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Faculdade de Letras
Belo Horizonte
2018
Lorena do Rosário Silva
Belo Horizonte
2018
Para Ana, Antônio e Juliana, minhas raízes
nesse mundo.
AGRADECIMENTOS
Muitos foram os caminhos traçados para que este estudo tenha se tornado
possível: primeiramente, é necessário agradecer às instituições cuja participação consta,
ainda que indiretamente, desde os momentos iniciais até os momentos finais desse
trabalho: agradeço à CAPES, pelo financiamento recebido e pelo apoio institucional; à
UFMG e ao Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras, por
toda a estrutura científica e tecnológica fornecidas durante o meu vínculo acadêmico.
Não poderia estar mais agradecida a minha orientadora, Profª Anna Palma, por
todo o tempo e a atenção despendidos a esse trabalho e a minha trajetória como estudante,
durante o período em que frequentei as disciplinas. Agradeço-lhe também pela paciência
em lidar com o meu processo de escrita, pela persistência no auxílio dos materiais de
pesquisa, pelo interesse em se aproximar do meu objeto tão pouco abordado e pelos
conselhos e comentários realizados ao longo desse tempo.
A Calvin, Luan, Diego, Dayana e Jéssica pelo ouvido atento e amoroso durante o
meu processo de escrita e a tantas outras pessoas, as quais não menciono aqui
nominalmente pelo risco de esquecer algum nome, que se preocuparam, conversaram
comigo a respeito desse estudo e dividiram o peso do cotidiano, sou também imensamente
grata.
Como condenar o que é efêmero? As nuvens
alaranjadas do crepúsculo douram todas as
coisas com o encantamento da nostalgia; até
mesmo a guilhotina.
Ao longo dos últimos anos, a memória vem sido explorada por Milan Kundera
nos seus romances em tcheco por meio das suas relações explícitas com o passado e o
esquecimento. Com o início de seu ciclo francês, a partir dos anos 90, o autor inaugura
uma nova compreensão acerca da memória na narrativa: ela não apenas serve de remissão
ao passado como – eis aqui o objetivo de nosso estudo – também serve de elemento
essencial para a construção e a organização das narrativas. Com isso, a partir das imagens
pelas quais a memória foi evocada nos romances, A lentidão (1995), A identidade (1997) e
A ignorância (2000), identificamos e pudemos realizar um estudo referente aos efeitos
narrativos correspondentes: a memória como duração, a memória como espelho e a
memória como repetição. Para isso, passamos primeiramente por reflexões sobre os
estudos de memória nos mais diversos campos abrangentes: filosofia, literatura,
psicanálise; a partir das teorias de estudiosos como Aleida Assmann, Henry Bergson, Paul
Ricoeur, Freud, entre outros, a fim de obter uma compreensão mais delineada sobre a
memória e suas imagens. Em decorrência dessa compreensão, realizamos a análise textual
tendo por base os conceitos referentes à narrativa e sua análise contidos nas teorias de
Gérard Genette, Jonathan Culler e David Lodge, para que se pudessem visualizar os efeitos
da memória da narrativa, empregados por Milan Kundera durante a escrita de seu ciclo
francês.
Over the last few years, memory has been explored by Milan Kundera in his
Czech novels through his explicit relationships with the past and oblivion. With the
beginning of its French cycle, from the 90s onwards, the author inaugurates a new
understanding of memory in the narrative: it not only serves as a remission of the past as -
this is the purpose of our study here - it also serves as an essential element for the
construction and organization of narratives. With this, from the images for which the
memory was evoked in the novels, The slowness (1995), The identity (1997) and The
ignorance (2000), we identified and could carry out a study related to the corresponding
narrative effects: memory as duration, memory as mirror and memory as repetition. For
this, we first go through reflections on memory studies in the most diverse fields:
philosophy, literature, psychoanalysis; from the theories of scholars like Aleida Assmann,
Henry Bergson, Paul Ricoeur, Freud, among others, in order to obtain a more detailed
understanding about the memory and its images. As a result of this understanding, we
performed the textual analysis based on concepts related to the narrative and its analysis
contained in the theories of Gérard Genette, Jonathan Culler and David Lodge, in order to
visualize the effects of the memory of the narrative, used by Milan Kundera during the
writing of his French cycle.
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 9
1. A ESCRITA EM MILAN KUNDERA ................................................................................ 12
1.1 A lentidão ........................................................................................................................ 24
1.2 A identidade .................................................................................................................... 25
1.3 A ignorância .................................................................................................................... 26
2. AS IMAGENS DA MEMÓRIA E SEUS EFEITOS ........................................................... 28
2.1 Revisão sobre estudos da memória ................................................................................. 28
2.2 As imagens nos romances do ciclo francês .................................................................... 37
2.2.1 A lentidão ................................................................................................................. 37
2.2.2 A identidade ............................................................................................................. 45
2.2.3 A ignorância ............................................................................................................. 55
3. RELAÇÃO ENTRE A ESTRUTURA NARRATIVA E AS IMAGENS DA MEMÓRIA 69
3.1 A memória como duração ............................................................................................... 77
3.2 A memória como espelhamento ..................................................................................... 88
3.3 A memória como repetição ........................................................................................... 100
CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 115
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 117
9
INTRODUÇÃO
1
As datas dos livros referidas acima são da publicação original em francês; aqui, no Brasil, usaremos as edições
da Companhia das Letras e Companhia de Bolso: A lentidão (2011), A identidade (2009) e A ignorância (2015).
É importante mencionar isto, visto que nesse estudo realizamos as leituras dos romances tanto na versão original,
quanto na versão traduzida em português – de modo que nas páginas do desenvolvimento se encontrarão as duas
versões para melhor entendimento dos exemplos citados.
10
na República Tcheca, bem como a abordagem dos exílios e das dificuldades perante a
invasão comunista nos anos 60.
Em seus romances anteriores, Kundera realiza as suas reflexões e,
consequentemente, as de seu narrador e de seus personagens por meio de um trabalho com
imagens, que ora aparecem em forma de oposição, ora aparecem em forma de realce no
meio da trama de seus romances. Nos romances aos quais este estudo se dedica, percebe-se
tal trabalho imagético no que diz respeito às reflexões feitas em torno da memória. Sendo
ela um espaço que permite infinitas demarcações e manifestações, a sua abordagem em
conjunto com os estudos literários permite o desenvolvimento de uma infinidade de
trabalhos, tornando-se um campo fecundo para as pesquisas.
Essa não é a primeira vez que as narrativas em análise aqui são estudadas:
podemos encontrar alguns trabalhos nos quais elas apareçam2, porém há neles um destaque
para um ou outro elemento do texto, deixando de lado a questão da análise narrativa. Nesse
sentido, nosso estudo se mostra no mínimo diferente, pois ainda que nos aproximemos da
memória como um elemento importante no texto, seguimos outra direção ao decidirmos
atribuir a ela a função essencial de operar como uma imagem que organiza e auxilia na
construção de significados e da estrutura dos três romances.
Tendo realizado tais considerações, importa-nos comentar a respeito do que será
realizado nas páginas dos capítulos a seguir, são eles: 1) a escrita em Milan Kundera; 2) as
imagens da memória e seus efeitos; e 3) relação entre a estrutura narrativa e as imagens da
memória.
Em “A escrita em Milan Kundera” será abordada a construção de Milan Kundera
como romancista, bem como a relação entre seus romances tchecos e a memória, alguns
trabalhos realizados aqui no Brasil a respeito de seus livros, além de uma explanação sobre
as considerações e as reflexões do autor sobre suas obras e seus temas. Ademais, também
nos dedicaremos a dar um pequeno resumo das narrativas abordadas, com o intuito de
fazer com que elas estejam conhecidas no momento da análise.
“As imagens da memória e seus efeitos”, como o próprio título nos leva a inferir,
tratará a respeito da identificação das variadas remissões à memória que conseguimos
encontrar nas narrativas, bem como também da atribuição e da percepção de uma imagem
dessa memória, dotando-a de uma significação e uma correspondência nos três romances.
2
Encontramos, no período de realização desse estudo, poucos trabalhos referentes à narrativa A ignorância
realizado em língua portuguesa – tal número pode ser justificado pelo pouco tempo em relação ao lançamento
do romance, que se deu nos anos 2000. Nas outras línguas, tais como o inglês e o francês, há um número maior
de estudos, porém ainda assim, se contrastarmos com o ciclo tcheco, a quantidade não é significativa.
11
Sendo assim, a memória será vista pelo efeito de duração ou espelhamento ou repetição –
correspondentes a cada uma das narrativas.
Por último, em “Relação entre a estrutura narrativa e as imagens da memória”
realizaremos a análise textual, tendo como material de estudo as considerações sobre o
discurso da narrativa de Gérard Genette e as reflexões tanto de Jonathan Culler quanto de
Davig Lodge sobre elementos estruturais que asseguram a forma do texto literário. O que
se forma, a partir disso, é um entendimento de que as imagens de duração, de
espelhamento e de repetição podem ser vistas como responsáveis pela organização da
estrutura das narrativas, por meio da construção dos personagens, do ordenamento dos
capítulos, do modo como o narrador se manifesta, entre outros.
12
carga positiva, criando uma espécie de tensão e relaxamento que criam essa ambivalência
significativa. O romance se singulariza por causa disso.
5
Uma vez que o autor profere a seguinte afirmação em dado momento da narrativa: “Este livro todo é um
romance em forma de variações” (1987, p.185).
16
Se a leveza é percebida por ele como um grande tema que atravessa todos os seus
romances e é vista como uma variação, podemos afirmar também as relações entre a
memória e o esquecimento como outros grandes temas que percorrem as narrativas
kunderianas. Faz-se necessário esclarecer que, além disso, o trabalho da literatura com a
memória também está presente na maioria da tradição romanesca do século XX, na qual
Kundera está automaticamente inserido ao se autodenominar um romancista. Há inúmeros
estudos que ligam os romances kunderianos em tcheco a esse viés memorialista: primeiro,
porque é quase impossível desvincular a história pessoal do autor com os seus escritos e
procurar ressonâncias de um no outro; segundo, porque boa parte de suas narrativas
engloba alguma reflexão sobre a História e o seu peso na existência humana.
Independentemente de que o número de estudos realizados em língua francesa e
língua inglesa sejam ainda os mais numerosos em relação à fortuna crítica de Kundera de
modo geral, é notório saber que essa relação não se trata de uma novidade nos estudos
brasileiros já realizados em torno das obras: mesmo em pouca quantidade, as pesquisas
estabelecem os contatos entre a escrita e a memória, seja pela presença da memória como
pano de fundo argumentativo, seja por meio de conceitos que se relacionam e refletem com
e sobre os personagens da narrativa. Isso nos faz considerar a memória como uma das
principais linhas de que o autor se utiliza para tecer toda a trama de seus romances.
É o que aponta o estudo o de Wilton Barroso (2008)7, que estabelece
proximidades entre memória e identidade, a partir da reflexão em torno da voz dos
narradores de alguns romances de Kundera, passando por considerações a respeito da
memória coletiva e da memória histórica. Barroso parte do conceito de Don Juan, para
observar nos romances como os personagens, egos experimentais, realizarão esse
intercâmbio entre amor e desejo a partir de suas memórias. Ademais, ele chama a atenção
para uma distinção que percebemos claramente nas leituras das obras: a diferença entre
6
[…]through the particular style of variation form in which Beethoven excelled, this abstract interior infinity can
not only be observed, but journeyed through and investigated as readily as the infinity of more physical spaces,
as successive variations on a theme proceed from the simplicity and coherence of that theme’s outside surface
and proceed deeper and deeper into and through the interior that stretches boundlessly beneath it.
7
Para isso, ver: A voz filosófica do narrador kunderiano.
17
memória e história ou, em outros termos, entre dimensão histórica da existência humana e
Ciência da História, respectivamente.
Essa tensão ocasionada pela insistente procura dos detalhes esquecidos “pelos
historiadores oficiais” já nos remetem a uma relação com a memória, uma vez que a ela8
caberia uma voz não oficial, uma voz que não seria privilegiada pelas instituições, ao
contrário da história ou Ciência da História, que seria vista como algo absoluto e oficial.
Podemos mencionar também o estudo de Rosimara Silva9 a respeito dos signos
da memória presentes nos romances kunderianos. Ela se propõe verificar a influência das
memórias individuais no processo de criação literária do autor tcheco, visando a
estabelecer formas de contato entre as memórias empregadas pelo narrador Kundera e as
memórias do sujeito Kundera, um exilado político que teve de deixar para trás o país, os
amigos e a família. Tudo isso, partindo do pressuposto de que o autor se apodera de certos
elementos, emprestados de suas memórias, para a construção de um universo literário no
qual as palavras assumem diversos significados na delimitação do humano e de suas
percepções de realidade.
8
Segundo Pierre Nora, nas suas reflexões sobre os dois conceitos contidas no ensaio Entre memória e história: a
problemática dos lugares (1993).
9
Para isso, ver: Os signos da memória em Milan Kundera (2011).
10
Conceito cunhado por Maurice Halbwacks (1990), de vital importância para os estudos sobre a memória, que
consiste na observação da memória como criação coletiva, um produto social que é repassado sucessivamente
entre as gerações e pode ser visto como representativo de um grupo (grosso modo).
18
que fazem lembrar a trajetória pessoal de Milan Kundera. O que faz com que seja
impossível dissociar ou limitar em até que ponto a voz do narrador/autor é a voz de
Kundera e vice-versa. Tais memórias aparecem nas características e nas evoluções dos
personagens em primeiro plano ou, até mesmo, no contexto externo vivenciado por eles ao
longo das narrativas: um exemplo perceptível seria a referência ao regime totalitarista nos
romances A brincadeira (1967), A insustentável leveza do ser (1984), entre outros.
Há ainda o estudo realizado por Verônica Maria Biano Barbosa11, no qual a
memória é evocada a partir das suas relações desenvolvidas com a construção de uma
identidade efetivada pela língua, explorada dentro do romance A ignorância de Milan
Kundera. Nesse livro, que será mais bem desenvolvido ao decorrer da dissertação, por se
tratar de um dos romances estudados, é tematizada a responsabilidade da memória na
tessitura das identidades dos dois personagens principais, nas suas narrativas de retorno do
exílio:
É importante trazer esse estudo de Barbosa como uma referência nesse momento,
uma vez que é um dos poucos estudos brasileiros, senão o único, encontrado por nós, que
traz como ponto central de argumentação um dos romances mais recentes do ciclo francês
de Kundera: A ignorância. Por ciclo francês, temos os livros publicados durante o período
de exílio na França12 e em língua francesa, tendo sido escritos entre os anos 90 até os dias
atuais: A lentidão (1995), A identidade (1997), A ignorância (2000) e A festa da
insignificância (2014). Com exceção desse último13, os outros romances são parte
11
Para isso, ver: Estudo sobre a (re)construção da identidade por meio da língua em Milan Kundera, 2013.
12
Ao contrário de alguns romances que foram escritos em tcheco, em um momento inicial do exílio de Kundera
na França, como O livro do riso e do Esquecimento (1979), A insustentável leveza do ser (1984), A imortalidade
(1990).
13
A decisão de não incorporar esse livro em nossa análise parte de dois princípios: em primeiro lugar, a memória
(razão que ordena boa parte desse estudo) não aparecerá de maneira substancial ao longo da narrativa,
dificultando, portanto, a compreensão de uma imagem de memória que se relaciona com a estrutura textual; em
segundo lugar, pelo simples motivo de que mais uma análise teria de ser realizada e isso demandaria um espaço
e, possivelmente, um tempo maior para a sua elaboração.
19
14
Tal fato decorre do interesse de Kundera em realizar as leituras das traduções de seus romances e da
constatação de que as versões traduzidas encontradas por ele não eram fiéis ao que ele se propunha. Mais uma
vez, fica clara a intenção do autor no cuidado com o controle das palavras escritas e atribuídas a ele. Sem
mencionar que, e isto é uma hipótese feita por nós sem nenhum estudo acadêmico realizado, a escrita em francês
possibilita uma melhor difusão da obra do romancista, uma vez que a literatura de língua francesa possui, na
literatura mundial, um grande prestígio graças a notáveis e difundidos autores franceses.
15
Devemos também lembrar que tal diminuição possa corresponder, ainda, a uma adaptação por parte do autor
na escrita da língua francesa – algo que reflete uma possível insegurança, o que é bastante compreensível.
20
Conto tudo isto para dizer que não é de minha parte nem coquetismo
supersticiosos com um número mágico, nem cálculo racional, mas
imperativo profundo inconsciente, incompreensível, arquétipo da forma,
do qual não posso escapar. Meus romances são variantes da mesma
arquitetura fundamentada sobre o número sete. (KUNDERA, 1988, ano,
p.79)
Ora, se o número sete é percebido por ele como um arquétipo ao qual ele se
encontrava ligado de forma inconsciente e absoluta, a mudança para a não divisão nesse
número significaria uma quebra poderosa de paradigma e de submissão a essa regra, algo
que está diretamente ligado também à nova linguagem de seus romances. Poderíamos ver
os romances do ciclo francês como uma tentativa de reinvenção de si? É a questão que nos
rodeia e que até então não encontramos em nenhuma pesquisa já realizada sobre a obra
dele.
Ademais, os três livros a serem analisados, parecem trazer para além de
transformações na parte quantitativa (tamanho da edição, volume de capítulos, divisões,
nomeações, etc.), uma série de diferenças quanto ao conteúdo: não que as palavras-temas
tenham desaparecido ou perdido a sua força perante as narrativas, pelo contrário, elas
continuam sendo simbolicamente fortes frente aos textos em que se encontram. Porém,
uma nova nuance se nota e é o que objetivamos mostrar nesse estudo: elas podem ter
influência na arquitetura da estrutura dos romances. Essa afirmativa de uma atenção
especial em relação ao modo como a estrutura se organiza ganha respaldo justamente
quando a colocamos frente às seguintes palavras do autor, no que dizia respeito à clareza
de divisões nos seus livros até então escritos:
[...] Permita-me mais uma vez comparar o romance com a música. Uma
parte é um movimento. Os capítulos são compassos. Esses compassos são
ou breves ou longos, ou então de duração muito irregular. O que nos leva
a questão do andamento. Cada parte em meus romances poderia trazer
uma indicação musical: moderato, presto, adagio, etc. (KUNDERA,
1988, p.80)
O trecho acima merece um pouco de atenção pelo fato de o romancista fazer uma
comparação de seus romances com os movimentos de uma peça de música clássica; porém,
vale lembrar que os romances referidos são todos constituintes do ciclo tcheco e às suas
divisões correspondentes. Quando Kundera resolve se aventurar pela escrita em língua
francesa, seus romances, ainda que preservem algumas características dos anteriores, como
a variação por exemplo, parecem trazer um tipo diferente de musicalidade, algo que pode
ter a ver também com a temática da modernidade explorada por ele nas narrativas: somos
invadidos por várias vozes que se intercalam e criam efeitos de narração desempenhados
por elas. Não há mais a presença de um todo organizado e claro, de modo que tudo de certa
forma se harmoniza organicamente. Kundera parece estar não mais querendo colocar uma
ordem no caos, mas sim criar literariamente um caos capaz de gerar o efeito da
modernidade.
