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UNIGRANRIO
Duque de Caxias
2017
Paulo Roberto de Andrade Júnior
Duque de Caxias
2017
A553a Andrade Júnior, Paulo Roberto de.
44 f.; 30 cm.
CDD – 420
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho a Deus, pelo dom da vida e pela oportunidade de chegar até aqui;
à minha família, por todo o suporte nestes anos de curso e aos meus amigos, sem os quais a
caminhada teria sido mais árdua e cansativa.
AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha Mãe, Zuleika, por todo o amor dispensado, pelas palavras de
incentivo e, sobretudo, pelo dom da vida. Se sou o que sou e cheguei onde cheguei, foi graças
a você.
Agradeço ao meu Pai, Paulo, pelo amor, carinho e dedicação e também por todas as
vezes que ajudou a financiar o Bilhete Único.
Agradeço à minha Avó Carmelita pelo amor incondicional, por todo o cuidado comigo
e com os meus filhos de quatro patas enquanto eu estive ausente.
Minhas irmãs, ogras do meu coração, amo vocês, obrigado por tudo.
Ao meu irmão de outra mãe, Renato, por franquear seu amor, seu carinho e sua amizade
comigo. Essa vitória é sua. Te amo.
Suzana, minha Professora-Orientadora, minha amiga, muito obrigado por despertar
minha paixão pela Literatura quando eu achei que não tinha mais jeito. Você é única como
profissional, como orientadora e, sobretudo, como amiga.
Tias Vanessa e Verinha, o que seria de mim sem vocês? Profissionais com
conhecimento que só perde, em tamanho, para humildade e simpatia. Não é à toa que a
Literatura se tornou a base do curso de Letras.
RESUMO
The objective of this work is to analyze the allegories and symbols of Essay On Lucidity
in the light of Post-Modernity, in order to provide to the future readers of this work a better
understanding of the facts described by the author, the writer and journalist José Saramago.
These elements assisted him in the construction of Narrative's plot. Bibliographical analyzes
will be carried out to present the author's life experiences within the postmodern context, as
well as explanations about the main aspects of postmodernity presented in the work, using for
this purpose assertions and researches by theorists such as Zygmunt Bauman And Stuart Hall,
as well as academic articles related to the subject. Finally, the allegories and symbols of Essay
on Lucidity and their explanations about them will be presented in light of the Dictionary of
Symbols and contextualized within the work of Saramago.
INTRODUÇÃO................................................................................................................. 8
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................ 40
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................. 42
8
INTRODUÇÃO
De maneira geral, José Saramago buscou informar seus leitores acerca das mazelas e
pormenores vividos pela maior parte da população na pós-modernidade – tais quais a
manipulação midiática e política –, período no qual se vive atualmente e, apesar de muitos
pesquisadores e críticos considerarem esta época como um prolongamento do que foi conhecido
como modernidade, neste trabalho será mostrado que ambos, embora apresentem características
comuns, seguem em direções opostas, com a pós-modernidade lançando o ser humano em um
universo de futuro indefinido, insegurança, hiper-realidade e identidade fragmentada.
Saramago, além de apresentar tais cenários, lançara mão, em Ensaio Sobre a Lucidez,
de símbolos e alegorias que, à primeira vista, parecem funcionar como meros acessórios na
obra. Porém, ao analisar-se com maior profundidade o contexto no qual autor e obra estão
inseridos, percebe-se que nenhum objeto, evento ou situação, por mais que consideradas
menores ou sem importância, foram escolhidas – e utilizadas por ele ao caso. Daí surgiu a
necessidade de identificação, contextualização e interpretação de tais objetos à luz da pós-
modernidade.
Para auxiliar os leitores a olharem além da imagem aparente das alegorias e símbolos
utilizados por José Saramago em Ensaio Sobre a Lucidez, será feita uma análise de tais
elementos à luz do Dicionário de Símbolos – obra do escritor Jean Chevalier que contrasta
vários elementos presentes em nosso quotidiano, como períodos do dia, cores, fenômenos
naturais e animais com usos e costumes de diversas culturas – e a contextualização deles no
universo da obra analisada.
1
Disponível em https://www.dicionariodesimbolos.com.br/. Acessado em 17/05/2017.
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Apesar de ser um dos principais responsáveis pela colonização no mundo e ter tomado
partido nos dois grandes conflitos citados anteriormente, Portugal, no início do Século XX,
estava alheio à industrialização que impulsionava seus vizinhos. O país perdeu sua principal
colônia, o Brasil, em 1822, e foi superado por países como França, Inglaterra e Bélgica no
tocante à expansão territorial. Afogado em uma imensa crise econômica, social e de soberania,
com o Ultimatum2 apresentado pelo Ministro britânico Lord Salisbury, Portugal percebeu que
sua monarquia não catapultou o país para a modernidade e estabilidade econômica alcançada
2
O Ultimatum consistiu num telegrama enviado ao governo português pelo governo inglês, chefiado pelo ministro
Lord Salisbury e entregue em 11 de janeiro de 1890. A Inglaterra exigia a retirada imediata das forças militares
portuguesas mobilizadas nos territórios entre Angola e Moçambique. Esses territórios correspondem aos atuais
Zimbabwe e Malawi. Caso a exigência não fosse cumprida por Portugal, a Inglaterra avançaria com uma
intervenção militar.
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por seus vizinhos e, então, começou a mobilizar-se em busca de mudanças, de soluções que
pudessem, enfim, tirar o país da bancarrota.
absoluto no país. Então, em 1933, no início da adolescência do escritor, surge o Estado Novo3
que, por quarenta e um anos, adiou o sonho de um Portugal verdadeiramente democrático.
O próprio país era ainda essencialmente agrícola, rural e atrasado. Em 1930, quando
o menino [José Saramago] já tinha oito anos, apenas um quinto dos portugueses
habitava os grandes centros urbanos, e metade da população era ativa na agricultura,
contra somente um quinto na indústria e um quarto na área de comércio e serviços. A
maioria dos quase 1,3 milhão dos que trabalhavam na agricultura era constituída por
pequeníssimos proprietários ou assalariados que viviam com grande dificuldade.
