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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Tenório Nunes Telles de Menezes

O sagrado na lírica de Murilo Mendes

Mestrado em Literatura e Crítica Literária

São Paulo
2018
Tenório Nunes Telles de Menezes

O sagrado na lírica de Murilo Mendes

Mestrado em Literatura e Crítica Literária

Dissertação apresentada à Banca


Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de
MESTRE em Literatura e Crítica Literária,
sob a orientação da Profa. Dra. Maria
Aparecida Junqueira.

SÃO PAULO
2018
Banca Examinadora

...........................................................................

...........................................................................

...........................................................................
Agradeço, em especial, à Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino
Superior (CAPES), pela concessão da
bolsa de estudos Mestrado, sob o nº.
88887.177.915/2018-00.
AGRADECIMENTOS

Ninguém é só no mundo. Por isso, sou todos os que chegaram ao meu porto, com
suas ofertas. Sobretudo, os que trouxeram vida, água, o encanto da poesia e o pão
do saber, e me ajudaram a saciar a fome de ser no mundo.

À minha mãe, dona Maria Celina por ter segurado a minha mão e me
ajudado a chegar até aqui. Também ao filho Aristides.
Àquela que me guiou nesta travessia do Mestrado, com suas orientações
seguras: Professora Maria Aparecida Junqueira.
Aos professores da Banca de Qualificação – pelas considerações que
enriqueceram o trabalho e contribuíram para sua realização: Maria Rosa Duarte
de Oliveira, João de Jesus Paes Loureiro.
Nesse navegar, cheguei às Perdizes, na PUC – onde fui recebido com
respeito e atenção pelas professoras Diana Navas, Maria Rosa Duarte de
Oliveira, Annita Costa Malufe, Elizabeth Cardoso, Beth Brait e minha orientadora
Maria Aparecida Junqueira, que me ensinaram novas artes de navegar.
Ao Programa de Literatura e Crítica por ser um espaço de compromisso
com o conhecimento, tolerância e aprendizagem. Ana Albertina, pela atenção e
boa vontade em ajudar.
Ao avô Francisco Telles de Menezes, de quem fui guia de cego e herdei o
sobrenome. E ao João Bosco Botelho, por ter me instigado a deixar o porto.
Aos mestres dos primeiros tempos de viagem e que me ensinaram
importantes lições de navegação. Professoras/professores: Teresa Koba,
Gerdião, Cristiano, Bernadete, Socorro Batista, Valadares, Marcos Frederico
Krüger, Artemis Veiga, Carlos Eduardo, Odenildo Sena, Neide Gondim, Valente,
Hidelvídia, Giralcina, Ribamar Bessa, Gabriel Albuquerque, Antonio Paulo Graça.
Aos amigos, pelo incentivo: Victor Gondim, Otávio Gomes, Ovídio Gomes,
Carlos Lima, Lauro Tavares, Célio Cruz, Carlos Cardoso, Luis Cláudio Chaves,
Sílvia Laureana, Heldemar Ferreira, Neiza Teixeira, Heitor Costa. Ademir de
Godoy Bueno – parceiro de navegação.
Thiago de Mello, Luiz Bacellar, Márcio Souza, Aldisio Filgueiras, Saturnino
Valladares. Margarida Campos, pela presença e cuidado.
Dori Carvalho e Isaac Maciel – que me ensinaram a força dos livros.
Para Dâmea, que me acompanhou nos momentos difíceis da travessia.

Sou essa viagem e esse mar, com seus portos e seus viajantes. Cumprido o
propósito – uma palavra: Gratidão. E lembrar Murilo Mendes, “Grafito na lápide duma
menina romana”, que esteve do meu lado nesta busca, guiando-me com seu canto:
“Borboleta que larga seu casulo. / Concluí o sonho. Comecei a vida”.
As palavras que encarnam uma perfeição inimaginável para o
homem – “Deus”, “verdade”, “justiça” –, se pronunciadas
internamente com vontade... têm o poder de elevar a alma e
inundá-la de luz.

Simone Weil – Pela supressão dos partidos políticos


MENEZES, Tenório Nunes Telles de. O sagrado na Lírica de Murilo Mendes.
Dissertação de Mestrado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e
Crítica Literária. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brasil, 2018,
136 p.

RESUMO

A presente pesquisa tem como foco o estudo e a análise da produção poética de


Murilo Mendes, referenciada na presença do sagrado como fundamento de sua
poesia. Busca-se compreender essa interlocução entre o divino e o humano como
uma experiência imanente, marcada por um processo constante de tensão que se
harmoniza no poético. O objeto desta reflexão são as obras produzidas no recorte
temporal compreendido entre os anos de 1935 a 1945, definidoras e evocativas
de seu discurso lírico. Esse conjunto de livros apresenta os fundamentos e as
vertentes que marcaram seu percurso poético – enunciadores das mudanças e do
amadurecimento do seu processo criativo que culminou em Convergência. O
corpus da investigação compreende os livros representativos do recorte temporal
definido: – Tempo e eternidade (1935); – O sinal de Deus (1936); – A poesia em
pânico (1937); – O visionário (1941); – As metamorfoses (1944); – Mundo enigma
(1945); – O discípulo de Emaús (1945) e Convergência (1970), pelo seu
significado no conjunto da lírica muriliana. Pretende-se apreender as formas de
expressão do sagrado na criação poética de Murilo Mendes e como são
apropriadas e tecidas na elaboração de seu discurso, bem como os efeitos de
sentido que revestem sua linguagem. A pesquisa se fundamenta nos estudos
teóricos de interpretação hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger, Hans-
Georg Gadamer e Benedito Nunes, tendo como ponto de ancoragem a obra do
poeta alemão Hölderlin e a poesia de viés metafísico. Este estudo da poesia de
Murilo Mendes é pautado em bibliografia e no método analítico interpretativo.

Palavras-chave: Murilo Mendes; Poesia modernista; Essencialismo; Lírica e


transcendência; Sagrado.
MENEZES, Tenório Nunes Telles de. The sacred in the lyric of Murilo Mendes.
Master’s degree thesis. Program of Graduate Studies in Literature and Literary
Theory. Pontifical Catholic University of São Paulo, São Paulo State, Brazil, 2018,
136 pages.

ABSTRACT

The purpose of the present research is to analyze the poetic production by Murilo
Mendes referenced in the presence of the Sacred as the basis of his poetry. It
seeks to understand that interlocution between divine and human as an immanent
experience, marked by a constant process of tense that tones with the poetic. The
subject of this reflection are the works produced by him in the temporal cut
between 1935 and 1945, defining and evocative of his lyrical discourse. This set of
textbooks presents the foundations and aspects that have marked his poetic
speech – enunciating changes and maturity of his creative process which
culminated in Convergência. The corpus of the investigation comprises the books
representative of the defined temporal cut: – Tempo e eternidade (1935); – O sinal
de Deus (1936); – A poesia em pânico (1937); – O visionário (1941); – As
metamorfoses (1944); – Mundo enigma (1945); – O discípulo de Emaús (1945)
and Convergência (1970), for its significance in the whole Murilian lyric poetry. It is
intended to apprehend the forms of how the sacred is expressed in the poetic
creation of Murilo Mendes and how they are appropriated and woven in the
elaboration of his discourse, as well as the effects of meaning that lodge his
language. The research is based on theoretical studies of interpretation
hermeneutic of the philosophers Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer and
Benedito Nunes, having as an anchorage the work of the German poet Hölderlin
and the poetry of metaphysical bias. This study of Murilo Mende's poetry is based
on bibliography on the broached theme and on the interpretative analytical
method.

Keywords: Murilo Mendes; Modernist poetry; Essentialism; Lyric poetry and


transcendence; Sacred.
Sumário

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11

CAPÍTULO I – A poesia e o sagrado ..................................................................... 21

1.1. A poesia, transcendência e a transfiguração da palavra .............................. 22


1.1.1. A criação poética como evocação tensiva do mundo ............................ 23
1.1.2. O diálogo entre Nietzsche e Murilo Mendes – o apolíneo e o
dionisíaco.................................................................................................... 27

1.2. A poesia como modo de ser e compreender o mundo ................................. 30


1.2.1. O sagrado na poesia – o divino como compreensão da existência ....... 32
1.2.2. O poético em Murilo Mendes e a tradição lírica espiritualista ................. 36

1.3. As origens da lírica e os cantos celebrativos sumerianos ............................ 40


1.3.1 A lírica grega e a precedência sumeriana ............................................... 42

1.4. Murilo Mendes e a palavra como evocação do ser ........................................ 44

1.5. A hermenêutica e o poético – compreensão e escuta do texto .................... 48


1.5.1. Um exercício de escuta e interpretação do texto poético ...................... 53

CAPÍTULO II – A presença do sagrado na poesia de Murilo Mendes ............... 63

2.1. “O reino de Deus está em nós” ..................................................................... 64

2.2. O sagrado na tradição lírica brasileira .......................................................... 67

2.3. O essencialismo como caminho para a transcendência ............................... 69

2.4. Linguagem, forma poética e o sagrado ......................................................... 73


2.4.1. O salmo bíblico e a lírica muriliana ........................................................ 80
2.4.2. Os hinos de louvor na tradição lírica ...................................................... 82

2.5. Despertar e conversão em Murilo Mendes ................................................... 86


2.5.1. A morte de Ismael Nery e a conversão de Murilo Mendes .................... 89

2.6. Itinerário de uma busca ou as estações de uma vida ................................... 93


2.6.1. Virada estética na poética de Murilo Mendes ........................................ 100
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 107

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 113

ANEXO: POEMAS – MURILO MENDES & OUTROS TEXTOS ............................ 121


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INTRODUÇÃO

Céu e terra se tocaram


Com grande aplauso do fogo,
Ondas bravas se abraçavam
No início do nosso idílio.
Murilo Mendes – “Tu”, As metamorfoses

Por acreditar que a poesia pode ser um caminho para a compreensão do


mundo e uma forma de autodescoberta e desvelamento de um sentido para o
existir – especialmente se considerarmos a perda do sentido do sagrado e o
esvaziamento do significado social e humano do tempo em que vivemos –, a obra
poética de Murilo Mendes se apresenta como um esforço no sentido de
estabelecer nexos menos superficiais e mais intensos entre o homem, sua
espiritualidade e a existência. O autor dedicou sua vida e seu trabalho criativo ao
propósito de elaborar poética e teoricamente possibilidades de compreensão e
ação em face da realidade.

Murilo Mendes, desde os primeiros passos da sua iniciação literária,


manifestou preocupações com o processo de construção do texto poético, bem
como seu comprometimento com a condição humana em meio aos limites e
injustiças sociais. Na “Nota liminar”, que abre sua Antologia poética (MENDES,
1964, p. 8), publicada em Portugal, em 1964, assinala esses aspectos marcantes
de sua percepção como artista e cidadão:

Quanto a esta antologia, penso ser lícito indicar que é o livro-resumo de


alguém que desde adolescente crê na força da poesia como técnica
social e individual de interpretação da rude matéria da vida; que, visto
crer outrossim na convivência entre os homens, na metamorfose
contínua das coisas, na possibilidade de se edificar um mundo mais
civilizado, onde as ideias de paz e de justiça se respirem como um canto,
um ritmo, condena o processo de desumanização extrema da arte, o
qual se desenrola em nossos dias.

Considerando o momento histórico que atravessa a humanidade, marcado


por conflitos, intolerância e precarização do saber e da cultura, a fala do poeta
conserva a atualidade. Dois aspectos se destacam no posicionamento de
Mendes: o primeiro, a crença manifestada “na força da poesia como técnica social
e individual de interpretação da rude matéria da vida”. Para o poeta, o criador não
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é um mero observador ou imitador dos fatos sociais, mas um intérprete


interessado em ajudar, por meio de sua intuição e sensibilidade poética, bem
como de sua inventividade, no processo de compreensão “da vida”. Essa
perspectiva o aproxima das teses do pensamento hermenêutico. O filósofo Hans-
George Gadamer (2008, p. 572) manifestou ponto de vista semelhante ao refletir
sobre o caráter expressivo da palavra e seus nexos com o existente: “Não só o
mundo é mundo apenas quando vem à linguagem, como a própria linguagem só
tem sua verdadeira existência no fato de que representa o mundo”.

O segundo aspecto diz respeito ao componente ético que fundamenta a


interlocução de Murilo Mendes com o real e permeia o seu discurso poético.
Comprometido com a mudança social e com a liberdade, posiciona-se a favor da
“possibilidade de se edificar um mundo mais civilizado, onde as ideias de paz e de
justiça se respirem como um canto”. Esses elementos são delineadores de sua
práxis estético-política.

Observando-se o contexto em que o poeta elaborou sua obra – situado no


recorte temporal que vai da segunda década do século passado a 1975, quando
faleceu –, dominado pelos grandes discursos de cunho racionalista e ideológico, a
opção de Mendes por um ponto de vista fundado no diálogo entre o divino e o
humano, mediado pelo poético, foi um ato de ousadia. O escritor (MENDES,
2014a, p. 255) considerava o fenômeno poético como um caminho possível de
compreensão da condição do ser humano e suas relações com as contingências
da realidade sócio-histórica: “Desde muitos anos insisto em que a poesia é uma
chave do conhecimento, como a ciência, a arte ou a religião; sendo portanto óbvio
que lhe atribuo um significado muito superior ao de simples confidência ou de
jogo literário”.

A lírica muriliana se configura na interface do transcendente com o


imanente, expressa na convergência poética entre o divino e o humano,
entendidos como forças em estado de permanente tensionamento. A
espiritualidade é um tema fundamental da cultura e acompanha o percurso da
própria civilização, contribuindo no processo de compreensão de nosso estar no
mundo e de fundamento para o ser humano na sua busca de auto-entendimento e
de construção de sentidos para o seu existir.
13

A percepção religiosa da realidade e do fenômeno humano é parte da


constituição subjetiva do homem e teve historicamente profunda influência sobre
as manifestações artísticas, particularmente sobre a poesia. A reflexão proposta,
a partir da temática desta dissertação, funda-se no propósito de identificar e
discutir no discurso de Murilo Mendes esses pressupostos, manifestos na sua
convicção de que a poesia, como expressão artística milenar, é uma forma de
entendimento e “uma chave do conhecimento do universo” (MENDES, 1996b, p.
260). O crítico José Guilherme Merquior (2013, p. 229), no livro Razão do poema,
refere-se a essa questão ao afirmar que

Se há um ponto em que decididamente concordam as mais opostas


teorias estéticas de hoje (por exemplo, a estética de Heidegger com a de
Lukács) é na aceitação comum da arte como forma de conhecimento.
Seja uma revelação de caráter metafísico ou uma interpretação da
história concreta, em ambas as posições a arte se considera como capaz
de nos oferecer uma imagem do ser, cumprindo uma função de
conhecimento da realidade.

O sagrado, portanto, é um referencial importante da cultura e das artes, e


pressupõe um modo de ser, de sentir e de representar a realidade. É uma forma
de compreensão perene, como esclarece/declara Mendes (1994, p. 890) ao
justificar sua opção pelo cristianismo: “Meu espírito jamais poderia aderir a uma
verdade provisória ou parcial, a um sistema dependente das flutuações de uma
época”.

Mendes, entretanto, considerava a criação poética como um diálogo


interlocutório entre o religioso e a vida e suas circunstâncias. Sob essa
perspectiva, o poeta elaborou sua fala incorporando temas e formas de expressão
da tradição lírica de viés espiritualista, com forte teor metafísico, o que o aproxima
dessa tradição que tem como destaque poetas como John Donne, William Blake,
Hölderlin, entre outros. Nesse sentido, vale destacar que a religiosidade de
confissão cristã será um elemento definidor e recorrente de seu discurso literário.

Esse aspecto conecta Murilo Mendes a uma linhagem antiga da poesia


brasileira, que surge com os poemas doutrinários de José de Anchieta,
especialmente os dedicados a Nossa Senhora, nos primórdios da colonização do
país, passando por Antônio Vieira e Gregório de Mato, no Barroco, Junqueira
Freire no Romantismo, culminando no Simbolismo, com a poesia expressiva de
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Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens. No contexto do Modernismo, a


segunda geração, da qual fazem parte Jorge de Lima, Cecília Meireles, Vinicius
de Moraes e o próprio poeta, dará continuidade a essa vertente da lírica nacional
identificada com o tema da espiritualidade e comprometida com um discurso
poético reflexivo sobre a condição do ser humano num tempo dilacerado pela
guerra e dominado pelo materialismo.