Tal compreensão é muito sintomática porque coloca os dois ciclos como um
contínuo de exploração das maneiras de vivenciar a experiência humana, nossa condição
de existência. De modo que se o ciclo tcheco corresponderia às reflexões/divagações sobre
22
Quanto ao que fizemos nesse trabalho, nós pudemos constatar que certos
traços, certas características, bem como certos temas, retornam a cada
romance, cada protagonista. Isto nos permitiu estabelecer o que nós
podemos chamar os <leitmotiv> kunderianos, isto é, os sujeitos principais
de diversos romances kunderianos. (tradução nossa) (VYHLÍDALOVÁ,
2006, p.92) 16
Essa constatação da continuidade de traços nos dois ciclos nos mostra por outro
lado que, embora hajam diferenças marcadas entre eles, há também uma continuidade no
que diz respeito à intenção do autor em referenciar, mesmo que implicitamente, narrativas
dentro de narrativas. De modo que todos os seus romances seriam capazes de mostrar por
variadas lentes a sua obra e que ela seria caracterizada justamente em função dos
elementos repetidos ou referenciados: há em Sabina algo de Tamina, enquanto por sua vez
há em Thomas algo de Ludvik e assim sucessivamente.
Retornando ao estudo de Tim Jones mencionado logo no início desse capítulo,
Slowness, Identity and Ignorance: Milan Kundera’s French Variations, constatamos
também a presença de elementos responsáveis por conectar as narrativas entre si, as tais
chamadas variações de lentidão, identidade e nostalgia. Nessa investigação, Jones
relaciona todos os romances de Kundera a cada uma das três variações por ele
estabelecidas:
16
Au fur et à mesure que nous avons procédé dans ce travail, nous avons pu constater que certains traits,
certaines caractéristiques, de même que certains thèmes, revenaient avec chaque roman, chaque protagoniste.
Ceci nous a permis d’établir ce qu’on peut appeler les «leitmotive» kundériens, c’est-à-dire les sujets principaux
de divers romans kundériens.
17
These, then, are Kundera’s three French novels. But variations on slowness, identity and ignorance have
played out in major and minor key throughout Kundera’s Czech oeuvre, long before their taking centre-stage in
the three novels that carry their names. None of these texts are exploring new themes unique to them, only
placing themes covered elsewhere for the first time in the foreground in a way that plays out, more overtly and
intensely than in any of the previous variations, through the readers’ interactions with and concretizations of the
texts themselves. For Kundera’s three French novels are ultimately novels that know that they are approaching
the final stages of their author’s novelistic project.
24
Para ele, as conexões que são estabelecidas entre os romances escritos em francês
alcançam as obras mais antigas de Kundera, antes mesmo de se configurarem como temas
a serem desenvolvidos em um livro próprio. Isso merece nota, uma vez que o ciclo francês
não tem recebido, por parte da crítica, a mesma atenção do que os outros romances tchecos
receberam, pois é notável a diferença tanto na materialidade dos livros (quantidade de
páginas, divisões de capítulos, algo já mencionado anteriormente), quanto no conteúdo dos
livros (os conceitos se apresentam de forma mais diluída ou parecem operar de forma
diferente no corpo do texto).
Essa investigação, que se realizará nos capítulos seguintes, adiciona um novo
olhar sobre os estudos kunderianos do ciclo francês, unindo a memória à teoria narrativa,
algo que, de acordo com nossas leituras sobre os romances, pode abrir caminhos para
pesquisas posteriores a respeito das relações entre memória e escrita em Milan Kundera.
Observar a maneira pela qual os textos parecem se construir em torno dessa memória, que
aparece de forma materializada no texto por meio de imagens e até mesmo indiretamente
pelas reflexões sobre a identidade, é a nossa principal questão e o nosso principal trajeto
dentro desse universo recheado de significados que constituem as obras romanescas desse
autor. Antes, é necessário que realizemos uma breve apresentação das narrativas.
1.1 A lentidão
descanso de uma noite do narrador e de sua esposa Vera em um chateau, onde está sendo
realizado o encontro de entomologia do qual participam Chechoripski, Vincent,
Immaculata, Berck, Julie e o cameraman. Esse chateau é, ao mesmo tempo e
simbolicamente, visitado por Madame T., seu cônjuge e um cavalheiro que se passa por
amante aos olhos de seu marido. Com a duração de apenas uma noite, ambas as narrativas
tratam do erotismo da figura do dançarino, seja frente às câmeras, ao seu círculo mais
intimo ou até a si mesmo. Além disso, ao longo de toda a narrativa surge, como outro tema
a ser tratado, a passagem e a duração das coisas, todos eles contrapostos à dualidade
“memória/esquecimento”, símbolos das reflexões sobre a modernidade e a sua relação
existencial com o tempo e seus efeitos.
Enquanto o cavalheiro se submete aos caprichos e às regras de desfrute erótico
impostas por Madame T., durante o momento em que passam juntos – etapas bem
pontuadas e divididas por ela a fim de que a noite passasse tal qual um roteiro de uma
aventura –, Milan e Vera descansam e tentam dormir em seu quarto. Simultaneamente,
Chechoripski tenta realizar um discurso perante os seus colegas acadêmicos e se depara
com a distância imposta pelo destino e pelo desdém que é recebido. Immaculata também
tenta se aproximar de Berck, antigo colega e admirador seu que, no entanto, possui agora
asco por ela. Ainda, por último, temos Vincent que ensaia um encontro sexual com Julie,
garota que conheceu durante o encontro de entomologia. Todos eles estão a desempenhar
diversas ações e reflexões no momento da narração, algo que faz com que percebamos o
cuidado de Kundera em produzir um romance que represente a modernidade a partir das
tentativas, de fato.
1.2 A identidade
1.3 A ignorância
O terceiro romance escrito em francês pelo autor e o último livro a ser estudado,
nessa pesquisa, possui 53 capítulos de curta duração, mais ou menos a mesma quantidade
dos outros livros anteriores. A edição brasileira da Companhia de Bolso apresenta 128
páginas, enquanto a original da Gallimard apresenta 180 páginas. O narrador utilizado por
Kundera, assim como nos outros romances, é onisciente e faz uso intercalado do discurso
direto e indireto. Somos apresentados à narrativa de retorno de dois exilados, Irena e Josef,
27
após 20 anos afastados de seu país, a República Tcheca. O Grande Retorno, que a princípio
é visto como algo entusiasmante, torna-se relativizado: o entusiasmo é de quem? Quem
retorna é semelhante a quem sai? Em função disso, a nostalgia passa a ser explorada ao
longo da narrativa enfocando o quanto a volta dos personagens é agridoce, porque implica
em uma amputação simbólica de uma parte de si que é renegada pelo olhar de um outro.
Irena se incomoda com conhecidos, pois percebe neles o desinteresse por sua vida
no exílio, por sua história. Ela não se sente a vontade para compartilhar nada, uma vez que
sabe do silêncio de constrangimento e de incompreensão que receberá daquelas pessoas,
antes vistas como próximas. Da parte de Josef o mesmo ocorre, seu irmão e sua cunhada
não reconhecem a sua vida nos 20 anos de exílio, eles mal lhe fazem perguntas sobre a sua
esposa que morrera há pouco tempo, muito menos pensam nele quando fazem a partilha
dos bens que os pais deixaram – esse espaço adquire mais distância quando Josef, ao ir
visitar o túmulo dos pais, percebe no cemitério uma variedade de nomes dos quais sequer
fora informado da morte.
Kundera explora o deslocamento não somente físico e geográfico, mas, sobretudo,
afetivo que os personagens adquirem no momento do retorno a casa. É uma narrativa que
mais uma vez entra em contato com o tema da identidade: Irena e Josef sofrem com o
conflito de relações e visões que têm sobre si e sobre o mundo, com isso se sentem
sozinhos. Ao longo da narrativa, descobrimos também em um flashback que ambos se
conheceram na juventude e tiveram um breve relacionamento naquela época: Irena se
lembra disso quando o encontra anos mais tarde em um aeroporto na volta a Praga, porém
o mesmo não ocorre por parte de Josef, que a trata com educação devido ao esquecimento.
Ambos acabam tendo um encontro erótico que falha exatamente no momento em que ela
descobre o fato de Josef não a reconhecê-la; ainda assim, os dois dormem juntos. Na
manhã seguinte, ele, que está de partida para a Dinamarca, sai do hotel e deixa um bilhete
destinado a Irena, no qual a chama de irmã - reconhecendo o fato de que, no meio de tais
deslocamentos, só ambos compreendem o que vivenciam.
28
18
De acordo com o Ad Herenium, tratado retórico de autoria desconhecida, a arte retórica se dividiria em cinco
partes: inventio, dispositio, elocutio, memoria e pronuntiatio. Todas elas, grosso modo, corresponderiam à
confecção prévia do discurso a ser proferido.
29
Algo importante dessa nota acima merece ser sublinhado: quando a teórica passa a
falar sobre Cícero, ela faz menção à divisão entre memória artificial e memória natural,
distinção que é interessante no sentido de ressaltar que, dentro do campo da memória, já
começava a se formar uma compreensão acerca do meio de formação das memórias e que
para esse tipo de entendimento, a associação com o sentido da visão se torna algo
imprescindível e essencial. Contudo, tal tipo de perspectiva a respeito da memória como
uma arte, um domínio, uma virtude, passa a não ser mais lido como essencial na
atualidade; a memória passa de técnica ao entretenimento, da virtuose à patologia19,
gerando com isso o sentimento de que não há mais espaço para o treino do decorar, uma
vez que tudo se encontra documentalizado, concentrado em dispositivos – responsáveis por
contér, inclusive, uma capacidade de armazenamento muito superior à mente humana.
Pierre Nora, em seu texto Entre memória e história: a problemática dos lugares
(1993), traz um pouco dessa discussão na sua procura por pontuar as diferenças entre a
história e a memória como conhecimentos humanos: enquanto a história se dedica ao
passado, a memória se dedicaria ao presente; enquanto a primeira é institucionalizada e
absoluta, a segunda é relegada ao popular/geracional e fragmentada, dentre outras
considerações riquíssimas realizadas por ele. Ainda, segundo ele, a memória enfrentaria
uma crise que repercute na perda de referências do passado, em seu desaparecimento
devido à aceleração da história; logo, para que seu domínio fosse reestabelecido, seria
necessário o seu reavivamento por meio de locais de memória, onde ela poderia ser
evocada e trazida à luz do presente, seu local por direito.
19
Nessa expressão, tentei mostrar a visão de que há uma mudança perceptível no modo como a memória pelo
viés da memorização será explorada: da virtude de se decorar e saber falar sobre nomes e símbolos, digna de
admiração à patologia, representada pelo excesso de lembrança, o não esquecer – literariamente essa visão
aparece muito bem representada por meio do conto “Funes, o memorioso” de Jorge Luis Borges. Uma total
inversão de polaridades na questão do sentido.
30
Tal visão de que a memória se comunica com o presente, não mais com o
passado, é o grande diferencial que será explorado na contemporaneidade, sendo
responsável pela quebra que origina a distinção entre ars e vis, ou seja, entre técnica de
memorização e exploração potente de recordações e lembranças.
Um dos teóricos que se propôs a realizar o estudo da memória como vis é o
filósofo Henry Bergson. Em seu livro, Matéria e Memória, é realizado um trabalho que
visa à exploração do modo como as imagens são formadas na consciência passando pelos
questionamentos entre a percepção e a apreensão da memória: a lembrança pura, a
lembrança-imagem e o associacionismo – partes do livro que mais contribuem nesse
estudo proposto. É importante trazer a contribuição desse autor, porque ele consegue com
sua teoria realizar aproximações muito interessantes entre filosofia e biologia no que diz
respeito ao tema da memória; mais precisamente, quando ele detalha no segundo capítulo
sobre o modo de permanência e impressão (no sentido de imprimir, consolidar um objeto)
de imagens no espírito.
Para não cair no erro de ver a memória como um estado associativo (caracterizado
pela inércia e pela sucessão e multiplicação de elementos justapostos) e sim vê-la como um
conjunto de lembranças, seria necessário reconhecer a continuidade do devir e se colocar
em movimento contrário a ele; porém, tal movimento não consistiria em um trajeto de um
presente que vai em direção a um passado, mas sim em um passado que se representifica.
Com isso, a memória passa a assumir características de um movimento, um transitar entre
um presente e um passado.
Nessa linha contínua, tendo em vista a representação espacial do tempo, serão realizadas as
distinções entre lembrança, percepção e imaginação; a partir do trabalho com as sensações
e com os modos de sobrevivência e permanência das imagens no espírito. A lembrança se
apresenta como um surgimento de imagens do passado no presente, marcado por processos
de sucessões, assimilações e exclusões que entram em contato com a apreensão da
consciência de um mundo exterior, tornando-se novamente a percepção pura. Nesse
sentido, a lembrança pura é a manifestação do espírito na matéria, o que equivale dizer que
o domínio da memória é o domínio do espírito.
Outra perspectiva importante para esse estudo será a apresentada por Paul
Ricoeur, em seu livro A memória, a história e o esquecimento, que se propõe estudar a
memória – por meio de sua fenomenologia –, a história e o esquecimento (a partir do
enfoque do perdão); tudo isso, tendo em face o contexto do holocausto e as suas
implicações em relação à epísteme. No que diz respeito a esse estudo, interessa-nos o
enfoque que perpassa as conexões realizadas entre as formas de recordação e de escrita
dessa recordação, o que significa dizer propriamente as formas com as quais o passado se
inscreve e passa a escrever e modificar o presente. O conceito de lembrança ressurgirá com
esse autor a partir do momento em que ele se preocupa – e isso é um dos fios condutores
de seu livro – com as relações possíveis entre tempo e narrativa, vitais para as
compreensões de memória e de esquecimento.
Além disso, as imagens serão novamente evocadas sob a forma prima de
representação válida do passado, sendo vistas como presenças que se põem em ação,
mediante um esforço de não esquecimento. É justamente nesse sentido que se torna
necessária uma análise do conceito de imagem: para isso, Ricoeur parte da figura de Platão
e da sua tese de que a imagem pode ser percebida como uma segunda parte do verdadeiro,
semelhante à perspectiva de uma cópia:
Isso nos leva diretamente à questão da distância virtual existente entre o passado e
o presente e ao esforço de recordação que consiste em um trabalho de memória. Outras
32
relações ainda serão feitas no que diz respeito aos motivos que levam a evocação das
memórias e às interligações realizadas entre memória e imaginação, uma vez que ambas se
auto-evocam, operando uma como complemento da outra, principalmente quando a
memória se apresenta tal e qual uma rememoração.
No que tange ainda ao esquecimento, outro teórico se torna necessário para essa
nossa compreensão acerca da memória: Harald Weinrich, em seu livro Lete – arte e crítica
do esquecimento, realizará um trabalho focado no esforço de analisar o duplo
lembrança/esquecimento ao longo dos anos na literatura, na história, na filosofia e na
mitologia. Tendo como imagem norteadora o rio Lete que, segundo a mitologia grega, é
um dos rios do Hades cujas águas levavam ao completo esquecimento das vidas passadas,
o autor tecerá considerações acerca do papel da memória como outra face da mesma
moeda do esquecimento: lembra-se para não esquecer, esquece-se para não lembrar.
Esse vínculo, observado desde as mais remotas épocas por meio dos mais
variados textos, é o que nos permite pensar na memória como um trabalho incessante de
não esquecimento, um esforço de permanência. Além do mais, vale ressaltar que, assim
como ambas as ações fazem parte da mesma natureza e surgem do mesmo contexto de
morte, a fonte do esquecimento e a fonte da memória apareceriam no mesmo ambiente
mitológico: situavam-se perto do oráculo de Trofónio, de modo que um visitante ao
procurar uma informação futura deveria experimentar das duas águas para obter a sua
resposta. Tal compreensão nos faz refletir sobre o papel importante da memória para o
presente e para a consolidação do futuro e vice-versa no que tange ao esquecimento.
Do mesmo modo que Ricoeur trouxe considerações acerca da recordação, Jeanne
Marie Gagnebin também o trará em “Memória, História e Testemunho”, um dos capítulos
do livro Lembrar, escrever, esquecer. Partindo do contexto do fim da narração, conceito
explorado por Walter Benjamin frente aos horrores do trauma e da urgência de se expressar
o inexpressável, a teórica reflete sobre a perda da experiência como uma tradição
compartilhada e postula uma consequência decorrente disso: o desaparecimento das
narrativas, tendo como pano de fundo a mudez observada nos sobreviventes da primeira
guerra mundial. O capítulo nos leva a observar a memória de maneira fragmentada e
incompleta, sob a forma de um rastro do incomunicável em uma tentativa de driblar o
esquecimento, o apagamento total de uma experiência trágica e de subjetividades que a
vivenciaram. Para além, um enfoque é dado à narrativa - meio pelo qual a memória se
firma e se inscreve na história. Há um dever de memória, pois é necessário que exista uma
33
real fidelidade ao passado, a fim de que ele modifique o presente e, por consequência, o
futuro:
20
É importante trazer nesse momento a leitura de Além do princípio do prazer, texto esclarecedor no qual Freud
se propõe a falar do trauma, dos mecanismos de compensação e principalmente das reações de repetição e de
recordação presentes no momento da análise: “O doente não pode lembrar-se de tudo o que nele está reprimido,
talvez precisamente do essencial, não se convencendo da justeza da construção que lhe é informada. Ele é antes
levado a repetir o reprimido como vivência atual, em vez de, como preferiria o médico, recordá-lo como parte do
passado”. (p.131).
35
2.2.1 A lentidão
21
Conceito cunhado por Gérard Genette, em seu Discurso da Narrativa, que será mais bem explorado no
próximo capítulo, onde realizaremos uma análise das narrativas kunderianas. Pode-se dizer, grosso modo, que o
tempo diegético corresponde à diegese, assim como o espaço diegético, que se caracterizam por ser o tempo e o
espaço que existe dentro da trama da narrativa.
38
duração do tempo no século XX. Madame T, uma das personagens principais do romance
de Denon, prepara a sua noite erótica por etapas que intercalam a lentidão e a rapidez,
tendo por base justamente a vontade de tornar todo aquele tempo como inesquecível e
memorável, para ela e para o cavaleiro que a acompanhava.
Quanto mais rápida a sucessão de acontecimentos, mais acelerada será a
manifestação da duração e mais fácil será o processo de esquecimento, é o que Kundera
nos mostra quando traz a imagem de uma pessoa que precisa se esquecer de seus
pensamentos e acelera de forma maquinal seus passos. Quanto mais lenta a sucessão de
acontecimentos, menos acelerada será a manifestação da duração e mais difícil será o
processo de esquecimento, de modo que uma pessoa ao tentar se lembrar de algo tenda a
diminuir o passo durante a procura por certas recordações.
22
Há um vínculo secreto entre a lentidão e a memória, entre a
velocidade e o esquecimento. Imaginemos uma situação das mais
comuns: um homem andando na rua. De repente, ele quer se lembrar de
alguma coisa, mas a lembrança lhe escapa. Nesse momento,
maquinalmente, seus passos ficam mais lentos. Ao contrário, quem está
tentando esquecer um incidente penoso que acabou de viver sem querer
acelera o passo, como se quisesse rapidamente se afastar daquilo que, no
tempo, ainda está muito próximo de si.
