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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS - UNIMONTES

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS - CCH


DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS

VANÚSIA COSTA FAGUNDES

O ESTADO DE NATUREZA PÓS-RUPTURA DO CONTRATO SOCIAL: UMA


ABORDAGEM FILOSÓFICA, SOCIOLÓGICA E LITERÁRIA DA OBRA ENSAIO
SOBRE A CEGUEIRA DE JOSÉ SARAMAGO

ALMENARA – MG
JANEIRO 2019
VANÚSIA COSTA FAGUNDES

O ESTADO DE NATUREZA PÓS-RUPTURA DO CONTRATO SOCIAL: UMA


ABORDAGEM FILOSÓFICA, SOCIOLÓGICA E LITERÁRIA DA OBRA ENSAIO
SOBRE A CEGUEIRA DE JOSÉ SARAMAGO

Monografia apresentada ao curso de Letras/Português


da Universidade Estadual de Montes Claros -
Unimontes, como requisito para obtenção de
certificação de Licenciatura em Letras Português.

Orientadora: Profª Doutora a Alexsandra Loiola


Sarmento

ALMENARA - MG

JANEIRO 2019
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS
DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS - CCH
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO - MONOGRAFIA

DEFESA PÚBLICA DO TRABALHO DE MONOGRAFIA


LETRAS PORTUGUÊS

FOLHA DE APROVAÇÃO

Autor: Vanúsia Costa Fagundes


Título: O estado de natureza pós-ruptura do contrato social: uma abordagem filosófica,
sociológica e literária da obra Ensaio sobre a cegueira de José Saramago

Monografia defendida e aprovada em _____/_____/______,

com NOTA ____ ( ), pela comissão julgadora:

__________________________________________
Orientadora
Profª. Doutora Alexsandra Loiola Sarmento
__________________________________________
Profº Doutor Valdirlen do Nascimento Loyolla
__________________________________________
Profª Mestre Elen Cristina Rocha
______________________________________
Prof.ª Doutora Liliane Pereira Barbosa
Coordenadora do Curso de Letras/Português
______________________________________
Prof.ª Mestre Fabiana Cardoso da Fonseca
Coordenadora do TCC/MONOGRAFIA– Campus Almenara
Este trabalho é dedicado à mestra competente, à mãe amorosa e à amiga conselheira Iara
Coelho por ter enxergado em mim mais do que eu mesma pude ver e por todas as razões que
eu considero de valor e que as palavras existentes não são suficientes para expressar algo tão
grande. A você mestra e amiga, direciono todo meu respeito e admiração. Você é a luz que eu
vejo.
AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu irmão Gildson pelo apoio técnico de todas as horas. Ao meu amigo Alberto
pelos momentos de descontração e troca de ideias. As minhas primas Cristiane e Amanda por
terem me proporcionado diversos momentos de lazer em tempos de cansaço mental. Também
agradeço à professora e orientadora Alexsandra por ter me colocado na direção das obras do
escritor português José Saramago o qual conquistou minha total admiração pelo seu estilo
carregado de crítica social dentre outros talentos.
Não se percebeu ainda que o instinto serve melhor aos
animais que a razão serve aos homens... (SARAMAGO,
2008).
Sumário
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................................... 8
CAPÍTULO I - APRESENTAÇÃO DO AUTOR JOSÉ SARAMAGO E AS TEORIAS DO HOMEM EM RELAÇÃO
AO ESTADO DE NATUREZA .................................................................................................................... 10
1.1 José Saramago: a vida e a produção literária .............................................................................. 10
1.2 A influência do contemporâneo na produção literária de Saramago ......................................... 13
1.3 O homem: do estado de natureza ao contrato social ................................................................. 17
CAPITULO II – ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO LITERÁRIA DO HOMEM NA CONDIÇÃO DE ESTADO DE
NATUREZA EM O ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA ...................................................................................... 23
2.1 O homem na condição de estado de natureza e os efeitos na vida social ................................. 23
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................................................ 43
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................................. 44
ANEXO.....................................................................................................................................48
RESUMO

O presente trabalho tem como objeto de estudo a obra Ensaio sobre a cegueira, do escritor
portugués José Saramago. O objetivo da pesquisa é analizar, do ponto de vista filosófico,
sociológico e literário, a representação literária do homem em seu estado de natureza,
atentando para o seu agir irracional e violento a partir do momento que ele se encontra
privado dos elementos básicos da vida civilizada. Essa proposta de abordagem busca
identificar os propulsores negativos que vão influenciar no agir agressivo dos personagens, de
uma forma crescente. observando, assim, a transformação do indivíduo de ser social e
racional para uma pessoa que passa a responder aos instintos primitivos em defesa da
sobrevivência. Logo, questões que circundam a cegueira moral, a difusão do medo, a violação
dos direitos humanos por parte do Estado, são observados como forma de demonstrar que a
linguagem literaria é capaz de dialogar tanto com a área da filosofía, quanto a da sociología.
Frizando, assim, o caráter sem fronteiras do texto subjetivo e expandindo o campo de análise
de uma obra literaria.

Palavras-chaves: Saramago, cegueira, estado de natureza, instinto primitivo, sobrevivencia,


ABSTRACT

The objetive this work is sstudy the novel Ensaio sobre a cegueira writen by Portuguese José
Saramago. The aim of the research is to analyze, from the philosophical, sociological, and
literary’s point of view, the literary representation of the man in his state of nature, paying
attention to his irrational and violent action from the moment he is deprived of the basic
elements from civilized life. This proposal of approach intends to analyze the negative
indicators that will influence the personages’s aggressivebehave, increasingly. Looking the
individual ‘s transformation from being social and rational to a person who starts to respond
to primitive instincts in defense of survival . Therefore, questions about moral blindness, the
diffusion of fear, the violation of human rights by the State, are observed as a way of
demonstrating that literary language is capable of dialoguing not onlu the field of philosophy,
but sociology too. Demonstrating the borderless character of the subjective text and
expanding the field of analysis of a literary work once again.

Keywords: Saramago, blindness, state of nature, primitive instint, survive


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INTRODUÇÃO

O presente trabalho aborda o romance do escritor português José Saramago Ensaio


sobre a cegueira e almeja demonstrar que um texto literário pode alcançar questões
antológicas abordadas pela filosofia fazendo uso da ficção. Embora se trate de uma análise
de um texto subjetivo, é a representação literária da natureza humana do então “ser
racional” que está em estudo, pois as atitudes narradas na obra não se apresentam distantes
da realidade da humanidade.
Nesse sentido, levanta-se a questão do o agir do indivíduo, então dotado de razão,
respondendo ao estado de natureza pós uma ruptura dos elementos que asseguram a
confiabilidade do contrato social, ainda que conhecedor e praticante dos hábitos de uma
sociedade estruturada.
O objetivo precípuo é analisar a condição de estado de natureza pós-ruptura do
contrato social e sua influência no comportamento dos personagens da obra em questão.
Dentro dessa proposta, interpretar o texto literário sob a ótica filosófica; descrever do
ponto de vista filosófico e literário as passagens da obra que correspondam ao estado de
natureza; visualizar os sinais de cegueira moral e a difusão do medo e seus efeitos no seio
de uma sociedade individualista; apontar o abuso de poder e a violação dos direitos
humanos por parte do Estado sob a luz do Direito.
Logo, a presente linha de análise mostra-se relevante por considerar que uma
abordagem filosófica do texto literário só tende a expandir a profundidade hermenêutica
que essa leitura oportuna para ampliar o valor literário da obra abordada.
Para responder a proposta dos objetivos cernes deste trabalho, além da teoria
literária e da crítica literária da produção ficcional de Saramago, embasarão a pesquisa a
filosofia de Thomas Hobbes e os conceitos sociológicos defendidos por Zigmund Bauman.
Teóricos que serão uma constante neste conteúdo acadêmico. Em consonância essa
análise, busca-se fundamentação teórica tanto em obras históricas, quanto contemporâneas,
no campo da filosofia, sociologia e crítica literária, observada a pertinência dos autores
para os fins dos estudos da identificação do estado de natureza em Ensaio sobre a
cegueira.
No primeiro capítulo, em consulta à crítica literária de Saramago, é apresentada a
trajetória de vida desse escritor português, passando por sua instrução acadêmica e as
dificuldades por ele enfrentadas ao longo desse período, como se deram os caminhos das
9

primeiras produções; o período de confinamento e o espaço entre a censura de o Evangelho


Segundo jesus (1991) à consagração com o Nobel de Literatura pela obra Ensaio sobre a
cegueira (1995). Também, procura-se fazer um apanhado histórico da condição do ser
humano desde que se encontrava reunido em hordas e respondia ao estado de natureza,
passando pelo seu processo de socialização e celebração do contrato social. São observados
as aplicabilidade, causas de rompimento e as consequências para a vida civilizada em caso
de ruptura. Para essa linha de pesquisa, tanto Sigmound Freud, quanto o historiador francês
Fustel de Coulanges e Jean J. Rosseau serão fontes correntes.
O segundo capítulo inicia com a contextualização da narrativa do Ensaio sobre a
cegueira, quando faz a retomada do enredo e dá prosseguimento à análise da obra
propriamente dita, seguido dos estudos do ponto de vista filosófico, sociológico e literário.
Esta de uma forma mais branda por não ser o foco principal da análise. O estudo mostra, na
composição literária em questão, as passagens que correspondem à ruptura do contrato
social que, posteriormente, dão vazão aos instintos primitivos do homem, levando-o a
responder ao estado de natureza em nome da sobrevivência, bem como a violação dos
direitos humanos por parte do Estado e os efeitos do medo na reação humana.
Expostos os caminhos desta linha de trabalho, prossegue-se com, por fim, ao objeto
de análise foco desta monografia.
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CAPÍTULO I - APRESENTAÇÃO DO AUTOR JOSÉ SARAMAGO E AS TEORIAS DO


HOMEM EM RELAÇÃO AO ESTADO DE NATUREZA

1.1 José Saramago: a vida e a produção literária

O escritor português José de Souza Saramago teve suas raízes alicerçadas na


simplicidade de uma origem humilde. A vida escolar do autor foi marcada pela dedicação aos
estudos, que lhe rendeu um avanço em sua série inicial; todavia, na adolescência, já cursando
o Liceu, foi obrigado a abandonar a escola por motivos financeiros. Fato que o distanciou das
Letras, forçando-o a cursar um ensino técnico que o habilitou como serralheiro mecânico.

Nasci numa família de camponeses sem terra, em Azinhaga, uma pequena população
situada na província do Ribatejo, na margem direita do rio Almonda, a uns cem
quilómetros a nordeste de Lisboa. Meus pais chamavam-se José de Sousa e Maria da
Piedade. José de Sousa teria sido também o meu nome se o funcionário do Registo
Civil, por sua própria iniciativa, não lhe tivesse acrescentado a alcunha por que a
família de meu pai era conhecida na aldeia: Saramago. (Cabe esclarecer que
saramago é uma planta herbácea espontânea, cujas folhas, naqueles tempos, em
épocas de carência, serviam como alimento na cozinha dos pobres). (SARAMAGO,
2018, s/p).

No entanto, para o logro de Saramago, o ensino técnico trazia em sua grade curricular
a disciplina literatura, o que possibilitou ao autor apreciar as leituras, então de caráter
antológico, fato pertinente que abriu os caminhos dele para a literatura. Sua falta de
recursos para a aquisição de livros e a ocupação numa oficina mecânica durante o dia
forçaram-no a frequentar a biblioteca pública de Lisboa no período noturno. “ (...) Sem ajuda,
sem orientação, apenas levado pela curiosidade ". (SARAMAGO, 2018, s/p).
Em 1944, o autor passou a ocupar um cargo público administrativo num órgão de
Segurança Social(OSS) e, três anos mais tarde, teve duas publicações sem maiores
repercussões, segundo ele: "Não tinha para dizer algo que valesse a pena". (SARAMAGO,
2018 s/p). Por motivos de cunho político, perdeu o emprego e, devido a esse fato, viu-se
compelido a retornar ao antigo ofício. Relata o escritor: "Por 19 anos fiquei ausente do mundo
literário poucos foram os que sentiram minha falta". (SARAMAGO, 2018, s/p).

O retorno de Saramago ao mundo das Letras resumiu-se ao lavoro numa editora, mas
não como autor, e sim, produtor. Um adendo que proporcionou a ele conhecer escritores
portugueses de grande prestígio e, para complementar sua renda, passou a realizar atividades
como tradutor de obras de escritores renomados, como: Colette, Pär Lagerkvist, Jean Cassou,
11

Maupassant, André Bonnard, Tolstoi, Baudelaire, Étienne Balibar, Nikos Poulantzas, Henri
Focillon, Jacques Roumain, Hegel, Raymond. Tais tarefas eram realizadas no tempo livre e
concomitante ao exercício de crítico literário, que perdurou entre 1955 e 1981. Consoante
Saramago (2018)

Deixei a editora no final de 1971, trabalhei durante os dois anos seguintes no


vespertino Diário de Lisboa como coordenador de um suplemento cultural e como
editorialista. Publicados em 1974 sob o título As Opiniões que o DL teve, esses
textos representam uma “leitura” bastante precisa dos últimos tempos da ditadura
que viria a ser derrubada em Abril daquele ano. Em Abril de 1975 passei a exercer
as funções de diretor-adjunto do matutino Diário de Notícias, cargo que
desempenhei até Novembro desse ano e de que fui demitido na sequência das
mudanças ocasionadas pelo golpe político-militar de 25 de daquele mês, que travou
o processo revolucionário. (SARAMAGO, 2018, s/p).