A problematização desses fatores de natureza estético-filosófica desdobra-


se no estudo da poesia de Murilo Mendes com objetivos definidos visando
compreender o nexo que a liga à tradição espiritualista e, ao mesmo tempo,
refletir sobre como esses fatores se transfiguram na tessitura da linguagem de
seu canto e como se elaboram no plano da expressão. O reverso desse debate
se sustenta no reconhecimento do fenômeno religioso como uma experiência
social e humana. O poeta não a concebe, entretanto, como algo além-mundo,
mas parte de sua existencialidade.

A obra poética de Mendes evidencia as hipóteses formuladas e corrobora


os pontos de vista que sustentam a arquitetura de sua construção poética,
fundada na imanência de sua crença religiosa, seu vínculo com a tradição da
poesia espiritualista e, sobretudo, seu entendimento do poético como diálogo e
ponte para uma possível reconciliação do ser humano com o sentido primordial da
vida.

O exame das obras que compõem o recorte da produção poética de Murilo


Mendes, objeto deste estudo, compreende os livros publicados entre os anos de
1935 a 1945. Essa reunião de textos apresenta os pressupostos e caminhos que
definiram seu percurso poético, marcado por mudanças e amadurecimento de seu
processo criativo, que culminou em Convergência (1970), apontado pelos
estudiosos de sua poesia como seu livro mais expressivo pelo apuro na
construção dos poemas e acuidade no tratamento dos temas. O corpus da
investigação engloba Tempo e eternidade (1935), O sinal de Deus (1936), A
poesia em pânico (1937), O visionário (1941), As metamorfoses (1944), Mundo
enigma (1945), O discípulo de Emaús (1945) e Convergência, em diálogo com
outros escritos do autor. A análise incidirá sobre poemas que exprimem e se
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relacionam com os objetivos e hipóteses firmados nesta investigação e


selecionados dos livros referidos.

Esse conjunto de títulos de Murilo Mendes, que constituem o repertório


desta pesquisa, enunciam sua inquietude, seus questionamentos e buscas num
contexto histórico conturbado, de polarização político-ideológica entre os
defensores do liberalismo e do comunismo, no transcurso das décadas de 30 e 40
do século passado, e a afirmação do racionalismo e materialismo histórico como
construções hegemônicas de compreensão da realidade.

É nesse cenário que o sujeito lírico prefigura sua crença na transcendência,


suas dúvidas, seus temores e a via-crúcis de seu próprio percurso existencial,
manifestos nos títulos dos livros: Tempo e eternidade – concebido como uma
declaração poética e uma afirmação de seu compromisso de fazer uma poesia
identificada com a mensagem de Cristo; O sinal de Deus – experiência epifânica
de reconhecimento do divino como caminho possível para conceder aos seres
humanos um sentido novo para a existência; A poesia em pânico – em que
evidencia a situação de instabilidade da humanidade sob a ameaça de uma nova
guerra mundial e seus influxos sobre a sensibilidade do sujeito poético em estado
de pânico; O visionário – o eu lírico inquieto diante do caos gerado pela
precariedade do humano, “A alma insatisfeita” (MENDES, 1994, p. 231); As
metamorfoses – sob o impacto da guerra, com o mundo arruinado pela crueldade
das armas de destruição em massa e pela barbárie das ideologias em conflito, o
ser do poeta vive transformações profundas que se refletem na sua maneira de
ver, plasmada pela compaixão e certo arrefecimento de suas certezas religiosas e
de seu messianismo. Mundo enigma e O discípulo de Emaús, lançados em 1945,
expressam uma mudança no olhar do poeta, marcada pelo tom de
questionamento de seus valores e crenças e uma virada na sua percepção
estética, que, segundo Haroldo de Campos (2017, p. 68), “pode ser tomado como
uma pedra-de-toque da marcha de Murilo empós da crescente substantivação de
sua poesia”. Esse processo se desdobra no tempo e vai eclodir em Convergência,
obra emblemática de sua lírica.

Nos últimos trinta anos a fortuna crítica de Murilo Mendes só tem crescido.
O acervo sobre a sua produção literária, envolvendo sua poesia, a prosa, as
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correspondências, os artigos de jornais, seus textos críticos sobre artes e música,


reflexões culturais, é crescente e compreende dezenas de dissertações e teses
em diversas universidades brasileiras e estrangeiras. Mendes foi professor na
Itália e publicou ensaios, resenhas e poemas em italiano, gozando de
reconhecimento literário na Europa, sendo distinguido, em 1972, com o XI Premio
Internazionale di Poesia Etna-Taormina.

O referencial teórico desta pesquisa contempla um conjunto de estudos e


críticos que se tornaram incontornáveis na apreciação e análise da obra poética
de Murilo Mendes. Nesse sentido, a construção deste trabalho se realizou num
processo de interlocução com as reflexões de Laís Corrêa de Araújo, enfeixadas
no seu livro Murilo Mendes – ensaio crítico, antologia, correspondência (2000);
Haroldo de Campos, com o seu já célebre ensaio “Murilo e o mundo substantivo”
(Metalinguagem & outras metas – ensaios de teoria e crítica literária, 2017); João
Alexandre Barbosa, “Convergência poética de Murilo Mendes” (A metáfora crítica,
1974), uma das mais ricas reflexões sobre a lírica muriliana; José Guilherme
Merquior, grande leitor da poesia do autor mineiro, com análises reveladoras: “À
beira do antiuniverso debruçado ou introdução livre à poesia de Murilo Mendes”
(Antologia poética, 1976) e “Murilo Mendes ou a poética do visionário” (Razão do
poema, 2013); Antonio Candido, com seu ensaio esclarecedor sobre o recorte
surrealista da poética de Mendes: “Pastor pianista/pianista pastor” (Na sala de
aula, 1986); Murilo Marcondes de Moura: “Os jasmins da palavra jamais” (Leitura
de poesia, 2001); Sebastião Uchoa Leite, com seu ensaio esclarecedor “A meta
múltipla de Murilo Mendes” (Crítica de ouvido, 2003); Ruggero Jacobbi, estudioso
e tradutor italiano da poesia do autor de O discípulo de Emaús: “Murilo Mendes e
o pão subversivo da paz” (Convergência, 2014); Edson Munck Junior, com sua
reflexão enriquecedora sobre o apolíneo e o dionisíaco na lírica muriliana: “A
heterodoxia muriliana na dança com o sagrado” (2012).

Alguns livros foram significativos para a permanência da poesia de Murilo


Mendes e, ao mesmo tempo, contribuíram para divulgá-la e incentivar novas
pesquisas: Presença da literatura brasileira – histórica e crítica, sobre o
modernismo brasileiro, de Antonio Candido e José Aderaldo Castelo (1997);
Murilo Mendes, de Júlio Castañon Guimarães (1986); Murilo Mendes – a poesia
17

como totalidade, importante pesquisa acadêmica de Murilo Marcondes de Moura


(1995); A literatura brasileira – origens e unidade, do professor José Aderaldo
Castelo (1999); História da literatura brasileira, da professora italiana e
divulgadora na literatura nacional na Europa Luciana Stegagno-Picchio (2004); e
História concisa da literatura brasileira, do professor e ensaísta Alfredo Bosi
(2006).

A pesquisa foi elaborada a partir da análise interpretativa dos poemas


selecionados de Murilo Mendes com base no método analítico interpretativo,
referenciado na compreensão hermenêutica dos filósofos Martin Heidegger,
Hans-Georg Gadamer e Benedito Nunes, observando-se o diálogo que
empreendem nas suas reflexões com a poesia. Essa interlocução incorporou
como ancoragem e comunicação com a tradição lírica espiritualista a obra do
poeta alemão Hölderlin.

Nesse sentido foram inspiradoras e exemplificativas desse método de


abordagem do fenômeno poético, as obras: Ser e tempo, Ensaios e conferências,
de Martin Heidegger, em especial o texto “...poeticamente o homem habita...” –
em que discute o poema “No azul sereno floresce...”, de Hölderlin; acrescendo-se
Explicações da poesia de Hölderlin, composto de diversos estudos sobre a lírica
do poeta, com destaque para o ensaio “Hölderlin e a essência da poesia”.

O livro Hermenêutica e poesia: o pensamento poético, do filósofo e


ensaísta Benedito Nunes, é um guia esclarecedor para o exame da poesia e seus
fundamentos filosóficos. São vários ensaios em que aborda questões relativas à
interpretação do escrito poético sob a perspectiva do método hermenêutico. O
ponto de vista de Nunes é de que a interlocução da Filosofia com a poesia é
enriquecedora e, ao mesmo tempo, iluminadora no embate do leitor ou do
intérprete com o poema.

Responsável pelo estabelecimento e fundamentação da hermenêutica


filosófica, como método de compreensão do texto, Gadamer discute e formaliza
seus pressupostos teóricos em duas obras que podem ser de grande utilidade
para os estudiosos da literatura: Verdade e método I – traços fundamentais de
uma hermenêutica filosófica, sua obra mais significativa, e Hermenêutica da obra
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de arte, reunião de ensaios em que exemplifica sua metodologia de interpretação.


Para o filósofo (2010, p. 484), a “Hermenêutica não designa tanto um
procedimento, mas antes o comportamento do homem que quer compreender um
outro ou que quer compreender como ouvinte ou leitor uma exteriorização
linguística”.

Estruturado segundo seus objetivos e hipóteses em relação ao tema


abordado sobre a poesia de Murilo Mendes, seus parâmetros teóricos e método
interpretativo, o trabalho foi dividido em dois capítulos: o primeiro, intitulado “A
poesia e o sagrado”, é uma apresentação sobre como esse assunto tem sido
evocado ao longo do tempo por poetas e estudiosos. O sagrado não é, como
comumente se pensa, um assunto de interesse das religiões. O sagrado é uma
dimensão da existência e uma forma possível de compreensão do mundo e do
humano. Isso ajuda a compreender a presença de uma importante linhagem
poética que dialoga com o divino, manifesta na criação de inúmeros poetas desde
os tempos mais remotos, na Suméria, consolidando-se a partir da lírica grega e
desdobrando-se até o presente. Murilo Mendes faz parte dessa tradição. O
capítulo se encerra com um breve relato sobre o método hermenêutico e sua
relação com a poesia como caminho para uma interlocução e compreensão do
discurso lírico.

Denominado “A presença do sagrado na poesia de Murilo Mendes”, o


segundo capítulo versa sobre os elementos que enformam a linguagem e a
concepção do autor sobre a poesia, bem como sua percepção do divino e seus
vínculos com seu universo vivencial. Esse segmento do estudo propõe-se a
refletir sobre aspectos do discurso poético de Mendes: as tensões pulsantes na
relação do humano com divino, do onírico com a razão, do apolíneo com o
dionisíaco, do ser humano com o mundo, capturadas nas malhas de sua tessitura
poética.

Discute-se igualmente os vínculos da poética de Mendes com a tradição


lírica espiritualista, a influência do essencialismo sobre sua produção, sua
conversão ao catolicismo e como esses fatos se desdobram na sua vida criativa.
A partir do exame de um conjunto de textos, conclui-se o capítulo com um breve
registro de seu itinerário poético, em que esse percurso é estabelecido por meio
19

da indicação dos próprios poemas. Exemplo da presença desse traço biográfico


na poesia de Murilo Mendes (2014b, p. 22) é o “Grafito no pão de açúcar”, de
Convergência, em que rememora passagens, cenários e fatos de sua trajetória
poético-existencial:

No cume desta colina


Nove bilhões de anos
Contemplam-nos.

Neste Rio descobri

O Brasil / cruz e delícia


Saudade minha amada.
Neste Rio ásperofísico
Nomeei-me poeta.

Aqui conversei
Ismael Nery
Mestre / malungo máximo
Entre canto gregoriano e jazz.
(...)

Trata-se de um poema enunciativo em que o eu lírico recompõe


poeticamente acontecimentos que definiram-lhe o ser e foram determinantes no
seu percurso como artista e sujeito. O texto se estrutura como uma interlocução
entre esse eu que se anuncia e a memória fundadora de seu próprio existir.

A obra poética de Murilo Mendes propõe um debate importante em nossos


dias sobre o significado do sagrado e da própria poesia como um modo de ser e
compreender o real. A lírica muriliana pode ser interpretada como um
chamamento a um esforço de abertura e diálogo capaz de congeminar o ser
humano à sua dimensão sacra, por meio, como assinala o papa Bento XVI, em
debate com o filósofo Jürgen Habermas, da “correlacionalidade entre razão e fé,
entre razão e religião” (HABERMAS/RATZINGER, 2007, p. 89).

Por seu profundo conteúdo de humanidade, sua inventividade e


componente ético-estético, a poesia de Murilo Mendes, como experiência
mediadora da tensão entre a linguagem e a realidade, consubstancia-se como
uma reflexão, uma resposta e um caminho possíveis para a concepção de uma
maneira ser conectada à vida, inspiradora e capaz de ajudar o homem na sua
reconciliação e recuperação do sentido primordial de sua existência. Mendes
20

(1964, p. 8), acreditava “na força da poesia como técnica social e individual de
interpretação da rude matéria da vida”.

O poeta acreditava numa espiritualidade a ser vivida como uma promessa


real, humana, imanente – capaz de ajudar a humanidade no anseio de construção
de um mundo de paz e acolhedor da diversidade – fundado na palavra que, sendo
“adâmica: / Nomeia o homem / Que nomeia a palavra” e, como verbo vivificado
pelos impulsos criativos, capaz de nos ajudar no nosso renascimento, como
registra Murilo Mendes (2014b, p. 213) em Convergência: “A palavra nasce-me /
fere-me / mata-me / coisa-me / ressuscita-me”.
21

CAPÍTULO I – A poesia e o sagrado

Através dos séculos o poeta é encarregado, não só


de revelar aos outros, mas de viver praticamente
no seu espírito e no seu sangue, a vocação trans-
cendente do homem.
Murilo Mendes, O discípulo de Emaús

Se é verdade que o pensamento se elabora e enforma nas nervuras da


realidade, que toda reflexão e criação se consubstanciam como interlocução do
sujeito pensante com o seu tempo e seu espaço de vivências, então, a poesia,
como construção singular de linguagem, é um discurso possível sobre a vida em
seu devir permanente – em que o criador busca apreender nas malhas de seu
canto a tensão e as experiências decorrentes do embate para compreender e
significar sua presença no mundo. Esse existir precário e paradoxal é expressivo
da condição do ser humano e de sua relação conflituosa com a existência e com
o seu próprio ser.

Essa percepção nos remete à compreensão de que a palavra é um registro


e uma evocação das vivências dos indivíduos. Desse modo, a linguagem, para
além de seus atributos gramaticais e estéticos, pode se configurar como um
testemunho, o que a torna portadora de uma história. Essa imbricação, entre a
concretude das coisas e sua manifestação linguística, permeia o processo da
comunicação, inclusive aquela que tem na expressão literária sua razão de ser.
Murilo Mendes (1994, p. 830), em O discípulo de Emaús, publicado em 1945,
retrata essa questão de forma sugestiva: “A poesia é a realidade; a imaginação,
seu vestíbulo”. A criação poética, segundo o ponto de vista do poeta, é uma
experiência profundamente humana, resultante de um processo em que se
mesclam e matizam opostos como o real e o imaginário, o transcendente e o
imanente, o lógico e o onírico.

A poesia é um dizer sobre o existente e nasceu do anseio humano de


expressar a si mesmo. O dizer da poesia, entretanto, não é uma fala comum, que
se basta na sua superficialidade. A criação poética é um processo de
22

carnalização de sentimentos, memórias e vivências. Por isso, podemos


considerar que é a própria vida.

Essa potência – manifesta na possibilidade da palavra de traduzir o existir


humano e sua relação com a realidade e o transcendente, transfigurando-a em
imagens, sons, beleza e compreensão –, corporifica o fenômeno poético como
uma vivência profundamente humana e enunciadora de seus vínculos com a
existência. A poesia, a experiência de ser no mundo e a linguagem são aspectos
que fundamentam mais que nossa condição existencial – constituem nossa
humanidade. Os poetas são os guardiães e anunciadores desses valores que nos
mantêm vivos e dignificam a vida.

1.1. Poesia, transcendência e a transfiguração da palavra

O artista da palavra, valendo-se da linguagem e do anseio de evocar a face


do irrevelado e o sentido da existência, compromete-se com uma tarefa
prometeica: chegar ao ser das coisas e ao coração da vida. Embora seja um
intento inalcançável, ao fazê-lo suscita poeticamente vozes e verdades
silenciadas sob a superfície estilhaçada de seu modus vivendi. O sagrado é uma
dessas manifestações que ressurge do silêncio, de seu soterramento, pelo
trabalho de alquimia da linguagem que engendra o poeta ao tecer seu canto. É no
poema que esse dizer genuíno se manifesta e anuncia. O sagrado é parte dessa
dimensão que nos ultrapassa e nos ajuda na busca de redenção.