(LOPES, 2010, p10)
O início da vida de José Saramago foi marcado por forte repressão do governo às
liberdades e direitos individuais: havia censura aos meios de comunicação e informação, com
rigoroso controle governamental para evitar que mensagens contra a ditadura fossem
disseminadas. Torturas físicas e psicológicas foram empregadas para obter-se informações e
confissões dos que pregavam contra o regime, que também possuía informantes em escolas,
locais de trabalho e centros de convívio. Apesar de possuir informantes em escolas, a ditadura
salazarista provavelmente não estava preocupada com os indicadores da educação de Portugal.
Na década de 1930, por exemplo, o país possuía uma taxa de analfabetismo de 61,8%, com
apenas 34% das crianças entre os sete e catorze anos alfabetizadas. José Saramago, contrariando
as expectativas da época, completou o equivalente ao nono ano de escolaridade, feito raro para
a época (LOPES, 2010).
Embora vivenciando uma situação difícil em seu país, José Saramago já demonstrava
inteligência e astúcia ainda na adolescência: entre 1933 e 1935 frequentou o Liceu Gil Vicente.
Aos doze anos foi eleito tesoureiro da associação acadêmica por seus colegas (LOPES, 20010),
3
Regime autoritário instituído em Portugal no ano de 1933, que sucedeu a ditadura militar instaurada no país em
1926. Nele, o ditador Antônio de Oliveira Salazar, promulgou nova constituição, concentrou poderes, reduziu
gastos com educação e saúde, aumentou impostos e cerceou a população da maioria de seus direitos individuais e
coletivos, lançando mão de prisões, deportações, mortes e torturas. Teve fim em 25 de abril de 1974, após um
golpe militar conhecido como “Revolução dos Cravos”.
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porém, devido à situação econômica de seus pais, abandonou o Liceu e ingressou, ainda em
1935, na Escola Industrial Afonso Domingues, onde formou-se em serralheria mecânica em
1940. Mesmo afastando-se da vertente humanista do Liceu onde estudou, Saramago não perdeu
sua capacidade de análise crítica perante os fatos desencadeados pelas diversas situações
vividas em Portugal e também nos países vizinhos: durante o período de curso técnico,
acompanhou com avidez o desenrolar da Guerra Civil Espanhola4, porém, pouco tempo depois,
percebeu que poderia estar sendo manipulado pelos meios de comunicação disponíveis – e
severamente controlados – da época. Em Ensaio sobre a Lucidez o autor apontou para a
manipulação e censura dos fatos que se desenrolaram na província fictícia da obra, artifício
utilizado pelos Ministros do país para evitar que os demais habitantes também insurgissem
contra o governo. Ainda que sem referências explícitas a Portugal na obra, percebe-se que
situações pelas quais José Saramago viveu a partir da adolescência, como controle dos meios
de comunicação e repressão, podem ter influenciado suas obras.
4
A Guerra Civil espanhola (1936-39) foi o acontecimento mais traumático que ocorreu antes da 2ª Guerra Mundial.
Nela estevem presentes todos os elementos militares e ideológicos que marcaram o século XX: De um lado se
posicionaram as forças do nacionalismo e do fascismo, aliadas as classes e instituições tradicionais da Espanha (O
Exército, a Igreja e o Latifúndio) e do outro a Frente Popular que formava o Governo Republicano, representando
os sindicatos, os partidos de esquerda e os partidários da democracia.
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fraude eleitoral naquele ano. Na ocasião, o escritor foi vítima de uma espécie de processo
disciplinar e, para evitar problemas maiores, optou pela demissão do cargo que de escrevente.
Embora discreto, José Saramago não hesitava em denunciar os problemas pelos quais
Portugal passara e, por conta disso, teve textos censurados e/ou modificados pelo aparelho
repressor do salazarismo, o que não impediu o escritor de continuar sua jornada de denúncias e
convocação à reflexão e à luta. Em 1969 tornou-se militante do PCP – Partido Comunista
Português – principal partido de oposição ao salazarismo e com forte penetração nos meios
intelectuais. Sua filha, Violante Saramago, foi membro do Movimento Reorganizativo do
Partido do Proletário – MRPP. Apesar de lutarem contra o fascismo de Salazar, ambos possuíam
discursos políticos diferentes e não eram incomuns as críticas de um contra o outro. Segundo o
escritor João Marcos Lopes, Violante “teria mantido uma relação difícil com o pai” (2010, p70).
A relação dos dois teria melhorado após a prisão dela no Forte Rei D. Luís I, ou Forte de Caxias,
principal destino dos presos políticos do Estado Novo. A prisão da filha, aliás, serviu para
aumentar o descontentamento de José Saramago com o governo português e também para que
continuasse como militante anônimo, embora tenha participado, de forma pública, de
movimentos antifascistas, como o III Congresso da Oposição Democrática, em 1973.
No ano seguinte, em 1974, a música “Grândola, Vila Morena” foi o sinal emitido pela
emissora católica de rádio de Lisboa para dar início a mais um levante militar em Portugal,
desta vez, porém, para pôr fim ao regime fascista de Salazar. A euforia dos anos 30 deu lugar à
repressão, guerras contra as colônias da África, além da falta de investimentos por parte do
governo que faziam Portugal ser, em 1974, o país mais atrasado da Europa. No dia 25 de Abril
o regime Salazarista foi derrubado em um evento conhecido como “Revolução dos Cravos”, no
qual a população aglomerada nas ruas enfiava cravos nas armas dos soldados. O sucessor de
Salazar, Marcelo Caetano, foi exilado para o Brasil. Chegava ao fim de uma das ditaduras mais
longas do mundo.
algumas de suas obras, como Ensaio Sobre a Cegueira, O Homem Duplicado e Ensaio Sobre
a Lucidez, uma vez que em todos os conflitos citados anteriormente, há configuração da
dicotomia “controladores x controlados”, na qual o primeiro utiliza diversos artifícios, que vão
de alienação cultural à força para manter o segundo sob sua incontestável tutela, tal qual ocorreu
em muitos dos episódios históricos citados anteriormente. Zygmunt Bauman, no livro A
Modernidade Líquida, apontou para esses possíveis cenários distópicos.