Diante dessa realidade, o escritor português, por fim, passou a se dedicar a produção
literária, retirando-se para uma cidade provinciana do além-Tejo para estudos, coleta de
dados, reflexões. Como fruto desse período a novela Levantado do chão (1980), uma obra
que retrata o conflito social no qual estão envolvidos povo, latifundiários, oficiais e clero,
(MAIA, 2010). Contudo, seu retorno ao seio literário se deu com a coletânea Os Poemas
Possíveis e Provavelmente Alegria, lançados respectivamente em 1970.
Dentre seu acervo, pode-se destacar Memorial do Convento (1982); O Ano da Morte de
Ricardo Reis (1984); A Jangada de Pedra (1986); Todos os Nomes (1997); A Caverna
(2000); As Intermitências da Morte (2005), dentre outras, bem como peças teatrais, contos,
crônicas e poemas.
Para Massaud Moisés (2008, p. 527) “Sob o signo do mais cerrado realismo, a ficção de
José Saramago ergue-se sobre um tripé, composto pela História, os temas imprevistos,
originais, e a ideologia”. Todavia, seu estilo próprio crítico/irônico não foi bem recepcionado
pelo governo português quando se deu a publicação da obra O Evangelho Segundo Jesus em
1991. Por causa da censura exercida pelo governo, o livro teve a apresentação vetada no
Prêmio Literário Europeu sob o subterfúgio de ser uma afronta aos preceitos religiosos, dada
sua construção crítica ao texto canônico e um adendo quanto à posição de Saramago como
ateu e socialista declarado.
Dois anos após esse episódio, o escritor mudou-se com sua esposa para a Ilha de
Lanzarote. Lá se concentrou em outras produções, dentre elas o romance Ensaio sobre a
cegueira (1995), que lhe rendeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1998. Para Leila Perrone-
Moisés, esse foi um prêmio mais que merecido dado sua qualidade literária:
12

(Se e o considerarmos, porém, do ponto de vista do valor literário, o prêmio não foi
nenhum milagre. Foi dado a um escritor "inveterado" que, ao contrário do que se
diz, não apareceu de repente, mas que tem produzido, ao longo de décadas, uma
obra vasta que abarca vários gêneros literários (poesia, crônica, dramaturgia,
conto, romance, diário). Digamos então, de uma vez por todas: Saramago recebeu o
prêmio por sua obra pessoal, inconfundível e intransferível. Conquistou-o por seu
enorme talento, por seu obstinado trabalho, e o júri não fez mais do que sua
obrigação. (PERRONE MOISÉS, 1998, s/p)

O estilo próprio de Saramago, nessa obra, sugere um diálogo entre os elementos da


ficção e a realidade. Narrativa capaz de provocar no leitor um incômodo, passível de reflexão
no que concerne à visão da própria cegueira. De acordo Perrone-Moisés (1998), “As histórias
por ele narradas sempre tiveram uma função de parábola, isto é, uma narração alegórica que
remete a realidades e reflexões de ordem geral e superior à dos eventos narrados. ”
No âmbito literário, é possível identificar um ritual antropofágico no sentido de
absorver não só as questões sociais, dentre outras, mas como também abordar a existência
humana e seus questionamentos do ser inseridos, explorados e contextualizados no corpo
literário, ou seja, um processo de decantação, fermentação e destilação da linguagem
subjetiva.

Chama-se arte literária ao conjunto de beneficiamentos que as tornam inofensivas.


Curtidas, refinadas, quimicamente tratadas, elas fornecem aos seus ...compradores
a oportunidade de consagrar à cultura da subjetividade alguns momentos de uma
vida inteiramente voltada para o exterior. (SARTRE, 2004, p. 27).

Sob o véu da arte tecido por uma literatura fantástica, em Ensaio sobre a cegueira,
percebe-se a construção e a organização dos elementos que envolvem o leitor numa viagem à
reflexão do eu-interior e seu papel como ser social contemporâneo. Nessa obra, aparecem
temas relacionados à ruptura do contrato social, ao direito, à dignidade da pessoa humana, à
cegueira moral, dentre outros, que são perceptíveis ao longo da narrativa. Tais matérias são
recorrentes em qualquer sociedade sendo retratadas de uma forma subjetiva e irônica segundo
o próprio autor ao se referir ao seu estilo em entrevista ao jornalista Juan Cruz (junho 2000).
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1.2 A influência do contemporâneo na produção literária de Saramago

Portugal, como outras pátrias exaltadas pelos seus artistas, teve e tem as glórias de
feitos de suas conquistas enaltecidas e retratadas por talentos nativos. De Camões a Fernando
pessoa, cada autor em sua época e a seu modo, propagou o orgulho lusitano, embora seja
possível, em Os Lusíadas, perceber no Canto IV a voz do velho do restelo exalando um
descontentamento quanto à expedição de Vasco da Gama, uma menção à real necessidade de
uma cruzada em tempos de crise política e econômica em Portugal. Já naqueles tempos, os
autores expressavam o desagrado de uma forma subjetiva nas obras. Saramago, como autor
contemporâneo, não se distanciou dessa linha no que concerne a matéria portuguesa. Todavia,
a concepção de glória cedeu espaço ao uso da crítica direcionada às querelas de sua pátria,
isto é, uma configuração da apatia dela diante das transformações dos novos tempos.

Suas convicções iberistas, reforçadas pela fraternal relação que manteve com a
Espanha, mereceram-lhe desqualificações, acentuadas pela firmeza e
peremptoriedade das suas declarações. O autor de A jangada de pedra confessava
ter perdido o sentimento idealizador da pátria, mas se declarava orgulhoso de ser
português e do que seu país fez dele. (AGUIRELA, 2010, p.67).

Consoante Aguirela (2010), a partir de 1989, quando regressou a Portugal, o estilo


crítico, irônico, tornou-se mais amplo com o lançamento de Ensaio sobre a cegueira (1995),
no qual se visualiza uma crítica diretamente ao ser humano na essência de sua existência e
como ser social e moral. " Quem somos e de onde vimos é o que procuro dizer nos meus
livros". (SARAMAGO, 1985, nº437, apud AGUIRELA, 2010, p. ). Vale ressaltar que o
desapontamento de Saramago, quanto à mágoa que nutre por Portugal, refere-se ao governo e
não ao povo por ter sido publicamente ofendido em relação à obra O Evangelho Segundo
Jesus. No entanto, a desaprovação no ceio canônico direcionada a ele, por causa da alusão ao
texto bíblico, não o impediu de sempre se posicionar contra os dogmas católicos e, não
abandonando seu estilo irônico, deixar como seu último legado a obra inacabada Caim (2009)
(SALATIEL, 2010).
A Literatura Contemporânea ergueu-se acompanhando as transformações do mundo
herdadas com o pós-guerra e regimes ditatoriais que algumas nações enfrentaram, como ,por
exemplo, Portugal e a era salazarista. De acordo Massaud Moisés (2008), as tendências
contemporâneas da produção literária portuguesa foram envolvidas pelo Neo-Realismo e
Surrealismo, isto é, traços de escolas anteriores em que a descrição minuciosa da crítica
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social, do espaço físico, do naturalismo, do presságio surgem de uma forma mais


subentendida em que a crítica, seja qual for sua direção, está metaforicamente retratada.

Vinculando-se às experiências já conhecidas, repercutindo uma das linhas de forças


mais ativas da literatura hispano-americanas das últimas décadas do século XX, a
ficção de recorte fantástico, ou mágico, igualmente abre espaço na produção
nacional do pós-guerra. Para tanto, o místico, o maravilhoso, o sobrenatural, o
fantasioso, tornam-se categorias discerníveis na realidade histórica. (MOISÉS, 2000,
p. 368).

Por meio da escrita neo-realista, Saramago pôde expressar sua ideologia socialista que
pode ser identificado em seu acervo literário. Traços perceptíveis que denotam a postura de
opositor ao regime político de Portugal e as questões de cunho religiosos. Entretanto, para
Lima (2010), o autor apresenta uma posição utópica em relação ao ato de agir mais
pontualmente em defesa do que ele sustenta como modelo de socialismo, ou seja, concepções
que são retratadas por intermédio da linguagem literária e não do atuar na linha de frente
política. Ainda, na visão de Lima (2010), compete às novas gerações imortalizar ou não um
autor, felizmente, no caso de Saramago, , o escritor teve o reconhecimento que a literatura
contemporânea lhe oportuna desferindo a ele os louros em vida, diferente de vários outros
autores de renome que tiveram o reconhecimento apenas após a morte, como foi o caso do
poeta brasileiro Cruz e Sousa . Para Perrone Moisés (1998), o escritor português alcançou um
feito no seio da literatura moderna ao ter o valor literário de suas obras respeitadas por outros
países, bem como serem objeto de análise em instituições escolares, dado a profundidade e a
forma com que ele tece suas histórias.
Quanto ao estilo próprio do escritor, é possível constatar o não-compromisso com as
normas gramaticais no quesito pontuação, pois a ausência das vírgulas e o emprego dos dois
pontos são suprimidos no discurso direto por outros sinais adversos e o início do enunciado
aparece marcado com maiúsculas; já as vírgulas são utilizadas para diferir as vozes dos
personagens. Um adendo que pode causar um primeiro estranhamento ao leitor, porém essa
particularidade não compromete o entendimento do enredo devido à articulação das ideias
sequenciadas como pode-se apurar no excerto de outra obra de Saramago O Evangelho
Segundo Jesus.

[...] enquanto dizia em surda e ressoante voz, O barro ao barro, o pó ao pó, a terra à
terra, nada começa que não tenha de acabar, tudo o que começa nasce do que
acabou. Turbou-se Maria e perguntou, Isso que quer dizer, e o mendigo respondeu
apenas, Mulher, tens um filho na barriga, e esse é o único destino dos homens,
começar e acabar, acabar e começar, Como soubeste que estou grávida, Ainda a
barriga não cresceu[...]. (SARAMAGO,2018 , p.14).
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Outra característica do autor é o entrelaçamento das modalidades discursivas, que


coexistem no corpo textual; ora narrativo, ora discursivo direto e indireto e ainda há as
narrativas descritivas e os monólogos. Também podem ser identificados o uso de
polissíndetos e verbos no presente do indicativo como forma de realçar os acontecimentos. A
inserção de provérbios e ditos populares são recorrentes no entrelaçamento textual como é
possível verificar nos excertos “ [...] enquanto não tiver comido, já dizia o outro que primeiro
come-se, depois é que se lava a panela [...]”; “[...] Já lá dizia o outro que na terra dos cegos
quem tem um olho é rei [...]” (SARAMAGO, 2000, p. 103). Na concepção do mestre,
particularidades que não comprometem o entendimento do enredo.

Eu sou capaz de entender um livro de um autor brasileiro com sua grafia, modos e
sintaxe próprios. E sei que os brasileiros também compreendem o que é escrito à
maneira de Portugal. Se eu admitisse a mudança [ortográfica], estaria negando a
identidade da língua portuguesa. (SARAMAGO, 1994, p.4.1).

A criação de novas palavras e os trocadilhos são outras presenças marcantes na


linguagem trabalhada pelo mestre português, que ainda é capaz de agregar ao seu estilo a
aplicação de expressões contraditórias, a constante utilização da metáfora sugestiva e o
cenário de interação que envolve narrador e leitor. Além disso, compõe o seu estilo os
aforismos, sentenças breves que remetem a um pensamento, a uma norma, a um princípio ou
advertência. Em síntese, textos que fazem uma mediação entre o pensamento filosófico e a
linguagem literária no que tange as questões de caráter moral, são marcas da abordagem
filosófica que o autor explora em seus romances.
Nas publicações póstumas de Nietzsche (2013), percebe-se que ele já assinalava que
numa dada altura os pensamentos do filósofo e a produção artística se tornam um só, isto é,
no seio da arte e da filosofia, o trabalho visa a perenidade da inteligência.

No mundo esplêndido da arte – como é que puderam filosofar? Quando se atinge


um aprimoramento da vida cessará o filosofar? Não, é então somente que começa o
verdadeiro filosofar. O juízo sobre a existência revela mais a respeito, pois tem
diante dele o acabamento relativo, todos os véus da arte e todas as
ilusões.(NIETZSCHE, 2013, p. 18 ).