Essa percepção do divino como parte constitutiva da condição humana


está na origem da própria poesia. Os primeiros registros poéticos, nos momentos
iniciais da civilização, evidenciam essa relação. Na passagem do século VII para
o VI a.C., Safo (2017, p. 118) evocou, num de seus fragmentos, esse componente
sacro da criação poética: “venha lira divina e fale-me / pois só quero te dar à voz”.

A autora grega pede inspiração para conceber seu canto. Como porta-voz
de um atributo sagrado, cabe-lhe “dar à voz” o que a “lira divina” lhe revelará. O
eu lírico assume uma posição de passividade, de alguém que recebe a
23

mensagem a ser transmitida, que a deseja, “quero”, por compreendê-la como


originária dos deuses. De onde viria esse sopro inspirador? Segundo a tradição
grega, foram as musas que legaram à humanidade a faculdade da criação
poética, concebida originalmente como uma emanação deífica.

Esse impulso que tudo move e que entranha a vida estaria na origem do
existir de todas as coisas: nas plantas, nos bichos, no movimento das águas, na
geração de todos os seres. Essa força absoluta e inapreensível está no ser
humano no que tem de mais profundo, singular e impessoal. Para a filósofa
Simone Weil (2016, p. 53), o divino é uma dimensão do humano: “Existe em cada
homem algo sagrado. Mas não é sua pessoa. Tampouco é a pessoa humana. É
ele, esse homem, pura e simplesmente”. O poético identifica-se com esse
fundamento vívido e pulsante que plasma o existente e pela palavra se revela.

1.1.1. A criação poética como evocação tensiva do mundo

O discípulo de Emaús é uma obra emblemática na produção literária de


Murilo Mendes. Além de ser um momento de redefinição de caminho na sua
trajetória poética, em que declara sua passagem “do mundo adjetivo para o
mundo substantivo” (MENDES, 1994, p. 851), é também um texto em que reflete
sobre os temas recorrentes em sua obra, sobressaindo-se: a fé, a arte, o ser
humano, a eternidade, o tempo, Cristo, a cultura e a poesia. A leitura de alguns
aforismos do livro evidencia a afirmação de um ponto de vista fundado sobre três
aspectos fundamentais: ênfase nos processos formais de construção do texto
poético, reconhecimento do caráter paradoxal da existência e seu empenho em
conciliar os opostos, e a reafirmação da religiosidade como uma experiência
imanente.

A tensão e a atitude questionadora diante da vida são traços definidores da


lírica e do modo de ser de Mendes face à complexidade das coisas. Essa
irresignação é explícita no processo de elaboração de seu discurso poético e no
seu posicionamento ético e político. Sua produção literária resulta desse diálogo
com os paradoxos que determinam sua percepção e a condição humana. Esses
24

opostos são enfrentados, segundo os valores estéticos e religiosos do poeta, e


conciliados por meio do trabalho de transmutação da linguagem, como deixa
evidente no testemunho estético-filosófico “A poesia e o nosso tempo”, publicado
em 1959, no Jornal do Brasil:

Preocupei-me com a aproximação de elementos contrários, a aliança


dos extremos, pelo que dispus muitas vezes o poema como um agente
capaz de manifestar dialeticamente essa conciliação, produzindo
choques pelo contato da ideia e do objeto díspares, do raro e do
cotidiano etc. (MENDES, 2014a, p. 251).

Murilo Mendes reiterou, ao longo do tempo, por meio de entrevistas,


correspondências, prólogos e poemas esse posicionamento artístico-existencial,
expresso no seu espírito inovador e atitude questionadora diante dos padrões
culturais estabelecidos. Numa das cartas recolhidas pela professora Laís Corrêa
de Araújo (2000, p. 171), datada de 9 de janeiro de 1969, o poeta refere-se a esse
fato como um elemento inerente à sua personalidade: “Eu tenho sido toda a vida
um franco-atirador. Procuro obedecer a uma espécie de lógica interna, de unidade
apesar dos contrastes, dilacerações e mudanças”. Esse posicionamento se
manteve até Convergência, seu último livro de poesia, de 1970, e considerado por
muitos estudiosos como obra-síntese de sua produção poética.

Esses marcos definidores da lírica muriliana foram ampliados e


enriquecidos no seu processo de forjamento, mas, como ressalta o ensaísta Júlio
Castañon Guimarães (1986, p. 40), no ensaio biográfico Murilo Mendes, já
estavam prefigurados no seu livro de estreia, Poemas, publicado oito anos após a
Semana de Arte Moderna: “já estão também presentes a dimensão erótica e a
inquietação espiritual, com o embate entre concreto e abstrato. Muitas vezes na
poesia muriliana posterior, o erótico e o espiritual chegarão ao entrelaçamento
superando esse embate”.

O poético para Mendes é o espaço no qual os contrastes se articulam para


formar um novo objeto comunicativo, em que a unidade é construída pela
harmonia dos opostos. Na obra inaugural do poeta, um texto, aparentemente
deslocado do conjunto, destaca-se exatamente por ser uma expressão atomizada
do fundamento artístico e metafísico de sua poesia. O poema “Os dois lados”
(MENDES, 2014c, p. 29), como sugere o título, é construído a partir dessa
25

perspectiva ambivalente que define o existir de todas as coisas e, ao mesmo


tempo, é enunciativo do que será sua poesia no arco temporal de sua produção
literária – de 1925 a 1975 –, quando falece. O texto enuncia essa voz e esse olhar
sobre o mundo que se insinua no cerne da lírica muriliana:

Deste lado tem meu corpo


tem o sonho
tem a minha namorada na janela
tem as ruas gritando de luzes e movimentos
tem meu amor tão lento
tem o mundo batendo na minha memória
tem o caminho pro trabalho.

Do outro lado tem outras vidas vivendo da minha vida


tem pensamentos sérios me esperando na sala de visitas
tem minha noiva definitiva me esperando com flores na mão,
tem a morte, as colunas da ordem e da desordem.

O poema identifica-se com o tom predominante na lírica do segundo


momento modernista, dominado por uma percepção reflexiva da condição
humana. O caráter existencial do texto o aproxima de Carlos Drummond de
Andrade, seu parceiro de geração. Em “Os dois lados”, Murilo Mendes
problematiza as vivências imediatas e as que ainda estão no terreno do devir.
Ambas, entretanto, imbricam-se com as contingências que definem o humano e
suas circunstâncias.

O eu poético, na primeira estrofe, volta-se para o imediato, para a vida


presentificada numa sequência de fatos que constitui-lhe o viver. O verso inicial –
“Deste lado tem meu corpo” – situa e indica o lugar do sujeito na trama de seu
existir, sugerida poeticamente: o “lado” a que se refere é o da concretude,
metaforizado pelo “corpo”. Sendo o corpo uma representação do que é palpável,
é possível concluir que se refere ao real, ao aspecto imanente e substantivo do
viver expresso no texto. A posição do sujeito é determinada pela locução
adverbial “Deste lado”, que pode ser compreendida como o presente.

Após elucidar o plano inicial da trama poética, o eu lírico enumera um


conjunto de acontecimentos que marca-lhe a vivência. Por meio do verbo ter, na
terceira pessoa do singular, alude às coisas que acontecem no espaço (“lado”)
vivencial do “corpo”. A enumeração segue uma sequência que remete às
aspirações e propósitos humanos em geral: o ser poeticamente retratado “tem” –
26

“sonho”, “namorada”, “ruas”, “amor”, “mundo”, “caminho pro trabalho”. Nessa


enunciação é a própria vida que se concretiza, com seus anseios, afetos, dramas
e luta pela sobrevivência. Observe-se que o tempo verbal situa-se no presente.

A esfera da presentificação das coisas se conecta a uma outra margem,


que o ser poético apresenta como “outro lado”, com “outras vidas vivendo da
minha vida”. Nesse espaço outro que põe à luz, as vidas referidas estão à espera
de seu acontecer, mas ligam-se à que está em curso. Nessa esfera, os
acontecimentos estão sob o império da possibilidade. São vidas em estado de
potência. A segunda estrofe se inicia igualmente com a definição da posição
referida pelo sujeito lírico. Reitera o uso da locução adverbial para explicitar o
lugar das “outras vidas”, que se situam “Do outro lado”, para além do presente
vivido.

Se na primeira estrofe é explícito o caráter de imanência dos fatos


retratados poeticamente, na segunda é evidente a alusão a coisas que estão para
acontecer, são possibilidades, por isso o uso do verbo esperar no gerúndio. O
sujeito poético afirma que as “vidas” e suas representações o estão “esperando”.
Utiliza-se do verbo ter no início dos versos, igualmente na terceira pessoa do
singular do presente, para afirmar a existência das mesmas – “pensamentos”, a
“noiva definitiva”, também a “morte” – mas estão todos “esperando” o momento de
ser. O uso dessa forma nominal do verbo esperar dá um tom de imprevisibilidade
aos fatos sugeridos pelo eu lírico: “tem minha noiva definitiva me esperando com
flores na mão, / tem a morte”. Essas projeções estão no plano do imponderável,
que, como afirmava o enigmático Parmênides (1999, p. 53), “têm o ímpeto a
tornar-se”. O sábio grego considerava que tudo que constitui o cosmos traz em si
a condição de possibilidade.

O universo temático do poema é tecido em consonância com o âmbito


formal. Estruturado em duas estrofes e vertido numa linguagem simples e direta,
o ritmo do texto se define pela presença de aliterações (“mundo batendo na minha
memória”), assonâncias (“Do outro lado tem outras vidas”) e a alternância de
versos curtos e longos, especialmente na estrofe inicial. Os efeitos de
expressividade são operados em nível sintático pelo uso de repetições e
27

omissões. O primeiro caso diz respeito à utilização reiterada, no início dos versos,
à exceção dos que iniciam as estrofes, do verbo “tem”: a recorrência à anáfora
cria uma cadência nos versos, sugerindo o tom repetitivo da vida (“Deste lado /
tem a minha namorada / tem as ruas gritando / tem meu amor / tem o mundo /
tem o caminho”). O mesmo recurso é utilizado na estrofe final.

O recurso à elipse dá ao texto um efeito expressivo mais econômico aos


versos que se seguem ao primeiro: a omissão dos termos “Deste lado”, na
primeira estrofe, e “Do outro lado”, na segunda, contribui para criar uma cadência
rítmica mais intensa e tornar a linguagem mais enxuta. No último verso do poema,
percebe-se uma elipse no corpo do verso, na segunda sequência: “tem a morte,
as colunas” – em que o verbo tem está subentendido.

O verso final de “Os dois lados” (“tem a morte, as colunas da ordem e da


desordem”), especialmente o segundo segmento, prefigura aquele que será tema
e pressuposto da concepção de mundo de Murilo Mendes e que perpassará seu
discurso poético: a tensão entre os opostos – manifesta na percepção de que na
estruturação do nosso existir tem “as colunas da ordem e da desordem”. Tudo na
vida se elabora a partir da confluência desses elementos que se tensionam e
distendem – o finito e o infinito, o sacro e o profano, o lógico e o onírico. A
“ordem” e a “desordem”. Essa questão é recuperada por Mendes (2017, p. 10) em
muitas passagens de sua obra, a exemplo de “Microdefinição do autor (B)”,
datado de fevereiro de 1970, que abre o livro Poliedro: “Pertenço à categoria não
muito numerosa dos que se interessam igualmente pelo finito e pelo infinito”.
Esses elementos contraditórios e disruptivos que fundam o mundo e constituem a
tessitura da lírica muriliana são harmonizados por meio da poesia.

1.1.2. O diálogo entre Nietzsche e Murilo Mendes – o apolíneo e o dionisíaco

No segmento segundo de seu livro de poemas em prosa, Sinal de Deus, há


um texto intitulado “Nossa vida” em que Murilo Mendes (1994, p. 760) faz uma
síntese enumerativa dos paradoxos que fundam a existência e, ao mesmo tempo,
28

seu olhar sobre esses opostos complementares que constituem a matéria da vida,
as angústias e desejos humanos que encarnam seu canto:

Vida infernal e divina do poeta – Corpos de mulheres descendo e


subindo em torno da gente – Pensamentos para Deus, por Deus, contra
Deus – Solidão – Ânsias de guerra – de paz – de morte – Nascer, viver,
sofrer, morrer e ressuscitar com todos os entes (...) – O princípio, o fim –
O céu, o inferno – Deus! – A poesia da eternidade esclarecendo,
completando e ampliando a poesia do tempo.

O discurso poético de Mendes nasce e é construído na tensão, no conflito


entre os elementos antitéticos do existir humano e que encorpam a condição de
todos os seres: “A vida infernal e divina”, o desejo, a “Solidão”, a presença e
negação de Deus, o caráter irremediável da vida: “Nascer, viver” e a possibilidade
de ressurreição. Tudo principia e declina, mas, ultrapassando tudo, a “poesia da
eternidade” desvela e complementa a precária “poesia do tempo”. Pelo verbo, ou
melhor, pelo poético opera-se a síntese entre o efêmero e o eterno.

A poesia de Murilo Mendes (MENDES, 2017, p. 9) nasce desse fervilhar


interior que corporifica seu ser e seu cantar, como registra na “Microdefinição do
autor (A)”, em Poliedro: “porque dentro de mim discutem um mineiro, um grego,
um hebreu, um indiano, um cristão péssimo, relaxado, um socialista amador;
porque não separo Apolo de Dionísio”. É dessa natureza múltipla, conflituosa e
afluente que brota a criação artística e nasce a obra de arte como já advertira
Nietzsche (1999, p. 27), no ensaio sobre O nascimento da tragédia ou helenismo
e pessimismo:

Teremos ganho muito a favor da ciência estética se chegarmos não


apenas à intelecção lógica mas à certeza imediata da introvisão
[Anschaung] de que o contínuo desenvolvimento da arte está ligado à
duplicidade do apolíneo e do dionisíaco (...). A seus dois deuses da arte,
Apolo e Dionísio, vincula-se a nossa cognição de que no mundo helênico
existe uma enorme contraposição, quanto a origens e objetivos, entre a
arte do figurador plástico [Bildner], a apolínea, e a arte não-figurada
[unbildlichen] da música, a de Dionísio: ambos os impulsos, tão diversos,
caminham lado a lado, na maioria das vezes em discórdia aberta e
incitando-se mutuamente a produções sempre novas, para perpetuar
nelas a luta daquela contraposição sobre a qual a palavra comum ‘arte’
lançava apenas aparentemente a ponte; até que, por fim, através de um
miraculoso ato metafísico da ‘vontade’ helênica, apareceram
emparelhados um com o outro, e nesse emparelhamento tanto a obra de
arte dionisíaca quanto a apolínea geraram a tragédia ática.
29

Leitor de Heráclito, Nietzsche percebeu na oposição entre os “impulsos” da


vida mais do que um fato da natureza. Para ele, o apolíneo e o dionisíaco são
forças conflagrantes, mas criativas que “caminham lado a lado, na maioria das
vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente a produções sempre
novas”. A arte nasce da convergência desses dois princípios que podem ser
compreendidos como chaves metonímicas do processo criativo e das expressões
artísticas, enunciadoras “do sonho e da embriaguez” (ibid, p. 28).

O professor Edson Munck Junior (2012, p. 6), no ensaio “A heterodoxia


muriliana na dança com o sagrado”, discute a presença de Nietzsche no discurso
poético do autor de Poesia em pânico, como um elemento distintivo não só de sua
poética, mas de sua fé e espírito agônico:

O cristianismo agônico, o poeta que quer boxear com a eternidade, a


aproximação cheia de pessoalidade do sujeito do poema com Deus,
dentre outros, são indícios de que há, em Murilo Mendes, marcas da
filosofia de Nietzsche em operação com vistas ao desenvolvimento de
valores novos. Na poética muriliana que lida com a religiosidade, o poeta
oscila entre o apolíneo e o dionisíaco, fazendo questão de tirar o sagrado
para dançar, explorando a parte de Dionísio que lhe cabe.

Murilo Mendes (MENDES, 1994, 1210) reconhece sua dívida com o filósofo
alemão. Na sua série de Retratos-relâmpado, dedica-lhe um pequeno retrato com
alguns senões:

Sou grato a Nietzsche por certas palavras: “o espírito que dança”; a


criação de valores”; “tudo o que não me faz morrer torna-me mais forte”;
“o poder oculto da alma”; “no homem acham-se reunidos a criatura e
criador”.
Sou in-grato a Nietzsche pelo seu culto extremo da força, do
mandarinato; pela sua incompreensão do cristianismo.
(...)
Transcristão? Interpreta a disciplina do sofrimento. Cada cristão deveria
explorar a parte de Dionísio que lhe toca.

