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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

Faculdade de Letras

LORENA DO ROSÁRIO SILVA

IMAGENS DA MEMÓRIA E SEUS EFEITOS EM A LENTIDÃO, A


IDENTIDADE E A IGNORÂNCIA, DE MILAN KUNDERA

Belo Horizonte

2018
Lorena do Rosário Silva

IMAGENS DA MEMÓRIA E SEUS EFEITOS EM A LENTIDÃO, A


IDENTIDADE E A IGNORÂNCIA, DE MILAN KUNDERA

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado da


Faculdade de Letras da Universidade Federal de
Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção
do título de Mestre em Literaturas Modernas e
Contemporâneas.

Área de Concentração: Literaturas Modernas e


Contemporâneas

Linha de Pesquisa: Literatura, História e Memória


Cultural

Orientadora: Profª Drª Anna Palma

Universidade Federal de Minas Gerais

Belo Horizonte

Faculdade de Letras da UFMG

2018
Para Ana, Antônio e Juliana, minhas raízes
nesse mundo.
AGRADECIMENTOS

Muitos foram os caminhos traçados para que este estudo tenha se tornado
possível: primeiramente, é necessário agradecer às instituições cuja participação consta,
ainda que indiretamente, desde os momentos iniciais até os momentos finais desse
trabalho: agradeço à CAPES, pelo financiamento recebido e pelo apoio institucional; à
UFMG e ao Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras, por
toda a estrutura científica e tecnológica fornecidas durante o meu vínculo acadêmico.

Não poderia estar mais agradecida a minha orientadora, Profª Anna Palma, por
todo o tempo e a atenção despendidos a esse trabalho e a minha trajetória como estudante,
durante o período em que frequentei as disciplinas. Agradeço-lhe também pela paciência
em lidar com o meu processo de escrita, pela persistência no auxílio dos materiais de
pesquisa, pelo interesse em se aproximar do meu objeto tão pouco abordado e pelos
conselhos e comentários realizados ao longo desse tempo.

Uma dedicatória me parece insuficiente para demonstrar toda minha gratidão em


relação à minha família. Sou imensamente grata pelo apoio, pela preocupação e pelo
incentivo a sempre me superar, a ir além dos limites que me auto imponho. Com vocês,
aprendo a cada dia mais o quão livre, forte e leve o amor é.

Agradeço às amizades antigas e as novas que esse período me proporcionou. A


Ricardo, Aline, Raquel, Iury, Viviane, agradeço imensamente pelo suporte emocional,
físico e intelectual, não somente ao longo do mestrado, mas antes dele inclusive. A
Giovani e Aline Medeiros, pela doçura e pelo alivio em vários momentos. Em muitas
páginas, há a presença de vocês, não escrevo sozinha. A Alice, Bárbara e Sâmia, amizades
construídas durante as disciplinas, sou grata pelos momentos contagiantes e leves em aulas,
intervalos e encontros; aprendi muitas coisas com vocês. Aos colegas do Poslit (UFMG) e
do Posletras (UFOP), bem como aos professores, todo o meu carinho e respeito, pelo
aprendizado diário e pelas reflexões proporcionadas ao longo dessa trajetória.

A Calvin, Luan, Diego, Dayana e Jéssica pelo ouvido atento e amoroso durante o
meu processo de escrita e a tantas outras pessoas, as quais não menciono aqui
nominalmente pelo risco de esquecer algum nome, que se preocuparam, conversaram
comigo a respeito desse estudo e dividiram o peso do cotidiano, sou também imensamente
grata.
Como condenar o que é efêmero? As nuvens
alaranjadas do crepúsculo douram todas as
coisas com o encantamento da nostalgia; até
mesmo a guilhotina.

A insustentável leveza do ser, Milan Kundera


RESUMO

Ao longo dos últimos anos, a memória vem sido explorada por Milan Kundera
nos seus romances em tcheco por meio das suas relações explícitas com o passado e o
esquecimento. Com o início de seu ciclo francês, a partir dos anos 90, o autor inaugura
uma nova compreensão acerca da memória na narrativa: ela não apenas serve de remissão
ao passado como – eis aqui o objetivo de nosso estudo – também serve de elemento
essencial para a construção e a organização das narrativas. Com isso, a partir das imagens
pelas quais a memória foi evocada nos romances, A lentidão (1995), A identidade (1997) e
A ignorância (2000), identificamos e pudemos realizar um estudo referente aos efeitos
narrativos correspondentes: a memória como duração, a memória como espelho e a
memória como repetição. Para isso, passamos primeiramente por reflexões sobre os
estudos de memória nos mais diversos campos abrangentes: filosofia, literatura,
psicanálise; a partir das teorias de estudiosos como Aleida Assmann, Henry Bergson, Paul
Ricoeur, Freud, entre outros, a fim de obter uma compreensão mais delineada sobre a
memória e suas imagens. Em decorrência dessa compreensão, realizamos a análise textual
tendo por base os conceitos referentes à narrativa e sua análise contidos nas teorias de
Gérard Genette, Jonathan Culler e David Lodge, para que se pudessem visualizar os efeitos
da memória da narrativa, empregados por Milan Kundera durante a escrita de seu ciclo
francês.

Palavras-chave: Milan Kundera; imagens da memória; análise da narrativa.


ABSTRACT

Over the last few years, memory has been explored by Milan Kundera in his
Czech novels through his explicit relationships with the past and oblivion. With the
beginning of its French cycle, from the 90s onwards, the author inaugurates a new
understanding of memory in the narrative: it not only serves as a remission of the past as -
this is the purpose of our study here - it also serves as an essential element for the
construction and organization of narratives. With this, from the images for which the
memory was evoked in the novels, The slowness (1995), The identity (1997) and The
ignorance (2000), we identified and could carry out a study related to the corresponding
narrative effects: memory as duration, memory as mirror and memory as repetition. For
this, we first go through reflections on memory studies in the most diverse fields:
philosophy, literature, psychoanalysis; from the theories of scholars like Aleida Assmann,
Henry Bergson, Paul Ricoeur, Freud, among others, in order to obtain a more detailed
understanding about the memory and its images. As a result of this understanding, we
performed the textual analysis based on concepts related to the narrative and its analysis
contained in the theories of Gérard Genette, Jonathan Culler and David Lodge, in order to
visualize the effects of the memory of the narrative, used by Milan Kundera during the
writing of his French cycle.

Keywords: Milan Kundera; images of memory; narrative analysis.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 9
1. A ESCRITA EM MILAN KUNDERA ................................................................................ 12
1.1 A lentidão ........................................................................................................................ 24
1.2 A identidade .................................................................................................................... 25
1.3 A ignorância .................................................................................................................... 26
2. AS IMAGENS DA MEMÓRIA E SEUS EFEITOS ........................................................... 28
2.1 Revisão sobre estudos da memória ................................................................................. 28
2.2 As imagens nos romances do ciclo francês .................................................................... 37
2.2.1 A lentidão ................................................................................................................. 37
2.2.2 A identidade ............................................................................................................. 45
2.2.3 A ignorância ............................................................................................................. 55
3. RELAÇÃO ENTRE A ESTRUTURA NARRATIVA E AS IMAGENS DA MEMÓRIA 69
3.1 A memória como duração ............................................................................................... 77
3.2 A memória como espelhamento ..................................................................................... 88
3.3 A memória como repetição ........................................................................................... 100
CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 115
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 117
9

INTRODUÇÃO

As memórias, as experiências pessoais e sensoriais, constituem a vivência


humana. A construção das ideias de corpo e de matéria, seja ela individual ou coletiva, se
fundamenta a partir de memórias, pois, para que tal construção seja possível, torna-se
necessária a realização de um trajeto entre passado e presente, que passe por variadas
percepções e representações e auxilie na compreensão do que vem a ser a matéria em sim
mesma. Um trabalho de estudo de memória implica em um processo de reconstituição de
um passado que assume novos contornos na constituição de um presente imediato.
Essa reconstituição se efetiva por meio de imagens que condensam num único
espaço dentro de si toda a apreensão da matéria, “de sorte que a memória de um ser vivo
parece medir antes de tudo a capacidade de sua ação sobre as coisas, e não ser mais do que
a repercussão intelectual disso” (BERGSON, 2006, p.266). Por ser um campo de estudo
que permite diversas abordagens, os estudos dedicados à memória têm, ao longo das
últimas décadas, recebido as atenções de diversos pesquisadores e estudiosos, inclusive, da
literatura, visto a estreita relação que a literatura é capaz de desenvolver com os domínios
da memória.
Há diversas abordagens realizadas pelos mais variados autores contemporâneos
no que tange à relação entre esses dois campos, de modo que tal associação renda toda uma
sorte de estudos científicos; porém, o enfoque desse trabalho visa a estudar as relações de
memória presentes nos livros do ciclo francês de Milan Kundera: La lenteur, L’identité e
L’ignorance, lançados respectivamente em 1995, 1997 e 20001, observando o modo como
elas agem na constituição da estrutura da narrativa.
Desde o seu despertar na literatura mundial, que se deu por meio do sucesso de
seu romance A insustentável leveza do ser (1984), o escritor tcheco adquiriu notoriedade
no círculo literário e consolidou o seu status de grande romancista. Em seus livros, é
comum encontrar, dispostas de forma misturada na estrutura narrativa, reflexões de caráter
filosófico – mais precisamente as de cunho existencialista – e, em algumas obras literárias,
dados sócio-históricos – como as referências ao comunismo e às transformações realizadas

1
As datas dos livros referidas acima são da publicação original em francês; aqui, no Brasil, usaremos as edições
da Companhia das Letras e Companhia de Bolso: A lentidão (2011), A identidade (2009) e A ignorância (2015).
É importante mencionar isto, visto que nesse estudo realizamos as leituras dos romances tanto na versão original,
quanto na versão traduzida em português – de modo que nas páginas do desenvolvimento se encontrarão as duas
versões para melhor entendimento dos exemplos citados.
10

na República Tcheca, bem como a abordagem dos exílios e das dificuldades perante a
invasão comunista nos anos 60.
Em seus romances anteriores, Kundera realiza as suas reflexões e,
consequentemente, as de seu narrador e de seus personagens por meio de um trabalho com
imagens, que ora aparecem em forma de oposição, ora aparecem em forma de realce no
meio da trama de seus romances. Nos romances aos quais este estudo se dedica, percebe-se
tal trabalho imagético no que diz respeito às reflexões feitas em torno da memória. Sendo
ela um espaço que permite infinitas demarcações e manifestações, a sua abordagem em
conjunto com os estudos literários permite o desenvolvimento de uma infinidade de
trabalhos, tornando-se um campo fecundo para as pesquisas.
Essa não é a primeira vez que as narrativas em análise aqui são estudadas:
podemos encontrar alguns trabalhos nos quais elas apareçam2, porém há neles um destaque
para um ou outro elemento do texto, deixando de lado a questão da análise narrativa. Nesse
sentido, nosso estudo se mostra no mínimo diferente, pois ainda que nos aproximemos da
memória como um elemento importante no texto, seguimos outra direção ao decidirmos
atribuir a ela a função essencial de operar como uma imagem que organiza e auxilia na
construção de significados e da estrutura dos três romances.
Tendo realizado tais considerações, importa-nos comentar a respeito do que será
realizado nas páginas dos capítulos a seguir, são eles: 1) a escrita em Milan Kundera; 2) as
imagens da memória e seus efeitos; e 3) relação entre a estrutura narrativa e as imagens da
memória.
Em “A escrita em Milan Kundera” será abordada a construção de Milan Kundera
como romancista, bem como a relação entre seus romances tchecos e a memória, alguns
trabalhos realizados aqui no Brasil a respeito de seus livros, além de uma explanação sobre
as considerações e as reflexões do autor sobre suas obras e seus temas. Ademais, também
nos dedicaremos a dar um pequeno resumo das narrativas abordadas, com o intuito de
fazer com que elas estejam conhecidas no momento da análise.
“As imagens da memória e seus efeitos”, como o próprio título nos leva a inferir,
tratará a respeito da identificação das variadas remissões à memória que conseguimos
encontrar nas narrativas, bem como também da atribuição e da percepção de uma imagem
dessa memória, dotando-a de uma significação e uma correspondência nos três romances.

2
Encontramos, no período de realização desse estudo, poucos trabalhos referentes à narrativa A ignorância
realizado em língua portuguesa – tal número pode ser justificado pelo pouco tempo em relação ao lançamento
do romance, que se deu nos anos 2000. Nas outras línguas, tais como o inglês e o francês, há um número maior
de estudos, porém ainda assim, se contrastarmos com o ciclo tcheco, a quantidade não é significativa.
11

Sendo assim, a memória será vista pelo efeito de duração ou espelhamento ou repetição –
correspondentes a cada uma das narrativas.
Por último, em “Relação entre a estrutura narrativa e as imagens da memória”
realizaremos a análise textual, tendo como material de estudo as considerações sobre o
discurso da narrativa de Gérard Genette e as reflexões tanto de Jonathan Culler quanto de
Davig Lodge sobre elementos estruturais que asseguram a forma do texto literário. O que
se forma, a partir disso, é um entendimento de que as imagens de duração, de
espelhamento e de repetição podem ser vistas como responsáveis pela organização da
estrutura das narrativas, por meio da construção dos personagens, do ordenamento dos
capítulos, do modo como o narrador se manifesta, entre outros.
12

1. A ESCRITA EM MILAN KUNDERA

ESQUECIMENTO: “A luta do homem contra


o poder é a luta da memória contra o
esquecimento”. [...] Antes de se tornar um
problema político, o querer do esquecimento é
um problema antropológico; desde sempre, o
homem conhece o desejo de reescrever sua
própria biografia, de mudar o passado, de
apagar os vestígios, os seus e os dos outros. O
querer do esquecimento está longe de ser uma
simples tentação. [...] O esquecimento: ao
mesmo tempo injustiça absoluta e consolação
absoluta. O exame romanesco do tema do
esquecimento é sem fim e sem conclusão.
(Milan Kundera)

Escrever considerações, ainda que vestidas pela roupagem de um estudo, sobre


todo e qualquer autor e suas obras é uma tarefa árdua. Nunca sabemos por onde e de que
modo começar; muito menos temos a pretensão, irreal e ingênua, de desvelar todos os
temas e nuances de sua escrita. Dito isso, todo e qualquer estudo sobre o universo da
criação literária e de seus efeitos é sempre um caminho, um trajeto, e não simplesmente um
fim, a transformação em verdade absoluta de algo. Essa justificativa, embora óbvia, merece
atenção principalmente em relação ao autor Milan Kundera e a seu olhar sobre os seus
romances: há um cuidado mais do que especial – poderíamos pensar até algo como vital –
a respeito do trato e das escolhas das palavras utilizadas em seus escritos. Seja na prosa,
seja nos ensaios, é recorrente e intrigante o modo como ele dedica atenção às palavras e o
quanto os seus significados são explorados, potencializados, questionados.
Tal constatação não é uma novidade: Kundera, como um homem que sentiu em si
o peso da interpretação errada de suas palavras3, possui e manifesta a sua hesitação em
relação ao fato de como elas podem ser moldadas e manipuladas a bel prazer. Em A arte do
romance (1988), livro de ensaios onde estão colocadas as suas principais ideias e conceitos
sobre o que é o romance, a sua escrita de romance, o seu papel de romancista, o romance
europeu, entre outras questões, podemos observar, em todas as suas divisões, o tanto que
3
Faço menção aqui ao episódio de seu exílio da República Tcheca, que ocorreu devido à queima de várias
edições de seu livro, A brincadeira, realizada pelo regime comunista, como censura às questões postas por ele no
livro contra os perigos de regimes totalitários à liberdade e ao sujeito. A grande brincadeira na trama está no fato
de que as palavras passam a adquirir poderes, antes não tão claros, de vida e de morte; e isso é bastante
explanado por Kundera. Com a notoriedade adquirida do sucesso desse livro, o autor adquiriu a atenção das
pessoas e de mecanismos do estado, que passaram a persegui-lo até o momento de seu exílio.
13

esse tema dos significados é marcante para Kundera: há um movimento de recorrência de


signos, similar ao movimento de uma ressaca marítima, no qual a palavra sempre retorna
trazendo uma nova carga simbólica e se expande, alcançando novas compreensões.
Leveza; peso; esquecimento; memória; história e identidade são uns dos vários
signos que aparecem em seus escritos nas mais variadas formas e nos mais variados
empregos de significados, de um modo tão único que nos leva a pensar toda a sua obra
como uma imensa constelação simbólica4 na qual as palavras se inter-relacionam e
estabelecem diferentes níveis de contato e de combinações tanto a nível interno – o
romance em si –, quanto a nível externo – os romances entre si. O potencial criativo
contido nelas é paradoxal: ora grande, pela capacidade de transformação e construção de
novas narrativas; ora pequeno, pela maneira na qual se encontram nos textos, narrados de
forma espontânea e despretensiosa – algo que passa a ser questionado quando observamos,
após a leitura de alguns dos seus livros, como certos termos desempenham em uma
narrativa um papel quase nulo e em outra narrativa desempenham um papel mais central,
tornando-se alvo de discussões e reflexões.
O trabalho com as palavras e sua relação paradoxal já é um tema de discussão
dentro das pesquisas que abordam as obras do autor, em especial o trabalho de Krishna
Almeida e Silva, intitulado Por uma “poética da Ambivalência”: leitura da obra A
insustentável leveza do ser, de Milan Kundera (2008). Nesse trabalho, que une o conceito
psicanalítico de ambivalência aos Estudos Culturais, Krishna observa todo o cuidado
empreendido por Kundera a respeito dos signos e suas significações no romance que
nomeia o estudo. Há a constatação de que os conceitos utilizados pelo autor nas reflexões
da narrativa são contrapostos, adquirindo características contrastivas: se em algum
momento o peso é dotado de carga negativa, em outro momento posterior, ele adquire
4
Essa ideia de visualizar a relação entre os escritos de Milan Kundera como uma constelação já aparece, ainda
que feita de modo simples, em um estudo realizado por mim sobre a figura do escritor Kundera e suas
considerações sobre o ofício e as suas obras, que originou o artigo “Ser escritor: a formação do romancista Milan
Kundera”, publicado pela Revista VERSALETE, volume 5, nº 7, jul-dez 2017. Citando-o: “seus romances
possuem uma conexão entre si, que pode ser vista como temática. No ato de sua escrita se configuram palavras-
chave a partir das quais é construído o restante da narrativa, uma relação orbital feito planeta e satélite: seus
personagens só existem de acordo com as indagações existenciais que ele pretende tecer ao longo do texto.
Contudo, o romancista observa o fato de que mesmo havendo em cada romance um número tal de palavras
responsáveis pela sua orientação, é possível em todos eles encontrar ecos de uma única palavra vista como
representante da razão de ser e da eterna busca dos outros: a leveza.” (p.246-259).
Além dessa referência, é importante ter em mente também o conceito de constelação de Walter Benjamin que,
grosso modo, refere-se a uma imagem traçada pela combinação de estrelas, que estabelece relações de
proximidade e de significações, além de expressar em si a ideia de um conjunto. Nesse sentido e para esse
estudo, opto por pensar que as palavras-tema de Milan Kundera estabelecem ligações entre si, formando esse
conjunto/imagem de seus romances. Ver em: A origem do drama barroco alemão (1984), Walter Benjamin; e
Um olhar constelar sobre o pensamento de Walter Benjamin (2000), Georg Otte e Miriam Lídia Volpe.
14

carga positiva, criando uma espécie de tensão e relaxamento que criam essa ambivalência
significativa. O romance se singulariza por causa disso.

Oscilar, aliás, poderia ser uma palavra que guia a narrativa. A


acuidade do narrador estabelece essa oscilação por meio de imagens
dúbias, temas contraditórios, repetições. O que sustenta essa oscilação, e
um dos temas tratados em todo o livro, é a dualidade, leveza e peso,
signos do personagem Tomas. O romance vai de um extremo ao outro.
Oscilar sobre o mesmo tema, esse e outros, sob o mesmo capítulo, em
partes diferentes do livro. Revivemos a mesma cena um número variado
de vezes. Assim veremos recorrentes remissões à metáfora da leveza e do
peso ao longo de todo o romance, da dualidade corpo e alma, de
descrição de mesmos sonhos. (SILVA, 2008, p.67)

Essa ideia de recorrência ainda encontra, dentro do romance analisado por


Krishna, um efeito de espelhamento, uma vez que a ideia do eterno retorno, trabalhada em
Nietzsche, é trazida ao centro do romance por Kundera. Há o retorno nas ações dos
personagens e há também certo movimento pendular das ambivalências, que também nos
leva a ideia de retorno no trabalho da estrutura do romance e revela todo o trabalho e
cuidado empreendidos pelo autor tcheco na escrita de suas narrativas, mostrando uma
lógica que as ordena e que é responsável por sua organização interna.
Ainda em A insustentável leveza do ser, a leveza, explorada e potencializada por
Kundera, pode ser considerada um exemplo desse retorno no nível da palavra, aparecendo
em outros romances e recebendo um destaque diferente. Ainda que o próprio autor afirme
a ocorrência da repetição como produto de uma ação inconsciente – não nos cabe aqui
contestar a veracidade disso ou não, é interessante notar a maneira pela qual se estabelece o
vínculo do termo com as narrativas nas quais ele é percebido e, mais ainda, a quantidade de
narrativas em que o encontramos.

LEVEZA. Já encontro a insustentável leveza do ser em A


brincadeira: “Caminhei sobre os paralelepípedos poeirentos e senti a
pesada leveza do vazio que pesava sobre a minha vida.”
E em La vie est ailleurs: “Jaromil tinha às vezes sonhos
horríveis: sonhava que tinha de levantar um objeto extremamente leve,
uma xícara de chá, uma colher, uma pena, e que não o conseguia, que ele
era tanto mais fraco quanto mais leve era o objeto, que sucumbia sob sua
leveza.”
E em La valse aux adieux: “Raskolnikov viveu seu crime como
uma tragédia e acabou sucumbindo sob o peso de seu ato. E Jakub se
admira que seu ato seja tão leve, que não o estafe, que não pese nada. E
se pergunta se essa leveza não é mais aterrorizadora que os sentimentos
histéricos do herói russo.”
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E O livro do riso e do esquecimento: “Esse saco vazio no


estômago é exatamente a insuportável ausência de peso. E, assim como
um extremo pode a qualquer momento transformar-se em seu contrário, a
leveza levada ao seu máximo tornou-se o terrível peso da leveza, e
Tamina sente que não poderá suportá-lo nem mais um segundo.”
Foi somente relendo as traduções de todos os meus livros que
me dei conta, consternado, dessas repetições! Depois, consolei-me: todos
os romancistas só escrevem, talvez, uma espécie de tema (o primeiro
romance) com variações. (KUNDERA, 1988, p.120-121)

As variações, mencionadas no excerto acima, merecem um pouco de realce por já


terem sido alvo de considerações e de reflexões do autor no romance O livro do riso e do
esquecimento. Em certo momento da narrativa, as variações de Beethoven são evocadas
pelo narrador de Kundera e aparecem como produto de uma combinação de elementos
simples, que tendem a uma expansão ao infinito interno; ao passo que elas nada mais
representariam do que uma viagem ao interior, às profundezas do ‘núcleo das coisas’. Se
Beethoven conseguia com dezesseis compassos compor uma obra repleta de camadas e
camadas de sons, Kundera tenta, por intermédio desse romance5, compor camadas e
camadas de possibilidades narrativas, viajando no interior de um único tema: o
esquecimento. Desse modo, poderíamos interpretar que as palavras-tema encontradas em
muitas de suas obras seriam a materialização das variações do esquecimento e das
divagações que ele evoca.
Além de estar presente no romance como um dos apontamentos feitos para
discussão das ações dos personagens, esse conceito de variação também aparece em outros
livros de Kundera. É o que aponta Tim Jones, no seu estudo Slowness, Identity and
Ignorance: Milan Kundera’s French Variations (2012). A pesquisa mostra as variações de
lentidão/velocidade, identidade e ignorância, temas dos livros do ciclo francês que serão
analisados nos próximos capítulos, em todos os outros romances anteriores. O que sugere,
ao mesmo tempo, uma continuidade e uma insistente tentativa de viagem ao núcleo da
essência do ser, feitos por meio de um trabalho, um esforço e um cuidado do autor com o
trato dos signos e seus significados. Isso pode ser visto no seguinte trecho em que Jones se
dedica a falar sobre a variação como uma trajetória que se aprofunda sempre mais e mais,
tal qual uma escavação:

Através da forma particular de variação em que Beethoven se


destacou, este infinito interior abstrato não só pode ser observado, mas

5
Uma vez que o autor profere a seguinte afirmação em dado momento da narrativa: “Este livro todo é um
romance em forma de variações” (1987, p.185).
16

viajado e investigado tão facilmente quanto a infinidade de espaços mais


físicos, uma vez que as variações sucessivas de um tema decorrem da
simplicidade e coerência da superfície externa desse tema e avança mais e
mais profundamente no interior e no interior que se estende infinitamente
abaixo dele. (tradução nossa) (JONES, 2012, p.4)6

Se a leveza é percebida por ele como um grande tema que atravessa todos os seus
romances e é vista como uma variação, podemos afirmar também as relações entre a
memória e o esquecimento como outros grandes temas que percorrem as narrativas
kunderianas. Faz-se necessário esclarecer que, além disso, o trabalho da literatura com a
memória também está presente na maioria da tradição romanesca do século XX, na qual
Kundera está automaticamente inserido ao se autodenominar um romancista. Há inúmeros
estudos que ligam os romances kunderianos em tcheco a esse viés memorialista: primeiro,
porque é quase impossível desvincular a história pessoal do autor com os seus escritos e
procurar ressonâncias de um no outro; segundo, porque boa parte de suas narrativas
engloba alguma reflexão sobre a História e o seu peso na existência humana.
Independentemente de que o número de estudos realizados em língua francesa e
língua inglesa sejam ainda os mais numerosos em relação à fortuna crítica de Kundera de
modo geral, é notório saber que essa relação não se trata de uma novidade nos estudos
brasileiros já realizados em torno das obras: mesmo em pouca quantidade, as pesquisas
estabelecem os contatos entre a escrita e a memória, seja pela presença da memória como
pano de fundo argumentativo, seja por meio de conceitos que se relacionam e refletem com
e sobre os personagens da narrativa. Isso nos faz considerar a memória como uma das
principais linhas de que o autor se utiliza para tecer toda a trama de seus romances.
É o que aponta o estudo o de Wilton Barroso (2008)7, que estabelece
proximidades entre memória e identidade, a partir da reflexão em torno da voz dos
narradores de alguns romances de Kundera, passando por considerações a respeito da
memória coletiva e da memória histórica. Barroso parte do conceito de Don Juan, para
observar nos romances como os personagens, egos experimentais, realizarão esse
intercâmbio entre amor e desejo a partir de suas memórias. Ademais, ele chama a atenção
para uma distinção que percebemos claramente nas leituras das obras: a diferença entre

6
[…]through the particular style of variation form in which Beethoven excelled, this abstract interior infinity can
not only be observed, but journeyed through and investigated as readily as the infinity of more physical spaces,
as successive variations on a theme proceed from the simplicity and coherence of that theme’s outside surface
and proceed deeper and deeper into and through the interior that stretches boundlessly beneath it.
7
Para isso, ver: A voz filosófica do narrador kunderiano.
17

memória e história ou, em outros termos, entre dimensão histórica da existência humana e
Ciência da História, respectivamente.

O autor busca revelar detalhes que foram esquecidos pelos historiadores


oficiais, detalhes que, para ele, só podem ser revelados pela narrativa
romanesca. Portanto, do ponto de vista epistemológico está se falando
“da dimensão histórica da existência humana” e não da Ciência da
História. (BARROSO, 2008, p. 4).

Essa tensão ocasionada pela insistente procura dos detalhes esquecidos “pelos
historiadores oficiais” já nos remetem a uma relação com a memória, uma vez que a ela8
caberia uma voz não oficial, uma voz que não seria privilegiada pelas instituições, ao
contrário da história ou Ciência da História, que seria vista como algo absoluto e oficial.
Podemos mencionar também o estudo de Rosimara Silva9 a respeito dos signos
da memória presentes nos romances kunderianos. Ela se propõe verificar a influência das
memórias individuais no processo de criação literária do autor tcheco, visando a
estabelecer formas de contato entre as memórias empregadas pelo narrador Kundera e as
memórias do sujeito Kundera, um exilado político que teve de deixar para trás o país, os
amigos e a família. Tudo isso, partindo do pressuposto de que o autor se apodera de certos
elementos, emprestados de suas memórias, para a construção de um universo literário no
qual as palavras assumem diversos significados na delimitação do humano e de suas
percepções de realidade.

[…] intentamos analisar os aspectos referentes ao eu subjetivo e


individual da memória, apresentando-os na figura de um autor que
escreve seus romances partindo do que tem de seu - suas memórias.
Contudo, não temos intenção nenhuma de explicar aqui a criação pelo
criador, mas de mostrar que esse é parte daquela. (SILVA, 2011, p. 15)

Por se tratarem de um campo no qual as associações com a subjetividade são mais


do que vitais, a memória individual e a memória coletiva10 serão trabalhadas pela estudiosa
como meio infinito capaz de possibilitar ao autor um acesso às ferramentas para a criação
de seus personagens – os quais e em alguns casos são dotados de experiências similares ou

8
Segundo Pierre Nora, nas suas reflexões sobre os dois conceitos contidas no ensaio Entre memória e história: a
problemática dos lugares (1993).
9
Para isso, ver: Os signos da memória em Milan Kundera (2011).
10
Conceito cunhado por Maurice Halbwacks (1990), de vital importância para os estudos sobre a memória, que
consiste na observação da memória como criação coletiva, um produto social que é repassado sucessivamente
entre as gerações e pode ser visto como representativo de um grupo (grosso modo).
18

que fazem lembrar a trajetória pessoal de Milan Kundera. O que faz com que seja
impossível dissociar ou limitar em até que ponto a voz do narrador/autor é a voz de
Kundera e vice-versa. Tais memórias aparecem nas características e nas evoluções dos
personagens em primeiro plano ou, até mesmo, no contexto externo vivenciado por eles ao
longo das narrativas: um exemplo perceptível seria a referência ao regime totalitarista nos
romances A brincadeira (1967), A insustentável leveza do ser (1984), entre outros.
Há ainda o estudo realizado por Verônica Maria Biano Barbosa11, no qual a
memória é evocada a partir das suas relações desenvolvidas com a construção de uma
identidade efetivada pela língua, explorada dentro do romance A ignorância de Milan
Kundera. Nesse livro, que será mais bem desenvolvido ao decorrer da dissertação, por se
tratar de um dos romances estudados, é tematizada a responsabilidade da memória na
tessitura das identidades dos dois personagens principais, nas suas narrativas de retorno do
exílio:

A memória é elemento crucial ao longo do romance. De fato, é ela que


possibilita o choque que haverá entre o que as personagens guardam em
si de suas antigas vidas na Tchecoslováquia com o que elas encontrarão
no momento do retorno; entre as imagens que elas têm de seu país e o que
ele se tornou ao longo do tempo em que estavam ausentes; entre as
estruturas da língua que se falava à época de suas juventudes em Praga e
a língua tcheca que ouvem após tanto tempo. E mais intimamente: a
memória tem o papel de colocá-los em dúvida quanto aos seus próprios
eus, quanto às suas identidades. (BARBOSA, 2013, p.3)

É importante trazer esse estudo de Barbosa como uma referência nesse momento,
uma vez que é um dos poucos estudos brasileiros, senão o único, encontrado por nós, que
traz como ponto central de argumentação um dos romances mais recentes do ciclo francês
de Kundera: A ignorância. Por ciclo francês, temos os livros publicados durante o período
de exílio na França12 e em língua francesa, tendo sido escritos entre os anos 90 até os dias
atuais: A lentidão (1995), A identidade (1997), A ignorância (2000) e A festa da
insignificância (2014). Com exceção desse último13, os outros romances são parte

11
Para isso, ver: Estudo sobre a (re)construção da identidade por meio da língua em Milan Kundera, 2013.
12
Ao contrário de alguns romances que foram escritos em tcheco, em um momento inicial do exílio de Kundera
na França, como O livro do riso e do Esquecimento (1979), A insustentável leveza do ser (1984), A imortalidade
(1990).
13
A decisão de não incorporar esse livro em nossa análise parte de dois princípios: em primeiro lugar, a memória
(razão que ordena boa parte desse estudo) não aparecerá de maneira substancial ao longo da narrativa,
dificultando, portanto, a compreensão de uma imagem de memória que se relaciona com a estrutura textual; em
segundo lugar, pelo simples motivo de que mais uma análise teria de ser realizada e isso demandaria um espaço
e, possivelmente, um tempo maior para a sua elaboração.
19

fundamental deste empreendimento que visa estabelecer pontos de contato entre as


imagens com as quais a memória se relaciona e a construção da estrutura narrativa que o
autor põe em ação no momento da criação literária.
A mudança ocasionada pelo exílio compulsório de Kundera implica além de tudo
nos seus escritos: da escrita em tcheco ele passa à escrita em francês. Tal transição não é
tão brusca a princípio, uma vez que a trajetória de exílio do seu país em direção a França é
realizada, os romances posteriores como O livro do riso e do esquecimento (1979), A
insustentável leveza do ser (1984) e A imortalidade (1990) continuam sendo redigidos na
língua materna de Kundera, o tcheco. É somente em 1995, com o lançamento de A
lentidão, que o autor, em uma tomada de coragem e adaptação à nova vida, decide se
aventurar pela escrita no idioma francês em seus romances e ensaios posteriores. Além do
mais, é justamente nesse momento de transição que o romancista passa a considerar as
versões em francês de todos os seus escritos como originais e dignos de tradução.14
Há um salto quantitativo no que diz respeito à confecção de seus livros: da divisão
em sete partes, cada qual com um número especifico de capítulos, característica atribuída à
maioria dos seus romances em tcheco e marca pessoal, que é inclusive refletida por ele em
seu livro de ensaios, passa à divisão em vários capítulos – A lentidão possui 51, A
identidade possui 51 e A ignorância possui 53. A quantidade de páginas também contém
variações, uma vez que o ciclo francês apresenta uma redução na numeração das páginas
ao ser comparado com os romances do ciclo tcheco: de 351p. (A brincadeira) / 312p. (A
insustentável leveza do ser) eles passam a ter 105p./ 120p. /127p. (ciclo francês) – o que
nos indica uma redução de quase 1/3 das páginas das narrativas, uma transformação
bastante perceptível15.
Ainda nos resta uma última consideração no que tange a parte da divisão dos
capítulos: com a mudança na linguagem, os capítulos deixam de apresentar uma nomeação
e passam a apenas ter a numeração em contínuo; diferentemente dos romances em tcheco
que se dividem em partes, cada qual apresentando um número específico de capítulos.