Nota-se que essa relação de articulação entre pensamento racional e visão literária
outrora apontada, embora fragmentada, por Nietzsche é retomada nos dias atuais sob a
concepção do filósofo Benedito Nunes sob a seguinte propositura:
16

Filosofia e arte são modos de dizer o mundo. “Pois filosofar buscar, é implicar que
há coisas para ver e dizer (Car philosopher, e’est Chercher, e’est impliquer qu’il y a
des choses àvoire ei à dire). Mais do que aproximação, há contiguidade entre as
duas, porquanto a Filosofia explicita a experiência humana, concretizada, em
linguagens diferentes, na Literatura e na Arte. (NUNES, 2012 , p.183 ).

Nunes (2012) relata que Platão rejeitava o texto poético, dado seu descompromisso
com a verdade e salienta que Aristóteles partia da concepção que o texto literário, dentro de
uma vertente, pode retratar questões antológicas e do cotidiano. Sendo possível observar a
relação de verossimilhança por intermédio desse paralelo entre ficção e razão. Desse modo se
a obra literária não traz consigo uma verdade de acordo o cerne da filosofia, é capaz, no
entanto, de abordar verdades do mundo real sob o manto da metáfora e, com isso, alimentar o
campo da reflexão.
Tendo em vista essa concepção, percebe-se que Ensaio sobre a cegueira reúne um
universo de questionamentos que abrangem a posição do homem tanto nas suas relações
sociais e em sociedade, quanto suas fraquezas e habilidades no uso da razão. Nota-se que
Saramago, em seu romance, mergulha no agir humano ao expor seus personagens a extremos
que os levam a responder aos mais primitivos instintos em que a razão é, momentaneamente,
suprimida. Consoante Lopes Teixeira (2010), literatura e filosofia se completam, no que lhes
é cabível, quando a alma humana é o alvo. Já para Nunes (2012), a filosofia não dispõe de um
recurso hermenêutico específico que alcance a profundidade da obra literária, haja visto o
campo sem fronteiras da imaginação. Outras áreas da ciência podem ser requisitadas como
Linguística, Sociologia, Psicologia, para analisar o texto literário e, ainda assim, não serão
suficientes. Segundo o filósofo:

[...] cada qual é capaz de iluminar a obra, e nenhuma, por si só, traz a completa
chave de sua decifração. Filosoficamente, o objeto literário permanece inesgotável.
Esse reconhecimento permite que a Filosofia continue operando como uma
aventura do pensamento diante da Literatura, respeitada enquanto experiência do
possível. Assim, embora na mais estreita vizinhança, a dialogação com a obra
literária, conduzida pela Filosofia, sempre colocará a imaginação nos limites do
Entendimento. (NUNES, 2012, p. 1185).

Amparando-se nesse possível diálogo, entre linguagem literária e filosófica, que se


encontra fundamentação para justificar esta análise por acreditar que esta linha de pesquisa
contribui para ampliar o campo de interpretação do texto literário ao procurar demonstrar que
Saramago articula o texto ficcional para retratar a vida real. Nas suas palavras: “ A minha arte
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consiste em mostrar que não existe diferença entre o imaginário e o vivido . O vivido podia
ser imaginado, e vice-versa.” (SARAMAGO, 1984 APUD Aguirela, 2012, p.141). Logo, tem-
se em Ensaio sobre a cegueira os elementos que atendem a esta linha de análise.

1.3 O homem: do estado de natureza ao contrato social

Partindo do elemento cerne do contrato social, que intermedeia as relações de direito


e dever entre o Estado e povo, desde que essa concepção foi adotada quando surgiram os
primeiros conceitos de comunidade a partir do momento que o homem começou a viver em
sociedade, faz-se necessário observar, numa breve retomada histórica, em que se ampara a
transferência do direito individual de vontade para outrem.
Freud, numa carta-resposta a Einstein em 1932, relatava ao físico que nos primórdios
da civilização, quando o ser humano se agrupava em pequenas hordas, definia-se o poder de
liderança ou assumia-se as posses de outras por meio da força bruta, isto é, o mais forte
fisicamente tinha o poder de subjugar seus inferiores. Posteriormente, essa força muscular foi
suplementada e a ela agregou-se as armas; nesse sentido, conquistava-se o poder não mais
aquele que se destacava por ser robusto, mas sim, o que vencesse a luta armada abatendo o
opositor ou tomando-o como exemplo deixando-o vivo porém adestrado. para que os outros
se sentissem intimidados em desafiá-lo e não investissem contra ele.

Esta foi, por conseguinte, a situação inicial dos fatos: a dominação por parte de
qualquer um que tivesse poder maior a dominação pela violência bruta ou pela
violência apoiada no intelecto. Como sabemos, esse regime foi modificado no
transcurso da evolução. Havia um caminho que se estendia da violência ao direito ou
à lei. Que caminho era este? Penso ter sido apenas um: o caminho que levava ao
reconhecimento do fato de que à força superior de um único indivíduo, podia-se
contrapor a união de diversos indivíduos fracos. (FREUD,2018, s/p).

Seguindo a linha de pensamento de Freud (1932), essa forma de poder declinou-se a


partir do momento em que a maioria se une em prol de um todo para depor ou restringir o
poder do algoz e, com esse entendimento de coletividade, passaram a elaborar as primeiras
concepções de ordem legal com intuito de suprimir a ascensão do poder pela violência. Nessa
direção, percebe-se a transição da convivência humana enquanto horda para o caminho do
nascimento das comunidades e os passos da celebração do contrato social entre a vontade do
povo, materializada em forma de lei, e o agente que as representará.
18

Para atingir os fins da compreensão dessa noção de que as primeiras civilizações


estavam a se relacionar na condição de horda aludida por Freud; convém retomar o
indivíduo no período em que ele respondia ao seu estado de natureza, ao qual o filósofo
Thomas Hobbes (2005) referiu-se como sendo um momento da história humana intitulada "a
guerra de todos contra todos".
Sob a linha filosófica de Hobbes (2005), primeiramente, quando as relações
contratuais ainda não eram de conhecimento do homem, a ordem social era fundamentada
pelo entendimento de igualdade de poder, isto é, não havia uma entidade Estado como
doutrinador da relação entre direito e dever. Dessa forma, o estado de natureza assumia o
papel de controle com base na lei da revanche que , consoante a lei natural descrita pelo
filósofo, se alguém tivesse seu pertence surrupiado lhe renderia o direito de cometer o mesmo
ato contra aquele que lhe causara a ofensa. Essa conjuntura, então torpe, de igualdade
estendia-se aos casos de agressão e morte, em que uma vida perdida pelo ofendido daria a ele
o direito de tirar outra da família do agressor, bem como a fragilidade dos pactos e juramentos
não sacramentados por contrato. Logo, ficavam à mercê do instinto de sobrevivência do
homem, que tende a rompê-los a partir do momento que sentir a necessidade de defender o
seu direito à vida e à posse (HOBBES, 2005).
É pertinente salientar que tais comportamentos das civilizações antigas podem, numa
primeira apreciação, parecerem não condizer com os dias atuais, em que se entende ser a
concepção de dignidade da pessoa humana e a defesa dos direitos humanos acentuados pós 2ª
Guerra Mundial serem pautas recorrentes dos Fóruns Internacionais que debatem a respeito
desse tema. No entanto, é possível identificar os traços da visão do revidar a ofensa na
mesma proporção, embora em contextos diversos, e amparados em outras justificativas, nos
textos históricos.
Pode-se ilustrar como exemplo que essa imagem de igualdade de reparo chegou a ser
vívida nos povos figurantes dos relatos bíblicos do antigo testamento como se percebe no o
fragmento da lei de Moisés " Mas se houver morte, então darás vida por vida, Olho por olho,
dente por dente, mão por mão, pé por pé, Queimadura por queimadura, ferida por ferida,
golpe por golpe"(ÊXODO, cap. 21, vers. 23 a 25). Quando se observa as particularidades
inerentes à Idade Média no que tange a relação de poder entre a Igreja e o povo em meio ao
estabelecimento das nações até chegar aos dias contemporâneos, percebe-se, ainda, que há
países que adotam a pena de morte, como punição máxima, amparados ora por constituições
vigentes, ora por preceitos religiosos, em nome do bem-estar do coletivo que é o cerne da
ordem social.
19

Para Hobbes (2005), no estado de natureza, a complacência é o que vai garantir o


convívio pacífico entre os grupos e o ato de perdoar a ofensa será o pressuposto para se evitar
os conflitos. A não-comunhão dessas virtudes leva à direção da vingança como forma de
preservar um interesse futuro. Assim sendo, infere-se que era com base em ações e reações
das pessoas que compartilhavam uma determinada localidade que se alcançava um consenso
básico para a elaboração de normas. E, ainda na linha do filósofo, depreende-se que o ciclo
de atitudes entre os atores da sociedade e os resultados ora negativos, ora positivos dos atos
que delas provinham eram utilizados como norteadores das leis para doutrinara co-existência.
Um contrato que, em conformidade com Hobbes, estava sujeito a fragilidades de
interpretações, haja vista o caráter vulnerável dos primeiros acordos entre os polos no âmbito
do estado de natureza.

A ignorância das causas e da constituição original do direito, da eqüidade, da lei e da


justiça predispõe os homens para tomarem como regra de suas ações o costume e o
exemplo, de maneira a considerarem injusto aquilo que é costume castigar, e justo
aquilo de cuja impunidade e aprovação pode apresentar um exemplo, ou (como
barbaramente lhe chamam os juristas, os únicos que usam esta falsa medida) um
precedente. (HOBBES, 2005, p.39).

Para o historiador francês Fustel de Coulanges (2006), inicialmente, o homem como


ser social estava limitado a sua família, em outras palavras, cada grupo se relacionava apenas
entre o grau de parentesco e a crença na mesma entidade; logo, tem-se o estado de família em
que o poder do patriarcado era a voz ativa. Para que um membro de um determinado clã
tivesse a permissão de se relacionar com o outro, esse grupo teria que renunciar a sua crença e
aceitar a venerar a de destino. Nesse processo, o grupo sai da condição fechada de relações e
passa a conviver em tribos.
Segundo Coulanges (2006), o conceito de cidade surgiu a partir do momento que a
essas tribos foram-se agregando outras que concordavam com os termos dos dirigentes, no
caso, os mais antigos na linha hierárquica. O que as motivava a preterir sua divindade
protetora era a convicção de que a outra estava a se mostrar mais promissora. Nesse sentido, o
controle da organização social da cidade quanto aos anseios do povo passou a ter maiores
obrigações, pois enquanto estado de família o patriarca tinha um campo restrito de atuação;
logo, gerir uma cidade requereu todo um processo de estruturação administrativa que
atendesse as demandas do povo.
Na direção do historiador, é passível de compreensão que a edificação das cidades, nos
primórdios da civilização, estava condicionada em aceitar as imposições ou não de
20

determinada tribo, ou seja, depreende-se desse método antigo a criação de outras metrópoles
que também deram continuidade às concepções de gerenciamento, culto, anseios oriundos do
povo sob a tutela dos governantes.
Nesse ponto da história, quanto a evolução do homem de estado de natureza para
estado de família e, posteriormente, integrante de uma sociedade organizada, chega-se ao
ponto culminante de como o direito natural cedeu lugar à celebração do contrato social ora de
forma espontânea, ora por coação, ora por meios hereditários e, ainda, há de se considerar
outros alcances. "A passagem do estado natural ao estado civil produziu no homem uma
mudança considerável, substituindo em sua conduta a justiça ao instinto, e imprimindo às suas
ações a moralidade que anteriormente lhes faltava" (ROSSEAU, 2002, p. 30 ).
Rosseau (2002) já concebia a família como sendo a detentora do primeiro molde da
sociedade e a relação entre seus entes servia ao propósito do contrato social natural, tendo em
vista os pressupostos do patriarcado. Entretanto, a relação entre povo e Estado tem como
horizonte o bem geral. Nesse entendimento, a vontade dos atores sociais em sua
individualidade não será objeto de ações isoladas por parte do governante. " Mas a ordem
social é um direito sagrado que serve de alicerce a todos os outros. Esse direito, todavia, não
vem da Natureza; está, pois, fundamentado sobre convenções" (ROSSEAU, 2002 , p.10).
Nesse cenário, o requerente se reportará a um intermediário que fará a defesa de sua ofensa
em seu nome, havendo, assim, um desdobramento do contrato para uma via particular como
recurso para advogar em favor próprio e, assim, manter as relações particulares e estaduais
harmonizadas.
Nessa linha de pensamento, o homem deixa de ter a amplitude de alcance que a
liberdade natural lhe ofertava para usufruir da liberdade civil e do direito à propriedade. Com
base nesse processo de organização, concebe-se a passagem da condição de povo para o
reconhecimento do ser cidadão integrante de uma sociedade organizada e sob o governo do
Estado.
Para os fins de uma maior compreensão, é ponderável salientar que o termo Estado
será abordado com um conceito amplo, isto é, abrangerá as formas de governo no sentido
administrativo dada as diversas formas aludidas historicamente ou vigentes no que tange as
questões administrativas sob a responsabilidade dos soberanos
Nessa fase, em que o indivíduo atinge o status de cidadão, o Estado tomará como
norteador das leis as necessidades que mais bem atenderem ao povo de um modo geral,
fundamentado no princípio do interesse público em relação ao privado. Para Rosseau (2002),
compete aos legisladores avaliar essa vontade geral de maneira a corresponder com as
21