Na matemática existencial, essa experiência toma a forma de
duas equações elementares: o grau de lentidão é diretamente proporcional
à intensidade da memória; o grau de velocidade é diretamente
proporcional à intensidade do esquecimento. (KUNDERA, p.30-31) 23
Essa passagem nos é cara, justamente por vir a ser a imagem de memória mais
explícita encontrada ao longo da leitura e por possuir a potência necessária para fazer com
que a narrativa seja vista como um eco, um efeito dessa imagem (algo que pretendemos
explorar mais no capítulo seguinte). Além do mais, a lembrança e o esquecimento
aparecem fortemente vinculados tal como faces do mesmo rosto, manifestações geradas
pelo mesmo contexto, assemelhando-se às considerações de Weinrich sobre as ações de
22
Conforme o estabelecido anteriormente, apresentaremos no corpo do texto os trechos da tradução brasileira,
realizada por Tânia de Carvallho, enquanto reservaremos ao espaço dos rodapés a versão original em francês dos
livros analisados.
23
Na versão original, da Gallimard:
Il y a un lien secret entre la lenteur et la memóire, entre la vitesse et l’oubli. Évoquons une situation on ne peut
plus banale: un homme marche dans la rue. Soudain, il veut se rappeler quelque chose, mais le souvenir lui
échappe. À ce moment, machinalement, il ralentit son pas. Par contre, quelqu’um qui essaie d’oublier un incident
pénible qu’il vient de vivre accélère à son insu l’ allure de sa marche comme s’il voulait vite s’éloigner de ce qui
se trouve, dans le temps, encore trop proche de lui.
Dans la mathématique existentielle cette expérience prend la forme de deux équations élémentaires : le degré de
la lenteur est directement proportionnel à l´intensité de la mémoire ; le degré de la vitesse est directement
proportionnel à l’intensité de l’oubli. (p.44-45)
39
24
Na versão original da Gallimard:
Au cours des vingt secondes que dure son déplacement, quelque chose d’inattendu lui arrive:il succombe à
l’émotion : mon Dieu, après tant d’années il se trouve à nouveau parmi les gens qu’il estime et qui m’estiment,
parmi les savants qui lui sont proches et du milieu desquels le destin l’avait arraché ; quand il s’arrête devant la
chaise vide que lui est destinée, il ne s’assoit pas; por une fois il veut obéir à ses sentiments, être spontané et dire
à ses confrères inconnus ce qu’il ressent. (p.67)
40
sua trajetória, os momentos pelos quais enfrentara durante o afastamento para que
finalmente pudesse estar ali, frente a seus pares. Após proferir o discurso, novamente a
emoção se manifesta e ele se recorda da imagem do pai:
Terminada a sua fala, a reação da plateia o faz lembrar-se de seu discurso que fora
totalmente esquecido a partir do momento em que ele, tomado pela emoção, passara a
agradecer a oportunidade de estar entre colegas e a relatar fatos sobre a sua história
pessoal. A recordação acontecera de maneira tão intensa e viva, que após a sua passagem
fizera reinar o mais absoluto silêncio na plateia.
25
Na versão original:
En prononçant les derniers mots, il sent les larmes lui monter aux yeux. Cela le gêne un peu, lui revient l’image
de son père qui, vieillard, était ému sans trêve et pleurait à chaque occasion, mais ensuite il se dit, porquoi ne pas
laisser aller pour une fois : ces gens devraient se sentir honorés par son émotion qu’il leur offre comme un petit
cadeau de Prague. (p.69)
26
Na versão original:
[...]Il ne se rendait pas compte que, progressivement, comme une imperceptible modulation qui fait passer une
sonate d’un ton à un autre, le silence ému s’était converti en silence gêné. Tout le monde avait compris que ce
41
Há algo de interessante nessa parte, pois ela traz uma das reflexões mais caras no
que diz respeito às lembranças: o efeito que elas desempenham no momento de sua ação.
Se o presente é o lugar da consciência, quando o passado surge – por meio da lembrança –
esse estado de consciência fica suprimido, provocando a reação de esquecimento do todo.
Chechoripsky está de tal modo tão envolvido com as memórias suscitadas que acaba por
não se dar conta da reação de seus colegas - que não o acompanham e não compartilham
do mesmo passado; prova disso é o riso de constrangimento alheio por parte deles.
Tal reação resulta no choque entre memória e história que aparece quando ele
nota, por parte de seus companheiros profissionais, um desrespeito em relação a sua
história pessoal. Ainda que não seja parte das reflexões de Kundera presentes no livro,
podemos interpretar esse conflito como proveniente de uma tensão entre memória
individual e memória coletiva: por memória individual temos a história pessoal de um
homem, elemento principal que caracteriza a sua identidade27; e por memória coletiva
temos a memória daqueles que estiveram na mesma situação política que o entomólogo e
que partilham de um ponto em comum na história das suas vidas.
Antes mesmo da situação constrangedora, o narrador se dispõe a refletir sobre
esse tema em relação ao entomólogo:
monsieur avec un nom imprononçable était à tel point ému par lui-même qu’il avait oublié de lire l’intervention
qui aurait dû les renseigner sur ses découvertes de nouvelles mouches. Et tout le monde savait qu’il aurait été
impoli de le lui rappeler. Après une longue hésitation, le président du colloque tousse et dit : <<Je remercie
Monsieur Tchécocipi... (il se tait un bon moment pour donner à l’invité une dernière chance de se souvenir)... et
je prie l’intervenant suivant. >> C’est alors que le silence est brièvement entrecoupé par un rire étouffé au fond
de la salle.
Plongé dans ses pensées, le savant tchèque n’entend ni le rire ni l’intervertion de son confrère. D’autres orateurs
se suivent jusqu’à ce qu’un savant belge, qui comme lui s’occupe des mouches, le réveille de son recueillement :
mon Dieu, il a oublié de prononcer son discours ! Il met la main dans sa poche, les cinq feuillets sont là comme
preuve qu’il ne rêve pas.
Ses joues brûlent. Il se sent ridicule. Peut-il encore sauver quelque chose ? Non, il sait qu’il ne peut rien sauver
du tout. (p.70-71)
27
Interpretamos identidade aqui como uma das definições de Stuart Hall, do texto Identidade cultural na pós
modernidade (2006), que é a de um processo de constituição do ser através de experiências formadas ao longo
do tempo, um processo instável de um preenchimento ininterrupto de si mesmo que visa à criação de biografias.
42
28
Na versão original:
Plus le temps a passé, plus il a oublié son aversion primitive pour les opposants et s’est habitué à voir dans son
<<oui>> d’alors un acte volontaire et libre, l’expression de sa révolte personelle contre le pouvoir haï. Ainsi
croit-il appartenir à ceux qui sont montés sur la grande scène de l’Histoire et c’est dans cette certitude qu’il puise
sa fierté.
Mais n’est-il pas vrai que, perpétuellement, d’innombrables personnes sont impliquées dans d’innombrables
conflits politiques et peuvent donc se sentir fières d’être montées sur la grane scène de l’Histoire?
Il faut que je preécise ma thèse : la fierté du savant tchèque est due au fait qu’il n’est pas monté sur la scène de
l’Histoire n’importe quand mais à ce moment précis où elle était éclairée. La scène éclairée de l’Histoire
s’appelle l’Actualité Historique Planétaire. Prague en 1968, illuminée par des projecteurs et observée par des
caméras, fut une Actualité Historique Planétaire par excellence et le savant tchèque est fier d’en sentir encore
aujour-d’hui le baiser sur son front. (p.65-66)
29
De acordo com a narrativa, Chechoripsky passa da profissão de diretor de uma seção de seu instituto a
profissão de operário da construção civil após a invasão do Exército russo em 1968, na República Tcheca. Nessa
ocasião, um grupo de adversários do regime começa a querer utilizar a sala do entomólogo que, por sua vez, se
sente atordoado em relação a tomar uma decisão; essa covardia política é o motivo principal de sua expulsão do
ambiente acadêmico e da sua mudança de profissão.
43
compreender que não deseja mais ser lembrada; que está cansada de si
mesma; enjoada de si mesma; que quer soprar a primeira chama trêmula
da memória. (KUNDERA, p.91-92)30
30
Na versão original:
Quand j’ai évoque la niut de madame de T., j’ai rappelé l’équation bien connue d’un des premiers chapitres du
manuel de mathématique existentielle : le degrée de la vitesse est directement propostionel à l’intensité de
l’oubli. De cette équation on peut déduire divers corollaires, par example celui-ci : notre époque s’addone au
démon de la vitesse et c’est pour cette raison qu’elle s’oublie si facilement elle-même. Or je préfère inverser
cette affirmation et dire : notre époque est obsédée par le désir d’oubli et c’est afin de combler ce désir qu’elle
s’adonne au démon de la vitesse ; elle accélère le pas parce qu’elle veut nous faire comprendre qu’elle ne
souhaite plus qu’on se souvienne d’elle ; qu’elle se sent lasse d’elle-même ; écoeurée d’elle-même ; qu’elle veut
souffler la petite flamme tremblante de la mémoire. (p.134-135)
31
Na versão original:
Intitulée Point de lendemain, la nouvelle fut publiée pour la première fois en 1777 ; le nom de l’auteur était
remplacé (puisque nous sommes dans le monde du secret) par sept majuscules énigmatiques, M. D. G. O. D. R.,
où l’on peut lire, si l’on veut : <<M. Denon, Gentilhomme Ordinaire du Roi.>> Puis, avec un tirage minuscule,
et tout à fait anonymement, elle fut republiée en 1779, avant de reparaître l’année suivant sous le nom d’autre
écrivain. De nouvelles éditions virent le jour en 1802 et en 1812, toujours sans le vrai nom d’auteur ; enfin, aprés
un oubli qui dura um demi-siècle, elle reparut en 1866. À partir de là elle fut attribuée à Vivant Denon et, au
cours de notre siècle, gagna une gloire toujours croissante. Elle compte aujourd’hui parmi les ouvrages littéraires
qui semblent répresenter le mieux l’art et l’esprit du XVIII° siècle. (p.14-15)
44
Ao inserir no meio de uma narrativa toda a trajetória pela qual o livro passou,
desde o seu lançamento até a sua atualidade, mostrando as suas transformações no que
dizem respeito à autoria e também aos momentos de maior ou menor popularidade do
livro, ou seja, da sua recepção pelos leitores, o autor cria uma memória das transformações
do livro, uma memória da literatura.
Sobre As ligações perigosas:
O século XVIII, com sua arte, fez com que os prazeres saíssem
da bruma das interdições morais; fez nascer a atitude que chamamos de
libertina e que emana dos quadros de Fragonard, de Watteau, das páginas
de Sade, de Crébillon filho e de Duclos. É por isso que o meu jovem
amigo Vincent adora esse século e, se pudesse, usaria como distintivo na
lapela de seu casaco o perfil do marquês de Sade. Compartilho de sua
admiração mas acrescento (sem porém ser ouvido) que a verdadeira
grandeza dessa arte não reside numa propaganda qualquer do hedonismo,
mas em sua análise. É essa a razão pela qual considero As ligações
perigosas de Chordelos de Laclos um dos maiores romances de todos os
tempos. (KUNDERA, p.12)32
32
Na versão original:
Le XVIII° siècle, dans son art, a fait sortir les plaisirs de labrume des interdits moraux; il a fait naître l’attitude
qu’on appelle libertine et qui émane des tableaux de Fragonard, de Watteau, des pages de Sade, de Crèbillon fils
ou de Duclos. C’est pour cela que mon jeune ami Vincent adore ce siècle et, s’il le pouvait, il porterait comme
un insigne sur le revers de sa veste le profil du marquis de Sade. Je partage son admiration mais j’ajoute (sans
être vraiment entendu) que la vraie grandeur de cet art ne consiste pas dans uns quelconque propagande de
l’hédonisme mais dans son analyse. C’est la raison pour laquelle je tiens Les Liaisons dangereuses de Choderlos
de Laclos pous l’un des plus grands romans de tout les temps. (p.16)
45
2.2.2 A identidade
Uma das primeiras relações que podemos realizar no que tange a memória é
justamente com as semelhanças entre a sua representação e os sonhos. O sonho é o
território de imagens potentes que surgem e se instalam de modo muito impreciso, uma vez
que não é possível o seu controle – o mesmo pode ser observado nas lembranças. Mais
sintomático ainda se torna o fato do narrador se utilizar do passado no sonho, da sua
imagem: o empreendimento imaginativo que o caracteriza possui semelhança e pode ser
visto como outra face do mesmo objeto, pois tanto a memória como a imaginação se
iniciam no mesmo local - a associação de ideias. Ricoeur tratará a respeito disso ao afirmar
que ambas têm a mesma origem e são “duas afecções ligadas por contiguidade” (2007,
p.25), sendo impossível uma evocação que não seja mútua: convocar uma é, ao mesmo
tempo, convocar a outra. Isso aparece bastante explícito no excerto acima quando Chantal
vê no sonho o seu ex-marido com outra aparência e vê também a esposa dele, que nunca
conhecera, mas que a imaginara tal como a imagem representada no sonho.
Outra imagem de memória aparecerá no episódio onde Jean-Marc irá ao hospital
realizar uma visita a um antigo amigo do tempo do ginásio, que se encontra com a saúde
extremamente debilitada. Logo no início dessa visita a F. (amigo de nome não mencionado
– detalhe que possui um papel na narrativa), o marido de Chantal enfrentará um choque em
relação à aparência do colega: como ambos não se viam desde a época em que estudaram
juntos, um embate surge entre as imagens tanto do passado quanto do presente.
33
Na versão original:
Elle est montée à sa chambre, s’est endormie péniblement et s’est réveillée au milieu de la nuit après un long
rêve. Il était peuplé exclusivement de gens de son passé : sa mère (morte depuis longtemps) et surtout son ancien
mari (elle ne l’a pas vu depuis des années et il n’était pas ressemblant, comme si le metteur en scène du rêve
s’était trompé dans le casting); il était là avec sa soeur, dominatrice et énergique, et sa nouvelle épouse (elle ne
l’a jamais vue ; pourtant, dans le rêve, elle ne doutait pas de son identité) ; à la fin il lui faisat de vagues
propositions érotiques, et sa nouvelle femme a embrassé Chantal fortement sur la bouche en essayant de lui
glisser sa langue entre les lèvres. Les langues se léchant l’une l’autre lui ont toujours fait ressentir du dégoût. En
fait, c’est ce baiser qui l’a rèveillée.
Le malaise suscité par le rêve était si démesuré qu’elle s’est efforcée d’en déchiffrer la raison. Ce qui l’a troublée
tellement, pense-t-elle, c’est la suppression du temps présent opérée par le rêve. Car elle tient passionnément à
son présent que, pour rien au monde, elle n’échangerait ni avec le passer ni avec l’avenir. C’est pour cela qu’elle
n’aime pas les rêves :ils imposent une inacceptable égalité des diférentes époques d’une même vie, une
contemporanéité nivelante de tout ce que l’homme a jamais vecú; ils déconsidèrent le présent en lui déniant sa
position privilégiée. (p.13-14)
47
Outras tensões serão observadas pelo narrador durante a visita e dizem respeito às
tentativas de rememoração realizadas por F. para tentar trazer de volta a ligação entre ele e
o amigo no passado. Porém, ao invés de se basearem no conflito de imagens, elas terão por
característica principal o esquecimento completo de Jean-Marc das situações que lhe são
narradas. Entra em questão, nesse caso, o papel das afecções nas lembranças que, apesar de
possuírem o mesmo ambiente de manifestação, não são as mesmas.
34
Na versão original:
La vue de l’ancien ami fut accablante : il l’avait gardé dans sa mémoire tel qu’il était au lycée, un garçom fragile,
toujours parfaitement habillé, doté d’une finesse naturelle face à laquelle Jean-Marc se sentait comme un
rhinocéros. Les traits subtils, efféminés, qui jadis faisaient F. plus jeune que son âge, l’avaient rendu maintenant
plus vieux : son visage parut grotesquement petit, recroquevillé, ridé, telle la tête momifiée d’une princesse
égyptienne morte depuis quatre mille ans ; Jean-Marc regardait ses bras : l’un était sous perfusion, immobilisé,
une aiguille glisée dans la veine, l’autre faisait de grands gestes pour appuyer ses paroles. Depuis toujours, quand
il le regardait gesticuler, il avait l’impression que par rapport à son petit corps les bras de F. étaient encore plus
petits, tout à fait minuscules, des bras de marionnette. (p.15-16)
48
35
Na versão original:
F. terminait l’exposé sur ses malheurs quand, aprés un moment de silence, son viasage de petite princesse
momifiée s’éclaira : <<Tu te rappelles nos conversations au lycée ?
- Pas vraiment, dit Jean-Marc.
- Je t’ai toujours écouté comme mon maître quand tu parlais des jeunes filles. >>
Jean-Marc essaya de se souvenir mais ne trouva dans sa mémoire aucune trace des conversations d’antan:
<<Qu’aurais-je pu dire, morveux de seize ans, sur les jeunes filles ?
- Je me vois debout devant toi, continua F., disant quelque chose sur les filles. Tu te rappelles, ça me choquait
toujours qu’un beau corps soit une machine à sécrétions ; je t’ai dit que je supportais mal de voir une jeune fille
se moucher. Et je te revois ; tu t’es arrête, tu m’as dévisagé et tu m’as dit d’un ton curieusement expeérimenté,
sincère, ferme : se moucher ? moi, il me suffit de voir comment son oeil clignote, de voir ce mouvement de la
paupière sur la cornée, pour que je ressente un dégoût que je peux à peine surmonter. Tu te rappelles?
- Non, répondit Jean-Marc.
- Comment as-tu pu oublier ? Le mouvement de la paupière. Un idée tellement étrange!>>
Mais Jean-Marc disait vrai ; il ne se souvenait pas. D’ailleurs, il n’essayait même pas de cherceher dans sa
mémoire. Il pensait à autre chose : voilà la vraie et seule raison d’être de l’amitié: procurer un miroir dans lequel
l’autre peut contempler son image d’autrefois qui, sans l’éternel bla-bla de souvenirs entre copains, se serait
effacée depuis longtemps.
<<La paupière. Tu ne te rappelles vraiment pas?
- Non >>, dit Jean-Marc, et puis, pour lui-même, en silence : tu ne veux donc pas comprendre que je m’en fous
du miroir que tu m’offres? (p.19-20)
49
entendimento de que outras coisas também foram responsáveis por atribuir uma carga de
peso, mas nenhuma delas fora tão essencial e cara quanto ao modo como seu ex-marido
reagira após a perda do filho.
Seu filho tinha cinco anos quando ela o enterrou. Mais tarde, na
época das férias, sua cunhada lhe disse: “Você está muito triste. Precisa
ter outro filho. Só assim vai conseguir esquecer”. A observação da
cunhada apertou seu coração. Criança: existência sem biografia. Sombra
que desaparece rapidamente no seu sucessor. Mas ela não desejava
esquecer o filho. Defendia sua individualidade insubstituível. Contra o
futuro defendia um passado, o passado negligenciado e desprezado do
coitadinho morto. Uma semana depois, seu marido lhe disse: “Não quero
que você caia em depressão. Temos que ter depressa outro filho. Depois
disso, você vai esquecer”. Você vai esquecer: ele nem sequer tentava
arranjar outra fórmula! Foi então que a decisão de deixá-lo nasceu dentro
dela.
