é amiúde um
potente jato de palavras, uma fita de infralíngua.” (BARTHES, 1977, p.13). Barthes
diz ainda que “(...) a desconstrução da língua é cortada pelo dizer político, bordejada
vida. Nesse sentido, O livro dos rios foge a qualquer tipo de normatização, revelando
que a alteridade subjetiva está menos pautada por uma “verdade” única e inabalável
do que pela pluralidade de versões e pelo constante pensar sobre elas. Ao longo da
narrativa de Kene Vua, podemos entender essa pluralidade como algo positivo. As
acordo com Helena Riaúzova, em seu livro intitulado Dez anos de literatura
angolana, os
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zonas polissêmicas, nas quais cada palavra costuma abarcar uma gama de
significados muito maior do que sua projeção imediata propõe. Isso nos obriga,
muitas vezes, a dar o salto sobre o rio que liga as margens da ficção e da história.
sobre a linha limítrofe que separa o fato narrado do dado vivido. A narrativa d'O livro
dos rios apresenta-nos, com muita propriedade, as imbricações dos universos social
de seus valores, erigidos ao longo da vida. Por outro lado, parece existir no texto do
conviveram com ele em sua trajetória, durante a guerra de libertação, vai tecendo as
malhas do texto com fragmentos que são marcados pela carga histórica de épocas e
os fatos relatados vêm à mente do narrador sem estabelecerem uma ponte com
nunca as duas margens da fenda foram mais nítidas e mais tênues, nunca o prazer
bélicas dos sobas locais, proferidos por um certo Elias Caturra ou recolhidos por Héli
exercício de citar:
Reconhecer as pistas que vão sendo lançadas por Kene Vua é uma das
guerrilheiros – O livro dos rios, o romance de Luandino se constrói com base num
Conheci rios:
Conheci rios antigos como o mundo e
Mais velhos que o correr do sangue
Nas veias dos homens
Conheço rios
Antigos, sombrios rios.
A partir desse poema, poderemos ler, com olhos mais sagazes, as primeiras
Conheci rios.
Primevos, primitivos rios, entes passados do mundo, lodosas
torrentes de
desumano
sangue
nas veias dos
homens.
Minha alma escorre funda como a água desses rios.
Só que, na guerra civil da minha vida, eu, negro, dei de pensar: são rios
demais – vi uns, ouvi outros, em todas mesmas águas me banhei é duas
vezes.
(VIEIRA, 2006, p. 15)
cursos naturais dessas águas, que, no texto do escritor angolano, são agora “(...)
lodosas torrentes de/ desumano sangue/ nas veias dos homens.” Ainda refletindo
acerca da metáfora dessa ponte, não podemos nos furtar a citar as palavras de
Paula Tavares:
apresenta como um homem dos rios, aquele homem que encontra nas águas fluviais
58
de uma linearidade cronológica, mas, sim, de uma ordem subjetiva, própria das
citações que ecoam pelas águas da diegese também se revela bastante importante,
pois não só se evocam culturas distintas, mas ainda os tempos em que elas se
épocas que se vão amalgamando num texto que se constrói como um palimpsesto
ligação entre o sujeito e o mundo. Logo nas primeiras páginas da narração de Kene
A voz que nos acompanha durante a leitura de O livro dos rios se comporta,
muitas vezes, como se fosse a de um leitor que comenta aquilo que lê. A peça
identificado por nenhum título particular, pois surge como imagem metafórica de um
entendemos que escrever “(...) é sempre reescrever, [pois] não difere de citar. A
citação, graças à confusão metonímica a que preside, é leitura e escrita, une o ato
azul por dentro daquela escuridão” (VIEIRA, 2006, p. 23); “o que a gente sabíamos”
(Idem, p. 25); “Ilha só de areia era lá no meio” (Idem, p. 26); “O palpebrar dos
pássaros” (Idem, p. 28); “A quem era guarda nossa dos espíritos” (Idem, p. 36);
“quando vou ter que entrar a mata” (Idem, p.37) etc. Dessa forma, a narrativa
tempo todo.
Percebemos que o uso criativo desse fazer linguístico, expresso por uma pluralidade
Luandino, vozes denunciadoras que não se querem calar. Em O livro dos rios, é por
intermédio da discussão travada entre Kene Vua, Kapapa e Diamantininho com seus
lembranças.
narrador. Poderíamos inferir que a frase – “Três coisas maravilham na minha vida, a
quarta não lhe conheço (...)” (VIEIRA, 2006, p.23) – alude, recorrentemente, à
se ora como Kene Vua, ora como Kapapa, ora como Diamantininho, o narrador
(...) Kene Vua, eu pensei, não há azar, vai rondar para norte, para terra,
posso correr com ele e a praia à vista, entrar a barra, dar encontro o que eu
quero pescar em vida minha, despedida do mar: dicunji, o peixe-mulher. No
arranque do vento, meu coração se encheu de ar bazófio: eu era o Kapapa,
o que sabia muito bem o não era peixe-agulha (Idem, pp.102-103).