prerrogativas administrativas inerentes ao governo, isto é, o Estado não responderá a apelos


que não sejam compatíveis com o interesse público. Portanto, as decisões administrativas
observarão o efeito no tempo de determinada resolução a fim de avaliar a eficácia de sua
aplicabilidade. A não-observância dessa conjuntura por parte do legislador, no sentido de dar
à lei interpretação e aplicabilidade diversa a sua função precípua, tende a fragilizar a estrutura
das constituições das mesmas e, com isso, causar a destruição do Estado organizado e,
consequentemente, o regresso à condição natural (Rosseau, 2002).
Maquiavel (2007) discorre a respeito de diversos cenários em que governos, embora já
estruturados, foram mergulhados em decadência, vítimas das consequências resultantes de
administrações que observaram a um fim contrário ao interesse público, ou seja, deliberações
viciadas ora por omissão, ora por abuso ou por exigir mais do povo do que esse pode
suportar, como exemplo: aumento sem real propósito de imposto; sansão de leis penais
desproporcionais ao delito; ostentação de riqueza em frente ao súdito necessitado; esse perfil
de soberano, certamente, desencadeará a revolta e seu poder será cassado.
Já consoante Focault (1997), quando o povo fica à mercê da falência do sistema
judiciário, no âmbito de sua competência, tende a proteger a si e a seus bens de uma forma
instintiva, ou seja, adequando-se aos métodos por outrem utilizados, pois a relação de
confiança que o contrato social lhe garantira fora quebrada. Nesse cenário, tem-se um Estado
que abusa da posição que ocupa e que já não mais trabalha visando o bem coletivo, mas sim,
o interesse político individual.
Diante do exposto, pode-se observar que os caminhos que guiaram os passos do
homem para além das fronteiras do estado de natureza foram se aperfeiçoando ao longo dos
tempos, impingindo a ele direitos e deveres individuais e coletivos a partir do momento em
que o convívio em sociedade depende da sintonia dessas grandezas. Em tese, como ser
civilizado, e, agora, ciente de suas obrigações sociais o agir natural não se sustenta na
relação mútua; logo, para os fins de inibir os instintos primais ainda existentes, o Estado
assume a responsabilidade de recolher do seio social a ameaça à ordem pública. Dessa
configuração, percebe-se que a entidade age legalmente investida pela vontade do povo por
intermédio do contrato social.
Para Bauman (2008), diversos elementos podem contribuir para abalar o campo
racional do indivíduo, comprometendo todo um entendimento de civilização. O sentimento de
medo tanto do incerto, quanto o desencadear de reações abruptas, baseados em situações
análogas ou mesmo respondendo ao instinto de sobrevivência, isto é, quando o homem se vê
privado de suas necessidades mais básicas da vida civilizada como: alimentação, água,
22

segurança, moradia. Em tais circunstâncias, não leva muito tempo para que o homem dê
vazão ao instinto e, partindo disso, reascenda o estado de natureza e, consequentemente,
provoque a ruptura do contrato social. Nas palavras do ex-presidente americano Thomas
Jefferson1 (2018, s/p) "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais
lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível.".
Com base nessa explanação, que teve como norte os passos que o homem percorreu
para se posicionar como ser social e os fatores que incidem no retrocesso dele como ser
sociável, pretende-se identificar em Ensaio sobre a cegueira a representação do processo de
desconstrução do contrato social e o agir humano ao responder sob o estado de natureza,
focalizando a articulação da linguagem literária que o autor fez uso para ilustrar um cenário
de degradação em que o homem se encontra refém.

1
Esta citação teve o número da página suprimido por se tratar de uma fonte on line. O endereço eletrônico
consta nas referências bibliográficas.
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CAPITULO II – ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO LITERÁRIA DO


HOMEM NA CONDIÇÃO DE ESTADO DE NATUREZA EM O ENSAIO
SOBRE A CEGUEIRA

2.1 O homem na condição de estado de natureza e os efeitos na vida social

Em Ensaio sobre a cegueira, o leitor depara-se com o inesperado já nas primeiras


linhas da narrativa que ora está em 3ª pessoa, ora em 1ª . Dotada de uma linguagem simples,
ainda que articulada entre provérbios, aforismos, dentre outras peculiaridades do estilo do
mestre, o romance tece uma linha de acontecimentos que, ao longo da história, vão
desencadeando situações em série, partindo do simples para o ápice do caos que arrebata toda
uma cidade.

O romance conta com sete personagens principais, integrantes de uma cidade sem
nome e são reconhecidos não por nomes próprios, mas sim, por expressões inerentes ao
contexto ao qual foram submetidos.
Inicialmente, o leitor é apresentado ao primeiro cego quando este abre o desenrolar da
história ao cegar em meio ao caos do trânsito do qual fazia parte. A súbita enfermidade o leva
ao desespero e a abandonar seu carro. Na sequência dos fatos, ele é socorrido por alguém que
o ajuda a chegar em casa; porém, a mesma mão que socorreu é a mesma que lhe roubou o
veículo em seguida. Dominado pelo pânico causado pela cegueira descrita por ele como
branca, ele e sua esposa partem para o consultório do médico, onde já se encontravam a
rapariga dos óculos escuros, o rapazinho estrábico e o homem da venda. Personagens que
serão contaminados após terem contato com o médico.
O médico nada pôde fazer pelo primeiro cego a não ser prometer-lhe um estudo mais
aprofundado do caso. Todavia, em sua casa, nenhum avanço foi produtivo quanto ao
acometimento da cegueira branca. Após ter tomado ciência de outro caso, ele decide por
avisar as autoridades competentes por temer algo maior que seu conhecimento, como
oftalmologista, podia responder.
Com receio de uma possível epidemia, o Ministério da Saúde decreta o isolamento
imediato dos primeiros contagiados. No entanto, o governo não estava preparado para
tamanha empresa; logo, para acomodar as pessoas, fez uso de um sanatório há muito tempo
abandonado.
24

Os primeiros a chegarem foram o médico e sua esposa, que não estava cega e mentiu
que sim para acompanhar o marido nesse momento de tensão. Em seguida, juntaram-se a eles
o primeiro cego, a esposa do primeiro cego e os três pacientes do consultório do médico, bem
como o ladrão do carro. Este veio a ser fuzilado, mais tarde, pelo exército que, por ordem do
governo, guardava a frente do sanatório e tinha licença para matar quem avançasse o limite da
saída.
Durante todos os momentos de angústia, a mulher do médico se apresenta como uma
esposa dedicada e complacente ao se deparar com momento de fraqueza do marido. Também
se torna o principal elo de articulação e organização entre os internos de sua ala.
Dando prosseguimento à narrativa, com a incessante chegada de novos pacientes, o
local torna-se insuficiente para acomodar a todos. Logo, não demora muito para não só as
pessoas começarem a dormir em qualquer lugar, como também a brigar pela comida, já
escassa, e, até mesmo, fazer de qualquer canto um lugar para os dejetos e atividades sexuais.
É dentro desse espaço sem conforto ou assistência médica, dentre outras privações,
que os personagens vivenciam os conflitos que nascem com as relações humanas como: os de
pensamentos, os de oportunismo e, ainda há de se considerar, o descaso pela vida alheia, o
abuso e omissão do poder público, a luta pela sobrevivência, o confronto interno para não se
entregar por completo ao estado de natureza e passar a agir respondendo aos instintos mais
selvagens.
Embora seja um romance contemporâneo, ainda é possível observar a presença das
características oriundas do realismo ao explorar o contexto social de uma forma crítica, bem
como as marcas do naturalismo reconhecidas nas descrições minuciosas das passagens que
fazem uma descrição detalhada dos organismos produzidos pelo corpo humano.
Todavia, alguns traços foram objeto de mudanças com o advento das transformações
do mundo e a ascensão de novos autores em meados da década de 50. Esse processo,
denominado neo-realismo, ofereceu ao leitor uma literatura ficcional fantástica em que o uso
de metáforas davam ao corpo textual uma escrita mágica, na qual a crítica ficava imersa na
alegoria que permeava a história. Como exemplo desse momento de renovação literária, para
fins de ilustração, pode-se citar o romance de Érico Veríssimo Incidente em Antares (1963),
em que o leitor vislumbra o inesperado ao se deparar com uma situação atípica em que sete
mortos, de classes sociais adversas, erguem-se de seus caixões para reclamar o direito de
serem sepultados. Uma situação surreal que surge dentro do contexto político da história. Na
obra de Saramago em questão, surge a cegueira branca como acontecimento surreal.
25

Para Lopes Teixeira (2010), Saramago foi um escritor que soube trabalhar as questões
filosóficas, que circundam o agir humano, dentro da linguagem literária e os recursos que ela
oferece . A ideia de expor o ser humano a uma cegueira branca como metáfora para descrever
a fragilidade do ser humano ao se render aos instintos primitivos, quando sua condição de
vida civilizada é ameaçada pelo inesperado, foi uma forma de inferir que o homem é refém de
sensações, ações ou reações que, num dado momento, o induz ou conduz a executar atitudes
extremas que vão de encontro ao agir racional.

Há pelo menos dois séculos a literatura tem sido o mais eficiente mecanismo de
mergulho na alma humana em busca dos sentimentos mais obscuros e profundos.
Através dela, os homens tem conseguido obter acesso a segmentos de sua psiquê que
permanecem, na maior parte do tempo, inacessíveis e para os quais a visão comum é
inteiramente cega. (LOPES TEIXEIRA,2010 s/p ).

Na visão de Silva Moura (2014),o romance de Saramago apresenta um rompimento


quanto à estética realista ao envolver o texto crítico com o manto da metáfora. Fazendo,
assim, emergir o inesperado a partir do momento que há uma desconstrução do entendimento
comum natural da condição de um cego, que é a visão desprovida de luz, e direcionando,
ainda, a enfermidade a todos os integrantes da sociedade por meio do contato. Fato que, na
obra, desperta o sentimento de medo antecipado do desconhecido que tende a desencadear
outros acontecimentos em sequência. Bauman faz uma observação quanto à rápida
propagação desse fenômeno.

O medo é mais assustador quando difuso, disperso, indistinto, desvinculado,


desancorado, flutuante, sem endereço nem motivos claros, quando nos assombra
sem que haja uma explicação visível, quando a ameaça que devemos temer pode ser
vislumbrada em toda a parte, mas em lugar algum se pode vê-la. Medo é o nome que
damos a nossa incerteza, nossa ignorância da ameaça e do que deve ser feito – do
que pode e do que não pode – para fazê-la parar ou enfrentá-la, se cessá-la estiver
além do nosso alcance (BAUMAN, 2008, p. 06).

Para Silva Moura (2014), nota-se as nuances da construção textual neorrealista, em que
os membros da sociedade são criticados como um todo , ou seja, sem distinção quanto à
classe social. O que remete a uma ideia clara de igualdade em que todos estão a partilhar de
uma mesma mazela independente de crença, idade, raça, profissão, situação econômica.
Nessa direção, é possível identificar, na obra, questões relacionadas ao abuso de poder;
a supressão do direito de ir e vir; a negligência quanto à dignidade da pessoa humana. Para o
doutor em Direito Pagliarini (2010), o romance, sob a luz do direito, aponta para a omissão do
26

Estado ao negligenciar sua responsabilidade de garantir ao povo os direitos básicos no que


concerne às questões ligadas à assistência médica, à segurança, à alimentação, à higiene, ou
seja, procedimentos básicos que devem ser observados diante de uma situação incomum de
contágio, ameaça externa; estado de defesa ou casos de desordem interna, situações que
venham a justificar a declaração do estado de sítio ou a quarentena. No caso do romance, o
propulsor da medida é não conhecimento da causa ou cura da enfermidade e sua possível
propagação pelo contato com outra pessoa.

Passando a analisar os personagens da narrativa, nota-se atitudes um tanto negativas


das vítimas da cegueira. Já no o seguinte excerto, pode-se verificar atitudes individualistas
tanto no comportamento do primeiro cego, quanto nos outros pacientes que já se encontravam
à espera para serem atendidos no consultório do doutor.

[...] Vamos ter de esperar, murmurou-lhe ao ouvido. Ele percebeu porquê, ouvira
vozes dos que ali se encontravam, agora afligia-o uma preocupação diferente,
pensava que quanto mais o médico tardasse a examiná-lo, mais profunda a cegueira
se tornaria, e portanto incurável, sem remédio [...] (SARAMAGO, 2000, P. 21)

Percebe-se a ansiedade na fala dele e o desespero a atormentá-lo com a possibilidade


de ter de esperar mais do que ele considerava ser possível, julgando o seu caso mais urgente
que os dos outros. Para Hobbes (2005), no estado de natureza o indivíduo coloca-se em
primeira ordem como um processo natural do instinto de sobrevivência, Já na concepção de
Bauman (2014), o medo do incerto combinado com a herança de uma sociedade mergulhada
no individualismo contribuem no desencadeamento de sentimentos que não consideram a
solidariedade como algo a ser observado nos casos atípicos, isto é, fora das datas em que,
geralmente, ela faz razão de ser.
Nesse sentido, no próximo fragmento é possível apurar o sentimento de indignação
por parte dos outros pacientes, que sentiram suas necessidades serem preteridas ao serem
submetidos a um tempo de espera além do previsto.