14
Tal fato decorre do interesse de Kundera em realizar as leituras das traduções de seus romances e da
constatação de que as versões traduzidas encontradas por ele não eram fiéis ao que ele se propunha. Mais uma
vez, fica clara a intenção do autor no cuidado com o controle das palavras escritas e atribuídas a ele. Sem
mencionar que, e isto é uma hipótese feita por nós sem nenhum estudo acadêmico realizado, a escrita em francês
possibilita uma melhor difusão da obra do romancista, uma vez que a literatura de língua francesa possui, na
literatura mundial, um grande prestígio graças a notáveis e difundidos autores franceses.
15
Devemos também lembrar que tal diminuição possa corresponder, ainda, a uma adaptação por parte do autor
na escrita da língua francesa – algo que reflete uma possível insegurança, o que é bastante compreensível.
20

Tal percepção se torna ainda mais interessante quando relacionamos essas


mudanças às afirmações de Kundera sobre a sua preocupação com a forma de seus
romances, até então escritos em tcheco:

Conto tudo isto para dizer que não é de minha parte nem coquetismo
supersticiosos com um número mágico, nem cálculo racional, mas
imperativo profundo inconsciente, incompreensível, arquétipo da forma,
do qual não posso escapar. Meus romances são variantes da mesma
arquitetura fundamentada sobre o número sete. (KUNDERA, 1988, ano,
p.79)

Ora, se o número sete é percebido por ele como um arquétipo ao qual ele se
encontrava ligado de forma inconsciente e absoluta, a mudança para a não divisão nesse
número significaria uma quebra poderosa de paradigma e de submissão a essa regra, algo
que está diretamente ligado também à nova linguagem de seus romances. Poderíamos ver
os romances do ciclo francês como uma tentativa de reinvenção de si? É a questão que nos
rodeia e que até então não encontramos em nenhuma pesquisa já realizada sobre a obra
dele.
Ademais, os três livros a serem analisados, parecem trazer para além de
transformações na parte quantitativa (tamanho da edição, volume de capítulos, divisões,
nomeações, etc.), uma série de diferenças quanto ao conteúdo: não que as palavras-temas
tenham desaparecido ou perdido a sua força perante as narrativas, pelo contrário, elas
continuam sendo simbolicamente fortes frente aos textos em que se encontram. Porém,
uma nova nuance se nota e é o que objetivamos mostrar nesse estudo: elas podem ter
influência na arquitetura da estrutura dos romances. Essa afirmativa de uma atenção
especial em relação ao modo como a estrutura se organiza ganha respaldo justamente
quando a colocamos frente às seguintes palavras do autor, no que dizia respeito à clareza
de divisões nos seus livros até então escritos:

M.K.: Uma vez terminada A brincadeira, eu não tinha nenhuma razão de


me espantar por ela ter sete partes. Em seguida, escrevi La vie est
ailleurs. O romance estava quase acabado e tinha seis partes. Eu estava
insatisfeito. A história me parecia chata. Subitamente me veio a ideia de
inserir no romance uma história que se passava três anos após a morte do
herói (isto é, além do tempo no romance). É a penúltima parte, a sexta: O
quadragenário. Na mesma hora, tudo ficou perfeito. Mais tarde, atinei
que essa parte seis correspondia estranhamente à parte seis de A
brincadeira (Kostka) que, também ela, introduz no romance um
personagem do exterior, abre na parede do romance uma janela secreta.
21

Risíveis amores eram de inicio dez novelas. Quando redigi a coletânea


definitiva, eliminei três delas; o conjunto se tornou muito coerente, de tal
maneira que já prefigura a composição de O livro do riso e do
esquecimento: os mesmos temas (especialmente o da mistificação) unem
num só conjunto sete narrativas, sendo que a quarta e a sexta parte são
por outro lado reunidas pelo “gancho” do mesmo protagonista: o doutor
Havel. Em O livro do riso e do esquecimento, a quarta e a sexta parte são,
também, reunidas pelo mesmo personagem: Tamina. Quando escrevi A
insustentável leveza do ser, quis a todo preço quebrar a fatalidade do
número sete. O romance há muito tempo estava concebido num esboço
de seis partes. Mas a primeira me parecia ainda informe. Finalmente,
compreendi que essa parte, na realidade formava duas, que era como
gêmeas siamesas que se precisa separar em duas, através de uma delicada
intervenção cirúrgica. (KUNDERA, 1988, p.78-79)

Ou ainda a declarações de Kundera a respeito da construção de um romance tal qual


uma composição musical, mostrando que para ele um romance necessita ser pensado de
modo a criar um movimento, a ter fluidez:

[...] Permita-me mais uma vez comparar o romance com a música. Uma
parte é um movimento. Os capítulos são compassos. Esses compassos são
ou breves ou longos, ou então de duração muito irregular. O que nos leva
a questão do andamento. Cada parte em meus romances poderia trazer
uma indicação musical: moderato, presto, adagio, etc. (KUNDERA,
1988, p.80)

O trecho acima merece um pouco de atenção pelo fato de o romancista fazer uma
comparação de seus romances com os movimentos de uma peça de música clássica; porém,
vale lembrar que os romances referidos são todos constituintes do ciclo tcheco e às suas
divisões correspondentes. Quando Kundera resolve se aventurar pela escrita em língua
francesa, seus romances, ainda que preservem algumas características dos anteriores, como
a variação por exemplo, parecem trazer um tipo diferente de musicalidade, algo que pode
ter a ver também com a temática da modernidade explorada por ele nas narrativas: somos
invadidos por várias vozes que se intercalam e criam efeitos de narração desempenhados
por elas. Não há mais a presença de um todo organizado e claro, de modo que tudo de certa
forma se harmoniza organicamente. Kundera parece estar não mais querendo colocar uma
ordem no caos, mas sim criar literariamente um caos capaz de gerar o efeito da
modernidade.
Tal compreensão é muito sintomática porque coloca os dois ciclos como um
contínuo de exploração das maneiras de vivenciar a experiência humana, nossa condição
de existência. De modo que se o ciclo tcheco corresponderia às reflexões/divagações sobre
22

o peso da história, sobretudo a vivida coletivamente, na criação de memórias e narrativas


de identidade, o ciclo francês seria capaz de corresponder às reflexões sobre a modernidade
e todas as suas nuances na existência humana. A carga simbólica envolvida nessa reflexão
é importante porque essa mudança pode ser vista como uma nova preocupação por parte do
sujeito histórico Milan Kundera após o seu estabelecimento e adoção de uma nova pátria,
apresentando uma diferente maneira de vivenciar a vida.
Além dos livros que serão aqui analisados, o ciclo francês ainda contará com a
presença de mais um livro, lançado recentemente e intitulado A festa da insignificância
(2014). Nele, o autor dará continuidade às suas reflexões acerca do tempo e da
modernidade, traço que já vinha sido tematizado nos outros romances: a insignificância é a
palavra-tema que apresenta inúmeras variações ao longo das narrativas de seus muitos
personagens. Todos eles em algum momento se tocam, conectam e criam reflexões a partir
de situações extremamente simples e inusitadas – uma das características mais marcantes
de Kundera. A presença do passado histórico, alvo de muitas das divagações do ciclo
tcheco, aparece sobre a figura histórica de Stálin, que é aqui explorada pelo autor por meio
de uma veia humorística. Vale lembrar também que a presença desses empréstimos, os
quais o autor pega de certos acontecimentos da humanidade, é algo que aparece em boa
parte de seus romances, sugerindo novamente uma continuidade.
Em estudos mais recentes encontrados sobre a trilogia que será abordada, a
memória, embora seja considerada um elemento importante na narrativa, ainda é observada
por meio de um papel secundário, servindo como um conceito que é explorado pelo
narrador, mas não se estende além dos personagens. No que diz respeito às investigações
em língua francesa, correspondentes à grande maioria das análises encontradas, nota-se um
cuidado em relação às técnicas narrativas empreendidas por Kundera na construção do
enredo: elas constituem o principal foco, mostrando todo o trabalho de polifonia, de
criação do romanesco e de reflexão sobre a modernidade, além do trabalho já mencionado
com as variações.
Petra Vyhlídalová em Le roman de Milan Kundera: la lente ignorance de notre
identité realiza um estudo introdutório e bem minucioso sobre a trilogia kunderiana,
passando pelos enredos, pelas construções dos romances e pelos trabalhos com os
personagens: analisando o trabalho de velocidades, de confrontamento de identidades e do
exílio interno e externo vivenciado por eles. Também se constata, na pesquisa, a presença
de elementos que ligam um livro ao outro, referidos por ela como leitmotiv - algo já
bastante notado em outros estudos:
23

Quanto ao que fizemos nesse trabalho, nós pudemos constatar que certos
traços, certas características, bem como certos temas, retornam a cada
romance, cada protagonista. Isto nos permitiu estabelecer o que nós
podemos chamar os <leitmotiv> kunderianos, isto é, os sujeitos principais
de diversos romances kunderianos. (tradução nossa) (VYHLÍDALOVÁ,
2006, p.92) 16

Essa constatação da continuidade de traços nos dois ciclos nos mostra por outro
lado que, embora hajam diferenças marcadas entre eles, há também uma continuidade no
que diz respeito à intenção do autor em referenciar, mesmo que implicitamente, narrativas
dentro de narrativas. De modo que todos os seus romances seriam capazes de mostrar por
variadas lentes a sua obra e que ela seria caracterizada justamente em função dos
elementos repetidos ou referenciados: há em Sabina algo de Tamina, enquanto por sua vez
há em Thomas algo de Ludvik e assim sucessivamente.
Retornando ao estudo de Tim Jones mencionado logo no início desse capítulo,
Slowness, Identity and Ignorance: Milan Kundera’s French Variations, constatamos
também a presença de elementos responsáveis por conectar as narrativas entre si, as tais
chamadas variações de lentidão, identidade e nostalgia. Nessa investigação, Jones
relaciona todos os romances de Kundera a cada uma das três variações por ele
estabelecidas:

Estes, então, são os três romances franceses de Kundera. Mas as


variações na lentidão, na identidade e na ignorância se desenrolaram em
grande e menor chave na obra tcheca de Kundera, muito antes de
tomarem o centro do palco nos três romances que carregam seus nomes.
Nenhum desses textos está explorando novos temas únicos, apenas
colocando os temas abordados em outros lugares pela primeira vez em
primeiro plano de uma maneira que se desempenha, de forma mais aberta
e intensa do que em qualquer das variações anteriores, através das
interações dos leitores com e concretização dos próprios textos. Porque as
três novelas francesas de Kundera, em última instância, são romances que
sabem que estão se aproximando dos estágios finais do projeto
romanesco de seu autor (tradução nossa). (JONES, 2012, p.148) 17

16
Au fur et à mesure que nous avons procédé dans ce travail, nous avons pu constater que certains traits,
certaines caractéristiques, de même que certains thèmes, revenaient avec chaque roman, chaque protagoniste.
Ceci nous a permis d’établir ce qu’on peut appeler les «leitmotive» kundériens, c’est-à-dire les sujets principaux
de divers romans kundériens.
17
These, then, are Kundera’s three French novels. But variations on slowness, identity and ignorance have
played out in major and minor key throughout Kundera’s Czech oeuvre, long before their taking centre-stage in
the three novels that carry their names. None of these texts are exploring new themes unique to them, only
placing themes covered elsewhere for the first time in the foreground in a way that plays out, more overtly and
intensely than in any of the previous variations, through the readers’ interactions with and concretizations of the
texts themselves. For Kundera’s three French novels are ultimately novels that know that they are approaching
the final stages of their author’s novelistic project.
24

Para ele, as conexões que são estabelecidas entre os romances escritos em francês
alcançam as obras mais antigas de Kundera, antes mesmo de se configurarem como temas
a serem desenvolvidos em um livro próprio. Isso merece nota, uma vez que o ciclo francês
não tem recebido, por parte da crítica, a mesma atenção do que os outros romances tchecos
receberam, pois é notável a diferença tanto na materialidade dos livros (quantidade de
páginas, divisões de capítulos, algo já mencionado anteriormente), quanto no conteúdo dos
livros (os conceitos se apresentam de forma mais diluída ou parecem operar de forma
diferente no corpo do texto).
Essa investigação, que se realizará nos capítulos seguintes, adiciona um novo
olhar sobre os estudos kunderianos do ciclo francês, unindo a memória à teoria narrativa,
algo que, de acordo com nossas leituras sobre os romances, pode abrir caminhos para
pesquisas posteriores a respeito das relações entre memória e escrita em Milan Kundera.
Observar a maneira pela qual os textos parecem se construir em torno dessa memória, que
aparece de forma materializada no texto por meio de imagens e até mesmo indiretamente
pelas reflexões sobre a identidade, é a nossa principal questão e o nosso principal trajeto
dentro desse universo recheado de significados que constituem as obras romanescas desse
autor. Antes, é necessário que realizemos uma breve apresentação das narrativas.

1.1 A lentidão

É o primeiro romance escrito em francês pelo autor. Possui 51 capítulos de curta


duração, expostos em 112 páginas na edição brasileira da Companhia de Bolso e 153
páginas na edição original da Gallimard. Narra simultaneamente dois tempos: o presente
dos personagens, que corresponde ao presente real, e o século XVIII. Somos apresentados
a um turbilhão de personagens que inclui: Milan Kundera e sua esposa Vera (aqui
ficcionalizados), Madame T. e seu séquito – marido e amantes, o entomólogo
Chechoripsky, a repórter Immaculata, seu amante cameraman,Berck, Vincent, Pontevin e
Julie. As narrativas aparecem intercaladas ao longo da narração que é realizada em uma
alternância entre discursos diretos e indiretos, por meio de um narrador onisciente.
A história de Vivant Denon, Point de lendemain, é trazida à narrativa como um
exemplo de contraste entre o século XVIII e a modernidade; logo, várias serão as
interferências que essa narrativa fará ao longo de A lentidão. O enredo se concentra no
25

descanso de uma noite do narrador e de sua esposa Vera em um chateau, onde está sendo
realizado o encontro de entomologia do qual participam Chechoripski, Vincent,
Immaculata, Berck, Julie e o cameraman. Esse chateau é, ao mesmo tempo e
simbolicamente, visitado por Madame T., seu cônjuge e um cavalheiro que se passa por
amante aos olhos de seu marido. Com a duração de apenas uma noite, ambas as narrativas
tratam do erotismo da figura do dançarino, seja frente às câmeras, ao seu círculo mais
intimo ou até a si mesmo. Além disso, ao longo de toda a narrativa surge, como outro tema
a ser tratado, a passagem e a duração das coisas, todos eles contrapostos à dualidade
“memória/esquecimento”, símbolos das reflexões sobre a modernidade e a sua relação
existencial com o tempo e seus efeitos.
Enquanto o cavalheiro se submete aos caprichos e às regras de desfrute erótico
impostas por Madame T., durante o momento em que passam juntos – etapas bem
pontuadas e divididas por ela a fim de que a noite passasse tal qual um roteiro de uma
aventura –, Milan e Vera descansam e tentam dormir em seu quarto. Simultaneamente,
Chechoripski tenta realizar um discurso perante os seus colegas acadêmicos e se depara
com a distância imposta pelo destino e pelo desdém que é recebido. Immaculata também
tenta se aproximar de Berck, antigo colega e admirador seu que, no entanto, possui agora
asco por ela. Ainda, por último, temos Vincent que ensaia um encontro sexual com Julie,
garota que conheceu durante o encontro de entomologia. Todos eles estão a desempenhar
diversas ações e reflexões no momento da narração, algo que faz com que percebamos o
cuidado de Kundera em produzir um romance que represente a modernidade a partir das
tentativas, de fato.

1.2 A identidade

Segundo romance escrito em francês pelo autor, possui 51 capítulos de curta


duração, a mesma quantidade que o romance explorado anteriormente, expostos em 120
páginas na edição brasileira da Companhia de Bolso e 219 páginas na edição original Folio
da Gallimard. Narra a aventura de Chantal e Jean-Marc em uma busca de si e do outro. A
narração é feita por um narrador onisciente em estilo direto e indireto, que se intercalam e
entrelaçam durante todo o romance. A partir de uma viagem realizada pelo casal, onde
Chantal (mulher de meia idade e mais velha que Jean-Marc, informação essencial para a
compreensão da crise enfrentada pelos dois) constata não ser mais atraente aos olhares
26

masculinos, ambos passam a analisar o relacionamento em que vivem e o peso de suas


decisões já tomadas.
O sentimento de desolação, com o qual Chantal se depara, sensibiliza Jean-Marc
que, em uma tentativa de recuperação da autoestima da esposa, passa a lhe enviar cartas
sobre a alcunha de um homem imaginário. O efeito dessa atitude, a princípio realizada
como algo mínimo e não intencional, é o de rejuvenescimento por parte de Chantal que se
redescobre mais sensual e erotizada, enquanto Jean-Marc enfrenta o ciúme de si mesmo
como outro ao olhar de sua mulher.
Além disso, passamos pelo passado dos protagonistas retratados por meio de seus
arrependimentos e traumas: a relação de distância desempenhada por Jean-Marc para com
o amigo F., que se encontra à beira da morte e, por isso, tenta resgatar momentos da
juventude, os quais não encontram resposta, pois foram esquecidos/apagados da memória
do protagonista; ademais, temos ainda as memórias de Chantal em relação ao seu primeiro
casamento (Jean-Marc é o seu segundo marido ), a dor da perda prematura de seu filho e as
cordialidades as quais ela era obrigada a manter para com a família de seu antigo esposo.
Tudo isso é enterrado e desenterrado simbolicamente ao longo da narrativa.
O primeiro encontro do casal também é trazido à narrativa, a partir das
lembranças e pensamentos dos dois, o que gera uma constante construção identitária ao
longo da narrativa. Kundera consegue criar dentro desse enredo, por meio das disposições
das memórias de ambos, das ações desempenhadas pelos personagens e dos pontos de
vistas que se cruzam, um efeito que se assemelha muitas vezes ao onírico - sendo quase
impossível distinguir o traço que distingue o que foi dito do que ocorreu, deformando não
só os personagens e suas características, como também o acontecimento que permeia o
romance.

1.3 A ignorância

O terceiro romance escrito em francês pelo autor e o último livro a ser estudado,
nessa pesquisa, possui 53 capítulos de curta duração, mais ou menos a mesma quantidade
dos outros livros anteriores. A edição brasileira da Companhia de Bolso apresenta 128
páginas, enquanto a original da Gallimard apresenta 180 páginas. O narrador utilizado por
Kundera, assim como nos outros romances, é onisciente e faz uso intercalado do discurso
direto e indireto. Somos apresentados à narrativa de retorno de dois exilados, Irena e Josef,
27

após 20 anos afastados de seu país, a República Tcheca. O Grande Retorno, que a princípio
é visto como algo entusiasmante, torna-se relativizado: o entusiasmo é de quem? Quem
retorna é semelhante a quem sai? Em função disso, a nostalgia passa a ser explorada ao
longo da narrativa enfocando o quanto a volta dos personagens é agridoce, porque implica
em uma amputação simbólica de uma parte de si que é renegada pelo olhar de um outro.
Irena se incomoda com conhecidos, pois percebe neles o desinteresse por sua vida
no exílio, por sua história. Ela não se sente a vontade para compartilhar nada, uma vez que
sabe do silêncio de constrangimento e de incompreensão que receberá daquelas pessoas,
antes vistas como próximas. Da parte de Josef o mesmo ocorre, seu irmão e sua cunhada
não reconhecem a sua vida nos 20 anos de exílio, eles mal lhe fazem perguntas sobre a sua
esposa que morrera há pouco tempo, muito menos pensam nele quando fazem a partilha
dos bens que os pais deixaram – esse espaço adquire mais distância quando Josef, ao ir
visitar o túmulo dos pais, percebe no cemitério uma variedade de nomes dos quais sequer
fora informado da morte.
Kundera explora o deslocamento não somente físico e geográfico, mas, sobretudo,
afetivo que os personagens adquirem no momento do retorno a casa. É uma narrativa que
mais uma vez entra em contato com o tema da identidade: Irena e Josef sofrem com o
conflito de relações e visões que têm sobre si e sobre o mundo, com isso se sentem
sozinhos. Ao longo da narrativa, descobrimos também em um flashback que ambos se
conheceram na juventude e tiveram um breve relacionamento naquela época: Irena se
lembra disso quando o encontra anos mais tarde em um aeroporto na volta a Praga, porém
o mesmo não ocorre por parte de Josef, que a trata com educação devido ao esquecimento.
Ambos acabam tendo um encontro erótico que falha exatamente no momento em que ela
descobre o fato de Josef não a reconhecê-la; ainda assim, os dois dormem juntos. Na
manhã seguinte, ele, que está de partida para a Dinamarca, sai do hotel e deixa um bilhete
destinado a Irena, no qual a chama de irmã - reconhecendo o fato de que, no meio de tais
deslocamentos, só ambos compreendem o que vivenciam.
28

2. AS IMAGENS DA MEMÓRIA E SEUS EFEITOS

2.1 Revisão sobre estudos da memória

Entender e compreender os mistérios por detrás da memória é algo que intriga o


ser humano desde os primórdios e tem sido alvo de reflexões durante o passar dos tempos.
Porque o processo de memória nos traz questões: como justificar essa seleção que nos
ocorre, na maioria das vezes, de modo inconsciente? De onde ela vem? De quais formas se
manifesta? O primeiro registro de uma referência à memória vem do episódio em que o
poeta Simônides de Ceos, ao decidir prestar votos aos gêmeos Castor e Pólux, no jantar em
homenagem a Scopas, escapa de um desabamento e utiliza de sua memória para indicar as
pessoas que ali estavam a partir dos lugares os quais ocupavam. Logo, uma das primeiras
associações possíveis encontradas em relação à memória – ou ao ato de memorizar – seria
por meio das imagens e dos locais, da disposição dos objetos no espaço em que eles
ocupam.
O homem que possuísse a qualidade de manipular e de imprimir imagens e
lugares em sua memória era considerado como um elemento vital na constituição de uma
sociedade, nos períodos clássico e medieval. Isso se manifestava principalmente nos
diversos torneios de memorização existentes e na valorização que alguns reis conferiam
àqueles que dominassem a mnemotécnica. Outro ponto forte que evidenciava a ligação da
memória com a imagem diz respeito ao caráter discursivo evidenciado na tradição retórica,
pois desenvolver uma mnemotécnica era fortalecer o discurso de modo a convencer ou
manipular as reações de sua audiência. Com isso, a memória era apreendida tal e qual uma
das partes da retórica18 a ser dominada com a finalidade de obter maior precisão e maior
convencimento nos discursos. Graças a esse vínculo desenvolvido, a arte da memória
conseguiu permanecer como uma técnica ao longo dos anos.
Segundo Yates,

Cícero enfatizava que a invenção da arte da memória por Simônides não


radicava apenas na sua descoberta da importância da ordem sequencial
para a memória, mas também na de que o sentido da visão é o mais forte
de todos os sentidos. [...] A palavra ‘mnemotécnica’ dificilmente
transmite o que poderia se assemelhar à memória artificial de Cícero ao

18
De acordo com o Ad Herenium, tratado retórico de autoria desconhecida, a arte retórica se dividiria em cinco
partes: inventio, dispositio, elocutio, memoria e pronuntiatio. Todas elas, grosso modo, corresponderiam à
confecção prévia do discurso a ser proferido.
29

se mover entre as construções da Roma Antiga, vendo os lugares, vendo


as imagens armazenadas nos lugares, com uma visão interior penetrante,
que trazia imediatamente aos seus lábios os pensamentos e as palavras de
seu discurso. Eu prefiro usar a expressão ‘arte da memória’ para esse
processo. (YATES, 2007, p.20)

Algo importante dessa nota acima merece ser sublinhado: quando a teórica passa a
falar sobre Cícero, ela faz menção à divisão entre memória artificial e memória natural,
distinção que é interessante no sentido de ressaltar que, dentro do campo da memória, já
começava a se formar uma compreensão acerca do meio de formação das memórias e que
para esse tipo de entendimento, a associação com o sentido da visão se torna algo
imprescindível e essencial. Contudo, tal tipo de perspectiva a respeito da memória como
uma arte, um domínio, uma virtude, passa a não ser mais lido como essencial na
atualidade; a memória passa de técnica ao entretenimento, da virtuose à patologia19,
gerando com isso o sentimento de que não há mais espaço para o treino do decorar, uma
vez que tudo se encontra documentalizado, concentrado em dispositivos – responsáveis por
contér, inclusive, uma capacidade de armazenamento muito superior à mente humana.
Pierre Nora, em seu texto Entre memória e história: a problemática dos lugares
(1993), traz um pouco dessa discussão na sua procura por pontuar as diferenças entre a
história e a memória como conhecimentos humanos: enquanto a história se dedica ao
passado, a memória se dedicaria ao presente; enquanto a primeira é institucionalizada e
absoluta, a segunda é relegada ao popular/geracional e fragmentada, dentre outras
considerações riquíssimas realizadas por ele. Ainda, segundo ele, a memória enfrentaria
uma crise que repercute na perda de referências do passado, em seu desaparecimento
devido à aceleração da história; logo, para que seu domínio fosse reestabelecido, seria
necessário o seu reavivamento por meio de locais de memória, onde ela poderia ser
evocada e trazida à luz do presente, seu local por direito.

A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido,


ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do
esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a
todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de
repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre
problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um
fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma

19
Nessa expressão, tentei mostrar a visão de que há uma mudança perceptível no modo como a memória pelo
viés da memorização será explorada: da virtude de se decorar e saber falar sobre nomes e símbolos, digna de
admiração à patologia, representada pelo excesso de lembrança, o não esquecer – literariamente essa visão
aparece muito bem representada por meio do conto “Funes, o memorioso” de Jorge Luis Borges. Uma total
inversão de polaridades na questão do sentido.
30

representação do passado. Porque é afetiva e mágica, a memória não se


acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembranças
vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas,
sensível a todas as transferências, cenas, censuras ou projeções. A
história, porque operação intelectual e laicizante, demanda análise e
discurso crítico. (NORA, 1993, p.9)

Tal visão de que a memória se comunica com o presente, não mais com o
passado, é o grande diferencial que será explorado na contemporaneidade, sendo
responsável pela quebra que origina a distinção entre ars e vis, ou seja, entre técnica de
memorização e exploração potente de recordações e lembranças.
Um dos teóricos que se propôs a realizar o estudo da memória como vis é o
filósofo Henry Bergson. Em seu livro, Matéria e Memória, é realizado um trabalho que
visa à exploração do modo como as imagens são formadas na consciência passando pelos
questionamentos entre a percepção e a apreensão da memória: a lembrança pura, a
lembrança-imagem e o associacionismo – partes do livro que mais contribuem nesse
estudo proposto. É importante trazer a contribuição desse autor, porque ele consegue com
sua teoria realizar aproximações muito interessantes entre filosofia e biologia no que diz
respeito ao tema da memória; mais precisamente, quando ele detalha no segundo capítulo
sobre o modo de permanência e impressão (no sentido de imprimir, consolidar um objeto)
de imagens no espírito.
Para não cair no erro de ver a memória como um estado associativo (caracterizado
pela inércia e pela sucessão e multiplicação de elementos justapostos) e sim vê-la como um
conjunto de lembranças, seria necessário reconhecer a continuidade do devir e se colocar
em movimento contrário a ele; porém, tal movimento não consistiria em um trajeto de um
presente que vai em direção a um passado, mas sim em um passado que se representifica.
Com isso, a memória passa a assumir características de um movimento, um transitar entre
um presente e um passado.

A verdade é que a memória não consiste, em absoluto, numa


regressão do presente ao passado, mas, pelo contrário, num progresso do
passado ao presente. É no passado que nos colocamos de saída. Partimos
de um “estado virtual”, que conduzimos pouco a pouco, através de uma
série de planos de consciência diferentes, até o termo em que ele se
materializa numa percepção atual, isto é, até o ponto em que ele se torna
um estado presente e atuante, ou seja, enfim, até esse plano extremo de
nossa consciência em que se desenha o nosso corpo. Nesse estado virtual
consiste a lembrança pura. (BERGSON, p.280)

Ela pode ser percebida como um produto virtualmente construído de um objeto H


(homem) que sai de uma situação B (passado) destinada a uma situação A (presente).
31

Nessa linha contínua, tendo em vista a representação espacial do tempo, serão realizadas as
distinções entre lembrança, percepção e imaginação; a partir do trabalho com as sensações
e com os modos de sobrevivência e permanência das imagens no espírito. A lembrança se
apresenta como um surgimento de imagens do passado no presente, marcado por processos
de sucessões, assimilações e exclusões que entram em contato com a apreensão da
consciência de um mundo exterior, tornando-se novamente a percepção pura. Nesse
sentido, a lembrança pura é a manifestação do espírito na matéria, o que equivale dizer que
o domínio da memória é o domínio do espírito.
Outra perspectiva importante para esse estudo será a apresentada por Paul
Ricoeur, em seu livro A memória, a história e o esquecimento, que se propõe estudar a
memória – por meio de sua fenomenologia –, a história e o esquecimento (a partir do
enfoque do perdão); tudo isso, tendo em face o contexto do holocausto e as suas
implicações em relação à epísteme. No que diz respeito a esse estudo, interessa-nos o
enfoque que perpassa as conexões realizadas entre as formas de recordação e de escrita
dessa recordação, o que significa dizer propriamente as formas com as quais o passado se
inscreve e passa a escrever e modificar o presente. O conceito de lembrança ressurgirá com
esse autor a partir do momento em que ele se preocupa – e isso é um dos fios condutores
de seu livro – com as relações possíveis entre tempo e narrativa, vitais para as
compreensões de memória e de esquecimento.
Além disso, as imagens serão novamente evocadas sob a forma prima de
representação válida do passado, sendo vistas como presenças que se põem em ação,
mediante um esforço de não esquecimento. É justamente nesse sentido que se torna
necessária uma análise do conceito de imagem: para isso, Ricoeur parte da figura de Platão
e da sua tese de que a imagem pode ser percebida como uma segunda parte do verdadeiro,
semelhante à perspectiva de uma cópia:

A ideia de ‘semelhança fiel’ própria da eicástica terá, pelo


menos, servido de escala. Platão pode ter percebido o momento da
entrada em impasse quando se interroga: o que chamamos, então, ‘afinal,
de imagem?’ (eidolon)? (239d). Perdemo-nos na enumeração dos
exemplos que parecem escapar da arte da divisão ordenada e,
primeiramente, a da definição genérica: ‘Que definição daremos, pois, da
imagem, estrangeiro, se não a de chamá-la de um segundo objeto
(heteron) similar, copiado do verdadeiro?’(240a) Mas o que quer dizer
similar? E outro? E copiado? (RICOEUR, p.31)

Isso nos leva diretamente à questão da distância virtual existente entre o passado e
o presente e ao esforço de recordação que consiste em um trabalho de memória. Outras
32

relações ainda serão feitas no que diz respeito aos motivos que levam a evocação das
memórias e às interligações realizadas entre memória e imaginação, uma vez que ambas se
auto-evocam, operando uma como complemento da outra, principalmente quando a
memória se apresenta tal e qual uma rememoração.
No que tange ainda ao esquecimento, outro teórico se torna necessário para essa
nossa compreensão acerca da memória: Harald Weinrich, em seu livro Lete – arte e crítica
do esquecimento, realizará um trabalho focado no esforço de analisar o duplo
lembrança/esquecimento ao longo dos anos na literatura, na história, na filosofia e na
mitologia. Tendo como imagem norteadora o rio Lete que, segundo a mitologia grega, é
um dos rios do Hades cujas águas levavam ao completo esquecimento das vidas passadas,
o autor tecerá considerações acerca do papel da memória como outra face da mesma
moeda do esquecimento: lembra-se para não esquecer, esquece-se para não lembrar.
Esse vínculo, observado desde as mais remotas épocas por meio dos mais
variados textos, é o que nos permite pensar na memória como um trabalho incessante de
não esquecimento, um esforço de permanência. Além do mais, vale ressaltar que, assim
como ambas as ações fazem parte da mesma natureza e surgem do mesmo contexto de
morte, a fonte do esquecimento e a fonte da memória apareceriam no mesmo ambiente
mitológico: situavam-se perto do oráculo de Trofónio, de modo que um visitante ao
procurar uma informação futura deveria experimentar das duas águas para obter a sua
resposta. Tal compreensão nos faz refletir sobre o papel importante da memória para o
presente e para a consolidação do futuro e vice-versa no que tange ao esquecimento.
Do mesmo modo que Ricoeur trouxe considerações acerca da recordação, Jeanne
Marie Gagnebin também o trará em “Memória, História e Testemunho”, um dos capítulos
do livro Lembrar, escrever, esquecer. Partindo do contexto do fim da narração, conceito
explorado por Walter Benjamin frente aos horrores do trauma e da urgência de se expressar
o inexpressável, a teórica reflete sobre a perda da experiência como uma tradição
compartilhada e postula uma consequência decorrente disso: o desaparecimento das
narrativas, tendo como pano de fundo a mudez observada nos sobreviventes da primeira
guerra mundial. O capítulo nos leva a observar a memória de maneira fragmentada e
incompleta, sob a forma de um rastro do incomunicável em uma tentativa de driblar o
esquecimento, o apagamento total de uma experiência trágica e de subjetividades que a
vivenciaram. Para além, um enfoque é dado à narrativa - meio pelo qual a memória se
firma e se inscreve na história. Há um dever de memória, pois é necessário que exista uma
33

real fidelidade ao passado, a fim de que ele modifique o presente e, por consequência, o
futuro:

A exigência de memória, que vários textos de Benjamin


ressaltam com força, deve levar em conta as grandes dificuldades que
pesam sobre a possibilidade da narração, sobre a possibilidade da
experiência comum, enfim, sobre a possibilidade da transmissão e do
lembrar, dificuldades que evocamos no início desta exposição. Se
passarmos em silêncio sobre elas em proveito de uma vontade piegas,
então o discurso sobre o dever de memória corre o risco de recair na
ineficácia dos bons sentimentos ou, pior ainda, numa espécie de
celebração vazia, rapidamente confiscada pela história oficial.
(GAGNEBIN, p.55)

Ainda nesse capítulo, a autora reforça as figuras tanto do narrador quanto do


historiador como portadores das lembranças, responsáveis pela perpetuação da experiência,
algo que a tradição justamente ignora ou não recorda. São essas as vozes que simbolizarão
o silêncio de muitos. Nesse sentido, a memória nos importará como a tentativa de
preservação de uma experiência subjetiva, uma resistência que possui uma função e um
contexto.
A associação entre memória e resistência rende inúmeras discussões e uma delas,
cara a nosso entendimento, é a realizada por Freud nos ensaios A dinâmica da
transferência e Recordar, repetir, elaborar. A respeito do primeiro, interessa-nos as
considerações que tangem às condições primeiras da análise psicanalítica: a repetição de
clichês manifestados de forma impressa e contínua na vida de um paciente, sejam esses
clichês conscientes ou não. Vale ressaltar que, em Freud, essa questão é posta em relação à
libido e às suas formas de escape e manifestação na experiência de um ser. Porém, em uma
aproximação com a memória, seria possível pensar nessa repetição contínua como uma
imagem de memória que, por meio da manifestação de algum trauma, insiste em trazer de
volta as mesmas condições de um passado à vida presente, ocasionando a neurose.
A transferência como forma de tratamento é indicada, pois conforme o paciente
em análise busca nas suas lembranças a cura para a sua neurose, ele ainda assim reage com
resistência a esse tratamento. O que nos permite perceber que, novamente, falar de
memória é também falar de resistência, seja ela algo que facilite ou algo que complique
essa busca em direção ao passado, tendo em vista as questões presentes.
34

No segundo ensaio de Freud, citado anteriormente, o psicanalista se propõe a


refletir sobre o papel vital da reprodução dos processos que envolvem o trauma20 na
condução da atividade consciente. Passando pela menção ao processo de hipnose como
uma das primeiras tentativas de recordação do não recordável e indo em direção aos rastros
espontâneos que se apresentam no momento da psicanálise, o teórico reforçará a
importância da resistência na busca pelas recordações e o quanto a tomada de consciência
do paciente em relação a essas resistências é benéfica para o tratamento de si.

O esquecimento de impressões, cenas, vivências reduz-se em geral a um


“bloqueio” delas. Quando o paciente fala desse “esquecimento”,
raramente deixa de acrescentar: “Na verdade, eu sempre soube, apenas
não pensava nisso”. Não raro ele expressa desapontamento por não lhe
ocorrerem bastantes coisas que possa reconhecer como “esquecidas”, em
que nunca tenha pensado novamente. No entanto, também esse anelo é
satisfeito, sobretudo nas histerias de conversão. O “esquecimento” sofre
ainda limitação se apreciarmos as lembranças encobridoras, de presença
universal. Em não poucos casos tive a impressão de que a conhecida
amnésia infantil, para nós tão importante teoricamente, é inteiramente
contrabalançada pelas lembranças encobridoras. Nestas se conserva não
apenas algo essencial na vida infantil, mas verdadeiramente todo o
essencial. É preciso apenas saber extraí-lo delas por meio da análise.
(FREUD, p.106)

Além disso, o psicanalista ainda sustenta o caráter da dupla lembrar/esquecer,


algo que já foi mencionado aqui por meio dos pensamentos de Harald Weinrich: o que se
lembra é o que não se consegue esquecer, de modo que a consciência é responsável por
trazer a lembrança via um ato de recordação; isso implica em uma afirmação de que a
consciência da existência de um objeto é vital para o não esquecimento desse. Ademais, no
processo psicanalítico, o paciente não recorda o acontecido e sim o atua, deslocando o
acontecimento da virtualidade para a realidade, saindo do espírito para o corpo. A
manifestação não consiste na lembrança do ato em si, mas na sua reprodução durante a
terapia; por isso a necessidade da transferência e das reações de repetição advindas dela,
que tem por consequência o surgimento das recordações e da resistência envolvidas antes
de chegar à consciência do paciente. Novamente, percebemos o estreito vínculo

20
É importante trazer nesse momento a leitura de Além do princípio do prazer, texto esclarecedor no qual Freud
se propõe a falar do trauma, dos mecanismos de compensação e principalmente das reações de repetição e de
recordação presentes no momento da análise: “O doente não pode lembrar-se de tudo o que nele está reprimido,
talvez precisamente do essencial, não se convencendo da justeza da construção que lhe é informada. Ele é antes
levado a repetir o reprimido como vivência atual, em vez de, como preferiria o médico, recordá-lo como parte do
passado”. (p.131).
35

desempenhado entre memória, consciência e resistência na experiência humana, tendo em


vista o passado e as formas de se pensá-lo ou negá-lo em relação ao presente.
De toda forma, todas as reflexões realizadas nesse estudo convergem em uma
visão da memória estreitamente vinculada à imagem e a sua consolidação frente o passar
dos tempos: uma permanência nada neutra, tensionada por conflitos que podem envolver
uma negação ou uma resistência em face ao presente. Tais conflitos se apresentam
extremamente precisos e urgentes quando colocados sob a ótica da necessidade: é
necessário lembrar para não se esquecer; e isso implica em dizer que a memória é a
condição sine qua non para a criação de um agora e de um por vir.
Para adiante desses conceitos, um último ainda merece nota: o de memória
coletiva, desenvolvido por Maurice Halbwacks, que parte da perspectiva da análise da
memória considerando o seu contexto social de surgimento, permanência e disseminação.
A ênfase dada pelo autor ao contexto geracional é de vital importância por romper com o
pensamento dominante do estudo da memória pelo viés individual e atribuir ao contexto
coletivo a força necessária na construção das lembranças. Basta lembrar a imagem central
da disseminação utilizada como exemplo: o avô que partilha de suas lembranças com seu
neto, no dia a dia, transmitindo a ele todas as lembranças de seu tempo e os conhecimentos
adquiridos por meio de sua vivência. Além disso, Halbwacks transporta a questão da
afetividade para o campo da memória, ao pensar na comunidade afetiva que perpetua e
opera esse ciclo de recordações, misturando-se em alguns momentos com a memória
individual.

Ela não está inteiramente isolada e fechada. Para evocar seu


próprio passado, em geral a pessoa precisa recorrer às lembranças de
outras, e se transportar a pontos de referência que existem fora de si,
determinados pela sociedade. Mais do que isso, o funcionamento da
memória individual não é possível sem esses instrumentos que são as
palavras e as ideias, que o indivíduo não inventou, mas toma emprestado
de seu ambiente. (HALBWACHS, p. 72)

Estabelecidas as nossas compreensões acerca do que vem a ser o conceito de


memória no campo dos pensamentos, uma especificação merece ser realizada no que diz
respeito a essa pesquisa: na literatura, as imagens serão parte essencial do estudo literário
da memória. Para isso, foi imprescindível ir em direção a conceitos que abordem as
variadas representações da memória nesse campo.
36

No artigo Onde literatura e memória se encontram: para uma abordagem


sistemática dos conceitos usados em Estudos Literários, de Astrid Erll e Ansgar Nünning,
encontramos duas abordagens de memória que são essenciais nesse estudo: memória na
literatura e memória da literatura. Cabe à memória na literatura, a abordagem das formas
de representação da memória, seja ela individual ou coletiva, no texto literário; esse
conceito se refere ao “aparecimento da memória” dentro das produções literárias. Um
exemplo interessante seria o estudo de um livro no qual o autor se proponha a escrever
sobre a memória de algum personagem ou momento específico ou, até mesmo, traga
discussões a respeito da memória em si.
No que tange à memória da literatura, a abordagem seria aquela em que a
memória aparece como um sistema que se auto referencia por meio de uma criação de um
repertório, manifestando-se nos intertextos, nos gêneros e, principalmente, no cânone
literário. A literatura é vista, nesse sentido, como detentora de uma memória própria de si
mesma. Um exemplo válido seriam os estudos sobre os gêneros de memória tais como os
diários, as autobiografias e os memoriais, ou obras que enfoquem o cânone literário. Nessa
perspectiva, toda literatura possui uma memória literária.
Ademais, os conceitos de memória cultural e memória comunicativa, cunhados
por Aleida Assmann em Espaços da recordação: formas e transformações da memória
cultural, também contribuem no entendimento da manifestação da memória nos estudos
literários, aparecendo mais especificamente nos livros supracitados. A respeito do primeiro
conceito de memória, o cultural, podemos ter como definição aquele tipo de memória que
permanece, superando as épocas, fixando-se por meio de textos normativos, muitas vezes
constituindo um cânone específico. Ela nos é apresentada em contextos mais formais e faz
parte de um conhecimento mais geral; aparecendo, na maioria das vezes, na literatura sob a
forma do cânone literário – assemelhando-se ao conceito de memória da literatura,
abordado em alguns parágrafos anteriores.
No que se pode dizer sobre a memória comunicativa, conceito também cunhado
por Assmann, ela surgirá em contextos menos gerais e será caracterizada por possuir
menor duração frente o passar dos tempos, uma vez que a sua constituição se dê no
contexto geracional, sendo legada e baseada em lembranças orais como cantigas ou
romances de gerações, por exemplo, que eram apresentadas em eventos pequenos, como os
saraus.
Todas essas visões, no que tange a associação entre memória e literatura,
adicionam novas nuances no entendimento e na análise dos três livros do ciclo francês de
37

Kundera, A lentidão (1990), A identidade (1997) e A ignorância (2000), que serão


apresentados a seguir.