faces do sujeito estão, a todo momento, apontando para as tensões entre vários
originais combinações:
62
(...) meu avô, o sempre em pé Kinhoka Nzaji, se vivo fora por aqueles
entorces, iria gritar: “Dixibe, Kangundu! O ngiji iami, muene o Kalunga
Kitubia!...” – e aquele sacrilégio nunca ia poder sentir sua cabeça rolando
pela ravina para o regaço de nossa mãe Kwanza.... (Idem, p.68).
afirma o estudioso:
tempo presente põe em questão não só a identidade de Kene Vua, mas também a
Não fiquei, não sou rapaz, sou o senhor Kapapa, jurei! – e fiz-lhe um
manguito, mandei-lhe na puta que o pariu na terra dele, perdi-lhe na solidão
63
Até ali, quando vou ter que entrar a mata do Kialelu para enforcar um
homem (Idem, p. 37)
O livro dos rios, percebemos que, por meio do emprego desse registro linguístico
pela guerra. O texto é construído sob os parâmetros da oralidade recriada, tão bem
texto, passagens alusivas aos ditos populares locais e que demonstram também
um’axaxi ka kizanga kia kalunga, o kia katatu ki nga ku ijia: o caminho do homem na
morte”.(Idem, p.66).
Parece claro que o autor busca, por meio de suas personagens, encontrar um
sentido, um lugar de afirmação, por meio do qual possa se indagar acerca de sua
ideologias.
vertiginoso.
vozes de cada uma das personagens desse complexo romance, ressoando tal qual
“as águas de um rio”. Esse encontro de águas fluviais, sempre renovadas, evoca um
discurso marcado pela multiplicidade que quer dar conta de uma identidade ora
vivida por Kene Vua – da qual já tratou a professora Laura Padilha em uma resenha
ao longo da história. Kene Vua participou das lutas de libertação, o que denota a
Ndiki Ndia, “(...) nosso comandante na vida e no sonho” (Idem, p. 29), revela-
Então:
Ele: – Kene Vua! você camarada, está longe, longínquo desse mar,
estás fora, como queres voltar no nome?...
(e que isso não tinha problema, não era mais caso de demanda, inquérito
ou comissão para ouvir de relator, não tinha azar, o mar do Mussulo seria
sempre dentro de mim, portanto que, concluindo: kene divuua, não havia
azar, meu nome era de ficar)
(só que eu fituquei: certo, correcto, dacordo, narmal: Kalunga eu até seria
se; cadavez, um dia outro, outra vida; mas meu mar ainda estava morar é
dentro de mim, marulho secreto; mesmo que em verde mata sofro de maré-
vazia de saudade, ainda tenho meus ocos, buracos e pedras – são sombras
vivas de mais; para Kalunga precisava ainda, para lhe merecer, encher
esses ecos de muitas mortes e muitas noites, muita luta, mais mar, tudo o
que esse nome esconde e homem vivo só encontra no pambo final da sua
estrada: “...a quarta não a conheço: o caminho do homem na morte...”)
Eu: – Então, eu espero. Para cobra, um dia são seus seis meses de
mudar a pele... (Idem, pp. 123 - 124)
Entre permanecer “sem azar” e “voltar a ser mar”, o protagonista d’O livro dos
renovação da sua identidade, está imerso em águas salgadas. Não aquelas que se
aquelas que roçam a margem, que se misturam à areia, reaprendendo, a cada dia, o
seu sabor.
do novo sujeito, quanto o retrato mais remoto de um Lopo Gravinho, por exemplo.
Kene Vua admite o avô negro, o comandante mestiço – “aquele calado cafuso”
(Idem, p. 38) – e o capitão branco, todos como peças indispensáveis ao puzzle das
companheiros de Kene Vua, deixam de ser tão somente homens de trincheiras, para
serem vistos como representantes de mundos diversos, nos quais se pode constatar
Kapapa.
Amba-Tuloza, por exemplo, acaba por traduzir uma prerrogativa autoral, preocupada
indivíduo, aquela que, ao longo dos anos, vai sendo vinculada ao registro coletivo.
A memória consciente, de acordo com Bergson, “(...) retém e alinha uns após
outros todos os nossos estados à medida que eles se produzem, dando a cada fato
metáfora dos rios. Dentre tantas que mereceriam destaque, observamos nas vozes
fontes esquecidas, os “buracos negros” ou, de maneira mais profunda, a “(...) força
2006, p. 32).
ao realçar suas histórias de rio e de mar, contribuíram para sua interpretação do rio
devemos nos esquecer, por exemplo, das diversas trajetórias das pessoas simples
libertação.
relações existentes no grupo de Kene Vua, pensamos que seria possível enxergá-
los, também, como metáfora de guerrilheiros reais, homens que estiveram nas
(...) Eu ou ele, as palavras não podiam mentir quando todos ali no maqui,
guerrilheiros e partisanos, povo em geral, membros do comando da zona,
responsáveis e comitês, íamos votar a justiça: enforcar o ladrão do povo (...)