O poeta admirava não só as ideias de Nietzsche, mas também sua escrita,


a força de suas palavras e a singularidade de suas metáforas e imagens
surpreendentes. Uma leitura atenta da tapeçaria poética de Murilo Mendes
evidencia os rastros do verbo borbulhante e sem meias palavras do poeta-filósofo
alemão. Nietzsche seria uma espécie de personificação do herético que há em
Murilo Mendes – esse visionário e perseguidor da eternidade que não temia beber
em outras fontes, mesmo naquelas não identificadas com suas crenças.
30

1.2. A poesia como modo de ser e compreender o mundo

A poesia não é um discurso mudo, sem cor e inerme. É uma voz que se
reveste no tempo e na concretude das coisas, e, segundo Platão (2011, p. 39), é
um sopro, “uma concessão divina”, que se anuncia e enforma na linguagem. A
poesia fala, e saber ouvi-la é uma experiência fundamental pelo que apresenta de
singular e revelador sobre o nosso aprendizado do mundo e nossa condição
existencial.

O artista que se consagra ao ofício da palavra é alguém que, por esforço e


paciência, desenvolve a habilidade de ouvir. Ter ouvido fino é uma qualidade
imperativa a que deve aspirar o poeta, pois os versos, como fortalezas sitiadas,
precisam ser conquistados: ouvir o silêncio e fazê-lo soar e ser no poema são as
fortalezas a ser dominadas pelo artífice da palavra.

A poesia, portanto, é um discurso tecido com os fios do tempo, da memória


e da inventividade. É uma poíese: uma encantaria e uma tékhne, que, segundo a
fala das Musas a Hesíodo (2003, p. 107), diz “muitas falsidades, que se parecem
com a verdade”. A criação poética é um simulacro – um dizer indefinido sob o
qual a vida lateja como brasa recoberta pelas cinzas. Os criadores da palavra,
desde os tempos mais remotos, sabiam que o engenho poético é um ato de
invenção e de encantamento. E o artífice dessa arte encantatória é o poeta. Essa
compreensão se consolidou na tradição poética ocidental. No século XVIII, o
poeta alemão Novalis (2000, p. 15), num fragmento significativo, suscita essa
questão:

A linguagem (...) é verdadeiramente um pequeno mundo em sinais e


sons. Assim como o Homem a domina, também quereria dominar o
grande Mundo e nele livremente poder exprimir-se. E é exatamente
nesta alegria de manifestar no Mundo o que lhe é exterior, o poder fazer
isso, que é, no fundo, o impulso originário da nossa existência, que
reside a origem da Poesia.

Novalis considera que o ato de apreender o “Mundo” é uma “alegria”e


identifica essa capacidade de fazê-lo com o “impulso originário da nossa
existência”. Para ele, o desvelar da realidade, como já dissera Platão, é um ato de
pensamento que se configura pela contemplação do existente. E dessa
31

experiência, nasceram a filosofia e a arte. A “Poesia” origina-se igualmente desse


sopro vivificador que do barro elevou o ser humano. Há nas correntes
subterrâneas da linguagem uma compreensão do “existir” que é compartilhada
por todos aqueles que se consagram à magia de traduzir poeticamente o mundo.

A poesia de Murilo Mendes dialoga com essa tradição que concebe a


linguagem não como mero artifício linguístico ou meio de comunicação, mas um
dizer enunciador sobre a realidade. Um modo de ser e de compreendê-la. A
poesia é uma fala revestida de poderes e enfeites próprios, como registra
Aristóteles na Poética. Sob essa perspectiva, o fazer poético se constitui como um
processo que compreende, além do sujeito criador, o domínio por ele da
carpintaria poética. Esse agente criador não é outro senão o poeta – “o Mestre da
língua”, que infunde no poema os poderes mágicos de sua imaginação e trabalha
com as possibilidades expressivas da linguagem. Mendes (2014b, p. 212) evoca
essas questões de forma densa e precisa no livro Convergência, especialmente
no poema “Texto de consulta”, parte 4:

A palavra nasce-me

fere-me
mata-me
coisa-me
ressuscita-me

O que sobressai nesta estrofe, aparentemente desconexa e truncada, é


uma reflexão sobre os poderes germinadores da linguagem. Por conter o
existente e nosso ser, as palavras assemelham-se a pequenos átomos: densos e
concentrados, a ponto de explosão e, por isso, capazes de fazer nascer e
também morrer. A palavra, diz o poeta, tem um poder interior e invisível que se
assemelha à espada do anjo vingador: “fere”, “mata” e, o mais importante: essa
palavra, nascida do homem e que o faz viver, opera a grande transformação a ser
conquistada. A transformação do ser, convertida em verdade, na própria
concretude do mundo – ela “coisa-me”.

Para Mendes, entretanto, essa ressurreição não resulta de um deus ex-


machina, mas de uma potência divina germinada na palavra enraizada no ser do
homem e que é a fonte de sua redenção. É esse divino humano, manifesto no
32

verbo, que faz de cada um de nós um deus capaz de engendrar a própria


ressurreição. Murilo Mendes apresenta poeticamente um discurso metafísico que
concebe o religioso como uma experiência imanente e profundamente humana.
Para ele, o céu é uma possibilidade existencial no plano de nossa humanidade –
é uma promessa de presença do divino na terra. Deus habita o mundo e, como
nos recorda William Blake (1995, p. 31-37), é preciso lembrar os homens “que
todas as deidades residem no coração humano” e que “Se as portas da
percepção estivessem limpas, tudo se mostraria ao homem tal como é, infinito”. O
poético não é só um discurso, é um olhar iluminador sobre as coisas e um modo
de desvelamento do real.

1.2.1. O sagrado na poesia – o divino como compreensão da existência

A poesia é retratada em certas tradições do pensamento como o canal


usado pelos deuses para se pronunciarem no mundo. Para gerá-lo e dar-lhe
forma. A primeira palavra teria sido uma emanação divina – que tudo engendrou e
tudo fez nascer. Encarnou-se nas águas, no ar, na terra e também no ser humano
pelo sopro daquele que vocalizou a fagulha originária permitindo que tudo fosse e
se iluminasse: Fiat lux (“Haja luz”). “E houve luz. Deus viu que a luz era boa, e
Deus separou a luz e as trevas” (Gn 1, 3-4). E como Verbo, com sua potência de
ser, a vida se carnalizou. Essa força inapreensível que habitaria as palavras, fala
e se diz silenciosamente na poesia. O poeta recolheria no seu canto essa voz
perdida, “fala cotidiana que consiste num poema esquecido e desgastado, que
quase não mais ressoa” (HEIDEGGER, 2008, p. 24).

Reavivar esse poema esmaecido seria a tarefa rediviva de todo aquele que
tem no poético a expressão de seu ser na existência e sabe que todo verso é um
eco desse “poema esquecido”, referido por Heidegger. É dentro da ordem do
mundo, entretanto, que a poesia se manifesta ao homem. Não é algo exterior ao
mundo, mas uma expressão do mundo – uma realidade prenhe de possibilidades
em termos de revelação e autodescoberta. María Zambrano (1995, p. 30), no livro
O homem e o divino, reputa o real como uma coisa sagrada: “A realidade é o
33

sagrado e só o sagrado a tem e outorga. Tudo lhe pertence”. A filósofa corrobora


sua afirmativa lembrando o enunciado do poeta Teógnis de Mégara: “Somos
propriedade dos deuses”.

Essa compreensão permeia a concepção poética de Murilo Mendes.


Estudioso da história, da tradição poética e da filosofia, concebeu sua obra em
estreita ligação com esse entendimento que situa o homem como uma emanação
do divino e, portanto, uma síntese das forças vitais que habitam o existente – uma
reunião simbólica do Céu e da Terra.

Nas tradições antigas o ser humano era concebido como uma extensão da
força criadora do cosmos, da divindade que concedeu às coisas e a todos os
seres a possibilidade de existir. O que existe serie exatamente o que se elevou do
pó – avivados pelo “hálito” divino e pela luz que desvelou o que as trevas
escondiam. A poesia rememora esse ato criador, esse impulso que animou o
mundo e se expande no tempo como a luz das estrelas a percorrer distâncias
infinitas. Murilo Mendes (1994, p. 250) tinha profunda consciência dessa presença
do sagrado na existência e a incorporou como razão de ser de sua vida e
fundamento de sua poesia, como esclarece no poema “Filiação”, de Tempo e
eternidade:

Eu sou da raça do Eterno.


Fui criado no princípio
E desdobrado em muitas gerações
Através do espaço e do tempo.
Sinto-me acima das bandeiras,
Tropeçando em cabeças de chefes.
Caminho no mar, na terra e no ar.
Eu sou da raça do Eterno,
Do amor que unirá todos os homens:
Vinde a mim, órfãos da poesia,
Choremos sobre o mundo mutilado.

O título do texto sugere o tema que será glosado nos versos: seu vínculo a
uma origem que precede tudo (“Eu sou da raça do Eterno”), a uma linhagem que
se desdobrou de um tronco originário e que se ramificou “em muitas gerações /
Através do espaço e do tempo”. Nessa afirmativa há uma definição fundamental
da concepção existencial de Murilo Mendes que o vincula a uma metafísica
primeira, presente na origem e que antecede todas as concepções religiosas. É
34

significativo o fato de se conceber como um ser libertário (“acima das bandeiras”)


e reafirmar que o que dá sentido ao seu existir é algo maior por se sentir parte de
uma genealogia que precede e funda o humano. Observe-se a força atribuída à
palavra “raça”. Ela pode ser lida na acepção de “feixe de luz”, sugerindo, assim,
que o eu poético tem sua origem no impulso de luz instituidor do mundo e do
“Eterno”.

A aderência a essa linhagem que se liga ao eterno não é destituída de


obstáculos e tensão, pois, como afirma, resulta de tropeços “em cabeças de
chefes”. Mais que o fundamento religioso, o amor e a poesia são forças capazes
de remir o destino humano de sua perda. O cristianismo do sujeito poético é mero
revestimento, forma como o divino se expressa no seu tempo e como o manifesta
subjetivamente, pois ele se assume como continuidade da estirpe do primeiro
homem, Adão: “Fui criado no princípio”.

O senso religioso que o anima precede todas as religiões, inclusive a


confissão cristã que professa. Já estaria prefigurada quando a primeira criatura
surgiu do barro. Perdeu-se na queda do paraíso, mas, acreditando-se parte “da
raça do Eterno”, vislumbra a reconquista da divindade perdida por meio “Do amor
que unirá todos os homens”. Considera a criação divina a expressão máxima do
ato poético e, por isso, afirma que todos somos órfãos “da poesia” e precisamos
carpir “sobre o mundo mutilado”.

A religiosidade é um sentir e uma experiência profundamente humana e


não um tema inerente à Teologia, à mística ou à poesia. É um assunto do homem
e, como tal, de todas as formas de pensar humanas, repercutindo inclusive no
pensamento científico, a despeito de sua resistência a tudo o que escape do crivo
da razão. A percepção religiosa é um modo de interlocução e compreensão do
real e, talvez por isso, como nos adverte o filósofo Vilém Flusser (2002, p. 16),
“Somos (...) remetidos à nossa vivência interna, à religiosidade. É ela, embora tão
variável e insegura, a nossa única avenida de acesso ao fenômeno religioso”.

Flusser (2002, p. 18) reflete sobre o tema e considera que, após


depreender “as formas inautênticas” e as “formas perversas, resta-nos a
capacidade genuína para captar a dimensão sacra do mundo. Essa capacidade
35

revela o mundo e nossa vida dentro dele como realidade significativa, isto é, como
realidade que aponta para fora de si mesma”. É surpreendente como a percepção
de Flusser sobre o sagrado, como algo que é parte do real, o aproxima de
Heráclito e de toda a tradição que concebe o divino como uma dimensão
inescapável do humano. Desdobra sua reflexão sobre a presença da sacralidade
no plano das vivências humanas, denominando o “sacro” como o “significado que
o mundo e nossa vida dentro dele têm”.

Negar o pensamento religioso, como modo de compreensão do real, tem


sido o comportamento comum do racionalismo, sobretudo a partir do Iluminismo.
As pontes que ligaram no passado essas formas de pensar foram em parte
destruídas ou ignoradas pelos defensores da razão. Estabeleceu-se, assim, entre
o secular e o religioso uma oposição e um abismo quase instransponíveis.

O célebre diálogo, ocorrido em janeiro de 2004, entre o papa Bento XVI e o


filósofo Jürgen Habermas, sobre fé e razão, registrado no livro Dialética e
secularização – sobre razão e religião, foi uma iniciativa concebida com o intuito
de retomar uma interlocução há muito prejudicada por preconceitos e sectarismos
recíprocos. As ponderações dos pensadores deixa claro que esse é um debate
possível e necessário como forma de unir forças para vencer a violência reinante
em nosso tempo. Para Habermas (2007, p. 56), o encontro “entre fé e
conhecimento” só será “sensata” se “as convicções religiosas” ganharem “um
status epistêmico que não seja pura e simplesmente irracional”.

Bento XVI considera que fé e razão são complementares e podem se


enriquecer reciprocamente. Na sua argumentação, sustentou a “necessidade de
uma correlacionalidade entre razão e fé, entre razão e religião. Ambas são
chamadas a se purificarem e curarem mutuamente, e é necessário que
reconheçam o fato de que uma precisa da outra” (HABERMAS/RATZINGER,
2007, p. 89). O papa deu um caráter universal aos seus argumentos,
considerando a necessidade de incluir as demais culturas nessa
“correlacionalidade” como forma de superar barreiras que separam os povos.
Acrescenta:
36

É importante incluí-las na tentativa de uma correlação polifônica na qual


elas próprias possam abrir-se à complementaridade essencial de razão e
fé, de modo que possa ter início um processo universal de purificação no
qual possam ganhar, por fim, um novo brilho aqueles valores e normas
que, de alguma forma, são conhecidos ou vislumbrados por todos os
homens, para que possa ganhar nova força e eficácia na humanidade
aquilo que mantém o mundo unido.

O debate entre Habermas e Bento XVI teve ampla repercussão nos meios
religioso e filosófico. Deixou evidente que fé e razão não são opostos
inconciliáveis e que o diálogo pode ser o caminho para um entendimento entre os
dois pontos de vista. O que os dois pensadores objetivavam realizar por meio da
reflexão teórica, Murilo Mendes e toda a tradição lírica de viés religioso e
metafísico o fizeram por meio da poesia.

1.2.2. O poético em Murilo Mendes e a tradição lírica espiritualista

O discurso poético de Murilo Mendes ecoa os mais antigos cânticos de que


se tem registro e que tiveram como espaço gerador a Mesopotâmia, há mais de
4000 anos. Nesse berço de todas as crenças e da poesia, o divino se anunciou e
enunciou a vida. E, como nas demais tradições, pela palavra tudo fez-se.
Estudioso das civilizações que se constituíram na região dos rios Tigre e Eufrates,
Samuel Noah Kramer (1972, p. 106) recuperou dos escombros do passado essa
memória primeira que por milênios ficou soterrada:

A criação não fora difícil nem laboriosa, pois as divindades, uma vez
decidido por elas o que deviam fazer, tiveram apenas de enunciar o seu
plano de ação e logo a coisa estava feita. Essa ideia transformou-se
numa convicção que foi partilhada por todo o Oriente Próximo como um
estabelecido artigo de fé: a Palavra de Deus – ou de vários deuses – tem
por si mesma o poder de criar do nada todas as coisas.

No panteão dos deuses da antiga suméria, Enlil, o Senhor do Ar, “foi (...) a
força motora para efetuar a separação do Pai Céu da Mãe Terra, a qual não
tardaria a gerar a prole de Enlil” (KRAMER, 1972, 108). Daimon gerador de tudo,
Enlil legou às suas criaturas tudo que necessitariam para viver: fez brotar a
“semente da terra”, criou a “picareta-enxada e deu-a ao homem para facilitar seus
trabalhos agrícolas”. Por seus atributos de benfeitor dos humanos, os poetas da
37

Babilônia, vozes de um tempo eternizado na memória, entoaram cantos


celebrativos ao Senhor do Ar que, com o sopro, gerou o mundo primevo de toda a
humanidade:

Enlil, cujas ordens, têm grande alcance,


cuja palavra é sublime e sagrada,
cujos pronunciamentos são imutáveis
Enlil que traça os destinos no futuro distante,
cujo olhar sobranceiro perscruta os campos,
cujos alcandorados raios sondam o coração da terra...

Quando o pai Enlil se instala solenemente sob


o dossel sagrado, o sublime dossel,
quando exerce o sumo comando e realeza,
os deuses terrenos se curvam diante dele,
os deuses celestiais o reverenciam com humildade.