[...] Foi ali, naquela grande casa de campo, que sua cunhada e
depois seu marido imploraram que ela tivesse outro filho. E foi ali, num
pequeno quarto, que ela se recusou a fazer amor com ele. Cada uma de
suas investidas eróticas lembrava-lhe a campanha familiar para uma nova
gravidez, e a ideia de fazer amor com ele se tornou grotesca. Tinha a
impressão de que todos os membros da tribo, avós, pais, sobrinhos,
sobrinhas, primas, os escutavam atrás da porta, examinavam secretamente
os lençóis, procuravam neles de manhã sinais de cansaço. Todos se
arrogavam o direito de olhar para a sua barriga. Até os sobrinhos menores
foram recrutados como mercenários nessa guerra. (p.26-27)36
A reflexão de que uma criança é uma existência sem biografia, realizada por
Chantal, vem a ser uma imagem forte de memória da literatura, pois carrega o significado
da biografia como um gênero memorialístico por excelência, caracterizado pela exploração
e pelo delineamento de uma identidade. Biografia: o ato de narrar a vida de alguém. Mas
como narrar alguém que sequer tivera a chance de uma identidade? Negar-lhe o filho, era
isso que a impunham; e com isso também tentavam lhe amputar uma parte importantíssima
36
Na versão original:
Son fils avait cinq ans quand elle l’enterra. Plus tard, lors des vacances, sa belle-soeur lui dit : <<Tu es trop
triste. Il faut que tu aies un autre enfant. Il n’y a que comme cela que tu oublieuras. >> La remarque de sa belle-
soeur llui serra le coeur. Enfant : existence sans biographie. Ombre qui rapidement s’efface dans son successeur.
Mais elle ne désirait pas oublier son enfant. Elle défendait son individualité irremplaçable. Contre l’avenir elle
défendait un passé, le passé négligé et méprisé du pauvre petit mort. Une semaine après, son mari lui dit : <<Je
ne veux pas que tu succombes à la dépression. Il faut que nous ayons vite un autre enfant. Ensuite, tu
oublierais.>> Tu oublieras : il ne cherchait même pas à trouver une autre formule ! C’est alors que la décision de
le quitter naquit en elle. [...]
C’est là, dans cette grande villa, que sa belle-soeur puis son mari l’exhortèrent à avoir un autre enfant. Et c’est là,
dans uns petite chambre à coucher, qu’elle refusa de faire l’amour avec lui. Chacune de ses invites érotiques lui
rappelait la campagne familiale pour une nouvelle grossesse, et l’idée de faire l’amour avec lui devint grotesque.
Elle avait l’impression que tous les membres de la tribu, grands-mères, papas, neveux, nièces, cousines, les
écoutaient derrière la porte, scrutaient secrètement les draps de leur lit, examinaient leur fatiue matinale. Tous
s‘appropriaient un droit de regard sur son ventre. Même les petits neveux étaient recrutés comme mercenaires
dans cette guerre. (p.44-46)
50
de seu passado que era a maternidade. Por mais que a morte tenha sido uma experiência
traumática, nada seria capaz de eliminar essa parte da vida de Chantal. O seu ato firme de
negação era duplo, pois eram duas identidades que se recusavam ao abafamento. A
memória simboliza, nesse momento da narrativa, a resistência. O esforço de perpetuação
de uma ou mais existências.
Outro momento em que a memória da literatura pode ser encontrada na narrativa
ocorre quando o casal, ao comentar uma campanha publicitária sobre a morte realizada
pela empresa na qual Chantal trabalha, começa a falar sobre as características de cada um e
comenta sobre as diferentes faces sociais que ambos precisam manter em sociedade: em
casa, a brincalhona; no trabalho, a séria. Eles brindam a permanência do amor frente à
mudança das faces. Em uma retomada do assunto da campanha, Jean-Marc confessa o seu
fascínio perante o tema da morte por meio dos poemas que a tematizam e recita um poema
de Baudelaire:
Eles brindam, bebem, depois Jean-Marc diz: “Estou quase com inveja da
sua campanha publicitária da morte. Não sei por quê, mas desde criança
sou fascinado pelos poemas sobre a morte. Aprendi de cor uma porção
deles. Posso recitar, quer? Você pode utilizá-los. Por exemplo, estes
versos de Baudelaire, com certeza você conhece:
“Ó Morte, velho capitão, está na hora! levantemos âncora!
“Este país nos entedia, ó Morte! Embarquemos!”
“Conheço, conheço”, interrompe-o Chantal. “É muito bonito mas não
para nós.” (p.25)37
Nesse excerto, a memória aparece por meio de ato de recitar, derivado da prática
social de memorização ambientada e reforçada em muitos casos na escolarização. Esse
pensamento adquire mais força quando os versos de Baudelaire são proclamados, pois
sugere nesse intertexto uma tradição dos poemas sobre a morte, além de trazer em si
indícios de uma memória cultural. Jean-Marc decorou os versos, ou seja, aproximou a si os
signos e os memorizou por afinidade e afeição; porque decorar é inscrever no coração,
dotando de um sentimento algo que a princípio não seria capaz de suscitá-lo.
37
Na versão original :
Ils trinquent, ils boivent, puis Jean-Marc dit : << D’ailleurs, je t’envie presque de faire de la publicité pour la
mort. Sans que je sache pourquoi, depuis mon âge tendre je suis fasciné par les poèmes sur la mort. J’en ai appris
tant et tant par coeur. Je peux en réciter, veux-tu ? Tu pourras les utiliser. Par example ces vers de Baudelaire, tu
les connais forcément :
Ô Mort, vieux capitaine, il est temps! levons l’ancre!
Ce pays noun ennuie, ô Mort ! Appareillons!
- Je connais, je connais, l’interrompt Chantal. C’est beau mais pas pour nous. (p.42)
51
À medida que a narrativa avança, Chantal novamente passa a refletir sobre a perda
do filho e constata que a morte dele lhe deu a vida a dois com Jean-Marc: é justamente
nesse momento em que ela percebe esse paradoxo irresistível entre morte e vida, que uma
onda de felicidade a atinge e o passado é ressignificado. A existência breve se perpetua por
meio da liberdade e da autonomia adquiridas por Chantal, há uma inversão de polaridades:
o negativo que se positiviza, a memória traumática que se cura.
Essa substituição que ocorrera de modo natural, pela via do amor romântico que
nutria pelo então marido, será responsável pelo caráter de mudança das lembranças de
Chantal e lhe dará mais coragem para enfrentar os empecilhos que lhe surgem mais adiante
na narrativa. Jean-Marc se torna sua família e ela manifesta cada vez mais o desejo de se
afastar do seu passado e das suas memórias. Tal compreensão possui sentido, uma vez que
seu filho era a única pendência que a mantinha presa à antiga vida, ao seu antigo eu; isso se
confirma na sua visita ao túmulo: ao iniciar uma conversa mental (hábito que se tornou
38
Na versão original:
[...] elle éprouvait une insoutenable nostalgie de Jean-Marc.
Nostalgie? Comment pouvait-elle éprouver de la nostalgie puisqu’il était en face d’elle ? Comment peut-on
souffrir de l’absense de celui qui est présent ? (Jean-Marc saurait répondre: on peut souffrir de nostalgie en
présence de l’aimé si on entrevoit un avenir où l’aimén’est plus ; si la mort de l’aimé, invisiblement, est déjà
présente.)
Pendant ces minutes d’étrange nostalgie au bord de la mer, elle se souvint soudain de son enfant mort et une
vague de bonheur l’inonda. Bientôt, elle serait effrayée par ce sentiment. [...]
Le souvenir de son fils mort la remplissait de bonheur et elle pouvait seulement se demander ce que cela
signifiait. La réponse était claire: cela signifiait que sa présence aux côtés de Jean-Marc était absolue et qu’elle
pouvait être absolue grâce à l’absence de son fils. Elle était heureuse que son fils fût mort.
[...] Le même soir, juste avant de s’endormir (Jean-Marc dormait déjà), encore une fois elle se souvint de son
enfant mort et ce souvenir fut de nouveau accompagné de cette scandaleuse vague de bonheur. (p.55-57)
52
rotineiro), ela passa a se justificar pela sua alegria com a morte, afirmando que compreende
a morte como um presente de liberdade, liberdade para que ela continue detestando o
mundo sem sentir culpa.
F. morre e Jean-Marc, ao pensar nele e na sua visita, consegue se lembrar de
imagens da sua infância e adolescência, confirmando o seu pensamento de que as amizades
servem como conservatórios de memórias de si e do outro, reforçando o caráter coletivo
das lembranças tanto em relação ao seu armazenamento, quanto em relação a sua
manifestação por meio de uma indução promovida pelo olhar do outro: “Ele não se
lembrava mais. Fora um choque destinado ao esquecimento. E, de fato, ele o teria
esquecido para sempre se F. não o tivesse lembrado” (p.48)39. Vale lembrar que, apesar
do enfoque ser atribuído aos seus personagens, há uma reflexão essencial que perpassa
toda a narrativa: a alteridade. Seja pelo olhar da amizade, seja pelo olhar do amor
romântico, é o outro que se constrói e nos constrói ao longo das páginas do romance.
A metáfora do espelho usada pelo narrador – trecho que se encontra na epígrafe –
para realizar esse pensamento no que tange a amizade, explora muito o caráter de
construção de narrativas pautadas pela memória e pelo olhar do outro, pois outras
memórias de Jean-Marc surgem a partir da visita e a figura do amigo que antes lhe causava
certa repugnância, agora lhe causa simpatia pelas imagens proporcionadas por meio do
encontro que tiveram.
A narrativa avança e Chantal novamente se vê presa a seu passado na figura de
sua ex-cunhada que ressurge em seu apartamento, com os filhos, reclamando sobre o seu
afastamento e esquecimento do passado. Essa atitude traz à nossa protagonista novamente
toda a repulsa que sentia pela figura daquela mulher, da qual não conseguia se livrar
devido às pressões sociais e à gentileza.
A cunhada voltou para a sala. “Vá para lá” disse ela a Corinne,
que correu para se juntar novamente às outras crianças no quarto ao lado.
Depois se dirigiu a Jean-Marc: “Não culpo Chantal de ter deixado meu
irmão. Talvez até devesse tê-lo deixado antes. Mas a culpo de ter se
esquecido de nós”. E virando-se para Chantal: “Afinal de conta, Chantal,
representamos uma grande parte de sua vida! Você não pode nos negar,
nos apagar, você não pode mudar seu passado! Seu passado é o que você
é. Você não pode contestar que foi feliz conosco. Vim dizer a você e a
seu novo companheiro que vocês são bem-vindos a minha casa!”. (p.82)40
39
Na versão original:
Il ne s’en souvenait pas. Ç’avait été un choc destine à l’oubli. Et, en effet, il l’aurait à jamais oublié si F. Ne le
lui avait pas rappelé. (p.84)
40
Na versão original:
53
A tal proximidade entre as duas nunca existiu, porém após esse encontro as
relações entre as duas adquirem uma distância abismal. O desprezo desponta a partir da
raiva que Chantal sente ao constatar-se ainda como presa a seu passado; e a situação se
torna pior, pois ela se vê presa nas mãos de sua antiga cunhada. As lembranças surgem de
um modo tão insuportável que a protagonista reage de forma enérgica expulsando
literalmente todos de sua casa. Nem Jean-Marc escapa disso: ela o manda dormir na sala,
negando-lhe o direito da sua presença, como se ele saísse do status de representação da
liberdade para o status de representação da prisão do passado no presente. É a imagem que
retorna de maneira extremamente negativa, a memória que é negada.
Podemos perceber ambos como renunciantes de partes de si mesmos, algo que
confere a essas memórias uma potência enorme de modificação do presente, visualizadas
ao longo da narrativa. Após esse embate entre marido e mulher, Chantal resolve ir até
Londres junto de seus colegas de empresa, e Jean-Marc, consumido pelo terror do
abandono e pelos ciúmes, vai atrás dela com a finalidade de tentar consertar os maus
entendidos entre eles. Um fato interessante da narrativa é o pano de fundo dessas aparições
das memórias de ambos ser caracterizado pelo contexto de humor criado pelo narrador:
Jean-Marc, compadecido pela tristeza da esposa ao se notar desinteressante aos olhos de
outros, passa a lhe escrever cartas como se fosse um amante desconhecido; porém Chantal
descobre esse ato do marido justamente no momento em que encontra com a ex-cunhada e
reage com raiva, distanciando-se dele. Uma atitude realizada com a intenção de
aproximação se torna o motivo principal do distanciamento de ambos.
Tudo isso culmina na imagem que ambos começam a ter de si: a de uma
identidade que se torna irreconhecível, numa confusão de sentidos a qual a faz se
aproximar da fronteira entre o real e o sonho, associação comumente explorada. O narrador
explora esse sentimento de forma bastante elucidativa a partir do momento em que trata da
busca de Jean-Marc por Chantal no trem: ela sente que está sendo procurada por alguém,
mas não consegue se lembrar exatamente por quem; enquanto ele procura por ela nos
vagões e não a consegue achar. Isso ocorre porque ambos já não se reconhecem direito
após todo esse surgimento de memórias e afeições que foram suscitadas em decorrência
La belle-soeur revint dans le salon. <<Vas-y>>, dit-elle à Corinne qui courut dans la pièce d’à côté rejoindre les
autres enfants. Puis elle s’adressa à Jean-Marc: <<Je ne reproche pas à Chantal d’avoir quitté mon frère. Peut-
être aurait-elle dû le quitter plus tôt. Mais je lui reproche de nous avoir oubliés.>> Et, se tournant vers Chantal:
<<Quand même, Chantal, nous répresentons une grande partie de ta vie! Te ne peux pas nous nier, nous
gommer, tu ne peux pas changer ton passé! Ton passé est ce qu’il est. Tu ne peux pas contester que tu as été
heureuse avec nous. Je suis venue dire à ton nouveau compagnon que vou êtes tous les deux les bienvenus chez
moi !>> (p.147)
54
das ações da narrativa. A cena descrita parece surreal: como alguém cuja presença era
absoluta em suas vidas se torna desconhecido, irreconhecível? Como se deu tal
esquecimento?
41
Na versão original:
A ce moment d’extrême angoisse, l’image lui revient d’un homme qui se bat contre la foule pour parvenir à elle.
Quelqu’un lui tord le bras derriére le dos. Elle ne voit pas son visage, seulement son corps courbé. Mon Dieu,
elle voudrait se souvenir un peu plus exactement de lui, évoquer ses traits, mais elle n’y arrive pas, elle sait
seulement que c’est l’homme qui l’aime et c’est la seule chose qui lui importe maintenant. Elle l’a vu dans cette
ville, il ne peut être loin. Elle veut le retrouver le plus vite possible. Mais comment? (p.198)
42
In: O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. 2002.
55
2.2.3 A ignorância
Em A ignorância, narrativa que aborda a volta de dois exilados tchecos a seu país
de origem, após 20 anos de ausência, observamos a tensão entre passado e presente
advinda do retorno, que tanto afeta os personagens de Irena e Josef. A primeira menção à
memória aparece indiretamente a partir da imagem coletiva de um sonho comum a todos
os exilados e que diz respeito ao retorno ao país natal:
44
Na versão original:
Dès les premières semaines de l’émigration, Irena faisait des rêves étranges: elle est dans un avion qui change de
direction et etterrit sur un aéroport inconnu; des hommes en uniforme, armés, l’attendent au pied de la passerelle;
une sueur froide sur le fornt, elle reconnaît la police tchèque. Une autre fois, elle se balade dans une petite ville
française quand elle voit un curieux groupe des femmes qui, chacune une chope de bière à la main, courent vers
57
Dizer que todos os exilados possuíam o mesmo sonho, apenas com variantes
distintas, e que todos eles construiriam a imagem do sonho do exílio é mencionar, ainda
que indiretamente, a formação de uma memória coletiva, uma vez que ela concentra em si
diferentes vozes de uma mesma história, a dos exilados do século XX. Halbwacks mesmo
observava sobre como as memórias individuais de um mesmo grupo seriam importantes na
construção de uma memória social. Irena coloca a si, seu marido, sua amiga e seus colegas
em exílio como pertencentes a uma fraternidade que se conecta a partir dos sonhos e dos
fatos manifestados durante esse momento – fatos esses que surgem sem controle e trazem
resquícios de um passado o qual eles tentam deixar esquecido, mas que aparecem com
tamanha intensidade.
A memória da literatura se apresenta na narrativa a partir da imagem da nostalgia
que envolve o retorno à Praga, tanto de Irena quanto de Josef, e as complicações
envolvidas nesse trajeto: para isso, o autor traz a Odisseia e a narrativa da viagem do
retorno de Ulisses a Ítaca. A simples menção a uma das grandes obras da literatura
universal, já faz com que a referência se configure como um intertexto e faça parte da
memória da literatura – esse sistema auto referenciativo, afirmação que ganha forças
quando relacionamos a obra de Homero ao cânone literário, seu lugar de pertencimento e
de tradição. Além do mais, ao trazer o épico à narrativa de Irena e Josef, o narrador coloca
em ação a memória cultural, aquela memória que, segundo Aleida Assmann (2011), supera
o limite dos tempos e permanece na cultura, através de textos normativos e também da
manutenção de instituições. Ao evocar a condição de Ulisses, a narrativa oferece um
contraponto que mostra o caráter nostálgico da volta, um retorno agridoce às origens:
resultante do conflito entre as imagens identitárias da vida antes, durante e pós-exílio. Não
há como ignorar uma parcela significativa do passado.
elle, l’apostrophent en tchèque, rient avec une cordialité perfide, et, épouvantée, Irena se rend compte qu’elle est
à Prague, elle cire, elle se réveille.
Martin, son mari, faisait les mêmes rêves. Tous les matins ils se racontaient l’horreur de leur retour au pays natal.
Puis, au cours d’une conversation avec une amie polonaise, elle aussi émigrée, Irena comprit que tous, sans
exception; elle fut d’abord émue de cette fraternité nocturne de gens qui ne se connaissaient pas, plus tard un peu
agacée: comment l’expérience si initime d’un rêve peut-elle être vécue collectivement? qu’est donc son âme
unique? Mais à quoi bon des questions sans réponses. Une chose était sûre: des milliers d’émigrés, pendant la
même nuit, en d’innombrables variantes, rêvaient tous le même rêve. Le rêve d’émigration: l’un des phénomènes
les plus étranges de la seconde moitié du XX° siècle. (p.20-21)
58
45
Na versão original:
<<Ton grand retour.>>
Elles étainet assises face à face au-dessua de deux tasses à café vides depuis longtemps. Irena vit des larmes
d’émotion dans les yeuxs de Sylvie qui se pencha vers elle et lui serra la main: <<Ce sera ton grand retour. >> Et
encore une fois: <<Ton grand retour.>>
Répétés, les mots acquirent une telle force que, dans son for intérieur, Irena les vit écrits avec des majuscules:
Grand Retour. Elle ne se rebiffa plus: elle fut envoûtée par des images qui soudain émergèrent de vieilles
lectures, de films, de sa propre mémoire et de celle peut-être de ses ancêtres: le fils perdu qui retrouve sa vieille
mère; l’homme qui revient ver sa bien-aimée à laquelle le sort féroce l’a jadis arraché; la maison natale que
chacun porte ensoi; le sentier redécouvert où sont restés gravés le pas perdu de l’enfance; Ulysse qui revoit son
ile après des années d’errance; le retour, le retour, la grande magie du retour. (p.10-11)
59
46
Na versão original:
La question était juste: pourquoi la mère, quand elle retrouve sa fille après des années, ne s’intéresse-t-elle pas à
ce que celle-ci lui montre et lui dit? Pourquoi Michel-Ange, qu’elle a vu avec un groupe de touristes tchèques, la
captive-t-il plus que Rodin? Et porquoi, tout au long de ces cinq jours, ne lui pose-t-elle aucune question?
Aucune question sur sa vie, et aucune non plus sur la France, sur sa cuisine, sa littérature, ses fromages, ses vins,
ses automobiles, ses pianistes, ses violoncellistes, ses footballeurs?