(Idem, p.39).
identitária impetrado por Kene Vua irá funcionar como elemento fundamental de sua
daquilo que entendemos por “oratura”, isto é, o registro da oralidade recriada pelo
responsável por passar a Kene Vua memórias não vivenciadas pelo neto, mas que,
ainda assim, faziam parte de sua história. Para melhor compreendermos o papel das
(...) memória atual da pessoa idosa pode ser desenhada sob um pano de
fundo mais definido do que a memória de uma pessoa jovem, ou mesmo
adulta, que, de algum modo, ainda está absorvida nas lutas e contradições
de um presente que a solicita muito mais intensamente do que uma pessoa
de idade (BOSI, 2004, p.60).
natural.
72
internalizarem reminiscências, ainda que alheias, por meio das quais os sujeitos que
distintas, mas não podem ser analisados como duas realidades estanques e
modernidade,
(...) outra seria a situação do velho, do homem que já viveu sua vida. Ao
lembrar do passado ele não está descansando, por um instante das lides
cotidianas, não está se entregando fugitivamente às delícias do sonho: ele
está se ocupando consciente e atentamente do próprio passado, da
substancia mesma da sua vida (BOSI, 2004, p. 60).
relação que subjaz à troca de experiências, sendo prestigiada pela sabedoria que
inferimos que o velho, em geral, se fazia presente na vida social como uma espécie
presente, por intermédio, entre outras coisas, da contação de suas estórias. O “mais
em volta de uma fogueira ou de uma árvore que o grupo de anciãos se reunia para
grupo. Em De rios velhos e guerrilheiros – O livro dos rios, Kene Vua, ao encarar de
perto a morte, identificou a importância das palavras do avô sobre o rumo de sua
vida:
das tradições, eles conduziam as cerimônias de iniciação, por meio das quais os
que eram os guardiões legais dos povos; esses homens possuíam técnicas
"(...) a Idade Média venerava os velhos, sobretudo porque via neles homens-
memória, prestigiosos e úteis" (LE GOFF, 1990, p.28). Eram os velhos que, nos
procurando sempre manter a união do grupo. Por isso, de acordo com Altuna, eles
cultural insubstituível que não pod[ia]m atraiçoar com medo das represálias dos
representava uma fase privilegiada do ciclo vital. Nessa fase, o indivíduo nascia,
espíritos, ou seja, dos ancestrais. Os anciãos, por serem os mais velhos, além de
comunicavam.
não descansava; mesmo que seu corpo já estivesse frágil, seu espírito intensificava-
se, porque essa era a idade da sabedoria, da transmissão dos valores culturais.
Segundo Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco, em ensaio publicado no livro A magia
das letras africanas, “(...) as estórias orais se faziam instrumento dos mais velhos
(SECCO, 2003, p.10). Nos rituais de iniciação dos neófitos, os anciãos, detentores
Nessa tradição, acreditava-se que o ancião era, também, o elo entre os vivos e os
mortos.
Luandino Vieira, em particular n` O livro dos rios, obra em que uma das principais
propostas é fazer com que a história se revele por meio de seus pormenores mais
76
encontradas nos registros oficiais, mas, sobretudo, com a história tecida pelos
relatos dos ancestrais. Atendendo ao chamado das vozes que beiravam as margens
do imaginário dos ancestrais, armazenado nos mitos, nas lendas, nas crenças
religiosas e nos testemunhos orais. Assim, Kapapa encontrava, nas palavras do seu
avô Kinhoka Nzaji, parte das tradições do seu país, buscando, no passado, fatos que
identidade.
presente e futuro, os quais, por sua vez, são estruturados por práticas sociais
recorrentes" (GIDDENS. Apud HALL, 2003, p.14). Dentro dessa relação temporal, o
associado ao processo de valorização das tradições, que, por sua vez, oferecem a
ou das que herdou das memórias de outrem, trazendo à tona o passado como uma
Santos, no ensaio intitulado Mia Couto e a memória ancestral: “uma força invisível”,
sob
77
e, ainda, para que o presente tenha algum sentido de “ser”. Kene Vua, ao
que "(...) a memória agrega tanto traços da continuidade do passado quanto traços
identidade pelo qual passa Kene Vua, assumindo-se Kapapa antes de qualquer
outro epíteto – “Revivo então, vou sair do barro da areia da infância, o Kapapa, meu
nome de sempre (...).” (VIEIRA, 2006, p. 101) – , nos permitirá ver que, na figuração
tanto em sua história de vida, como na história da nação angolana. Por meio da
memória do avô, Kene Vua “recupera” imagens de sua própria infância, as primeiras
enfim, saberes de uma Angola ainda não dominada pelo colonialismo português.