A similitude entre esse canto originário e os poemas hierofânicos de outros


povos é mais que uma evidência. Sabe-se hoje que os cantares dos bardos
babilônicos influenciaram os epos das civilizações posteriores que se formaram
nas franjas do Mediterrâneo. É surpreendente a beleza, a força imagética, a
percepção da palavra como uma emanação divina, “cujos pronunciamentos são
imutáveis”. Esse sentido do sagrado que vibra nesses versos ecoa nos textos
épicos e na poesia de recorte metafísico. O tom e o caráter devocional desse
cantar manifestam-se no discurso poético de John Donne, William Blake,
Hölderlin, Murilo Mendes e em toda a tradição poética que se constrói a partir do
diálogo com o sagrado.

Laís Corrêa de Araújo (2000, p. 76-77), pioneira no estudo da lírica


muriliana, já havia identificado esse liame que liga a poesia de Mendes a um
corpus divino que transcende o seu tempo e o fundamento de seu catolicismo e
que, por isso, descobriu-se “integrado no Corpo Místico, pois este, mais do que a
totalidade da humanidade que se crê unida em Deus, é o conjunto de potências
espirituais esparsas ou esboçadas no mundo, mesmo se consideradas não-
cristãs”. Teilhard de Chardin (1994, p. 28), que exerceu forte influência sobre o
pensamento de Murilo Mendes, concebia o “fenômeno humano” nessa
perspectiva em que o cósmico, o divino e a racionalidade, abrangendo “tanto o
dentro quanto o fora das coisas”, não são excludentes independentemente de sua
configuração metodológica, mas podem contribuir para “um dia integrar o Homem
38

total numa representação coerente do mundo” que, segundo ele, seria uma
experiência iluminadora do sentido profundo das coisas e o fundamento da
“consumação em nós da coragem e da alegria de agir”.

A poesia de Mendes é tributária dessa tradição que concebe o sagrado


como uma expressão do humano. Essa linhagem poética remonta aos primeiros
rapsodos da antiga Suméria e aos cantos de Hesíodo e Homero na Grécia
arcaica. Hölderlin encarnou em nosso tempo esse espírito que buscou no sagrado
não só consolo, mas uma forma de compreensão e resistência no mundo.
Acreditava num possível retorno dos deuses e, como nos primeiros tempos,
habitariam novamente o mundo e conviveriam com os seres humanos.

O poema “Pão e vinho” (HÖLDERLIN, 1991, p. 169-171) retrata esse


posicionamento poético em face da existência. Nele o poeta alemão lamenta o
banimento dos deuses da terra (que ainda vivem, “mas lá nas alturas, em outro
mundo”), a ausência do divino do convívio dos homens e faz uma intrigante e
dramática pergunta ao ser humano e à própria humanidade (“para que poetas
num tempo de indigência?”):

Mas, amigo, chegamos muito tarde. Os deuses, de fato,


Vivem ainda, mas lá nas alturas, em outro mundo.
Infinita é sua ação ali, e aos celestes parece
Importar pouco a nossa vida, pelo muito que nos poupam.
Pois nem sempre os pode conter um vaso frágil, e só
De raro em raro o homem suporta a plenitude do divino.
(...)

O que esperar, que fazer entrementes, ou o que dizer?


Não sei: e para que poetas num tempo de indigência?
Mas são, dizes, como os sacerdotes do deus das vinhas
Que, pela noite sagrada, iam de país em país.

Responder a essa questão é um problema colocado não só para quem se


dedica ao estudo da literatura, mas para o ser humano em geral, acossado pelas
circunstâncias de um tempo violento, alienante e dominado por mecanismos de
interdição do pensamento reflexivo. A poesia, nesse sentido, se apresenta como
um caminho para o estabelecimento de um diálogo esclarecedor e libertador do
homem em face da opressão de seu ser.
39

O fenômeno poético é entendido, nesse sentido, como expressão de uma


experiência de transformação existencial e de reencontro do humano com a sua
força interior que o impulsiona para a vida e a realização do seu potencial de ser
no mundo. A espiritualidade é concebida, desse modo, como um aprendizado
social, palpável e profundamente humano, ao alcance de todos e, ao mesmo
tempo, um caminho para a reconciliação dos seres humanos. Uma redenção a
ser usufruída como um processo vivo e imanente. Murilo Mendes ancora sua
visão poética nessa compreensão de que a transcendência é uma experiência
profunda a ser vivida não num outro plano, mas na sua imanência, como explicita
Laís de Araújo (2000, p. 76-77):

a poesia não representaria para Murilo Mendes instrumentos de


alienação, de fuga, de desvinculação ética do homem para com o
homem, uma sublimação em que a religiosidade se tornasse forma
apassivadora com que o eu do poeta se protegesse, se escudasse ante
uma realidade que o rejeita ou não compreende (...). É bem diversa a
posição de Murilo Mendes em relação à fé, ao cristianismo redescoberto,
ao pretexto de uma poesia de impulsão religiosa. O seu messianismo é
conturbado, caótico, pouco ortodoxo, angustiado e angustiante, vibrando
nos sentidos, como parte indivisível de seu corpo.

A escrita de Murilo Mendes se elabora como um ato de consciência diante


da existência e suas contingências. Sua poesia é uma forma de leitura e
compreensão da realidade, em que propõe, como caminho para a superação das
angústias do presente e para a alienação reinante em nosso tempo, a reconexão
com o sagrado e a observância dos ensinamentos e exemplo de Jesus. Para o
poeta, Cristo é o símbolo da perfeição e caminho para a redenção do ser humano
e a conquista de um novo existir – prefigurada na eternidade. Mestre Eckhart
(2006, p. 93), no seu livro sobre a consolação divina, concebia esse processo de
elevação como um “despojar-se da imagem (humana) e no revestir a imagem da
eternidade divina, pelo esquecimento total e perfeito da vida transitória e temporal
(...), pois o fim último do homem interior e do homem novo é: a vida eterna”.

O pensamento dos líderes religiosos, dos místicos e dos poetas


identificados com a espiritualidade, nesse aspecto, é convergente: inconformados
com a construção ilusória e precária do mundo, aspiram por um modo de vida
purificado e conectado ao divino. Alguns, como Murilo Mendes, acreditam ser
possível o sentimento do eterno no âmbito histórico e secular. Daí a sua
40

perspectiva imanente da experiência religiosa e do sentido da eternidade. Outros


acreditam que a eternidade só poderá ser usufruída plenamente numa outra
esfera, após a morte e a ressurreição do ser humano, como um prêmio pelos
seus méritos e pela verdade com que viveram sua existência terrena.

1.3. As origens da lírica e os cantos celebrativos sumerianos

O cantar de Murilo Mendes emana a fala criadora que está na origem do


fenômeno poético e transcende todas as denominações religiosas. O que pulsa
no seu canto é a certeza que move o homo religiosus, segundo Mircea Eliade
(2001, p. 164) aquele que “acredita sempre que existe uma realidade absoluta, o
sagrado, que transcende este mundo, que aqui se manifesta, santificando-o e
tornando-o real”. Para esse homem, possuído pelo ânimo divino, “a vida tem uma
origem sagrada e que a existência humana atualiza todas as suas potencialidades
na medida em que é religiosa”.

Esse senso religiosus é presença recorrente na poesia. É uma forma de


olhar e compreender o mundo em sua complexidade e contradições, e que
excede o tempo e o espaço. Suas primeiras evocações estão presentes nos
versos dos poetas mesopotâmicos, especialmente na Epopeia de Gilgámesh, o
mais antigo registro literário conhecido, e nos poemas de Enheduana, filha do rei
acadiano Sargão e sacerdotisa da cidade sagrada de Ur, centro espiritual
consagrado a Nana, o deus da Lua. Num de seus cantos mais conhecidos, “Nin-
me-sara”, dirige-se à deusa Inana, padroeira e protetora de seu pai, que a
chamava de Ishtar. É surpreendente a força imagética do texto, a intensidade da
linguagem e a percepção do eu lírico da presença do impulso divino que anima o
seu cantar. Essa fé no supraterreno explica o fato de Enheduana (apud
KRIWACZEK, 2018, p. 162) se conceber como porta-voz da deusa (“Eu recitarei
teu canto sagrado!”):

Senhora suprema das terras estrangeiras,


Quem pode tirar algo de teu território?
... Os grandes portais deles se incendeiam,
O sangue jorra em seus rios, por tua causa.
41

Neste canto consagrado a Inana, senhora do céu e da guerra, Enheduana


exalta seus poderes e a elogia pela sua força e autoridade. Um dos mais belos
textos já escritos, é uma longa prece dedicada à deusa e ficou conhecida pelas
palavras iniciais: “Nin-me-sara” (“Senhora de todo o Me”) – “nin”: “senhora”, “me”:
essa supremacia revestida por princípios civilizadores Inana usurpou de Enki,
deus da água e o mais sábio dos deuses sumerianos, que teria ajudado a criar a
civilização; e “sara”: o “todo”. Na sequência do poema, mantém o tom honroso,
mas se reporta à deusa numa atitude não mais de submissão: coloca-se à sua
disposição, ressaltando-lhe os atributos, mas desejando ser reconhecida e
celebrando suas funções como “suma sacerdotisa” nos aposentos sagrados
(Giparu), no Eana (“Casa do Céu”), templo consagrado a Inana (KRIWACZEK,
2018, p. 163):

Sábia e prudente senhora de todas as terras estrangeiras,


Força vital do povo fervilhante:
Eu recitarei teu canto sagrado!...
Sincera e bondosa mulher de coração radiante,
Eu enumerarei teus poderes divinos.
Eu, En-hedu-ana, a suma sacerdotisa,
Entrei em meu Giparu sagrado a teu serviço.

Os textos de Enheduana foram escritos durante o reinado de seu pai


Sargão, que estabeleceu o Império Acádio no século XXIII a.C. Por assinar seus
poemas, Enheduana é reconhecida como a primeira autora da história da
literatura universal. É significativo o fato de a poesia ter como patrona essa
mulher de excepcional talento literário e sacerdotisa iniciada nos mistérios do
divino. Seus hinos celebrativos influenciaram os salmos judaicos, a poesia grega,
estendendo-se aos cânticos cristãos primitivos.

As notícias de sua existência e de sua poesia vêm de longe. Chegam-nos


pela fala da memória. Das dobras do tempo, das planícies arenosas da antiga
Suméria; das águas sagradas dos velhos Tigre e Eufrates, ecoa essa voz e essa
mensagem sempre viva e sempre nova dos rapsodos que palmilharam os
desertos, as montanhas e planícies da Mesopotâmia – e à beira dos oásis, à
sombra das figueiras, teceram seus cantares celebrativos. Sobre todos, sopra a
voz de Enheduana (“Começo agora tua canção que determina o destino!”), Suma
Sacerdotisa Ornamento do Céu, que, na longínqua Ur, nos aposentos da casa
42

celeste, teceu seus hinos aos lugares sagrados e seu cantar divino, consagrado à
Lua e à eternidade.

1.3.1. A lírica grega e a precedência sumeriana

Os estudos literários de um modo geral situam, como ponto de partida


dessa discussão sobre as origens da lírica, a Grécia, apontando Hesíodo (2003,
p. 107) e Homero como os precursores: o primeiro com a Teogonia e a célebre
passagem em que aprende com as Musas o “belo canto” e “dizer símeis aos
fatos”. A invocação inicial tanto na Ilíada como na Odisseia obedecem a um
mesmo padrão: na primeira, consagrada à conquista de Troia, o poeta refere-se à
“deusa” e pede-lhe que entoe o canto sobre a bravura de Aquiles – “Canta, ó
deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida / (mortífera! que tantas dores trouxe aos
Aqueus / e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades...)” (HOMERO, 2013,
p. 109); no canto celebrativo a Ulisses, o poeta clama à “Musa” pelos feitos do rei
de Ítaca – “Fala-me, Musa, do homem astuto que tanto vagueou, / depois que de
Troia destruiu a cidadela sagrada” (HOMERO, 2011, p. 119). Nos dois casos, o
sujeito poético recebe a dádiva de ouvir o canto revelado e o fixar poeticamente.

Esse padrão já havia sido estabelecido por Enheduana aproximadamente


dois mil anos antes no seu belo hino dedicado à “Senhora de todo o Me, que se
eleva em resplandecente luz” (Inana): “Eu recitarei teu canto sagrado”. Como
sacerdotisa, era iniciada nos mistérios do divino e conhecia previamente seus
hinos de louvação, não precisando clamar a nenhuma musa para que lhe
concedesse o canto – ela já o sabia, como se percebe no verso em que o anuncia
em tom imperativo: “recitarei teu canto”, que explica é “sagrado”. A maneira como
a sacerdotisa invoca a deusa é como se falasse a um ente próximo, que faz parte
do mesmo plano vivencial. Com ela argumenta “e tenta convencê-la a agir”, como
assinala o estudioso Paul Kriwaczek (2018, p. 163), no seu livro Babilônia: a
Mesopotâmia e o nascimento da civilização: “Sábia e prudente senhora de todas
as terras estrangeiras, / Sincera e bondosa mulher de coração radiante, / Eu
enumerarei teus poderes divinos. / Eu, En-hedu-ana, a suma sacerdotisa”.
43

Se na lírica, a filha de Sargão definiu os marcos dessa fala poética, o


escriba Sin-léqi-unnínni, por volta do século XIII a.C., definiu os fundamentos da
épica, com a história de Gilgámesh, o quinto rei de Úruk após o dilúvio. As
narrativas heroicas desse rei lendário passaram a ser conhecidas a partir do
século XXII a.C.. A Epopeia de Gilgámesh, embora não registre a invocação
inicial dos poemas épicos posteriores, já estabelece o tom, o formato e o
encadeamento que definirão as grandes epopeias que serão escritas. O
“Proêmio” da grande saga do rei sumeriano: “Sá naqba imuru: Ele que o abismo
viu” (UNNÍNNI, 2017, p. 45) é de uma beleza e profundidade surpreendentes:

Ele que o abismo viu, o fundamento da terra,


Seus caminhos conheceu, ele sábio em tudo,
Gilgámesh que o abismo viu, o fundamento da terra,
Seus caminhos conheceu, ele sábio em tudo.

Explorou de todo os tronos,


De todo o saber, tudo aprendeu,
O que é secreto ele viu, e o coberto descobriu,
Trouxe isto e ensinou, o que antes do dilúvio era.
(...)

Fez a muralha de Úruk, o redil,


E o sagrado Eanna, tesouro purificado.
(...)

Toca a escadaria, que há ali desde o início,


Aproxima-te do Eanna, residência de Ishtar,
O qual nem rei futuro nem homem algum igualará.

Nos versos iniciais de Gilgámesh há uma antecipação dos resultados da


jornada do herói ao se aludir a tudo o que viu, os caminhos que conheceu, seu
aprendizado – “De todo o saber, tudo aprendeu”. Refere ainda ao tempo desses
acontecimentos: “o que antes do dilúvio era”. Como os textos épicos da tradição
ocidental, o poema celebra a bravura, a aventura do rei de Úruk, seus feitos e o
grande tesouro conquistado na sua odisseia: o entendimento – “ele sábio em
tudo”.

A leitura comparada dos textos originários sumerianos e gregos não deixa


dúvida quanto à influência da lírica e da épica dos poetas da Mesopotâmia sobre
a poesia que germinaria na Grécia aproximadamente dois mil anos depois. É
questão de justiça reconhecer essa precedência pelo seu significado e relevância
do ponto de vista histórico, particularmente pela situação singularíssima de
44

termos a presença de uma poeta com o talento e sensibilidade de Enheduana na


origem da própria poesia.

As sementes lançadas há quase 50 séculos nas terras irrigadas pelos rios


Tigre e Eufrates germinaram e, entre elas, uma em especial teve grande impacto
na vida cultural da civilização: a poesia. Nascida do divino, entranhada nas
palavras, ela está na origem do pensamento, da filosofia e do esforço dos
místicos e poetas para manter esse sentido e essa verdade primeira que
engendrou o mundo, e deu significado à existência humana.

Contra o esquecimento e certo racionalismo que intentou despojar o mundo


de seu componente de eternidade, de transcendência e de força vivificante, o
poético firmou-se como a cidadela da verdade, o espaço em que o sagrado teve
liberdade para florescer livremente. Diante desse dilema de flertar com o
irrevelado – “nessa busca do inesperado que foge”, Greimas (2017, p. 99),
estudioso da mágica das palavras, questiona-se sobre o que fazer para deslocar-
se “da insignificância em direção ao sentido”. Segundo ele, o que nos restaria
seria “A inocência: o sonho de um retorno às nascentes quando o homem e o
mundo constituíam um só numa pancália original”.