Au lieu de cela, elle n’arrête pas de parler de ce qui se passe à Prague, du demi-frère d’Irena (qu’elle a eu de son
seconde mari, mort depuis peu), d’autres personnes dont Irena se souvient et d’autres dont elle n’a jamais
entendu le nom. Elle a essayé deux ou trois fois de placer une remarque sur sa vie en France mais ces mots n’ont
pas franchi la barrière sans faille du discours de la mère. (p.24)
60
Não é somente a mãe de Irena quem resiste à amnésia da filha, mas também todas
as antigas amigas podem ser vistas como resistentes a isso. Irena percebe o desinteresse de
suas antigas amigas por sua vida no exílio e isso lhe gera indignação porque ela se sente
amputada, deslocada de um ambiente que até então considerava familiar. Pois, no
momento da volta, ela “[...] atribui a esse encontro grande importância: quer afinal avaliar
se pode viver aqui, sentir-se em casa, ter amigos.” (2015, p.27). O fato de estar com suas
antigas amigas é desafiante, pois é mister “que elas a aceitem tal qual ela voltava. Saiu dali
uma jovem ingênua, e voltava madura, com uma vida atrás de si, uma vida difícil da qual
se orgulhava” (2015, p.28). Entretanto, ela se vê em meio a um grupo de mulheres que
falam sem parar e com muita vitalidade sobre coisas as quais ela sequer tem noção e que a
fazem se sentir só em meio a todas, não conseguindo responder às perguntas feitas sobre
episódios antigos e sequer falar sobre a vida que levou durante o exílio. Seu passado é
amputado e seu presente também. Sua mudez aumenta de tamanho enquanto passa por essa
situação com as amigas e ela se sente como alguém invisível, não pertencente a nada.
47
Na versão original:
Pendant les vingt ans de son absence, les Ithaquois gardaient beaucoup de souvenirs d’Ulysse, mais ne
ressentaient pour lui aucune nostalgie. Tandis qu’Ulysse souffrait de nostalgie et ne se souvenait de presque rien.
On peut comprendre cette curieuse contradiction si on se rend compte que la mémoire, pour qu’elle puisse bien
fonctionner, a besoin d’un entraînement incessant: si les souvenirs ne sont pas évoqués, encore et encore, dans
les conversations entre amis, ils s’en vont. Les émigrés régroupés dans des colonies de compatriotes se racontent
jusqu’à la nausée les mêmes histoires qui, ainsi, deviennent inoubliables. Mais ceus qui ne fréquentement pas
leurs compatriotes, comme Irena ou Ulysse, sont inévitablement frappés d’amnésie. Plus leur nostalgie est forte,
plus elle se vide de souvenir. Plus Ulysse languissait, plus il oubliait. Car la nostalgie n’intensifie pas de
souvenirs, elle se suffit à elle-même, à sa propre émotion, tout absorbée qu’elle est par sa seulle souffrance.
(p.36)
61
perguntas dela são especiais: perguntas para saber se ela conhece aquilo
que elas conhecem, se se lembra daquilo que se lembram. Isso lhe dá uma
estranha impressão que não a deixará mais:
Primeiro, pelo total desinteresse por aquilo que ela vivera no
estrangeiro, elas a amputaram de uns vinte anos de sua vida. Agora, com
o interrogatório, tentam remendar seu antigo passado com sua vida
presente. Como se lhe amputassem o antebraço e fixassem a mão
diretamente no cotovelo, como se lhe amputassem a barriga da perna e
emendassem os pés nos joelhos. (2015, p.32)48
Situação semelhante acontece com Josef em sua volta a Praga: a relação que já
era, no passado, complicada com seu irmão e com a cunhada, intensifica-se a ponto de
fazer com que ele não consiga permanecer na casa do irmão (e também dele) durante o
retorno, e fique por lá somente durante o jantar. Ele constata também, ao ir visitar o túmulo
de seus pais – uma vez que não pôde devido ao exílio estar presente no momento das
respectivas mortes deles, o nome de diversos parentes cujas mortes lhe foram ocultadas e
passa a se perceber perante a família como alguém dispensável, um não alguém. As suas
memórias lhe foram negadas enquanto membro de uma família, sequer houve lembranças
sobre a figura dele para contar os acontecimentos que se desenrolaram durante o exílio: seu
casamento, a morte dolorosa de sua esposa, o emprego. Tudo isso lhe fora negado também.
48
Na versão original:
Les autres femmes l’assaillent de questions: <<Irena, tu te rappelles quand...>> Et: <<Tu sais ce qui s’est passé
alors avec...?>> <<Mais nom, quand même, tu dois te souvenir de lui !>> <<Ce mec avec de grandes oreilles, te
t’es toujours moquée de lui !>><<Mais tu ne peux pas l’avoir oublié! Il ne parle que de toi !>>
Jusqu’alors elles ne s’intéressaient pas à ce qu’elle tentait de leur raconter. Que signifie cette offensive soudaine?
Que veulent apprendre celles qui n’ont rien voulu entendre? Elle comprend vite que leurs questions sont
spéciales: des questions pour contrôler si elle connaît ce qu’elles connaissent, si elle se souvient de ce dont elles
se souviennent. Cela lui fait une étrange impression qui ne la quittera plus.
D’abord, par leur désintéret total envers ce qu’elle a vécu à l’étranger, elle l’ont amputée d’une vingtaine d’anées
de vie. Maintenant, par cet interrogatoire, elles essaient de recoudre son passé ancien et sa vie présente. Comme
si elles l’amputaient de son avant-bras et fixaient la mais directement au coude ; comme si elles l’amputaient des
mollets et joignaient ses pieds aus genoux. (p.44-45)
62
49
Na versão original:
L’insuffisance de nostalgie est pour lui la preuve du peu de valeur de sa vie passée. Je corrige donc mon
diagnostic: <<Le malade souffre de la déformation masochiste de sa mémoire.>> En effet, il ne se souvient que
des situations qui le rendent mécontent de lui-même. Il n’aime pas son enfance.
[...]Il savait trés bien que sa mémoire le détestait, qu’elle ne faisait que le calomnier; il s’était donc efforcé de ne
pas se fier à ce qu’elle lui racontait et d’être plus indulgent envers sa propre vie. Peine perdue: il n’éprouvait
aucun plaisir à regarder en arrière et le faisait le moins souvent possible.
[...]Est-ce qu’à l’étranger sa mémoire a perdu son influence nocive? Oui ; car là, Josef n’avait ni raisons ni
occasions de s’occuper des souvenir liés au pays qu’il n’habitait plus; telle est la loi de la mémoire masochiste: à
mesure que des pans de sa vie s’effondrent dans l’oubli, l’homme se débarrasse de ce qu’il n’aime pas et se sent
plus léger, plus libre. (p.73-75)
50
Na versão original:
La mémoire, elle non plus, n’est pas compréhensible dans une approche mathématique. La donnée fondamentale,
c’est le rapport numérique entre le temps de la vie vécue et le temps de la vie stockée dans la mémoire. On n’a
jamais essayé de calculer ce rapport et il n’existe d’ailleurs aucun moyen technique de le faire; poutant, sans
grand risque de me tromper, je peux supposer que la mémoire ne garde qu’un millionième, un milliardième, bref,
une parcelle tout à fait infime de la vie vécue. Cela aussi fait partie de l’essence de l’homme. Si quelqu’un
pouvait détenir dans sa mémoire tout ce qu’il a vécu, s’il pouvait à n’importe quel moment évoquer n’importe
quel fragment de son passé, il n’aurait rien à voir avec les humains : ni ses amours, ni ses amitiés, ni ses colères,
ni sa faculté de pardonner ou de se venger ne ressembleraient aux nôtres.
[...] la critique de la mémoire humaine en tant que telle. Car que peut-elle vraiment, la pauvre ? Elle n’est
capable de retenir du passé qu’une misérablle petite parcellette sans que personne ne sache pourquois justement
63
Josef ainda consegue falar com um antigo amigo, mas novamente percebe o
quanto a distância diminuiu a afabilidade e o interesse de ambos pela vida e,
consequentemente, a memória um do outro. Contudo, o sentimento de estranhamento
vivido por Josef é maior, uma vez que possuía uma vida que lhe fora apagada no momento
de seu retorno: trata-se de sua mulher, que morrera algum tempo antes de sua visita e era
alguém essencial em sua compreensão de vida. A volta significaria o apagamento de toda a
memória dela em si e, em função disso, o retorno a Praga que deveria trazer somente
alegrias pelo reencontro com a família, traz um pouco de desgosto e de tristeza.
O exílio ao mesmo tempo em que lhe foi doloroso também fora libertador, mas
não no sentido de ter possibilitado a ele a alcunha de ser o agente de sua própria vida e sim
por ter, durante esse tempo, conhecido a sua esposa e ter construído, ao longo dos anos
fora do seu local de origem, uma relação de amor e afeto com ela e com a Dinamarca. É só
por meio da morte de sua mulher, e tendo em mente os pedidos feitos por ela de retornar a
Praga, que ele decide realizar o retorno. Porém, com o desexílio, ele se depara com o fato
de que a sua volta às origens, ao passado, implicaria no afastamento do presente e das
lembranças de sua esposa e de si mesmo. Por isso, ele se descobre no retorno possuidor de
uma vontade descomunal de sair o mais rápido possível de Praga e retornar a Dinamarca,
para não se esquecer nem da imagem dela e nem da imagem de quem ele foi e é, em
relação a ela.
Segundo Mirian L. Volpe (2005), no seu livro Geografias do exílio, o desexílio
gera uma consequência na vida daqueles que retornam: traz consigo a dificuldade em se
restabelecer dentro do local de origem, uma diferença imposta pelo sentimento de não
pertencimento emocional e afetivo: “Muitos daqueles que voltaram chegam a sentir que
são estrangeiros em sua própria terra. O desexílio trouxe um novo tipo de exílio que não é
o devido à falta de um céu e uma paisagem, mas devido, principalmente, à falta da própria
gente [...]” (p.121).
Essa distância em relação ao espaço, motivada pelo desligamento ou, sendo
menos categórica, pela relativização em torno dos afetos e as suas ligações com as origens,
aparece na narrativa através da fala do narrador:
celle-ci et non pas une autre, ce choix, chez chacun de nous, se faisant mystérieusement, hoors de notre volonté
et de nos intérêts. (p.115-116)
64
51
Na versão original :
Si un émigré, après vingt ans vécus à l’étranger, revenait au pays natal avec encore cent ans de vie devant lui, il
n’éprouverait guère l’émotion d’un Grand Retour, probablement que pour lui cela ne serait pas du tout un retour,
seulement l’un des nombreux détours sur le long parcours de son existence.
Car la notion même de patrie, dans le sens noble et sentimental de ce mot, est liée à la relative brièveté de notre
vie qui nous procure trop peu de temps pour que nous nous attachions à un autre pays, à d’autres pays, à d’autres
langues. (p.114)
65
52
Na versão original :
J’imagine l’émotion de deux êtres qui se revoient après des années. Jadis, ils se sont fréquentés et pensent donc
être liés par la même expérience, par les mêmes souvenirs. Les mêmes souvenir? C’est là que le malentendu
commence: ils n’ont pas les mêmes souvenirs; tous deux gardent de leurs rencontres deux ou trois petites
situations, mais chacun a les siennes; leurs souvenirs ne se ressemblent pas; ne se recoupent pas; et même
quantitativement, ils ne sont pas comparables: l’un se souvient de l’autre plus que celui-ci ne se souvient de lui;
d’abord parce que la capacité de mémoire diffère d’un individu à l’autre (ce qui serait encore une explication
acceptable pour chacun d’eux) mais aussi (et cela est plus pénible à admettre) parce qu’ils n’ont pas, l’un pour
l’autre, la même importance. Quand Irena vit Josef à l’aéroport, elle se rappelait chaque détail de leur aventure
passé; Josef ne se rappelait rien. Dès la première seconde, leur recontre reposait sur une inégalité injuste et
révoltante. (p.118-119)
67
53
Na versão original:
Considérons le vieux journal de Josef comme une pièce d’archive conservant les notes du témoin authentique
d’un passé; les notes parlent des événements que leur auteur n’a pas de raisons de nier mais que sa mémoire ne
peut confirmer non plus. De tout ce que le journal raconte, un seul détail a allumé un souvenir net et,
certainement, précis: il s’est vu sur un chemin de fôret racontant à une lycéenne le mensonge de son
déménagement à Prague; cette petite scène, plus exactement cette ombre de scène (car il ne se rappelle que le
sens général de son propos et le fait d’avoir menti), est la parcelle de vie qui, ensommeillée, est restée stockée
dans sa mémoire. (p.116-117)
68
realizadas pelo narrador nos romances, um estudo que visaria à complementação dessa
análise e atribuiria importância à fortuna crítica do autor, que é recente no Brasil.
69
também é parte constituinte desse sistema, uma vez que para que um enredo seja bem
sucedido seja essencial o seu entendimento tanto por parte de quem cria (autor) quanto por
parte de quem atribui significado (leitor): nesse caso, partimos da visão de que o ato da
leitura é o principal momento de completude do significado de um texto54 e essa ocorrência
se dá principalmente durante o ato de produção da escrita, correspondente à narração.
Entretanto, uma narrativa não pode ser identificada somente pelo enredo e pela
narração, que diz respeito à história apresentada e pelo momento da sua escrita, mas
também pelo discurso – maneira como esse enredo é representado textualmente. A respeito
deste estudo que pretendemos realizar, importa-nos as considerações sobre o discurso e
seus modos de construção ao longo das narrativas kunderianas do ciclo francês: A lentidão,
A identidade e A ignorância.
Com isso, partiremos tanto das partes constituintes do texto como personagem,
autor/narrador, ponto de vista, ambientação, manipulação temporal e intertextualidade,
quanto das partes que conferem movimento ao discurso como ordem, duração e frequência.
O estudo de tais aspectos é essencial justamente por permitir uma visualização minuciosa
da construção do texto, da organização dos seus elementos constituintes e do ritmo da
narrativa (seu efeito).
Afirmar que Milan Kundera desenvolve suas narrativas francesas a partir de um
modo específico de planejamento da escrita faz todo sentido, porque o escritor não
somente possui em sua bibliografia vários romances, como também ensaios, nos quais se
dedica a falar sobre a sua escrita, os livros que o influenciaram, os modos como percebe o
gênero romance e a tradição romanesca, entre outras coisas. De modo que o próprio
Kundera em si poderia ser utilizado como o teórico da narrativa capaz de orientar esse
terceiro capítulo de nosso estudo.
No entanto, no que diz respeito a esses aspectos citados, resolvemos nos utilizar
das considerações de Gérard Genette, em Discurso da Narrativa, para uma orientação
sobre o papel essencial das partes definidas por ele na organização e no ritmo de uma
narrativa55:
54
Refiro-me aqui implicitamente a Roland Barthes e seus estudos sobre o texto e a participação do leitor em sua
significação e completude.
55
Com isso, não ignoro o fato de que o estudo de Genette tenha como objetivo por excelência a explicação e a
abordagem somente da narrativa proustiana. No entanto, justamente por ter sido um trabalho muito completo e
claro no que tange ao manuseio e a visualização das partes de uma narrativa, optamos por essa perspectiva para a
realização de uma análise textual mais eficiente.
71
56
Ver em: Discurso da Narrativa, p. 31
57
Ver em: idem, p.38-65.
58
Ver em: idem, p. 65-76.
59
Ver em: idem, p.85.
72
em como ele poderá ser medido, quantificado. Podemos partir da ideia de que o tempo
narrativo se apresenta por meio de um movimento pendular, oscilando entre diferentes
níveis de compreensão (passado, presente e futuro), o que gera por fim uma constante de
velocidade.
A divisão em unidades, então, será o recurso mais prudente para que se consiga
fazer uma análise da duração – com isso, a narrativa pode se ver igualada, por exemplo,
aos andamentos musicais (allegro, adagio, vivace...)60: surgirão, por consequência, os
termos pausa61, elipse62, cena63 e sumário64. Essas unidades aparecem intercaladas no texto
e cumprem uma característica diferente.
Chama-se cena a unidade narrativa que se compromete a escrever com detalhes a
totalidade do acontecimento no texto narrativo, enquanto o sumário apenas resume, sem
entrar em detalhes, a ação sofrida. Há nesse caso, uma oposição entre a duração e o nível
de detalhamento que compõem a unidade. No que diz respeito à pausa, ela se caracteriza
por ser uma unidade que visa à desaceleração do ritmo da narrativa, por meio da descrição
detalhada, interrompendo o andamento da ação. Enquanto a elipse, como o próprio termo
diz, cumpre a função de esconder, intencionalmente ou não, certas partes da ação que se
desenvolve e pode ser dividida entre explícita e implícita, apresentando variações.
O importante a se perceber, a partir dessas duas categorias acima exploradas, é o
fato de que ambas colaboram para que a história não surja de maneira linear e possa ser
abrangida por diversas possibilidades, aproximando diferentes acontecimentos e fazendo
nascer, a partir do modo em que são evocados, ligações que apontam para a causalidade e o
humor na narrativa. Além do mais, por serem recursos básicos e amplamente difundidos,
tanto a ordem quanto a duração aparecem naturalizadas como um “feito da memória, seja
na representação do fluxo de consciência do personagem [...] ou, com grau maior de
formalismo, nos diários ou nas lembranças de um personagem narrador” (LODGE, p.86,
2011).
Os aspectos de frequência65 são os menos estudados na maioria das análises
literárias e correspondem à produção e reprodução dos acontecimentos na narrativa; sendo
60
Essa consideração é pertinente, ainda mais nesse estudo, devido às aproximações do autor Milan Kundera com
a música em seus romances, algo já antes delineado com mais dedicação no primeiro capítulo.
61
Ver em: Discurso da Narrativa, p. 99-106.
62
Ver em: idem, p. 106-109.
63
Ver em: idem, p. 109-112.
64
Ver em: idem, p. 95-99.
65
Ver em: idem, p. 113.
73
66
Ver em: idem, p. 116.
67
Ver em: idem, p.115-153.
68
Ver em: idem, p. 116-117.
74
Além disso, o tempo não é apenas observável na narrativa quanto a sua produção,
mas também a sua recepção, uma vez que uma narrativa possui um destinatário que está
em um tempo distinto e exterior ao enredo apresentado. Outro ponto que merece um
entendimento maior dentro dessa reflexão diz respeito ao esclarecimento de que o tempo
da narrativa e o tempo físico não coincidem: ele é antes produto de uma experimentação,
que surge por meio de uma sequencialidade, do que a representação em páginas da
experiência cronológica real.
nulo (ilusão da mimese73), na outra ele seria visto como o meio pelo qual a narrativa é
contada. Isso nos mostra que a narrativa possui em sua constituição uma interferência a
qual não pode ser ignorada e que difere apenas em graus de intromissão da instância
narrativa. Desse modo, faz mais sentido, ao invés de utilizar a divisão platônica, usar a
divisão entre narrativa de acontecimentos e de fala: a primeira diz respeito à transcrição
das falas com presença mínima do narrador e maior de quantidade de informação
narrativa74, enquanto a segunda se aproxima à imitação, reprodução do mundo em
palavras. Fato importante a se saber é que a narrativa de acontecimentos favorece a
retratação da memória, uma vez que há uma distância maior entre quem relata e o objeto
do relato, além das temporalidades que são postas em ação.