Bauman afirmou que os dois escritores, apesar de preverem um futuro trágico no qual
controladores e controlados terão seus papeis cada vez mais claros e definidos, ambos
divergiram sobre a forma qual esse futuro se manifestaria: Aldous Leonard Huxley escrevera
sobre um futuro de ostentação e devassidão, enquanto George Orwell previra um futuro de
destruição, miséria e escassez. Ambos os cenários contribuiriam para o controle das massas,
gerando indivíduos sem visão crítica, incapazes de perceber o engodo no qual vivem e sem
ambição para lutarem por um cenário mais favorável à individualidade e à justiça social.
Embora a dicotomia controladores x controlados tenha sido aceita pela maioria esmagadora da
população, ela produziu alguns cidadãos descontentes, inquietos, incomodados. Em O Mal-
estar da Pós-Modernidade, Bauman referiu-se a estas pessoas como “estranhos” produzidos
pela sociedade.
Todas as sociedades produzem estranhos. Mas cada espécie de sociedade produz sua
própria espécie de estranhos e os produz de sua própria maneira, [...] Se os estranhos
são as pessoas que não se encaixam no mapa cognitivo, moral ou estético do mundo
[...] se eles, portanto, por sua simples presença, deixam turvo o que deve ser
transparente, confuso o que deve ser uma coerente receita para ação [...] Se eles
poluem a alegria com a angústia, ao mesmo tempo que fazem atraente o fruto
proibido; se, em outras palavras, eles obscurecem e tornam tênues as linhas de
fronteira que devem ser claramente vistas [...] então cada sociedade produz esses
estranhos. (BAUMAN, 1998, p27).
À primeira vista esses “estranhos” parecem pôr em xeque um mundo perfeito, porém,
ao analisar-se profundamente o contexto histórico da época, percebe-se que, na verdade, havia
inquietação quanto às desigualdades, mazelas e injustiças disseminadas e vendidas como
corretas. José Saramago foi um desse estranhos descritos por Bauman, pois suas obras, como
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ESL5, trazem ainda hoje a angústia da vida real para poluir a “alegria” na qual muitos pensam
viver, colocando em xeque o modo de vida da sociedade atual. Em suas obras, muitos dos ditos
estranhos são anulados, aniquilados por forças superiores e contrárias a qualquer tipo de
mudança ou pensamento diferente do padrão imposto, na tentativa de manter a sociedade com
comportamento e atitudes pasteurizadas, tal qual afirmou Zygmunt Bauman:
Uma das estratégias narradas por Bauman foi adotada pelos ministros do país fictício de
Ensaio Sobre a Lucidez, após algumas tentativas frustradas de encontrar os possíveis mentores
intelectuais por trás dos votos brancos em massa na capital, forçando assim, após dias de
isolamento, uma mudança de postura por parte dos habitantes e provável identificação – e
punição – de seus líderes “estranhos”.
Impunha-se, por conseguinte, a imposição de um estado de sítio a sério, que não fosse
uma coisa para inglês ver, com recolher obrigatório, encerramento das salas de
espectáculo, patrulhamento intensivo das ruas por forças militares, proibição de
ajuntamentos de mais de cinco pessoas, interdição absoluta de entradas e saídas da
cidade, procedendo-se em simultâneo ao levantamento das medidas restritivas, se bem
que muito menos rigorosas, ainda em vigor no resto do país, a fim de que a diferença
de tratamento, por ostensiva, tornasse mais pesada e explícita a humilhação que se
infligiria à capital. (SARAMAGO, 2004, P28).
5
A partir deste ponto, o nome Ensaio Sobre a Lucidez será representado pela sigla ESL.
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Na obra Modernidade Líquida, Bauman afirma que a sociedade atual é tão moderna
quanto a do início do Século XX, porém, com uma “modernização irrefreável e incompleta”
(2001, p.37), que graças ao advento da evolução tecnológica em larga escala – que possibilita
ao homem pesquisar e descobrir respostas para perguntas antigas e, ao mesmo tempo, novas
perguntas – permitiu-lhe libertar-se das amarras teocêntricas e apoiar-se em si mesmo,
buscando sempre uma linha de chegada, linha esta que sempre se afasta ou sempre muda.
contribuir para a construção de uma sociedade mais justa foram delegadas para a
individualidade do ser humano, permitindo-lhe, supostamente, escolher o próprio modo de vida
e felicidade (2001, p.39). A individualidade, aliás, é uma das características mais marcantes da
era Pós-Moderna, afinal todos os esforços das grandes corporações atualmente, dos veículos de
comunicação às indústrias alimentícia e de vestuário, é consolidar a ideia de que o homem é
suficiente em si mesmo e, consequentemente, deve assumir os encargos da execução de sua
individualidade. Ainda de acordo com Bauman, a individualidade do ser humano Pós-Moderno
deixou de ser uma escolha para ser uma ação compulsória e “se recusar a participar do jogo da
individualização está decididamente fora da jogada” (BAUMAN, 2001, p.43).
Em ESL, José Saramago apontou para o ideal de coletividade apontado por Zygmunt
Bauman, uma vez que, ao tomarem a iniciativa de votarem em branco, a população da capital
daquele país despertou o sentimento de mudança política e social, ainda que tenham sido
tratados como estranhos pelos concidadãos e hostilizados pelos representantes do Estado.
Bauman afirmou que uma comunidade deveria pautar-se pelo cuidado mútuo e pela conquista,
luta e preservação de direitos iguais dos seres humanos (BAUMAN, 2004, p.134). Ora,
justamente o ideal de comunidade tecido por José Saramago na trama.