tradições. É por intermédio de sua voz que somos apresentados a uma linguagem
78
“O ufolo, tubia!...” [“A liberdade é o fogo”] – agora sim, oiço e vejo e volto e
creio porque já vem Kinhoka Nzaji em seus bravos pés de jiáia de pele de
pacassa e canhangulo a tiracolo, catana na mão, pouco velho ainda, seu
hungo nada, salmos nada, versículos nada: só ele mesmo, o eterno
guerreiro do Kazuangongo por morros e picadas. “Mba k disongolola, ku
talala: ku dizukama, ku jokota.” [“Afastar-se é gelar; aproximar-se é arder”] E
essa era a que eu queria acender em vida minha, a liberdade do fogo: a
perigosa. “Mesmo que você ardes nesse fogo, tuas cinzas vão de falar por
ti. Porque o que é, é o que é!...” – a vida do homem: cinzas do ar. (Idem, p.
37)
Amadou Hampâté Bâ, usada como epígrafe ao ensaio intitulado “O eterno retorno”,
ancião a uma biblioteca e diz que “ (...) cada vez que um velho morre, uma biblioteca
em que faz uma retrospectiva de sua vida, entrelaça as experiências que circulam
nas “contações” de seu avô à sua própria narrativa. Ao relembrar os encontros com
(...) Jurara: um dia, se eu vou dar encontro no meu caminho, aquele que
nem meu avô, o do relâmpago-de-cobra, com a catana nas lutas pela terra,
tinha me ensinado, eu vou mas é me chamar: Kalunga. (VIEIRA, 2006,
p.56).
(...) a rajada de palavras de aviso, meu muito avô Kinhoka Nzaji, pelos
quimbos da memória, revoltava no meu sonho (Idem, p.29)
livro dos rios mergulha numa série de reflexões sobre momentos de sua vida como
Rios eram: o Lombiji, aquele que já foi rio do ouro, águas amarelas por
terras arenistas, onde que o bravo Kinhoka Nzaji viu por vez primeira um
quinzari de branco, que lhe chamavam era o capitão Kingandu d'Almeida, o
que nunca tomou banho na guerra, se lava era com cinzas e fogo.
Seu avô representa os anciãos que passam a sabedoria quimbunda para seus
identidade do guerreiro:
(...) Como avô meu, Kinhoka Nzaji, o que enfrentou o Kingandu nas altas
terras de Ambaka, encostou o general português com as costas no rio
Lombiji, ao meio-dia, cortou as cabeças de todas as sentinelas: “Sai-ku ima
itatu ia ngidiuanesa, o kia kauana ki nga k'ijiia...” [“Três coisas me
maravilham, a quarta não a conheço...”] – o caminho do barco no mar, o
caminho das águas nas sombras das verdes palmeiras na água
acastanhada de vermelho, por cima do rio, as águas passam, sombras que
permanecem... (Idem, pp.110 - 111)
fragmentada, vão surgindo várias estórias contadas por seu avô; e o guerrilheiro,
envolvido pela lembrança do ancestral, sente que os ensinamentos dos antigos não
ser. O narrador-protagonista não podia perder o rumo de sua luta, mas sentia medo.
neto fazem lembrar o conto “Nas águas do tempo”, de Mia Couto, publicado em
rio, num pequeno barco, junto ao seu neto, chama a atenção do mais novo para as
mundo que só podia ser visto com os “olhos que se abr[ia]m para dentro”:
(...) nós temos olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver
os sonhos. O que acontece, meu filho, é que quase todos estão cegos,
deixaram de ver esses outros que nos visitam. Os outros? Sim, esses que
nos acenam da outra margem. E assim lhes causamos uma total tristeza.
Eu levo-lhe lá nos pântanos para que você aprenda a ver. (...) (Idem, p. 16)
A função do mais velho, no conto de Mia Couto, era mostrar ao neto que os
“Rivandu ria ngiji, nguzu ia jimbandu...” [“A rebeldia do rio, a força das
margens...”] – meu avô Kinhoka, já descalço de seus versículos e tiros,
esquecia os rios da Babilónia e, profetando pelas Margens, havera de falar
só sua sabedoria quimbunda: a rebeldia dos rios. E corrigia, m'apertava no
nariz para mim fazer, e ele rir, pronúncia alheia, sulana:
“Ngalandula!...”(VIEIRA, 2006, p.16).
importância das tradições. Sua “fala” é marcada pela celebração da terra e dos
nas suas águas claras por esse riozinho acima prosperavam clandestinas” (Idem,
p.17).