Como consequência dessa reflexão sobre essas duas narrativas, configura-se uma
divisão em três aspectos do discurso75 do personagem: narrativizado (enunciado mais
próximo dos acontecimentos), transposto (narrador incorpora os acontecimentos ao seu
discurso) e relatado (narrador parece ceder à voz ao personagem). No que tange a
perspectiva, outro aspecto modalizante, podemos definir como o ponto de vista adotado
pelo narrador a fim de que a história seja tecida com os fios do discurso. Isso nos leva a
visão do papel do narrador como um organizador, estilista do texto; e ainda gera a
definição de três tipos de narrador76: onisciente, de ponto de vista e objetivo. Ele é
onisciente, pois tem o conhecimento de todos os personagens interna e externamente; de
ponto de vista porque sabe apenas o que o personagem lhe permite ver; e objetivo visto que
se situa apenas do lado de fora da situação que o personagem enfrenta. Logo, novamente,
vemos gradações que saem de uma maior para uma menor exposição em relação aos
personagens.
Há também as chamadas focalizações, que são representações do enfoque
narrativo dado aos personagens pelo narrador e possuem, assim como nos casos acima
citados, divisões e gradações: interna, externa e zero. E, ainda, as alterações cujas
identificações dizem respeito ao regulamento da quantidade de informação que é passada
na narrativa, funcionando como o ajustamento de uma lente: paralipse77 quanto menor a
informação for repassada e paralepse quanto maior. Todos esses aspectos de modo
73
Pois, segundo Genette, ainda que o narrador pareça não participar da história, gramaticalmente podem se
encontrar pistas de sua aparição por meio da linguagem, único meio que “significa sem imitar” (p.162).
74
O contrário disso seria o equivalente as características presentes na diegese: maior presença do narrador e
diminuição da informação narrativa.
75
Ver em: Discurso da Narrativa, p.167-183.
76
Ver em: idem, p. 184-187.
77
Ver em: idem, p. 193-194.
76
78
Ver em: idem, p.211.
79
Ver em: idem, p.211-260.
80
Ver em: idem, p.214-226.
81
Ver em: idem, p.226-242.
82
Ver em: idem, p.242- 258.
83
Ver em: idem, p.258-259.
77
Por se tratar de uma narrativa percebida por alguns teóricos como uma crítica
ácida de Kundera à velocidade e aos seus efeitos malignos em relação à existência humana,
provocada pela modernidade84, A lentidão irá trazer em seu cerne a oposição entre os
séculos XVIII/XXI e suas visões acerca do tempo, do erotismo e da vaidade: os
personagens desempenham, em séculos diferentes, papeis distintos em relação ao modo de
vivenciar os acontecimentos que desempenham.
A história é narrada de início por um narrador onisciente que opera com as
informações sobre os personagens ora com distância, ora com aproximação como é o
exemplo da construção do personagem Chechoripsky: ele aparece por vezes por meio da
retratação de seus pensamentos e emoções, sendo inclusive qualificado com muitos
predicativos (focalização interna); e por vezes também com uma distância tamanha a ponto
de sequer ser nomeado, sendo apenas referenciado por meio de ironias do narrador e pelas
ações desempenhadas (focalização externa). Um exemplo dessa última pode ser visto no
seguinte trecho:
84
Algo já mencionado em estudos como o de Tim Jones: Milan Kundera’s Slowness – making it slow (2009).
78
Enquanto a focalização interna pode ser vista, ainda sobre o mesmo personagem,
em:
85
No original:
Le hall se remplit peu à peu, il y a beaucoup d’entomologistes français et aussi quelques étrangers, parmi
lesquels un Tchèque dans la soixantaine dont on dit qu’il est une importante personnalité du nouveau régime,
peut-être un ministre ou le président de l’Académie des sciences ou au moins un chercheur appartenant à cette
même Académie. En tout cas, ne serait-ce que du point de vue de la simple curiosité, c’est personnage le plus
intéressant de ce rassemblement (il représente une nouvelle époque de l’Histoire aprés que le communisme s’en
est allé dans la nuit des temps) ; néanmoins, au milieu de la foule bavardant, il se dresse, grand et gauche, tout
esseulé. Depuis un bon moment les gens se sont précipités pour lui serrer la main et lui poser quelques questions
mais la discussion s’arrêtait toujours beaucoup plus tôt qu’ils ne s’y attendaient et, aprés les quatre premières
phrases échangées, ils ne savaient plus de quoi lui parler. Car, en fin de compte, il n’y avait pas de sujet
commun. Les Français sont revenus rapidement à leurs problèmes, il a essayé de les suivre, de temps en temps il
a ajouté <<chez nous, au contraire>>, puis, ayant compris que personne ne s’intérresait à ce qui se passait
<<chez nou, au contraire>>, il s’est éloigné, le visage voilé d’une mélancolie qui n’était ni amère ni
malheureuse, mais lucide et presque condescendante. (p.57-58)
86
No original:
Voilá donc la formule définitive: le savant tchèque est fier d’avoir été touché par la grâce d’une Actualité
Historique Planétaire Sublime. Il sait bien que cette grâce le distingue de tout les Norvégiens et Danois, de tout
les Français et Anglais présents avec lui dans la salle. (p.66)
79
87
No original:
Véra dort et moi, debout devant la fênetre ouverte, je regarde deux personnes qui se promènent dans le parc du
château par une nuit enlunée.
Tout à coup j’entends la respiration de Véra s’accélérer, je me retourne vers sont lit et je comprends que dans un
instant elle va se mettre à crier. Je ne l’ai jamais vue avoir des cauchemars ! Que se passe-t-il dans ce château?
Je la réveille et elle me regarde, les yeux grands ouverts pleins d’effroi. Puis elle raconte, avec précipitation,
comme dans un accès de fièvre : <<J’étais dans un très long
Couloir de cet hôtel. Tout à coup, de loin, un homme a surgi et a couru vers moi. Quand il est arrivé à une
dizaine de mètres, il s’est mis à crier. Et, imagine, il parlait tchèque! Des phrases complètement débiles:
<<Mickiewicz n’est pas tchèque ! Michiewicz est polonais ! >>Puis il s’est aprroché, menaçant, à quelques pas
de moi et c’est là que tu m’as réveille.
- Pardonne-moi, lui dis-je, tu es victime demes élucubrations.
- Comment ça ?
- Comme si tes rêves étaient une poubelle où je jette des pages trop sottes.
- Qu’est-ce que tu inventes ? Un roman ? >> demande-t-elle, angoissée.
J’incline la tête.
<< Tu m’as souvent dit vouloir écrire un jour un roman où ancun mot ne serair sérieux. Une Grande Bêtise Pour
Ton Plaisir. J’ai peur que le moment ne soit venu. Je veux seulement te prévenir : fais attention.>>
J’incline la tête encore plus bas.
80
<<Te rappelles-tu de que te disait ta maman ? J’entends sa voix comme si c’était hier : Milanku, cesse de faire
des plaisanteries. Personne ne te comprendra. Tu offenseras tout le monde et tout le monde finira par te détester.
Te rappelles-tu ?
- Oui, dis-je.
- Je te préviens. Le sérieux te protégeait. Le manque de sérieux te laissera nu devant les loups. Et tu sais qu’ils
t’attendent, les loups.>>
Après cette terrible prophétie, elle s’est rendormie. (p.92-94)
81
Sade – durante a cena de Vincent e Julie, onde o narrador reflete sobre o erotismo, a
menção ao caso de Henry Kissinger – utilizada pelo narrador a fim de introduzir a
personagem Immaculata e seu amor por Berck, em relação a uma possível história entre a
paixão não correspondida de uma jornalista parisiense por Kissinger, e a Vivant Denon –
que cumpre papel importante pois traz a narrativa de Denon e alguns de seus personagens a
fim de contrastar dois séculos e duas visões sobre o mundo e a modernidade.
Esse trecho, acima exposto, é um exemplo bem claro de como o narrador traz ao
plano da narrativa outra narrativa de origem exterior. E não apenas isso: ele transforma a
intertextualidade de modo que lhe convém, facilitando a composição e a introdução da
personagem Immaculata. Há ainda intromissão do narrador, não somente no fato de contar
uma experiência sua com um amigo, como também em um início de diálogo com seu
narratário – o qual ele julga como alguém talvez mais velho ou esquecido em relação à
lembrança do caso Kissinger. Ademais, a presença do narrador é também perceptível pelos
88
No original:
Cette histoire m’en rappelle une autre que j’ai la chance de connnâitre grâce à la bibliothèque qui couvre tous les
murs de l’appartement de Goujard. Une fois que je me plaignais de mon spleen devant lui, il me montra une
étagère portant une inscription de sa propre main : chefs-d’oeuvre d’humour involontaire et, avec un sourire
malin, en retira un livre qu’avait écrit, en 1972, une journaliste parisienne sur son amour pour Kissinger, si vous
voous rappelez encore le nom du plud fameux homme politique de cette époque, conseiller du président Nixon,
architecte de la paix entre l’Amérique et le Vietnam.
Voici l’histoire : elle joint Kissinger à Washington pour faire une interview avec lui, d’abord pour une revue,
puis pour la télévision. Ils ont plusieurs rendez-vouz mais sans jamais franchir les limites des rapports
strictement professionnels : un ou deux dîners pour préparer l’émission, quelques visites à son bureau de la
Maison-Blanche, dans sa maison privée, seule, puis entourée d’une équipe, etc. Peu à peu, Kissinger la prend en
grippe. (p. 50-51)
83
A lentidão (1995)
Capítulos pgs.
1 Viagem de Milan e Vera/ introdução à Madame T. 2,5
2 Madame T. e sua aventura 1,5
3 Sobre o hedonismo e Madame T./Ligações perigosas 2,25
4 Milan e Vera: as mazelas sociais e o protagonismo egóico 2
5 Sobre Duberques e Berck/introdução à Pontevin 2,5
6 Pontevin e Berck: o conceito de dançarino 2,75
7 Considerações de Pontevin 3
8 Vincent e Pontevin/Duberques: desdobramentos do conceito de dançarino 2
9 Vera e Madame T. 2,25
10 Madame T. e seus jogos 1,5
11 Madame T. e a memória como duração 2
12 Sobre Vivant Denon 1,25
13 Pontevin e Berck/Immaculata 1,75
14 Considerações do narrador e divagações do caso Kissinger 1,5
15 Immaculata e Berck 1,5
16 Encontro de entomologistas: Chechoripsky 4
17 Melancolia de Chechorippsky 2,5
18 Gafe de Chechoripsky e tentativa de protagonismo de Berck 2,25
19 Constrangimento de todos pós-discurso de Chechoripsky 1,25
20 Vincent e amigos no bar do colóquio/avistamento de Julie 2
21 Vincent e Julie: aproximação 1,5
22 Encerramento do colóquio: Berck e Chechoripsky conversam, Immaculata surge 2
23 Immaculata, Berck e Chechoripsky: colóquio 3,5
89
Essa parte merece um comentário, pois podemos perceber mais claramente o narrador como alguém dotado de
senso crítico e político: arquiteto da paz e Kissinger na mesma frase não fariam sentido algum para um narratário
que conhecesse o caso e tivesse a noção de que Kissinger é até hoje duramente criticado e visto como merecedor
de um julgamento pelas inúmeras mortes que causou, durante a sua atividade como conselheiro.
Segundo o site http://latinoamericana.org/2003/textos/portugues/Kissinger.htm, que trata sobre a mundialização
da justiça e os casos mundiais de violência, ele é responsável por inúmeras mortes em Vietnã, Camboja, Timor
Leste e Bangladesh; além de ter participado ativamente no golpe sofrido por Allende, no Chile.
84
A narrativa se ordena de modo interessante porque, ainda que trabalhe com dois
tempos aparentemente distintos, ela possui a maioria dos acontecimentos sendo relatados
no presente indicativo, contando com poucas remissões ao passado – sendo ele retratado
apenas quando necessário for para o entendimento de alguma explicação acerca de um
comportamento de um personagem. A utilização gramatical do presente90 pelo narrador
nos leva a entender e perceber os acontecimentos tal qual eles ocorressem simultaneamente
90
Dentro dessa afirmação do presente há, é claro, um monte de questões que entram em cena e fazem com que
essa concepção seja eventualmente alvo de reflexões e considerações filosóficas, como o fato de que por mais
que uma narrativa utilize essa forma verbal, tal forma será vista sempre pelo prisma de um objeto em movimento
constante, onde sua remissão já é automaticamente sua retrospecção: donde falar sobre um presente é falar sobre
um passado a partir do momento de sua emissão. Refletindo de acordo com tal pensamento, a ordenação de uma
narrativa, especialmente a prolepse, torna-se algo digno de questionamentos e novas formas de entendimento,
como é o caso do estudo About time: narrative, fiction and philosophy of time, de Mark Currie, 2007.
85
à narração e não fossem produtos de uma criação intencional dele, mas sim um relato de
fatos de alguém que observa e descreve uma sequência de eventos.
As anacronias existentes na ordem dizem respeito à ocorrência de analepses
externas expressas pelas remissões ao amor colegial de Berck por Immaculata – uma
inserção do narrador com o objetivo de mostrar a origem da obsessão da jornalista pelo
político; às disputas pela atenção e pelo apoio do público entre Duberques e Berck –
intentando mostrar uma retrospectiva das inúmeras vezes em que ambos estiveram frente
às câmeras realizando atos de extrema e superficial comoção; ao exílio de Chechoripsky e
sua mudança de vida – apresentando a sua história e o quanto o encontro de entomologista,
o fato de estar entre seus pares lhe significava e conferia outros contornos às dificuldades
enfrentadas durante o exílio (de pesquisador acadêmico a operário); ao caso erótico
existente entre Immaculata e o cameraman – trazido talvez como um elemento mais
descomplicado para o consolo da personagem e para a criação de outro drama e inserção
dos jogos românticos; e a própria narrativa de Vivant Denon como um todo – pela
distância temporal e com o intuito de estabelecer uma comparação crítica entre as
narrativas dos outros personagens; entre outras mais.
Um exemplo disso encontra-se no seguinte trecho:
91
No original:
Jusqu’au moment où elle a compris qu’elle était amoureuse de Berck, Immaculata avait vécu la vie de la plupart
des femmes : quelques mariages, quelques divorces, quelques amants que lui apportaient une déception aussi
constante que paisible et presque douce. Le dernier de ses amants l’adore particulièrement ; elle le supporte
mieux que les autres non seulement en raison de sa soumission mais aussi de son utilité : c’est un cameraman
qui, quand elle a commencé à travailler à la télévision, l’a beaucoup aidée. Il est un peu plus vieus qu’elle, mais a
l’air d’un éternel étudiant qui l’adore ; il la trouve la plus belle, la plus intelligente et (surtout) la plus sensible
entre toutes. (p.56-57)
86
maior a memorização: esse é o papel que a narrativa de Vivant Denon trazida pelo narrador
cumpre; enquanto as narrativas dos outros personagens, cada qual com sua história
antecedente e seu ritmo de surgimento e desaparecimento/enfoque, tornam-se velozes e
menos memorizáveis.
A percepção de que tais narrativas não perduram diz respeito ao fato de que os
fragmentos que as constituem e as tecem, passando pelo presente e passado, são
insuficientes para a constituição de uma história coesa e firme. Antes o narrador escolhesse
focar em uma personagem específica e a narrativa conseguiria se alongar no tempo, tornar-
se mais durável, contudo é o contrário que ocorre: eis a ironia contida no título A lentidão.
Se a disposição do tempo já confere um pequeno efeito de velocidade à narração,
a disposição dos acontecimentos será a principal responsável por uma ampliação desse
efeito, pois a narrativa apresenta os eventos distribuídos de acordo com um princípio de
alternância entre cenas, pausas, sumários e elipses. Essas distensões, representadas por
alongamentos e encurtamentos em relação aos capítulos, ganham respaldo a partir da
compreensão e consideração da tabela cima, que contém os capítulos e a quantidade de
páginas correspondentes a eles: há um capítulo de maior extensão seguido por outro de
menor extensão, que são por sua vez precedidos por outro de menor ou maior extensão e
assim por diante.
As cenas são mais abrangentes e possuem a maior quantidade de capítulos e de
páginas, porque é uma característica desse tipo a quantidade de descrição dos
acontecimentos e o nível de profundidade com o qual eles são abordados pelo narrador. Os
exemplos mais elucidativos das cenas estão nos capítulos em que Chechoripsky é
apresentado na narrativa, em que Vincent e Julie, Berck e Pontevin são aproximados e em
que Vincent, Julie, Chechoripsky, Immaculata e o cameraman se encontram no mesmo
espaço.
Sobre o primeiro, o narrador relata com detalhes a chegada de Chechoripsky,
desde a sua recepção e falta de assunto com os colegas, passando pelo retrato de seu
sentimento de melancolia e orgulho, até o momento de seu pronunciamento e as
consequências dele. Essa sequência é abrangida entre os capítulos 16 e 19 e compreende
em si a totalidade de 10 páginas da narrativa descritas em sequência.
A segunda cena detalhada, sem interrupções, diz respeito ao encontro de Julie e
Vincent fora do bar: são narrados os beijos furtivos, o desejo de Vincent em explorar o
corpo de Julie, tudo isso seguido de considerações sobre o erotismo e o exibicionismo
representados pela alusão ao marquês Sade – pois o rapaz é impelido por uma vontade
87
92
No original:
Cette histoire m’en rappelle une autre que j’ai la chance de connnâitre grâce à la bibliothèque qui couvre tous les
murs de l’appartement de Goujard. Une fois que je me plaignais de mon spleen devant lui, il me montra une
étagère portant une inscription de sa propre main : chefs-d’oeuvre d’humour involontaire et, avec un sourire
malin, en retira un livre qu’avait écrit [...]. (p.50)
88
aspecto danoso quanto à permanência do que é narrado. Logo, percebemos a tensão que
envolve o movimento das narrativas contempladas e relacionadas em A lentidão.
Os sumários correspondem às vezes em que um evento é reduzido e pode se
relacionar estritamente com a aparição das analepses na narrativa, visto que elas aparecem
de maneira resumida, contando apenas o essencial a ser dito sobre um episódio, privando o
narratário de maiores informações e detalhamentos. Dito isso, eles aparecem por meio das
analepses realizadas e já mencionadas aqui nesse estudo. Sobre eles, podemos dizer que
são categorias responsáveis por atribuir velocidade a narrativa, liberando toda a atenção
dispendida na delineação das cenas e fazendo com que a abordagem aos personagens e a
narrativa em si sejam menos exploradas.
As elipses são hipotéticas e por isso mesmo conferem uma rapidez ao discurso
narrativo: toda a narrativa se concentra na duração de uma tarde e uma noite em que o
narrador e sua esposa Vera irão passar em castelo na França, palco onde também é
realizado um encontro de entomólogos. Porém, a exatidão com que tais acontecimentos
ocorrem de acordo com o tempo é algo que não é explorado de modo claro na narrativa. As
menções ao tempo só são dadas no momento da chegada do casal ao castelo, do jantar e do
sono de ambos e a saída do castelo. No que diz respeito aos outros personagens, o tempo é
ainda mais diluído, fragmentado e possui poucas correspondências com o tempo da
história. Tudo isso corrobora para a origem de uma compreensão do tempo como fugidio,
característica da modernidade e principal critica atrelada a narrativa. A impressão é a de
que tudo tende a escapar, tal qual a memória quando é relacionada com a velocidade.