A liberdade na época atual é um dos simulacros que esta produz: o indivíduo é livre para
tomar suas próprias inciativas e fazer o que bem entender, porém, ao deparar-se com a realidade,
este percebe que, na verdade, a individualidade é uma condição hiper-real pós-moderna e,
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apesar da pretensa liberdade. O homem desta época está preso à condição sine qua non de
vencer e dar certo, de ser livre para tomar decisões que possibilitem viver irrestritamente uma
vida regrada, que ao mesmo tempo permitam-lhe exercer sua liberdade e buscar suas
identidades vivendo em uma espécie de caos organizado.
contribuindo para o bombardeio de cada parte do indivíduo pós-moderno com diversas formas
identitárias. Este processo, que se dá através da constante exposição a tantas mudanças e
informações, criou um ser fragmentado, multi-identitário, com sintomas de uma esquizofrenia
(CONNOR. 1992, p.94) sistemática que permite-lhe alterar os próprios pensamentos, ideias e
até mesmo senso de afetividade, dando-lhe aval armazenar dentro de si diferentes identidades,
que serão utilizadas quando necessário ou alteradas ao longo do tempo.
O sociólogo Zygmunt Bauman, na obra Identidade, afirma que comumente se pensa que
as comunidades nas quais o indivíduo está inserido formam sua identidade. Essas comunidades,
criadas a partir de laços absolutos, tais quais históricos ou geográficos, forjando indivíduos que
compartilham origem, língua e crenças comuns, ou ainda por convicções ideológicas, tais quais
política e esporte, são classificadas por Bauman como comunidades de vida e destino (2004,
p.17) respectivamente. Apesar do senso comum, o sociólogo afirma que, a identidade começa
a ser forjada quando confrontada com outras comunidades consideradas inferiores. Além disso,
a riqueza e variedade de pensamentos, ideias e crenças, aliadas à rapidez de difusão das
convicções ideológicas de outras comunidades, por exemplo, trazem a necessidade constante
de reflexão, ponderação, avaliação e escolha do homem pós-moderno. Muitas vezes, para
manter-se foi do hall de estranhos, este opta pela tentativa de conciliação quando há o
surgimento de ideias conflitantes, outras, porém, exigem a saída da comunidade ideológica da
qual se está inserido.
José Saramago, em ESL, utilizou a tônica de confronto ideológico para a forja identitária
de um dos personagens da obra: o presidente da câmara. Outrora figurando como o
representante do Estado na capital, teve suas convicções e ideais confrontados após o atentado
a bomba na estação do metrô. Atentado este que, aliado ao histórico de conversas por telefone
com o ministro do interior, nas quais sempre foi tratado como peão em um jogo de xadrez, fez
o presidente abandonar o cargo e juntar-se à multidão que, silenciosamente, manifestou-se pelas
ruas da capital contra o atentado e em favor das vítimas.
Senhor presidente, permita-me que lhe manifeste a minha estupefacção por vir
encontrá-lo aqui, Estupefacção, porquê, Acabo agora mesmo de o dizer, por vê-lo
numa manifestação destas, Sou um cidadão como outro qualquer, manifesto-me
quando e como entenda, e muito mais agora que já não é necessário pedir autorização,
Não é um cidadão qualquer, é o presidente da câmara municipal, Está enganado, há
três dias deixei de ser presidente da câmara, pensei que a notícia já fosse conhecida
(SARAMAGO, 2004, p.67).
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levado à avaliação e julgamento, ora pelos demais indivíduos, ora pelos órgãos competentes do
Estado.
Em ESL, a mulher do médico foi apontada como estranha, primeiramente por um outro
habitante daquela capital, habitante este que provavelmente foi ajudado por ela na ocasião da
cegueira branca, trazendo à tona, mais uma vez, a questão da hiper-realidade como local de uso
das demais identidades, ainda que conflitantes, de um indivíduo, afinal o sentimento de gratidão
foi superado pela decisão de entregá-la às autoridades. Após a recusa inicial do Presidente
daquela não-nação em levar a história adiante, a ideia foi comprada por seu ministro do interior,
descrito por José Saramago como “um pouco menos sanguinário que drácula, mas muito mais
teatral que Rambo” (2004, p.95), que deu início às investigações e, por fim, a execução daquela
mulher. Zygmunt Bauman apontou para estas soluções em O Mal-Estar da Pós-Modernidade:
Num pólo, a estranheza (...) continuará sendo edificada como a fonte da experiência
agradável e da satisfação estética; no outro, como a aterradora corporificação da
viscosidade desabridamente ascensional da condição humana (...). E o poder político
oferecerá sua habitual partilha de oportunidades para o curto-circuito dos pólos: para
proteger sua própria emancipação através da sedução, os próximos do primeiro pólo
procurarão o domínio pelo medo sobre os do segundo pólo, ajudando e favorecendo,
assim, sua indústria suburbana de horrores (BAUMAN, 1999, p.47-48).
José Saramago, em ESL, não aponta – sob a ótica geográfica – para um país específico
ou fictício. O autor, no desenrolar da trama, faz menção a país e capital, concedendo ao leitor,
à primeira vista, um olhar distanciado daquele lugar sem identificação onde a trama se passa,
porém, ao continuar a leitura, este leitor pode perceber que, mesmo sem quaisquer menções
geopolíticas, o escritor fala mais sobre a situação atual de muitos países do globo – inclusive o
que ele vive – do que os críticos político-socioeconômicos que se propõe a fazê-lo.
indivíduo pós-moderno está cada vez mais inserido em um contexto no qual se tem a sensação
paradoxal de se pertencer ao mundo e, ao mesmo tempo, a lugar nenhum.
A sensação familiaridade que o leitor pode ter ao identificar-se como um dos eleitores
do não lugar criado por José Saramago em ESL, tornou-se outro fato interessante, pois como
pertencente à pós-modernidade, o indivíduo leitor desta obra tem a individualidade e a sensação
de liberdade afloradas, porém, ainda como cidadão pós-moderno, este é bastante cauteloso ao
tomar decisões que possam chocar a sociedade na qual está inserido e, como sua intenção não
é tornar-se um estranho, pode apelar para recursos de hiper-realidade a fim de promover catarse
em si mesmo e pôr em prática a liberdade real que tanto se prega. De acordo com Jean
Baudrillard, na obra Simulacro e Simulação, “não existe mais uma realidade dura com a qual
possamos (queiramos) lidar” (1983, p12). Nesse sentido, o leitor de ESL pode empreender fuga
para o lugar não identificado da obra, tornar-se um de seus cidadãos e votar em branco como
forma de protesto sem ter os olhares de reprovação que poderia ter em uma situação similar no
mundo real.