2.2 As imagens nos romances do ciclo francês

2.2.1 A lentidão

O homem curvado em sua motocicleta só pode se


concentrar naquele exato momento de seu voo;
agarra-se a um fragmento retirado tanto do
passado quanto do futuro; é arrancado da
continuidade do tempo; está fora do tempo; em
outras palavras, está num estado de êxtase; em tal
estado, não sabe nada de sua idade, nada de sua
mulher, nada de seus filhos, nada de suas
preocupações e, portanto, não tem medo, pois a
fonte do medo está no futuro e quem se liberta do
futuro nada tem a temer.
(Milan Kundera)

A primeira referência direta à memória utilizada por Kundera, em A lentidão,


decerto não aparece justamente nesse excerto que se encontra em destaque na epígrafe,
retirado logo do início do primeiro parágrafo. No entanto, a decisão de destacá-lo vem de
encontro à percepção de um elemento desenvolvido por ele nesse momento da narrativa e
que será responsável por ditar o tom do restante da história narrada: trata-se do substantivo
voo, que alude à velocidade com a qual o motociclista – que no tempo e espaço diegético21
se encontra atrás do veículo de Vera e Kundera – pretendia se valer para continuar o seu
trajeto inicial e que, por conta da velocidade dos dois personagens já mencionados, não
consegue se cumprir. Dessa situação, origina-se a primeira oposição entre velocidade e
lentidão, que irá se perpetuar e se repetir ao longo da narrativa.
A partir dessa tensão opositiva, a memória será mencionada: ela aparece por meio
de uma comparação direta com o fenômeno da permanência, evidenciado nas imagens de
velocidade e duração. Isso surgirá quando o narrador passa a contar sobre a sucessão de
acontecimentos vivenciada no romance Point de Lendemain, de Vivant Denon, e com isso
faz um comparativo entre o modo de se observar a duração do tempo no século XVIII e a

21
Conceito cunhado por Gérard Genette, em seu Discurso da Narrativa, que será mais bem explorado no
próximo capítulo, onde realizaremos uma análise das narrativas kunderianas. Pode-se dizer, grosso modo, que o
tempo diegético corresponde à diegese, assim como o espaço diegético, que se caracterizam por ser o tempo e o
espaço que existe dentro da trama da narrativa.
38

duração do tempo no século XX. Madame T, uma das personagens principais do romance
de Denon, prepara a sua noite erótica por etapas que intercalam a lentidão e a rapidez,
tendo por base justamente a vontade de tornar todo aquele tempo como inesquecível e
memorável, para ela e para o cavaleiro que a acompanhava.
Quanto mais rápida a sucessão de acontecimentos, mais acelerada será a
manifestação da duração e mais fácil será o processo de esquecimento, é o que Kundera
nos mostra quando traz a imagem de uma pessoa que precisa se esquecer de seus
pensamentos e acelera de forma maquinal seus passos. Quanto mais lenta a sucessão de
acontecimentos, menos acelerada será a manifestação da duração e mais difícil será o
processo de esquecimento, de modo que uma pessoa ao tentar se lembrar de algo tenda a
diminuir o passo durante a procura por certas recordações.

22
Há um vínculo secreto entre a lentidão e a memória, entre a
velocidade e o esquecimento. Imaginemos uma situação das mais
comuns: um homem andando na rua. De repente, ele quer se lembrar de
alguma coisa, mas a lembrança lhe escapa. Nesse momento,
maquinalmente, seus passos ficam mais lentos. Ao contrário, quem está
tentando esquecer um incidente penoso que acabou de viver sem querer
acelera o passo, como se quisesse rapidamente se afastar daquilo que, no
tempo, ainda está muito próximo de si.
Na matemática existencial, essa experiência toma a forma de
duas equações elementares: o grau de lentidão é diretamente proporcional
à intensidade da memória; o grau de velocidade é diretamente
proporcional à intensidade do esquecimento. (KUNDERA, p.30-31) 23

Essa passagem nos é cara, justamente por vir a ser a imagem de memória mais
explícita encontrada ao longo da leitura e por possuir a potência necessária para fazer com
que a narrativa seja vista como um eco, um efeito dessa imagem (algo que pretendemos
explorar mais no capítulo seguinte). Além do mais, a lembrança e o esquecimento
aparecem fortemente vinculados tal como faces do mesmo rosto, manifestações geradas
pelo mesmo contexto, assemelhando-se às considerações de Weinrich sobre as ações de

22
Conforme o estabelecido anteriormente, apresentaremos no corpo do texto os trechos da tradução brasileira,
realizada por Tânia de Carvallho, enquanto reservaremos ao espaço dos rodapés a versão original em francês dos
livros analisados.
23
Na versão original, da Gallimard:
Il y a un lien secret entre la lenteur et la memóire, entre la vitesse et l’oubli. Évoquons une situation on ne peut
plus banale: un homme marche dans la rue. Soudain, il veut se rappeler quelque chose, mais le souvenir lui
échappe. À ce moment, machinalement, il ralentit son pas. Par contre, quelqu’um qui essaie d’oublier un incident
pénible qu’il vient de vivre accélère à son insu l’ allure de sa marche comme s’il voulait vite s’éloigner de ce qui
se trouve, dans le temps, encore trop proche de lui.
Dans la mathématique existentielle cette expérience prend la forme de deux équations élémentaires : le degré de
la lenteur est directement proportionnel à l´intensité de la mémoire ; le degré de la vitesse est directement
proportionnel à l’intensité de l’oubli. (p.44-45)
39

lembrar e de esquecer – ações conjuntas que coabitam o mesmo contexto e se


desempenham ao mesmo tempo, visto que a lembrança de algo implica em um foco e
consequentemente no esquecimento do todo, enquanto que o esquecimento de algo
implicaria em um acúmulo das lembranças; o que resulta em uma visão de que a diferença
necessária para que esses atos se efetivem seja vista não como uma diferença de estados,
mas uma variação de graus. Kundera, ao elucidar a memória dessa maneira, traz a reflexão
do elo entre espírito e corpo durante o ato de rememoração, algo que já fora acima
mencionado e faz parte das considerações de Bergson (o entendimento sobre o surgimento
das lembranças e o papel do corpo durante esse processo) e de Freud (a lembrança que
aparece sob a forma de ato no paciente durante a análise). Nessa passagem, a memória
apresentada pode ser categorizada, ainda, como memória na literatura, pois se trata da
representação do processo de memória no texto literário, onde o objeto é o ato de
lembrança.
Além dessa referência direta, podemos encontrar a memória na literatura por meio
da cômica história do entomólogo Chechoripsky que, após anos longe da academia devido
a motivos políticos, é convidado para um congresso e, emocionado por estar entre seus
pares, sente-se tocado pela História. Ao invés de proclamar seu discurso, o sábio apenas
agradece por poder estar entre os seus e começa a compartilhar as suas memórias. Nessa
parte da narrativa, uma coisa merece nota: ela diz respeito aos efeitos que as afecções
geram em processos de memória, sendo favoráveis ao surgimento de lembranças e ao total
esquecimento da situação presente.

No decorrer dos vinte segundos que dura o seu deslocamento,


acontece-lhe algo de inesperado: ele sucumbe à emoção: meu Deus,
depois de tantos anos, encontra-se de novo diante das pessoas que estima
e que o estimam, entre os sábios que lhe são próximos e de cujo meio o
destino o tinha arrancado; quando para diante da cadeira vazia que lhe é
destinada, ele não se senta; pelo menos uma vez, quer obedecer a seus
sentimentos, ser espontâneo e dizer a seus colegas desconhecidos o que
sente. (KUNDERA, p.46) 24

No excerto acima, a memória aparece de maneira tão forte que o entomólogo se


esquece do presente, dos minutos em que falaria sobre o seu estudo, e passa a falar sobre a

24
Na versão original da Gallimard:
Au cours des vingt secondes que dure son déplacement, quelque chose d’inattendu lui arrive:il succombe à
l’émotion : mon Dieu, après tant d’années il se trouve à nouveau parmi les gens qu’il estime et qui m’estiment,
parmi les savants qui lui sont proches et du milieu desquels le destin l’avait arraché ; quand il s’arrête devant la
chaise vide que lui est destinée, il ne s’assoit pas; por une fois il veut obéir à ses sentiments, être spontané et dire
à ses confrères inconnus ce qu’il ressent. (p.67)
40

sua trajetória, os momentos pelos quais enfrentara durante o afastamento para que
finalmente pudesse estar ali, frente a seus pares. Após proferir o discurso, novamente a
emoção se manifesta e ele se recorda da imagem do pai:

Ao pronunciar as últimas palavras, sente as lágrimas subirem-


lhe aos olhos. Isso o encabula um pouco, vem-lhe a imagem de seu pai
que, já velho, se emocionava sem parar e chorava à toa, mas em seguida
pensa consigo mesmo, por que não se deixar levar pelo menos uma vez:
essa gente deveria sentir-se honrada com sua emoção, que ele lhes
oferece como um pequeno presente trazido de Praga. (KUNDERA, p.47)
25

Terminada a sua fala, a reação da plateia o faz lembrar-se de seu discurso que fora
totalmente esquecido a partir do momento em que ele, tomado pela emoção, passara a
agradecer a oportunidade de estar entre colegas e a relatar fatos sobre a sua história
pessoal. A recordação acontecera de maneira tão intensa e viva, que após a sua passagem
fizera reinar o mais absoluto silêncio na plateia.

[...] Não se dava conta de que, progressivamente, como uma


modulação imperceptível que faz uma sonata passar de um tom a outro, o
silêncio emocionado tinha se convertido em silencio embaraçado. Todo
mundo havia compreendido que esse senhor de nome impronunciável
estava ele próprio a tal ponto emocionado que se esquecera de ler a
intervenção que lhes forneceria informações sobre suas descobertas a
respeito de novas moscas. E todos sabiam que seria indelicado lembrar-
lhe disso. Depois de uma longa hesitação, o presidente do colóquio tosse
e diz:
“Agradeço ao senhor Tchecochipi” (fica calado durante um
bom tempo para dar ao convidado uma última oportunidade de se
lembrar) “e chamo o próximo conferencista.” Nesse momento, o silêncio
é brevemente interrompido por um riso abafado no fundo da sala.
Mergulhado em seus pensamentos, o sábio tcheco não ouve
nem o riso nem a intervenção de seu colega. Outros oradores se sucedem
até que um sábio belga, que como ele estuda as moscas, desperta-o de seu
recolhimento: meu Deus, ele esqueceu de pronunciar seu discurso! Põe a
mão no bolso, as cinco folhas de papel estão lá para provar que não está
sonhando.
Seu rosto queima. Sente-se ridículo. Será que ainda pode salvar
alguma coisa? Não, sabe que não pode mais salvar coisa nenhuma.
(KUNDERA, p.48)26

25
Na versão original:
En prononçant les derniers mots, il sent les larmes lui monter aux yeux. Cela le gêne un peu, lui revient l’image
de son père qui, vieillard, était ému sans trêve et pleurait à chaque occasion, mais ensuite il se dit, porquoi ne pas
laisser aller pour une fois : ces gens devraient se sentir honorés par son émotion qu’il leur offre comme un petit
cadeau de Prague. (p.69)
26
Na versão original:
[...]Il ne se rendait pas compte que, progressivement, comme une imperceptible modulation qui fait passer une
sonate d’un ton à un autre, le silence ému s’était converti en silence gêné. Tout le monde avait compris que ce
41

Há algo de interessante nessa parte, pois ela traz uma das reflexões mais caras no
que diz respeito às lembranças: o efeito que elas desempenham no momento de sua ação.
Se o presente é o lugar da consciência, quando o passado surge – por meio da lembrança –
esse estado de consciência fica suprimido, provocando a reação de esquecimento do todo.
Chechoripsky está de tal modo tão envolvido com as memórias suscitadas que acaba por
não se dar conta da reação de seus colegas - que não o acompanham e não compartilham
do mesmo passado; prova disso é o riso de constrangimento alheio por parte deles.
Tal reação resulta no choque entre memória e história que aparece quando ele
nota, por parte de seus companheiros profissionais, um desrespeito em relação a sua
história pessoal. Ainda que não seja parte das reflexões de Kundera presentes no livro,
podemos interpretar esse conflito como proveniente de uma tensão entre memória
individual e memória coletiva: por memória individual temos a história pessoal de um
homem, elemento principal que caracteriza a sua identidade27; e por memória coletiva
temos a memória daqueles que estiveram na mesma situação política que o entomólogo e
que partilham de um ponto em comum na história das suas vidas.
Antes mesmo da situação constrangedora, o narrador se dispõe a refletir sobre
esse tema em relação ao entomólogo:

Quanto mais o tempo passou, mais ele esqueceu sua aversão


primitiva pelos adversários e mais se habituou a ver em seu “sim” um ato
voluntário e livre, uma expressão de sua revolta pessoal contra o poder
detestado. Desse modo, acredita pertencer à categoria daqueles que
subiram no grande palco da História, e é dessa certeza que tira seu
orgulho.
Mas não é realmente verdade que, frequentemente, muitas
pessoas se veem implicadas em inumeráveis conflitos políticos e que isso
faz com que se sintam orgulhosas por terem subido no grande palco da
História?

monsieur avec un nom imprononçable était à tel point ému par lui-même qu’il avait oublié de lire l’intervention
qui aurait dû les renseigner sur ses découvertes de nouvelles mouches. Et tout le monde savait qu’il aurait été
impoli de le lui rappeler. Après une longue hésitation, le président du colloque tousse et dit : <<Je remercie
Monsieur Tchécocipi... (il se tait un bon moment pour donner à l’invité une dernière chance de se souvenir)... et
je prie l’intervenant suivant. >> C’est alors que le silence est brièvement entrecoupé par un rire étouffé au fond
de la salle.
Plongé dans ses pensées, le savant tchèque n’entend ni le rire ni l’intervertion de son confrère. D’autres orateurs
se suivent jusqu’à ce qu’un savant belge, qui comme lui s’occupe des mouches, le réveille de son recueillement :
mon Dieu, il a oublié de prononcer son discours ! Il met la main dans sa poche, les cinq feuillets sont là comme
preuve qu’il ne rêve pas.
Ses joues brûlent. Il se sent ridicule. Peut-il encore sauver quelque chose ? Non, il sait qu’il ne peut rien sauver
du tout. (p.70-71)
27
Interpretamos identidade aqui como uma das definições de Stuart Hall, do texto Identidade cultural na pós
modernidade (2006), que é a de um processo de constituição do ser através de experiências formadas ao longo
do tempo, um processo instável de um preenchimento ininterrupto de si mesmo que visa à criação de biografias.
42

Devo tornar minha tese mais precisa: o orgulho do sábio tcheco


não se deve ao fato de ele ter subido no palco da História num momento
qualquer, mas naquele momento exato em que esse palco estava
iluminado. O palco iluminado da História chama-se Atualidade Histórica
Planetária. Praga, em 1968, iluminada por projetores e observada pelas
câmeras, foi uma Atualidade Histórica Planetária por excelência, e o
sábio tcheco tem orgulho de ainda hoje sentir o beijo dela em sua testa.
(KUNDERA, p.44-45)28

Quando o narrador coloca Chechoripsky como alguém que pertenceu a um


momento histórico específico, o qual inclusive obteve conhecimento no mundo inteiro, ele
evoca as mesmas sujeições e contextos passados por outras pessoas. Surge aí a memória de
grupo, de uma geração; sendo mais específica, aparece então uma memória coletiva.
Porém, ao mesmo tempo, no ato de narrar esse acontecimento, o narrador apresenta
imbricada dentro dessa memória coletiva, a memória individual de Chechoripsky, pois faz
questão de explicar que a motivação pessoal responsável por o levar à vivência desse
momento partiu de sua revolta pessoal contra o governo29, algo que contraria as intenções
coletivas e gera um efeito interessante, quase cômico no texto.
Por fim, ainda nas considerações sobre a presença da memória na narrativa, o
narrador retomará a imagem da velocidade, realizando uma crítica à contemporaneidade ou
pós/modernidade, contraposta ao século XVIII, no seguinte trecho:

Quando evoquei a noite de Madame T., lembrei a equação bem


conhecida de um dos primeiros capítulos do manual de matemática
existencial: o grau de velocidade é diretamente proporcional à intensidade
do esquecimento. Dessa equação: nossa época se entrega ao demônio da
velocidade e é por essa razão que se esquece tão facilmente de si mesma.
Ou prefiro inverter essa afirmação e dizer: nossa época está obcecada
pelo desejo do esquecimento e é para saciar esse desejo que se entrega ao
demônio da velocidade; acelera o passo porque quer nos fazer

28
Na versão original:
Plus le temps a passé, plus il a oublié son aversion primitive pour les opposants et s’est habitué à voir dans son
<<oui>> d’alors un acte volontaire et libre, l’expression de sa révolte personelle contre le pouvoir haï. Ainsi
croit-il appartenir à ceux qui sont montés sur la grande scène de l’Histoire et c’est dans cette certitude qu’il puise
sa fierté.
Mais n’est-il pas vrai que, perpétuellement, d’innombrables personnes sont impliquées dans d’innombrables
conflits politiques et peuvent donc se sentir fières d’être montées sur la grane scène de l’Histoire?
Il faut que je preécise ma thèse : la fierté du savant tchèque est due au fait qu’il n’est pas monté sur la scène de
l’Histoire n’importe quand mais à ce moment précis où elle était éclairée. La scène éclairée de l’Histoire
s’appelle l’Actualité Historique Planétaire. Prague en 1968, illuminée par des projecteurs et observée par des
caméras, fut une Actualité Historique Planétaire par excellence et le savant tchèque est fier d’en sentir encore
aujour-d’hui le baiser sur son front. (p.65-66)
29
De acordo com a narrativa, Chechoripsky passa da profissão de diretor de uma seção de seu instituto a
profissão de operário da construção civil após a invasão do Exército russo em 1968, na República Tcheca. Nessa
ocasião, um grupo de adversários do regime começa a querer utilizar a sala do entomólogo que, por sua vez, se
sente atordoado em relação a tomar uma decisão; essa covardia política é o motivo principal de sua expulsão do
ambiente acadêmico e da sua mudança de profissão.
43

compreender que não deseja mais ser lembrada; que está cansada de si
mesma; enjoada de si mesma; que quer soprar a primeira chama trêmula
da memória. (KUNDERA, p.91-92)30

Proferir que os tempos modernos se entregam à velocidade, contrapondo a isso o


exemplo de Madame T., significa atribuir uma qualidade geracional ao modo como
aderimos à velocidade e ao esquecimento proveniente dela, característica que é capaz de
conferir ao contemporâneo um status de memória estritamente vinculada à perda, uma
época onde os significados se misturam e se contradizem.
A memória da literatura será percebida nesse romance através do intertexto, da
menção de outros textos literários; nesse caso, surge pelos romances Ligações perigosas
(1782) de Choderlos de Laclos e de Point de lendemain (1777) de autoria atribuída a
Vivant Denon. As duas histórias são trazidas na narrativa para fazerem parte da reflexão do
autor sobre o erotismo e a duração dos acontecimentos durante o enredo de que eles fazem
parte. Elas aparecem nos trechos a seguir:

Intitulado Point de lendemain, o conto foi publicado pela


primeira vez em 1777; o nome do autor foi substituído (já que estamos no
mundo dos segredos) por seis maiúsculas enigmáticas, M.D.C.O.D.R.,
em que se pode ler “M. Denon, Cavalheiro Ordinário do Rei”. Depois,
com uma tiragem minúscula, e de modo totalmente anônimo, foi
republicado em 1779, antes de reaparecer no ano seguinte sob o nome de
outro escritor. Novas edições surgiram em 1802 e em 1812, ainda sem o
verdadeiro nome do autor; finalmente, depois de um esquecimento que
durou meio século, reapareceu em 1866. A partir daí, foi atribuído a
Vivant Denon e, no decorrer de nosso século, ganhou fama sempre
crescente. Está hoje em dia entre as obras literárias que parecem melhor
representar a arte e o espírito do século XVIII. (KUNDERA, p.10)31

30
Na versão original:
Quand j’ai évoque la niut de madame de T., j’ai rappelé l’équation bien connue d’un des premiers chapitres du
manuel de mathématique existentielle : le degrée de la vitesse est directement propostionel à l’intensité de
l’oubli. De cette équation on peut déduire divers corollaires, par example celui-ci : notre époque s’addone au
démon de la vitesse et c’est pour cette raison qu’elle s’oublie si facilement elle-même. Or je préfère inverser
cette affirmation et dire : notre époque est obsédée par le désir d’oubli et c’est afin de combler ce désir qu’elle
s’adonne au démon de la vitesse ; elle accélère le pas parce qu’elle veut nous faire comprendre qu’elle ne
souhaite plus qu’on se souvienne d’elle ; qu’elle se sent lasse d’elle-même ; écoeurée d’elle-même ; qu’elle veut
souffler la petite flamme tremblante de la mémoire. (p.134-135)
31
Na versão original:
Intitulée Point de lendemain, la nouvelle fut publiée pour la première fois en 1777 ; le nom de l’auteur était
remplacé (puisque nous sommes dans le monde du secret) par sept majuscules énigmatiques, M. D. G. O. D. R.,
où l’on peut lire, si l’on veut : <<M. Denon, Gentilhomme Ordinaire du Roi.>> Puis, avec un tirage minuscule,
et tout à fait anonymement, elle fut republiée en 1779, avant de reparaître l’année suivant sous le nom d’autre
écrivain. De nouvelles éditions virent le jour en 1802 et en 1812, toujours sans le vrai nom d’auteur ; enfin, aprés
un oubli qui dura um demi-siècle, elle reparut en 1866. À partir de là elle fut attribuée à Vivant Denon et, au
cours de notre siècle, gagna une gloire toujours croissante. Elle compte aujourd’hui parmi les ouvrages littéraires
qui semblent répresenter le mieux l’art et l’esprit du XVIII° siècle. (p.14-15)
44

Ao inserir no meio de uma narrativa toda a trajetória pela qual o livro passou,
desde o seu lançamento até a sua atualidade, mostrando as suas transformações no que
dizem respeito à autoria e também aos momentos de maior ou menor popularidade do
livro, ou seja, da sua recepção pelos leitores, o autor cria uma memória das transformações
do livro, uma memória da literatura.
Sobre As ligações perigosas:

O século XVIII, com sua arte, fez com que os prazeres saíssem
da bruma das interdições morais; fez nascer a atitude que chamamos de
libertina e que emana dos quadros de Fragonard, de Watteau, das páginas
de Sade, de Crébillon filho e de Duclos. É por isso que o meu jovem
amigo Vincent adora esse século e, se pudesse, usaria como distintivo na
lapela de seu casaco o perfil do marquês de Sade. Compartilho de sua
admiração mas acrescento (sem porém ser ouvido) que a verdadeira
grandeza dessa arte não reside numa propaganda qualquer do hedonismo,
mas em sua análise. É essa a razão pela qual considero As ligações
perigosas de Chordelos de Laclos um dos maiores romances de todos os
tempos. (KUNDERA, p.12)32

Podemos observar que o romance de Laclos, além de construir um intertexto,


aparece na narrativa por meio da sua localização dentro de um grupo específico, o de livros
pertencentes à tradição hedonista do século XVIII, composta pelas obras de Fragonard,
Watteu, Sade, Crèbillon e Duclos. Essa perspectiva de um sistema é característica da
memória da literatura, que percebe a literatura por meio da criação de categorias próprias e
dotada de uma memória de si.
Tendo em vista as menções à memória aqui analisadas durante a leitura de A
lentidão, podemos estabelecer que a imagem com a qual essa memória será relacionada
com maior frequência é a imagem de duração. Logo, no que tange a segunda parte desse
estudo, realizaremos uma análise textual com o intuito de poder demonstrar o quanto essa
imagem de duração está intimamente ligada com a construção e a organização da narrativa
a qual pertence.

32
Na versão original:
Le XVIII° siècle, dans son art, a fait sortir les plaisirs de labrume des interdits moraux; il a fait naître l’attitude
qu’on appelle libertine et qui émane des tableaux de Fragonard, de Watteau, des pages de Sade, de Crèbillon fils
ou de Duclos. C’est pour cela que mon jeune ami Vincent adore ce siècle et, s’il le pouvait, il porterait comme
un insigne sur le revers de sa veste le profil du marquis de Sade. Je partage son admiration mais j’ajoute (sans
être vraiment entendu) que la vraie grandeur de cet art ne consiste pas dans uns quelconque propagande de
l’hédonisme mais dans son analyse. C’est la raison pour laquelle je tiens Les Liaisons dangereuses de Choderlos
de Laclos pous l’un des plus grands romans de tout les temps. (p.16)
45

2.2.2 A identidade

Naquele momento compreendi o único sentido que


a amizade pode ter hoje. A amizade é indisponível
ao homem para o bom funcionamento de sua
memória. Lembrar-se do passado, carregá-lo
sempre consigo, é talvez a condição necessária
para conservar, como se diz, a integridade do seu
eu. Para que o eu não se encolha, para que guarde
seu volume, é preciso regar as lembranças como
flores num vaso e essa rega exige um contato
regular com as testemunhas do passado, quer dizer
com os amigos. Eles são nosso espelho; nossa
memória; não exigimos nada deles, a não ser que
de vez em quando lustrem esse espelho para que
possamos nos olhar nele.
(Milan Kundera)

Dando sequência à análise das narrativas do ciclo francês, em A identidade,


romance que traz em seu cerne a descoberta de nuances até então desconhecidas ou não
focalizadas do casal Jean-Marc e Chantal, a memória será trabalhada por meio do viés da
alteridade. Tudo isso tem início a partir do desapontamento de Chantal com a atenção não
recebida por ela de homens aleatórios durante uma caminhada na orla, realizada em um
fim de semana na Normandia. Com isso, Jean-Marc passa a notar características da esposa
que lhe eram despercebidas e passa a agir de modo estranho, o que faz com que ela, por
sua vez, também o veja com outras nuances.
Na narrativa, são apresentadas as memórias individuais dos dois personagens
principais, sejam eles enquanto casal ou enquanto indivíduos antes de se relacionarem. A
primeira menção surge enquanto Chantal dorme e sonha com o seu passado.

Subiu para o quarto, tentou penosamente adormecer e despertou


no meio da noite depois de um longo sonho. Nele apareciam
exclusivamente pessoas de seu passado: a mãe (morta havia muito tempo)
e sobretudo o ex-marido (fazia anos que não o via e o homem do sonho
não se parecia com ele, como se o diretor do sonho tivesse escolhido o
ator errado para o papel); estava lá com a irmã, dominadora e enérgica, e
a nova esposa (ela jamais a vira; no entanto, no sonho, não duvidava de
sua identidade); no fim, ele lhe fazia vagas propostas eróticas, e sua nova
esposa beijou Chantal fortemente na boca, tentando introduzir a língua
entre seus lábios. Línguas se lambendo sempre lhe repugnavam. Na
verdade, foi esse beijo que a despertou.
O mal estar suscitado pelo sonho era tão grande que ela se
esforçou para decifrar a razão. O que a perturbou tanto, pensou, foi a
supressão do tempo presente efetuada pelo sonho. Pois ela se agarra
apaixonadamente ao seu presente, que não trocaria nem pelo passado nem
pelo futuro, por nada no mundo. É por isso que ela não gosta dos sonhos:
46

eles impõem uma igualdade inaceitável das diferentes épocas de uma


mesma vida, uma contemporaneidade niveladora de tudo aquilo que o
sujeito jamais viveu; desconsideram o presente, negando-lhe sua posição
privilegiada. (KUNDERA, p.9) 33

Uma das primeiras relações que podemos realizar no que tange a memória é
justamente com as semelhanças entre a sua representação e os sonhos. O sonho é o
território de imagens potentes que surgem e se instalam de modo muito impreciso, uma vez
que não é possível o seu controle – o mesmo pode ser observado nas lembranças. Mais
sintomático ainda se torna o fato do narrador se utilizar do passado no sonho, da sua
imagem: o empreendimento imaginativo que o caracteriza possui semelhança e pode ser
visto como outra face do mesmo objeto, pois tanto a memória como a imaginação se
iniciam no mesmo local - a associação de ideias. Ricoeur tratará a respeito disso ao afirmar
que ambas têm a mesma origem e são “duas afecções ligadas por contiguidade” (2007,
p.25), sendo impossível uma evocação que não seja mútua: convocar uma é, ao mesmo
tempo, convocar a outra. Isso aparece bastante explícito no excerto acima quando Chantal
vê no sonho o seu ex-marido com outra aparência e vê também a esposa dele, que nunca
conhecera, mas que a imaginara tal como a imagem representada no sonho.
Outra imagem de memória aparecerá no episódio onde Jean-Marc irá ao hospital
realizar uma visita a um antigo amigo do tempo do ginásio, que se encontra com a saúde
extremamente debilitada. Logo no início dessa visita a F. (amigo de nome não mencionado
– detalhe que possui um papel na narrativa), o marido de Chantal enfrentará um choque em
relação à aparência do colega: como ambos não se viam desde a época em que estudaram
juntos, um embate surge entre as imagens tanto do passado quanto do presente.

A vista do amigo de outros tempos foi desoladora: guardara na


memória a imagem dele no tempo do ginásio, um menino frágil, sempre

33
Na versão original:
Elle est montée à sa chambre, s’est endormie péniblement et s’est réveillée au milieu de la nuit après un long
rêve. Il était peuplé exclusivement de gens de son passé : sa mère (morte depuis longtemps) et surtout son ancien
mari (elle ne l’a pas vu depuis des années et il n’était pas ressemblant, comme si le metteur en scène du rêve
s’était trompé dans le casting); il était là avec sa soeur, dominatrice et énergique, et sa nouvelle épouse (elle ne
l’a jamais vue ; pourtant, dans le rêve, elle ne doutait pas de son identité) ; à la fin il lui faisat de vagues
propositions érotiques, et sa nouvelle femme a embrassé Chantal fortement sur la bouche en essayant de lui
glisser sa langue entre les lèvres. Les langues se léchant l’une l’autre lui ont toujours fait ressentir du dégoût. En
fait, c’est ce baiser qui l’a rèveillée.
Le malaise suscité par le rêve était si démesuré qu’elle s’est efforcée d’en déchiffrer la raison. Ce qui l’a troublée
tellement, pense-t-elle, c’est la suppression du temps présent opérée par le rêve. Car elle tient passionnément à
son présent que, pour rien au monde, elle n’échangerait ni avec le passer ni avec l’avenir. C’est pour cela qu’elle
n’aime pas les rêves :ils imposent une inacceptable égalité des diférentes époques d’une même vie, une
contemporanéité nivelante de tout ce que l’homme a jamais vecú; ils déconsidèrent le présent en lui déniant sa
position privilégiée. (p.13-14)
47

muito bem vestido, dotado de um refinamento natural diante do qual


Jean-Marc se sentia um rinoceronte. Os traços delicados, afeminados, que
em outros tempos o levavam a parecer mais novo, agora o tornavam mais
velho: seu rosto parecia grotescamente pequeno, franzido, enrugado,
como a cabeça mumificada de uma princesa egípcia morta havia quatro
mil anos; Jean-Marc olhava para seus brações: um deles estava
imobilizado, com uma agulha enfiada na veia, o outro fazia gestos largos
para reforçar as palavras. Sempre, quando o via gesticular, tinha a
impressão de que em relação a seu corpo pequeno, os braços de F. eram
menores, minúsculos mesmo, braços de marionete. (KUNDERA, p.10) 34

Outras tensões serão observadas pelo narrador durante a visita e dizem respeito às
tentativas de rememoração realizadas por F. para tentar trazer de volta a ligação entre ele e
o amigo no passado. Porém, ao invés de se basearem no conflito de imagens, elas terão por
característica principal o esquecimento completo de Jean-Marc das situações que lhe são
narradas. Entra em questão, nesse caso, o papel das afecções nas lembranças que, apesar de
possuírem o mesmo ambiente de manifestação, não são as mesmas.

F. terminava de expor suas desgraças quando após um momento


de silêncio, seu rosto de princesinha mumificada se iluminou: “Lembra
das nossas conversas no ginásio?”.
“Mais ou menos”, disse Jean-Marc.
“Sempre o ouvi como meu mestre quando falava das garotas.”
Jean-Marc tentou se lembrar, mas não encontrou em sua
memória nenhum vestígio das conversas daquele tempo: “O que eu, um
fedelho de dezesseis anos, poderia falar sobre garotas?”.
“Estou me vendo em pé na sua frente”, continuou F., “falando
alguma coisa sobre meninas. Lembra? Sempre fiquei chocado com o fato
de um corpo bonito ser uma máquina de secreções; eu lhe disse que me
incomodava ver uma menina assoar o nariz. Estou revendo a cena; você
parou, me encarou e disse num tom curiosamente experiente, sincero,
firme: assoar o nariz? para mim, basta vê-las piscar o olho, ver aquele
movimento da pálpebra sobre a córnea, para que sinta uma repugnância
que mal consigo controlar. Lembra?”
“Não” respondeu Jean-Marc.
“Como pôde esquecer? O movimento da pálpebra. Uma ideia
tão estranha!”
Mas Jean-Marc falava a verdade; não se lembrava. Aliás, nem
tentava procurar isso em sua memória. Pensava em outra coisa: eis aí a
verdadeira e única razão de ser da amizade: fornecer ao outro um espelho
em que ele possa contemplar sua imagem de antigamente, a qual, sem o

34
Na versão original:
La vue de l’ancien ami fut accablante : il l’avait gardé dans sa mémoire tel qu’il était au lycée, un garçom fragile,
toujours parfaitement habillé, doté d’une finesse naturelle face à laquelle Jean-Marc se sentait comme un
rhinocéros. Les traits subtils, efféminés, qui jadis faisaient F. plus jeune que son âge, l’avaient rendu maintenant
plus vieux : son visage parut grotesquement petit, recroquevillé, ridé, telle la tête momifiée d’une princesse
égyptienne morte depuis quatre mille ans ; Jean-Marc regardait ses bras : l’un était sous perfusion, immobilisé,
une aiguille glisée dans la veine, l’autre faisait de grands gestes pour appuyer ses paroles. Depuis toujours, quand
il le regardait gesticuler, il avait l’impression que par rapport à son petit corps les bras de F. étaient encore plus
petits, tout à fait minuscules, des bras de marionnette. (p.15-16)
48

eterno blábláblá das lembranças entre colegas, estaria apagada há muito


tempo.
“A pálpebra. Não se lembra mesmo disso?”
“Não”, disse Jean-Marc, e depois, para si mesmo, em silêncio:
será que você não percebe que estou pouco ligando para o espelho que
você me oferece? (KUNDERA, p.13)35

É interessante notar uma característica importante na memória, exposta no excerto


acima, que diz respeito à espontaneidade na manifestação das lembranças, pois se para F.
elas vinham de modo natural, de maneira similar a um jorro, para Jean-Marc seria
necessário um esforço o qual ele não tinha a intenção de despender de modo algum; pelo
contrário, ele conscientemente se recusava a procurá-las e meditava sobre o papel da
amizade como meio de perpetuação da memória de uma pessoa e, consequentemente, de
sua identidade. Além do mais, ao inserir as imagens de memória na esfera da amizade, o
narrador aponta para uma manutenção social de memórias, algo que se relaciona também
com o conceito de memória coletiva, desenvolvido por Halbwacks.
Tal característica não é somente observável a partir do passado de Jean-Marc, mas
também de Chantal e suas reflexões ante a morte do seu primeiro filho, aos cinco anos. Ao
contrário de ter outro filho – algo que inclusive lhe recomendam, ela recusa outra criança,
especialmente porque temia o completo apagamento da existência de seu primeiro filho.
Recusava porque ninguém o substituiria, recusava porque lhe negavam a lembrança como
meio de abafar a sua dor da perda; sendo essa inclusive a razão principal do término do seu
primeiro casamento. Obviamente, conforme a narrativa se encaminha chegamos ao

35
Na versão original:
F. terminait l’exposé sur ses malheurs quand, aprés un moment de silence, son viasage de petite princesse
momifiée s’éclaira : <<Tu te rappelles nos conversations au lycée ?
- Pas vraiment, dit Jean-Marc.
- Je t’ai toujours écouté comme mon maître quand tu parlais des jeunes filles. >>
Jean-Marc essaya de se souvenir mais ne trouva dans sa mémoire aucune trace des conversations d’antan:
<<Qu’aurais-je pu dire, morveux de seize ans, sur les jeunes filles ?
- Je me vois debout devant toi, continua F., disant quelque chose sur les filles. Tu te rappelles, ça me choquait
toujours qu’un beau corps soit une machine à sécrétions ; je t’ai dit que je supportais mal de voir une jeune fille
se moucher. Et je te revois ; tu t’es arrête, tu m’as dévisagé et tu m’as dit d’un ton curieusement expeérimenté,
sincère, ferme : se moucher ? moi, il me suffit de voir comment son oeil clignote, de voir ce mouvement de la
paupière sur la cornée, pour que je ressente un dégoût que je peux à peine surmonter. Tu te rappelles?
- Non, répondit Jean-Marc.
- Comment as-tu pu oublier ? Le mouvement de la paupière. Un idée tellement étrange!>>
Mais Jean-Marc disait vrai ; il ne se souvenait pas. D’ailleurs, il n’essayait même pas de cherceher dans sa
mémoire. Il pensait à autre chose : voilà la vraie et seule raison d’être de l’amitié: procurer un miroir dans lequel
l’autre peut contempler son image d’autrefois qui, sans l’éternel bla-bla de souvenirs entre copains, se serait
effacée depuis longtemps.
<<La paupière. Tu ne te rappelles vraiment pas?
- Non >>, dit Jean-Marc, et puis, pour lui-même, en silence : tu ne veux donc pas comprendre que je m’en fous
du miroir que tu m’offres? (p.19-20)
49

entendimento de que outras coisas também foram responsáveis por atribuir uma carga de
peso, mas nenhuma delas fora tão essencial e cara quanto ao modo como seu ex-marido
reagira após a perda do filho.