Sendo assim, o estudo e a análise de tais elementos narrativos nos permitem ver A
lentidão como uma narrativa que retrata a duração, correspondente à imagem com a qual a
memória aparece no discurso. O desenvolvimento de sua narração coloca em atividade
elementos dispostos na construção e na organização do texto que reforçam esse olhar para
a permanência como um efeito, objeto privilegiado no estudo dessa obra.
E ainda:
93
No original:
Un hôtel dans une petite ville au bord de la mer normande qu’ils avaient trouvé par hasard dans un guide.
Chantal arriva le vendredi soir pour y passer une nuit solitaire, sans Jean-Marc qui devait la rejoindre le
lendemain vers midi. Elle laissa une petite valise dans la chambre, sortit et, après une courte promenade dans des
rues inconnues, revin au restaurant de l’hôtel. À sept heures et demie, la salle était encore vide. Elle s’assit à une
table en attendant que quelqu’un l’aperçût. D’autre côté, près de la porte de la cuisine, deux serveuses étaient en
pleine discussion. Détestant hausser la voix, Chantal se leva, traversa la salle et s’arrêta près d’elles ; mais elles
étaient trop passionées par leur sujet. (p.9-10)
90
94
No original:
Est-il vraiment si froid, si insensiblle? Um jour, il y a plusieurs années, il apprit que F. L’avait trahi ; ah, le mot
est par trop romantique, sûrement exagéré, pourtant, il en fut bouleversé : dans une réunion, en son absence, tout
le monde attaqua Jean-Marc ce qui lui coûta plus tard son poste. À cette réunion, F. Etait présent. Il était là et il
ne dit pas un seul mot pour défendre Jean-Marc. Ses bras minuscules qui aiment tellement gesticuler ne firent
pas le moindre mouvement en faveur de son ami. Ne voulant pas se tromper, Jean-Marc vérifia minutieusement
que F. S’était vraiment tu. Quand il en eut une totale certitude, il se sentit pendant quelques minutes infiniment
blessé ; puis, il décida de ne plus jamais le revoir ; et immédiatement il fut saise d’un sentiment de soulagement,
inexplicablement joyeux. (p.18-19)
95
No original:
Cette recontre gâchée qui les a rendus incapables de s’embrasser a-t-elle vraiment eu lieu? Se rappelle-t-elle,
Chantal, ces quelques instants d’incompréhension ? Se rappelle-t-elle encore la phrase qui a troublé Jean-Marc ?
Guère. L’épisode a été oublié comme des milliers d’autres. Environ deux heures plus tard, ils déjeunent au
restaurant de l’hôtel et parlent gaiement de la mort. De la mort ? (p.38)
91
96
No original:
Il ouvre la porte de la chambre. Enfin, il la voit. Cette fois, sans le moindre doute, c’est ele, mais qui ne se
ressemble pas non plus. Son visage est vieux, son regard étrangement méchant. Comme si la femme à laquelle il
a fait des signes sur la plage devait dès maintenant et pour toujours se substituer à celle qu’il aime. Comme s’il
devait être puni pour son incapacité à la reconnaître.
<<Qu’est-ce qu’il y a ? Qu’est-ce qui s’est passé ?
- Rien, rien, dit-elle.
- Comment, rien ? Tu es complètement transformée.
- J’ai très mal dormi. Je n’ai presque pas dormi. J’ai passé une mauvaise matinée.
- Une mauvaise matinée ? Pourquoi ?
- Mais pour rien, pour vraiment rien.
- Dis-moi.
- Mais vraiment rien.>>
Il insiste. Elle finit par dire: <<Les hommes ne se retournent plus sur moi.>>
Il la regarde, incapable de comprendre ce qu’elle dit, ce qu’elle veut dire. Elle est triste parce que les hommes ne
se retournent plus sur elle ? Il veut lui dire: Et moi ? Et moi ? Moi qui te cherche sur des kilomètres de plage,
moi qui crie ton nom en pleurant et qui suis capable de courir après toi par toute la planète ? (p.32-33)
92
A identidade (1997)
Capítulos pgs.
1 Chantal aproveita o seu dia sem a presença de Jean-Marc no hotel 2,5
2 Sonho de Chantal com o passado 1
3 Visita de Jean-Marc ao amigo no hospital 1,75
4 A falta de lembranças de Jean-Marc sobre F. 1,75
5 Reflexões de Chantal à beira-mar 2,25
6 Jean-Marc procura por Chantal na praia 2,5
7 Chantal vai ao bar esperar por Jean-Marc 1,5
8 A confusão de Jean-Marc por não achar Chantal 1,25
9 A amargura de Chantal após um episódio no bar e volta de Jean-Marc ao hotel 2
10 Ambos almoçam no restaurante do hotel e falam sobre a morte 3,25
11 Chantal pensa no filho morte prematuramente 2
12 Sonho de Jean-Marc: Chantal irreconhecível 1,75
13 Jean-Marc reflete sobre a tristeza de Chantal 1,75
14 Chantal reflete sobre o filho e o impacto de sua morte 2
15 Chantal recebe uma carta 1,5
A morte de F.: Jean Marc conversa com Chantal e reflete sobre o fato da amizade
16 constituir um meio de memória 3,5
97
No original:
Je vois leurs deux têtes, de profil, éclairées par la lumière d’une petite lampe de chevet : la tête de Jean-Marc, la
nuque sur un oreiller ; la tête de Chantal penchée quelque dix centimètres au-dessus de lui.
Elle disait : <<Je ne te lâcherai plus du regard. Je te regarderai sans interruption.>>
Et après une pause : <<J’ai peur quand mon oeil clignote. Peur que pendant cette seconde où mon regard s’èteint
ne se glisse à ta place un serpent, un rat, un autre homme.>>
Il essayait de se soulever un peu pour la toucher de ses lèvres.
Elle hochait la tête : << Non, je veux seulement te regarder.>>
Et puis : << Je vais laisser la lampe allumée toute la nuit. Toutes les nuits.>> (p.206-207)
94
desse caráter memorialístico, a narrativa se caracteriza pela sua escrita no pretérito, tanto
das ações que os personagens sofrem no decorrer dela quanto das memórias e dos sonhos
que são evocados a partir disso.
As várias reflexões realizadas sobre a morte merecem nota, devido o importante
papel desempenhado por ela na criação de memórias; a brevidade da vida oferece um
contraste: podemos observar isso nos momentos em que Jean-Marc pensa em F. e em que
Chantal pensa no filho. As duas mortes lhes alteram a visão de mundo e de si mesmos
enquanto sujeitos e trazem grandes reviravoltas como a separação de um casamento e a
constatação de um eu completamente esquecido/renegado.
As anacronias existentes na ordem dizem respeito à ocorrência de várias analepses
expressas nos sonhos com o passado, nas recordações de momentos do colegial, nas
lembranças dolorosas em relação à morte, no jogo com as possibilidades em torno dos
remetentes das cartas, entre outros. Há um movimento que parte da ação dos personagens
em direção a eventos ocorridos anteriormente, os quais conferem a narrativa uma base de
abordagem muito mais ampla: visto que a identidade é uma narrativa constituída por meio
de inúmeras outras narrativas que se tocam e se somam, se assemelhando a uma celebração
móvel, pautada pela impermanência.98. Eis um exemplo de analepse:
98
Estamos aqui, de acordo com a perspectiva de Stuart Hall que vê a identidade sobre o prisma de uma
“celebração móvel”, que contraria a visão de uma identidade fixa, centrada em um eu que é por si só completo:
O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se
mais provisório, variável e problemático.
Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou
permanente. A identidade torna-se uma "celebração móvel": formada transformada continuamente em relação às
formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 1987). E
definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos,
identidades que não são unificadas ao redor de um "eu" coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias,
empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente
deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque
construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora "narrativa do eu" (veja Hall, 1990). A
identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que
os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade
desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada unia das quais poderíamos nos identificar — ao
menos temporariamente. (2006, p.12-13)
96
nascida para mudar de amantes, e esse sonho vago, lírico, foi depressa
adormecido durante o casamento, que se anunciava calmo e feliz. (p.32)99
NÚMERO DE ENFOQUES
CAPÍTULOS
1 a 17 4 7 6
99
No original:
Quand elle avait seize, dix-sept ans, elle chérissait une métaphore ; l’avait-elle inventée elle-même, l’avait-elle
entendue, lue ? peu importe : elle voulait être un parfum de rose, un parfum expansiff et conquérant, elle voulait
traverser ainsi toutes les hommes et, par les hommes, embrasser la terre entière. Parfum expansif de rose :
métaphore de l’aventure. Cette métaphore a éclos au seuil de sa vie adulte comme la promesse romantique d’une
douce promiscuité, comme une invitation au voyage à travers les hommes. Mais, de nature, elle n’était pas une
femme née pour changer d’amants, et ce rêve vague, lyrique, s’est vite endormi dans son mariage qui
s’annonçait calme et heureux. (p.54)
97
18 a 34 4 7 6
35 a 51 4 7 6
morte do filho de Chantal, trazendo com isso um elemento dramático que logo após
auxiliará na construção de outro acontecimento.
19
No dia seguinte ela foi ao cemitério (como faz pelo menos uma
vez por mês) e parou diante do túmulo do filho. Quando vai lá, sempre
fala com ele e naquele dia, como se sentisse necessidade de se explicar,
de se justificar, disse-lhe, meu querido, meu querido, não pense que não
te amo ou que não te amei, é precisamente porque te amei que não
poderia ter me tornado aquela que sou se você ainda estivesse aqui. É
impossível ter um filho e desprezar o mundo como ele é, pois foi a este
mundo que o destinamos. É por causa do filho que nos prendemos ao
mundo, pensamos no seu futuro, participamos de bom grado de seus
ruídos, de suas agitações, levamos a sério sua estupidez incurável. Com a
sua morte, você me privou do prazer de estar com você, mas ao mesmo
tempo me tornou livre. Livre diante do mundo que não amo. E, se posso
me permitir não amá-lo, é porque você não está mais aqui. Meus
pensamentos sombrios já não podem lhe trazer nenhuma maldição. Quero
100
No original:
- Oui, je vois, dit Jean-Marc, enchanté. C’est la vie même qui plane audessus de Hiroshima en la personne d’un
little boy qui lâche, sur les ruines, l’urine d’or de l’espoir. C’est ainsi que l’époque de l’après-guerre a été
inaugurée.>> Il prend son verre: << Trinquons!>>
11
Son fils avec cinq ans quand elle l’enterra. Plus tard, lors des vacances, as belle-soeur lui dit: <Tu est trop triste.
Il faut que tu aies un autre enfant. Il n’y a remarque de sa belle-soeur lui serra le coeur. Enfant: existence sans
biographie. Ombre qui rapidement s’efface dans son successeur. Mais elle ne désirait pas oublier son enfant.
Elle défendait son individualité irremplaçable. (p.43-44)
99
dizer-lhe agora, tantos anos depois que você me deixou, que compreendi
sua morte como um presente e que acabei aceitando esse terrível
presente.
20
Na manhã seguinte[...] (p.44-45)101
Ainda nos resta tecer algumas considerações sobre o recurso da elipse utilizado na
narrativa: como o tempo da narrativa é impreciso, sendo, portanto quase impossível
estipular com precisão a respeito da sua duração, nota-se a presença de várias elipses dos
tipos explícita e implícita. As referências temporais não nos propiciam uma formação de
uma sequência lógica em relação aos acontecimentos e isso, em parte, ocorre graças ao fato
de que a narrativa é antes focada em retratar um tempo psicológico102 do que em um tempo
físico propriamente dito. Os dias, meses e anos são trazidos em função do pathos suscitado
ou a suscitar, além de serem relatados tendo como principal motivo o desenvolvimento de
novas características à identidade do casal.
Tendo em vista as categorias trabalhadas, concluímos que o seu estudo e a sua
análise nos permitem ver A identidade como uma narrativa identitária que retrata o
espelhamento, correspondente à imagem com a qual a memória aparece no discurso. O
desenvolvimento de sua narração coloca em atividade elementos dispostos na construção e
na organização do texto que reforçam esse olhar para o espelhamento como um efeito,
objeto privilegiado no estudo dessa obra.
101
No original:
19
Le jour suivant elle est allée au cemitière (comme elle le fait au moins une fois par mois) est s’est arrêtée devant
la tombe de son fils. Quand elle est là, elle parle toujours avec luit et ce jour-là, comme si elle avait besoin de
s’expliquer, de se justifier, elle lui dit, mon chéri, mon chéri, ne pense pas que je ne t’aime pas ou que je ne t’ai
pas aimé, mais c’est précisément parce que je t’ai aimé que je n’aurais pu devenir celle que je suis si tu étais
toujours là. Il est impossible d’avoir un enfant et de mépriser le monde tel qu’il est, parce que c’est dans ce
monde que nous l’avons envoyé. C’est à cause de l’enfant que nous nous attachons au monde, pensons à son
avenir, participons volontiers à ses bruits, à ses agitations, prenons au sérieux son incurable bêtise. Par ta mort, tu
m’as privée du plaisir d’être avec toi, mais en même temps tu m’as rendre libre. Libre dans mon face-à-face avec
le monde que je n’aime pas. Et si je peux me permettre de ne pas l’aimer, c’est parce que tu n’es plus lá. Mes
pensées sombres ne peuvent plus t’apporter aucune malédiction. Je veux te dire maintenant, tant d’années après
que tu m’as quittée, que j’ai compris ta mort comme un cadeau et que j’ai fini par l’accepter, ce terrible cadeau.
20
Le lendemain matin[...]
102
Assumimos como tempo psicológico aquele tempo no qual a contagem dos eventos se dá antes pelas emoções
suscitadas, do que pela sequência das ações desempenhadas. É um tempo antes interno do que externo e diz
respeito à apreensão dos eventos pela consciência e pela reação que eles nos suscitam.
100
“O que é que você ainda está fazendo aqui!” Sua voz não era
maldosa, mas também não era gentil; Sylvie estava irritada.
“E onde deveria estar?”, perguntou Irena.
“Na sua casa!”
Claro, não queria expulsá-la da França, nem fazer com que
pensasse que era uma estrangeira indesejável: “Você sabe o que estou
querendo dizer!”.
“Sim, sei, mas você se esquece de que é aqui que tenho meu
trabalho? Meu apartamento? Meus filhos?”
“Escute, conheço Gustaf. Ele cuidará de tudo para que você possa
voltar para a sua terra. Quanto a suas filhas, não me venha com
brincadeiras! Elas já têm a vida delas! Meu Deus, Irena, o que está
acontecendo no seu país é tão fascinante! Numa situação dessas as coisas
sempre se arranjam.”
“Mas, Sylvie! Não são só os aspectos práticos, o trabalho, o
apartamento. Eu vivo aqui há vinte anos. Minha vida é aqui!”
“Houve uma revolução na sua terra!” Disse isso num tom que não
admitia contestação. Depois ficou calada. Com esse silêncio, queria dizer
a Irena que, quando grandes coisas acontecem não se deve desertar.
“Mas, se eu voltar para meu país, não nos veremos mais”, disse
Irena, para desconcertar a amiga. (p.7)103
103
No original:
<<Qu’est-ce que tu faires encore ici!>> As voix n’était pas méchante, mais elle n’était pas gentille non plus;
Sylvie se fâchait.
<<Et où devrais-je être ? demanda Irena .
101
Além disso, quando Irena recebe a visita de sua mãe durante os anos de exílio e
ambas vão a um museu para conhecer uma exposição de arte, observamos a predominância
de uma focalização interna, que diz respeito aos questionamentos e indagações realizadas
pela imigrante frente ao desinteresse de sua mãe a respeito de sua nova vida e da cultura
francesa: o encontro se torna um embate entre uma tentativa de mostrar o presente, em face
da necessidade de se falar de um passado. Isso ocorre no seguinte fragmento:
- Chez toi !
- Tu veux dire qu’ici je ne suis plus chez moi ?>>
Bien sûr, elle ne voulait pas la chasser de France, ni lui donner à penser qu’elle était une étrangère indésirable :
<<Tu sais ce que je veux dire !
- Oui, je le sais, mais est-ce que tu oublies que j’ai ici mon travail ? mon appartement ? mes enfants ?
- Écoute, je connais Gustaf. Il fera tout pour que tu puisses rentre dans ton pays. Et tes filles, ne me raconte pas
de blagues ! Elles ont déjà leur propre vie ! Mon Dieu, Irena, ce qui se passe chez voous est tellement fascinant !
Dans une situation pareille les choses s’arrangent toujours.
- Mais Sylvie ! Il n’y a pas que les choses pratiques, l’emploi, l’appartement. Je vis ici depuis vingt ans. Ma vie
est ici !
- C’est la révolution chez vous !>> Elle dit sur un ton qui ne supportait pas la contestation. Puis elle se tut. Par ce
silence, elle voulait dire à Irena qu’il ne faut pas déserter quand des grandes choses se passent.
<< Mais si je rentre dans mon pays, nous ne nous verrons plus>>, dit Irena, pour mettre son amie dans
l’embarras. (p.9-10)
102
diz? Por que Michelangelo, que ela viu com um grupo de turistas tchecos,
a encanta mais do que Rodin? E por quê, durante esses cinco dias, não lhe
faz nenhuma pergunta? Nenhuma pergunta sobre sua vida, e tampouco
sobre a França, sobre sua culinária, sua literatura, seus queijos e seus
vinhos [...] (p.16-17)104
104
No original:
Pourtant, à mesure que le temps se passait, la sévérité de l’anathème s’affaiblissait et, quelques années avant
1989, la mère d’Irena, veuve toute récente, retraitée inoffensive, obtint son visa pour passer, avec une agence de
voyages d’État, une semaine en Italie ; l’année suivante, elle décida de rester cinq jours à Paris et de voir
secrètement sa fille. Émue, pleine de pitié pour une mère qu’elle imaginanit vieille, Irena lui réserva une
chambre à l’hôtel et sacrifia un bout de ses vacances pour pouvoir être tout le temps avec elle.
<<Tu n’as pas l’air si mal>>, lui dit la mère quand elles se virent. Puis, en riant, elle ajouta : << Moi non plus,
d’ailleurs. Quand le policier à la frontière a regardé mon passeport, il m’a dit : c’est un faux passeport, madame !
ce n’est pas votre date de naissance !>> D’emblée, Irena retrouva sa mère telle qu’elle l’avait toujours connue et
eut le sentiment que rien n’avait changé après ces presque vingt ans. La pitié pour une mère vieille s’évapora. La
fille et la mère se firent face comme deux êtres hors du temps, comme deux essences intemporelles.
Mais n’est-ce pas très mal qu’une fille ne se réjouisse pas de la présence de sa mère qui, après dix-sept ans, est
venue la voir ? Irena mobilisa toute sa raison, tout son sens moral, pour se comporter en fille dévouée. [...]
Au lieu de Van Gogh, Irena lui offrit le musée Rodin. Devant l’une de ses statues, la mère soupira, rêveuse: <<
À Florence, j’ai vu le David de Michel-Ange! Je suis restée sans voix ! – Écoute, explosa Irena, tu es à Paris
avec moi, je te montre Rodin, Rodin! Tu entends, Rodin ! Tu ne l’as jamais vu, pourquoi donc, devant Rodin,
penses-tu à Michel-Ange ?>>
La question était juste : pourquoi la mère, quand elle retrouve sa fille après des années, ne s’intéresse-t-elle pas à
ce que celle-ci lui montre et lui dit ? Pourquoi Michel-Ange, qu’elle a vu avec un groupe de touristes tchèques, la
captive-t-il plus que Rodin ? Et pourquoi, tout au long de ces cinq jours, ne lui pose-t-elle aucune question ?