Mexeu-se na cadeira, inquieto, ia comunicar as suas apreensões à mulher, mas nesse


momento a porta abriu-se e a empregada disse, Os senhores, por favor, passem, e
dirigindo-se aos outros doentes, Foi ordem do senhor doutor, o caso deste senhor é
urgente. A mãe do rapaz estrábico protestou que 0 direito é o direito, e que ela
estava em primeiro lugar, e à espera há mais de uma hora. Os outros doentes
apoiaram-na em voz baixa, mas nenhum deles, nem ela própria, acharam prudente
insistir na reclamação, não fosse o médico ficar ressentido e depois pagar-se da
impertinência fazendo-os esperar ainda mais, tem-se visto. (SARAMAGO, 2000, p
21).
27

Nota-se que, embora a reclamação tenha sido externada, o efeito não foi alcançado;
logo, tem-se aqui o conflito entre ser solidário ao seu semelhante e o direito de igualdade de
tratamento. Nessa situação, em que as pessoas defendem portar um problema maior que o do
próximo, pode-se concordar com o pensamento de Bauman ao afirmar que : “A hostilidade
terminaria se desejos individuais e demandas sociais pudessem ser atendidos
simultaneamente” (BAUMAN, 2014, p.90 ).
Outra observação que o trecho apresenta, é o cenário em que o ato de ceder a vez sem
maiores reivindicações acaba por vir pelo fruto do receio de um irracional temor de vingança
por parte do médico, quando fossem atendidos, e não pelo agir solidário. Uma postura de
recuo diante de algo tomado por maior que remete à lei natural da complacência, garantidora
da paz, retratada por Hobbes (2005).
Sob o propósito do contrato social, quando o indivíduo transfere seu direito natural a
terceiros, neste caso o Estado, deposita nele a confiança que seus direitos e garantias
individuais e coletivos serão defendidos conforme a demanda. Logo, caso o governo fique
diante de um acontecimento fortuito que venha a pôr em risco questões de segurança nacional,
o mesmo agirá, ainda que com medidas antipopulares, visando o bem do coletivo. Tal
conjuntura precisa encontrar amparo Legal na lei maior do Estado entendida por Constituição
Federal. Quando o Estado burla esse processo e passa a agir de forma arbitrária, tende a
disseminar a descrença no poder público e sua eficácia, provocando a ruptura do contrato
social.
Na leitura das passagens abaixo citadas, identificam-se os primeiros passos do governo
para conter o avanço de uma enfermidade ainda não explicada pela medicina. Contudo,
percebe-se nos trechos que os responsáveis por fazer valer a segurança do povo estavam
despreparados para administrar algo que fugia à compreensão. Assim, indo de encontro aos
preceitos do contrato social, o governo começa a agir não mais em prol do povo, mas sim,
com intuito de resolver o problema de forma rápida e sem importar com o direito à saúde, à
segurança e à vida.
[...]concluiu o ministro. Em palavras ao alcance de toda a gente, do que se tratava
era de pôr de quarentena todas aquelas pessoas, segundo a antiga prática, herdada
dos tempos da cólera e da febre-amarela [...] ministro, que mais tarde precisou o seu
pensamento, Queria dizer que tanto poderão ser quarenta dias como quarenta
semanas, ou quarenta meses, ou quarenta anos, o que é preciso é que não saiam de
lá. [...](SARAMAGO, 2000, p. 45).

Dando continuidade à linha de raciocínio, verifica-se na passagem a seguir a


representação do momento da ruptura do contrato social a partir do instante que a
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administração passa a nomear pessoas de súbito e ,não inteiradas do assunto, para tomar
decisões, que naquele momento, caberiam a um órgão especializado em epidemias.

[...] Agora falta decidir onde os iremos meter senhor ministro, disse o presidente da
comissão de logística e segurança, nomeada rapidamente para 0 efeito, que deveria
encarregar-se do transporte, isolamento e suprimento dos pacientes, De que
possibilidades imediatas dispomos, quis saber o ministro, Temos um manicómio
vazio, devoluto, à espera de que se lhe dê destino, umas instalações militares que
deixaram de ser utilizadas em consequência da recente reestruturação do exército,
uma feira industrial em fase adiantada de acabamento, e há ainda, não conseguiram
explicar -me porquê, um hipermercado em processo de falência, Na sua opinião,
qual deles serviria melhor aos fins que temos em vista, [...] (SARAMAGO, 2000, p.
45).

Identifica-se, sob a luz do Direito, o ato arbitrário do governo no processo de seleção


do local de acomodação dos enfermos. Nota-se, dentre as opções, que nenhum lugar sugerido
corresponde a um espaço digno de atendimento hospitalar ao qual os contaminados hão de
carecer. Fato que ofende a dignidade da pessoa humana e vai de encontro à Declaração dos
Direitos Humanos de 1948 consoante Pagliarini (2010).
A situação de descaso segue com a lista de responsabilidades a serem executadas pelos
próprios doentes. Nesta relação de afazeres, percebe-se a posição de omissão administrativa
para com os pacientes ao endereçar a eles tarefas que não lhes competem. Ademais, por
serem eles os enfermos e, como tais, não poderiam ser responsáveis por tarefas que, naquele
momento, cariciam de pessoas que enxergassem para realizar tarefas como a limpeza do local,
distribuição da comida com equidade e, consequentemente, ministrasse alguma medicação
para aqueles que sofressem algum acidente, dada à condição de limitação que a cegueira
impõe para determinados afazeres.

[...] nono, os internados são responsáveis por todas as consequências negativas


dessas queimas, décimo, em caso de incêndio, seja ele fortuito ou intencional, os
bombeiros não intervirão, décimo primeiro, igualmente não deverão os internados
contar com nenhum tipo de intervenção do exterior na hipótese de virem a verificar-
se doenças entre eles, assim como a ocorrência de desordens ou agressões, décimo
segundo, em caso de morte, seja qual for a sua causa, os internados enterrarão sem
formalidades o cadáver na cerca, décimo terceiro, a comunicação entre a ala dos
pacientes e a ala dos suspeitos de contágio far-se-á pelo corpo central do edifício, o
mesmo por onde entraram, décimo quarto, os suspeitos de contágio que vierem a
cegar transitarão imediatamente para a ala dos que já estão cegos, décimo quinto,
esta comunicação será repetida todos os dias, a esta mesma hora, para conhecimento
dos novos ingressados. O Governo e a Nação esperam que cada um cumpra o seu
dever. Boas noites. (SARAMAGO, 2000, p. 51).
29

Outro ponto relevante diz respeito ao valor de nada ao qual a dignidade humana foi
reduzida, bem como o direito à vida, ao se referir aos mortos e aos possíveis acidentes como
objeto de imediato descarte e supressão de socorro. Tal método de confinamento remete aos
tempos bíblicos em que eram famosos os campos onde se depositavam os leprosos sem
qualquer assistência, deixando-os à própria sorte que, no caso daqueles tempos, a sorte era a
morte. Mais à frente da história, esses lugares tomaram a forma de leprosários, sanatórios
para os então chamados loucos. O fato é que atitudes contemporâneas ainda possuem muito
de atos cometidos no passado para recolher do seio social o que é considerado ameaça,
levando em conta a ordem e a segurança sociais.
Para Hobbes (2005), no estado de natureza a pessoa renuncia ao direito natural em
nome da conservação da paz, para tanto, as partes celebram um pacto alicerçado na
confiança. Porém, essa espécie de contrato apresenta-se frágil e tende a ruir a partir do
momento que qualquer das partes rompa a relação por recear o descumprimento do acordo,
dada a relação de desconfiança mútua em relação à palavra empenhada.

Desta lei fundamental de natureza, mediante a qual se ordena a todos os homens que
procurem a paz, deriva esta segunda lei: Que um homem concorde, quando outros
também o façam, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a
defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando-se, em
relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite
em relação a si mesmo. Porque enquanto cada homem detiver seu direito de fazer
tudo quanto queira todos os homens se encontrarão numa condição de guerra.
(HOBBES, 2005, p.91).

Logo, pode-se depreender do pensamento de Hobbes que a paz será garantida quando
houver um entendimento pacífico entre as partes que se encontram envolvidas numa questão
de interesse mútuo, isto é, alguém precisa ceder em relação ao seu direito natural em prol da
paz ou, até mesmo, em defesa da própria segurança. Nesse sentido, nota-se na posição da
personagem Rapariga dos óculos escuros esse ato de renunciar ao direito natural de requerer
algo pensando somente em benefício próprio, para depositar em outrem a guarda do seu
direito. Ela, em nome do bem da coletividade, sugere o médico como porta-voz da ala por
julgá-lo a melhor opção, dentre os que lá estão. O doutor, no entanto, reluta em aceitar o
voto de confiança, por já prever possíveis desacordos a partir da chegada de novos
integrantes, ou seja, novas pessoas trazem novas visões e, consequentemente, novas posições
no que concerne o direito.
30

[...]Disse a rapariga, O melhor seria que o senhor doutor ficasse de responsável,


sempre é médico, Um médico para que serve, sem olhos nem remédios, Mas tem a
autoridade. A mulher do médico sorriu, Acho que deverias aceitar, se os mais
estiverem de acordo, claro está, Não creio que seja boa ideia, Porquê, Por
enquanto só estamos aqui estes seis, mas amanhã de certeza seremos mais, virá
gente todos os dias, seria apostar no impossível contar que estivessem dispostos a
aceitar uma autoridade que não tinham escolhido e que, ainda por cima, nada teria
para lhes dar em troca do seu acatamento, e isto ainda é supor que reconheceriam
uma autoridade e uma regra, Então vai ser difícil viver aqui, Teremos muita sorte
se só for difícil. A rapariga dos óculos escuros disse, A minha intenção era boa,
mas realmente o senhor doutor tem razão, cada um vai puxar para o seu lado.[...]
(SARAMAGO, 2000, p. 53).

Com base nos preceitos do pacto social, no que concerne à transferência do direito,
depreende-se que tanto a personagem que sugeriu o nome do médico para líder, quanto outros
pertencentes à ala, poderiam ter reclamado para si a posição de mentor do grupo, pois todos
estavam dotados de um mesmo direito. Todavia, por reconhecer no outro uma capacidade
maior de liderança e como meio de não render uma discussão sem preceitos, acaba-se por
ceder o espaço do direito natural para preservar o mínimo de paz entre os internos. Tudo isso
ocorre levando-se ainda em conta que o pacto social aludido por Hobbes (2005), pode ser
rompido a qualquer tempo no estado de natureza.
No desencadear da narrativa, observa-se desabrochar no homem uma revolta que,
posteriormente, o leva a dar vasão ao sentimento de revidar a lesão por julgar ter sido o maior
prejudicado, ao externar o desejo de acabar com a vida do ofensor. Assim, um atribui o estado
de cegueira ao primeiro cego e esse reclama pelo bem roubado, apesar do carro não lhe ser
útil naquele momento. Como nesse momento os personagens não estão sob a proteção do
Estado para que possam reclamar seus direitos pelas vias legais, tendo em vista que é ela que
faz coisa julgada ao aplicar uma sanção ou delimitar um ressarcimento, os queixosos na cena
estão à mercê dos seus instintos naturais e dominados pelo desejo de vingança. A troca de
ofensas as quais os personagens compartilham acentuam bem a intenção de agressão mútua.

[...] Fosse movido por estas palavras ou porque não pudesse mais aguentar a fúria,
um dos homens pôs-se bruscamente de pé, Este tipo é que é 0 culpado da nossa
infelicidade, tivesse eu olhos e agora mesmo dava cabo dele [...]Então ouviu-se a
voz do outro homem, Levou-me a casa, é verdade, mas depois aproveitou-se do meu
estado para me roubar o carro[...] A discussão não resolve nada, disse a mulher do
médico, o carro está lá fora, vocês estão cá dentro, o melhor é fazerem as pazes,
lembrem-se de que vamos viver aqui juntos,[...] (SARAMAGO, 2000, p. 53-54).