Seu filho tinha cinco anos quando ela o enterrou. Mais tarde, na
época das férias, sua cunhada lhe disse: “Você está muito triste. Precisa
ter outro filho. Só assim vai conseguir esquecer”. A observação da
cunhada apertou seu coração. Criança: existência sem biografia. Sombra
que desaparece rapidamente no seu sucessor. Mas ela não desejava
esquecer o filho. Defendia sua individualidade insubstituível. Contra o
futuro defendia um passado, o passado negligenciado e desprezado do
coitadinho morto. Uma semana depois, seu marido lhe disse: “Não quero
que você caia em depressão. Temos que ter depressa outro filho. Depois
disso, você vai esquecer”. Você vai esquecer: ele nem sequer tentava
arranjar outra fórmula! Foi então que a decisão de deixá-lo nasceu dentro
dela.
[...] Foi ali, naquela grande casa de campo, que sua cunhada e
depois seu marido imploraram que ela tivesse outro filho. E foi ali, num
pequeno quarto, que ela se recusou a fazer amor com ele. Cada uma de
suas investidas eróticas lembrava-lhe a campanha familiar para uma nova
gravidez, e a ideia de fazer amor com ele se tornou grotesca. Tinha a
impressão de que todos os membros da tribo, avós, pais, sobrinhos,
sobrinhas, primas, os escutavam atrás da porta, examinavam secretamente
os lençóis, procuravam neles de manhã sinais de cansaço. Todos se
arrogavam o direito de olhar para a sua barriga. Até os sobrinhos menores
foram recrutados como mercenários nessa guerra. (p.26-27)36

A reflexão de que uma criança é uma existência sem biografia, realizada por
Chantal, vem a ser uma imagem forte de memória da literatura, pois carrega o significado
da biografia como um gênero memorialístico por excelência, caracterizado pela exploração
e pelo delineamento de uma identidade. Biografia: o ato de narrar a vida de alguém. Mas
como narrar alguém que sequer tivera a chance de uma identidade? Negar-lhe o filho, era
isso que a impunham; e com isso também tentavam lhe amputar uma parte importantíssima

36
Na versão original:
Son fils avait cinq ans quand elle l’enterra. Plus tard, lors des vacances, sa belle-soeur lui dit : <<Tu es trop
triste. Il faut que tu aies un autre enfant. Il n’y a que comme cela que tu oublieuras. >> La remarque de sa belle-
soeur llui serra le coeur. Enfant : existence sans biographie. Ombre qui rapidement s’efface dans son successeur.
Mais elle ne désirait pas oublier son enfant. Elle défendait son individualité irremplaçable. Contre l’avenir elle
défendait un passé, le passé négligé et méprisé du pauvre petit mort. Une semaine après, son mari lui dit : <<Je
ne veux pas que tu succombes à la dépression. Il faut que nous ayons vite un autre enfant. Ensuite, tu
oublierais.>> Tu oublieras : il ne cherchait même pas à trouver une autre formule ! C’est alors que la décision de
le quitter naquit en elle. [...]
C’est là, dans cette grande villa, que sa belle-soeur puis son mari l’exhortèrent à avoir un autre enfant. Et c’est là,
dans uns petite chambre à coucher, qu’elle refusa de faire l’amour avec lui. Chacune de ses invites érotiques lui
rappelait la campagne familiale pour une nouvelle grossesse, et l’idée de faire l’amour avec lui devint grotesque.
Elle avait l’impression que tous les membres de la tribu, grands-mères, papas, neveux, nièces, cousines, les
écoutaient derrière la porte, scrutaient secrètement les draps de leur lit, examinaient leur fatiue matinale. Tous
s‘appropriaient un droit de regard sur son ventre. Même les petits neveux étaient recrutés comme mercenaires
dans cette guerre. (p.44-46)
50

de seu passado que era a maternidade. Por mais que a morte tenha sido uma experiência
traumática, nada seria capaz de eliminar essa parte da vida de Chantal. O seu ato firme de
negação era duplo, pois eram duas identidades que se recusavam ao abafamento. A
memória simboliza, nesse momento da narrativa, a resistência. O esforço de perpetuação
de uma ou mais existências.
Outro momento em que a memória da literatura pode ser encontrada na narrativa
ocorre quando o casal, ao comentar uma campanha publicitária sobre a morte realizada
pela empresa na qual Chantal trabalha, começa a falar sobre as características de cada um e
comenta sobre as diferentes faces sociais que ambos precisam manter em sociedade: em
casa, a brincalhona; no trabalho, a séria. Eles brindam a permanência do amor frente à
mudança das faces. Em uma retomada do assunto da campanha, Jean-Marc confessa o seu
fascínio perante o tema da morte por meio dos poemas que a tematizam e recita um poema
de Baudelaire:

Eles brindam, bebem, depois Jean-Marc diz: “Estou quase com inveja da
sua campanha publicitária da morte. Não sei por quê, mas desde criança
sou fascinado pelos poemas sobre a morte. Aprendi de cor uma porção
deles. Posso recitar, quer? Você pode utilizá-los. Por exemplo, estes
versos de Baudelaire, com certeza você conhece:
“Ó Morte, velho capitão, está na hora! levantemos âncora!
“Este país nos entedia, ó Morte! Embarquemos!”
“Conheço, conheço”, interrompe-o Chantal. “É muito bonito mas não
para nós.” (p.25)37

Nesse excerto, a memória aparece por meio de ato de recitar, derivado da prática
social de memorização ambientada e reforçada em muitos casos na escolarização. Esse
pensamento adquire mais força quando os versos de Baudelaire são proclamados, pois
sugere nesse intertexto uma tradição dos poemas sobre a morte, além de trazer em si
indícios de uma memória cultural. Jean-Marc decorou os versos, ou seja, aproximou a si os
signos e os memorizou por afinidade e afeição; porque decorar é inscrever no coração,
dotando de um sentimento algo que a princípio não seria capaz de suscitá-lo.

37
Na versão original :
Ils trinquent, ils boivent, puis Jean-Marc dit : << D’ailleurs, je t’envie presque de faire de la publicité pour la
mort. Sans que je sache pourquoi, depuis mon âge tendre je suis fasciné par les poèmes sur la mort. J’en ai appris
tant et tant par coeur. Je peux en réciter, veux-tu ? Tu pourras les utiliser. Par example ces vers de Baudelaire, tu
les connais forcément :
Ô Mort, vieux capitaine, il est temps! levons l’ancre!
Ce pays noun ennuie, ô Mort ! Appareillons!
- Je connais, je connais, l’interrompt Chantal. C’est beau mais pas pour nous. (p.42)
51

À medida que a narrativa avança, Chantal novamente passa a refletir sobre a perda
do filho e constata que a morte dele lhe deu a vida a dois com Jean-Marc: é justamente
nesse momento em que ela percebe esse paradoxo irresistível entre morte e vida, que uma
onda de felicidade a atinge e o passado é ressignificado. A existência breve se perpetua por
meio da liberdade e da autonomia adquiridas por Chantal, há uma inversão de polaridades:
o negativo que se positiviza, a memória traumática que se cura.

[...] ela sentia uma insuportável saudade de Jean-Marc.


Saudades? Como podia sentir saudade se ele estava na frente
dela? Como se pode sofrer com a ausência de alguém que está presente?
(Jean-Marc saberia responder: pode-se sofrer de saudade na presença do
amado se se entrevê um futuro e, que o amado não está mais presente; se
a morte do amado já está então, invisivelmente, presente.)
Durante esses minutos de estranha saudade à beira-mar, ela se
lembrou de repente de seu filho morto e uma onda de felicidade a
inundou. Logo depois, ficaria assustada com esse sentimento.
[...] A lembrança do filho morto a enchia de felicidade e ela podia
apenas se perguntar o que isso significava. A resposta era clara: isso
significava que sua presença ao lado de Jean-Marc era absoluta e que
podia ser absoluta graças à ausência de seu filho. Estava feliz que seu
filho tivesse morrido.
[...] Na mesma noite, pouco antes de adormecer (Jean-Marc já
dormia) mais uma vez se lembrou do filho morto e essa lembrança foi de
novo acompanhada por aquela escandalosa onda de felicidade. (p.32-
33)38

Essa substituição que ocorrera de modo natural, pela via do amor romântico que
nutria pelo então marido, será responsável pelo caráter de mudança das lembranças de
Chantal e lhe dará mais coragem para enfrentar os empecilhos que lhe surgem mais adiante
na narrativa. Jean-Marc se torna sua família e ela manifesta cada vez mais o desejo de se
afastar do seu passado e das suas memórias. Tal compreensão possui sentido, uma vez que
seu filho era a única pendência que a mantinha presa à antiga vida, ao seu antigo eu; isso se
confirma na sua visita ao túmulo: ao iniciar uma conversa mental (hábito que se tornou

38
Na versão original:
[...] elle éprouvait une insoutenable nostalgie de Jean-Marc.
Nostalgie? Comment pouvait-elle éprouver de la nostalgie puisqu’il était en face d’elle ? Comment peut-on
souffrir de l’absense de celui qui est présent ? (Jean-Marc saurait répondre: on peut souffrir de nostalgie en
présence de l’aimé si on entrevoit un avenir où l’aimén’est plus ; si la mort de l’aimé, invisiblement, est déjà
présente.)
Pendant ces minutes d’étrange nostalgie au bord de la mer, elle se souvint soudain de son enfant mort et une
vague de bonheur l’inonda. Bientôt, elle serait effrayée par ce sentiment. [...]
Le souvenir de son fils mort la remplissait de bonheur et elle pouvait seulement se demander ce que cela
signifiait. La réponse était claire: cela signifiait que sa présence aux côtés de Jean-Marc était absolue et qu’elle
pouvait être absolue grâce à l’absence de son fils. Elle était heureuse que son fils fût mort.
[...] Le même soir, juste avant de s’endormir (Jean-Marc dormait déjà), encore une fois elle se souvint de son
enfant mort et ce souvenir fut de nouveau accompagné de cette scandaleuse vague de bonheur. (p.55-57)
52

rotineiro), ela passa a se justificar pela sua alegria com a morte, afirmando que compreende
a morte como um presente de liberdade, liberdade para que ela continue detestando o
mundo sem sentir culpa.
F. morre e Jean-Marc, ao pensar nele e na sua visita, consegue se lembrar de
imagens da sua infância e adolescência, confirmando o seu pensamento de que as amizades
servem como conservatórios de memórias de si e do outro, reforçando o caráter coletivo
das lembranças tanto em relação ao seu armazenamento, quanto em relação a sua
manifestação por meio de uma indução promovida pelo olhar do outro: “Ele não se
lembrava mais. Fora um choque destinado ao esquecimento. E, de fato, ele o teria
esquecido para sempre se F. não o tivesse lembrado” (p.48)39. Vale lembrar que, apesar
do enfoque ser atribuído aos seus personagens, há uma reflexão essencial que perpassa
toda a narrativa: a alteridade. Seja pelo olhar da amizade, seja pelo olhar do amor
romântico, é o outro que se constrói e nos constrói ao longo das páginas do romance.
A metáfora do espelho usada pelo narrador – trecho que se encontra na epígrafe –
para realizar esse pensamento no que tange a amizade, explora muito o caráter de
construção de narrativas pautadas pela memória e pelo olhar do outro, pois outras
memórias de Jean-Marc surgem a partir da visita e a figura do amigo que antes lhe causava
certa repugnância, agora lhe causa simpatia pelas imagens proporcionadas por meio do
encontro que tiveram.
A narrativa avança e Chantal novamente se vê presa a seu passado na figura de
sua ex-cunhada que ressurge em seu apartamento, com os filhos, reclamando sobre o seu
afastamento e esquecimento do passado. Essa atitude traz à nossa protagonista novamente
toda a repulsa que sentia pela figura daquela mulher, da qual não conseguia se livrar
devido às pressões sociais e à gentileza.

A cunhada voltou para a sala. “Vá para lá” disse ela a Corinne,
que correu para se juntar novamente às outras crianças no quarto ao lado.
Depois se dirigiu a Jean-Marc: “Não culpo Chantal de ter deixado meu
irmão. Talvez até devesse tê-lo deixado antes. Mas a culpo de ter se
esquecido de nós”. E virando-se para Chantal: “Afinal de conta, Chantal,
representamos uma grande parte de sua vida! Você não pode nos negar,
nos apagar, você não pode mudar seu passado! Seu passado é o que você
é. Você não pode contestar que foi feliz conosco. Vim dizer a você e a
seu novo companheiro que vocês são bem-vindos a minha casa!”. (p.82)40

39
Na versão original:
Il ne s’en souvenait pas. Ç’avait été un choc destine à l’oubli. Et, en effet, il l’aurait à jamais oublié si F. Ne le
lui avait pas rappelé. (p.84)
40
Na versão original:
53

A tal proximidade entre as duas nunca existiu, porém após esse encontro as
relações entre as duas adquirem uma distância abismal. O desprezo desponta a partir da
raiva que Chantal sente ao constatar-se ainda como presa a seu passado; e a situação se
torna pior, pois ela se vê presa nas mãos de sua antiga cunhada. As lembranças surgem de
um modo tão insuportável que a protagonista reage de forma enérgica expulsando
literalmente todos de sua casa. Nem Jean-Marc escapa disso: ela o manda dormir na sala,
negando-lhe o direito da sua presença, como se ele saísse do status de representação da
liberdade para o status de representação da prisão do passado no presente. É a imagem que
retorna de maneira extremamente negativa, a memória que é negada.
Podemos perceber ambos como renunciantes de partes de si mesmos, algo que
confere a essas memórias uma potência enorme de modificação do presente, visualizadas
ao longo da narrativa. Após esse embate entre marido e mulher, Chantal resolve ir até
Londres junto de seus colegas de empresa, e Jean-Marc, consumido pelo terror do
abandono e pelos ciúmes, vai atrás dela com a finalidade de tentar consertar os maus
entendidos entre eles. Um fato interessante da narrativa é o pano de fundo dessas aparições
das memórias de ambos ser caracterizado pelo contexto de humor criado pelo narrador:
Jean-Marc, compadecido pela tristeza da esposa ao se notar desinteressante aos olhos de
outros, passa a lhe escrever cartas como se fosse um amante desconhecido; porém Chantal
descobre esse ato do marido justamente no momento em que encontra com a ex-cunhada e
reage com raiva, distanciando-se dele. Uma atitude realizada com a intenção de
aproximação se torna o motivo principal do distanciamento de ambos.
Tudo isso culmina na imagem que ambos começam a ter de si: a de uma
identidade que se torna irreconhecível, numa confusão de sentidos a qual a faz se
aproximar da fronteira entre o real e o sonho, associação comumente explorada. O narrador
explora esse sentimento de forma bastante elucidativa a partir do momento em que trata da
busca de Jean-Marc por Chantal no trem: ela sente que está sendo procurada por alguém,
mas não consegue se lembrar exatamente por quem; enquanto ele procura por ela nos
vagões e não a consegue achar. Isso ocorre porque ambos já não se reconhecem direito
após todo esse surgimento de memórias e afeições que foram suscitadas em decorrência

La belle-soeur revint dans le salon. <<Vas-y>>, dit-elle à Corinne qui courut dans la pièce d’à côté rejoindre les
autres enfants. Puis elle s’adressa à Jean-Marc: <<Je ne reproche pas à Chantal d’avoir quitté mon frère. Peut-
être aurait-elle dû le quitter plus tôt. Mais je lui reproche de nous avoir oubliés.>> Et, se tournant vers Chantal:
<<Quand même, Chantal, nous répresentons une grande partie de ta vie! Te ne peux pas nous nier, nous
gommer, tu ne peux pas changer ton passé! Ton passé est ce qu’il est. Tu ne peux pas contester que tu as été
heureuse avec nous. Je suis venue dire à ton nouveau compagnon que vou êtes tous les deux les bienvenus chez
moi !>> (p.147)
54

das ações da narrativa. A cena descrita parece surreal: como alguém cuja presença era
absoluta em suas vidas se torna desconhecido, irreconhecível? Como se deu tal
esquecimento?

Nesse momento de angústia extrema, aparece diante de seus


olhos a imagem de um homem que luta contra a multidão para chegar até
ela. Alguém lhe torce o braço atrás das costas. Ela não vê seu rosto,
apenas seu corpo curvado. Meu Deus, gostaria de se lembrar um pouco
mais exatamente dele, recordar seus traços, mas não consegue, sabe
apenas que é o homem que a ama e isso é a única coisa que lhe importa
agora. Ela o viu nessa cidade, ele não pode estar longe. Quer encontrá-lo
o mais depressa possível. Mas como? (p,110)41

A imersão nas imagens do passado e as mudanças provocadas pelos


ressurgimentos delas no presente, uma característica intrínseca da memória, terão
importância fundamental na criação desse contexto de desconexão com o outro, vivenciada
por ambos. Assim, haverá uma mudança: a busca não se dá mais no âmbito do passado e
sim no âmbito do presente – por isso o ritmo desnorteante do fim da narrativa: sendo o
presente um tempo mutável, as possibilidades se ampliam consideravelmente, gerando
desnorteamento, sensação de angústia.
Por possuírem em si um caráter de relato, algo que perpassa a narrativa por
completo, as memórias possibilitam a criação de uma narrativa de si, algo que, por sua vez,
resulta na criação de uma identidade. Logo, tais memórias, manifestadas por meio de
relatos, ressignificam as suas próprias narrativas e criam outras imagens. Conforme Leonor
Arfuch:

[...] falar do relato, então, dessa perspectiva, não remete apenas


a uma disposição de acontecimentos - históricos ou ficcionais – numa
ordem sequencial, a uma exercitação mimética daquilo que constituiria
primariamente o registro da ação humana, com suas lógicas, personagens,
tensões e alternativas, mas à forma por excelência de estruturação da
vida e, consequentemente, da identidade, à hipótese de que existe, entre a
atividade de contar uma história e o caráter temporal da experiência
humana, uma correlação que não é puramente acidental, mas que
apresenta uma forma de necessidade “transcultural”. (p.112)42

41
Na versão original:
A ce moment d’extrême angoisse, l’image lui revient d’un homme qui se bat contre la foule pour parvenir à elle.
Quelqu’un lui tord le bras derriére le dos. Elle ne voit pas son visage, seulement son corps courbé. Mon Dieu,
elle voudrait se souvenir un peu plus exactement de lui, évoquer ses traits, mais elle n’y arrive pas, elle sait
seulement que c’est l’homme qui l’aime et c’est la seule chose qui lui importe maintenant. Elle l’a vu dans cette
ville, il ne peut être loin. Elle veut le retrouver le plus vite possible. Mais comment? (p.198)
42
In: O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. 2002.
55

Ao dispor as memórias de ambos na maneira de relatos, o narrador explora esse


caráter narrativo delas e consegue criar o efeito no texto de cisão/falha na identidade, que
tanto Jean-Marc quanto Chantal vivenciam em seu relacionamento. Além do mais, por sua
dimensão frágil e extremamente confusa, os relatos servirão mais a fim de confundir os
dois personagens do que precisamente de explicar e de facilitar as interações que eles
desenvolvem entre si. Isso cria uma situação particular que se torna tão caótica, com toques
de surrealidade, a ponto de poder ser questionada sobre seu caráter real ou imaginário pelo
próprio narrador ao fim da narrativa, quando Chantal acorda de um pesadelo:

E eu me pergunto: quem sonhou? Quem sonhou essa história?


Quem a imaginou? Ela? Ele? Os dois? Um pelo outro? E a partir de que
momento a vida real deles se transformou nessa pérfida fantasia? Quando
o trem afundou na Mancha? Antes? Na manhã em que ela lhe anunciou a
sua ida para Londres? Antes ainda? Naquele dia em que, no escritório do
grafólogo, encontrou o garçom do bar da cidade da Normandia? Ou antes
ainda? Quando Jean-Marc lhe mandou a primeira carta? Mas será que
realmente mandou as cartas? Ou será que as escreveu somente na sua
imaginação? Qual é o momento preciso em que o real se transformou em
irreal, a realidade em sonho? Onde era a fronteira? Onde é a fronteira?
(p.114)43

Tendo em vista as menções à memória aqui analisadas durante a leitura de A


identidade, podemos estabelecer que a imagem com a qual essa memória será relacionada
com maior frequência é a imagem de espelhamento, largamente explorada a partir do
contraste entre ambas as identidades e entre as afeições dos personagens. Logo, no que
tange a segunda parte desse estudo, realizaremos uma análise textual com o intuito de
poder demonstrar o quanto essa imagem de espelhamento está intimamente ligada com a
construção e a organização da narrativa a qual pertence.

2.2.3 A ignorância

Em grego, retorno se diz nóstos. Álgos


significa sofrimento. A nostalgia é, portanto, o
sofrimento causado pelo desejo irrealizado de
retornar. Para essa noção fundamental, a maioria
43
Na versão original:
Et je me demande: qui a rêvé? Qui a rêvé cette histoire? Qui l’a imaginée? Elle? Lui? Tous les deux? Chacun
pour l’autre? Et à partir de quel moment leur vie réelle s’est-elle transformée en cette fantaisie perfide? Quand le
train s’est enfoncé sous la Manche? Plus tôt? Le matin où ele lui a annoncé son départ pour Londres? Encore
plus tôt? Ce jour où, dans le cabinet du graphologue, elle a rencontré le garçon de café de la ville normande? Ou
encore plus tôt? Quand Jean-Marc lui a envoyé la première lettre? Mais les a-t-il envoyées vraiment, ces lettres?
Ou les a-t-il écrites seulement dans son imagination? Quel est le moment précis où le rèel s’est transformé en
irèel, la realité en rêverie? Où était la frontière? Où est la frontière? (p.206)
56

dos europeus pode utilizar uma palavra de origem


grega (nostalgie, nostalgia), e também outras
palavras com raízes em sua língua nacional:
añoranza, dizem os espanhóis; saudade, dizem os
portugueses. Em cada língua, essas palavras
possuem uma conotação semântica diferente.
Muitas vezes significam apenas a tristeza
provocada pela impossibilidade da volta ao país.
Nostalgia do país. Nostalgia da terra natal. [...]
Em espanhol, añoranza vem do verbo añorar (ter
nostalgia), que vem do catalão enyorar, derivado,
este, da palavra latina ignorare (ignorar). À luz
dessa etimologia, a nostalgia surge como o
sofrimento da ignorância. Você está longe e não
sei o que se passa com você. Meu país está longe,
eu não sei o que está acontecendo lá.
(Milan Kundera)

Em A ignorância, narrativa que aborda a volta de dois exilados tchecos a seu país
de origem, após 20 anos de ausência, observamos a tensão entre passado e presente
advinda do retorno, que tanto afeta os personagens de Irena e Josef. A primeira menção à
memória aparece indiretamente a partir da imagem coletiva de um sonho comum a todos
os exilados e que diz respeito ao retorno ao país natal:

Já nas primeiras semanas de exílio, Irena tinha sonhos


estranhos: está num avião que muda de rota e aterrissa num aeroporto
desconhecido; homens de uniforme, armados, a esperam no fim do
corredor; suando frio, ela reconhece a policia tcheca. Outra vez, ela está
passeando em uma pequena cidade francesa quando vê um estranho
grupo de mulheres em que cada uma delas, com uma caneca de cerveja
na mão, corre em sua direção, chama-a por seu nome em tcheco e ri com
uma cordialidade pérfida, e Irena se dá conta de que está em Praga, ela
grita, acorda.
Martin, seu marido, tinha os mesmos sonhos. Todas as manhãs
contavam um ao outro o horror do retorno ao país natal. Depois,
conversando com uma amiga polonesa, também ela exilada, Irena
compreendeu que todos os exilados tinham esses sonhos, todos, sem
exceção; a princípio ficou emocionada com essa fraternidade noturna
entre pessoas que não se conheciam, mais tarde ficou um pouco irritada:
como é que a experiência tão íntima de um sonho poderia ser vivida
coletivamente?, o que seria então sua alma única? Mas perguntas sem
respostas de nada adiantam. Uma coisa era certa: milhares de exilados, na
mesma noite, com inúmeras variantes, sonhavam o mesmo sonho. O
sonho do exílio: um dos fenômenos mais estranhos da segunda metade do
século XX. (KUNDERA, p.14-15)44

44
Na versão original:
Dès les premières semaines de l’émigration, Irena faisait des rêves étranges: elle est dans un avion qui change de
direction et etterrit sur un aéroport inconnu; des hommes en uniforme, armés, l’attendent au pied de la passerelle;
une sueur froide sur le fornt, elle reconnaît la police tchèque. Une autre fois, elle se balade dans une petite ville
française quand elle voit un curieux groupe des femmes qui, chacune une chope de bière à la main, courent vers
57

Dizer que todos os exilados possuíam o mesmo sonho, apenas com variantes
distintas, e que todos eles construiriam a imagem do sonho do exílio é mencionar, ainda
que indiretamente, a formação de uma memória coletiva, uma vez que ela concentra em si
diferentes vozes de uma mesma história, a dos exilados do século XX. Halbwacks mesmo
observava sobre como as memórias individuais de um mesmo grupo seriam importantes na
construção de uma memória social. Irena coloca a si, seu marido, sua amiga e seus colegas
em exílio como pertencentes a uma fraternidade que se conecta a partir dos sonhos e dos
fatos manifestados durante esse momento – fatos esses que surgem sem controle e trazem
resquícios de um passado o qual eles tentam deixar esquecido, mas que aparecem com
tamanha intensidade.
A memória da literatura se apresenta na narrativa a partir da imagem da nostalgia
que envolve o retorno à Praga, tanto de Irena quanto de Josef, e as complicações
envolvidas nesse trajeto: para isso, o autor traz a Odisseia e a narrativa da viagem do
retorno de Ulisses a Ítaca. A simples menção a uma das grandes obras da literatura
universal, já faz com que a referência se configure como um intertexto e faça parte da
memória da literatura – esse sistema auto referenciativo, afirmação que ganha forças
quando relacionamos a obra de Homero ao cânone literário, seu lugar de pertencimento e
de tradição. Além do mais, ao trazer o épico à narrativa de Irena e Josef, o narrador coloca
em ação a memória cultural, aquela memória que, segundo Aleida Assmann (2011), supera
o limite dos tempos e permanece na cultura, através de textos normativos e também da
manutenção de instituições. Ao evocar a condição de Ulisses, a narrativa oferece um
contraponto que mostra o caráter nostálgico da volta, um retorno agridoce às origens:
resultante do conflito entre as imagens identitárias da vida antes, durante e pós-exílio. Não
há como ignorar uma parcela significativa do passado.

“Seu grande retorno”.


Repetidas essas palavras adquiriram tal força que, em seu
íntimo, Irena as viu escritas em maiúsculas: Grande Retorno. Ela não

elle, l’apostrophent en tchèque, rient avec une cordialité perfide, et, épouvantée, Irena se rend compte qu’elle est
à Prague, elle cire, elle se réveille.
Martin, son mari, faisait les mêmes rêves. Tous les matins ils se racontaient l’horreur de leur retour au pays natal.
Puis, au cours d’une conversation avec une amie polonaise, elle aussi émigrée, Irena comprit que tous, sans
exception; elle fut d’abord émue de cette fraternité nocturne de gens qui ne se connaissaient pas, plus tard un peu
agacée: comment l’expérience si initime d’un rêve peut-elle être vécue collectivement? qu’est donc son âme
unique? Mais à quoi bon des questions sans réponses. Une chose était sûre: des milliers d’émigrés, pendant la
même nuit, en d’innombrables variantes, rêvaient tous le même rêve. Le rêve d’émigration: l’un des phénomènes
les plus étranges de la seconde moitié du XX° siècle. (p.20-21)
58

protestou mais: foi invadida por imagens que emergiram de repente, de


velhas leituras, de filmes, de sua própria memória e talvez até daquela de
seus ancestrais: o filho perdido que reencontra a velha mãe; o homem que
volta para a sua amada, da qual outrora fora afastado pelo destino feroz; a
casa natal que cada um traz dentro de si; o caminho redescoberto onde
ficaram gravados os passos perdidos da infância; Ulisses que revê sua
ilha depois de anos de peregrinação; o retorno, o retorno, a grande mágica
do retorno. (KUNDERA, p.8)45

O sentimento é agridoce porque o retorno traz de novo as tensões existentes entre


os personagens principais e suas famílias, seus amigos – algo que fora suprimido graças ao
exílio, mas que, devido à volta, ressurge com nova força na narrativa. Não há grande
mágica alguma nisso: a melancolia dá o tom à história e faz com que ambos os
personagens constatem que é possível sentir-se exilado de si mesmo, no sentido de
estranhar o próprio passado e as imagens que ele evoca. Como consequência, a tensão
entre presente e passado atinge uma imensidão nunca antes imaginada: os conflitos
existentes se multiplicam, resultando em um sentimento de solidão em meio aos seus.
Irena vive isso com a volta de sua mãe à sua vida, pois todos os desajustes, todas
as inquietações provenientes da relação complicada entre as duas adquirem traços maiores
– a distância entre as duas aumenta com a proximidade; se antes Irena conseguia conviver
com a personalidade da mãe, no momento em que retorna, passa a considerar insuportável
estar presente no mesmo ambiente. A mãe lhe rouba as atenções do novo marido, a
inferioriza, faz com que se sinta novamente infantil e besta, algo que não lhe ocorria
enquanto vivia o exílio. Tal relação complicada entre as duas já era possível de ser
observada ainda quando estava em Paris: quando a mãe de Irena a visitou, fez questão de
mencionar a terra natal e ignorou saber sobre como ela vivia, o que fazia, desconsiderando
todas as dificuldades passadas e todo o processo de amadurecimento vivido pela filha.

A pergunta era justa: por que a mãe, ao reencontrar a filha


depois de tantos anos, não se interessa pelo que ela mostra, pelo que ela
diz? Por que Michelangelo, que ela viu com um grupo de turistas tchecos,
a encanta mais do que Rodin? E por quê, durante esses cinco dias, não lhe

45
Na versão original:
<<Ton grand retour.>>
Elles étainet assises face à face au-dessua de deux tasses à café vides depuis longtemps. Irena vit des larmes
d’émotion dans les yeuxs de Sylvie qui se pencha vers elle et lui serra la main: <<Ce sera ton grand retour. >> Et
encore une fois: <<Ton grand retour.>>
Répétés, les mots acquirent une telle force que, dans son for intérieur, Irena les vit écrits avec des majuscules:
Grand Retour. Elle ne se rebiffa plus: elle fut envoûtée par des images qui soudain émergèrent de vieilles
lectures, de films, de sa propre mémoire et de celle peut-être de ses ancêtres: le fils perdu qui retrouve sa vieille
mère; l’homme qui revient ver sa bien-aimée à laquelle le sort féroce l’a jadis arraché; la maison natale que
chacun porte ensoi; le sentier redécouvert où sont restés gravés le pas perdu de l’enfance; Ulysse qui revoit son
ile après des années d’errance; le retour, le retour, la grande magie du retour. (p.10-11)
59

faz nenhuma pergunta? Nenhuma pergunta sobre a vida, e tampouco


sobre a França, sobre sua culinária, sua literatura, seus queijos e seus
vinhos, sua política, seus teatros, seus filmes, seus automóveis, seus
pianistas, seus violoncelistas, seus jogadores de futebol?
Em vez disso, não para de falar o que se passa em Praga, sobre
o meio-irmão de Irena (que ela teve com o segundo marido, morto há
pouco tempo), sobre pessoas das quais Irena se lembra, e outras de cujos
nomes ela nunca ouviu falar. Tentou duas ou três vezes fazer um
comentário sobre sua vida na França mas essas palavras não atravessaram
a barreira impenetrável do discurso da mãe. (KUNDERA, p,17-18)46

Tal conflito se dá não somente pela perspectiva de Irena a respeito do desinteresse


da mãe pela sua vida e pelas conquistas realizadas fora do país, mas também pela
perspectiva da mãe que possui em mente a imagem da Irena que saiu de Praga, há anos
atrás e que precisava ser mantida. A resistência da memória da filha antes do exílio é uma
tentativa de afirmação de pertencimento e ligação entre as duas, que foge ao controle da
mãe. Assim como foi observado na análise de A identidade, o outro nos oferece um
espelho de nossa vida; logo, a atitude da mãe fora nada além do que um esforço de trazer a
antiga imagem de Irena ao presente e isso se deu por meio da indução de imagens e
referências de sua vida, de seu passado e de todo o seu contexto anterior ao exílio.
Um elemento importante é vinculado a esse aparecimento da imagem da memória:
a afeição, porque a nostalgia traz consigo reflexões sobre a ligação entre esse aspecto
emocional junto da imagem do passado. Para isso, o narrador evoca novamente o
deslocamento de Ulisses a fim de refletir sobre o caráter afetivo das lembranças e da
evocação incessante das imagens para que elas permaneçam:

Durante os vinte anos de sua ausência, os habitantes de Ítaca


guardavam muitas lembranças de Ulisses mas não sentiam por ele
nenhuma nostalgia. Enquanto Ulisses sofria de nostalgia e não se
lembrava de quase nada.
Podemos compreender essa curiosa contradição se nos dermos
conta de que a memória, para que possa funcionar bem, tem necessidade
de um treino incessante: se as lembranças não forem evocadas,
continuamente, em conversas com amigos, elas desaparecem. Os

46
Na versão original:
La question était juste: pourquoi la mère, quand elle retrouve sa fille après des années, ne s’intéresse-t-elle pas à
ce que celle-ci lui montre et lui dit? Pourquoi Michel-Ange, qu’elle a vu avec un groupe de touristes tchèques, la
captive-t-il plus que Rodin? Et porquoi, tout au long de ces cinq jours, ne lui pose-t-elle aucune question?
Aucune question sur sa vie, et aucune non plus sur la France, sur sa cuisine, sa littérature, ses fromages, ses vins,
ses automobiles, ses pianistes, ses violoncellistes, ses footballeurs?
Au lieu de cela, elle n’arrête pas de parler de ce qui se passe à Prague, du demi-frère d’Irena (qu’elle a eu de son
seconde mari, mort depuis peu), d’autres personnes dont Irena se souvient et d’autres dont elle n’a jamais
entendu le nom. Elle a essayé deux ou trois fois de placer une remarque sur sa vie en France mais ces mots n’ont
pas franchi la barrière sans faille du discours de la mère. (p.24)
60

exilados, reunidos em colônias de compatriotas, contam entre si até a


exaustão as mesmas histórias, que, desse modo, se tornam inesquecíveis.
Mas aqueles que não frequentam seus compatriotas, como Irena ou
Ulisses, são inevitavelmente atingidos pela amnésia. Quanto mais forte é
a sua nostalgia, mais ela se esvazia de lembranças. Quanto mais Ulisses
se entristecia, mais ele esquecia. Pois a nostalgia não intensifica a
atividade da memória, não estimula as lembranças, ela basta a si mesma,
à sua própria emoção, tão totalmente absorvida por seu próprio
sofrimento. (KUNDERA, p.25-26)47

Não é somente a mãe de Irena quem resiste à amnésia da filha, mas também todas
as antigas amigas podem ser vistas como resistentes a isso. Irena percebe o desinteresse de
suas antigas amigas por sua vida no exílio e isso lhe gera indignação porque ela se sente
amputada, deslocada de um ambiente que até então considerava familiar. Pois, no
momento da volta, ela “[...] atribui a esse encontro grande importância: quer afinal avaliar
se pode viver aqui, sentir-se em casa, ter amigos.” (2015, p.27). O fato de estar com suas
antigas amigas é desafiante, pois é mister “que elas a aceitem tal qual ela voltava. Saiu dali
uma jovem ingênua, e voltava madura, com uma vida atrás de si, uma vida difícil da qual
se orgulhava” (2015, p.28). Entretanto, ela se vê em meio a um grupo de mulheres que
falam sem parar e com muita vitalidade sobre coisas as quais ela sequer tem noção e que a
fazem se sentir só em meio a todas, não conseguindo responder às perguntas feitas sobre
episódios antigos e sequer falar sobre a vida que levou durante o exílio. Seu passado é
amputado e seu presente também. Sua mudez aumenta de tamanho enquanto passa por essa
situação com as amigas e ela se sente como alguém invisível, não pertencente a nada.

As outras mulheres a sufocam quando com perguntas: “Irena,


você se lembra quando...”. E: “Sabe o que aconteceu quando...?”. “Mas
não, com certeza você deve se lembrar dele!” “Aquele sujeito de orelhas
grandes, você sempre caçoou dele!” “Mas você não pode ter se esquecido
dele! Ele só fala de você!”
Até então não se interessavam por aquilo que ela tentava lhes
contar. O que significa essa ofensa súbita? O que querem saber aquelas
mulheres que nada querem ouvir? Compreende rapidamente que as

47
Na versão original:
Pendant les vingt ans de son absence, les Ithaquois gardaient beaucoup de souvenirs d’Ulysse, mais ne
ressentaient pour lui aucune nostalgie. Tandis qu’Ulysse souffrait de nostalgie et ne se souvenait de presque rien.
On peut comprendre cette curieuse contradiction si on se rend compte que la mémoire, pour qu’elle puisse bien
fonctionner, a besoin d’un entraînement incessant: si les souvenirs ne sont pas évoqués, encore et encore, dans
les conversations entre amis, ils s’en vont. Les émigrés régroupés dans des colonies de compatriotes se racontent
jusqu’à la nausée les mêmes histoires qui, ainsi, deviennent inoubliables. Mais ceus qui ne fréquentement pas
leurs compatriotes, comme Irena ou Ulysse, sont inévitablement frappés d’amnésie. Plus leur nostalgie est forte,
plus elle se vide de souvenir. Plus Ulysse languissait, plus il oubliait. Car la nostalgie n’intensifie pas de
souvenirs, elle se suffit à elle-même, à sa propre émotion, tout absorbée qu’elle est par sa seulle souffrance.
(p.36)
61

perguntas dela são especiais: perguntas para saber se ela conhece aquilo
que elas conhecem, se se lembra daquilo que se lembram. Isso lhe dá uma
estranha impressão que não a deixará mais:
Primeiro, pelo total desinteresse por aquilo que ela vivera no
estrangeiro, elas a amputaram de uns vinte anos de sua vida. Agora, com
o interrogatório, tentam remendar seu antigo passado com sua vida
presente. Como se lhe amputassem o antebraço e fixassem a mão
diretamente no cotovelo, como se lhe amputassem a barriga da perna e
emendassem os pés nos joelhos. (2015, p.32)48

Situação semelhante acontece com Josef em sua volta a Praga: a relação que já
era, no passado, complicada com seu irmão e com a cunhada, intensifica-se a ponto de
fazer com que ele não consiga permanecer na casa do irmão (e também dele) durante o
retorno, e fique por lá somente durante o jantar. Ele constata também, ao ir visitar o túmulo
de seus pais – uma vez que não pôde devido ao exílio estar presente no momento das
respectivas mortes deles, o nome de diversos parentes cujas mortes lhe foram ocultadas e
passa a se perceber perante a família como alguém dispensável, um não alguém. As suas
memórias lhe foram negadas enquanto membro de uma família, sequer houve lembranças
sobre a figura dele para contar os acontecimentos que se desenrolaram durante o exílio: seu
casamento, a morte dolorosa de sua esposa, o emprego. Tudo isso lhe fora negado também.