Como foi visto no subitem anterior, José Saramago, em ESL, mostra políticos do alto
escalão do governo daquele país não identificado lançando mão de diversos artifícios para
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obrigarem os eleitores da capital deste a votarem nos políticos de um dos três partidos
apresentados na trama (Centro, Direita e Esquerda). Apesar de, à primeira vista os artifícios
parecerem elementos de ficção, deve-se atentar para o fato que o autor, além de escritor, atuara
como jornalista em Portugal, além de ter sido ativista político no Partido Comunista daquele
país e, como tal, foi observador atento de diversos acontecimentos políticos ocorridos na
Península Ibérica, como o advento do Estado Novo, em Portugal, da Guerra Civil Espanhola e
de diversos conflitos e revoluções no mundo nos anos 70, 80, 90 e 2000. Como tal, Saramago
observara as tentativas de diversos regimes, democráticos em teoria ou não, de manterem-se no
poder a qualquer custo, o que pode tê-lo levado a transcrevê-las na obra.
Outro ponto de análise é a ação e influência do Estado no desenrolar dos fatos da obra,
este, definido como o “conjunto de poderes políticos de uma nação; governo” pelo Dicionário
Aurélio da Língua Portuguesa, é o responsável, teoricamente, por manter a salvaguarda dos
cidadãos de uma determinada nação, provendo-lhes todos os subsídios para que seus indivíduos
cresçam e mantenham-se saudáveis física, intelectual e economicamente. Porém, tem-se visto,
ultimamente, a intervenção do Estado em diversas áreas das sociedades atuais, mantendo
subjugados a ele o poder social das nações e, utilizando seus aparelhos militares e culturais, por
exemplo, para esta finalidade (BAUMAN, 1999, p.68). Bauman afirma ainda que, com o
advento da Globalização e da independência das transnacionais e do mercado financeiro
especulativo, além do enfraquecimento da classe política, coube ao Estado manter o aparelho
repressor – e o governo – como seguranças e representantes eleitos do mundo dos negócios,
respectivamente. Ora, em ESL não é possível identificar um grupo econômico como controlador
do Estado, porém, é possível que José Saramago tenha utilizado os cenários descritos por
Bauman como base para o descontentamento da população da capital daquele lugar não
identificado com seus representantes eleitos e a tentativa destes para manterem a ordem política
a todo custo, valendo-se, inclusive, do aparelho repressor que possuíra no advento da
implantação do estado de exceção. Mais uma vez, a ficção e a realidade se cruzaram e o leitor
da obra do escritor português teve o não-lugar da obra transfigurado para o lugar no qual viveu.
As tentativas do Estado em ESL, de manter a ordem a todo custo na capital daquele país
foi descrita por Zygmunt Bauman no livro Modernidade e Ambivalência, como as atitudes de
um Estado-Jardineiro, que, na tentativa de manter o “jardim” bonito e bem podado, lança mão
de critérios para definir quais “plantas” são úteis – estas continuariam sendo cuidadas, do ponto
de vista do jardineiro –, e quais são inúteis ao jardim. Estas últimas, tais quais ervas daninhas,
devem ser arrancadas e lançadas foi do Jardim (BAUMAN, 1999, p29). Ora, José Saramago
26
O Dicionário Aurélio definira alegoria como “ficção que representa uma coisa para dar
ideia de outra” (FERREIRA, 2010, p.31). Definição esta também presente na principal
característica do texto alegórico, que permite a ligação da ficção com a realidade, além de levar
à reflexão sobre processos históricos e problematizar a realidade. Neste sentido, o país fictício
de ESL figura como lugar alegórico, afinal, mesmo sem menção a pontos geográficos
específicos, o leitor, utilizando o conhecimento de mundo que eventualmente possua, pode ter
a capacidade de associá-lo ao país no qual reside, ou ainda a outro cujo representantes do Estado
tenham atitudes parecidas com a dos políticos da obra. Após iniciada a leitura, o leitor desta
obra de Saramago poderá perceber a presença de situações e até mesmo equipamentos comuns
ao período no qual vivemos.
mas que levam lá dentro, invisíveis aos olhares, câmaras de vídeo de alta definição e
microfones da última geração capazes de transferir para um quadro gráfico as emoções
que aparentemente se ocultam no sussurrar diverso de um grupo de pessoas que crêem,
cada uma delas, estar a pensar noutra coisa (SARAMAGO, 2004, p.26).
6
Disponível em https://educacao.uol.com.br/disciplinas/filosofia/hermeneutica-a-arte-de-interpretar-o-sentido-
da-palavra-do-autor.htm. Acessado em 17/05/2017.
28
Síria no ano de 2015. No país fictício, o Governo, após algumas tentativas de persuadir a
população da capital a mudar de ideia acerca dos votos em branco que estes depositaram nas
urnas, lançara mão de uma estratégia de propaganda em favor do Estado, utilizando helicópteros
para jogarem panfletos à população condenando os supostos organizadores do motim eleitoral,
tentando, sob à ótica daqueles políticos, trazê-los à razão supostamente perdida.
Ação semelhante foi utilizada por outros países para divulgarem propagandas de suas
ideologias políticas e/ou contra os estranhos que, possivelmente, pudessem por a ordem pré-
estabelecida em xeque. Países como a Síria, por exemplo, em um dos vários confrontos contra
grupos rebeldes que lutam contra os desmandos do governo local, utilizaram helicópteros para
distribuírem panfletos alertando para os supostos perigos que o grupo radical poderia trazer à
região de conflito.
A Força Aérea da Síria lançou folhetos sobre uma área do país onde uma ofensiva está
sendo planejada, segundo um vídeo divulgado neste domingo (4) por um jornal russo
e disponibilizado nesta terça-feira (6) pela Reuters.
A gravação mostra os panfletos dentro de sacos, sendo soltos no ar a partir de um
helicóptero.
Os folhetos tinham mensagens em árabe alertando que quem estiver com o texto
poderá passar pelos postos de controle do Exército Sírio7.