1.4. Murilo Mendes e a percepção da palavra como evocação do ser

Os poetas, como pastores desses vales onde medra a flor secreta da


palavra, seriam os guardiães dessa linguagem que resguarda o impulso criador
que animou as coisas e o próprio homem. Essa voz presentifica “A dor de Deus”
(NIETZSCHE, 1996, p. 248), captura-a, macera e a converte em palavras e canto.
A eternidade, esse lugar para além de tudo que é aparente e precário, sem os
limites do tempo e do espaço, é o refúgio dos deuses caídos, onde ainda vibra e
ouve-se o mistério de seus cantos.

Em 1921, no Jornal A Tarde, de Juiz de Fora, Murilo Mendes (apud


PEREIRA, 2004, p. 180-181) publicou uma crônica em que afirmava que “Os
deuses não morreram: crepuscularam apenas” e ressaltava a capacidade de
45

encantamento do ser humano, como ser capaz de criar a beleza: “Os olhos do
homem deslumbrado colorem a paisagem. Ele é o mágico das coisas: onde a
paisagem era feia e pobre acendem-se palácios, sangram pedrarias, ardem rosas
e açucenas)”.

O poeta completaria em alguns meses 20 anos de idade, mas suas


afirmações eram premonitórias do sentido e fundamento que teria sua obra
poética no futuro, como se percebe em “O poema visto por fora”, que faz parte de
A poesia em pânico (MENDES, 1994, p. 285):

O espírito da poesia me arrebata


Para a região sem forma onde passo longo tempo imóvel
Num silêncio de antes da criação das coisas.
Súbito estendo o braço direito e tudo se encarna:
O esterco novo da volúpia aquece a terra,
Os peixes sobem dos porões do oceano,
As massas precipitam-se na praça pública.

Os diversos personagens que encerrei


Deslocam-se uns dos outros, fundam uma comunidade
Que eu presido ora triste ora alegre.

Não sou Deus porque parto para Ele,


Sou um deus porque partem para mim.
Somos todos deuses porque partimos para um fim único.

Os poemas de A poesia em pânico trazem as marcas de um período


dramático da história da humanidade. A referência a “pânico”, no título, aludiria ao
desespero do eu poético diante de uma época fraturada por disputas de poder.
Foram escritos entre os anos 1936-37, em meio às conturbações que
antecederam a Segunda Guerra Mundial: as consequências econômicas da
quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, o acirramento dos conflitos
ideológicos e de classe, a ascensão do nazismo na Alemanha, os expurgos e
assassinatos de adversários políticos na União Soviética, fascismo na Itália,
ditatura Vargas no país, entre outros.

Esses fatos ecoarão na poesia e na subjetividade de Murilo Mendes (1994,


p. 395), como transparece no poema “Nihil”, de Mundo enigma: “Nesta noite
maquinal, / Ouvinte apenas da guerra, / Sem passado nem futuro, / Odiando o
presente, / Me encontro face a face / Com a estátua do pó, À toa, esperando a
mão do Criador / Finalmente me abater”. O eu lírico vive a angústia do
46

emparedamento e da impotência diante da guerra que ouve à distância. Acalenta


solitariamente uma manifestação, ainda que fatídica, do Criador.

Na contracorrente do debate de ideias na época, em que os defensores do


socialismo, do capitalismo e do nazismo se digladiavam, Mendes reafirmou seu
compromisso com o sagrado e elegeu a espiritualidade como um caminho
possível para a superação dos conflitos humanos, pois acreditava que “O reino de
Deus é suprapolítico, supra-econômico, supratrabalhista” (MENDES, 1994, p.
841) e está presente em todas as coisas.

Cultivar a fé ou defender valores religiosos nesse cenário não era


considerado só um anacronismo, era uma insanidade. Algo sem propósito e uma
atitude considerada alienante. Na crônica que abre o livro Recordações de Ismael
Nery (MENDES, 1996, p. 24), publicada em 1948, o poeta relembra os paradoxos
vividos por sua geração:

Porque Ismael conservou-se sempre cristão. A época em que ele viveu


era muito desfavorável ao catolicismo no Brasil. Os intelectuais eram, na
grande maioria, agnósticos, comunistas ou comunizantes. Mesmo muitos
com tendências espiritualistas disfarçavam-se, por respeito humano. A
religião aparecia-nos como qualquer coisa de obsoleto, definitivamente
ultrapassada. O catolicismo era sinônimo de obscurantismo, servindo só
para base de reação. Não era possível, sobretudo a uma pessoa de bom
gosto, ser católica.

Para Mendes, esse impulso de vida e fascínio pelo divino, expressivo do


religare originário entre o homem e Deus, é algo vivo, passível de ser reavivado a
qualquer momento, como manifesta no “Poema visto por fora”: basta um aceno,
um gesto de querer (“estendo o braço direito e tudo se encarna”) – e tudo rebrota
(“O esterco novo da volúpia aquece a terra”), emerge dos lugares mais recônditos
onde o impulso vital pulsa (“peixes sobem dos porões do oceano”) e, sendo brasa
adormecida, incendeia-se, renovando-se em promessa e possibilidades.

O que é fascinante nessa ontologia poética de Murilo Mendes é a


centralidade do humano: o homem tem a possibilidade de ser por meio de sua
autodescoberta e reencontro com o sentido primordial que move tudo e que pode
ser acessado pelo estado de arrebatamento que a poesia permite. Esse processo
prenhe de simbolismo e revestido da força propiciadora do divino, possibilita ao
ser humano uma experiência de deificação, como se depreende da leitura dos
47

versos finais do “Poema visto por fora”: “Não sou Deus porque parto para Ele, /
Sou um deus porque partem para mim. / Somos todos deuses porque partimos
para um fim único”.

Como ninhos, cada palavra é morada dos deuses – dos esquecidos e dos
que lutam para permanecer vivos. Deuses e homens estão sujeitos à instabilidade
do tempo e às injunções da história. Só o eterno permanece – expressão do
divino “que dá ao homem religioso a possibilidade de entrar em relação com a
fonte do sagrado, com o sagrado em sua dimensão absoluta, com a
transcendência, com Deus nas grandes religiões” (RIES, 2017, p. 83).

Novalis (2000, p. 41) compreendeu o sentido e a força que pulsam na


linguagem e, com isso, sua possibilidade representativa do mundo: “Cada palavra
é uma palavra de evocação. O espírito que ela chama – é o espírito que aparece”.
Por isso, em todas as tradições, a palavra é a semente germinadora de tudo. É a
fala – o comando – do deus instaurador das coisas, da vida e do que está além
dela. Maomé (1427: da Hégira, p. 31), no Alcorão (“o que deve ser lido”),
referindo-se a Allah, afirma na “Sura da Vaca”, que “Ele é O Criador Primordial
dos céus e da terra, e, quando decreta algo, apenas, diz-lhe: ‘Sê’, então, é”.

Murilo Mendes encontrou no divino o fundamento da sua criação poética.


Embora o revestimento de seu canto esteja identificado com o credo cristão, é
possível vinculá-lo à linhagem dos poetas transcendentes, que alguns estudiosos
denominam de metafísicos, embora Augusto de Campos (2009, 123), no ensaio
“A meta física dos ‘Metafísicos’”, considere “o batismo da escola, sob esse nome
discutido e discutível de ‘poetas metafísicos’”. De um modo geral, essa referência
à metafísica se justificaria pelo fato desses autores terem se dedicado à busca da
compreensão, por meio da poesia, de um sentido para a presença do homem no
cosmo, bem como sua relação com Deus e, por fim, a conquista da eternidade.
Para esses poetas, seria no reconhecimento, presença e acolhimento do sagrado
que o ser humano afirmaria a sua humanidade. Alguns, como o próprio John
Donne e William Blake, elegeram temas cristãos e o próprio Cristo como
referência e fundamento de parte significativa de seus escritos poéticos.
48

1.5. A hermenêutica e o poético – compreensão e escuta do texto

Viver é dialogar com a realidade, com os outros e com o próprio ser.


Dialogamos para vencer a solidão, significar nossa presença e construir
possibilidades novas de vida. Segundo Heidegger, estamos lançados no mundo e
nada está pronto. Nosso existir é uma possibilidade que pode se cumprir ou não:
“O turbilhão (...) revela o caráter de mobilidade e de lance do estar-lançado que
se pode impor a si mesmo na disposição da presença. O estar-lançado não só
não é um ‘feito-pronto’ como também não é um fato acabado” (HEIDEGGER,
2009a, p. 244).

É no mundo que forjamos nosso ser, construímos nossa historicidade,


vivenciamos nossos afetos e atribuímos sentidos ao que fazemos e somos. E
todo esse corolário de vivências, aprendizados e realizações se expressa pela
nossa capacidade de dizer sobre nosso estar-aqui. Para Hans-Georg Gadamer
(2008, p. 571), “esse estar-aí do mundo é constituído pela linguagem”:

A linguagem não é somente um dentre muitos dotes atribuídos ao


homem que está no mundo, mas serve de base absoluta para que os
homens tenham mundo, nela se represente no mundo. Para o homem, o
mundo está aí como mundo numa forma como não está para qualquer
outro ser vivo que esteja no mundo.

O mundo assemelha-se a um caleidoscópio de palavras, imagens e


significados que são apreendidos pelo discurso. Lançado na cena da vida, o ser
humano está no mundo e é o mundo, num processo permanente de diálogo e
transformação. A palavra é a ponte que liga essas duas realidades e permite que
se avizinhem, que se visitem e se desencontrem. Essa interlocução é tão
significativa que permite a existência de tudo: “Não só o mundo é mundo apenas
quando vem à linguagem, como a própria linguagem só tem sua verdadeira
existência no fato de que representa o mundo” (GADAMER, 2008, 572).

Esse ser no mundo guarda na moldura de sua concretude as marcas de


nossa presença, as inscrições de nossas aspirações – sítios da memória com
suas camadas de histórias e escombros. Como uma semente, a linguagem brota
do mais recôndito de nosso ser – é uma experiência corpórea e incorpórea que
reaviva em nosso pensamento as imagens de nossas vivências, as vozes que se
49

teceram ao que somos, e até mesmo o silêncio – essa outra voz que diz do que
está além da aparência e evoca as lembranças primevas.

A poesia é uma forma de registro sobre o mundo que se enuncia no


poema. Um fotograma esmaecido em que a vida se esboça e se move como
imagem difusa projetada num espelho. Para Valéry (1991, p. 210), o poeta “tem
de tomar emprestada a linguagem – a voz pública, esta coleção de termos e
regras tradicionais e irracionais” para tecer seu canto e compartilhar o seu dizer
sobre o que viu e viveu. Ao refletir sobre essa alquimia de materialização do ver, o
poeta francês concluiu que “a palavra é uma montagem instantânea de um som e
de um sentido”.

Esse entendimento do poético como uma operação que mobiliza os


sentidos e se consuma na destilação da linguagem, em que as convenções
estéticas se amalgamam com o irracional e a inventividade para engendrar novos
sentidos e uma rítmica própria, é expresso de maneira densa e simbólica por
Murilo Mendes (1994, p. 297) no texto “A um poeta”, de A poesia em pânico:

Eu te emprestarei minha musa:


Estou ansioso por te ver alterado por ela.
Quero que se transfira a ti um pouco do seu mistério,
Quero que me procures para longas confidências,
Quero espiar na tua fisionomia
Um reflexo da minha angústia desdobrada.
Quero te sentir meu irmão no sofrimento,
Quero te abraçar com ela, misturando nossa respiração e tristeza.
Também tu hás de esbarrar ante a muralha de pedra,
Aprenderás o desconsolo, serás forte e ampliarás tua alma.

Leitor de Valéry e estudioso de suas concepções sobre a poesia, Mendes


concebeu seu poema como uma arquitetura que se eleva pelas suas colunas de
significados, sua massa sonora, os tijolos de palavras e os revestimentos de sons,
imagens, cores que vibram nos versos. E eclodindo de seus refolhos mais
profundos – os sentidos, o existente e seus mistérios atomizados no verbo que
brilham como uma corola solar em seu matizado metafórico. “A um poeta” é uma
crítica e uma descrição: o eu lírico se dispõe a compartilhar com outro poeta a sua
“musa”, para que ele possa olhar o mundo e seu próprio fazer poético de outra
forma: “Estou ansioso por te ver alterado por ela”.
50

A partir disso vai enumerando os diversos efeitos que essa mudança possa
operar. O verbo “Quero”, usado repetidamente, é uma reiteração desse desejo de
mudança: “Quero que se transfira a ti um pouco do seu mistério”, da sua “angústia
desdobrada”, “irmão no sofrimento” e abraçados com a “musa” misturar
“respiração e tristeza”. Ao final do aprendizado, o “Poeta”, ao “esbarrar ante a
muralha de pedra”, colherá o prêmio de sua jornada: sentirá o desconsolo da
revelação das dores do mundo, mas, como esclarece o eu poético, “serás forte e
ampliarás tua alma”. O uso da apóstrofe (“serás forte”) ressalta o momento da
revelação e de autodescoberta do Poeta.

O poema de Mendes constrói-se como uma poética, em que vai pouco a


pouco desvelando a sua concepção sobre a poesia e o seu desejo de que isso
possa resultar numa mudança de atitude do “Poeta” diante da vida, no
aprimoramento de seu fazer poético e fundamentalmente na sua constituição
subjetiva: “ampliarás tua alma”.

Murilo Mendes discute no poema a possibilidade do autoconhecimento a


partir da interlocução com o texto escrito, concebido como um mundo a ser
revelado pelo diálogo, como explicita Paul Ricoeur (1989, p. 122), no livro Do
texto à ação: “O que se deve interpretar num texto é uma proposta de mundo, tal
que eu possa habitar nele e nele projetar um dos meus possíveis mais próprios. É
aquilo a que eu chamo o mundo do texto, o mundo próprio a este texto único”.

Gadamer (1964, p. 9), numa passagem do ensaio “Estética e


hermenêutica”, resume com precisão os fundamentos que caracterizam a obra
artística e seus efeitos sobre os seus interlocutores:

a linguagem da obra de arte distingue-se pelo fato de a obra de arte


singular reunir em si e trazer à aparência o caráter simbólico que, visto
em termos hermenêuticos, advém a todo ente. Em comparação com
todas as outras tradições linguísticas ou não, vale dizer sobre a obra de
arte que ela se mostra para o presente respectivo como um presente
absoluto, e, ao mesmo tempo, que ela mantém sua palavra à disposição
de todo futuro. De uma maneira enigmática, a familiaridade com a qual a
obra de arte nos toca é ao mesmo tempo abalo e derrocada do habitual.
Não é apenas o “É isso que tu és!” que ela descobre em um espanto
alegre e terrível – ela também nos diz: “Tu precisas mudar a tua vida”.
51

A obra de arte, em especial o poema, seria um mundo em miniatura,


nascido do encontro do poeta com a realidade, que o intérprete – ou o seu leitor
ideal – tem a missão de evidenciar. De trazê-lo à luz com os seus segredos, seus
ensinamentos e sua voz, como assinala o professor Alfredo Bosi (2003, p. 478) no
ensaio “A interpretação da obra literária”: “Quanto mais denso e belo é o poema,
tanto mais entranhado estará em seu corpo formal o ‘mundo’ que se abriu no
evento e se fechou no claro-escuro dos signos”.

O crítico trabalha com a ideia de evento, considerado como “todo acontecer


vivido na existência que motiva as operações textuais, nelas penetrando como
temporalidade e subjetividade” (BOSI, 2003, p. 463). Explicita ainda o
acontecimento de um texto, ressaltando-lhe os atributos formais, a força subjetiva
que o move e a importância do hermeneuta na percepção e escuta desses
significados que ecoam na sua tessitura poética. Afirma que

O centro vivo do texto será sempre “um complexo de imagens e um


sentimento que o anima” (...). O discurso do hermeneuta conserva o
calor que as ondas da escrita lhe comunicaram, mas a mesma fidelidade
ao texto leva-o a apartar-se do efeito imediato da leitura, e a fazer
perguntas sobre o sentido daquelas figuras que não cessam de atraí-lo
para o seu círculo mágico (BOSI, 2003, p. 468).

Todo escrito tem profundas imbricações com a sua historicidade e só se


anuncia pelo diálogo com um interlocutor preparado por meio de uma
conversação que compreende o texto e o intérprete, como precisa Gadamer
(2008, p. 502):

No caso de textos, trata-se de “manifestações da vida fixadas de modo


permanente” e que devem ser entendidas, o que significa que um
parceiro da conversação hermenêutica, o texto, só pode chegar a falar
através do outro intérprete. Somente por ele os signos escritos se
reconvertem novamente em sentido. Ao mesmo tempo, em virtude dessa
recondução à compreensão, o próprio tema de que fala o texto vem à
linguagem.