A insuficiência de nostalgia é para ele a prova do pouco valor


de sua vida passada. Corrijo portanto meu diagnóstico: “O doente sofre
de deformação masoquista de sua memória". Na verdade, não se lembra a
não ser das situações que o tornam insatisfeito consigo mesmo. Não gosta
da sua infância.
[...] Sabia muito bem que sua memória o detestava que ela o
caluniava sem tréguas; e no entanto se esforçara para não acreditar nela e
para ser mais indulgente com sua própria vida. Esforço em vão: não
sentia nenhum prazer em olhar para trás, coisa que fazia o menos
possível.
[...] Será que no estrangeiro sua memória perdera a influência
nociva? Sim; pois Josef não tinha nem motivos nem oportunidade de
pensar em lembranças ligadas ao país onde ele não morava mais; esta é a
lei da memória masoquista: à medida que os painéis de sua vida se

48
Na versão original:
Les autres femmes l’assaillent de questions: <<Irena, tu te rappelles quand...>> Et: <<Tu sais ce qui s’est passé
alors avec...?>> <<Mais nom, quand même, tu dois te souvenir de lui !>> <<Ce mec avec de grandes oreilles, te
t’es toujours moquée de lui !>><<Mais tu ne peux pas l’avoir oublié! Il ne parle que de toi !>>
Jusqu’alors elles ne s’intéressaient pas à ce qu’elle tentait de leur raconter. Que signifie cette offensive soudaine?
Que veulent apprendre celles qui n’ont rien voulu entendre? Elle comprend vite que leurs questions sont
spéciales: des questions pour contrôler si elle connaît ce qu’elles connaissent, si elle se souvient de ce dont elles
se souviennent. Cela lui fait une étrange impression qui ne la quittera plus.
D’abord, par leur désintéret total envers ce qu’elle a vécu à l’étranger, elle l’ont amputée d’une vingtaine d’anées
de vie. Maintenant, par cet interrogatoire, elles essaient de recoudre son passé ancien et sa vie présente. Comme
si elles l’amputaient de son avant-bras et fixaient la mais directement au coude ; comme si elles l’amputaient des
mollets et joignaient ses pieds aus genoux. (p.44-45)
62

dissolvem no esquecimento, o homem se desfaz do que não gosta e se


sente mais leve, mais livre. (KUNDERA, p.50-52)49

Aqui o narrador reforça a necessidade de uma repetição constante das memórias


para que o passado se perpetue: a ignorância surge quando não há mais estímulos, seja
advindo de outras pessoas e seja advindo de lugares, para que isso ocorra. O resgate de
lembranças realizado de maneira incessante contribui para a formação de uma memória de
si, uma memória de pertencimento; o ato de recuperar os acontecimentos é necessário a
fim de que o presente traga de volta as imagens do passado. Essa reflexão sobre o papel
essencial da repetição ainda aparece mais adiante no texto:

A memória, ela também não pode ser compreendida sem uma


abordagem matemática. O dado fundamental é a relação numérica entre o
tempo da vida vivida e o tempo de vida armazenado na memória. Nunca
se tentou calcular essa relação e aliás não existe nenhum meio técnico de
fazer isso; no entanto, sem grande risco de engano, posso supor que a
memória não guarda senão um milionésimo ou um bilionésimo, em suma,
uma parcela ínfima da vida vivida. Isso também faz parte da essência do
homem. Se alguém pudesse reter na memória tudo o que viveu, se
pudesse a qualquer momento evocar qualquer fragmento do passado que
quisesse, não teria nada a ver com os humanos: nem seus amores, nem
suas amizades, nem suas raivas, nem sua faculdade de perdoar ou de se
vingar se pareceriam com os nossos.
[...] a crítica da memória humana como tal. Do que essa pobre
coitada é capaz? Ela só pode reter uma pequena parcela do passado, sem
que ninguém saiba por que justamente aquela e não outra, pois essa
escolha, cada um de nós a faz misteriosamente, sem controle de nossa
vontade e de nossos interesses. (KUNDERA, p.80-81)50

49
Na versão original:
L’insuffisance de nostalgie est pour lui la preuve du peu de valeur de sa vie passée. Je corrige donc mon
diagnostic: <<Le malade souffre de la déformation masochiste de sa mémoire.>> En effet, il ne se souvient que
des situations qui le rendent mécontent de lui-même. Il n’aime pas son enfance.
[...]Il savait trés bien que sa mémoire le détestait, qu’elle ne faisait que le calomnier; il s’était donc efforcé de ne
pas se fier à ce qu’elle lui racontait et d’être plus indulgent envers sa propre vie. Peine perdue: il n’éprouvait
aucun plaisir à regarder en arrière et le faisait le moins souvent possible.
[...]Est-ce qu’à l’étranger sa mémoire a perdu son influence nocive? Oui ; car là, Josef n’avait ni raisons ni
occasions de s’occuper des souvenir liés au pays qu’il n’habitait plus; telle est la loi de la mémoire masochiste: à
mesure que des pans de sa vie s’effondrent dans l’oubli, l’homme se débarrasse de ce qu’il n’aime pas et se sent
plus léger, plus libre. (p.73-75)
50
Na versão original:
La mémoire, elle non plus, n’est pas compréhensible dans une approche mathématique. La donnée fondamentale,
c’est le rapport numérique entre le temps de la vie vécue et le temps de la vie stockée dans la mémoire. On n’a
jamais essayé de calculer ce rapport et il n’existe d’ailleurs aucun moyen technique de le faire; poutant, sans
grand risque de me tromper, je peux supposer que la mémoire ne garde qu’un millionième, un milliardième, bref,
une parcelle tout à fait infime de la vie vécue. Cela aussi fait partie de l’essence de l’homme. Si quelqu’un
pouvait détenir dans sa mémoire tout ce qu’il a vécu, s’il pouvait à n’importe quel moment évoquer n’importe
quel fragment de son passé, il n’aurait rien à voir avec les humains : ni ses amours, ni ses amitiés, ni ses colères,
ni sa faculté de pardonner ou de se venger ne ressembleraient aux nôtres.
[...] la critique de la mémoire humaine en tant que telle. Car que peut-elle vraiment, la pauvre ? Elle n’est
capable de retenir du passé qu’une misérablle petite parcellette sans que personne ne sache pourquois justement
63

Josef ainda consegue falar com um antigo amigo, mas novamente percebe o
quanto a distância diminuiu a afabilidade e o interesse de ambos pela vida e,
consequentemente, a memória um do outro. Contudo, o sentimento de estranhamento
vivido por Josef é maior, uma vez que possuía uma vida que lhe fora apagada no momento
de seu retorno: trata-se de sua mulher, que morrera algum tempo antes de sua visita e era
alguém essencial em sua compreensão de vida. A volta significaria o apagamento de toda a
memória dela em si e, em função disso, o retorno a Praga que deveria trazer somente
alegrias pelo reencontro com a família, traz um pouco de desgosto e de tristeza.
O exílio ao mesmo tempo em que lhe foi doloroso também fora libertador, mas
não no sentido de ter possibilitado a ele a alcunha de ser o agente de sua própria vida e sim
por ter, durante esse tempo, conhecido a sua esposa e ter construído, ao longo dos anos
fora do seu local de origem, uma relação de amor e afeto com ela e com a Dinamarca. É só
por meio da morte de sua mulher, e tendo em mente os pedidos feitos por ela de retornar a
Praga, que ele decide realizar o retorno. Porém, com o desexílio, ele se depara com o fato
de que a sua volta às origens, ao passado, implicaria no afastamento do presente e das
lembranças de sua esposa e de si mesmo. Por isso, ele se descobre no retorno possuidor de
uma vontade descomunal de sair o mais rápido possível de Praga e retornar a Dinamarca,
para não se esquecer nem da imagem dela e nem da imagem de quem ele foi e é, em
relação a ela.
Segundo Mirian L. Volpe (2005), no seu livro Geografias do exílio, o desexílio
gera uma consequência na vida daqueles que retornam: traz consigo a dificuldade em se
restabelecer dentro do local de origem, uma diferença imposta pelo sentimento de não
pertencimento emocional e afetivo: “Muitos daqueles que voltaram chegam a sentir que
são estrangeiros em sua própria terra. O desexílio trouxe um novo tipo de exílio que não é
o devido à falta de um céu e uma paisagem, mas devido, principalmente, à falta da própria
gente [...]” (p.121).
Essa distância em relação ao espaço, motivada pelo desligamento ou, sendo
menos categórica, pela relativização em torno dos afetos e as suas ligações com as origens,
aparece na narrativa através da fala do narrador:

celle-ci et non pas une autre, ce choix, chez chacun de nous, se faisant mystérieusement, hoors de notre volonté
et de nos intérêts. (p.115-116)
64

Se um exilado, depois de vinte anos no estrangeiro, voltasse a


seu país natal ainda com cem anos de vida pela frente, certamente não
sentiria a emoção de um Grande Retorno, é provável que para ele não se
trataria absolutamente de um retorno, mas apenas um dos muitos desvios
no longo percurso de sua existência.
Pois a própria noção de pátria, no sentido nobre e sentimental
dessa palavra, está ligada à brevidade relativa de nossa vida, que nos dá
muito pouco tempo para que nos afeiçoemos a outro país, a outros países,
a outras línguas. (KUNDERA, p.79)51

O exílio é problematizado, pois é analisado pelo narrador através da ótica da


construção do sentido do termo pátria: como se a nostalgia em relação às origens estivesse
imbricada nas noções de tempo e espaço. Sendo a vida humana limitada, os movimentos
mais representam a possibilidade de riscos negativos do que positivos, de modo que a
construção de uma narrativa identitária em um curto período de tempo tenda a ser mais
composta por paradas do que por locomoções. Podemos inferir o narrador como alguém
que compreende o fixar-se em um local como uma prática existencial do ser, devido a sua
brevidade, e que entende a ótica do exílio de forma mais aberta, como um movimento
contrário à fixidez, uma vontade de prolongamento da experiência humana e do contato
com o outro. O exílio só é mostrado como negativo, porque esbarra nos limites da vida
humana; caso contrário, ele seria visto igual a um somatório de encontros de culturas.
A menção à cultura nos leva a um conceito que surge junto do termo exílio e é
visto como primaz nos estudos de imaginário e memória cultural: o deslocamento. Pensar
na condição de Irena e Josef é pensar na vivência que nasce de um movimento,
principalmente tendo em vista o mundo transnacional vivenciado por todos os sujeitos do
contemporâneo. Um novo perfil se origina no cronotopo atual: uma subjetividade
fragmentada, fluída e fugidia, em vias de desaparecimento, que só adquire unidade por
meio do discurso, da criação da identidade e isso se passa pela manutenção de memórias.
A experiência humana começa a ser vista não mais como fixa, dotada de uma
homogeneidade constitutiva, uma origem única – aliás, a origem passa a ser vista não
como determinante da condição do sujeito; e sim como mutável, construída através da
heterogeneidade que é observada e estruturada no contraste entre diferentes culturas e
costumes.

51
Na versão original :
Si un émigré, après vingt ans vécus à l’étranger, revenait au pays natal avec encore cent ans de vie devant lui, il
n’éprouverait guère l’émotion d’un Grand Retour, probablement que pour lui cela ne serait pas du tout un retour,
seulement l’un des nombreux détours sur le long parcours de son existence.
Car la notion même de patrie, dans le sens noble et sentimental de ce mot, est liée à la relative brièveté de notre
vie qui nous procure trop peu de temps pour que nous nous attachions à un autre pays, à d’autres pays, à d’autres
langues. (p.114)
65

Estudar hoje identidades significa colocarmo-nos na perspectiva


de que não existem culturas ou tradições contínuas; por todas as partes, os
indivíduos e os grupos improvisam realizações locais a partir de passados
recolecionados, recorrendo a meios, a símbolos e a linguagens
estrangeiros. Poder-se-ia dizer que vivemos uma existência entre
fragmentos móveis. A “diferença cultural” não se apresenta mais como
uma estável e exótica alteridade, as relações eu/outro se revelam, mais do
que nunca, como relações de poder, de retórica, não de essência.
(CLIFFORD apud GONZÁLEZ, p.111)

González ao abordar James Clifford, em seu texto Deslocamento/desplaçamento,


afirma que a perspectiva do deslocamento privilegia as narrativas originadas em um
contexto de movimento, de margem e de fronteira, conferindo a elas um caráter identitário
controlado e transgressor ao mesmo tempo, enriquecendo assim as duas discussões.
Ironicamente, Irena e Josef se esbarram em determinado momento da narrativa
em um aeroporto e, não podendo se falar, trocam telefones. Ele não se lembra dela, que em
contrapartida crê que sua presença não fora esquecida por ele, desde os tempos do colégio;
no entanto, eles chegam a se encontrar e dormir juntos em um hotel. Na despedida, ele
deixa em cima da mesa um bilhete que resume toda a semelhança entre os dois: ele a
chama de irmã, por partilhar das mesmas sensações e impressões geradas pelo retorno.
Podemos observar que, a todo o momento, a narrativa trabalha também com a fragilidade
das identidades e a construção de memórias compartilhadas, assim como na narrativa
anterior. Porém, ainda que se enxerguem como irmãos, devido à proximidade das suas
lembranças com o contexto vivenciado por eles, há ainda algo que os separa – suas
memórias individuais. Surge então um conflito que se baseia entre memória coletiva e
memória individual.

Imagino a emoção de dois seres que se reencontram depois de


muitos anos. Outrora se frequentavam e portanto pensavam que estavam
ligados pela mesma experiência, pelas mesmas lembranças. As mesmas
lembranças? É aqui que começa o mal-entendido: eles não têm as
mesmas recordações; ambos retêm do passado duas ou três pequenas
situações, mas cada um retém as suas; suas lembranças não se parecem;
não se encontram; e, mesmo quantitativamente, não são comparáveis: um
se lembra do outro mais do que este se lembra dele; primeiro porque a
capacidade da memória de cada um difere de um individuo para outro (o
que ainda seria uma explicação aceitável para cada um deles), e também
(e é mais penoso admitir isto) porque eles não têm, um para o outro a
mesma importância. Quando Irena viu Josef no aeroporto, essa se
lembrou de cada detalhe daquela aventura distante; Josef não se lembrava
66

de nada. Desde o primeiro instante, seu encontro teve como fundamento


uma desigualdade injusta e revoltante. (KUNDERA, p.82)52

Ambos se encontram em uma tensão de narrativas, igualmente potentes e


verídicas, de si mesmos e se tornam descentralizados, deslocados em suas próprias
histórias, devido à perda de referências. Essa é a condição da identidade que, segundo Hall,
“surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas
de uma falta de inteireza que é ‘preenchida’ a partir de nosso exterior, pelas formas através
das quais nós imaginamos ser vistos por outros” (2006, p.39). Nesse caso, a identidade
adquire nuances mais significativas, pois ela também está estritamente ligada aos locais, o
que implica na afirmação de que perder os locais de referência é também perder boa parte
da assimilação identitária. Irena e Josef passam a vivenciar então o desexílio, essa perda de
relação com o familiar, gerada a partir da criação de uma distância em relação ao espaço,
motivada pelo desligamento ou, sendo menos categórica, pela relativização em torno dos
afetos e as suas ligações com as origens.
A memória da literatura também aparece nessa narrativa por meio da menção a
um gênero compositivo de memória, no caso o diário. Josef, ao recolher na sua antiga casa
as recordações que lhe pertenciam antes do exílio, encontra em uma caixa o seu diário da
adolescência e se depara com um eu totalmente estranho e alheio a si mesmo. Vê na leitura
do diário um garoto imaturo e extremamente egoísta que usa das outras garotas para
benefício próprio. Em um ponto determinado da narrativa, enojado com o que visualiza de
si, ele se desfaz do objeto e pensa a respeito das mudanças que lhe ocorreram até então: a
escolha da universidade, o exílio voluntário, o casamento com sua falecida esposa e o
desentendimento com a família; recordações que lhe eram próprias e atribuíam uma
significação a sua vida, as quais ele estava sentindo escapar das mãos a partir do momento
em que pôs os pés em casa novamente. O que a narrativa sugere é que ambos nunca estarão
em casa, não importa o lugar em que estejam e que essas memórias sempre entrarão em
conflito, tornando a questão das identidades de ambos cada vez mais complexas.

52
Na versão original :
J’imagine l’émotion de deux êtres qui se revoient après des années. Jadis, ils se sont fréquentés et pensent donc
être liés par la même expérience, par les mêmes souvenirs. Les mêmes souvenir? C’est là que le malentendu
commence: ils n’ont pas les mêmes souvenirs; tous deux gardent de leurs rencontres deux ou trois petites
situations, mais chacun a les siennes; leurs souvenirs ne se ressemblent pas; ne se recoupent pas; et même
quantitativement, ils ne sont pas comparables: l’un se souvient de l’autre plus que celui-ci ne se souvient de lui;
d’abord parce que la capacité de mémoire diffère d’un individu à l’autre (ce qui serait encore une explication
acceptable pour chacun d’eux) mais aussi (et cela est plus pénible à admettre) parce qu’ils n’ont pas, l’un pour
l’autre, la même importance. Quand Irena vit Josef à l’aéroport, elle se rappelait chaque détail de leur aventure
passé; Josef ne se rappelait rien. Dès la première seconde, leur recontre reposait sur une inégalité injuste et
révoltante. (p.118-119)
67

Consideremos o velho diário de Josef como uma peça de


arquivo que conserva as anotações do autêntico testemunho de um
passado; elas falam de fatos que seu autor não tem razão para negar mas
que sua memória tampouco pode confirmar. De tudo o que o diário conta,
apenas um detalhe despertou uma lembrança nítida e, certamente, precisa:
ele se viu numa trilha na floresta, contando a uma colegial a mentira de
sua mudança para Praga; essa pequena cena, mais exatamente a sombra
dessa cena (pois ele só se lembra do sentido geral da afirmação e do fato
de ter mentido) é a única parcela de vida que, sonolenta, permanece
armazenada na sua memória. (KUNDERA, p.81)53

Tendo em vista as menções à memória aqui analisadas durante a leitura de A


ignorância, podemos estabelecer que a imagem com a qual essa memória aparecerá, por
muitas vezes, relacionada será a de repetição. No sentido de que a todo tempo as memórias
surgem no romance a fim de promover a observação de certos nuances dos personagens e
de lembra-los de seu passado. Logo, no que tange a segunda parte desse estudo,
realizaremos uma análise textual com o intuito de poder demonstrar o quanto essa imagem
de repetição está intimamente ligada com a construção e a organização da narrativa a qual
pertence.
Por fim, nas três narrativas analisadas, conseguimos observar o trabalho de
memória empreendido por Milan Kundera. Um trabalho que consegue trazer em si diversas
relações com os conceitos de memória individual, memória coletiva, memória cultural,
desexílio e identidade, além de tentar abordar as associações possíveis entre memória e
literatura. Podemos também perceber que a escolha e o tato, com que Milan Kundera
parece tratar as significações de suas palavras-tema e suas variações, possibilitam a
tematização da memória e a diversidade dos empregos com os quais ele a utiliza nas suas
obras, reflexos dos seus questionamentos recorrentes entre lembrar e esquecer.
Ademais, essas foram as imagens de memória que encontramos dentro das
narrativas de Kundera. Evidentemente, os trechos expostos aqui foram selecionados, o que
significa dizer que os livros oferecem mais imagens do que as trabalhadas nesses capítulos
e que a seleção foi realizada a partir dos exemplos mais significativos e merecedores de
análise. Outro trabalho a ser realizado posteriormente seria a análise de todas as referências

53
Na versão original:
Considérons le vieux journal de Josef comme une pièce d’archive conservant les notes du témoin authentique
d’un passé; les notes parlent des événements que leur auteur n’a pas de raisons de nier mais que sa mémoire ne
peut confirmer non plus. De tout ce que le journal raconte, un seul détail a allumé un souvenir net et,
certainement, précis: il s’est vu sur un chemin de fôret racontant à une lycéenne le mensonge de son
déménagement à Prague; cette petite scène, plus exactement cette ombre de scène (car il ne se rappelle que le
sens général de son propos et le fait d’avoir menti), est la parcelle de vie qui, ensommeillée, est restée stockée
dans sa mémoire. (p.116-117)
68

realizadas pelo narrador nos romances, um estudo que visaria à complementação dessa
análise e atribuiria importância à fortuna crítica do autor, que é recente no Brasil.
69

3. RELAÇÃO ENTRE A ESTRUTURA NARRATIVA E AS IMAGENS DA


MEMÓRIA

Ao longo dos anos, a relação desenvolvida entre a narrativa e o estudo literário


mudou drasticamente, passando de um papel periférico a um papel central no que diz
respeito aos currículos acadêmicos. A facilidade gerada pela compreensão de uma história
é um dos principais motivos que corroboram para a extrema difusão da narrativa, por meio
do acesso ao público leitor de massa – algo que se tornou possível graças ao surgimento da
imprensa e também ao intercruzamento de culturas. Além disso, faz sentido dizer que a
adoção da narrativa como a forma genérica por excelência é um processo evolutivo com
origens antigas, pois busca responder a questionamentos da nossa vivência no mundo,
sejam elas provenientes de reflexões sobre a vida interior ou exteriormente.
Entendemos o mundo a partir das explicações que damos às nossas perguntas por
meio do mecanismo de causa e efeito: a narrativa nada representaria senão o caminho, o
percurso, o trajeto construído entre esses dois pontos por meio das palavras; logo, o seu
estudo seria o equivalente ao das construções que conectam os eventos de um
acontecimento na existência humana. Porém, ainda que sua compreensão seja algo
relativamente simples em relação à manifestação de um evento, a sua conceituação não se
dá pelo mesmo caminho, pois podemos distinguir ao menos três noções distintas para a sua
abordagem: 1) enunciado narrativo; 2) sucessão de acontecimentos; 3) acontecimento por
si só (visão antiga com bases na concepção clássica).
Transpondo isso ao campo literário, a análise de tal gênero seria responsável pelo
estudo dos elementos constitutivos de um discurso, que possui em si um emaranhado de
elementos que o sustentam e lhe conferem significado. O que não implica dizer que tanto a
história quanto a narração, categorias que cumprem funções tão importantes quanto o
enunciado, não estejam presentes e não estabeleçam nenhuma relação com a narrativa;
muito pelo contrário, há entre essas categorias uma relação de interdependência capaz de
garantir a unidade do texto.
A história, por exemplo, é muitas vezes vista pela ótica da sucessão de
acontecimentos e surge associada ao termo enredo, “organização que humaniza o tempo
dando-lhe forma” (p.85) – palavras de Frank Kermode, trazidas por Jonathan Culler em
Teoria Literária: uma introdução (1999). Para que o enredo exista, é necessário que haja
uma diferença entre um ponto inicial e um ponto de final de um acontecimento, e tal
diferença seja uma progressão relacionada entre esses dois pontos. Ademais, o leitor
70

também é parte constituinte desse sistema, uma vez que para que um enredo seja bem
sucedido seja essencial o seu entendimento tanto por parte de quem cria (autor) quanto por
parte de quem atribui significado (leitor): nesse caso, partimos da visão de que o ato da
leitura é o principal momento de completude do significado de um texto54 e essa ocorrência
se dá principalmente durante o ato de produção da escrita, correspondente à narração.
Entretanto, uma narrativa não pode ser identificada somente pelo enredo e pela
narração, que diz respeito à história apresentada e pelo momento da sua escrita, mas
também pelo discurso – maneira como esse enredo é representado textualmente. A respeito
deste estudo que pretendemos realizar, importa-nos as considerações sobre o discurso e
seus modos de construção ao longo das narrativas kunderianas do ciclo francês: A lentidão,
A identidade e A ignorância.
Com isso, partiremos tanto das partes constituintes do texto como personagem,
autor/narrador, ponto de vista, ambientação, manipulação temporal e intertextualidade,
quanto das partes que conferem movimento ao discurso como ordem, duração e frequência.
O estudo de tais aspectos é essencial justamente por permitir uma visualização minuciosa
da construção do texto, da organização dos seus elementos constituintes e do ritmo da
narrativa (seu efeito).
Afirmar que Milan Kundera desenvolve suas narrativas francesas a partir de um
modo específico de planejamento da escrita faz todo sentido, porque o escritor não
somente possui em sua bibliografia vários romances, como também ensaios, nos quais se
dedica a falar sobre a sua escrita, os livros que o influenciaram, os modos como percebe o
gênero romance e a tradição romanesca, entre outras coisas. De modo que o próprio
Kundera em si poderia ser utilizado como o teórico da narrativa capaz de orientar esse
terceiro capítulo de nosso estudo.
No entanto, no que diz respeito a esses aspectos citados, resolvemos nos utilizar
das considerações de Gérard Genette, em Discurso da Narrativa, para uma orientação
sobre o papel essencial das partes definidas por ele na organização e no ritmo de uma
narrativa55:

54
Refiro-me aqui implicitamente a Roland Barthes e seus estudos sobre o texto e a participação do leitor em sua
significação e completude.
55
Com isso, não ignoro o fato de que o estudo de Genette tenha como objetivo por excelência a explicação e a
abordagem somente da narrativa proustiana. No entanto, justamente por ter sido um trabalho muito completo e
claro no que tange ao manuseio e a visualização das partes de uma narrativa, optamos por essa perspectiva para a
realização de uma análise textual mais eficiente.
71

Aspectos de ordenação (não em termos de definição de


encadeamentos mas em termos de percepção do sentido desses
encadeamentos, por outras palavras, o estudo da articulação temporal, e
já não lógica, da narrativa) aspectos de duração (o tempo encarado, não
em função do sentido do seu encadeamento mas em função da tentativa
de estabelecimento de um ritmo da narrativa, de uma alternância entre
situações de relato que poderíamos apelidar de tônicas e átonas através
dos meios de discurso que as formulam), aspectos de frequência (relações
entre a narrativa e a diegese, consideração dos meios de escrita que
homologam a história na narrativa ou, pelo contrário, a distendem ou
condensam, a pulverizam, a repetem, a entrecortam ou simplesmente a
transcrevem a partir duma idealidade que funciona como modelo e que
apenas em função desses meios de escrita é perceptível), aspectos de
modo (desenvolvimento e sistematização das questões levantadas pelo
problema do ponto de vista condutor) e de voz (assunção das condições
de enunciação pela instância narrativa) [...]. (GENETTE, p.12-13)

A começar pelos aspectos de ordem56, correspondentes a todo o encadeamento


lógico do discurso da narrativa, visto que significa pensar nos modos de como o tempo será
desenvolvido ao longo do texto, a sua percepção implica também nos contrastes e tensões
entre a bipartição: tempo da história e pseudo-tempo da narrativa. São observadas
anacronias durante esse percurso de disposição dos acontecimentos: outra narrativa é
inserida dentro da narrativa principal de acordo com as intenções do narrador, com a
amplitude pretendida por ele. Dito isso, tais anacronias serão apresentadas sob a forma de
analepses57 ou prolepses58, narrativas inseridas a fim de representar uma situação ocorrida
anteriormente ou posteriormente em relação ao presente do ato de narração.
Tais ordenamentos virão por meio da necessidade de um preenchimento de
lacunas informativas a respeito do acontecimento principal ou também de uma repetição
intencional do narrador para se sublinhar a importância de um aspecto importante para o
evento narrado, no caso das analepses. Sobre as prolepses, elas se apresentarão
principalmente por meio da forma de predestinação, trazendo o futuro da narração ao
presente narrativo, seja cumprindo um papel de um retorno ou de um anúncio. Em suma,
são elementos ordenativos que visam trazer outras significações, cuja disposição lógica é
deslocada do momento em que a narrativa se apresenta.
Em seguida, nos aspectos de duração59 temos a disposição do tempo na narração,
que diz respeito ao caráter de velocidade, ao efeito de ritmo da narrativa. Para isso, é
necessário pensar em como o tempo será representado dentro desse discurso e, mais ainda,

56
Ver em: Discurso da Narrativa, p. 31
57
Ver em: idem, p.38-65.
58
Ver em: idem, p. 65-76.
59
Ver em: idem, p.85.
72

em como ele poderá ser medido, quantificado. Podemos partir da ideia de que o tempo
narrativo se apresenta por meio de um movimento pendular, oscilando entre diferentes
níveis de compreensão (passado, presente e futuro), o que gera por fim uma constante de
velocidade.
A divisão em unidades, então, será o recurso mais prudente para que se consiga
fazer uma análise da duração – com isso, a narrativa pode se ver igualada, por exemplo,
aos andamentos musicais (allegro, adagio, vivace...)60: surgirão, por consequência, os
termos pausa61, elipse62, cena63 e sumário64. Essas unidades aparecem intercaladas no texto
e cumprem uma característica diferente.
Chama-se cena a unidade narrativa que se compromete a escrever com detalhes a
totalidade do acontecimento no texto narrativo, enquanto o sumário apenas resume, sem
entrar em detalhes, a ação sofrida. Há nesse caso, uma oposição entre a duração e o nível
de detalhamento que compõem a unidade. No que diz respeito à pausa, ela se caracteriza
por ser uma unidade que visa à desaceleração do ritmo da narrativa, por meio da descrição
detalhada, interrompendo o andamento da ação. Enquanto a elipse, como o próprio termo
diz, cumpre a função de esconder, intencionalmente ou não, certas partes da ação que se
desenvolve e pode ser dividida entre explícita e implícita, apresentando variações.
O importante a se perceber, a partir dessas duas categorias acima exploradas, é o
fato de que ambas colaboram para que a história não surja de maneira linear e possa ser
abrangida por diversas possibilidades, aproximando diferentes acontecimentos e fazendo
nascer, a partir do modo em que são evocados, ligações que apontam para a causalidade e o
humor na narrativa. Além do mais, por serem recursos básicos e amplamente difundidos,
tanto a ordem quanto a duração aparecem naturalizadas como um “feito da memória, seja
na representação do fluxo de consciência do personagem [...] ou, com grau maior de
formalismo, nos diários ou nas lembranças de um personagem narrador” (LODGE, p.86,
2011).
Os aspectos de frequência65 são os menos estudados na maioria das análises
literárias e correspondem à produção e reprodução dos acontecimentos na narrativa; sendo

60
Essa consideração é pertinente, ainda mais nesse estudo, devido às aproximações do autor Milan Kundera com
a música em seus romances, algo já antes delineado com mais dedicação no primeiro capítulo.
61
Ver em: Discurso da Narrativa, p. 99-106.
62
Ver em: idem, p. 106-109.
63
Ver em: idem, p. 109-112.
64
Ver em: idem, p. 95-99.
65
Ver em: idem, p. 113.
73

assim, estudam-se os acontecimentos singulares66, os acontecimentos repetidos67 e os


acontecimentos iterativos. A frequência também dependerá da ênfase que o narrador
pretende dar a uma ação específica ou ao um conjunto de ações que, por economia
literária, serão escritas apenas uma vez. Com isso, podemos observar esse aspecto sob o
ponto de vista de uma tensão entre a história e a narrativa, baseada na escolha por relatar o
modo de retratação dos acontecimentos narrados e de sua ocorrência.
Ademais, os acontecimentos iterativos68 nos oferecem a compreensão da narrativa
como uma série de iterativa de unidades, que podem inclusive serem encontrados por meio
da restrição temporal e da remissão contidas nas marcas adverbiais. Sendo assim,
aparecerão as determinações, especificações e extensões: categorias capazes de atribuir a
uma série a limitação, a frequência e a duração de um acontecimento narrado. Dois
acontecimentos de tempos totalmente diferentes podem coabitar o mesmo local, tomando
como base a frequência: ao nos remetermos a uma data específica como o Natal, por
exemplo, podemos evocar lembranças de vários natais e retratá-los em apenas uma série,
aliando duas temporalidades distintas.
Há ainda, no que tange a frequência, as categorias de alternância e transição que
correspondem aos momentos em que os acontecimentos singulativos e iterativos se
intercalam e se tangenciam, sendo por vezes facilmente identificáveis e em outras vezes
extremamente sutis. Por último, algo interessante a se dizer acerca de todas essas
características da frequência é o fato de elas estarem fortemente atreladas às reflexões
sobre a memória e sua manifestação e retratação em uma narrativa.
Todas essas três categorias acima citadas e utilizadas por Genette corresponderão
ao modo de mostrar a temporalidade no discurso da narrativa e poderão ser vistas como as
principais distinções entre história e narrativa – discussão antiga na narratologia e algo já
explorado no início deste capítulo. O tempo é o principal ponto de partida para diferenciar
esses dois níveis, pois justamente a sua não coincidência será responsável por separar e
delinear o que se pode chamar de história e o que se pode chamar de discurso em uma
narrativa. Caso contrário, não saberíamos identificar uma analepse ou uma prolepse,
tampouco uma pausa, uma elipse, um sumário ou uma descrição de uma cena na narrativa.
E ainda não conseguiríamos pensar nos acontecimentos e suas simultaneidades, repetições
e singularidades.

66
Ver em: idem, p. 116.
67
Ver em: idem, p.115-153.
68
Ver em: idem, p. 116-117.
74

Além disso, o tempo não é apenas observável na narrativa quanto a sua produção,
mas também a sua recepção, uma vez que uma narrativa possui um destinatário que está
em um tempo distinto e exterior ao enredo apresentado. Outro ponto que merece um
entendimento maior dentro dessa reflexão diz respeito ao esclarecimento de que o tempo
da narrativa e o tempo físico não coincidem: ele é antes produto de uma experimentação,
que surge por meio de uma sequencialidade, do que a representação em páginas da
experiência cronológica real.

Em contraste com o tempo físico e a cronologia, a


sequencialidade é um aspecto temporal primário nos textos narrativos, e
isso se aplica tanto a história quanto ao nível do discurso. Nós estamos,
naturalmente, lendo palavra após palavra na página sequencialmente,
assim como no nível do enredo nos referimos a nós mesmos por meio de
eventos em sucessão. No entanto, assim como estamos construindo
causas e efeitos, possíveis motivações e resultados esperados enquanto
lemos a palavra após a palavra na página, na construção do enredo,
apenas a sequencialidade dá lugar a configurações carregadas, plano
teleológico, ação e reação ou padrões de causa e efeito. A
sequencialidade pode, portanto, ser vista como uma base material, o meio
em que as configurações são superpostas. (FLUDERNIK, p.130, tradução
nossa)69

Em suma, refletir sobre a narrativa e as categorias de ordem, duração e frequência


é também refletir sobre as temporalidades e as tensões provenientes delas. Tensões que são
essenciais para a delimitação das fronteiras existentes entre discurso, história e narração.
Dando prosseguimento às outras categorias citadas por Genette em seu estudo sobre a
narrativa somos levados ao modo70, que corresponde a como os acontecimentos são
retratados, a bem dizer, ao ponto de vista de quem relata. Nesse sentido, as modalidades de
distância71 e perspectiva72 surgem a fim de exemplificar a maneira a qual a narrativa será
apresentada, algo que envolve um critério de seleção e intenção.
Implicitamente na distância entram as discussões, de origem platônica, a respeito
da narrativa pura e da narrativa diegética quanto à presença e a manifestação do narrador
no discurso narrativo: enquanto em uma o narrador poderia ser visto como praticamente
69
No original:
In contrast to physical time and chronology, sequentiality is a prime temporal aspect in narrative texts, and again
this applies to both the story and discourse level. We are of course reading word after word on the page
sequentially just as on the plot level we concern ourselves with events in succession. However, just as we are
constructing causes and effects, possible motivations and expected outcomes while reading word after word on
the page, in the construction of plot mere sequentiality gives way to charged configurations, teleological design,
action and reaction or cause and effect patterns. Sequentiality can therefore be seen as a material basis, the
medium on which configurations are superimposed.
70
Ver em: Discurso da Narrativa, p. 159.
71
Ver em: idem, p. 160-183.
72
Ver em: idem, p. 183-209.
75

nulo (ilusão da mimese73), na outra ele seria visto como o meio pelo qual a narrativa é
contada. Isso nos mostra que a narrativa possui em sua constituição uma interferência a
qual não pode ser ignorada e que difere apenas em graus de intromissão da instância
narrativa. Desse modo, faz mais sentido, ao invés de utilizar a divisão platônica, usar a
divisão entre narrativa de acontecimentos e de fala: a primeira diz respeito à transcrição
das falas com presença mínima do narrador e maior de quantidade de informação
narrativa74, enquanto a segunda se aproxima à imitação, reprodução do mundo em
palavras. Fato importante a se saber é que a narrativa de acontecimentos favorece a
retratação da memória, uma vez que há uma distância maior entre quem relata e o objeto
do relato, além das temporalidades que são postas em ação.
Como consequência dessa reflexão sobre essas duas narrativas, configura-se uma
divisão em três aspectos do discurso75 do personagem: narrativizado (enunciado mais
próximo dos acontecimentos), transposto (narrador incorpora os acontecimentos ao seu
discurso) e relatado (narrador parece ceder à voz ao personagem). No que tange a
perspectiva, outro aspecto modalizante, podemos definir como o ponto de vista adotado
pelo narrador a fim de que a história seja tecida com os fios do discurso. Isso nos leva a
visão do papel do narrador como um organizador, estilista do texto; e ainda gera a
definição de três tipos de narrador76: onisciente, de ponto de vista e objetivo. Ele é
onisciente, pois tem o conhecimento de todos os personagens interna e externamente; de
ponto de vista porque sabe apenas o que o personagem lhe permite ver; e objetivo visto que
se situa apenas do lado de fora da situação que o personagem enfrenta. Logo, novamente,
vemos gradações que saem de uma maior para uma menor exposição em relação aos
personagens.
Há também as chamadas focalizações, que são representações do enfoque
narrativo dado aos personagens pelo narrador e possuem, assim como nos casos acima
citados, divisões e gradações: interna, externa e zero. E, ainda, as alterações cujas
identificações dizem respeito ao regulamento da quantidade de informação que é passada
na narrativa, funcionando como o ajustamento de uma lente: paralipse77 quanto menor a
informação for repassada e paralepse quanto maior. Todos esses aspectos de modo

73
Pois, segundo Genette, ainda que o narrador pareça não participar da história, gramaticalmente podem se
encontrar pistas de sua aparição por meio da linguagem, único meio que “significa sem imitar” (p.162).
74
O contrário disso seria o equivalente as características presentes na diegese: maior presença do narrador e
diminuição da informação narrativa.
75
Ver em: Discurso da Narrativa, p.167-183.
76
Ver em: idem, p. 184-187.
77
Ver em: idem, p. 193-194.
76

contribuem e muito para a construção e a apresentação de um personagem, revelando não


apenas a capacidade que o narrador possui de colocar os acontecimentos, mas também o
seu engenho em criar camadas e camadas de características e lacunas intencionais durante
o percurso de seu texto. Além disso, o ponto de vista é um elemento de extrema
importância a se tomar no início da produção de um texto, por ser o responsável por mexer
com as emoções do leitor, provocando nele reações de aproximação e distanciamento.
O último aspecto enfocado por Genette corresponde à voz78, responsável por
demonstrar materialmente a intromissão ou não do narrador no texto; manifestando-se pela
maneira a qual o narrador se firma no ato de sua narração79. Dentro dessa categoria, as
questões como a diferença entre autor e narrador, e suas fronteiras que na narrativa em
especifico se encontram mais delineadas e evidentes do que em outros gêneros. O tempo, o
nível narrativo e a pessoa são domínios essenciais no modo como se qualifica a
comunicação na narrativa e que se ramificam trazendo novas conceituações. A respeito do
primeiro, ele compreende a localização temporal da narração em relação à narrativa
apresentada e se divide em: anterior, ulterior, simultâneo e intercalado80.
O segundo domínio diz respeito ao conhecimento de que operam na narrativa
diferentes limiares e narrativas subjacentes, interpenetrando-se em alguns momentos e
assim transformando o ato da narração. Ele pode ser divido em narração intradiegética,
extradiegética, metadiegética e metalepse81. E, por fim, no terceiro domínio encontramos a
maneira pela qual o narrador se introduz na narrativa, implícita ou explicitamente, e
aparece por meio das divisões em heterodiegético, homodiegético e autodiegético82. Tais
divisões equivalem à gradação entre não participar da história que narra, participar da
história que narra como um personagem secundário e participar da história como seu
personagem principal. Além disso, trazem em si a questão da intrusão na narrativa como
um movimento intencional do narrador, a fim de suscitar no leitor humores e emoções.
Um último ponto digno de menção, a ser explorado por Genette, trata-se do
conceito de narratário83, que diz respeito à instância receptora a qual narrativa se destina
ou, sendo mais específica, a quem o narrador se dirige ao relatar a sua história. Quer seja
um leitor ou quer seja algum personagem implícito na diegese é necessário que esse

78
Ver em: idem, p.211.
79
Ver em: idem, p.211-260.
80
Ver em: idem, p.214-226.
81
Ver em: idem, p.226-242.
82
Ver em: idem, p.242- 258.
83
Ver em: idem, p.258-259.
77

elemento seja estudado e analisado, pois é uma parte igualmente participativa na


concepção da narrativa.
Realizadas tais reflexões a partir dos trabalhos de Gérard Genette (texto base da
nossa compreensão das categorias de análise textual), David Lodge, Jonathan Culler e
outros citados anteriormente, tendo por objetivo esmiuçar os métodos que serão utilizados
nesse estudo, prosseguiremos para os próximos tópicos os quais analisaremos, de fato, a
maneira pela qual as imagens de memória são desenvolvidas na organização da narrativa; a
bem saber, os efeitos suscitados por elas no que diz respeito à construção do discurso nos
três livros do ciclo francês: A lentidão (1995), A identidade (1997) e A ignorância (2000).