N'O livro dos rios, Luandino Vieira recorda uma Angola onde os “ancestrais”
séculos de colonização.
revive, por meio das lembranças de seu passado íntimo – o tempo em que era
pelos seus saberes e sua fé, estava igualmente sujeito às leis cosmogônicas3 da
só escutava. Ou, ele: ‘Ensandeira...’ – e meu pai cuspia nas águas, fechava a cara,
não demitia palavra muxiconga, mas que, em terras de Ngola Kiluanji, é mulemba,
estórias. Era em torno dela que os sobas tradicionais se reuniam para discutir e
certa maneira, uma das faces do guerrilheiro Kene Vua, enquanto personagem-
sabedor das coisas da terra, de um pai, senhor dos caminhos dos rios, ainda que já
mistérios do mar, o narrador percebe que, no meio das suas “verdades”, ou melhor,
2
Os holandeses ocuparam parte de Angola entre 1641 e 1648. Apesar de breve, a “colonização” holandesa
logrou, entre outras particularidades, ganhar a confiança de vários soberanos locais – sobretudo a rainha do
estado da Matamba, Nzinga Mbandi – que resistiam à ocupação portuguesa.
3
Termo que abrange as diversas lendas e teorias sobre as origens do universo, de acordo com as religiões,
mitologias e ciências através da história.
84
Maurice Halbwachs, que, com muita propriedade, declara: “(...) quando um homem
esteve no seio de um grupo, ali aprendeu a pronunciar certas palavras, numa certa
ordem, pode sair do grupo e dele se distanciar. Enquanto ainda usar essa
(...) Aí, de novo, fechei meus olhos, apertei de esmagar as meninas deles,
queria ouvir as vozes outra vez. (VIEIRA, 2006, pp. 23 - 24).
Até ali, quando vou ter que entrar na mata do Kialelu para enforcar um
homem. Não vai sair o voo da jamanta-negra dentro da chuva para me
salvar, me dou encontro comigo mesmo, sentado em meus calcanhares,
espero a manhã. Só os ecos da voz do pregador, meu avô. Ecos
esfarrapados, roto e roído e rodeado de monandengues, esvaziando
sanzalas ao som do hungo e gargalo de garrafa. Mas isso, nessa hora, não
vai me servir de nada: a voz é outra – a gente faz a revolução. (Idem, pp. 37
- 38).
ainda em fuga de seus perseguidores, Kene Vua mergulha nas águas que
conservam parte importante da sua identidade. Essas águas são metafóricas: são
com o rio que conta a sua história, o guerrilheiro pode, enfim, experimentar fazer
parte do grupo que está no nascedouro da sua nação: “(...) nós, os que viemos com
Ngola Inene” (Idem, ibidem), tal como revela o sábio Kinhoka Nzaji.
anciãos são responsáveis por transmitirem experiências que estão além de sua
mais velho não é apenas o transmissor das memórias da família; somente mais
por uma frase em especial: “'o njila ia diiala mu’alunga...'” [“O caminho do homem na
morte...”]. Essa frase, apesar de traduzida, está longe de ser explicitada pelo
da descoberta:
ensinamentos do avô acontece quando Kene Vua é escolhido para ser o executor do
modo como surge o conflito que se inaugura, com a crise de consciência que insiste
imagem do velho Kinhoka Nzaji emerge e começa a ser repensada num contexto
específico.
87
No momento em que Kene Vua percebe que caminha ao lado da morte, pois
é o responsável por acompanhar o prisioneiro até o local específico onde este último
morte”.
quando os pés de Kene Vua são obrigados a se aproximar dos pés do traidor e,
tempo” (Idem, p. 46). Diante de uma experiência tão peculiar, a imagem de Kinhoka
investe contra essa ausência de som que insiste em emoldurar a imagem de seu
avô – “(...) [mas] eu queria ainda ouvir” (Idem, ibidem) –, por isso ele o recria em sua
e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos
Quando Kene Vua clama pela “voz” do avô, fica comprovada a importância
exigências do passado rememorado, uma vez que passa a ser reimaginado por ele.
que são clamadas por Kene Vua, mas esse processo não anula a versão original em
quimbundo, registro imprescindível para quem busca as águas da sua própria fonte
identitária, pedra bruta a ser ornamentada com as marcas dos dias atuais:
E eu, eu mesmo, o que vivo está quando outras folhas que lhe
nasceram comigo esvoaçaram?... Banana verde, banana madura,
banana seca, tudo é espera. Quando ainda é, e só é mas é para ser o
que ainda não é: pó, meu avô – “o njila ia holokoko bu diulu, o njila ia
ulungu mu’axaxi ka kizanga kia kalunga, o kia katatu ki nga ku ijia”: o
caminho do homem na morte.
veio e ao pó ele retornará, como dizem pastores e padres, respaldados pelo texto
bíblico: “(...) até que te tornes à terra; porque dela fosse tomado; porquanto és pó, e
(vida) e o fim (morte) são marcos que guiam o homem em sua trajetória. Para as
trajetória em De rios velhos e guerrilheiros – O livro dos rios. Não restam dúvidas de
intransferível. Já que não podemos desvendar como será o final da vida humana, o
grande desafio de nossa existência consiste em tentar descobrir onde fica o início,
Transitam pelos inúmeros desvios de seu mundo, que o guerrilheiro reconhece como
um rio, espaço fluido entre um destino que precisa ser desvendado e alcançado na
morte e uma nascente que se pode ter perdido entre as pedras que já rolaram.