Todo processo de interpretação é uma escuta – em que texto e o intérprete


dialogam, divergem e se revelam nessa conversa registrada pela linguagem em
que o hermeneuta participa o resultado da sua audição e o compartilha
socialmente. Gadamer denomina essa experiência de conversação hermenêutica.
52

É dessa maneira que um tema é trazido à fala, num processo de comunicação


que transcende a conversa usual e a mera adaptação discursiva:

isso implica que tanto a conversação hermenêutica quanto a real


precisam elaborar uma linguagem comum, como na conversão, não
representa a preparação de um aparato com vistas ao acordo, mas
coincide com a própria realização do compreender e do acordo
(GADAMER, 2008, p. 502).

O pensador alemão considera que a linguagem resulta de um processo


alquímico que se efetiva na escritura. Para ele, é dessa forma que a escrita, como
já afirmara Heidegger, “alcança sua verdadeira espiritualidade, pois, frente à
tradição escrita, a consciência compreensiva alcançou sua plena soberania. Em
seu ser, já não depende de nada. Assim, a consciência leitora se encontra na
posse potencial de sua história” (GADAMER, 2008, p. 506). Esse caráter de
transcendência que reveste a linguagem e envolve o processo criativo, mais
particularmente a poesia, ressalta sua natureza presciente.

Essa discussão suscitada por Gadamer sobre a suposta presciência do


poeta atravessa, desde a antiguidade, o debate sobre o fundamento divino do
fenômeno poético como sustentou Platão e, antes dele, os rapsodos da
Mesopotâmia e, de maneira mais incisiva, a poeta e sacerdotisa Enheduana, na
longínqua cidade sumeriana de Ur. Essa questão desaguou de forma profunda na
poesia e na compreensão de Rimbaud sobre o fundamento do ato criativo e o
modo de ser do poeta.

É evidente a natureza enunciativa da poesia. O poema é um artefato


falante e, como sustenta Gadamer (2008, p. 630), esse “vir-à-fala é como entrar
em relações de ordem, pelas quais se sustenta e avaliza a ‘verdade’ do que foi
dito. Todo vir-à-fala, e não só no caso da expressão poética, carrega em si algo
desse testemunho”. Disso tudo decorre a compreensão como um pressuposto
imperativo do processo de interpretação do texto.

O exercício de diálogo e aproximação com um escrito assemelha-se a um


jogo em que o intérprete penetra em suas camadas para desvelar-lhe os sentidos
e, nesse processo, encontra-se com o escritor e com o seu universo de crenças –
prefigurado no seu espaço cultural. Nessa experiência, o leitor vive igualmente
53

seu processo de auto-entendimento. Esse movimento de compreensão se


desdobra a partir da interlocução com o texto e vai se realizando conforme a
dinâmica do círculo hermenêutico, em que as perguntas formuladas vão
ensejando respostas e, assim, nos constituímos como parte dessa busca de
entendimento do escrito.

1.5.1. Um exercício de escuta e interpretação do texto poético

No estudo da poesia, a conversação hermenêutica, como procedimento de


aproximação e interlocução com o texto, é de fundamental importância para a sua
escuta e a apreensão de sua fala – que não é só o dizer das palavras, mas
também do mundo tresmalhado na tessitura do poema. O diálogo com o texto é
uma experiência múltipla que extrapola o diálogo com as palavras. Nesse sentido,
a própria leitura é um processo de compreensão, como precisa Murilo Mendes
(1994, p. 862) no aforismo 463 de O discípulo de Emaús: “A leitura deve-nos ler,
tanto quanto ser lida”. Essa reflexão intui e antecipa muito do que Gadamer iria
desenvolver posteriormente em seus estudos de hermenêutica filosófica. Não é
demais lembrar que o livro do poeta é de 1945 e as formulações do filósofo
alemão sobre o tema se tornaram correntes a partir da década de 1960.

Esse tema coincide com a virada na lírica de Murilo Mendes, sua opção por
uma dicção poética substantiva, após o término da Segunda Guerra,
consolidando-se com sua mudança para a Itália em 1957. O professor Murilo
Marcondes (1995, p. 62) chama a atenção para os desdobramentos dessas
mudanças na trajetória artística de Mendes: “A mudança para Europa, com a
consequente exposição a uma vida cultural mais sistemática, parece ter exigido
do poeta uma disciplina de outra ordem, reforçada ainda pelas suas atividades de
professor e crítico de arte”.

Essa mudança definirá o percurso do poeta. O modo como Mendes


passará a conceber o processo construtivo da criação poética será
problematizado em vários poemas. Não é outro o tema que o autor discute em
“Texto de consulta”, que fecha seu livro Convergência (2014b, p. 212) –, senão o
54

poético como expressão do ser do homem e sua presença no mundo,


instaurando-se, por meio da linguagem, uma comunicação que reporta à natureza
do texto e ao sentido primordial da própria existência:

1
A página branca indicará o discurso
Ou a supressão do discurso?

A página branca aumenta a coisa


Ou ainda diminui o mínimo?

O poema é o texto? O poeta?


O poema é o texto + o poeta?
O poema é o poeta – o texto?

O texto é o contexto do poeta


Ou o poeta o contexto do texto?

O texto visível é o texto total


O antetexto o antitexto
Ou as ruínas do texto?
O texto abole
Cria
Ou restaura?

2
O texto deriva do operador do texto
Ou da coletividade – texto?
O texto é manipulado
Pelo operador (ótico)
Pelo operador (cirurgião)
Ou pelo ótico-cirurgião?

O texto é dado
Ou dador?
O texto é objeto concreto
Abstrato
Ou concretoabstrato?

O texto quando escreve


Escreve
Ou foi escrito
Reescrito?

O texto será reescrito


Pelo tipógrafo / o leitor / o crítico;
Pela roda do tempo?

Sofre o operador:
O tipógrafo trunca o texto.
Melhor mandar à oficina
O texto já truncado.
(...)

4
A palavra nasce-me
fere-me
55

mata-me
coisa-me
ressuscita-me
(...)

6
A palavra cria o real?
O real cria a palavra?
Mais difícil de aferrar:
Realidade ou alucinação?

Ou será a realidade
Um conjunto de alucinações?
(...)

8
Morrer: perder o texto
Perder a palavra / o discurso

Morrer: perder o texto


Ser metido numa caixa
Com testo
Sem texto.

9
Juízo final do texto:
Serei julgado pela palavra
Do dador da palavra / do sopro / da chama.

O texto-coisa me espia
Com o olho de outrem.

Talvez me condene ao ergástulo.

O juízo final
Começa em mim
Nos lindes da
Minha palavra.

O poema de Mendes é uma profunda reflexão sobre o sentido e a eficácia


do fenômeno poético – sua concepção, seu fundamento e seus desdobramentos.
Nele se instaura mais que uma conversa e um dizer sobre o mundo. Na verdade,
o material escrito se constitui e se realiza, na sua estrutura formal e no seu plano
semântico, como uma hermenêutica, em que prefigura sua gênese, sua
conversão estética, uma reflexão de natureza metalinguística e suas
possibilidades como um discurso desvelador sobre o texto – sua escritura, o leitor,
seu intérprete, o mundo nele atomizado, bem como seu contexto cultural:

O poema é o texto? O poeta?


O poema é o texto + o poeta?
O poema é o poeta – o texto?
56

O texto é o contexto do poeta


Ou o poeta o contexto do texto?

O sujeito poético nos propõe um diálogo, pontuado de questionamentos,


sobre o ofício da criação poética e sobre a escritura do poema. Trata-se de uma
discussão aberta, em que pouco a pouco alguns lampejos de compreensão vão
se descortinando. E, então, percebe-se que a intenção é nos despertar para o
entendimento de que o texto resulta de um processo complexo que se define por
uma relação de alteridade entre o eu criador, o artefato estético concebido, o
mundo cultural circundante e as contingências de nosso existir. Incluindo-se
também o leitor. Tudo está imbricado – passado, presente e até o futuro – nessa
gestação da palavra, que se configura no poeta – no texto – no poema.

O tom interrogativo permeia a tessitura dos versos, induzindo o leitor a


pensar sobre as questões propostas e o próprio poema, como um objeto que se
dá, mas que questiona, cobra e provoca quem o recebe, que terá a tarefa, como
afirma Gadamer, de trazer para a luz o que está na obscuridade – que é a própria
poesia, essa fala silente tecida com os fios da memória, do sonho e da vida, e que
se enuncia nas malhas do poema.

“Texto de consulta”, pelo corolário de questões sugeridas sobre a


complexidade do fenômeno criativo e sua alquimia constitutiva, pode ser
concebido como um metapoema. O poético é sua própria matéria: “O texto
quando escreve / Escreve / Ou foi escrito / Reescrito?” Desde Platão essa
questão vem sendo discutida. E o próprio filósofo considerava que o criado já era
uma reescritura, uma imitação de uma imagem primeira. O sujeito poético,
envolvido nessa reflexão, sabe dessas implicações e antecipa uma possível
resposta: “O texto será reescrito / Pelo tipógrafo / o leitor / o crítico”. O ponto de
vista de Benedito Nunes (2009, p. 130) sobre a ação desveladora de uma obra
lança luz sobre o ato compreensivo:

Interpretar uma obra é, portanto, desdobrar o mundo a que ela se refere,


mas na modalidade do como se da ficção, que também se abre, através
da linguagem, para as estruturas gerais da existência humana (...). São
essas estruturas que possibilitam a mimese, garantindo o traspasse da
vida cultural e histórica no processo formativo, e que, ativadas pela
percepção estética, funcionam enquanto esquema do traspasse do
mundo projetado na obra ao leitor, quando o sentido dela é
57

compreendido, de cada vez, numa situação determinada. É interagindo


com o leitor que o texto, afinal, se torna plenamente obra.

A hermenêutica, entendida como um procedimento de compreensão e


interlocução com o texto, sobretudo como um método de escuta que elege a
linguagem como sua fonte primordial, é um caminho profícuo para o estudo da
poesia, pois contempla não só o material escrito na sua consubstancialidade
subjetiva e histórica, mas objetiva estabelecer um diálogo com o pensamento e o
mundo que falam no texto. O intérprete é aquele que se dispõe a ouvir o que é
dito nas entrelinhas e sob as camadas de um escrito, seja ele poético ou não. Às
vezes, encontramos essa fala silenciada que almejamos ouvir sob “as ruínas do
texto”.

O ato da escrita é um chamado para um tipo particular de diálogo, em que


o escritor precisa do leitor para compartilhar suas apreensões e sonhos. Também
seu silêncio. Por isso, a linguagem é um código a espera de ser desvelado pelo
intérprete, o que evidencia seu caráter esfíngico. Desvelar esse enigma é
condição para “não perder o texto”. Do contrário, seria a morte da “palavra” e a
perda do “discurso”.

O exame do plano da expressão do texto de Mendes destaca seu apuro e


domínio não só da linguagem, mas da carpintaria poética. Sua capacidade
laborativa é surpreendente: opera sobre os versos com uma precisão incomum,
amalgamando as palavras e adensando-lhes os sentidos e a força expressiva ao
seu limite máximo. Para atingir esse objetivo, centra sua ação criativa nos verbos
que, como espelhos, refletem as possibilidades que decorrem da “palavra” que
tudo faz nascer. O núcleo desencadeador das diversas ações ensejadas pelos
verbos é o substantivo “palavra”, o nome – que diz o que cada coisa é.

A força determinante do poema está, entretanto, na forma como o verbo se


apresenta: na voz reflexiva, em que a ação se reverte no próprio agente: “A
palavra nasce-me / fere-me / coisa-me”. Ela não se transfere para outrem. O
sujeito é o centro de seu próprio agir – o verbo está nele, é ele – e dá causa à sua
transformação. Essa intransitividade que determina o poema é um traço distintivo
da poética e da concepção de mundo de Murilo Mendes (2014b, p. 215),
58

sustentada na perspectiva de um posicionamento imanente em que o divino é


uma presença na realidade, como evidencia na última sequência, “9”, de “Texto
de consulta”:

O texto-coisa me espia
Com o olho de outrem.

Talvez me condene ao ergástulo.

O juízo final
Começa em mim
Nos lindes da
Minha palavra.

O texto tem vida e anseia pela atenção de seu interlocutor. Ele “espia /
Com o olho de outrem”. Como um artefato vivo, pode reagir contra o outro
envolvido na interlocução. Nessa configuração dialógica proposta no poema, o
processo de compreensão não uma via de mão única, do intérprete para o texto.
Ao contrário, texto e intérprete travam um embate pela possibilidade de
autodesvelamento recíproco.

“Texto de consulta” se configura como uma poética do autor. Ou ainda


como um metadiscurso sobre o processo criativo, concebido a partir do ponto de
vista de alguém que se interroga sobre a palavra, o texto (“O poema é o texto? O
poeta?), sua produção gráfica (“O tipógrafo trunca o texto. / Melhor mandar à
oficina / O texto já truncado”) e seu significado como um artefato humano que
traduz e testemunha seu existir concreto (“A palavra cria o real? / O real cria a
palavra?”) – com todo seu espanto, perplexidade e promessa de uma redenção
anunciada, que só será possível por meio da palavra, resgatada da banalidade da
comunicação pragmática numa sociedade estandardizada, na qual vivemos a
contingência de ser, e seremos ou não resgatados segundo a verdade do verbo
que nos revela:
Juízo final do texto:
Serei julgado pela palavra
Do dador da palavra / do sopro / da chama.

A mesma palavra que dá a vida, presidirá o julgamento no “Juízo final do


texto”, sob o olhar “Do dador” – o lampejo da chama originária: o sopro de Deus.
Numa linguagem lapidada esteticamente, o eu criador funde na sua fala o tema
de seu discurso e o enuncia por meio de palavras que funcionam como senhas a
59

serem revelados no diálogo texto-leitor-autor. Na palavra está contigo o princípio


e o fim. E também a chave para o desvelamento da vida e do mundo que, como
sementes, germinam-lhe as entranhas.

Essa percepção, expressa no canto de Murilo Mendes, lembra uma


afirmação de Heráclito de Éfeso (1999, p. 51): “Eu trago à fala a ti todas as coisas
como o universo na incandescência do desvelamento”. A evocação poética, como
um dizer sobre a vida, é uma “incandescência” – um iluminar que tenciona por a
nu acontecimentos que se escondem sob as sombras do cotidiano e de nossa
existência aparente.

A poesia de Mendes ecoa essas questões suscitadas desde as primeiras


manifestações poéticas conhecidas. Sua obra está vinculada a essa linhagem de
poetas que procuraram estabelecer conexões entre a transcendência e o plano
das vivências humanas. Para ele, a poesia é um jeito de ser, uma atitude e não
uma mera extrapolação de sentimentos ou um posicionamento que se esgota no
formalismo. No célebre depoimento “A poesia e o nosso tempo”, escrito após a
entrevista concedida a Walmir Ayala, em 1959, Murilo Mendes (2014a, p. 251)
formaliza seu ponto de vista sobre o sentido da poesia, que, segundo ele, “deve
propor não só um conhecimento, mas ainda uma transfiguração da condição
humana, elevando-nos a um plano espiritual mais alto”. O poeta não via
incompatibilidade entre o mundo das contingências humanas e o sagrado,
concebido como uma dimensão enriquecedora da nossa existência:

Atraído simultaneamente pelo terrestre e o celeste, pelo animal e o


espiritual, entendi que a linguagem poderia manifestar essa tendência,
sob a forma de um encontro de palavras extraídas tanto da Bíblia como
dos jornais; procurando mostrar que o “social” não se opõe ao “religioso”.

A força da poesia funda-se no reconhecimento de que a língua é o canal


que permite a manifestação e o registro do impulso vital que é o sangue e o sopro
por meio dos quais o poeta fala de sua condição existencial. Num poema do livro
Tempo e eternidade, escrito em parceria com Jorge de Lima, Murilo Mendes
(1994, p. 255) evidencia sua compreensão do existente e seu comprometimento
com os demais seres humanos. O título, “Eternidade do Homem”, é simbólico dos
temas e ideias recorrentes em sua obra. É possível afirmar que essas duas
60

palavras: “Eternidade” e “Homem” se constituem no fundamento de seu pensar e


fazer poético:

Abandonarei as formas de expressões finitas,


Abandonarei a música dos dias e das noites,
(...)
Serei a testemunha de um mundo que caiu,
Até que te manifeste na tua Parusia.
(...)

Minha história se desdobrará em poemas:


Assim outros homens compreenderão
Que sou apenas um elo da universal corrente
Começada em Adão e a terminar no último homem.