3.1 A memória como duração

Por se tratar de uma narrativa percebida por alguns teóricos como uma crítica
ácida de Kundera à velocidade e aos seus efeitos malignos em relação à existência humana,
provocada pela modernidade84, A lentidão irá trazer em seu cerne a oposição entre os
séculos XVIII/XXI e suas visões acerca do tempo, do erotismo e da vaidade: os
personagens desempenham, em séculos diferentes, papeis distintos em relação ao modo de
vivenciar os acontecimentos que desempenham.
A história é narrada de início por um narrador onisciente que opera com as
informações sobre os personagens ora com distância, ora com aproximação como é o
exemplo da construção do personagem Chechoripsky: ele aparece por vezes por meio da
retratação de seus pensamentos e emoções, sendo inclusive qualificado com muitos
predicativos (focalização interna); e por vezes também com uma distância tamanha a ponto
de sequer ser nomeado, sendo apenas referenciado por meio de ironias do narrador e pelas
ações desempenhadas (focalização externa). Um exemplo dessa última pode ser visto no
seguinte trecho:

Pouco a pouco o hall vai se enchendo, ali estão muitos


entomologistas franceses e também alguns estrangeiros, entre os quais
um tcheco de uns sessenta anos que dizem ser uma personalidade
importante do novo regime, talvez um ministro, ou o presidente da
Academia de Ciências, ou no mínimo um pesquisador que pertence a essa
mesma Academia. Em todo caso, até mesmo por simples curiosidade, é o
personagem mais interessante daquela reunião (ele representa uma nova
época da História, depois que o comunismo foi para a noite dos tempos);

84
Algo já mencionado em estudos como o de Tim Jones: Milan Kundera’s Slowness – making it slow (2009).
78

no entanto, no meio da multidão barulhenta, ele se posta, grande e


desajeitado, completamente só. Já faz um certo tempo que as pessoas se
precipitaram para apertar-lhe a mão e fazer algumas perguntas, mas a
discussão parou muito antes do previsto e, depois das quatro primeiras
frases trocadas, não sabiam mais o que conversar com ele. Pois, afinal de
contas, não havia assunto comum. Os franceses voltaram rapidamente a
seus problemas, ele tentou acompanha-los, de vez em quando
acrescentava “em nosso país, pelo contrário”, depois, compreendendo que
ninguém se interessava pelo que se passava “em nosso país, pelo
contrário”, afastou-se, o rosto coberto com um véu de melancolia que não
era amarga nem infeliz, mas lúcida e quase condescendente. (p.39-40)85

Enquanto a focalização interna pode ser vista, ainda sobre o mesmo personagem,
em:

Eis portanto a fórmula definitiva: o sábio tcheco está orgulhoso


de ter sido tocado pela graça de uma Atualidade Histórica Planetária
Sublime. Sabe muito bem que essa graça o distingue de todos os
noruegueses e dinamarqueses, de todos os franceses e ingleses presentes
com ele na sala. (p.45)86

Classificar o narrador como homodiegético se torna um desafio, pois ainda que o


narrador inicie o capítulo com a viagem realizada entre ele e a esposa Vera (e nisso há uma
possível intromissão do autor), ele participa em termos de igualdade em relação aos outros
personagens, narrando não somente suas ações como também seus pensamentos. Além
disso, ele se faz presente por meio de comentários e julgamentos. Outra característica
interessante notada no personagem Kundera diz respeito ao fato de que assim como o
autor, ele é escritor e faz menções a sua escrita, auto referenciando a narrativa, algo que
gera um efeito semelhante a um metatexto no qual o texto que se cria diz respeito à
exterioridade do discurso. Um exemplo pode ser visto no trecho a seguir:

85
No original:
Le hall se remplit peu à peu, il y a beaucoup d’entomologistes français et aussi quelques étrangers, parmi
lesquels un Tchèque dans la soixantaine dont on dit qu’il est une importante personnalité du nouveau régime,
peut-être un ministre ou le président de l’Académie des sciences ou au moins un chercheur appartenant à cette
même Académie. En tout cas, ne serait-ce que du point de vue de la simple curiosité, c’est personnage le plus
intéressant de ce rassemblement (il représente une nouvelle époque de l’Histoire aprés que le communisme s’en
est allé dans la nuit des temps) ; néanmoins, au milieu de la foule bavardant, il se dresse, grand et gauche, tout
esseulé. Depuis un bon moment les gens se sont précipités pour lui serrer la main et lui poser quelques questions
mais la discussion s’arrêtait toujours beaucoup plus tôt qu’ils ne s’y attendaient et, aprés les quatre premières
phrases échangées, ils ne savaient plus de quoi lui parler. Car, en fin de compte, il n’y avait pas de sujet
commun. Les Français sont revenus rapidement à leurs problèmes, il a essayé de les suivre, de temps en temps il
a ajouté <<chez nous, au contraire>>, puis, ayant compris que personne ne s’intérresait à ce qui se passait
<<chez nou, au contraire>>, il s’est éloigné, le visage voilé d’une mélancolie qui n’était ni amère ni
malheureuse, mais lucide et presque condescendante. (p.57-58)
86
No original:
Voilá donc la formule définitive: le savant tchèque est fier d’avoir été touché par la grâce d’une Actualité
Historique Planétaire Sublime. Il sait bien que cette grâce le distingue de tout les Norvégiens et Danois, de tout
les Français et Anglais présents avec lui dans la salle. (p.66)
79

Vera dorme e eu, de pé diante da janela aberta, olho duas pessoas


que passeiam no parque do castelo numa noite enluarada.
De repente, ouço a respiração de Vera acelerar-se, viro para a sua
cama e compreendo que num instante ela vai começar a gritar. Nunca a vi
ter pesadelos! O que está acontecendo neste castelo?
Acordo-a e ela me olha, com os olhos arregalados, cheios de
medo. Depois conta, precipitadamente, como num acesso de febre:
“Estava num corredor muito comprido deste hotel. De repente, ao
longe, surgiu um homem que veio correndo em minha direção. Quando
chegou a uns dez metros, o homem começou a gritar. E, imagina, ele
falava tcheco! Frases completamente sem pé nem cabeça: ‘Mickiewicz
não é tcheco! Mickiewicz é polonês!’ Depois aproximou-se ameaçador,
já muito perto de mim, e foi aí que você me acordou.”
“Desculpe”, eu disse, você é vitima de minhas elucubrações.”
“Como assim?”
“Como se os seus sonhos fossem uma lixeira onde eu jogasse as
páginas bobas demais.”
“O que você está inventando? Um romance?”, ela pergunta
angustiada.
Balanço a cabeça.
“Você muitas vezes me disse que um dia queria escrever um
romance em que não houvesse nenhuma palavra séria. Uma Grande
Bobagem Para Seu Prazer. Receio que tenha chegado o momento. Quero
só lhe prevenir: preste atenção.”
Balanço mais ainda a cabeça.
“Lembra do que a sua mãe dizia? Escuto sua voz como se fosse
ontem: Milanku, pare de fazer essas brincadeiras. Ninguém vai
compreender você. Vai acabar ofendendo todo mundo e todo mundo vai
acabar detestando você. Você se lembra?”
“Lembro”, respondo.
“Estou avisando. A seriedade protegia você. A falta de seriedade
deixará você nu diante dos lobos. E você sabe que os lobos estão à
espreita.”
Depois dessa terrível profecia, ela tornou a dormir. (p.63-64)87

87
No original:
Véra dort et moi, debout devant la fênetre ouverte, je regarde deux personnes qui se promènent dans le parc du
château par une nuit enlunée.
Tout à coup j’entends la respiration de Véra s’accélérer, je me retourne vers sont lit et je comprends que dans un
instant elle va se mettre à crier. Je ne l’ai jamais vue avoir des cauchemars ! Que se passe-t-il dans ce château?
Je la réveille et elle me regarde, les yeux grands ouverts pleins d’effroi. Puis elle raconte, avec précipitation,
comme dans un accès de fièvre : <<J’étais dans un très long
Couloir de cet hôtel. Tout à coup, de loin, un homme a surgi et a couru vers moi. Quand il est arrivé à une
dizaine de mètres, il s’est mis à crier. Et, imagine, il parlait tchèque! Des phrases complètement débiles:
<<Mickiewicz n’est pas tchèque ! Michiewicz est polonais ! >>Puis il s’est aprroché, menaçant, à quelques pas
de moi et c’est là que tu m’as réveille.
- Pardonne-moi, lui dis-je, tu es victime demes élucubrations.
- Comment ça ?
- Comme si tes rêves étaient une poubelle où je jette des pages trop sottes.
- Qu’est-ce que tu inventes ? Un roman ? >> demande-t-elle, angoissée.
J’incline la tête.
<< Tu m’as souvent dit vouloir écrire un jour un roman où ancun mot ne serair sérieux. Une Grande Bêtise Pour
Ton Plaisir. J’ai peur que le moment ne soit venu. Je veux seulement te prévenir : fais attention.>>
J’incline la tête encore plus bas.
80

O discurso das personagens é narrativizado, apresentando por muitas vezes as


falas dos personagens de modo direto e indireto, enquanto o narrador intercala os eventos
com digressões, reflexões e julgamentos ao longo da narrativa. Durante a narração
percebemos um verdadeiro desfile de personagens, que serão desenvolvidos em maior ou
menor grau. Eles são os seguintes, em ordem de maior aparição a menor aparição:

Personagem Nº de aparição em capítulos


Vincent 15
Julie 12
Berck 11
Chechoripsky 11
Madame T. 11
Milan e Vera 9
Immaculata 9
Pontevin 7
Cavalheiro 3
Cameraman 3
Duberques 2

A abrangência dos personagens é bem distribuída durante o desenrolar da história,


pois há um equilíbrio entre cada aparição e cada desenvolvimento: possuindo a narrativa a
quantidade de 51 capítulos, podemos dividi-la em três partes representantes das categorias
de início, meio e fim, cada qual sendo composta por 17 capítulos. A configuração ocorre
da seguinte maneira:
A primeira parte, correspondente ao início da narrativa, conta com maior presença
dos personagens Milan e Vera (presentes em quatro capítulos), Madame T (presente em
seis capítulos), Berck (presente em quatro capítulos) e Pontevin (presente em três
capítulos). É nessa parte também onde acontece a introdução da narrativa de Vivant Denon
e ocorrem mais intromissões, divagações e alusões do narrador a respeito de temas como a
memória e o hedonismo – basta nos atentarmos ao fato de que a quantidade de capítulos

<<Te rappelles-tu de que te disait ta maman ? J’entends sa voix comme si c’était hier : Milanku, cesse de faire
des plaisanteries. Personne ne te comprendra. Tu offenseras tout le monde et tout le monde finira par te détester.
Te rappelles-tu ?
- Oui, dis-je.
- Je te préviens. Le sérieux te protégeait. Le manque de sérieux te laissera nu devant les loups. Et tu sais qu’ils
t’attendent, les loups.>>
Après cette terrible prophétie, elle s’est rendormie. (p.92-94)
81

em que o narrador surge equivale a 23,52% dos 17 capítulos, aproximando-se da


representação de 1/4 do início da narrativa, número bastante significativo.
A segunda parte, correspondente ao desenvolvimento da narrativa, será
caracterizada pela pouca aparição do narrador de forma explícita e representa o espaço em
que mais ações serão desenvolvidas, de modo que todos os personagens, ainda que com
suas narrativas diferentes, interajam entre si. Há também mais cenas de diálogo, onde
geralmente mais de um personagem participa da cena. Os maiores protagonistas desse
segmento são: Berck (presente em sete capítulos), Vincent (presente em oito capítulos),
Julie (aparece em seis capítulos), Immaculata (presente em cinco capítulos) e
Chechoripsky (presente em cinco capítulos).
Por fim, na terceira e última parte, o narrador arremata a narrativa, trazendo de
volta suas intromissões e suas considerações a respeito da narrativa de Vivant Denon, dos
personagens e suas ações, tudo isso por meio de humor. Não que a narrativa em si não seja
dotada de humor, mas é nesse exato ponto do texto em que ele traz mais ironias e realiza
mais brincadeiras na construção do enredo. Vincent (aparece em seis capítulos), Julie
(aparece em seis capítulos), Madame T. (aparece em quatro capítulos), Milan e Vera
(aprecem em quatro capítulos) e Chechoripsky (aparece em quatro capítulos) terão maior
destaque ao longo dessa parte.
O fato de a narrativa principal ser composta por várias outras narrativas
secundárias desses vários personagens acima levantados e comentados, dispostas de
maneira alternadas na composição do narrador, pode ser visto como indício de efeito de
velocidade em A lentidão: são histórias que estão a todo o momento se tocando e
personagens que ora surgem ora desaparecem ao longo dos capítulos, além de estarem
presentes em um mesmo acontecimento e participarem da ação. O meio da narrativa é a
parte que mais apresenta páginas em seu conteúdo e é também a parte em que cada
capítulo menciona uma ação de algum personagem em uma sequência com pouquíssimas
pausas.
Há ainda que se mencionar com mais detalhamento as referências externas da
diegese que são colocadas na narrativa e dizem respeito ao caráter intertextual explorado
nas reflexões do narrador a fim de assegurar a narração e trazer algum ponto de vista a ser
explorado mais adiante pelos personagens. Esse diálogo entre a diegese e a realidade
exterior a ela, pode ser observado nas menções dos seguintes momentos na narrativa: o
romance Ligações Perigosas de Chordelos de Laclos – que serve de exemplo para a
exploração do hedonismo diante da situação do cavaleiro e de Madame T., Marquês de
82

Sade – durante a cena de Vincent e Julie, onde o narrador reflete sobre o erotismo, a
menção ao caso de Henry Kissinger – utilizada pelo narrador a fim de introduzir a
personagem Immaculata e seu amor por Berck, em relação a uma possível história entre a
paixão não correspondida de uma jornalista parisiense por Kissinger, e a Vivant Denon –
que cumpre papel importante pois traz a narrativa de Denon e alguns de seus personagens a
fim de contrastar dois séculos e duas visões sobre o mundo e a modernidade.

Essa história me lembra uma outra que tive a sorte de conhecer


graças à biblioteca que reveste todas as paredes do apartamento de
Goujard. Certa vez, quando me queixava com ele do meu tédio, ele me
mostrou uma estante com uma etiqueta escrita por ele mesmo: obras-
primas de humor involuntário e, com um sorriso malicioso, retirou dela
um livro escrito por uma jornalista parisiense em 1972 sobre seu amor
por Kissinger, se é que vocês ainda lembram o nome do mais famoso
politico daquela época, conselheiro do presidente Nixon, arquiteto da paz
entre os Estados Unidos e o Vietnã.
É esta a história: ela encontra Kissinger em Washington para
fazer uma entrevista com ele, primeiro para uma revista, depois para a
televisão. Eles têm muitos encontros, mas sem jamais ultrapassar os
limites das relações estritamente profissionais: um ou dois jantares para
preparar o programa, algumas visitas a seu escritório na Casa Branca, na
casa dele, sozinha, depois acompanhada de uma equipe etc. Pouco a
pouco, Kissinger começa a achá-la insuportável. (p.34-35)88

Esse trecho, acima exposto, é um exemplo bem claro de como o narrador traz ao
plano da narrativa outra narrativa de origem exterior. E não apenas isso: ele transforma a
intertextualidade de modo que lhe convém, facilitando a composição e a introdução da
personagem Immaculata. Há ainda intromissão do narrador, não somente no fato de contar
uma experiência sua com um amigo, como também em um início de diálogo com seu
narratário – o qual ele julga como alguém talvez mais velho ou esquecido em relação à
lembrança do caso Kissinger. Ademais, a presença do narrador é também perceptível pelos

88
No original:
Cette histoire m’en rappelle une autre que j’ai la chance de connnâitre grâce à la bibliothèque qui couvre tous les
murs de l’appartement de Goujard. Une fois que je me plaignais de mon spleen devant lui, il me montra une
étagère portant une inscription de sa propre main : chefs-d’oeuvre d’humour involontaire et, avec un sourire
malin, en retira un livre qu’avait écrit, en 1972, une journaliste parisienne sur son amour pour Kissinger, si vous
voous rappelez encore le nom du plud fameux homme politique de cette époque, conseiller du président Nixon,
architecte de la paix entre l’Amérique et le Vietnam.
Voici l’histoire : elle joint Kissinger à Washington pour faire une interview avec lui, d’abord pour une revue,
puis pour la télévision. Ils ont plusieurs rendez-vouz mais sans jamais franchir les limites des rapports
strictement professionnels : un ou deux dîners pour préparer l’émission, quelques visites à son bureau de la
Maison-Blanche, dans sa maison privée, seule, puis entourée d’une équipe, etc. Peu à peu, Kissinger la prend en
grippe. (p. 50-51)
83

traços de humor tanto na escrita irônica e venenosa de um epíteto 89 a respeito do


conselheiro, quanto do relato sobre os seus encontros com a jornalista. É importante notar
que esse caso, certamente um movimento de pausa narrativa, relatado no capítulo 14 serve
de espelhamento para a justificativa da narrativa de Immaculata, iniciada no capítulo 13.
A imagem de memória, explorada por Kundera como duração, será percebida por
meio da composição dos personagens, da duração de suas ações e do modo como eles
surgem num contínuo durante a narrativa. A fim de tornar mais fácil a compreensão das
categorias a serem desenvolvidas a seguir, construímos uma tabela demonstrativa das
ações dos personagens em relação aos capítulos e a quantidade de páginas abrangidas.

A lentidão (1995)
Capítulos pgs.
1 Viagem de Milan e Vera/ introdução à Madame T. 2,5
2 Madame T. e sua aventura 1,5
3 Sobre o hedonismo e Madame T./Ligações perigosas 2,25
4 Milan e Vera: as mazelas sociais e o protagonismo egóico 2
5 Sobre Duberques e Berck/introdução à Pontevin 2,5
6 Pontevin e Berck: o conceito de dançarino 2,75
7 Considerações de Pontevin 3
8 Vincent e Pontevin/Duberques: desdobramentos do conceito de dançarino 2
9 Vera e Madame T. 2,25
10 Madame T. e seus jogos 1,5
11 Madame T. e a memória como duração 2
12 Sobre Vivant Denon 1,25
13 Pontevin e Berck/Immaculata 1,75
14 Considerações do narrador e divagações do caso Kissinger 1,5
15 Immaculata e Berck 1,5
16 Encontro de entomologistas: Chechoripsky 4
17 Melancolia de Chechorippsky 2,5
18 Gafe de Chechoripsky e tentativa de protagonismo de Berck 2,25
19 Constrangimento de todos pós-discurso de Chechoripsky 1,25
20 Vincent e amigos no bar do colóquio/avistamento de Julie 2
21 Vincent e Julie: aproximação 1,5
22 Encerramento do colóquio: Berck e Chechoripsky conversam, Immaculata surge 2
23 Immaculata, Berck e Chechoripsky: colóquio 3,5
89
Essa parte merece um comentário, pois podemos perceber mais claramente o narrador como alguém dotado de
senso crítico e político: arquiteto da paz e Kissinger na mesma frase não fariam sentido algum para um narratário
que conhecesse o caso e tivesse a noção de que Kissinger é até hoje duramente criticado e visto como merecedor
de um julgamento pelas inúmeras mortes que causou, durante a sua atividade como conselheiro.
Segundo o site http://latinoamericana.org/2003/textos/portugues/Kissinger.htm, que trata sobre a mundialização
da justiça e os casos mundiais de violência, ele é responsável por inúmeras mortes em Vietnã, Camboja, Timor
Leste e Bangladesh; além de ter participado ativamente no golpe sofrido por Allende, no Chile.
84

24 Vincent: aproximações entre Berck e Pontevin 1,5


25 Vincent e Julie/ Madame T. 3
26 Vera e Milan falam sobre o romance que ele pretende construir 1,25
27 Berck/Chechoripsky: tentativa de holofotes 2
28 Vincent e Julie se encontram fora do bar 1,25
29 Vincent e Julie erotismo/ marques de Sade/ Pontevin e Berck 3,75
30 Berck e Immaculata: o desprezo de Berck 3,5
31 A paixão do cameraman por Immaculata 1,5
32 Os jogos românticos entre Immaculata e o cameraman 2,5
33 Vincent e Julie: erotismo 1,75
34 Vincent e Julie nadam 3
35 A intromissão e outros personagens na cena erótica de Vincent e Julie 1
36 Chechoripsky vai até a piscina/ tentativa de exibicionismo, diferenciação 1
37 Julie e Vincent se beijam 1
38 Immaculata vai à piscina 1,75
39 Sábio tcheco e sua exibição 3
40 Immaculata, cameraman e Chechoripsky na piscina 1
41 Sábio tcheco e Madame T. 1,25
42 Vincent e Julie 1
43 Milan e Vera: fim da viagem 1
44 Vivant Denon e narrador 1,5
45 Madame T. 1,25
46 Vincent e Pontevin falam sobre Julie 2
47 Milan e Vera saem do castelo/ Madame T. 1,25
48 Vincent e Julie 1
49 Cavalheiro e Madame T. 2
50 Vincent e o cavalheiro se encontram/ aproximações entre os dois séculos 1
51 Milan e Vera veem a interação entre Vincent e o cavalheiro 0,75

A narrativa se ordena de modo interessante porque, ainda que trabalhe com dois
tempos aparentemente distintos, ela possui a maioria dos acontecimentos sendo relatados
no presente indicativo, contando com poucas remissões ao passado – sendo ele retratado
apenas quando necessário for para o entendimento de alguma explicação acerca de um
comportamento de um personagem. A utilização gramatical do presente90 pelo narrador
nos leva a entender e perceber os acontecimentos tal qual eles ocorressem simultaneamente

90
Dentro dessa afirmação do presente há, é claro, um monte de questões que entram em cena e fazem com que
essa concepção seja eventualmente alvo de reflexões e considerações filosóficas, como o fato de que por mais
que uma narrativa utilize essa forma verbal, tal forma será vista sempre pelo prisma de um objeto em movimento
constante, onde sua remissão já é automaticamente sua retrospecção: donde falar sobre um presente é falar sobre
um passado a partir do momento de sua emissão. Refletindo de acordo com tal pensamento, a ordenação de uma
narrativa, especialmente a prolepse, torna-se algo digno de questionamentos e novas formas de entendimento,
como é o caso do estudo About time: narrative, fiction and philosophy of time, de Mark Currie, 2007.
85

à narração e não fossem produtos de uma criação intencional dele, mas sim um relato de
fatos de alguém que observa e descreve uma sequência de eventos.
As anacronias existentes na ordem dizem respeito à ocorrência de analepses
externas expressas pelas remissões ao amor colegial de Berck por Immaculata – uma
inserção do narrador com o objetivo de mostrar a origem da obsessão da jornalista pelo
político; às disputas pela atenção e pelo apoio do público entre Duberques e Berck –
intentando mostrar uma retrospectiva das inúmeras vezes em que ambos estiveram frente
às câmeras realizando atos de extrema e superficial comoção; ao exílio de Chechoripsky e
sua mudança de vida – apresentando a sua história e o quanto o encontro de entomologista,
o fato de estar entre seus pares lhe significava e conferia outros contornos às dificuldades
enfrentadas durante o exílio (de pesquisador acadêmico a operário); ao caso erótico
existente entre Immaculata e o cameraman – trazido talvez como um elemento mais
descomplicado para o consolo da personagem e para a criação de outro drama e inserção
dos jogos românticos; e a própria narrativa de Vivant Denon como um todo – pela
distância temporal e com o intuito de estabelecer uma comparação crítica entre as
narrativas dos outros personagens; entre outras mais.
Um exemplo disso encontra-se no seguinte trecho:

Até o momento em que compreendeu que estava apaixonada


por Berck, Immaculata levara a vida da maioria das mulheres: alguns
casamentos, alguns divórcios, alguns amantes, que lhe trouxeram uma
decepção tão constante quanto pacífica e até suave. O último de seus
amantes a adora de modo especial; ela o aguenta melhor do que os outros,
não apenas por causa de sua submissão mas também por sua utilidade: é
um cameraman que a ajudou muito quando ela começou a trabalhar na
televisão. É um pouco mais velho do que ela, mas tem um eterno ar de
estudante que a adora; acha que ela é a mais bonita, a mais inteligente e
(sobretudo) a mais sensível de todas as mulheres. (p.38-39)91

O surgimento e a intercalação dessas anacronias acima citadas geram um


movimento de vai e vem narrativo que confere uma velocidade ao texto, tal qual um
pêndulo. Tal movimento mexe com as noções de permanência, a imagem de memória por
excelência trabalhada no livro. Quanto maior a lentidão, menor o uso de anacronias e

91
No original:
Jusqu’au moment où elle a compris qu’elle était amoureuse de Berck, Immaculata avait vécu la vie de la plupart
des femmes : quelques mariages, quelques divorces, quelques amants que lui apportaient une déception aussi
constante que paisible et presque douce. Le dernier de ses amants l’adore particulièrement ; elle le supporte
mieux que les autres non seulement en raison de sa soumission mais aussi de son utilité : c’est un cameraman
qui, quand elle a commencé à travailler à la télévision, l’a beaucoup aidée. Il est un peu plus vieus qu’elle, mais a
l’air d’un éternel étudiant qui l’adore ; il la trouve la plus belle, la plus intelligente et (surtout) la plus sensible
entre toutes. (p.56-57)
86

maior a memorização: esse é o papel que a narrativa de Vivant Denon trazida pelo narrador
cumpre; enquanto as narrativas dos outros personagens, cada qual com sua história
antecedente e seu ritmo de surgimento e desaparecimento/enfoque, tornam-se velozes e
menos memorizáveis.
A percepção de que tais narrativas não perduram diz respeito ao fato de que os
fragmentos que as constituem e as tecem, passando pelo presente e passado, são
insuficientes para a constituição de uma história coesa e firme. Antes o narrador escolhesse
focar em uma personagem específica e a narrativa conseguiria se alongar no tempo, tornar-
se mais durável, contudo é o contrário que ocorre: eis a ironia contida no título A lentidão.
Se a disposição do tempo já confere um pequeno efeito de velocidade à narração,
a disposição dos acontecimentos será a principal responsável por uma ampliação desse
efeito, pois a narrativa apresenta os eventos distribuídos de acordo com um princípio de
alternância entre cenas, pausas, sumários e elipses. Essas distensões, representadas por
alongamentos e encurtamentos em relação aos capítulos, ganham respaldo a partir da
compreensão e consideração da tabela cima, que contém os capítulos e a quantidade de
páginas correspondentes a eles: há um capítulo de maior extensão seguido por outro de
menor extensão, que são por sua vez precedidos por outro de menor ou maior extensão e
assim por diante.
As cenas são mais abrangentes e possuem a maior quantidade de capítulos e de
páginas, porque é uma característica desse tipo a quantidade de descrição dos
acontecimentos e o nível de profundidade com o qual eles são abordados pelo narrador. Os
exemplos mais elucidativos das cenas estão nos capítulos em que Chechoripsky é
apresentado na narrativa, em que Vincent e Julie, Berck e Pontevin são aproximados e em
que Vincent, Julie, Chechoripsky, Immaculata e o cameraman se encontram no mesmo
espaço.
Sobre o primeiro, o narrador relata com detalhes a chegada de Chechoripsky,
desde a sua recepção e falta de assunto com os colegas, passando pelo retrato de seu
sentimento de melancolia e orgulho, até o momento de seu pronunciamento e as
consequências dele. Essa sequência é abrangida entre os capítulos 16 e 19 e compreende
em si a totalidade de 10 páginas da narrativa descritas em sequência.
A segunda cena detalhada, sem interrupções, diz respeito ao encontro de Julie e
Vincent fora do bar: são narrados os beijos furtivos, o desejo de Vincent em explorar o
corpo de Julie, tudo isso seguido de considerações sobre o erotismo e o exibicionismo
representados pela alusão ao marquês Sade – pois o rapaz é impelido por uma vontade
87

absurda de sodomizar a tímida moça, uma tentativa inconsciente de se ver como


protagonista daquela situação em comparação com Pontevin e Berck, seus maiores
modelos. Essa sequência abrange os capítulos 29 e 30, sendo compreendida por sete
páginas da narrativa.
A última cena diz respeito à representação do acontecimento da piscina, no qual
Vincent, Julie, Chechoripsky, Immaculata e cameraman participam: é o momento em que
essas narrativas diferentes se aproximam e os personagens entram em contato. Vincent e
Julie no meio de suas investidas eróticas são observados por Chechoripsky que, por meio
da justificativa de se exibir e recuperar o seu orgulho, nada pela piscina e é surpreendido
com a aparição de Immaculata tentando se afogar e realizar um jogo com seu admirador, o
cameraman. Todas essas ações ocorrem entre os capítulos 33 a 40, tornando a cena
composta por 14 páginas, caracterizando a sequência como a mais longa da narrativa.
As pausas geralmente se encontram nas considerações e intromissões do narrador,
com o objetivo de realizar alguma reflexão importante para a narrativa: temos como
exemplo o caso Kissinger, as cenas entre Milan e Vera, a alusão a Marquês de Sade e o
erotismo, ao romance Ligações Perigosas e o hedonismo. Elas se revelam em sua maioria
quando é adicionada uma alusão exterior a domínio da narrativa principal com fim de
justificar e legitimar por antecedência alguma ação de um personagem ou algum
julgamento ou reflexão por parte do narrador. Eis um exemplo:

Essa história me lembra uma outra que tive a sorte de conhecer


graças à biblioteca que reveste todas as paredes do apartamento de
Goujard. Certa vez, quando me queixava com ele do meu tédio, ele me
mostrou uma estante com uma etiqueta escrita por ele mesmo: obras-
primas de humor involuntário e, com um sorriso malicioso, retirou dela
um livro escrito [...]. (p.34)92

Além das características já mencionadas anteriormente a respeito da pausa,


podemos observar também que a sua presença na narrativa servirá como um elemento
causador de desaceleração dos acontecimentos, uma vez que lhe retiram o foco antes
empenhado. Esse contraste gerado pela interrupção pode ser entendido também como um

92
No original:
Cette histoire m’en rappelle une autre que j’ai la chance de connnâitre grâce à la bibliothèque qui couvre tous les
murs de l’appartement de Goujard. Une fois que je me plaignais de mon spleen devant lui, il me montra une
étagère portant une inscription de sa propre main : chefs-d’oeuvre d’humour involontaire et, avec un sourire
malin, en retira un livre qu’avait écrit [...]. (p.50)
88

aspecto danoso quanto à permanência do que é narrado. Logo, percebemos a tensão que
envolve o movimento das narrativas contempladas e relacionadas em A lentidão.
Os sumários correspondem às vezes em que um evento é reduzido e pode se
relacionar estritamente com a aparição das analepses na narrativa, visto que elas aparecem
de maneira resumida, contando apenas o essencial a ser dito sobre um episódio, privando o
narratário de maiores informações e detalhamentos. Dito isso, eles aparecem por meio das
analepses realizadas e já mencionadas aqui nesse estudo. Sobre eles, podemos dizer que
são categorias responsáveis por atribuir velocidade a narrativa, liberando toda a atenção
dispendida na delineação das cenas e fazendo com que a abordagem aos personagens e a
narrativa em si sejam menos exploradas.
As elipses são hipotéticas e por isso mesmo conferem uma rapidez ao discurso
narrativo: toda a narrativa se concentra na duração de uma tarde e uma noite em que o
narrador e sua esposa Vera irão passar em castelo na França, palco onde também é
realizado um encontro de entomólogos. Porém, a exatidão com que tais acontecimentos
ocorrem de acordo com o tempo é algo que não é explorado de modo claro na narrativa. As
menções ao tempo só são dadas no momento da chegada do casal ao castelo, do jantar e do
sono de ambos e a saída do castelo. No que diz respeito aos outros personagens, o tempo é
ainda mais diluído, fragmentado e possui poucas correspondências com o tempo da
história. Tudo isso corrobora para a origem de uma compreensão do tempo como fugidio,
característica da modernidade e principal critica atrelada a narrativa. A impressão é a de
que tudo tende a escapar, tal qual a memória quando é relacionada com a velocidade.
Sendo assim, o estudo e a análise de tais elementos narrativos nos permitem ver A
lentidão como uma narrativa que retrata a duração, correspondente à imagem com a qual a
memória aparece no discurso. O desenvolvimento de sua narração coloca em atividade
elementos dispostos na construção e na organização do texto que reforçam esse olhar para
a permanência como um efeito, objeto privilegiado no estudo dessa obra.

3.2 A memória como espelhamento

A identidade é uma narrativa que engana: em seus primeiros capítulos somos


levados à percepção de que todos os acontecimentos serão centrados em Chantal e suas
reações frente à crise de idade, ou mais ainda, serão centrados também nos ciúmes de si
mesmo, desenvolvido por Jean-Marc. No entanto, ainda que essas passagens – dramáticas
89

e humorísticas – cumpram um papel relevante na narrativa, identificamos outro princípio


responsável pela criação e pela organização, bem como o desenvolvimento da ação
relatada: o espelhamento. É a partir desse prisma que veremos os eventos sendo colocados
em jogo por meio dos personagens. As relações desenvolvidas por meio do contraste entre
Chantal e Jean-Marc, Jean-Marc e F., o casal e os colegas de trabalho de Chantal, e
Chantal e a ex-cunhada, servem de base para a construção e desconstrução dos
personagens principais ao longo dessa narrativa identitária.
A história é narrada por um narrador onisciente que opera com as informações
sobre os personagens ora com distância, ora com aproximação: essa é justamente a
característica principal da maneira como o texto é tecido, visto que o narrador consegue
transitar com muita liberdade e sem muito esforço entre focalizações internas e externas.
Tais ajustes, semelhantes a uma câmera ou, mais precisamente, a um espelho em suas
formas côncava e convexa, auxiliam na delimitação contínua e nunca fixa da identidade de
Chantal e Jean- Marc. Temos como exemplo as seguintes passagens correspondentes às
focalizações externa e interna, respectivamente:

Um hotel numa pequena cidade à beira-mar na Normandia que


tinham encontrado num guia por acaso. Chantal chegou na sexta-feira
para passar ali uma noite solitária, sem Jean-Marc, que deveria encontra-
la no dia seguinte em torno do meio-dia. Deixou a mala no quarto, saiu e,
depois de um breve passeio por ruas desconhecidas, voltou ao restaurante
do hotel. Às sete e meia, a sala de jantar ainda estava vazia. Sentou-se à
mesa e esperou que alguém notasse sua presença. Do outro lado, perto da
porta da cozinha, duas garçonetes discutiam animadamente. Chantal,
como detestava levantar a voz, atravessou a sala e parou diante delas; mas
elas estavam demasiado entretidas na discussão. (p.7)93

E ainda:

Seria ele realmente tão frio, tão insensível? Um dia, muitos


anos antes, soube que F. o havia traído; ah, a palavra é romântica demais,
certamente exagerada; e, no entanto, ele ficou perturbado: numa reunião,
na sua ausência, todo mundo atacou Jean-Marc, o que mais tarde lhe
custou o emprego (perda desagradável mas não muito grave tendo em
vista a reduzida importância que dava ao seu trabalho). F. estava presente
a essa reunião. Estava lá e não disse uma só palavra em defesa de Jean-

93
No original:
Un hôtel dans une petite ville au bord de la mer normande qu’ils avaient trouvé par hasard dans un guide.
Chantal arriva le vendredi soir pour y passer une nuit solitaire, sans Jean-Marc qui devait la rejoindre le
lendemain vers midi. Elle laissa une petite valise dans la chambre, sortit et, après une courte promenade dans des
rues inconnues, revin au restaurant de l’hôtel. À sept heures et demie, la salle était encore vide. Elle s’assit à une
table en attendant que quelqu’un l’aperçût. D’autre côté, près de la porte de la cuisine, deux serveuses étaient en
pleine discussion. Détestant hausser la voix, Chantal se leva, traversa la salle et s’arrêta près d’elles ; mais elles
étaient trop passionées par leur sujet. (p.9-10)
90

Marc. Seus braços minúsculos, que gostavam tanto gesticular, não


fizeram o menor movimento em favor do amigo. Não querendo cometer
um engano, Jean-Marc verificou minuciosamente se F. realmente se
calara. Quando teve certeza absoluta disso, sentiu-se por alguns
momentos infinitamente magoado; depois, resolveu nunca mais revê-lo; e
logo a seguir foi invadido por uma sensação de alivio, inexplicavelmente
alegre. (p.12)94

O narrador opera no nível extradiegético e isso ganha respaldo justamente pelo


fato dele conseguir realizar as alternâncias entre as focalizações com bastante liberdade.
Além disso, ele se caracteriza como heterodiegético, uma vez que não participa
diretamente das ações, cabendo a ele o papel de colocar os personagens em cena e, de vez
em quando, intervir muito sutilmente de forma implícita na narrativa, por meio das
reflexões dos personagens ou de relatos que surjam a fim de integrar alguma ação. Eis um
exemplo de uma intromissão do narrador, que não corresponde a nenhuma conversa ou
pensamento de algum personagem na narração:

Esse encontro frustrado que os tornou incapazes de se beijarem


teria acontecido realmente? Será que Chantal ainda se lembra daqueles
poucos instantes de incompreensão? Será que ainda se lembra da frase
que perturbou Jean-Marc? Que nada. O episódio foi esquecido como
milhares de outros. Mais ou menos duas horas depois, almoçam no
restaurante do hotel e falam alegremente sobre a morte. Sobre a morte?
(p.23)95

Ainda podemos mencionar a utilização por primazia do discurso indireto livre,


forma que confere ao narrador maior liberdade quanto à disposição das falas dos
personagens. Em relação ao estado do discurso dessa narrativa de falas, o romance se
caracteriza por possuir um misto de discurso relatado e transposto em sua composição
narrativa.