Para Hobbes (2005), o perdão age como fator fundamental na relação de paz entre
os seres. Assim, o discurso da mulher do médico traz à tona o sentido vazio da discussão
31

entre os exaltados, pois para que haja um convívio pacífico num ambiente forçado, convém
ponderar as considerações do que é, realmente, relevante a ser discutido num local co-
habitado por estranhos em que o instinto de sobrevivência começa a ficar mais aguçado. Sob
essa linha de pensamento, assumindo o papel de Estado ao mediar um conflito, a mulher do
médico age baseada nos princípios da razão ao atentar para o que ,é realmente, importante
para se manter um mínimo de respeito num confinamento forçado, no qual se tem apenas a
palavra alheia empenhada como provedora do bom convívio.
A consciência da condição de isolamento social combinada com a privação das
necessidades básicas começa a influenciar no reconhecimento da identidade do indivíduo.
Como se pode perceber na passagem abaixo:

[...]tão longe estamos do mundo que não tarda que comecemos a não saber quem
somos. nem nos lembrámos sequer de dizer-nos como nos chamamos, e para que.
iriam servir-nos os nomes nenhum cão reconhece outro cão, ou se lhe dá a conhecer.
pelos nomes que Ihes foram postos, é pelo cheiro que identifica e se dá a identificar
nós aqui somos como uma outra raça de cães, conhecemo-nos pelo ladrar, pelo falar,
o resto feições, cor dos olhos, da pele, do cabelo, não conta, é como se não existisse,
eu ainda vejo, mas até quando. (SARAMAGO, 2000, p. 64).

Observa-se que a voz da mulher do médico ecoa nesse ambiente que está isolado do
mundo e, esse distanciamento além dos muros do confinamento, revela a preocupação com a
ameaça de uma possível perda da identidade, igualando o ser humano aos animais e, assim,
forçando-os a se reconhecerem por meio de particularidades. No caso da ficção retratada por
Saramago, os personagens passam a se orientar pelos sons e odores a que estão expostos.
Nota-se que a condição de afastamento dos componentes elementares de uma vida civilizada
já não mais está ao alcance deles. A posição de cidadão participante e usufruidor dos
elementos basilares de uma sociedade, das quais os personagens gozavam, teve sua estrutura
atingida pelo confinamento. Nota-se neles uma preocupação em relação a não se
reconhecerem mais como cidadãos integrantes de uma sociedade e passarem a agir
instintivamente como os animais.
Nessa passagem de Ensaio sobre a cegueira, presencia-se um dos efeitos negativos
causados pela ruptura do contrato social, pois toda estrutura organizacional que o Estado
oferecia foi suprimida disseminando, assim, incertezas quanto ao futuro e insegurança em
relação à preservação da vida. Como resultado desse rompimento, eles estão à mercê de seus
instintos e reféns de seus medos. Em síntese, ao se igualarem a animais já não mais estão
32

fazendo uso da razão e, como consequência, ficam vulneráveis ao estado de natureza em que
sobreviver, a qualquer custo, é o objetivo maior (HOBBES, 2005).
No vasto campo das faculdades do medo, nota-se que os personagens estão
respondendo à sensação de medo extrema. Um fato que está comprometendo a sanidade
mental deles, tamanho é o pavor de se esquecerem que são seres humanos. Reações frutos da
quebra de relação entre povo e Estado, que negligenciou suas obrigações básicas ao deixa-los
entregues à própria sorte. Logo, a seguinte citação reafirma que, dentre os mais variados
cenários que alimentam o medo no homem e, consequentemente, venha a influenciar em sua
reação estão: “ (...)os perigos que ameaçam o lugar da pessoa no mundo – a posição na
hierarquia social, a identidade (de classe, de gênero, étnica, religiosa) e, de modo mais geral, a
imunidade à degradação e à exclusão sociais” (BAUMAM, 2008, p. 10).
Em continuidade à análise, no próximo excerto é o momento da narrativa em que os
cegos começam a compreender que, realmente, nunca foi a intenção do governo ajudá-los,
mas sim, eliminá-los, pois percebe-se, pelo discurso do exército, que ele não demonstra ter
intensão nenhuma de ajudar seja qual foro motivo.

[...] No mesmo instante um soldado gritava-Ihes do portão, Alto, voltem já para trás,
tenho ordens para disparar, e logo, no mesmo tom, apontando a arma, Nosso
sargento, estão aqui uns gajos que querem sair, Não queremos sair, negou o médico,
O meu conselho é que realmente não queiram, disse o sargento enquanto se
aproximava, e, assomando por trás das grades do portão, perguntou, Que se passa,
Uma pessoa que se feriu numa perna apresenta uma infecção declarada,
necessitamos imediatamente antibióticos e outros medicamentos, As ordens que
tenho são muito claras, sair, não sai ninguém, entrar, só comida, Se a infecção se
agravar, que será o mais certo, o caso pode rapidamente tornar-se fatal, Isso não é
comigo, Então comunique com os seus superiores, Olhe lá, ó ceguinho, quem lhe vai
comunicar uma coisa a si sou eu, ou você e essa voltam agora mesmo para donde
vieram, ou levam um tiro [...] (SARAMAGO, 2000, p. 70).

Verifica-se o estado de abandono assistencial ao qual os confinados estão à mercê,


bem como a intenção clara do exército de fuzilar qualquer um que avance a linha imaginária
por eles delimitada e denominada como sendo de segurança. Para um maior entendimento do
conceito Legal da contenção da invasão hostil, a CF/88 artigo 5ª inciso XLVII alinha (a) “Não
haverá pena; de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX”. Nesse
sentido, tem-se o abuso do poder de polícia inerente ao Estado ao autorizar a execução
sumária de qualquer interno que ouse a deixar o local de quarentena. Com este trecho da
obra, é possível identificar que os membros do exército estão agindo não sob as ordens do
governo, mas sim, em nome da própria segurança por temerem o contagio. Uma atitude que
corresponde à lei natural, que prevê a investida hostil em defesa da segurança de si mesmo.
33

Como não há um contrato social para doutrinar as relações entre as partes, cabe a uma delas
ceder para se evitar um confronto, como pode ser visto na atitude do médico, porta-voz da ala
por meio do pacto social, de acordo Hobbes, (2005).
O papel de mediador pacífico que o médico desempenha, enquanto revestido de
liderança de sua ala mediante deliberação dos demais, ao rogar por assistência hospitalar para
um enfermo em estado crítico de infecção, mais especificamente o ladrão que se valeu da
condição do primeiro cego para lhe roubar o carro, responde aos indicadores do estado de
natureza retratado por Hobbes (2005) como sendo o pacto social.
Em outra sequência narrativa, aparecem os primeiros sinais que apontam para a
indiferença administrativa, que faz despertar a indignação dos internos diante da privação de
necessidades comuns quanto aos hábitos moldados pela vida civilizada, ou seja, que diferem o
homem moderno dos seus ancestrais e os povos da idade antiga. Nota-se que não há qualquer
mobilidade ou comoção, por parte dos responsáveis, em atender ao questionamento da mulher
do médico quanto à insuficiência dos alimentos, primeiramente, para os poucos recém-
chegados e, em seguida, para os indícios de superlotação.

[... ]A comida sido tinha calculada à justa para cinco pessoas Havia garrafas de leite
e bolachas porém quem calculara as rações tinha-se esquecido dos copos. pratos
também não havia, nem talheres[...]Foram os dois homens, vieram os pratos e os
talheres, mas os alimentos continuavam a ser para cinco, [...] E a comida, aproveitou
a mulher do médico a ocasião para recordar-lhe, A comida ainda não chegou, Só do
nosso lado já há mais de cinquenta pessoas. temos fome, o que estão a mandar não
chega para nada, Isso da comida não é com o exército, Alguém tem de resolver a
situação, o governo comprometeu-se a alimentar-nos, Voltem lá para dentro, não
quero ver ninguém nessa porta[...] (SARAMAGO, 2000, p. 85).

Os sete personagens principais passam a viver com situações cada vez mais extremas,
que exigem deles um controle maior de suas emoções humanas.
À luz da literatura no que tange as marcas do realismo, percebe-se, na obra, a crítica
direcionada ao sistema burocrático complexo que incide sobre os órgãos governamentais e
tende a dificultar a relação entre povo e Estado. Dotado de repartições que repassam a
competência de resolver determinada pendência para outro setor, expõe, assim, o caráter
moroso da administração pública. Percebe-se que tal ocorrência é evidenciada no enredo
quando a esposa do médico está a fazer uma reclamação quanto à insuficiência dos alimentos
e talheres que estão enviando; no entanto, os funcionários que ali estão não se
responsabilizam pelo ocorrido, alegando ser trabalho de outro setor, embora nem mesmo eles
souberam dizer qual era ou a quem se reportar.
34

Para Massaud Moisés (1999), Saramago é um escritor que faz um trabalho genioso
ao exploraras questões do cotidiano fazendo uso da linguagem literária para direcionar a
abordagem crítica para os membros da sociedade, tanto em atos individuais, como integrantes
de uma coletividade. Como exemplo de sua produção revestida de crítica ao sistema
administrativo , pode-se exaltar O Conto da Ilha Desconhecida (1999), que narra as
dificuldades de comunicação e acesso entre governo e povo “[...]Então, o primeiro-secretário
chamava o segundo-secretário, que chamava o terceiro, que mandava o primeiro- ajudante
que por sua vez mandava o segundo e assim por aí for até chegar à mulher da limpeza [...]”
(SARAMAGO, 2018, s/p2). Cenário revestido de metáfora para sugerir um ambiente
administrativo em que nenhum setor parece ser o responsável direto por resolver determinada
questão, pontuando, assim, um governo burocrático como na obra em análise.
Em outra passagem de Ensaio sobre a cegueira ,presencia-se um momento de
ignorância humana e o leitor depara-se com um cenário em que o medo irracional foi usado
como justificativa para executar, sumariamente, pessoas indefesas, que ali estavam com o
intuito apenas de recolher a comida.

[...] largá-las-iam no átrio, e adeus, passem bem, Os gajos que lá se avenham,


disseram. A ofuscação produzida pela forte luz do exterior e a transição brusca para
a penumbra do átrio impediram-nos, no primeiro momento, de ver o grupo de cegos.
Viram-nos logo a seguir. Soltando berros de medo, largaram as caixas no chão e
saíram como loucos pela porta fora. Os dois soldados da escolta, que esperavam no
patamar, reagiram exemplarmente perante o perigo. Dominando, só Deus sabe como
e porquê, um legítimo medo, avançaram até ao limiar da porta e despejaram os
carregadores. Os cegos começaram a cair uns sobre os outros, caindo recebiam ainda
no corpo balas que já eram um puro desperdício de munição,[...] Se ainda estamos
em tempo de ter um soldado de dar contas das balas que dispara, estes poderão jurar
sobre a bandeira que procederam em legítima defesa, e por acréscimo também em
defesa dos seus camaradas desarmados que iam em missão humanitária e de repente
se viram ameaçados por um grupo de cegos numericamente superior.
(SARAMAGO, 2000, p.88).

Pode-se reconhecer a linguagem irônica de Saramago, nos trechos descritos pelo


narrador onisciente, ao precisar as cenas que remetem à quantidade exagerada de disparos
desferidos aos cegos e o tom sarcástico direcionado à convicção dos soldados ao defender que
a chacina foi justificável, ainda que as vítimas não passassem de cegos vulneráveis.
Amparados pelo discurso do agir em nome da lei e em legítima defesa, o fuzilamento de
inocentes desarmados foi dado como um procedimento correto, apesar da exibição extrema de

2
Esta citação teve o número de página suprimido por se tratar de uma fonte on line. O endereço eletrônico
consta nas referências bibliográficas.
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violência contra indivíduos desarmados; portanto, em estado de vulnerabilidade aos olhos da


lei.
Nesse ponto, é oportuno observar a relação de diálogo entre o texto ficcional e
situações abruptas que eclodem na vida real alavancadas pelos mais variados fatores. Para
ilustrar essa visão, pode-se usar como exemplo o episódio fatídico mais conhecido como o
massacre do Carandirú, ocorrido em outubro de 1992 no Complexo Penitenciário em São
Paulo, que vitimou mais de 100 detentos. Conforme o bacharel em jornalismo Camargo
(2017), duas décadas depois e tanto o Brasil, quanto o mundo ainda não têm uma resposta
objetiva que esclareça a verdade dos fatos, pois de um lado há a declaração dos policiais que
defendem a operação como sendo legalmente válida; já sob a concepção dos organismos
defensores dos direitos humanos, a polícia brasileira agiu com o claro intuito de exterminar,
que deixou não só as famílias dos detentos sem respostas concretas, como também a opinião
pública nacional e do exterior. De fato, presencia-se uma sucessão de acontecimentos que
desencadeiam outros conforme pode ser apurado na passagem:

[...] Recuaram em desatinada correria para o portão, cobertos pelas espingardas que
os outros soldados do piquete tremulamente apontavam por entre os ferros, como se
os cegos vivos que ficaram estivessem a ponto de fazer uma surtida vingadora.
Lívido de susto, um dos que tinham disparado dizia, Eu lá dentro não volto nem que
me matem, e de facto não voltou. De um momento para o outro, nesse mesmo dia, já
perto do fim da tarde, à hora de render, passou a ser mais um cego entre os cegos, o
que lhe valeu foi ser da tropa, porque, se não, teria ficado logo ali, a fazer
companhia aos cegos paisanos, colegas daqueles a quem havia desfeito a tiros, e
Deus sabe o que lhe fariam. O sargento ainda disse, Isto o melhor era deixá-los
morrer à fome, morrendo o bicho acabava-se a peçonha. (SARAMAGO, 2000, p.
89).