O percurso dos rios resguarda as vozes dos ancestrais que insistem em ser
90
ser seguidos na reconstrução de um país que está para nascer. Rever, com os olhos
disseminados por entre algumas das colunas libertárias mais radicais – que insistiam
sociedade angolana.
princípios ensinados, sobretudo, por seu avô, Kinhoka Nzaji; as palavras e ações de
seu pai, Kimôngua Paka; e também as do velho capitão do mar, Lopo Gravinho.
alguma forma, fazem com que Kene Vua, no presente vivido, se questione, em
equilíbrio existencial.
prosa poética, por meio da qual o autor deixa emergir o lirismo de uma narrativa que
escrito.
intentará, ao longo de sua peregrinação, fazer uma leitura das histórias contadas por
seu interlocutor, bem como juntar as peças que escorrem das lembranças de
por imagens que parecem se dissipar, mas que quase sempre retornam. É a voz da
nação angolana que procura entender os elementos que constituem as suas várias
faces.
guerrilheiros – O livro dos rios, nos deparamos com um escritor diferente daquele
ficcionalmente, nas lembranças de Kene Vua como traços biográficos seus, que, em
rios.
O Livro dos Rios, com os resgates do passado pelo viés subjetivo, não
resultaria necessariamente, como não resultou, em individualização
redutiva. Constituiu-se num símile factício, não de memorização mecânica
de fatos acontecidos, mas de uma construção generativa de História. E, na
medida em que é extensiva a uma comunidade, a uma nação, rola nos
carretéis da memória coletiva. (SANTILLI, 2007, texto inédito)
Luandino, fez deste primeiro volume da série De rios velhos e guerrilheiros uma obra
deixar envolver pelos trâmites da memória, cria, num primeiro instante, um obstáculo
para a leitura crítica da obra. Dizemos isso, porque o livro é, em grande parte,
presentes na construção narrativa d’O livro dos rios. Cabe, aqui, lembrar alguns
a tradução. Diante desse fator complicador, a obra exige do leitor um maior poder de
velho mito bíblico se inverte, a confusão das línguas não é mais uma punição, o
sujeito chega à fruição pela coabitação das linguagens que trabalham lado a lado: o
dos obstáculos lançados à leitura, percebemos que, para Luandino, cada assunto,
cada tema, necessita de uma estrutura específica, estrutura esta que, num dado
(...) tudo ele desfazia com devagar. ‘Malembe–lembe...’ – ensinava meu pai
ao sentir o discurso. (...) Que até hoje eu não sei como era essas patrunhas,
ele era natural de Portugal; só que, de sóis e sal do nosso mar das ilhas e
do sujiverde das margens, cadavez o fumo do vapor fluviário, palúdico,
tinha-lhe agarrado aquela cor de açúcar mascavo, se confundindo todo ele
95
ditado pela norma culta, já que um dos seus objetivos principais consiste em
Nos discursos das personagens Kene Vua – ora Diamantininho, ora Kapapa
–, Kinhoka Nzaji, Lopo Gravinho, Kimôngua Paka, entre outras, são ativadas
com que Kapapa e o velho Kinhoka Nzaji, por exemplo, figurem como possíveis
povoam a diegese.
uma vez que este se mescla e se confunde com aquilo que deseja, com aquilo que
gostaria de ser e com o que é preciso contar, para exorcizar uma série de dúvidas,
linguagem. Assim, pode-se dizer que a maneira hermética pela qual o texto se
É importante perceber que Kene Vua, Kapapa e o velho Kinhoka Nzaji são
identidade angolana e que possibilitam, num sentido particular, dado a sua fluidez
lembranças de Kene Vua, ora como o menino Kapapa, ora como o guerrilheiro.
De fato, a ordem cronológica dos dias e das noites, dos meses, das
estações do ano opõe-se a uma outra ideia de tempo, àquele que permite a
individual e coletiva. Tal tempo estabelece uma tensão que provoca uma
97
O ritmo que acompanha o ir e vir dos rios não é igual ao ritmo das
livro dos rios. Estas vivem em outro tempo, um tempo que já foi e é impossível ser
identidade nacional imaginada, que ainda lateja nos tempos pretéritos. Nesta obra, a
presente nas narrativas dos três personagens que consideramos principais: Kene
Vua, Kapapa e o velho Kinhoka Nzaji. Esse espaço fluvial, tal como Kene Vua,
nasce, cresce e vive com o objetivo último de alcançar o mar, compartilhando com o
criam, fertilizam, fazem crescer e renovam o mundo, mesmo que se encontrem num
98
anterior; pressentimos a instabilidade desse seu tempo que ameaça terminar. Por
penas, é dominado pela alegria de ter conseguido resistir, como um rio que
pode ser percebido por meio dos sentidos: pode-se cheirar, tocar, ver, ouvir e provar.