Outra situação análoga à realidade atual, descrita em ESL, foi a do atentado à uma das
estações de metrô de superfície da capital do país fictício. Na ocasião, o Estado, também sob
pretensa justificativa de dissuadir a suposta revolução dos votos em branco, provocara uma
explosão de uma bomba, com efeitos danosos à população, afinal o incidente custou a vida de
alguns cidadãos, além de inúmeros feridos e, posteriormente ao próprio governo.
Estava a levar o garfo à boca quando uma explosão fez estremecer de alto a baixo o
edifício...mesas e cadeiras foram atiradas ao chão, havia pessoas a gritar e a gemer,
algumas estavam feridas... Fala o presidente da câmara, rebentou uma bomba na
estação principal do metro de superfície sector leste, mandem tudo o que puderem, os
bombeiros, a protecção civil, escuteiros, se ainda se encontram, enfermeiros,
ambulâncias, material de primeiros socorros, tudo o que tiverem ao vosso alcance
(SARAMAGO, 20014, p.118).
7
Disponível em http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/10/exercito-sirio-joga-panfletos-sobre-area-onde-
ofensiva-e-planejada.html. Acessado em 17/05/2017.
29
Às 7h40m da manhã deste dia 11 de março, dez bombas explodiram na hora do rush
em quatro trens lotados que se dirigiam para a estação ferroviária de Atocha. Foram
os atentados mais sangrentos na Espanha.
Enquanto o governo conservador de José Maria Aznar acusava o ETA pelo ocorrido,
os atentados foram reivindicados na mesma noite por um grupo da Al-Qaeda8.
Os eventos citados anteriormente são alguns dos que corroboram à alegoria do país
fictício de ESL, pois, José Saramago utilizou todo seu conhecimento histórico, político e social
para mostrar os problemas do mundo no qual viveu na obra. Apesar da falta de menção lugar
geográfico específico, a vivência do leitor pode permitir que ele associe os eventos daquele
local fictício a muitos vividos pelo seu próprio país ou então por outros ao redor do mundo. É
função da alegoria refletir os processos históricos, dando cabo da problematização da
realidade...pelo seu potencial metafórico, que permite justamente este tipo de significação
substitutiva (SANTOS, 2010, p.18).
8
Disponível em https://oglobo.globo.com/mundo/espanha-lembra-10-anos-do-maior-atentado-terrorista-de-sua-
historia-11842357. Acessado em 21/05/2017.
30
A ideia de unidade coletiva foi reforçada por José Saramago na conversa do então ex-
presidente da câmara com um repórter no advento da manifestação silenciosa. Quando
interpelado sobre os motivos, rumos e os organizadores de não somente daquele, mas de todos
os eventos ocorridos até ali, o ex político disse “Pergunte aos organizadores, Onde estão, quem
são eles, Suponho que todos e ninguém” (SARAMAGO, 2004, p.136). Além disso, no advento
do retorno dos que não votaram em branco para suas casas após desastrosa fuga da Capital, os
“brancosos”, como o escritor chamara os cidadãos que optaram por assim votarem, auxiliaram
seus congêneres a descarregarem seus pertences dos carros e voltarem em segurança para suas
residências, novamente exercendo o comunitarismo proposto por Zygmunt Bauman.
A sociedade apresentada por José Saramago, embora alegórica, possui alguns símbolos
identitários cuja existência e atitudes representaram bem o comportamento fragmentado do
homem pós-moderno. No início da obra, há menção aos representantes dos três partidos
(esquerda, centro e direita), bem como aos representantes do Estado daquele país, a saber: o
presidente da república, o primeiro-ministro, o ministro da cultura, o ministro da defesa, o
ministro do interior e também o presidente da câmara de vereadores da capital, além do
comissário de polícia, do homem de gravata azul de pintas brancas, da mulher do médico e do
cão das lágrimas. Embora não possuam nome de batismo, cada qual possuíra uma
personalidade-símbolo na história, permitindo ao leitor ter uma melhor visão do desenrolar dos
fatos.
Outro político-símbolo de ESL foi o ministro da defesa. Este foi apresentado por José
Saramago como um “civil que não havia ido à tropa” (SARAMAGO, 2004, p.36) e descrevera
33
Além das constantes – e crescentes – atitudes hostilizadoras por parte dos políticos de
primeiro escalão e também devido à percepção de que de fato a população da capital que votou
em branco estava apenas cansada de ser ludibriada pela classe política daquele país, o fatídico
atentado a bomba no metrô de superfície da capital fizera o presidente da câmara tomar uma
atitude radical: abandonar o cargo e juntar-se ao grupo do brancosos descontentes
(SARAMAGO, 2004, p.121-122). A atitude do então ex-presidente da câmara foi de encontro
à proposição de Zygmunt Bauman para a forja de identidade do homem pós-moderno: o
confronto de identidades (BAUMAN, 2004, p.17). Ao presenciar o sofrimento da população
afetada por aquela explosão, a identidade deste personagem foi confrontada e modificada,
trazendo-o, enfim, para o lado dos cidadãos dotados de lucidez da trama. A declaração ao
repórter na manifestação silenciosa apresentada no subitem anterior foi a última menção ao
personagem como presidente da câmara. Tal atitude de José Saramago, provavelmente, foi
tomada, simbolicamente, para endossar o ingresso do personagem à comunidade ideal de ESL.
ser apresentado aos descalabros patrocinados pelos políticos do alto escalão de ESL e as
tentativas destes de transformarem cidadãos comuns em bodes expiatórios, criara um plano para
denunciar os desmandos do estado num dos jornais de grande circulação na capital, porém, ao
ser identificado pelo ministro do interior como um estranho às ambições do estado, o
personagem foi morto pelo homem de gravata azul de pintas brancas: “O homem da gravata
azul com pintas brancas veio por trás e disparou-lhe um tiro na cabeça.” (SARAMAGO, 2004,
p.310).