Ainda fazendo referência ao fragmento anterior, verifica-se, também, a difusão do


medo em ambos lados e os resultados negativos que tanto agressor, quanto agredido foram
expostos. Em síntese, tem-se de um lados a força policial revestida de poder de contenção e
liberdade para agir, ainda que a real intenção fosse a aniquilação total como forma de
resolver o problema e, no outro polo, um grupo de cegos indefesos e desarmados que tinham,
naquele momento, apenas a fome como principal motivadora da coragem que os levou a
argumentar com pessoas armadas que, já em outro tempo, não demostraram nenhum ato de
humanidade ou respeito para com eles. Para Bauman (2008), o indivíduo tomado de um medo
causado por algo que precede seu entendimento e, consequentemente, uma possível ameaça a
sua integridade física, tende a reagir de instinto para preservar sua vida e/ou as de quem lhe é
querido. Já na visão de Maquiavel (2005), nota-se o preceito de fazer o mal primeiro ao outro
antes que esse faça com você. Um ponto que é relatado por Hobbes (2005), sob a forma de lei
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natural que dá ao homem o direito de defender-se caso se sinta, diretamente, ameaçado.


Assim sendo, percebe-se que tanto a visão sociológica, quanto a filosófica aponta para o
manto frágil da racionalidade humana quando na sua vida civilizada a questão da segurança
pessoal e coletiva for alvo de ameaça.
Dando prosseguimento à linha analítica, que abrange medo e lei de natureza, pode-se
perceber, na seguinte passagem, a atitude oportunista de alguns cegos ao se valerem da
confusão para, furtivamente, surrupiar um número maior de que lhes era devido de alimentos.
Não se importando se tal ato egoísta e nada confraternal resultaria para o agravamento da
fome de seus iguais em enfermidade e confinamento.

Aproveitando-se do alvoroço, alguns dos cegos tinham-se escapulido com umas


quantas caixas, as que conseguiram transportar, maneira evidentemente desleal de
prevenir hipotéticas injustiças de distribuição. Os de boa-fé, que sempre os há por
mais que se Ihes diga, protestaram, indignados, que assim não se podia viver, Se não
podemos confiar uns nos outros, aonde é que vamos parar, perguntavam uns,
retoricamente, ainda que cheios de razão, O que esses malandros estão a pedir é uma
boa sova, ameaçavam outros, não era verdade que a tivessem pedido, mas todos
entenderam o que aquele falar queria dizer, expressão, esta, levemente melhorada de
um barbarismo que só espera ser perdoado pelo facto de vir tão a propósito.
(SARAMAGO, 2000, p. 107).

Concebe-se, aqui, o receio de passar mais necessidade do que as que já estavam se


acumulando. nesse sentido, em que o objeto de disputa é o foco entre dois ou mais
requerentes, a discórdia é o caminho final, pois “ (...) se dois homens desejam a mesma coisa,
ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos.”
(HOBBES, 2005, p.87).
Do pensamento abordado anteriormente, nota-se que a virtude da complacência e do
perdão, já mencionados em 1.3, agem como mediadoras do convívio social com o intuito de
conter um ato exasperado que venha a provocar perdas maiores que o valor agregado ao
objeto motivador da disputa. Logo, tanto o sentimento de indignação sem investida, quanto o
desejo de ir à forra em defesa do que é justo, são perceptíveis na narrativa, marcando, assim, o
propulsor da reação humana que envolvem o agir agressivo ou o contido a depender da a
tensão do cenário.
Com base nos preceitos de organização social, com o intuito de manter uma relação
entre diferentes num nível civilizado, toma-se como objeto de explanação a sequência
narrativa subsequente. Nesse momento, pode-se observar a ênfase dada à importância de se
elaborar um esquema de afazeres para que se garanta o convívio, no mínimo operacional, que
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possa doutrinar a distribuição execução das tarefas visando o bem-estar do coletivo. Nesse
sentido, com a omissão do Estado em manter a ordem social, nota-se que os personagens
estão à mercê do pacto social abordado por Hobbes (2005), em que a palavra empenhada
sustentada pela confiança mútua no cumprimento do acordo é o pilar que sacramenta a
relação entre os pares. Todavia, essa espécie de contrato está sujeito à ruptura porque sua base
formal é refém da instabilidade humana , isto é, o homem no estado de natureza pode romper
essa empresa a partir do momento que ela não atende mais aos seus fins pessoais. Portanto,
somente é válida enquanto lhe convir independente da palavra outrora empenhada.

[...] Passados uns minutos disse um destes cegos, Estou aqui a matutar numa coisa,
Em quê, Em como iremos dividir a comida, Como foi feito antes, sabemos quantos
somos, contam-se as rações, cada um recebe a sua parte, é a maneira mais simples e
mais justa, Não deu resultado, houve quem ficasse a fazer cruzes na boca, E também
houve quem tivesse comido a dobrar, A divisão foi mal feita, Será sempre mal feita
se não houver respeito e disciplina, Se tivéssemos cá alguém que visse ao menos um
bocadinho, Ora, arranjaria logo uma estrangeirinha para ficar com a maior parte para
ele, Já lá dizia o outro que na terra dos cegos quem tem um olho é
rei.(SARAMAGO, 2000, p. 103).

[...] médico lá ao fundo está no certo quando diz que nos temos de organizar. a
questão, de facto, é de organização, primeiro a comida, depois a organização, ambas
são indispensáveis à vida, escolher umas quantas pessoas disciplinadas e
disciplinadoras para dirigirem isto, estabelecer regras consensuais de convivência,
coisas simples, varrer, arrumar e lavar, disso não nos podemos queixar, até nos
mandaram sabão, detergentes, manter a cama feita, o fundamental é não perdermos o
respeito por nós próprios, evitar conflitos com os militares que cumprem com o seu
dever vigiando-nos, para mortos já temos que baste, [...] (SARAMAGO, 2000, p.
110).

Verifica-se, tanto nos trechos anteriores, quanto no próximo, a preocupação em


relação à administração do espaço em que se encontram. Percebe-se que o objetivo é tentar
minimizar a situação de abandono assistencial e não se distanciar da identidade humana
gozada em tempos de normalidade, pois é ela que os difere dos animais. Nesse contexto,
identifica-se no médico e em sua esposa a postura de um Estado, no que concerne as
prerrogativas administrativas. Ele chama atenção dos outros confinados para as questões de
organização da ala quanto à higiene do local e a relação de cautela quanto aos ocupantes das
outras, já no limite da capacidade, dada a incerteza do quão imprevisível o indivíduo pode
ser em situações extremas.
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A chegada de tantos cegos pareceu trazer pelo menos uma vantagem. Pensando te
em, duas, sendo a primeira de uma ordem por assim dizer psicológica, na verdade é
muito diferente estar à espera, em cada momento, de que se nos apresentem novos
inquilinos, e ver que o prédio finalmente se encontra cheio, que a partir de agora
passou a ser possível estabelecer e manter com os vizinhos relações estáveis,
duradouras, não perturbadas, como sucedia até aqui, por sucessivas interrupções e
interposições de recém-chegados que nos obrigavam a reconstituir continuamente os
canais de comunicação [...] (SARAMAGO, 2000, p. 117).

É possível visualizar com mais precisão o efeito positivo das palavras da esposa do
médico desferidas aos companheiros de ala ao atentar para o cuidado com os hábitos simples;
porém, de extrema relevância para um mínimo de atitude civilizada dentro de uma
comunidade. Nota-se, por intermédio do narrador onisciente, que a ala dos sete personagens
principais, apesar de todo os transtornos, procura se manter organizada em meio ao caos do
confinamento. Atitudes básicas que garantem a eles um mínimo de dignidade humana,
considerando o ambiente de total falta de saneamento básico e assistência médico-hospitalar
em que estavam.
Tudo havia sido recolhido, as coisas menores metidas dentro das maiores, as mais
sujas metidas dentro das menos sujas, como o determinaria uma regulamentação de
higiene racionalizada, tão atenta à maior eficácia possível na recolha dos restos e
detritos como à economia do esforço necessário para realizar esse trabalho. A
mentalidade que forçosamente haverá de determinar comportamentos sociais deste
tipo não se improvisa nem nasce por geração espontânea. No caso em exame parece
ter tido uma influência decisiva a ação pedagógica da cega do fundo da camarata,
aquela que está casada com o oftalmologista, tanto ela se tem cansado a dizer-nos,
Se não formos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao menos façamos tudo
para não viver inteiramente como animais, tantas vezes o repetiu, que o resto da
camarata acabou por transformar em máxima, em sentença, em doutrina, em regra
de vida, [...] SARAMAGO, 2000, p. 119).

Percebe-se, à medida de suas possiblidades e limitações, que a liderança do médico e


as palavras de sua esposa vão garantindo ao grupo, até o momento, um ambiente que estreita
as diferenças entre os novos hábitos de convívio em relação às normas de cunho social das
quais faziam parte antes da quarentena forçada. Portanto, uma forma consciente, em tempos
de tensão, de defender a dignidade, tendo em conta que a integridade física já era alvo de
ameaça desde o momento em que o governo os considerou como peçonha passível de
eliminação em nome do bem-estar coletivo.

Numa outra cena, pode ser conferido na passagem que a população de internos alcança
um estado crítico de lotação, haja vista que o local já estava no limite do suportável,
considerando comida escassa, higiene precária, racionamento de água, lixo exposto e corpos
em estado de putrefação enterrados em covas rasas. Passa-se a analisar esse contexto,
primeiramente, do ponto de vista literário quanto à abordagem naturalista.
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[...]e embora sabendo que são raríssimas as educações perfeitas e que mesmo os
mais discretos recatos têm os seus pontos débeis, há que reconhecer que os
primeiros ce os trazidos a esta quarentena foram capazes, com maior ou menor
consciência, de levar com dignidade a cruz da natureza eminentemente escatológica
do ser humano. Mas agora, ocupados como se encontram todos os catres, duzentos e
quarenta, sem contar os cegos que dormem no chão, nenhuma imaginação, por
muito fértil e criadora que fosse em comparações, imagens e metáforas, poderia
descrever com propriedade o estendal de porcaria que por aqui vai. Não é só o
estado a que rapidamente chegaram as sentinas, antros fétidos, como deverão ser. no
inferno, os desaguadoiros das almas condenadas, é também a falta de respeito de uns
ou súbita urgência de outros que, em pouquíssimo tempo, tornaram os corredores e
outros lugares de passagem em retretes que começaram por ser de ocasião e se
tornaram de costume. [...]Os 133 descuidados ou urgidos pensavam, Não tem
importância, ninguém me vê, e não iam mais longe. (SARAMAGO, 2000, P. 137-
138).

Observa-se que Saramago faz uma descrição bastante consistente dos organismos
humanos, além de atribuir ao homem uma natureza, originalmente, suja. Uma retomada das
características do naturalismo em que essa peculiaridade se acentua com mais ímpeto. Fato
que contribui para dar mais veracidade à cena, levando o leitor a visualizar o desfecho na
mente.
De acordo Hobbes (2005) e Freud (1932), no estado de natureza ou horda
(nomenclatura usada por Freud) a partir do momento em que o homem empunha um artefato
material que proporcione a ele subjugar seu promitente oponente, ele mostra-se superior a
ele em força e comando. Assim, essa exibição de poder e violência tem como objetivo
defender não somente a vida, mas também inibir a investida em regresso dos que, embora
queiram destitui-lo da posição conquistada pela força, não possuem os atributos necessários
para tal investida.
Essa relação de poder e violência pode ser apreciada no romance de Saramago no
ponto da narrativa em que surge entre os confinados um cego que porta uma arma. Com ela
em punhos, ele se autodeclara o rei da sua ala e, com isso, começa a confiscar os alimentos e a
exigir que os outros internos passem a pagar por eles caso queiram saciar suas fomes. Como
pode ser conferido na sequência narrativa:
.
[...] Não nos deixaram trazer a comida, disse um dos, e os outros repetiram
deixaram, Quem, os soldados, perguntou uma voz qualquer, Não, os cegos, Que
cegos, aqui somos todos cegos, Não sabemos quem eles sejam, disse o ajudante de
farmácia, mas penso que devem ser dos que vieram todos juntos, os últimos que
chegaram, E como foi isso de não vos deixarem trazer a comida, perguntou o
médico, até agora não tinha havido qualquer problema, Eles dizem que isso acabou,
a partir de hoje quem quiser comer terá de pagar. [...] Avançando juntos, como uma
pinha, romperam caminho por entre os cegos das outras camaratas. Quando
alcançaram o átrio, a mulher do médico compreendeu logo que nenhuma
conversação diplomática iria ser possível, e que provavelmente não o seria nunca.
No meio do átrio, rodeando as caixas da comida, um circulo de cegos armados de
paus e de ferros de cama, apontados para a frente como baionetas [...]
(SARAMAGO, 2000, p. 138).
40

[...] O da pistola continuou, Está dito e não há volta atrás, a partir de hoje seremos
nós a governar a comida, ficam todos avisados, e que ninguém tenha a ideia de ir lá
fora buscá-la, vamos pôr guardas nesta entrada, sofrerão as consequências de
qualquer tentativa de ir contra as ordens, a comida passa a ser vendida, quem quiser
comer, paga, [...] (SARAMAGO, 2000, p. 140).