Por isso, preenche a mente e a memória dos que conviveram com ele, obrigando
cada um ao retorno e à eterna contemplação dos seus mistérios. Kene Vua deixa
transparecer, em suas declarações, uma ideia do rio como algo ligado à origem e ao
fim de sua existência. Por intermédio das relações entre as personagens Kene Vua,
esperança. Kene Vua, no presente, lembra-se dos tempos em que era denominado
Kapapa; invoca, assim, na busca de suas memórias, um sentido para sua vida, de
restringir o seu discurso às regras estáticas da prosa mais canônica. Afinal, em suas
aspectos, entre outros, que também contribuem para que a construção romanesca
De rios velhos e guerrilheiros – O livro dos rios se torne uma experiência única,
narrador-poeta.
sua “fala” penetra na aventura da língua, das palavras e das imagens, transporta o
perfil das demais personagens que integram seu discurso e sua personalidade,
patrão português:
Eu tinha só nove anos mas já sabia que não deve de se cuspir contra o
vento – calava. Meu pai, vinha; o capitão era muito meticulento, tudo ele
desfazia com devagar. “Malembe-lembe...” – ensinuava meu pai ao sentir o
discurso. E Lopo Gavinho, preciosista, areava as balas, cinza e limão.
Todas. Sentado num fardo de roupa usada, frente a frente com seu piloto
negro de mãos atadas na roda do leme, areava meticulosamente as seis
cegas balas do seu revólver. E ensinava: “É preciso muito respeito pela vida
que se quer tirar...” Meu pai tossia de mentira, me olhava. E ele, o patrão do
barco, passava sua mão calejada na minha carapinha e emendava: “Não é
lembelembe, que se diz. Vê lá se aprendes português!... É: com mil
delongas, palavras de bento-petrunhas...” (Idem, p.32).
(...) este Batuloza, sabotador como ele teimava de se chamar, era mesmo
muito sapador, honesto e competente. Tinha faro para trilho antes de ser
escolhido ou patrulhado, adivinhava a picada, o aquele caminho, rota de
unimogue e itinerário da tropa só pelo riso das patrulhas, modo de fumar –
com ele, nossa secção embosqueava muito bem, recuperávamos material.
E, agora, ia morrer. (Idem, 47)
entre ambos, são revelados momentos de orgulho e desonra. Nesse ir e vir das
profunda e transmutada.
(só que eu fituquei: certo, correcto, dacordo, narmal: Kalunga eu até seria
se; cadavez, um dia outro, outra vida; mas meu mar ainda estava morar é
dentro de mim, marulho secreto; mesmo que em verde mata sofro de maré-
vazia de saudade, ainda tenho meus ocos, buracos e pedras (...) (Idem, pp.
123 e 124)
ímpar, por meio da articulação de uma perspectiva plural, que singulariza o romance
O livro dos rios, questionar consciências e atitudes, especialmente, por meio de seu
protagonista.
tempos coloniais. Fica clara, nas “estórias” enunciadas pelo guerrilheiro e pelas
afastamento das línguas nacionais. Ao longo da leitura da referida obra, não restam
de fala angolana: “Capitão Lopo se defumava todo ele, sirenava o vapor do apito, as
estética narrativa d’O livro dos rios: “Apalpei com meus olhos, de novo, aquele
Neste contexto, os elementos naturais assumem capacidades que não lhes são
(...) Porque aquela ilha das mulembeiras, naquele antes da tarde, estava
103
das forças e é por isso que tudo “fala” no universo. Visto isso, percebemos que o
que transforma e concretiza, tem uma carga semântica muito complexa e cheia de
Três coisas maravilham na minha vida, a quarta não lhe conheço: voo da
jamanta-negra no ar de chuva; rasto da jibóia no sussurro da pedra; sombra
das águas em fundo do mar – caminho do homem na morte... (Idem, p. 23)
“Rivandu ria ngiji, nguzu ia jimbandu ...” ‘A rebeldia do rio, [é] a força das
margens ... ‘ (Idem, p. 16)
104
poesia de uma linguagem que opta pelas rupturas e margens. Para Walter Benjamin,
cujo pensamento filosófico opera com fragmentos e rupturas, “os provérbios são
como a hera abraça o muro.” (BENJAMIN, 1994, p. 221). Já para Honorat Aguessy,
transgressores.
como um dos pontos centrais da narrativa, e dialogando com um processo que faz
É por meio da imaginação criadora que desejos antigos podem vir a ser
guerrilheiros – O livro dos rios narra a história de luta de Angola, mas, em diversos
biografia.
narrador”.