94
No original:
Est-il vraiment si froid, si insensiblle? Um jour, il y a plusieurs années, il apprit que F. L’avait trahi ; ah, le mot
est par trop romantique, sûrement exagéré, pourtant, il en fut bouleversé : dans une réunion, en son absence, tout
le monde attaqua Jean-Marc ce qui lui coûta plus tard son poste. À cette réunion, F. Etait présent. Il était là et il
ne dit pas un seul mot pour défendre Jean-Marc. Ses bras minuscules qui aiment tellement gesticuler ne firent
pas le moindre mouvement en faveur de son ami. Ne voulant pas se tromper, Jean-Marc vérifia minutieusement
que F. S’était vraiment tu. Quand il en eut une totale certitude, il se sentit pendant quelques minutes infiniment
blessé ; puis, il décida de ne plus jamais le revoir ; et immédiatement il fut saise d’un sentiment de soulagement,
inexplicablement joyeux. (p.18-19)
95
No original:
Cette recontre gâchée qui les a rendus incapables de s’embrasser a-t-elle vraiment eu lieu? Se rappelle-t-elle,
Chantal, ces quelques instants d’incompréhension ? Se rappelle-t-elle encore la phrase qui a troublé Jean-Marc ?
Guère. L’épisode a été oublié comme des milliers d’autres. Environ deux heures plus tard, ils déjeunent au
restaurant de l’hôtel et parlent gaiement de la mort. De la mort ? (p.38)
91

Ele abre a porta do quarto. Finalmente a vê. Dessa vez, sem a


menor dúvida é ela, mas não se parece mais com ela. Seu rosto está
envelhecido, seu olhar estranhamente mau. Como se a mulher para quem
fizera sinais na praia devesse substituir de uma vez para sempre aquela
que ama. Como se ele devesse ser punido por sua incapacidade de
reconhecê-la.
“O que há? O que foi que aconteceu?”
“Nada, nada”, diz ela.
“Como nada? Você está completamente transtornada.”
“Dormi muito mal. Quase não dormi. Passei uma manhã ruim.”
“Uma manhã ruim? Por quê?”
“Por nada, realmente nada.”
“Diga para mim.”
“Por nada mesmo.”
Ele insiste. Ela acaba dizendo: “Os homens não se viram mais
para olhar para mim”.
Fita-a, incapaz de compreender o que ela diz, o que quer dizer.
Está triste porque os homens não se viram mais para olhar para ela? Ele
quer lhe dizer: E eu? E eu? Eu, que a procuro por quilômetros de praia,
eu, que grito seu nome chorando e que sou capaz de correr o planeta
inteiro atrás de você? (p.20)96

Os personagens principais na narrativa, como já mencionamos, são Chantal e


Jean- Marc que, ao longo dos 51 capítulos, adquirem maior profundidade e amplitude em
relação as suas histórias, isso se assemelha a uma adição infinita de camadas e de
características que em alguns momentos se somam e em outros se opõem. Há sempre uma
mudança que surge em cada capítulo, a permanência é explorada em seus limites: a face do
outro se modifica a ponto de não haver o reconhecimento, beirando o onírico, tamanho o
caráter de transformação instaurado com as novas informações. Logo, compreendemos que
se em A lentidão, o narrador explora as diversas narrativas compreendidas na diegese da
narrativa principal (incluindo a aproximação com o romance de Vivant Denon que se torna

96
No original:
Il ouvre la porte de la chambre. Enfin, il la voit. Cette fois, sans le moindre doute, c’est ele, mais qui ne se
ressemble pas non plus. Son visage est vieux, son regard étrangement méchant. Comme si la femme à laquelle il
a fait des signes sur la plage devait dès maintenant et pour toujours se substituer à celle qu’il aime. Comme s’il
devait être puni pour son incapacité à la reconnaître.
<<Qu’est-ce qu’il y a ? Qu’est-ce qui s’est passé ?
- Rien, rien, dit-elle.
- Comment, rien ? Tu es complètement transformée.
- J’ai très mal dormi. Je n’ai presque pas dormi. J’ai passé une mauvaise matinée.
- Une mauvaise matinée ? Pourquoi ?
- Mais pour rien, pour vraiment rien.
- Dis-moi.
- Mais vraiment rien.>>
Il insiste. Elle finit par dire: <<Les hommes ne se retournent plus sur moi.>>
Il la regarde, incapable de comprendre ce qu’elle dit, ce qu’elle veut dire. Elle est triste parce que les hommes ne
se retournent plus sur elle ? Il veut lui dire: Et moi ? Et moi ? Moi qui te cherche sur des kilomètres de plage,
moi qui crie ton nom en pleurant et qui suis capable de courir après toi par toute la planète ? (p.32-33)
92

parte do mesmo discurso); em A identidade, o narrador explorará as diversas possibilidades


de caracterização de uma personagem.
Os outros personagens surgem na narrativa de um modo bem específico e detém a
responsabilidade de alterar significativamente toda e qualquer apreensão do perfil do casal.
F. consegue alterar Jean-Marc, ainda que contra a sua vontade, a ex-cunhada de Chantal
cumpre a função de a alterar por oposição, o filho morto de Chantal (uma presença-
ausência) é a sua via de liberdade, os colegas de Chantal a modificam por uma diferença
relacionada à mesquinhez. Tudo isso só é possível porque, ainda que não esteja explícito
no discurso, essa narrativa é uma narrativa que envolve os relacionamentos humanos: Jean-
Marc reconhece por meio de F. que a amizade é meio de permanência da memória, Chantal
também reconhece que a lembrança agridoce do filho é um meio que possibilitou a
liberdade da família do ex-marido. Ela ainda passa pelo sentimento de repulsa, resultante
de uma oposição de pontos de vista, ao se comparar tanto com os seus colegas quanto com
a ex-cunhada.
Tais sentimentos suscitados em relação ao casal são tão essenciais para a
construção da identidade de Jean-Marc e Chantal, que nos fazem perceber a narrativa como
antes um conjunto de ações desses outros personagens do que um conjunto de ações
desempenhadas pelos principais. Subverte-se a perspectiva do binômio
atividade/passividade: a ação nada mais é do que reação ao outro, ao espelho oferecido por
ele.
Outro ponto interessante a se notar a respeito das representações é o fato de que os
contrastes e as adições se intensificam a tal ponto, assemelhando-se à caracterização de um
sonho. O elemento onírico é bem explorado no discurso, aparecendo nos sonhos de
Chantal com o ex-marido e com o local desconhecido onde ninguém a reconhece, nem ela
própria se reconhece; e no sonho de Jean-Marc com a identidade da esposa e com a busca
empreendida por ele para se acertar com ela. Porque o sonho é o território das incertezas e
das múltiplas possibilidades; dentro dele, qualquer identidade pode se transformar em
qualquer objeto, de forma automática. É isso o que assusta a ambos: o conhecimento e o
desconhecimento de si e do outro. Por consequência, a finalização da narrativa, com um
pesadelo e o momento no qual ele se rompe, torna-se interessante, corroborando com a
visão de não fixidez dos personagens – uma alusão que podemos relacionar ao espelho.

Vejo suas cabeças, de perfil, iluminadas pela luz de uma


pequena lâmpada de cabeceira: a cabeça de Jean-Marc, com a nuca num
93

travesseiro; a cabeça de Chantal inclinada uns dez centímetros acima do


rosto dele.
Ela dizia: “Não vou mais tirar os olhos de você. Vou olhar para
você sem parar”.
E depois de uma pausa: “Tenho medo quando pisco o olho. Medo
de que durante esse segundo em que meu olhar se apaga se insinue no seu
lugar uma serpente, um rato, outro homem”.
Ele tentava se erguer um pouco para tocá-la com os lábios.
Ela balançava a cabeça: “Não, quero só olhar para você”.
E depois: “Vou deixar a luz acesa a noite toda. Todas as noites”.
(p.115) 97

Com o intuito de tornar a abordagem dos personagens mais visível e também de


poder demonstrar o quanto a ordenação e a duração cumprem um papel importante na
percepção do efeito de espelhamento entre os personagens principais e os secundários que
são evocados na narrativa, confeccionamos uma tabela onde estão representados os
capítulos, bem como a sua síntese e a quantidade de páginas que eles compreendem em si:

A identidade (1997)
Capítulos pgs.
1 Chantal aproveita o seu dia sem a presença de Jean-Marc no hotel 2,5
2 Sonho de Chantal com o passado 1
3 Visita de Jean-Marc ao amigo no hospital 1,75
4 A falta de lembranças de Jean-Marc sobre F. 1,75
5 Reflexões de Chantal à beira-mar 2,25
6 Jean-Marc procura por Chantal na praia 2,5
7 Chantal vai ao bar esperar por Jean-Marc 1,5
8 A confusão de Jean-Marc por não achar Chantal 1,25
9 A amargura de Chantal após um episódio no bar e volta de Jean-Marc ao hotel 2
10 Ambos almoçam no restaurante do hotel e falam sobre a morte 3,25
11 Chantal pensa no filho morte prematuramente 2
12 Sonho de Jean-Marc: Chantal irreconhecível 1,75
13 Jean-Marc reflete sobre a tristeza de Chantal 1,75
14 Chantal reflete sobre o filho e o impacto de sua morte 2
15 Chantal recebe uma carta 1,5
A morte de F.: Jean Marc conversa com Chantal e reflete sobre o fato da amizade
16 constituir um meio de memória 3,5

97
No original:
Je vois leurs deux têtes, de profil, éclairées par la lumière d’une petite lampe de chevet : la tête de Jean-Marc, la
nuque sur un oreiller ; la tête de Chantal penchée quelque dix centimètres au-dessus de lui.
Elle disait : <<Je ne te lâcherai plus du regard. Je te regarderai sans interruption.>>
Et après une pause : <<J’ai peur quand mon oeil clignote. Peur que pendant cette seconde où mon regard s’èteint
ne se glisse à ta place un serpent, un rat, un autre homme.>>
Il essayait de se soulever un peu pour la toucher de ses lèvres.
Elle hochait la tête : << Non, je veux seulement te regarder.>>
Et puis : << Je vais laisser la lampe allumée toute la nuit. Toutes les nuits.>> (p.206-207)
94

17 Chantal no trabalho/ considerações sobre a morte 3,25


18 Conversa entre Chantal e Jean-Marc sobre o trabalho dela e as diversas faces 2,5
19 Visita de Chantal ao túmulo do filho, monólogo interno sobre a liberdade 0,75
20 Nova carta é recebida por Chantal 1,75
21 Jean-Marc ainda reflete sobre a morte de F. 2,25
22 Jean-Marc fala sobre a tentativa de F. de invocar as lembranças/memórias surgem 1,5
23 Chantal e sua busca por encontrar o remetente das cartas 1,5
24 Novas cartas chegam, a resistência de Chantal é quebrada, erotismo 1,75
25 Pensamentos de Chantal acerca das cartas e de seu remetente/frescor 2
26 Ambos jantam e falam sobre um casal próximo: pensam no amor e na vida a dois 3,25
27 Jean-Marc incita Chantal a pensar em outros homens 3,75
28 Jean-Marc observa as reações de Chantal e reflete sobre a imagem dela 1,25
29 A suspeita de Chantal acerca do remetente continua: o mendigo 3,25
30 Ciúmes de Jean-Marc 2,5
31 A ida de Chantal ao escritório de grafologia 3,5
32 Jean-Marc retoma o momento em que conheceu Chantal 2
33 Reflexões de Jean-Marc sobre Chantal 2,25
34 A visita da cunhada de Chantal 3,25
35 A volta de Chantal ao apartamento e o espanto ao ver a cunhada 4
36 Fúria de Chantal com Jean-Marc pela visita da cunhada 0,5
37 Chantal inacessível/reflexão de Jean-Marc 1,75
38 Chantal conta a Jean-Marc que sabe a autoria das cartas e decide ir à Londres 1,25
39 Jean-Marc se surpreende com o descobrimento de Chantal e parte atrás dela 2
40 Chantal se encaminha para Londres 2,75
Jean-Marc parte para a estação de trem: reconhecimento e desconhecimento de
41 Chantal 2
42 Chantal conversa com seus colegas de escritório 2,75
43 Continuação da conversa com os colegas 2,75
44 Jean- Marc tenta não perder Chantal de vista 2,5
45 Jean-Marc procura Chantal pela rua e não a encontra 1,75
46 Confusão de Chantal e erotismo 2,25
47 Pavor de Chantal diante de uma sensação atípica de desconhecimento 2,25
48 Jean-Marc e o banco da praça, busca por Chantal 1
49 Chantal tenta escapar do sonho e é chamada por outro nome 2,5
50 Chantal é desperta do pesadelo 0,5
51 Reconciliação entre os dois 1

A narrativa, possuidora do total de 51 capítulos, ordena-se em sequências que ora


alternam o enfoque dado entre Chantal e Jean-Marc (38 capítulos), ora enfocam
simultaneamente o casal nas cenas onde aparecem juntos (13 capítulos). Visto que as
identidades do casal são trabalhadas no decorrer do romance, o discurso é entremeado por
muitas referências à memória e a momentos vivenciados pelos dois, algo que nos oferece
diferentes perspectivas sobre a caracterização do perfil de cada um. Por consequência
95

desse caráter memorialístico, a narrativa se caracteriza pela sua escrita no pretérito, tanto
das ações que os personagens sofrem no decorrer dela quanto das memórias e dos sonhos
que são evocados a partir disso.
As várias reflexões realizadas sobre a morte merecem nota, devido o importante
papel desempenhado por ela na criação de memórias; a brevidade da vida oferece um
contraste: podemos observar isso nos momentos em que Jean-Marc pensa em F. e em que
Chantal pensa no filho. As duas mortes lhes alteram a visão de mundo e de si mesmos
enquanto sujeitos e trazem grandes reviravoltas como a separação de um casamento e a
constatação de um eu completamente esquecido/renegado.
As anacronias existentes na ordem dizem respeito à ocorrência de várias analepses
expressas nos sonhos com o passado, nas recordações de momentos do colegial, nas
lembranças dolorosas em relação à morte, no jogo com as possibilidades em torno dos
remetentes das cartas, entre outros. Há um movimento que parte da ação dos personagens
em direção a eventos ocorridos anteriormente, os quais conferem a narrativa uma base de
abordagem muito mais ampla: visto que a identidade é uma narrativa constituída por meio
de inúmeras outras narrativas que se tocam e se somam, se assemelhando a uma celebração
móvel, pautada pela impermanência.98. Eis um exemplo de analepse:

Quando tinha dezesseis, dezessete anos, ela gostava de uma


metáfora; teria sido inventada por ela mesma, ela a teria ouvido, lido?
pouco importa: queria ser um perfume de rosa, um perfume que se
difundisse, que conquistasse, queria atravessar assim todos os homens e,
pelos homens, envolver a terra inteira. Perfume difusor de rosa: metáfora
da aventura. Essa metáfora apareceu no início de sua vida adulta como a
romântica promessa de uma promiscuidade doce, como um convite para
uma viagem através dos homens. Mas, por natureza, não era uma mulher

98
Estamos aqui, de acordo com a perspectiva de Stuart Hall que vê a identidade sobre o prisma de uma
“celebração móvel”, que contraria a visão de uma identidade fixa, centrada em um eu que é por si só completo:
O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se
mais provisório, variável e problemático.
Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou
permanente. A identidade torna-se uma "celebração móvel": formada transformada continuamente em relação às
formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 1987). E
definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos,
identidades que não são unificadas ao redor de um "eu" coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias,
empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente
deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque
construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora "narrativa do eu" (veja Hall, 1990). A
identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que
os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade
desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada unia das quais poderíamos nos identificar — ao
menos temporariamente. (2006, p.12-13)
96

nascida para mudar de amantes, e esse sonho vago, lírico, foi depressa
adormecido durante o casamento, que se anunciava calmo e feliz. (p.32)99

Os efeitos provocados pelas analepses serão semelhantes àqueles provocados


pelos outros personagens em relação a Chantal e a Jean-Marc, pois o eu evocado, ainda
que corresponda ao mesmo ser, é outro do presente da narrativa. Há nisso uma duplicação
de vários eus que se auto visualizam a partir da perspectiva de um espelho. Logo, podemos
afirmar que a ordenação é uma das categorias que nos permitem visualizar o efeito de
espelhamento trabalhado pelo narrador na construção da narrativa.
A duração é também uma categoria importante para a construção dessa narrativa
de identidades, pois nela encontram-se, em operação, partes essenciais que permitem o
desenvolvimento dos personagens principais: as acelerações dos eventos são controladas
pelo domínio das pausas e das cenas. Tal concepção ganha respaldo, sobretudo, ao nos
depararmos com as informações sobre as quantidades de páginas correspondentes a cada
capítulo – ainda que os capítulos contem com poucas páginas (e isso é uma característica
que será observada em todos os três livros aqui estudados), há entre eles uma proporção
que tende ao equilíbrio.
Essa proporção é percebida ao se dividir a narrativa em três partes, contendo o
total de 17 capítulos. Com o intuito de melhor visualizar esse equilíbrio narrativo,
montamos a seguinte tabela que comporta o número de enfoques nos capítulos atribuídos
aos personagens principais, estejam eles juntos ou separados:

NÚMERO DE ENFOQUES
CAPÍTULOS

CASAL CHANTAL JEAN-MARC

1 a 17 4 7 6

99
No original:
Quand elle avait seize, dix-sept ans, elle chérissait une métaphore ; l’avait-elle inventée elle-même, l’avait-elle
entendue, lue ? peu importe : elle voulait être un parfum de rose, un parfum expansiff et conquérant, elle voulait
traverser ainsi toutes les hommes et, par les hommes, embrasser la terre entière. Parfum expansif de rose :
métaphore de l’aventure. Cette métaphore a éclos au seuil de sa vie adulte comme la promesse romantique d’une
douce promiscuité, comme une invitation au voyage à travers les hommes. Mais, de nature, elle n’était pas une
femme née pour changer d’amants, et ce rêve vague, lyrique, s’est vite endormi dans son mariage qui
s’annonçait calme et heureux. (p.54)
97

18 a 34 4 7 6

35 a 51 4 7 6

Com isso, torna-se mais tranquila a apreensão do mecanismo de espelhamento


atingido na narrativa, em virtude do equilíbrio presente na abordagem dos personagens nas
três partes: a primeira se assemelha a segunda, que por sua vez se assemelha a terceira, e
esta se assemelha na primeira. Tal característica demonstra uma organização muito sutil e
bem pensada por parte do narrador.
Uma das cenas mais interessantes encontradas na narrativa diz respeito à visita
realizada pela ex-cunhada e os sobrinhos de Chantal a seu apartamento e abrange desde o
momento em que Jean-Marc se encontra sozinho, perdido em meio aos estranhos que lhe
aparecem, até o momento em que sua esposa chega ao apartamento e os espanta, numa
tentativa de expulsar e negar a presença de seu passado e do controle exercido por ele em
sua vida. Tal cena envolve as nove páginas e meia, relatando e descrevendo as ações, as
reações e os pensamentos dos personagens, além de trazer algumas intromissões do
narrador com questionamentos em torno da situação envolvida.
Outra cena igualmente extensa é aquela na qual Jean-Marc descobre a morte de F.
por meio de uma carta e conversa com Chantal a respeito da dissolução do atrito que
possuía em relação ao amigo. Ambos bebem e o esposo inicia uma reflexão a respeito da
amizade a partir de seu valor e de seu vínculo estreito com a memória e a identidade,
passando por exemplos de amizades na literatura e por considerações utópicas sobre esse
tema. Tudo isso é narrado durante três páginas e meia, sem qualquer interrupção na
narrativa e traz novamente a figura do espelho, representada pela visão da memória.
Em se tratando das pausas presentes na narrativa, constatamos uma presença
muito pequena de intromissões e digressões do narrador, devido ao fato de o enredo
trabalhar mais especificamente com as causas e as consequências dos eventos que o
constituem. Além disso, consideramos como pausa também os momentos em que os
sonhos são retratados, uma vez que o onírico se liga a supressão do tempo e se organiza de
uma forma diferente no discurso.
Um exemplo interessante de pausa diz respeito a uma ação do narrador que, ao
terminar uma cena de humor do casal a respeito das diferentes faces cotidianas, introduz a
98

morte do filho de Chantal, trazendo com isso um elemento dramático que logo após
auxiliará na construção de outro acontecimento.

“Sim entendo”, diz Jean-Marc, encantado. “É a própria vida que


paira acima de Hiroshima na pessoa de um little boy que despeja, sobre as
ruínas, a urina de ouro da esperança. Foi assim que se inaugurou o pós-
guerra.” Ele ergue o copo:
“Brindemos!”
11
Seu filho tinha cinco anos quando ela o enterrou. Mais tarde, na
época das férias, sua cunhada lhe disse: “Você está triste. Precisa ter
outro filho. Só assim vai conseguir esquecer”. A observação da cunhada
apertou seu coração. Criança: existência sem biografia. Sombra que
desaparece rapidamente no seu sucessor. Mas ela não desejava esquecer o
filho. Defendia sua individualidade insubstituível. (p.26)100

Ainda nas considerações dos aspectos de duração, conseguimos observar algumas


utilizações de sumário na narrativa, realizadas pelo narrador a fim de encurtar um espaço
de tempo e concomitantemente resumir um acontecimento importante para o entendimento
da mesma. Os sumários não chegam a possuir uma página do discurso, podendo ser
facilmente identificáveis, e atribuem certa velocidade a ele. Um exemplo de sumário
ocorre na seguinte passagem, onde o narrador resume em poucas linhas o acontecimento de
um dia, prendendo-se apenas ao necessário:

19
No dia seguinte ela foi ao cemitério (como faz pelo menos uma
vez por mês) e parou diante do túmulo do filho. Quando vai lá, sempre
fala com ele e naquele dia, como se sentisse necessidade de se explicar,
de se justificar, disse-lhe, meu querido, meu querido, não pense que não
te amo ou que não te amei, é precisamente porque te amei que não
poderia ter me tornado aquela que sou se você ainda estivesse aqui. É
impossível ter um filho e desprezar o mundo como ele é, pois foi a este
mundo que o destinamos. É por causa do filho que nos prendemos ao
mundo, pensamos no seu futuro, participamos de bom grado de seus
ruídos, de suas agitações, levamos a sério sua estupidez incurável. Com a
sua morte, você me privou do prazer de estar com você, mas ao mesmo
tempo me tornou livre. Livre diante do mundo que não amo. E, se posso
me permitir não amá-lo, é porque você não está mais aqui. Meus
pensamentos sombrios já não podem lhe trazer nenhuma maldição. Quero
100
No original:
- Oui, je vois, dit Jean-Marc, enchanté. C’est la vie même qui plane audessus de Hiroshima en la personne d’un
little boy qui lâche, sur les ruines, l’urine d’or de l’espoir. C’est ainsi que l’époque de l’après-guerre a été
inaugurée.>> Il prend son verre: << Trinquons!>>
11
Son fils avec cinq ans quand elle l’enterra. Plus tard, lors des vacances, as belle-soeur lui dit: <Tu est trop triste.
Il faut que tu aies un autre enfant. Il n’y a remarque de sa belle-soeur lui serra le coeur. Enfant: existence sans
biographie. Ombre qui rapidement s’efface dans son successeur. Mais elle ne désirait pas oublier son enfant.
Elle défendait son individualité irremplaçable. (p.43-44)
99

dizer-lhe agora, tantos anos depois que você me deixou, que compreendi
sua morte como um presente e que acabei aceitando esse terrível
presente.
20
Na manhã seguinte[...] (p.44-45)101

Ainda nos resta tecer algumas considerações sobre o recurso da elipse utilizado na
narrativa: como o tempo da narrativa é impreciso, sendo, portanto quase impossível
estipular com precisão a respeito da sua duração, nota-se a presença de várias elipses dos
tipos explícita e implícita. As referências temporais não nos propiciam uma formação de
uma sequência lógica em relação aos acontecimentos e isso, em parte, ocorre graças ao fato
de que a narrativa é antes focada em retratar um tempo psicológico102 do que em um tempo
físico propriamente dito. Os dias, meses e anos são trazidos em função do pathos suscitado
ou a suscitar, além de serem relatados tendo como principal motivo o desenvolvimento de
novas características à identidade do casal.
Tendo em vista as categorias trabalhadas, concluímos que o seu estudo e a sua
análise nos permitem ver A identidade como uma narrativa identitária que retrata o
espelhamento, correspondente à imagem com a qual a memória aparece no discurso. O
desenvolvimento de sua narração coloca em atividade elementos dispostos na construção e
na organização do texto que reforçam esse olhar para o espelhamento como um efeito,
objeto privilegiado no estudo dessa obra.

101
No original:
19
Le jour suivant elle est allée au cemitière (comme elle le fait au moins une fois par mois) est s’est arrêtée devant
la tombe de son fils. Quand elle est là, elle parle toujours avec luit et ce jour-là, comme si elle avait besoin de
s’expliquer, de se justifier, elle lui dit, mon chéri, mon chéri, ne pense pas que je ne t’aime pas ou que je ne t’ai
pas aimé, mais c’est précisément parce que je t’ai aimé que je n’aurais pu devenir celle que je suis si tu étais
toujours là. Il est impossible d’avoir un enfant et de mépriser le monde tel qu’il est, parce que c’est dans ce
monde que nous l’avons envoyé. C’est à cause de l’enfant que nous nous attachons au monde, pensons à son
avenir, participons volontiers à ses bruits, à ses agitations, prenons au sérieux son incurable bêtise. Par ta mort, tu
m’as privée du plaisir d’être avec toi, mais en même temps tu m’as rendre libre. Libre dans mon face-à-face avec
le monde que je n’aime pas. Et si je peux me permettre de ne pas l’aimer, c’est parce que tu n’es plus lá. Mes
pensées sombres ne peuvent plus t’apporter aucune malédiction. Je veux te dire maintenant, tant d’années après
que tu m’as quittée, que j’ai compris ta mort comme un cadeau et que j’ai fini par l’accepter, ce terrible cadeau.
20
Le lendemain matin[...]
102
Assumimos como tempo psicológico aquele tempo no qual a contagem dos eventos se dá antes pelas emoções
suscitadas, do que pela sequência das ações desempenhadas. É um tempo antes interno do que externo e diz
respeito à apreensão dos eventos pela consciência e pela reação que eles nos suscitam.
100

3.3 A memória como repetição

Dentre as diversas formas de se retratar o exílio em uma narrativa, muitas delas se


utilizam do confronto gerado por uma tensão entre o passado e o presente e tendem a
construir a imagem de um passado, por muitas vezes, idílico. Em A ignorância, a
experiência de exílio vivida pelos personagens Irena e Gustaf é trazida pelo viés da
nostalgia, sentimento agridoce que traz consigo a ambiguidade entre estar e não estar
presente entre os seus. Com isso, a questão do pertencimento é colocada em alvo de
discussão: pertencimento a que? De quem?
A história é contada por um narrador onisciente que cumpre a função de operar
com as informações sobre os personagens principais e desenvolver as ações
desempenhadas por eles ora com distância, ora com aproximação. Exemplos não faltam a
respeito dessas duas abordagens, contudo podemos mencionar com mais relevância os
seguintes momentos: quando a narrativa se inicia e a personagem de Irena é introduzida, a
partir da conversa tida por ela e sua amiga francesa Sylvie, observamos uma focalização
externa, pois se trata de uma visão com distância em relação à personagem a qual a
narrativa se dedica durante as próximas páginas.

“O que é que você ainda está fazendo aqui!” Sua voz não era
maldosa, mas também não era gentil; Sylvie estava irritada.
“E onde deveria estar?”, perguntou Irena.
“Na sua casa!”
Claro, não queria expulsá-la da França, nem fazer com que
pensasse que era uma estrangeira indesejável: “Você sabe o que estou
querendo dizer!”.
“Sim, sei, mas você se esquece de que é aqui que tenho meu
trabalho? Meu apartamento? Meus filhos?”
“Escute, conheço Gustaf. Ele cuidará de tudo para que você possa
voltar para a sua terra. Quanto a suas filhas, não me venha com
brincadeiras! Elas já têm a vida delas! Meu Deus, Irena, o que está
acontecendo no seu país é tão fascinante! Numa situação dessas as coisas
sempre se arranjam.”
“Mas, Sylvie! Não são só os aspectos práticos, o trabalho, o
apartamento. Eu vivo aqui há vinte anos. Minha vida é aqui!”
“Houve uma revolução na sua terra!” Disse isso num tom que não
admitia contestação. Depois ficou calada. Com esse silêncio, queria dizer
a Irena que, quando grandes coisas acontecem não se deve desertar.
“Mas, se eu voltar para meu país, não nos veremos mais”, disse
Irena, para desconcertar a amiga. (p.7)103

103
No original:
<<Qu’est-ce que tu faires encore ici!>> As voix n’était pas méchante, mais elle n’était pas gentille non plus;
Sylvie se fâchait.
<<Et où devrais-je être ? demanda Irena .
101

Além disso, quando Irena recebe a visita de sua mãe durante os anos de exílio e
ambas vão a um museu para conhecer uma exposição de arte, observamos a predominância
de uma focalização interna, que diz respeito aos questionamentos e indagações realizadas
pela imigrante frente ao desinteresse de sua mãe a respeito de sua nova vida e da cultura
francesa: o encontro se torna um embate entre uma tentativa de mostrar o presente, em face
da necessidade de se falar de um passado. Isso ocorre no seguinte fragmento:

No entanto, com o passar do tempo, a severidade do opróbrio


diminuía e, pouco antes de 1989, a mãe de Irena, uma inofensiva
aposentada que enviuvara havia pouco, obteve junto a uma agência de
viagens do Estado um visto para passar uma semana na Itália; no ano
seguinte, decidiu ficar cinco dias em Paris para secretamente visitar a
filha. Comovida, cheia de compaixão por uma mãe que julgava velha,
Irena reservou-lhe um quarto de hotel e sacrificou parte de suas férias
para poder ficar o tempo todo com ela.
“Você não está com a aparência tão má”, disse-lhe a mãe quando
se encontraram. Depois, rindo, acrescentou: “Aliás, eu também não.
Quando, na fronteira, o policial olhou meu passaporte, disse: é um
passaporte falso, madame! Esta não é a sua data de nascimento!”. De
repente, Irena reencontrou a mãe como sempre a conhecera e teve a
sensação de que nada havia mudado nesses quase vinte anos. A
compaixão por uma mãe envelhecida evaporou-se. Filha e mãe se
encararam como dois seres fora de tempo, como duas essências
atemporais.
Mas não seria execrável se uma filha não se alegrasse com a
presença de uma mãe que, depois de dezessete anos, vinha visita-la? Irena
mobilizou toda a sua razão, todo o seu senso para comportar-se como
filha dedicada. [...] Para compensar a ausência de Van Gogh, Irena
ofereceu-lhe o Museu Rodin. Diante de uma das esculturas, a mãe
suspirou, sonhadora: “Em Florença, vi o Davi de Michelangelo! Fiquei
sem voz!”. “Escuta”, explodiu Irena, “você está em Paris comigo, estou
lhe ostrando Rodin. Rodin! Está entendendo, Rodin! Você nunca o viu
antes, por que então, diante de Rodin, você fica pensando em
Michelangelo?”
A pergunta era justa: por que a mãe, ao reencontrar sua filha
depois de tantos anos, não se interessa pelo que ela mostra, pelo que ela

- Chez toi !
- Tu veux dire qu’ici je ne suis plus chez moi ?>>
Bien sûr, elle ne voulait pas la chasser de France, ni lui donner à penser qu’elle était une étrangère indésirable :
<<Tu sais ce que je veux dire !
- Oui, je le sais, mais est-ce que tu oublies que j’ai ici mon travail ? mon appartement ? mes enfants ?
- Écoute, je connais Gustaf. Il fera tout pour que tu puisses rentre dans ton pays. Et tes filles, ne me raconte pas
de blagues ! Elles ont déjà leur propre vie ! Mon Dieu, Irena, ce qui se passe chez voous est tellement fascinant !
Dans une situation pareille les choses s’arrangent toujours.
- Mais Sylvie ! Il n’y a pas que les choses pratiques, l’emploi, l’appartement. Je vis ici depuis vingt ans. Ma vie
est ici !
- C’est la révolution chez vous !>> Elle dit sur un ton qui ne supportait pas la contestation. Puis elle se tut. Par ce
silence, elle voulait dire à Irena qu’il ne faut pas déserter quand des grandes choses se passent.
<< Mais si je rentre dans mon pays, nous ne nous verrons plus>>, dit Irena, pour mettre son amie dans
l’embarras. (p.9-10)
102

diz? Por que Michelangelo, que ela viu com um grupo de turistas tchecos,
a encanta mais do que Rodin? E por quê, durante esses cinco dias, não lhe
faz nenhuma pergunta? Nenhuma pergunta sobre sua vida, e tampouco
sobre a França, sobre sua culinária, sua literatura, seus queijos e seus
vinhos [...] (p.16-17)104

O narrador opera no nível extradiegético, situando-se fora da ação por ele


relatada, e isso ganha respaldo justamente pelo fato dele conseguir realizar as alternâncias
entre as focalizações com bastante liberdade. Além disso, ele se caracteriza como
heterodiegético, uma vez que não participa diretamente das ações, cabendo a ele o papel de
dispor os personagens em cena e de realizar, por vezes, uma intervenção de forma mais
explícita na narrativa, por meio das reflexões dos personagens ou de relatos que surjam a
fim de integrar alguma ação. Com o intuito de exemplificar melhor essas características na
narrativa, temos as passagens nas quais o narrador intervém por meio de suas reflexões
sobre a memória e sobre a imprecisão do futuro, a fim de justificar os acontecimentos a
elas relacionados. Podemos observar isso no seguinte trecho:

Ela foi tomada pelo mesmo pânico de outros tempos, em seus


sonhos de exílio: pela força magnética de um vestido, ela se via presa
numa vida que não queria e da qual não seria capaz de se libertar. Como
se, no começo de sua vida adulta, ela tivesse tido diversas vidas possíveis
entre as quais acabara por escolher aquela que a havia levado para a
França. E como se essas outras vidas, recusadas e abandonadas,
continuassem sempre à sua disposição e enciumadas a espiassem de seus
refúgios. Uma delas se apoderava agora de Irena e a encerrava em seu
novo vestido como se fosse uma camisa de força.