Enquanto as ações do Estado do país fictício apresentado por José Saramago para
controlar a população fracassavam, o ministro do interior, na tentativa desenfreada de encontrar
os responsáveis pela onda de lucidez que despertara nos habitantes da capital o desejo de
votarem em branco, contratara um mercenário, apresentado em ESL como homem da gravata
azul de pintas brancas. A função deste personagem, além de encontrar – e dar cabo – dos
cidadãos presentes na fotografia entregue a ele pelo então comissário, foi representar o lado
mais obscuro do ministro do interior: o de executor dos estranhos ao Estado. A gravata,
enquanto símbolo, representara a virilidade e o poder masculino, sendo já utilizada pelos
soldados do exército chinês no século III a.C como parte do uniforme9. Ora, percebe-se que os
símbolos do ministro do interior e do homem da gravata azul de pintas brancas se cruzam, uma
vez que ambos possuíram perfis voltados para a guerra.
Saindo da área política e adentrando na esfera civil, têm-se a presença de dois símbolos
já mencionado por José Saramago no universo de Ensaio Sobre a Cegueira, uma de suas obras
icônicas: trata-se da mulher do médico e do cão das lágrimas, personagens que, na segunda
metade da obra, acabaram por tornar-se bodes expiatórios dos políticos do estado fictício de
ESL. A primeira, trouxe consigo o título de estranha visto no capítulo anterior deste trabalho de
monografia. Afinal, foi a única que não cegara na ocasião da cegueira branca e, mesmo
ajudando várias pessoas naquela ocasião, foi denunciada como possível orquestradora dos
eventos dos votos em branco:
há quatro anos...fiz casualmente parte de um grupo de sete pessoas que, como tantas
outras, lutou desesperadamente por sobreviver...mas o que ninguém sabe é que uma
das pessoas do grupo nunca chegou a cegar, uma mulher casada com um médico
oftalmologista...o Senhor presidente da república, consinta que lhe diga que me
sentiria ofendido se esta carta fosse lida como uma denúncia, embora...talvez o
devesse ser...um crime de assassínio foi cometido naqueles dias precisamente pela
pessoa de quem falo...eu contento-me com cumprir o meu dever de patriota pedindo
9
Disponível em http://g1.globo.com/Sites/Especiais/Noticias/0,,MUL968964-16107,00-
GRAVATA+SURGIU+PARA+LIMPAR+SUOR+E+VIROU+SIMBOLO+DO+PODER+MASCULINO.html.
Acessado em: 17/05/2017.
35
a superior atenção de vossa excelência para um facto até agora mantido em segredo
(SARAMAGO, 2004, p.180).
O homem da gravata azul com pintas brancas escolhe o sítio donde disparará e põe-
se à espera. E uma pessoa paciente, leva nisto muitos anos e sempre faz bem o seu
trabalho. Mais cedo ou mais tarde a mulher do médico terá de vir à varanda... A mulher
aproxima-se da grade de ferro, põe-lhe as mãos em cima e sente a frescura do metal.
Não podemos perguntar-lhe se ouviu os dois tiros sucessivos, jaz morta no chão e o
sangue desliza e goteja para a varanda de baixo. (SARAMAGO, 2004, p.329)
Além da mulher do médico, utilizada como símbolo – ainda que involuntário – daquela
onda de lucidez, seu animal de estimação, o cão das lágrimas, também utilizado por José
Saramago como símbolo de fidelidade em Ensaio Sobre a Cegueira, uma vez que passara a
acompanhar a mulher do médico foi morto pelo homem da gravata azul de bolinhas brancas em
ESL. A figura simbólica do cão na ocasião da morte de sua dona pode ter ligação com um dos
mitos acerca dessa espécie animal, tal qual descrita no Dicionário de Símbolos: “l. A função
mítica do primeiro cão, universalmente aceita, é a de guiar o homem na noite da morte depois
de ter sido seu companheiro no dia...o cão tem emprestado sua figura para todos os principais
guias de almas” (CHEVALIER, 1986, p.816), afinal, após ser atingida pelos tiros disparados
por seu algoz, o primeiro a chegar foi seu cão de estimação. Ligando-se a cena ao mito, o cão
das lágrimas servira como guia para a alma de sua dona após a morte desta. A exemplo da
mulher do médico, o cão das lágrimas também foi vítima do homem de gravata azul com pintas
brancas: “Mas havia também um cão aos uivos, Já se calou, deve ter sido o terceiro tiro”
(SARAMAGO, 2004, p.829).
36
“Mau tempo para votar, queixou-se o presidente da mesa da assembleia eleitoral número
catorze” (SARAMAGO, 2004, p.5). A narrativa de ESL teve início descrevendo intensa chuva
que caíra sobre aquele país fictício. Chuva que, instantes depois, seria o prelúdio de uma
revolução branca na capital daquele país. Segundo o Dicionário de Símbolos, “a chuva é graça
e sabedoria... A associação simbólica “lua-água-primeira chuva-purificação” aparece
claramente em cerimônias realizadas pela ocasião Inca da festa da Lua, de 22 de setembro à 22
de outubro” (CHEVALIER, 1986, p.671-672). A chuva descrita por Saramago representou o
início de um período de sabedoria e purificação de parte da população daquela capital,
elementos indispensáveis para a tomada de decisão pelo voto em branco, face ao
descontentamento com a situação política local. A associação entre chuva e água, seu elemento
formador, indispensável à manutenção da vida na Terra, reforçara a ideia de purificação e
regeneração, uma vez que, Jean Chevalier descrevera a água também como símbolo de
renovação e regeneração (CHEVALIER, 1986, p.52).
A partir da chuva de sabedoria, grande parte dos cidadãos daquela capital optaram por
votarem em branco, numa tentativa silenciosa de revolução, uma vez que os políticos daquele
país fictício, provavelmente, não atingiram as expectativas e anseios daquele povo. Na
simbologia, o branco representara o renascimento da alma, de pureza, de que algo não se
cumprira ainda (CHEVALIER, 1986, p.191). Sob esta ótica, pode-se inferir que o voto em
branco, mais do que um simples direito do cidadão, representara tentativa de renascimento, de
início de uma nova era. O branco, ainda sob a ótica do Dicionário de Símbolos, representara,
em algumas tribos africanas, a saída do corpo social, o preparo para o amadurecimento e para
a responsabilidade (1986, p191). Em ESL, após os eventos dos votos em branco, grande parte
da população mostrara-se foi do corpo representado por aquele país fictício, sendo tratada pelo
37
Estado deste como intrusos, estranhos àquele lugar. O voto em branco, naquela ocasião,
representara o amadurecimento daqueles eleitores que, preocupados com os rumos da política
nacional, optaram pela ruptura com o que estava estabelecido, tornando-se responsáveis por
uma onda de lucidez que assustara os poderosos – e os acomodados – daquela nação.