Aucune question sur sa vie, et aucune non plus sur la France, sur sa cuisine, sa littérature, ses froame, ses vins
[...] (p.23-24)
103
Esse excerto é interessante, pois nos oferece uma visão bem clara dos dois níveis
de interferência na narrativa realizados pelo narrador: o primeiro que corresponde a uma
forma mais sutil, onde os questionamentos dele se entremeiam com os de Irena, uma vez
que não é possível estabelecer em que ponto essas indagações entre parênteses são
provenientes dela ou de quem a narra; e o segundo correspondente a inserção da história de
Ulisses, no capítulo seguinte, a fim de continuar a tematização do retorno e, com ele, da
nostalgia vivenciada tanto por Ulisses quanto por Irena, conforme veremos ao longo da
narrativa.
O desenvolvimento dos personagens será um dos meios principais para a
observação da memória como um esforço de repetição, uma imagem a ser montada ao
longo da narrativa. É necessário que o passado de Irena reapareça por meio das mais
diversas lembranças, com maior intensidade, para que consigamos compreender quem é
ela e por quais acontecimentos ela passou até o momento de seu retorno e adaptação; assim
105
No original:
Elle fut saisie de la même panique qu’autrefois dans ses rêves d’émigration : par la force magique d’une robe,
elle se voyait emprisionnée dans une ie dont elle ne voulait pas et dont elle ne serait plus capable de sortir.
Comme si, jadis, au début de sa vie adulte, elle avait eu devant elle plusieurs vies possibles parmi lesquelles elle
avait fini par choisir celle qui l’avait amenée en France. Et comme si ces autres vies, refusées et abandonnées,
restaient toujours prêtes pour elle et la guettaient jalousement depuis leurs abris. L’une d’elles s’emparait
maintenant Irena et l’enserrait dans sa nouvelle robe comme dans une camisole de force.
Effrayée, elle courut ches Gustaf (il avait un pied-à-terre dans le centre-ville) et se changea. De nouveau dans
son tailleur d’hiver, elle regarda par la fenêtre. Le ciel était couvert et les arbres fléchissaient sous le vent. Il
n’avait fait chaud que quelques heures. Quelques heures de chaleur pour lui jouer un tour de cauchemar, pous lui
parler de l’horreur du retour.
(Était-ce un rêve ? Son dernier rêve d’émigration ? Mais non, tout cela était réel. Toutefois, elle eut l’impression
que les pièges dont ces rêves d’autrefois lui avaient parlé n’avaient pas disparu qu’ils étaient toujours là, toujours
prêts, guettant son passage.)
9
Pendant les vingt aans de son absence, les Itchaquois gardaient beaucoup de souvenirs d’Ulysse, mais ne
ressentaient pour lui aucune nostalgie. Tandis qu’Ulysse souffrait de nostalgie et ne se souvenait de presque-rien.
(p35-36)
104
106
No original:
Les autres femmes l’assaillent de questions : <<Irena, tu te rappelles quand...>> Et : <<Tu sais que ci s’est passé
alors avec... ?>> <<Mais non, quand même tu dois te souvenir de lui !>> << Ce mec avec de grandes oreilles, tu
t’es toujours moquée de lui !>> <<Mais tu ne peux pas l’avoir oublié ! Il ne parle que de toi !>>
Jusqu’alors elles ne s’intéressaient pas à ce qu’elle tentait de leur raconter. Que signifie cette offensive
soudaine ? Que veulent apprendre celles qui n’ont rien voulu entendre ? Elle comprend vite que leurs questions
105
sont spéciales : des questions pour contrôler si elle connaît ce qu’elles connaissent, si elle se souvient de ce dont
elles se souviennent. Cela lui fait une ètrange impression qui ne la quittera plus.
D’abord, par leur désintérêt total envers ce qu’elle a vécu à l’étranger, elles l’ont amputée d’une vingtaine
d’années de vie. Maintenant, par cet interrogatoire, elles essaient de recoudre son passé ancien et sa vie présente.
Comme si elles l’amputaient de son avant-bras et fixaient en la main directement au coude ; comme si elles
l’amputaient des mollets et joignaient ses pieds aux genoux. (p.44-45)
107
No original:
- Ce soir je serai déjà chez moi.
-Quand tu dis chez moi, tu veux dire...
- Au Danemark.
- C’est si étrange de t’entendre dire cela. Ton chez-toi, donc, ce n’est plus ici ? demanda la femme de N.
- Non. C’est là-bas.
Il y eut un long moment de silence et Josef s’attendit à des questions : si le Danemark est vraiment ton chez-toi,
comment est-ce que tu vis là-bas ? Et avec qui ? Raconte ! Comment est ta Maison? Qui est ta femme? Es-tu
heureux? Raconte! Raconte!
Mais ni N. ni sa femme ne prononcèrent aucune de ces questions. Pendant une seconde, une clôture basse en bois
et un sapin apparurent devant Josef.
<<Il faut que je m’en aille>>, dit-il, et ils se dirigèrent tous vers l’escalier. En montant, ils se taisaient et, dans ce
silence, Josef fut soudain frappé par l’absence de sa femme ; il n’y avait pas ici une seule trace de son être.
Pendant les trois jours passés dans ce pays, personne n’avait dit un seul mot à son sujet. Il comprit : s’il restait
ici, il la perdrait. S’il restait ici, elle disparaîtrait. (p.148-149)
106
Com isso, a necessidade de tanto Irena quanto Josef quererem contar, àqueles que
habitavam o seu passado antes do exílio, sobre os anos de exílio é a necessidade de
construção de um discurso autobiográfico, uma narrativa identitária e, sobretudo, uma
narrativa feita através da relação com o outro. A impossibilidade do relato é a
impossibilidade da estruturação de uma identidade, de modo que o não contar implica para
eles em um não ser, o principal motivo da angústia e da indignação. O retorno é amargo,
porque com ele vem a supressão da experiência de vida de ambos e, como consequência,
se tem a incompletude na busca da identidade.
Ricoeur já orientava as suas discussões para essa ligação entre história e ficção na
construção da identidade, seja por meio dos conceitos de ipseidade (identidade-ipse,
manutenção de si pela recusa da mudança) e mesmidade (identidade-idem, conceito de
relação entre diferentes critérios de permanência)108 presente em O si mesmo como um
outro, seja por meio da explicação do que vem a ser a identidade narrativa, em Tempo e
Narrativa - tomo III: “a história narrada diz o quem da ação. A identidade do quem é
apenas, portanto, uma identidade narrativa” (1997, p.424) . Com isso, através da
construção da narrativa de si, o sujeito se torna, ao mesmo tempo, autor e leitor de sua
vida. Ricoeur (1997) ainda completa:
108
Tanto os conceitos de ipseidade e mesmidade em parênteses foram retirados do artigo “Mesmidade, ipseidade
e vontade: as aporias da noção Ricoeuriana de subjetividade”, de autoria de João B. Bolton, pesquisador em
Filosofia da UFMG, publicada na revista Impulso.
107
A ignorância (2000)
capítulos pgs.
1 Sylvie e Irena falam sobre o retorno 1,5
2 Reflexão do narrador sobre a nostalgia e o retorno/ Ulisses 3
3 Sobre Skacel e os tchecos, a duração do tempo 3,25
4 Os sonhos de exílio de Irena e de Martin 1,5
5 Irena e a visita da mãe durante o exílio 2,75
6 Pós visita da mãe e conversa entre entre Irena e Gustaf sobre Praga 2,75
7 O encontro de Gustaf com Irena e Martin 2
8 O retorno de Irena 2
9 Odisseia e o retorno amargo de Ulisses 1,25
10 Irena procura se encontrar com antigas amigas 2,5
11 O reencontro de Irena e Milada, o único toque de afeição/amputamento 4
12 O encontro de Irena com alguém do passado 2
108
109
No original:
110
Ils le conduisirent à travers l’appartement pour lui montrer les changements survenus après son départ. Dans une
pièce il vit un tableau qui lui avait appartenu. Après s’être décidé à quitter le pays, il avait dû agir vite. Il habitait
alors une autre ville de province et, obligé de tenir secrète son intention d’émigrer, il ne pouvait pas se trahir en
distribuant ses biens à ses amis. La veille de son départ, il avait mis clés dans une enveloppe et les avait
envoyées à son frère. Puis il lui avait téléphoné de l’étranger et l’avait prié de prendre dans l’appartement tout ce
qui lui convenait avant que l’État ne le confisque. Plus tard, installé au Danemark, heureux de commencer une
nouvelle vie, il n’avait pas eu la moindre envie d’essayer de savoir ce que son frère avait réussi à sauver et ce
qu’il en avait fait. (p.60-61)
110
No original :
Calypso, ah Calypso ! Je pense souvent à elle. Elle a aimé Ulysse. Ils ont vécu ensemble sept ans durant. On ne
sait pas pendant de combien de temps Ulysse avait partagé le lit de Pénélope, mais certainement pas aussi
longtemps. Pourtant on exalte la douleur de Pénélope et on se moque des pleurs de Calypso.
3
Tels des coups de hache, les grandes dates marquent le xx° siècle européen de profondes entailles. La première
guerre de 1914, la deuxième, puis la troisième, la plus longue, dite froide, qui se termine en 1989 avec la
111
Por se tratar de uma narrativa que opera com o resgate de lembranças e das
reações ocasionadas desse surgimento, as cenas aparecem em menor proporção, por meio
de uma duração menor no discurso. É interessante entender que o foco central da narrativa
privilegia mais as reflexões e os pensamentos acerca dos personagens do que suas ações no
período de tempo abordado; por isso mesmo há a ocorrência de repetições, que servem
como desdobramentos realizados fora da linha do tempo, suspensões dos acontecimentos.
Um exemplo de uma cena ocorre quando Irena se encontra com as antigas amigas e
procura reestabelecer o antigo sentimento de amizade para com elas.
Tal laço é rompido a partir do momento em que ela percebe nas amigas o
desinteresse pela sua trajetória fora do país e a tentativa de imposição de um passado do
qual não compartilhava. Nesse momento, o narrador descreve a cena detalhadamente,
quase se ausentando da narração, dando espaço às falas dos personagens envolvidos e de
suas ações:
disparition du communisme. Outre ces grandes dates qui concernent toute l’Europe, des dates d’importance
secondaire déterminent les destins de nations particulières : l’an 1936 de la guerre civile en Espagne; l’an de
1956 de l’invasion russe en Hongrie; l’an 1948, quand les Yugoslaves se révoltèrent contre Staline et l’an 1991,
quand ils se mirent tous ensemble à s’entretuer. (p. 15-16)
112
você sempre caçoou dele!” “Mas você não pode ter se esquecido dele!
Ele só fala de você!”
Até então não se interessavam por aquilo que ela tentava lhes
contar. O que significava essa ofensiva súbita? O que querem saber
aquelas mulheres que nada querem ouvir? Compreende rapidamente que
as perguntas delas são especiais: perguntas para saber se ela conhece
aquilo que elas conhecem, se se lembra daquilo que se lembram. Isso lhe
dá uma estranha impressão que não a deixará mais [...] (p. 30-31)111
Os sumários aparecem bastante nessa narrativa, visto que eles constituem o meio
por excelência de surgimento de algumas analepses na narrativa, cumprindo o papel de
representificar algumas memórias importantes para os personagens principais, como é o
caso de um sumário realizado pelo narrador, a fim de explicar toda a situação envolvida na
morte da esposa de Josef, bem como a relação complicada entre o exilado e a família de
sua ex-mulher. Ao contrário do que é visto em A lentidão, nesse romance os sumários não
atribuem velocidade a narrativa, apenas servem a título de explicar ou introduzir novos
olhares sobre os personagens, reforçando a repetição.
111
No original :
Elle se parlent depuis un long moment dans un coin de la pièce quand les autres s’approchent en les entourent.
Comme si elles se reprochaient de ne pas s’occuper assez de leur amphitryonne, elles sont bavardes (l’ivresse de
la bière rend plus bruyant et plus bonasse que celle du vin) et affectueuses. La femme qui, dès le début de leur
réunion, a réclamé de la bière s’exclame : <<Il faut quand même que je goûte ton vin !>> et elle appelle le
garçon qui ouvre d’autres bouteilles et remplit des verres.
Irena est sous l’emprise d’une vision soudaine : des chopes de bière à la main et riant bruyamment, un groupe de
femmes accourt vers elle qui disntigue des mots tchèques et comprend, avec effroi, qu’elle n’est pas en France,
qu’elle est à Prague et qu’elle est perdue. Ah, oui, un des ses vieux rêves d’émigration dont elle chasse vite le
souvenir : ces femmes autour d’elle ne boivent d’ailleurs plus de bière, elles lèvent des verres de vin et trinquent
encore une fois à la fille retrouvée ; puis l’une d’elles, rayonnante, lui dit : <<Tu te rappelles ? Je t’ai écrit qu’il
est grand temps, grand temps que tu reviennes !>>
Qui est cette femme ? Toute la soirée, elle n’a cessé de parler de la maladie de son mari, s’attardant, excitée, sur
tous les détails morbides. Enfin, Irena la recconaît : sa camarade de lycée qui, la semaine même où le
communisme est tombé, lui a écrit : << Oh, ma chère, nous sommes déjà vieilles ! Il est grand temps que tu
reviennes !>> Encore une fois, elle répète cette phrase et, dans son visage épaissi, un grand sourire dévoile un
dentier.
Les autres femmes l’assaillent de questions : <<Irena, tu te rappelles quand...>> Et : <<Tu sais que ci s’est passé
alors avec... ?>> <<Mais non, quand même tu dois te souvenir de lui !>> << Ce mec avec de grandes oreilles, tu
t’es toujours moquée de lui !>> <<Mais tu ne peux pas l’avoir oublié ! Il ne parle que de toi !>> (p.43-44)
112
No original:
Mourir em même temps qu’elle, cette idée l’attirait depuis longtemps. Ellen’était pas due à une emphase
romantique, plutôt à une réflexion rationelle : dans le cas d’une maladie mortelle de sa femme, il avait décidé
d’abréger sa souffrance ; pour ne pas être accusé de meurtre, il comptait mourir lui aussi. Puis elle tomba
113
Josef visitara seu ateliê nos anos 60, quando a doutrina oficial
perdia sua força e o pintor já tinha liberdade para fazer o que quisesse.
Sinceramente ingênuo, Josef preferira esse quadro antigo aos novos, e o
pintor, que tinha por seu fauvismo operário um misto de simpatia com
condescendência, lhe dera o quadro de presente sem se lamentar; até
mesmo pegara o pincel e, ao lado da assinatura, fizera uma dedicatória
com o nome de Josef.
“Você chegou a conhecer bem esse pintor”, comentou o irmão.
“Sim. Salvei seu caniche.”
“Você vai visita-lo?”
“Não.”
Pouco depois de 1989, Josef tinha recebido na Dinamarca um
embrulho com fotografias de novos quadros do pintor, criados dessa vez
em plena liberdade: não se distinguiam dos milhões de outros quadros
que se pintavam então no planeta; o pintor podia se vangloriar de uma
dupla vitória: ele era totalmente livre e totalmente igual a todo mundo.
(p.43)113
vraiment malade, désespérément malade, et Josef ne pensa plus au suicide. Non intolérable de laisser ce corps
tellementaimé à la merci de mains étrangères. Lui mort, qui protégerait la morte ? Comment un cadavre en
défenderait-il un autre ? (p.108)
113
No original:
Josef avait visité son atelier dans les années soixante alors que la doctrine officielle perdait de sa force et que le
peintre était déjà libre de faire à peu près ce qu’il voulait. Naïvement sincère, Josef avait préféré ce tableau
ancien aux nouveaux, et le peintre, qui avait pour son fauvisme ouvriériste une sympathie mêlée de
condescendance, lui en avait fait cadeau sans regret ; il avait même pris le pinceau et, à côté de sa signature,
inscrit une dédicace avec le nom de Josef.
<< Tu as bien connu ce peintre, remarqua le frère.
- Oui, J’ai sauvé son caniche.
- Tu vas aller le voir ?
- Non.>>
Peu après 1989, Josef avait reçu au Danemark un paquet de photos des nouveaux tableaux du peintre, créés cette
fois en pleine liberté : il étaient indistinguables des millions d’autres tableaux qui se peignaient alors sur la
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Tendo em vista as categorias trabalhadas, concluímos que o seu estudo e a sua análise
nos permitem ver A ignorância como uma narrativa que retrata o esforço de repetição
empreendido na configuração das identidades dos personagens principais, correspondente à
imagem com a qual a memória aparece no discurso. O desenvolvimento de sua narração
coloca em atividade elementos dispostos na construção e na organização do texto que
reforçam esse olhar para a repetição como um efeito, objeto privilegiado no estudo dessa
obra.
planète ; le peintre pouvait dse vanter d’une double victoire : il était totalement libre et totalement pareil à tout le
monde. (p.62)
115
CONCLUSÃO
Por mais que um trabalho acadêmico vise uma resposta certeira sobre os
questionamentos acerca do objeto estudado, seria ingenuidade tamanha não considerar o
fato de que é impossível a apreensão do todo. Abordar um autor, uma obra em sua
completude requer fôlego, demanda um tempo que, por muitas vezes, ultrapassa a duração
de uma pesquisa. Dito isso, a pretensão desse estudo não é atribuir certezas em relação à
abordagem dos efeitos das imagens de memória nas narrativas A lentidão (1995), A
identidade (1997) e A ignorância (2000), ainda que institucionalmente isso seja
reconhecido como tal.
A finalidade, se é que uma pesquisa realmente consiga chegar a um fim, a qual esse
texto tentou alcançar, diz respeito à proposta de um modo de observação de certas nuances
que foram percebidas em leituras prévias dos romances; e nisso houve algumas escolhas a
se fazer, como, por exemplo, a seleção dos trechos sobre memória: há muito mais trechos
que poderiam estar contidos dentro do corpo da pesquisa, porém em face de uma escolha
de trechos mais significativos, alguns fragmentos tiveram de ser descartados.
Outra distinção realizada diz respeito aos aspectos textuais estudados –
personagens, narrador, ordem e duração: observados a partir de um critério que diz respeito
a uma forma de melhor representar os movimentos da narrativa e o modo de construção e
organização dela. Não procuramos encaixar a narrativa dentro dessas disposições, e sim
observamos uma teoria que conseguisse demonstrar com mais precisão os efeitos notados.
Com tais escolhas, o que menos se procura aqui é o fechamento da questão sobre as
imagens da memória e a construção da narrativa; muito pelo contrário, qualquer estudo que
conteste isso ou que apresente uma versão diferente dessa reflexão é certamente muito bem
vindo e só tem a contribuir para a fortuna crítica de Kundera, uma fortuna ainda pouco
explorada e com chances de um crescimento qualitativo.
Sendo assim, esperamos que a leitura tenha trazido até então perspectivas
satisfatórias acerca desse trabalho de Milan Kundera com os romances em uma língua que
não é a sua materna, com novas reflexões em torno da memória e com diferenças
substanciais em relação aos seus romances mais antigos. A única coisa a qual afirmamos
com alguma base mais firme é o fato de que o ciclo francês parece inaugurar uma fase
nova de Kundera. Se isso já era perceptível seja pela escolha da língua, seja pela leitura das
obras antes dessa análise realizada com mais detalhes, após o estudo essa crença passa a
tomar contornos mais delineados.
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