104
No original:
Pourtant, à mesure que le temps se passait, la sévérité de l’anathème s’affaiblissait et, quelques années avant
1989, la mère d’Irena, veuve toute récente, retraitée inoffensive, obtint son visa pour passer, avec une agence de
voyages d’État, une semaine en Italie ; l’année suivante, elle décida de rester cinq jours à Paris et de voir
secrètement sa fille. Émue, pleine de pitié pour une mère qu’elle imaginanit vieille, Irena lui réserva une
chambre à l’hôtel et sacrifia un bout de ses vacances pour pouvoir être tout le temps avec elle.
<<Tu n’as pas l’air si mal>>, lui dit la mère quand elles se virent. Puis, en riant, elle ajouta : << Moi non plus,
d’ailleurs. Quand le policier à la frontière a regardé mon passeport, il m’a dit : c’est un faux passeport, madame !
ce n’est pas votre date de naissance !>> D’emblée, Irena retrouva sa mère telle qu’elle l’avait toujours connue et
eut le sentiment que rien n’avait changé après ces presque vingt ans. La pitié pour une mère vieille s’évapora. La
fille et la mère se firent face comme deux êtres hors du temps, comme deux essences intemporelles.
Mais n’est-ce pas très mal qu’une fille ne se réjouisse pas de la présence de sa mère qui, après dix-sept ans, est
venue la voir ? Irena mobilisa toute sa raison, tout son sens moral, pour se comporter en fille dévouée. [...]
Au lieu de Van Gogh, Irena lui offrit le musée Rodin. Devant l’une de ses statues, la mère soupira, rêveuse: <<
À Florence, j’ai vu le David de Michel-Ange! Je suis restée sans voix ! – Écoute, explosa Irena, tu es à Paris
avec moi, je te montre Rodin, Rodin! Tu entends, Rodin ! Tu ne l’as jamais vu, pourquoi donc, devant Rodin,
penses-tu à Michel-Ange ?>>
La question était juste : pourquoi la mère, quand elle retrouve sa fille après des années, ne s’intéresse-t-elle pas à
ce que celle-ci lui montre et lui dit ? Pourquoi Michel-Ange, qu’elle a vu avec un groupe de touristes tchèques, la
captive-t-il plus que Rodin ? Et pourquoi, tout au long de ces cinq jours, ne lui pose-t-elle aucune question ?
Aucune question sur sa vie, et aucune non plus sur la France, sur sa cuisine, sa littérature, ses froame, ses vins
[...] (p.23-24)
103

Assustada, correu para a casa de Gustaf (sua empresa comprara


uma casa no centro de Praga, em suja mansarda ele tinha um pequeno
apartamento) e trocou de roupa. Mais uma vez com seu tailleur de
inverno, olhou pela janela. O céu estava coberto e as árvores balançavam
com o vento. Havia feito calor apenas durante algumas horas. Algumas
horas de calor suficientes para provocar nela um pesadelo, lembrar-lhe o
horror do retorno.
(Seria um sonho? Seu último sonho de exílio? Mas não, tudo
aquilo era real. No entanto, teve a impressão de que as armadilhas a que
esses sonhos de outrora se referiam não haviam desaparecido, que
continuavam ali, sempre de prontidão, aguardando passagem.)
9
Durante os vinte anos de sua ausência, os habitantes de Ítaca
guardavam muitas lembranças de Ulisses mas não sentiam por ele
nenhuma nostalgia. Enquanto Ulisses sofria de nostalgia e não se
lembrava de quase nada. (p.24-25)105

Esse excerto é interessante, pois nos oferece uma visão bem clara dos dois níveis
de interferência na narrativa realizados pelo narrador: o primeiro que corresponde a uma
forma mais sutil, onde os questionamentos dele se entremeiam com os de Irena, uma vez
que não é possível estabelecer em que ponto essas indagações entre parênteses são
provenientes dela ou de quem a narra; e o segundo correspondente a inserção da história de
Ulisses, no capítulo seguinte, a fim de continuar a tematização do retorno e, com ele, da
nostalgia vivenciada tanto por Ulisses quanto por Irena, conforme veremos ao longo da
narrativa.
O desenvolvimento dos personagens será um dos meios principais para a
observação da memória como um esforço de repetição, uma imagem a ser montada ao
longo da narrativa. É necessário que o passado de Irena reapareça por meio das mais
diversas lembranças, com maior intensidade, para que consigamos compreender quem é
ela e por quais acontecimentos ela passou até o momento de seu retorno e adaptação; assim
105
No original:
Elle fut saisie de la même panique qu’autrefois dans ses rêves d’émigration : par la force magique d’une robe,
elle se voyait emprisionnée dans une ie dont elle ne voulait pas et dont elle ne serait plus capable de sortir.
Comme si, jadis, au début de sa vie adulte, elle avait eu devant elle plusieurs vies possibles parmi lesquelles elle
avait fini par choisir celle qui l’avait amenée en France. Et comme si ces autres vies, refusées et abandonnées,
restaient toujours prêtes pour elle et la guettaient jalousement depuis leurs abris. L’une d’elles s’emparait
maintenant Irena et l’enserrait dans sa nouvelle robe comme dans une camisole de force.
Effrayée, elle courut ches Gustaf (il avait un pied-à-terre dans le centre-ville) et se changea. De nouveau dans
son tailleur d’hiver, elle regarda par la fenêtre. Le ciel était couvert et les arbres fléchissaient sous le vent. Il
n’avait fait chaud que quelques heures. Quelques heures de chaleur pour lui jouer un tour de cauchemar, pous lui
parler de l’horreur du retour.
(Était-ce un rêve ? Son dernier rêve d’émigration ? Mais non, tout cela était réel. Toutefois, elle eut l’impression
que les pièges dont ces rêves d’autrefois lui avaient parlé n’avaient pas disparu qu’ils étaient toujours là, toujours
prêts, guettant son passage.)
9
Pendant les vingt aans de son absence, les Itchaquois gardaient beaucoup de souvenirs d’Ulysse, mais ne
ressentaient pour lui aucune nostalgie. Tandis qu’Ulysse souffrait de nostalgie et ne se souvenait de presque-rien.
(p35-36)
104

como é necessário o conhecimento do passado de Josef, desde antes da sua situação de


exílio, passando pela sua duração e a sua vida na Dinamarca, até o momento em que o
retorno é realizado e lhe causa estranhamento.
Há um embate entre as várias versões de si, que se apresentam e se acumulam de
acordo com o surgimento das memórias de ambos os personagens: visto que a volta ao país
representa a volta ao passado, nada mais comum do que a consequência ser o surgimento
de diferentes visões de si, provenientes desse embate suscitado pela reinserção a casa.
Contudo, a narrativa nos mostra que até mesmo o sentido de pertencimento ao local se
torna relativo, pois conforme a mudança e a adaptação dos personagens, o ambiente
familiar, que a princípio representaria acolhimento e segurança, passa a significar um local
inóspito, com poucas chances de vínculo.
Nesse sentido, visualizamos ao longo do romance a construção das narrativas de
identidade de Irena e Josef em constante desenvolvimento sendo contrastadas com as
narrativas já pré-concebidas de outros personagens a respeito dos exilados. Essa última
narrativa é responsável inclusive pelo sentimento de amputação que os personagens
principais sentem em relação a sua história e ao fato de não poderem contar sobre si à custa
do desinteresse de todos e da imposição – efeito de um esforço de repetição – dos seus eus
de antes do exílio. Observamos tal tensão no seguinte trecho dedicado à personagem Irena:

As outras mulheres a sufocam quando com perguntas: “Irena,


você se lembra quando...”. E: “Sabe o que aconteceu quando...?”. “Mas
não, com certeza você deve se lembrar dele!” “Aquele sujeito de orelhas
grandes, você sempre caçoou dele!” “Mas você não pode ter se esquecido
dele! Ele só fala de você!”
Até então não se interessavam por aquilo que ela tentava lhes
contar. O que significa essa ofensa súbita? O que querem saber aquelas
mulheres que nada querem ouvir? Compreende rapidamente que as
perguntas dela são especiais: perguntas para saber se ela conhece aquilo
que elas conhecem, se se lembra daquilo que se lembram. Isso lhe dá uma
estranha impressão que não a deixará mais:
Primeiro, pelo total desinteresse por aquilo que ela vivera no
estrangeiro, elas a amputaram de uns vinte anos de sua vida. Agora, com
o interrogatório, tentam remendar seu antigo passado com sua vida
presente. Como se lhe amputassem o antebraço e fixassem a mão
diretamente no cotovelo, como se lhe amputassem a barriga da perna e
emendassem os pés nos joelhos. (p.31-32)106

106
No original:
Les autres femmes l’assaillent de questions : <<Irena, tu te rappelles quand...>> Et : <<Tu sais que ci s’est passé
alors avec... ?>> <<Mais non, quand même tu dois te souvenir de lui !>> << Ce mec avec de grandes oreilles, tu
t’es toujours moquée de lui !>> <<Mais tu ne peux pas l’avoir oublié ! Il ne parle que de toi !>>
Jusqu’alors elles ne s’intéressaient pas à ce qu’elle tentait de leur raconter. Que signifie cette offensive
soudaine ? Que veulent apprendre celles qui n’ont rien voulu entendre ? Elle comprend vite que leurs questions
105

Josef vivencia semelhante situação em seu retorno, no entanto, o sentimento de


indignação se aprofunda, pois a parte que lhe é amputada é irrecuperável: trata-se da
esposa morta há poucos meses e que é ignorada, relegada ao esquecimento, por parte de
seu irmão e sua cunhada. Enquanto se encontrava exilado, sua casa correspondia ao local
de sua natalidade, porém com o exílio, sua esposa automaticamente se transforma na
principal referência e significação a respeito da concepção de lar. E para que ela se
mantenha nele, é mister a sua representificação, algo completamente difícil devido a
amputação imposta a ele.

“De noite já estarei em casa.”


“Quando você diz casa, quer dizer...”
“Na Dinamarca.”
“É tão estranho ouvir você dizer isso. O seu ‘em casa”, portanto,
não é mais aqui?”, perguntou a mulher de N.
“Não. É lá.”
Houve um longo momento de silêncio e Josef ficou esperando as
perguntas: Se a Dinamarca é portanto sua casa, como é sua vida lá, e com
quem você vive? Conta! Como é sua casa? Quem é sua mulher? Você é
feliz? Conta! Conta!
Mas nem N. nem sua mulher fizeram tais perguntas. Durante um
segundo, uma entrada baixa de madeira e um pinheiro apareceram na
frente de Josef.
“Preciso ir”, ele disse, e todos se dirigiram para a escada.
Enquanto subiram ficaram calados e, nesse silêncio, Josef sentiu de
repente a ausência de sua mulher; não havia ali nenhum traço de sua
existência. Durante os três dias que passara naquele país, ninguém dissera
uma só palavra sobre ela. Compreendeu: se ficasse ali, a perderia. Se
ficasse ali, ela desapareceria. (p.102-103)107

sont spéciales : des questions pour contrôler si elle connaît ce qu’elles connaissent, si elle se souvient de ce dont
elles se souviennent. Cela lui fait une ètrange impression qui ne la quittera plus.
D’abord, par leur désintérêt total envers ce qu’elle a vécu à l’étranger, elles l’ont amputée d’une vingtaine
d’années de vie. Maintenant, par cet interrogatoire, elles essaient de recoudre son passé ancien et sa vie présente.
Comme si elles l’amputaient de son avant-bras et fixaient en la main directement au coude ; comme si elles
l’amputaient des mollets et joignaient ses pieds aux genoux. (p.44-45)
107
No original:
- Ce soir je serai déjà chez moi.
-Quand tu dis chez moi, tu veux dire...
- Au Danemark.
- C’est si étrange de t’entendre dire cela. Ton chez-toi, donc, ce n’est plus ici ? demanda la femme de N.
- Non. C’est là-bas.
Il y eut un long moment de silence et Josef s’attendit à des questions : si le Danemark est vraiment ton chez-toi,
comment est-ce que tu vis là-bas ? Et avec qui ? Raconte ! Comment est ta Maison? Qui est ta femme? Es-tu
heureux? Raconte! Raconte!
Mais ni N. ni sa femme ne prononcèrent aucune de ces questions. Pendant une seconde, une clôture basse en bois
et un sapin apparurent devant Josef.
<<Il faut que je m’en aille>>, dit-il, et ils se dirigèrent tous vers l’escalier. En montant, ils se taisaient et, dans ce
silence, Josef fut soudain frappé par l’absence de sa femme ; il n’y avait pas ici une seule trace de son être.
Pendant les trois jours passés dans ce pays, personne n’avait dit un seul mot à son sujet. Il comprit : s’il restait
ici, il la perdrait. S’il restait ici, elle disparaîtrait. (p.148-149)
106

A identidade de ambos que já era afetada no momento do afastamento de Praga se


torna ainda mais afetada na volta, pois eles sentem o descontrole e a impotência em relação
ao relato de suas vidas. Há uma estreita relação entre a narrativa e a experiência humana
que possibilita a criação de um relato de si, a criação de uma identidade. Conforme Arfuch
(2010),

[...]falar do relato, então, dessa perspectiva, não remete apenas a


uma disposição de acontecimentos - históricos ou ficcionais – numa
ordem sequencial, a uma exercitação mimética daquilo que constituiria
primariamente o registro da ação humana, com suas lógicas, personagens,
tensões e alternativas, mas à forma por excelência de estruturação da
vida e, consequentemente, da identidade, á hipótese de que existe, entre a
atividade de contar uma história e o caráter temporal da experiência
humana, uma correlação que não é puramente acidental, mas que
apresenta uma forma de necessidade “transcultural”. (p.112)

Com isso, a necessidade de tanto Irena quanto Josef quererem contar, àqueles que
habitavam o seu passado antes do exílio, sobre os anos de exílio é a necessidade de
construção de um discurso autobiográfico, uma narrativa identitária e, sobretudo, uma
narrativa feita através da relação com o outro. A impossibilidade do relato é a
impossibilidade da estruturação de uma identidade, de modo que o não contar implica para
eles em um não ser, o principal motivo da angústia e da indignação. O retorno é amargo,
porque com ele vem a supressão da experiência de vida de ambos e, como consequência,
se tem a incompletude na busca da identidade.
Ricoeur já orientava as suas discussões para essa ligação entre história e ficção na
construção da identidade, seja por meio dos conceitos de ipseidade (identidade-ipse,
manutenção de si pela recusa da mudança) e mesmidade (identidade-idem, conceito de
relação entre diferentes critérios de permanência)108 presente em O si mesmo como um
outro, seja por meio da explicação do que vem a ser a identidade narrativa, em Tempo e
Narrativa - tomo III: “a história narrada diz o quem da ação. A identidade do quem é
apenas, portanto, uma identidade narrativa” (1997, p.424) . Com isso, através da
construção da narrativa de si, o sujeito se torna, ao mesmo tempo, autor e leitor de sua
vida. Ricoeur (1997) ainda completa:

108
Tanto os conceitos de ipseidade e mesmidade em parênteses foram retirados do artigo “Mesmidade, ipseidade
e vontade: as aporias da noção Ricoeuriana de subjetividade”, de autoria de João B. Bolton, pesquisador em
Filosofia da UFMG, publicada na revista Impulso.
107

A noção de identidade narrativa mostra ainda a sua fecundidade


no fato de que ela se aplica tanto à comunidade quanto ao indivíduo.
Podemos falar de ipseidade de uma comunidade, como acabamos de falar
da de um sujeito individual: indivíduo e comunidade constituem-se em
sua identidade ao receberem tais narrativas, que se tornaram para um e
outro sua história efetiva. (p.425)

É por meio do relato que os personagens de Irena e Josef atribuem significação a


sua vida, transformando as suas memórias na sua história pessoal e, a partir disso, criando
a sua identidade. A vida passa a ganhar contorno através da escrita e a identidade passa a
ser vista, nesse caso, como uma prática da narração. O falar de si no discurso narrativo será
aquele capaz de unir todos os laços de restos do passado e mostrar, tanto para os outros
quanto para eles mesmos, quem eles são ou quem eles se tornaram.
Uma consequência decorrente disso é a percepção de um eco – efeito de repetição
por excelência, originado a partir do pensamento de que o narrador desenvolve uma
narrativa onde os personagens vivenciam as dificuldades na construção de si como
narrativa. Além disso, os outros personagens também merecem nota, justamente pelo fato
de serem trazidos pelo narrador a fim de servir como os portadores da memória dos
personagens principais, oferecendo uma visão sobre eles de forma distante e limitada. É o
familiar que se torna estranho.
Com o intuito de tornar a abordagem dos personagens mais visível e também de
poder demonstrar o quanto a ordenação e a duração cumprem um papel importante na
percepção do efeito de espelhamento entre os personagens principais e os secundários que
são evocados na narrativa, confeccionamos uma tabela onde estão representados os
capítulos, bem como a sua síntese e a quantidade de páginas que eles compreendem em si:

A ignorância (2000)
capítulos pgs.
1 Sylvie e Irena falam sobre o retorno 1,5
2 Reflexão do narrador sobre a nostalgia e o retorno/ Ulisses 3
3 Sobre Skacel e os tchecos, a duração do tempo 3,25
4 Os sonhos de exílio de Irena e de Martin 1,5
5 Irena e a visita da mãe durante o exílio 2,75
6 Pós visita da mãe e conversa entre entre Irena e Gustaf sobre Praga 2,75
7 O encontro de Gustaf com Irena e Martin 2
8 O retorno de Irena 2
9 Odisseia e o retorno amargo de Ulisses 1,25
10 Irena procura se encontrar com antigas amigas 2,5
11 O reencontro de Irena e Milada, o único toque de afeição/amputamento 4
12 O encontro de Irena com alguém do passado 2
108

13 A narrativa de Josef é trazida: retorno e constatação de não pertencimento 1,75


14 Josef chega ao hotel e liga para o irmão 2,5
15 A primeira vista de Josef e o irmão após 20 anos 0,5
16 Cumprimentos e cordialidades entre os irmãos, chegada da cunhada 2
17 Josef revê o antigo apartamento 2,25
18 O almoço e a tensão: recordações 2,75
19 O quadro simbólico 1,75
20 O pacote de lembranças é dado a Josef por seu irmão 1,75
21 Josef e suas reflexões sobre a memória 1,5
22 Reflexões do autor sobre a nostalgia 2,75
23 Sobre a banalidade do diário de Josef e o uso dele como imagem do passado 1,5
24 Revolta de Josef com o passado mostrado no diário 2
25 Irena liga para Josef 3,5
26 A influência do retorno na dinâmica de Irena e Josef 3,25
27 Irena relembra o inicio de seu relacionamento com Gustaf 2
28 Irena reflete sobre sua vontade de grandeza a partir dos relacionamentos tidos 1,75
29 A tentativa falha de morte feita por Irena 2,5
30 O incomodo de Josef pela amputação de sua mulher, recém morta 1
31 Reflexão de Josef sobre a morte da mulher e seu pertencimento 2
32 As tensões provocadas a partir da morte da mulher entre Josef e a família dela 2
33 A amargura da experiência de quase morte de Irena 2
34 Reflexões do narrador sobre a duração 1,25
35 Reflexões sobre a memória e a duração, os testemunhos do passado 2,75
36 A morte da esposa de Josef e a morte de Martin: aproximações necessárias 3,25
37 Irena anda pelas ruas e admira Praga 3,25
38 Josef sai às ruas e admira a Boêmia 2,5
39 Reflexão do narrador sobre a duração 2,25
40 Os primeiros anos de Irena na França 1,5
41 A visita de Josef ao amigo N.: falam sobre o passado e o presente 4,25
42 N. e Josef conversam em tcheco 2,25
43 Milada e Irena se encontram e relembram o passado 3,75
44 Irena e Josef se encontram e falam sobre as experiências 2,75
45 Josef evita o encontro com a filha de sua primeira mulher 2
46 Irena almoça sozinha e pensa a respeito de sua mudança 1,75
47 Irena no apartamento de Josef: Odisseia e erotismo 3
48 Gustaf e a mãe de Irena fazem sexo 1,75
49 Josef revela a Irena que a desconhece 2,25
50 Gustaf e a mãe de Irena: a liberdade tardia 2
51 Irena se entristece com o desconhecimento de Josef 0,75
52 Milada reflete sobre sua vontade de outra vida 1
53 Josef parte para a Dinamarca e deixa Irena dormindo 1
109

A ordem dos acontecimentos narrados merece comentários, devido a sua


constituição se dar pela tensão de dois tempos distintos acerca da vida dos personagens
principais. Sendo assim, ao longo da narrativa percebemos diversas ocorrências de
analepses, surgidas por meio do avivamento das memórias dos exilados: seja em uma
retratação advinda de um contexto comunicativo, seja em uma retratação advinda de um
objeto externo, portador das lembranças. Como consequência disso, a narração é realizada
utilizando o emprego do pretérito: há poucas menções a um presente ou a acontecimentos
que passem a impressão de estarem situados em um presente. O que implica dizer que a
narrativa mais relata situações derivadas de uma percepção psicológica do que
acontecimentos ancorados numa abordagem aproximada do tempo físico.
Há um equilíbrio que pode ser observado quando olhamos com mais cautela em
relação à quantidade de remissões ao passado na narrativa: dos 53 capítulos que a
constituem, 21 deles são construídos a partir de um desenvolvimento tendo em base
alguma representação da memória; enquanto 23 deles correspondem a uma ação
propriamente dita, 5 deles correspondem a alguma reflexão do narrador e 2 deles
correspondem à representação tanto da memória quanto de uma ação da história de Irena e
Josef. Essa presença massiva de um olhar voltado ao período pré-exílio, abordado
massivamente pelas pessoas ao redor dos personagens principais, bem como ao período do
exílio por parte dos exilados, é responsável por criar um efeito proveniente de um esforço
de repetição. Recorda-se para que não se esqueça.
Um exemplo das inúmeras analepses utilizadas pelo narrador a fim de evocar o
passado de Josef, além de representar uma face de seu eu anterior, diz respeito ao seguinte
trecho no qual ele se depara com um quadro de valor aparentemente simbólico (o pintor
havia lhe feito uma dedicatória), mas que fora deixado com o irmão devido à rapidez com
que se deu o processo do exílio.

Levaram-no ao apartamento para mostrar as mudanças que


haviam sido feitas depois de sua partida. Na sala ele viu um quadro que
tinha sido seu. Depois de ter decidido deixar o país, foi obrigado a agir
rápido. Morava então numa outra cidade do interior e, forçado a guardar
segredo de sua intenção de exilar-se, não podia se trair, distribuindo seus
bens entre amigos. Na véspera de sua partida, colocara as chaves num
envelope e as enviara para o irmão. Depois telefonou do exterior pedindo
que apanhasse no apartamento o que lhe interessasse antes que o Estado
confiscasse tudo. Mais tarde, instalado na Dinamarca, feliz por começar
uma vida nova, não teve a menor vontade de tentar saber o que o irmão
tinha conseguido salvar e o que tinha feito com as coisas. (p.42)109

109
No original:
110

Além da sequência, a duração dos acontecimentos também contribui para a visão


da narrativa como uma repetição incessante; essa afirmação é feita tendo em vista a
observação da presença das categorias de pausa, cena, elipse e sumário, bem como da
função que elas parecem exercer na organização do discurso. Cada momento em que o
narrador tece considerações acerca da memória e de seu papel na compreensão da equação
desproporcional entre o tempo de vida e o tempo vivido constitui uma pausa, assim como
toda vez em que ele interrompe a narrativa para retomar o exemplo de Ulisses na Odisseia
a fim de exemplificar a nostalgia. A utilização desse recurso é importante, pois gera um
efeito de bloqueio, ainda que por instantes, no contraste entre passado e presente
desenvolvido na narrativa.
O terceiro capítulo do romance é um exemplo dessa ocorrência, uma vez que a
pausa é introduzida logo após o diálogo entre Irena e Sylvie e as reflexões realizadas pelo
narrador sobre a palavra retorno, tendo início a partir dos vários significados evocados por
ela e da associação com a narrativa de Ulisses.

Calipso, ah, Calipso! Penso muito nela. Ela amou Ulisses.


Viveram juntos durante sete anos. Não se sabe por quantos anos Ulisses
compartilhou o leito de Penélope, mas com certeza não foi por tanto
tempo. No entanto, exaltamos a dor de Penélope e desprezamos o choro
de Calipso.
3
Como golpes de machado, as grandes datas marcam o século xx
europeu com cortes profundos. A Primeira Guerra, de 1914, a Segunda,
depois a terceira, a mais longa, chamada Guerra Fria, que terminou em
1989 com o desaparecimento do comunismo. Além dessas grandes datas
que concernem a toda a Europa, outras datas de importância secundária
determinam os destinos de alguns países: o ano de 1936, da guerra civil
espanhola; o ano de 1956, da invasão russa na Hungria; o ano de 1948,
quando os iugoslavos se revoltaram contra Stalin, e o ano de 1991,
quando todos começaram a se matar entre si. (p.11)110

Ils le conduisirent à travers l’appartement pour lui montrer les changements survenus après son départ. Dans une
pièce il vit un tableau qui lui avait appartenu. Après s’être décidé à quitter le pays, il avait dû agir vite. Il habitait
alors une autre ville de province et, obligé de tenir secrète son intention d’émigrer, il ne pouvait pas se trahir en
distribuant ses biens à ses amis. La veille de son départ, il avait mis clés dans une enveloppe et les avait
envoyées à son frère. Puis il lui avait téléphoné de l’étranger et l’avait prié de prendre dans l’appartement tout ce
qui lui convenait avant que l’État ne le confisque. Plus tard, installé au Danemark, heureux de commencer une
nouvelle vie, il n’avait pas eu la moindre envie d’essayer de savoir ce que son frère avait réussi à sauver et ce
qu’il en avait fait. (p.60-61)
110
No original :
Calypso, ah Calypso ! Je pense souvent à elle. Elle a aimé Ulysse. Ils ont vécu ensemble sept ans durant. On ne
sait pas pendant de combien de temps Ulysse avait partagé le lit de Pénélope, mais certainement pas aussi
longtemps. Pourtant on exalte la douleur de Pénélope et on se moque des pleurs de Calypso.
3
Tels des coups de hache, les grandes dates marquent le xx° siècle européen de profondes entailles. La première
guerre de 1914, la deuxième, puis la troisième, la plus longue, dite froide, qui se termine en 1989 avec la
111

Por se tratar de uma narrativa que opera com o resgate de lembranças e das
reações ocasionadas desse surgimento, as cenas aparecem em menor proporção, por meio
de uma duração menor no discurso. É interessante entender que o foco central da narrativa
privilegia mais as reflexões e os pensamentos acerca dos personagens do que suas ações no
período de tempo abordado; por isso mesmo há a ocorrência de repetições, que servem
como desdobramentos realizados fora da linha do tempo, suspensões dos acontecimentos.
Um exemplo de uma cena ocorre quando Irena se encontra com as antigas amigas e
procura reestabelecer o antigo sentimento de amizade para com elas.
Tal laço é rompido a partir do momento em que ela percebe nas amigas o
desinteresse pela sua trajetória fora do país e a tentativa de imposição de um passado do
qual não compartilhava. Nesse momento, o narrador descreve a cena detalhadamente,
quase se ausentando da narração, dando espaço às falas dos personagens envolvidos e de
suas ações:

Conversam há bastante tempo num canto da sala quando as


outras se aproximam e as cercam. Como se se censurassem por não dar
atenção suficiente a sua anfitriã, mostram-se falantes (a embriaguez da
cerveja é mais ruidosa e mais bonachona que do que a do vinho) e
afetuosas. A mulher que, desde o começo da reunião, pedia cerveja
reclama: “Preciso afinal experimentar o seu vinho!”, e chama o garçom,
que abre outras garrafas e enche os copos.
Irena é tomada por uma súbita visão: com canecas de cerveja na
mão e rindo ruidosamente, um grupo de mulheres se dirige até ela, que
distingue palavras tchecas e compreende, aterrorizada, que não está na
França, que está em Praga e que está perdida. Ah, sim, um de seus velhos
sonhos de exilada, cuja lembrança ela afasta rapidamente; as mulheres à
sua volta, aliás, não bebem mais cerveja, elas erguem seus copos de vinho
e brindam mais uma vez à filha pródiga; em seguida uma delas lhe diz,
radiante: “Você se lembra? Escrevi que era hora de você voltar, mais do
que hora de você voltar!”.
Quem é essa mulher? A noite toda ela não parou de falar da
doença do marido, demorando-se, excitada, em todos os detalhes
mórbidos. Finalmente Irena a reconhece: sua colega de ginásio que, na
mesma noite em que o comunismo caiu, lhe escreveu: “Oh, minha cara, já
estamos velhas! Está mais do que na hora de você voltar!”. Mais uma vez
ela repete a frase e, em seu rosto inchado, um grande sorriso revela uma
dentadura.
As outras mulheres a sufocam com perguntas: “Irena, você se
lembra quando...”. E: “Sabe o que aconteceu quando...?. “Mas não, com
certeza você deve se lembrar dele!” ”Aquele sujeito de orelhas grandes,

disparition du communisme. Outre ces grandes dates qui concernent toute l’Europe, des dates d’importance
secondaire déterminent les destins de nations particulières : l’an 1936 de la guerre civile en Espagne; l’an de
1956 de l’invasion russe en Hongrie; l’an 1948, quand les Yugoslaves se révoltèrent contre Staline et l’an 1991,
quand ils se mirent tous ensemble à s’entretuer. (p. 15-16)
112

você sempre caçoou dele!” “Mas você não pode ter se esquecido dele!
Ele só fala de você!”
Até então não se interessavam por aquilo que ela tentava lhes
contar. O que significava essa ofensiva súbita? O que querem saber
aquelas mulheres que nada querem ouvir? Compreende rapidamente que
as perguntas delas são especiais: perguntas para saber se ela conhece
aquilo que elas conhecem, se se lembra daquilo que se lembram. Isso lhe
dá uma estranha impressão que não a deixará mais [...] (p. 30-31)111

Os sumários aparecem bastante nessa narrativa, visto que eles constituem o meio
por excelência de surgimento de algumas analepses na narrativa, cumprindo o papel de
representificar algumas memórias importantes para os personagens principais, como é o
caso de um sumário realizado pelo narrador, a fim de explicar toda a situação envolvida na
morte da esposa de Josef, bem como a relação complicada entre o exilado e a família de
sua ex-mulher. Ao contrário do que é visto em A lentidão, nesse romance os sumários não
atribuem velocidade a narrativa, apenas servem a título de explicar ou introduzir novos
olhares sobre os personagens, reforçando a repetição.

Havia muito tempo já se habituara á ideia de morrer junto com


ela. Não se tratava de um exagero romântico, e sim de uma reflexão
racional: no caso de uma doença incurável da mulher, ele tinha decidido
abreviar o sofrimento dela; para não ser acusado de assassinato, planejava
morrer também. Com efeito, logo ela ficou gravemente doente, sofrendo
horrivelmente, e Josef não pensou mais em suicídio. Não por medo de
perder a própria vida. Mas não podia suportar a ideia de deixar aquele
corpo tão amado à mercê de mãos estranhas. Se ele morresse, quem
protegeria a morta? Como um cadáver defenderia um outro? (p.75)112

111
No original :
Elle se parlent depuis un long moment dans un coin de la pièce quand les autres s’approchent en les entourent.
Comme si elles se reprochaient de ne pas s’occuper assez de leur amphitryonne, elles sont bavardes (l’ivresse de
la bière rend plus bruyant et plus bonasse que celle du vin) et affectueuses. La femme qui, dès le début de leur
réunion, a réclamé de la bière s’exclame : <<Il faut quand même que je goûte ton vin !>> et elle appelle le
garçon qui ouvre d’autres bouteilles et remplit des verres.
Irena est sous l’emprise d’une vision soudaine : des chopes de bière à la main et riant bruyamment, un groupe de
femmes accourt vers elle qui disntigue des mots tchèques et comprend, avec effroi, qu’elle n’est pas en France,
qu’elle est à Prague et qu’elle est perdue. Ah, oui, un des ses vieux rêves d’émigration dont elle chasse vite le
souvenir : ces femmes autour d’elle ne boivent d’ailleurs plus de bière, elles lèvent des verres de vin et trinquent
encore une fois à la fille retrouvée ; puis l’une d’elles, rayonnante, lui dit : <<Tu te rappelles ? Je t’ai écrit qu’il
est grand temps, grand temps que tu reviennes !>>
Qui est cette femme ? Toute la soirée, elle n’a cessé de parler de la maladie de son mari, s’attardant, excitée, sur
tous les détails morbides. Enfin, Irena la recconaît : sa camarade de lycée qui, la semaine même où le
communisme est tombé, lui a écrit : << Oh, ma chère, nous sommes déjà vieilles ! Il est grand temps que tu
reviennes !>> Encore une fois, elle répète cette phrase et, dans son visage épaissi, un grand sourire dévoile un
dentier.
Les autres femmes l’assaillent de questions : <<Irena, tu te rappelles quand...>> Et : <<Tu sais que ci s’est passé
alors avec... ?>> <<Mais non, quand même tu dois te souvenir de lui !>> << Ce mec avec de grandes oreilles, tu
t’es toujours moquée de lui !>> <<Mais tu ne peux pas l’avoir oublié ! Il ne parle que de toi !>> (p.43-44)
112
No original:
Mourir em même temps qu’elle, cette idée l’attirait depuis longtemps. Ellen’était pas due à une emphase
romantique, plutôt à une réflexion rationelle : dans le cas d’une maladie mortelle de sa femme, il avait décidé
d’abréger sa souffrance ; pour ne pas être accusé de meurtre, il comptait mourir lui aussi. Puis elle tomba
113

Nessa abordagem a morte da mulher é realizada de modo tão sintético pelo


narrador, que compreende a duração de uma só página, a qual se divide entre a morte e as
disputas pelo corpo da esposa. Um paradoxo se instala: observamos uma duração muito
curta de um evento que se torna um motivo tão essencial para a partida de Josef. A
narração já é em si mesma a amputação sentida pelo personagem.
As elipses se manifestam com liberdade pela narrativa, pois constituem o discurso
desse narrador que opera os diferentes tempos abordados. Sendo assim, o tempo se torna
um instrumento maleável que possibilita a remodelação das ações e dos impactos que elas
originam nos personagens. Cremos inclusive que uma das razões pelas quais a ocorrência
das repetições se dá, diz respeito a esse trabalho com as elipses em conjunto com o
surgimento das analepses – responsável por gerar certo movimento à narrativa. Um
exemplo de tal movimento decorrente de uma elipse aparece no seguinte trecho:

Josef visitara seu ateliê nos anos 60, quando a doutrina oficial
perdia sua força e o pintor já tinha liberdade para fazer o que quisesse.
Sinceramente ingênuo, Josef preferira esse quadro antigo aos novos, e o
pintor, que tinha por seu fauvismo operário um misto de simpatia com
condescendência, lhe dera o quadro de presente sem se lamentar; até
mesmo pegara o pincel e, ao lado da assinatura, fizera uma dedicatória
com o nome de Josef.
“Você chegou a conhecer bem esse pintor”, comentou o irmão.
“Sim. Salvei seu caniche.”
“Você vai visita-lo?”
“Não.”
Pouco depois de 1989, Josef tinha recebido na Dinamarca um
embrulho com fotografias de novos quadros do pintor, criados dessa vez
em plena liberdade: não se distinguiam dos milhões de outros quadros
que se pintavam então no planeta; o pintor podia se vangloriar de uma
dupla vitória: ele era totalmente livre e totalmente igual a todo mundo.
(p.43)113

vraiment malade, désespérément malade, et Josef ne pensa plus au suicide. Non intolérable de laisser ce corps
tellementaimé à la merci de mains étrangères. Lui mort, qui protégerait la morte ? Comment un cadavre en
défenderait-il un autre ? (p.108)
113
No original:
Josef avait visité son atelier dans les années soixante alors que la doctrine officielle perdait de sa force et que le
peintre était déjà libre de faire à peu près ce qu’il voulait. Naïvement sincère, Josef avait préféré ce tableau
ancien aux nouveaux, et le peintre, qui avait pour son fauvisme ouvriériste une sympathie mêlée de
condescendance, lui en avait fait cadeau sans regret ; il avait même pris le pinceau et, à côté de sa signature,
inscrit une dédicace avec le nom de Josef.
<< Tu as bien connu ce peintre, remarqua le frère.
- Oui, J’ai sauvé son caniche.
- Tu vas aller le voir ?
- Non.>>
Peu après 1989, Josef avait reçu au Danemark un paquet de photos des nouveaux tableaux du peintre, créés cette
fois en pleine liberté : il étaient indistinguables des millions d’autres tableaux qui se peignaient alors sur la
114

Tendo em vista as categorias trabalhadas, concluímos que o seu estudo e a sua análise
nos permitem ver A ignorância como uma narrativa que retrata o esforço de repetição
empreendido na configuração das identidades dos personagens principais, correspondente à
imagem com a qual a memória aparece no discurso. O desenvolvimento de sua narração
coloca em atividade elementos dispostos na construção e na organização do texto que
reforçam esse olhar para a repetição como um efeito, objeto privilegiado no estudo dessa
obra.

planète ; le peintre pouvait dse vanter d’une double victoire : il était totalement libre et totalement pareil à tout le
monde. (p.62)
115

CONCLUSÃO

Por mais que um trabalho acadêmico vise uma resposta certeira sobre os
questionamentos acerca do objeto estudado, seria ingenuidade tamanha não considerar o
fato de que é impossível a apreensão do todo. Abordar um autor, uma obra em sua
completude requer fôlego, demanda um tempo que, por muitas vezes, ultrapassa a duração
de uma pesquisa. Dito isso, a pretensão desse estudo não é atribuir certezas em relação à
abordagem dos efeitos das imagens de memória nas narrativas A lentidão (1995), A
identidade (1997) e A ignorância (2000), ainda que institucionalmente isso seja
reconhecido como tal.
A finalidade, se é que uma pesquisa realmente consiga chegar a um fim, a qual esse
texto tentou alcançar, diz respeito à proposta de um modo de observação de certas nuances
que foram percebidas em leituras prévias dos romances; e nisso houve algumas escolhas a
se fazer, como, por exemplo, a seleção dos trechos sobre memória: há muito mais trechos
que poderiam estar contidos dentro do corpo da pesquisa, porém em face de uma escolha
de trechos mais significativos, alguns fragmentos tiveram de ser descartados.
Outra distinção realizada diz respeito aos aspectos textuais estudados –
personagens, narrador, ordem e duração: observados a partir de um critério que diz respeito
a uma forma de melhor representar os movimentos da narrativa e o modo de construção e
organização dela. Não procuramos encaixar a narrativa dentro dessas disposições, e sim
observamos uma teoria que conseguisse demonstrar com mais precisão os efeitos notados.
Com tais escolhas, o que menos se procura aqui é o fechamento da questão sobre as
imagens da memória e a construção da narrativa; muito pelo contrário, qualquer estudo que
conteste isso ou que apresente uma versão diferente dessa reflexão é certamente muito bem
vindo e só tem a contribuir para a fortuna crítica de Kundera, uma fortuna ainda pouco
explorada e com chances de um crescimento qualitativo.
Sendo assim, esperamos que a leitura tenha trazido até então perspectivas
satisfatórias acerca desse trabalho de Milan Kundera com os romances em uma língua que
não é a sua materna, com novas reflexões em torno da memória e com diferenças
substanciais em relação aos seus romances mais antigos. A única coisa a qual afirmamos
com alguma base mais firme é o fato de que o ciclo francês parece inaugurar uma fase
nova de Kundera. Se isso já era perceptível seja pela escolha da língua, seja pela leitura das
obras antes dessa análise realizada com mais detalhes, após o estudo essa crença passa a
tomar contornos mais delineados.
116

Um novo questionamento surge no horizonte: saímos do “como?” aos “por quês?”


em relação aos dois ciclos? Haveria mudanças mais substanciais do que as encontradas
somente em torno da memória? O que a narrativa A festa da insignificância (2014) poderia
adicionar a essa análise? Haveria alguma pretensão por parte do autor em tornar as suas
obras mais consumíveis? Haveria alguma mudança na crítica em relação aos tempos: no
ciclo tcheco remetida ao passado, enquanto no ciclo francês remetida ao presente?
Essas são perguntas que demandariam mais tempo, mais análise e mais imersão
dentro desse universo riquíssimo das palavras-temas de Milan Kundera e das suas
intenções como autor, narrador e romancista. Além disso, serviriam de alívio ao
romancista que afirma em alto e bom tom que a função de seu romance não é dar respostas
a nada, e sim colocar tudo em dúvida, tudo em questionamento. Não seria essa a forma de
melhor estudar o seu romance?
117

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