Associada à chuva, a noite também foi descrita por José Saramago em ESL na ocasião
do retorno dos cidadãos da capital favoráveis ao governo para casa após tentativa de fuga
frustrada por ele próprio:
Além das menções que fizera à noite, ao dia e à chuva, José Saramago, em ESL, fizera
menção a um símbolo muito comum nos âmbitos astronômico e astrológico: a estrela. O
Dicionário de Símbolos apontou-a como “símbolo de conflito entre as forças espirituais, entre
38
Peço-lhe que olhe para trás, senhor presidente, por favor, Para quê, As luzes, Que têm
as luzes, Continuam acesas, ninguém as apagou, E que conclusões quer que eu tire
destas luminárias, Não sei bem, senhor presidente, o natural seria que as fossem
apagando à medida que fôssemos avançando, mas não, aí estão elas, imagino que
vistas do ar aparecerão como uma enorme estrela de vinte e sete braços, Pelos vistos,
tenho um primeiro-ministro poeta, Não sou poeta, mas uma estrela é uma estrela
(SARAMAGO, 2004, p.84)
O vento, outro importante fenômeno da natureza, também foi utilizado como símbolo
por José Saramago em ESL na ocasião da manifestação silenciosa após os atentados na estação
do metrô. Jean Chevalier, no Dicionário de Símbolos, apresentara o vento como suporte do
mundo e regulador dos equilíbrios cósmicos e morais (1986, p.1070). Ora, após o
estarrecimento do enterro das vítimas que sucumbiram à explosão da bomba naquele local e da
possível destruição do palácio presidencial que estava no caminho da manifestação que se
formara após o sepultamento daquelas vítimas, equilíbrio moral foi essencial para que aquela
população, já abandonada a própria sorte, não revidar a atrocidade do governo com mais
destruição.
As pessoas chegaram e encheram a praça, estevem meia hora a olhar em silêncio para
o palácio fechado, depois dispersaram-se e, uns andando, outros nos autocarros, outros
à boleia de desconhecidos solidários, foram para casa. (SARAMAGO, 2004, p.136)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo desta deste trabalho foi apresentar o universo simbólico à luz da pós-
modernidade em ESL, confrontando as principais características desta era com a vida do autor
e também com alguns dos elementos simbólicos utilizados na obra. Pôde-se observar que José
Saramago, enquanto jornalista, escritor e ativista político, transportara para suas obras as
vivências que teve e os fatos que presenciou não somente em Portugal, mas em outros países
do globo. O escritor levara para ESL sua ficção histórica, cujas vidas das massas representadas
no enredo se misturam à poética da obra (LOPES, 2010, p.218). José Saramago esteve
comprometido com os aspectos históricos e sociais da pós-modernidade a fim de fornecer aos
seus leitores conhecimento suficiente para estes mudarem suas vidas, afinal, um dos pilares da
pós-modernidade é justamente a capacidade do indivíduo de adquirir conhecimento para moldar
novas identidades ou modificar a estrutura das antigas (BAUMAN, 2014, p.17).
Ainda no âmbito deste trabalho, pode-se observar como ESL mostrara ao mundo como
a população de um local, independentemente de onde viva, pode romper com a situação política
vigente – dominada não apenas por políticos de carreira, como também por empresários,
especuladores do mercado financeiro e pela mídia – que, através da tecnologia, têm
disseminado ideais falsos de uma pretensa, e inalcançável, vida estável e feliz. (BAUMAN,
2014, p.42) e ainda como José Saramago apontou para um dos desejos mais profundos do
homem pós-moderno: a vontade de liberdade e como cada grupo populacional entendera esta
vontade. Um rompendo com tudo de errado que havia no cenário político, tais como promessas
falsas, vazias e corrupção, através do voto em branco, uma vez que “talvez, no fim de contas,
as pessoas só se tenham cansado das palavras” (SARAMAGO, 2004, p.136). Ainda no âmbito
pós-moderno descrito pelo Sociólogo Polonês Zygmunt Bauman, foi mostrado, à luz da análise
bibliográfica, uma das formas de forjar-se uma identidade, além dos fatos que propiciaram a
criação de estranhos, individualmente ou em grupo (SARAMAGO, 2004, p.132), além dos
métodos que os ditos normais utilizaram para lidarem com esses grupos de estranhos
(SARAMAGO, 2004, p.329).
Para tornar a história mais rica de detalhes, José Saramago utilizara-se de alegorias e
símbolos que, à primeira vista, poderiam funcionar como meros adereços e enfeites na história.
Porém, o autor, devido à vivência que teve, percebera que o texto, ainda que rico e extenso,
precisara de elementos capazes de contar mais do que aparentaram (ROCHA, 2010, p.490), por
isso a utilização dos elementos citados anteriormente. O leitor de ESL, se não dotado de
conhecimento prévio de história, local ou global, além de noções de simbologia, provavelmente
não terá uma interpretação completa acerca dos fatos da narrativa.
José Saramago, tal qual a chuva e a luz em ESL, foi um símbolo de renovação e de
sabedoria, quebrando paradigmas em um período tão intenso e, ao mesmo tempo, tão carente
de escritores que atentem à população para as mazelas políticas e sociais vigentes. Ao contrário
da alegoria, que tem sentido mais restrito e menos abrangente, o autor não necessita de outros
contextos para ser entendido. O autor tornara-se símbolo da observância, da crítica e da
denúncia dos poderosos pós-modernos, além de um defensor incansável da revolução popular,
a qual acreditara o autor ser a porta de saída da cegueira na qual estamos imersos rumo à lucidez.
42
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44
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