(...) Hoje, ainda baloiça toda a pequenina vida dele na minha consciência,
não guardo memória: fiz o que alguém tinha de fazer e o Kalukala, rio de
tantas matas e bases de apoio e acolho e passagem, já era minha
testemunha (VIEIRA, 2006, p.19).
Vua – como situações de infância experimentadas por Kapapa, ao lado de seu avô
seu avô no passado. Após a morte de Batuzola, aquela mesma memória passa a ser
aquelas memórias que outrora tiveram uma lembrança agradável a elas associada,
no momento presente, só fazem com que o narrador se recorde de seu avô Kinhoka
Nzaji e de seus ensinamentos; contudo, como este já não está mais junto de
Kapapa, as sensações que emergem no sujeito que narra são de desalento e falta
desastrosas.
Vua, sendo também responsável por costurar todo o texto romanesco. Embora a
narrativa de De rios velhos e guerrilheiros – O livro dos rios não seja um relato
seguinte citação:
simultaneamente, parece estar a imaginar uma ação que gostaria que acontecesse a
seguir: “naquele tempo” (Idem, p.44), “se fosse hoje” (Idem, p. 64). Parece que essa
voz anunciadora escreve sobre sua própria experiência dentro do espaço focalizado
4
Alguns teóricos denominam como autor implícito.
108
de amor à terra angolana. Esse amor pode ser percebido na narrativa quando a
suas lembranças para compor o romance, apesar de sua memória não ser, diversas
vezes, fidedigna àquilo que se passou ou não em sua vida. Dessa maneira,
Angola.
livros:
(...) realmente cabe aos próprios escritores, e que é um dever dos próprios
escritores, fazer evoluir os leitores para formas mais adiantadas de estrutura
narrativa, de literatura, porque nós, hoje, falamos com grande admiração da
literatura latino-americana moderna, que se tornou popular em todo o
mundo, e não é uma literatura fácil em termos de estrutura. É mesmo
bastante difícil. Ora, penso que tem que ser assim. O que é necessário é
109
que realmente o escritor não minta. Se eu tivesse visto que não havia uma
profunda identidade entre a estrutura da narrativa e sua matéria, então eu
devia realmente corrigir no sentido de as adequar (VIEIRA. Apud: LABAN,
1977, p. 33).
Luandino Vieira mostra-se bastante consciente de seu papel como escritor,
literatura. O autor expõe, de modo geral, que a forma e o conteúdo são importantes
sua própria ficção. De rios velhos e guerrilheiros – O livro dos rios representa um
pois é uma obra que rompe com o canônico e se revela repleta de (re) significações,
tanto no passado das lutas, como no presente em que escreve, Luandino Vieira
4. CONCLUSÃO
guerrilheiros – O livro dos rios, apresenta-se como um grande desafio para qualquer
crítico.
estabelecer um olhar crítico sobre este instigante livro de Luandino. O que dizer de
uma personagem-protagonista que, num instante, torna-se três – ora Kene Vua, ora
social e política.
Luandino não abre mão de ressaltar a importância da cultura como fonte criadora e
história moderna foram movidas por aqueles que estavam mais embrenhados na
cultura das sociedades e que, inversamente, não houve nenhum grande movimento
memória, simbólicos –, fica claro o questionamento principal desta obra, que não se
omite em momento algum: O que é ser guerrilheiro? Por que sou um guerrilheiro?
Mas "Eu, Kene Vua", sou um guerrilheiro?! "Eu, Kene Vua", na verdade, não seria
"Eu, Kapapa"?!
autoral propõe uma reflexão que dê relevância aos diversos pontos de vista e
interesse específico; tampouco, pensamos que tenha sido sua intenção oferecer-nos
social previamente estabelecido. Cremos que a narrativa de O livro dos rios nos
singular, mas sim plural – Kene Vua, Kapapa, Diamantininho. Foi, sobretudo, essa
112
imersão nas águas de Angola, ou melhor, nas correntezas dos rios de Luandino,
de uma nação que ele ajudou a criar e a reinventar, o autor trouxe para o plano
razão desses dados singulares, que reside grande parte de sua resistência enquanto
contradições e conflitos.
Nesse sentido, não podemos esquecer que uma das principais características
de sua escrita, desde A cidade e a infância até Nós, os do Makulusu, é mostrar, por
que habitam não só a obra de Luandino Vieira, mas a dos demais escritores
repensar a realidade histórica e social angolana a partir dos tempos de guerrilha. Por
singular relativo à destreza com a qual lida com essa linguagem. Esta última, a
Com base nas peculiaridades de cada uma das personagens que circulam
guerrilha e a ancestralidade.
forma decisiva para o país que vai sendo construído. Conforme constatamos, no
da memória, fortemente marcadas pelas tradições orais que fazem parte das gentes
significativamente, para levantar alguns dos muitos véus que encobrem obscuros
absolutamente questionadora, que não hesita em beber nas águas dos valores
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Rio de janeiro: ABE Graph Editora/ Barroso Produções Editoriais, 2003.
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