Como já não bastasse se apoderar dos poucos bens que os internos possuíam, o cego
da arma, decorridos uma semana das coletas, faz uma exigência mais desumana para
continuar a ceder a comida: “Passada uma semana, os cegos malvados mandaram recado de
que queriam mulheres. Assim, simplesmente, Tragam-nos mulheres [...] SARAMAGO, 2000,
p. 164). Nesse ponto da história, a degradação humana chega a no ponto em que o ser humano
é capaz de avaliar o que, realmente, está em questão a ser defendido, isto é, não se sujeitar a
tamanha humilhação em nome da dignidade ou ceder a favor da sobrevivência? Primo Levi
(1988), sobrevivente dos campos de concentração nazista, responde essa indagação com
conhecimento de causa por ter presenciado muitos de seus companheiros em situações que
colidiam com a razão humana, indiferente de grau de instrução ou classe social, curvarem-se
aos mais sujos e sórdidos métodos quer ilícitos, quer degradantes, até então por ele atribuída
aos infratores, para garantir um mínimo de condição humana num confinamento forçado para
não morrer de fome ou outra desventura. Nas suas palavras:

A capacidade humana de cavar-se uma toca, de criar uma casca, de erguer ao redor
de si uma tênue barreira defensiva, ainda que em circunstâncias aparentemente
desesperadas, é espantosa e mereceria um estudo profundo. Trata-se de um
precioso trabalho de adaptação, parte passivo e inconsciente, parte ativo: cravar
um prego no beliche para pendurar os sapatos, à noite; ajustar tácitos acordos de
não-agressão com os vizinhos; intuir e aceitar os hábitos e leis peculiares do
Kommando e do Bloco.[...] (LEVI, 1988, p.48).

Percebe-se que a narrativa de fatos reais por Levi testemunhada dialoga,


perfeitamente, com a ficção de Saramago, no que concerne a organização dos sete
personagens principais sob a liderança do médico e as observações da esposa dele, para que
suas mentes não se perdessem de toda a racionalidade. Contudo, por mais que o esforço
mental era exigido, o instinto selvagem do homem assume quando o seu limite de sofrimento
alcança o insuportável. Nessa percepção, a próxima passagem descreve o quão cruel um ser
pode tratar seu semelhante. Neste caso, a cena do estupro coletivo, ao qual as personagens
femininas foram submetidas, remete ao relato de Levi ao pontuar como o indivíduo consegue
se salvar.
41

Amanhecia quando os cegos malvados deixaram ir as mulheres. A cega das insónias


teve de ser levada dali em braços pelas companheiras, que mal se podiam. elas
próprias, arrastar. Durante horas haviam passado de homem em homem, de
humilhação em humilhação, de ofensa em ofensa, tudo quanto é possivel fazer a
uma mulher deixando-a ainda viva. Já sabem? O pagamento é em géneros, digam
aos homenzinhos que lá têm que venham buscar as sopas, escarnecera à despedida o
cego da pistola. E acrescentou, chocarreiro, Até à vista, meninas, vão-se preparando
para a próxima sessão. (SARAMAGO, 2000, p. 178).

Respondendo ao extremo do estado de natureza e ao medo, surge na obra o momento


em que a mulher do médico, até então o ponto de equilíbrio da sanidade em sua ala, decide
por acabar de vez com o abuso físico ao qual as mulheres em geral do confinamento estavam
expostas. Sozinha ela premedita e executa o assassinato do rei da camarata que, por portar
uma arma tinha vantagem de força em relação aos outros. Como o algoz das mulheres, era o
causador da violação de seus corpos. Todavia, ela também possuía um artefato que, naquele
momento, foi usado como uma arma eficiente comparada com a que o outro portava.

[...] Ia ser simples matá-lo. Enquanto lentamente avançava pela estreita coxia, a
mulher do médico observava os movimentos daquele que não tardaria a matar, como
o gozo o fazia inclinar a cabeça para trás, como já parecia estar a oferecer-lhe o
pescoço. Devagar, a mulher do médico aproximou-se, rodeou a cama e foi colocar-
se por trás dele. A cega continuava no seu trabalho. A mão levantou lentamente a
tesoura, as laminas um pouco separadas para penetrarem como dois punhais. Nesse
momento, o último, o cego pareceu dar por uma presença, mas o orgasmo retirara-o
do mundo das sensações comuns, privara-o de reflexos, Não chegarás a gozar,
pensou a mulher do médico, efez descer violentamente o braço. A tesoura enterrou-
se com toda a força na garganta do cego, girando sobre si mesma lutou contra as
cartilagens e os tecidos membranosos, depois furiosamente continuou até ser detida
pelas vértebras cervicais. (SARAMAGO, 2000, p. 188).

Como consequência da omissão do Estado, a justiça com as próprias mãos torna-se o


recurso mais rápido para a solução do problema, marcando a falha do Estado em zelar pela
segurança do povo ao negligenciar a justiça segundo as observações de Focault (1997). Para o
ordenamento jurídico brasileiro, o Código Penal em seu art. 23 afirma que “Não há crime
quando o agente pratica o fato: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984); I - em estado
de necessidade; (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984); II - em legítima defesa;(Incluído
pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984). Logo, a esposa do médico está legalmente absolvida. No
entanto, no estado de natureza, em que o instinto é a lei, tanto o rei da camarata, quanto a
esposa do médico gozam de um mesmo precedente. De acordo Hobbes (2005), mesmo aquele
que tome o poder pela força das armas não é detentor de um poder perpétuo, pois mesmo ele é
passível de ser derrotado, pois:
42

A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito


que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo,
ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isto
em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente
considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício
a que outro não possa também aspirar, tal como ele. Porque quanto à força corporal
o mais fraco tem força suficiente para MATAR o mais forte, quer por secreta
maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo
perigo (HOBBES, 2005, p. 87 ).

Saramago (2008), numa entrevista a respeito de Ensaio sobre a cegueira, salienta que
a história da humanidade está repleta de exemplos de atos de extrema exibição de violência
quer a motivação fosse nobre ou não. Para Freud, em sua carta a Einstein (1932), explica a ele
a respeito da origem do caráter agressivo e violento do homem para defender seus interesses.
Sob a visão filosófica sustentada por Hobbes (2005), depreende-se que no estado de natureza
o indivíduo define o que vem a ser justo ou de valor para ele. Desse modo, reconhece-se na
mulher do médico uma mistura de estado de natureza e prerrogativas de Estado que foram de
suma importância para garantir não só a sanidade mental dos personagens principais, mas
também manter o espírito de união vívido e, assim, conseguir libertar a si e aos outros da
degradação humana às quais foram impingidos, durante a quarentena forçada e após a
libertação, até o momento da recuperação da visão dos integrantes do seu grupo.
43

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa procurou identificar no romance do escritor português José


Saramago Ensaio sobre a cegueira, a representação literária de como o homem responde aos
seus e passa a agir sob as leis do estado de natureza.
No decorrer da análise, fundamentada nas passagens das obras, explorou-se o agir
humano conforme visões filosóficas e sociológicas, resguardado viés literário, com intuito de
demonstrar que a linguagem subjetiva do escritor alcançou, por vezes, fatos recorrentes em
qualquer sociedade.
Para que se pudesse chegar a esse nível de interpretação, a filosofia de Thomas
Hobbes, os estudos sociológicos defendidos por Zigmound Bauman, uma revisita aos fatos
históricos, dentre exemplos da vida real, foram de grande relevância para explicar o agir
humano em seu estado de direito natural.
Pôde-se apurar, na concepção de Hobbes, que o Estado exerce uma função estrutural
primordial para a vida civilizada como se conhece, pois a partir do momento em que os
personagens foram privados dessa concepção de organização suas vidas ficaram
desestruturadas e, como consequência, o pânico se apoderou de suas mentes, afetando, assim,
a capacidade racional.
A teoria de Bauman possibilitou explanar o efeito devastador que a sensação de pânico
provoca na pessoa, levando a agir de maneiras que nunca agira antes, isto é, extremos, como
foi visto nas passagens selecionadas. Atitudes que foram da comum prática do roubo de carro
que mais tarde virou roubo de comida e até chegar ao ápice do crime de assassinato, não
desprezando o ato de fuzilamento. Ações fundamentadas sempre com base do medo deperder
ou ser vítima de algo.
Da linguagem crítica e irônica de Saramago, que mergulhou na racionalidade humana,
pôde-se fazer uma análise do homem em seu estado de natureza. Ensaio sobre a cegueira
mostrou, finalmente, que por mais que a raça humana tenha evoluído em civilidade com o
passar dos tempos; aprendido a viver em sociedade e a obedecer convenções sociais em nome
da ordem social, basta um abalo expressivo que venha por em risco seu modo de vida
organizado e ele se esquecerá da razão que o difere dos animais e passará a agir por instinto
em defesa da sobrevivência.
44

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48
49
50
51

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS

DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS - CCH

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO - MONOGRAFIA

DEFESA PÚBLICA DO TRABALHO DE MONOGRAFIA

LETRAS PORTUGUÊS

DECLARAÇÃO DO DISCENTE

Declaro para fins documentais que minha monografia apresentada ao Curso de


Letras/Português do Departamento de Comunicação e Letras da Universidade Estadual de
Montes Claros - Unimontes é original e não se trata de plágio; não havendo, portanto, cópias
de partes, capítulos ou artigos de nenhum outro trabalho já defendido e publicado no Brasil
ou no exterior. Caso ocorra plágio, estou ciente de que serei reprovada na disciplina
Monografia

Por ser verdade, firmo esta declaração.

Almenara, 20 de dezembro de 2018

Acadêmica: Vanúsia Costa Fagundes


52

Informações adicionais

Alexandre Coutinho Pagliarini Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa.

Fernando Gomes Aguilera - escritor e ensaísta. Em 2007 publicou, em Portugal, a biografia


José Saramago: a consistência dos sonhos — lançada em versão ampliada na Espanha, em
2010 —, e foi curador da exposição de mesmo nome sobre o escritor, realizada em Portugal e
no Brasil.

Fernando da Mota Lima (in memorian) Mestre em sociologia na Universidade Federal de


Pernanbuco.

Gilberto Lopes Teixeira pProfessor Doutor em História Social pela Universidade de São
Paulo. Professor Titular de História da América do Centro Universitário Fundação Santo
André.
Henrique Andrade Camargo - Bacharel em Jornalismo pela Faculdades Integradas Alcântara
Machado, Fiam/SP desde 1998. Concluiu em 2012 pós-Graduação em Gestão Socioambiental
para a Sustentabilidade pela Fundação Instituto de Administração, FIA/USP.

José Renato Salatiel Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(2008) e atualmente é professor adjunto na Universidade Federal do Espírito Santo.

Maria Carolina Maia É formada em jornalismo e ciências sociais pela Universidade de São
Paulo. Atualmente, é editora de entretenimento e cultura da Revista Veja.

Numa- Deny Fustel de Coulanges (1830-1889) Historiador Francês.

Rodrigo Barreto da Silva Moura, Mestrado (Conceito CAPES 5) em Literatura Portuguesa e


Galega Contemporânea pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Bacharel em
Letras (Português-Francês) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2013).

Os livros de José Saramago estão publicados nos seguintes países:

Albânia, Alemanha, Angola, Argentina, Áustria, Azerbeijão, Bangladesh, Bósnia-


Herzegovina, Brasil, Bulgária, Canadá, China, Colômbia, Coreia do Sul, Croácia, Cuba,
53

Dinamarca, Egito, Emiratos Árabes Unidos, Eslováquia, Eslovénia, Espanha, Estados Unidos
da América, Estónia, Finlândia, França, Geórgia, Grécia, Guatemala, Holanda, Hungria,
Índia, Irão, Iraque, Islândia, Israel, Itália, Japão, Letónia, Lituânia, Macau, Macedónia,
México, Moçambique, Montenegro, Noruega, Peru, Polónia, Portugal, Reino Unido,
República Checa, República Dominicana, Roménia, Rússia, Sérvia, Síria, Suécia, Suíça,
Tailândia, Taiwan, Turquia, Ucrânia, Uruguai e Vietname.

Os livros de José Saramago estão traduzidos nos seguintes idiomas:

Albanês, alemão, árabe, azerbaijano, bengali, búlgaro, cantonês, castelhano, catalão, checo,
coreano, croata (alfabeto latino), dinamarquês, eslovaco, esloveno, esperanto, euskera, farsi,
finlandês (suomi), francês, georgiano, grego, hebraico, hindi, holandês, húngaro, inglês,
islandês, italiano, japonês, letão, lituano, malabar, malaio, mandarim, norueguês, polaco,
romeno, russo, sardo, sérvio (alfabeto cirílico), sueco, tailandês, tamil, turco, ucraniano,
valenciano e vietnamita.

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