O sentido do texto já está prenunciado no título e se desdobrará nos


versos. “Eternidade do Homem” é um nome síntese em que os dois substantivos
remetem às duas margens do discurso poético de Murilo Mendes: o divino e o
humano. Sua poesia é uma ponte: constrói-se como uma metáfora a ligar essas
duas dimensões da existência humana, e sua própria vida é parte desse devir que
se projeta no tempo e no espaço para além do imediato: “Minha história se
desdobrará em poemas”. Isso porque compreende que o seu existir não se
inscreve nos limites do hoje, mas é uma projeção de uma experiência infinita que
se iniciou no momento em que Deus gerou o primeiro homem: “sou apenas um
elo da universal corrente / Começada em Adão e a terminar no último homem”. A
poesia é o veículo dessa mensagem que intenta unir o céu e a terra e que se
consubstancia na própria existência de um eu lírico que se concebe como
emanação e parte do divino: sua busca será inscrita “em poemas”.

Os dois substantivos, “Eternidade” e “Homem”, na primeira edição,


aparecem com as letras iniciais maiúsculas, a acentuar a força e o valor que o
autor pretendia atribuir a essas duas palavras. Em edições posteriores o segundo
nome é registrado em minúsculo, “Eternidade do homem”, o que contrasta com as
intenções e o projeto poético de Murilo Mendes que concebia o humano no
mesmo nível de importância que o divino – como duas naturezas que se
complementam.

Esse descuido dos editores, aparentemente sem consequências, gera um


desequilíbrio em termos interpretativos, até porque, para Mendes, o centro de
61

toda projeção divina é o Homem: em que um se revela no outro. A Eternidade


seria a projeção de um existir infinito, sem limite e duração, como assinala o sábio
Boécio (1998, p. 150) na sua Consolação da Filosofia: “a eternidade é a posse
inteira e perfeita de uma vida ilimitada”. E o Homem, como síntese do mundo e
imagem de Deus, seria o objeto e o centro dessa possibilidade que transcende a
precariedade e impermanência do real.

O poema para ser percebido em sua complexidade deve ser lido no


espelho do tempo em que foi escrito. Os anos trinta, do século passado, foram
difíceis para a humanidade: foi um tempo de incerteza, de intensas disputas de
ideias e valores – materialismo x espiritualidade, razão x fé, revolução x
conservação, democracia x tirania – que repercutiram nas crenças e na
estabilidade política da Europa e suas regiões de influência. Essa atmosfera foi se
aprofundando ao longo dos anos e culminou numa das guerras mais violentas da
história.

Na sua profissão de fé, o eu poético deixa evidente que a condição para a


sua jornada de autoconstrução espiritual passa inevitavelmente pela renúncia da
realidade efêmera e repetitiva, e das ilusões cotidianas: “Abandonarei as formas
de expressões finitas, / Abandonarei a música dos dias e das noites”. Engajado
no propósito de ser e de transcender este plano, concebe-se como “a testemunha
de um mundo que caiu”. Essa alusão à queda de Adão e sua consequência: o
pecado original que privou a humanidade de um existir sem infortúnios, é
metafórica da perda, do fado e da finitude do ser humano. A desobediência deu
causa à perda da inocência e à morte, que só será vencida com o retorno de
Deus, anunciado pelos evangelhos e que o poeta relembra no verso: “Até que te
manifeste na tua Parusia”.

De origem grega, “parousía”, tem o sentido de “chegada”. Assim, todo o


suplício humano só cessará com a volta de Cristo: momento epifânico de
redenção da humanidade – a “Parusia”, que nos libertará da queda originária.
Nesse momento de pura claridade, em que as trevas serão vencidas, o poeta se
metamorfoseará em luz e deixará de ser “a testemunha de um mundo que caiu”
para viver na eternidade do sagrado, de um tempo sem começo e sem fim. Ou,
como nos lembra Santo Agostinho (2003, p. 367) nas Confissões, que Deus nos
62

conceda o acolhimento na sua beatitude, ver o “tempo” e, assim, alcançarmos “o


nosso repouso, para além do tempo”, já que nossas realizações humanas,
precárias e insuficientes, não gozam de permanência e não nos asseguram o
eterno.

A poesia de Murilo Mendes dialoga com o pensamento dos grandes


místicos, teólogos e pensadores que se debruçaram sobre a problemática da
transcendência. Conhecedor da condição humana e de sua precariedade, sabia
não ser possível encontrar neste plano, marcado por guerras, incompreensão e
intolerância, o porto seguro e uma existência fundada na paz, no bem e na pureza
de propósitos. Por isso, considerava que a renúncia ao viver terreno e suas
“expressões finitas” era a condição para a conquista de uma outra vida que, como
afirmava Santo Agostinho (2003, p. 367), deveria “repousar” sob a proteção de
Deus, “na Vossa grande santificação”.
63

CAPÍTULO II – A presença do sagrado na poesia de Murilo Mendes

O caos toma sentido


visto da janela cosmorâmica
onde ele se debruça
para dentro para fora para o alto
para o fundo
para a organização do delírio
em código de poesia.
.

Carlos Drummond de Andrade, “Murilo Mendes: hoje/amanhã”

Ao considerar que “O verdadeiro poeta é conjuntamente um ser de


circunstância, e eterno”, Murilo Mendes (1994, p. 834) reconhece o caráter
humano e, ao mesmo tempo, divino do artífice da palavra. Essa compreensão
evidencia um sentido de religiosidade que afirma a presença do divino no humano
e um conúbio do humano com o divino – o que justifica o fato de o autor de
Mundo enigma considerar que “A poesia é uma transubstanciação do leigo no
sagrado, do particular no universal, do humano no divino” (MENDES, 1994, p.
834).

Estudioso da relação entre o fenômeno poético e o transcendente,


Cornford (1981, p. 123), no livro Principium Sapientiae, aponta a natureza singular
do poeta como aquele que fala “a linguagem da profecia”:

Como homem entre os outros homens, o poeta está dependente do que


ouve; mas, uma vez inspirado pelos deuses, tem acesso ao
conhecimento duma testemunha ocular, ‘assiste’ aos feitos que ilustra.
Na verdade, atribui-se às Musas os mesmos poderes mânticos do
vidente, poderes que transcendem as limitações do tempo. Em Delfos
tinham elas o seu santuário, onde as exalações subiam da fonte junto do
velho templo oracular da terra, como ‘assessoras da profecia’, já que os
oráculos eram proferidos em verso. A poesia era a linguagem da
profecia.

Iniciado nos mistérios da criação e da enunciação poética, Murilo Mendes


(1994, p. 845) sabia da natureza excelsa da palavra: “Deus sempre se manifestou
poeticamente”. A linguagem que funda o mundo e que o traz à luz é a da poesia.
Ela igualmente é a geratriz do humano e originalmente seu canal de comunicação
e expressão do imanente e do divino, como afirmara Heráclito (1999, p. 75):
“Caminho: para cima, para baixo, um e o mesmo”. O poema, como todo artefato
64

artístico, nasce como uma confidência seminal e intrínseca, ao mesmo tempo em


que é uma revelação sobre a natureza das coisas e o sentido da existência. A
arte nasce como uma resposta às perguntas que não conseguimos responder,
como um diálogo com esse discurso silencioso e inefável que conecta o humano
e o divino.

O poético como expressão do divino é concebido como uma ponte para a


conexão do ser humano com o “indizível pensamento de Deus” (BLANCHOT,
2013, p. 119) e com os mistérios e verdades da realidade, que jazem recobertos
pelas cinzas do esquecimento ou turvados pela alienação humana. Assim, o
divino não é só um olhar e uma forma de ser, mas também de descoberta do
mundo e afirmação de um novo sentido, como brada Murilo Mendes (2015, p.
126) no seu “Poema hostil”, do livro As metamorfoses: “E grito: / O mundo é muito
pouco, / Trazei-me os antigos segredos”.

2.1. “O reino de Deus está em nós”

O acontecer do mundo seria a expressão da presença do divino em todas


as coisas. Somos parte desse acontecimento. Deus é esse milagre que anima e
vivifica cada partícula do cosmos, os viventes, as plantas, as fontes que formam
os rios e seus estuários – tudo pronuncia e clarifica essa presença criadora,
inapreensível e sempre viva. Nascemos desse acontecimento originário e, por
meio dele, nos constituímos e nos afirmamos como indivíduos e coletividade.

Interessado em compreender esse processo, Durkheim (1978, p. 224)


concluiu que “Se a religião engendrou tudo o que há de essencial na sociedade, é
porque a ideia da sociedade é a alma da religião”. O sagrado, portanto, é uma
experiência intrínseca, simbólica e social determinante na constituição subjetiva
do ser humano e sua autonomia.

Na trilha do pensador francês, María Zambrano (1995, p. 37) considera que


o “aparecimento dos deuses” faz parte da experiência de autoconstrução
existencial do ser humano e que, sem o sentido do divino, seu processo de
65

autonomização como ser no mundo, constituindo-se histórica e subjetivamente,


poderia não ter se cumprido: “Sem a manifestação do divino em qualquer das
formas que se tenha produzido, o homem não teria conseguido, por estranho que
pareça, essa sua visível, embora precária, independência”.

Os estudos recentes sobre a religiosidade, sobretudo a partir das


pesquisas de Georges Dumézil e Mircea Eliade, permitiram uma melhor
compreensão das “articulações fundamentais do fenômeno religioso para
identificar o comportamento, estruturas de pensamento, lógica simbólica e
universo mental do homo religiosus, que descobre o sagrado como uma realidade
absoluta” (RIES, 2017, p. 12). Sabe-se hoje que o pensamento científico e a
poesia nasceram da religião. Num de seus aforismos, de O discípulo de Emaús,
Murilo Mendes (1994, p. 845) aponta para esse nexo intrínseco do divino com o
poético: “Deus sempre se manifestou poeticamente”.

O senso religioso transcende o tempo, os credos instituídos, as


convicções políticas e as certezas estabelecidas pela racionalidade instrumental.
O filósofo Frédéric Lenoir (2013, p. 14), no livro Deus: sua história na epopeia
humana, considera que “O sagrado é algo mais universal e arcaico que a busca
espiritual” e que essa experiência diz respeito às incertezas da condição humana
no mundo e, ao mesmo tempo, a um estado de deslumbramento: “Os homens
sentem um grande medo, porque o mundo que os cerca é imenso e os ultrapassa
por completo (...). Reconhecer a imensidão do cosmos e emocionar-se com ele é
uma experiência do sagrado”.

Segundo essa percepção, o divino é uma presença viva e renovada no


mundo independentemente de qualquer conotação religiosa ou perspectiva
ideológica. Mendes (1994, p. 819) exprime seu ponto de vista sobre esse
entendimento de maneira elucidativa, considerando a experiência do sagrado
para além de qualquer definição histórica ou enquadramento geográfico: “O reino
de Deus está em nós. Não está sujeito ao tempo nem ao espaço”. Avulta nesta
máxima a ideia de eternidade, compreendida como uma dimensão do humano.
Embora essa questão tenha se tornado emblemática em seu discurso poético,
particularmente após sua conversão ao catolicismo, com a morte de Ismael Nery,
66

ela já estava enunciada no livro inaugural de Mendes (2014c, p. 48), Poemas, de


1930, como se depreende do texto “Alma numerosa”:

Para subir tenho que largar esta pele multicor,


feiticeiro de mim mesmo, alma penada,
presa das formas exteriores, do cheiro, do movimento.
Me desdobrarei em planos infinitos, estarei nos olhos da criança
[nascendo,
na cabeça dos amantes, nos degraus do espaço,
na última luz dos velhos morrendo, no sonho do místico,
e em todos os lugares onde existir alguém sofrendo e amando.

O título evidencia dois aspectos marcantes de seu discurso poético e seu


posicionamento diante do mundo. A palavra “Alma” alude à espiritualidade – e
como substantivo, tem caráter nominativo: refere-se a uma “substância”
mentalmente apreendida que remete ao sopro criador e ao princípio da vida, e
tem natureza transcendente, o que explica o anseio manifesto de desdobrar-se
“em planos infinitos”; enquanto “numerosa”, como elemento delimitador do
substantivo, exprime a inquietude humana do eu lírico, sua multiformidade e
desassossego: “feiticeiro de mim mesmo, alma penada”. O primeiro elemento do
título, “alma”, remete ao divino; o segundo, “numerosa”, ao profano. Note-se a
oposição das duas linhas de força da lírica muriliana: uma, identificada com a
busca do infinito, como expressão da eternidade, sem tempo e sem espaço,
portanto, imóvel – e um dos pressupostos do essencialismo, defendido por Murilo
Mendes e Ismael Nery.

A segunda linha de força da poesia de Mendes se relaciona à condição


humana, precária, informe e aparente, por isso “presa das formas exteriores, do
cheiro, do movimento”. É uma face da existência a ser superada, segundo o
poeta, por meio de sua ascensão do plano terreno: “Para subir tenho que largar
esta pele multicor”; desdobrando-se para além dos limites do humano e se
corporificando na experiência do nascimento: “nos olhos da criança nascendo”; na
busca de um estado de transcendência: presentificando-se “nos degraus do
espaço”, “no sonho do místico”.

Há um traço no espiritualismo do escritor que o distingue dos místicos em


geral: sua profunda identificação com o ser humano e seu compromisso com a
sua redenção. Concebe a experiência do divino como algo imanente, enraizada
67

no mundo – que se inicia no imediato vivenciado e se projeta na eternidade, como


resultado de um processo de aprimoramento constante. Isso explica o fato de o
sujeito lírico afirmar-se presente em situações genéricas e abstratas, como as
enumeradas na leitura do poema, e, ao final, voltar-se para os seres humanos e
solidarizar-se com suas contingências: o sujeito poético far-se-á presente “em
todos os lugares onde existir alguém sofrendo e amando”.

Esse posicionamento sugere a alteridade que marca o discurso e a atitude


de Mendes diante do real. É afirmativo, portanto, da natureza ética de sua poesia
e dialoga com o pensamento de Emmanuel Lévinas (2010, p. 242) e seu conceito
de espiritualidade como “responsabilidade por outrem” que, segundo ele, “É na
relação pessoal, do eu ao outro, que o ‘acontecimento’ ético, caridade e
misericórdia, generosidade e obediência, conduz além ou eleva acima do ser”. O
divino é um impulso e uma forma de sentir e perceber o mundo que se faz
presente e se realiza no diálogo entre os seres humanos.

2.2. O sagrado na tradição lírica brasileira

A poesia no Brasil tem início com a ação dos jesuítas, no século XVI, sob o
contexto da colonização portuguesa. Os padres da Companhia de Jesus tinham a
missão de cuidar da formação religiosa dos colonos e, ao mesmo tempo, da
conversão dos indígenas. Dentre os primeiros registros literários, merece
destaque, segundo Alfredo Bosi (2006, p. 18), “pela relevância literária, o de José
de Anchieta”. Sobressaem nos seus poemas, os temas religiosos cristãos,
poetizados com o propósito de doutrinar e consolidar a fé católica, mas que, como
defende Bosi (p. 19), “valem em si mesmos como estruturas literárias”.

O discurso poético de Anchieta define-se pelo predomínio do recorte


místico e pela linguagem simples, mas bem elaborada, concebida com uma nítida
intenção pedagógica. A clareza era indispensável para a transmissão dos
ensinamentos cristãos. O poema do “Do Santíssimo Sacramento” (ANCHIETA
apud MOISÉS, 2012, p. 19-20) é elucidativo desse propósito educativo:
68

Ó que pão, ó que comida,


ó que divino manjar
se nos dá no santo altar
cada dia!

Filho da Virgem Maria,


que Deus-Padre cá mandou
e por nós na cruz passou
crua morte,

e para que nos conforte


se deixou no sacramento
para dar-nos, com aumento,
sua graça,
(...)

O tema retratado por Anchieta no poema é a eucaristia, em que o corpo de


Cristo, servido “no santo altar”, é o “divino manjar” para propiciar conforto e “dar-
nos com aumento, sua graça” – expressa na dádiva sacra do perdão.
Coincidentemente, esse será o tema do “Salmo nº 3”, de Murilo Mendes, escrito
três séculos depois e incluso no livro mais doutrinário e messiânico do poeta
mineiro, Tempo e eternidade.

A poesia de Mendes é tributária dessa linhagem da tradição lírica brasileira,


que foi se desdobrando e assumindo novas configurações estéticas e novas
abordagens temáticas ao longo do tempo. Após o período jesuítico, foi no Barroco
que o discurso espiritualista alcançou significação relevante, nos sermões de
Antônio Vieira e, especialmente, nos poemas sacros de Gregório de Matos. Essa
tendência teve ressonância no Romantismo, em particular no canto angustiado de
Junqueira Freire, atordoado pelos dilemas da culpa de seus impulsos sensuais
contrapostos por sua religiosidade.

Um dos momentos ricos dessa vertente de nossa literatura ocorre no


Simbolismo, com a emergência de Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens. O
primeiro, considerado o mais talentoso de nossos simbolistas, realizou uma obra
de forte componente transcendental, em que buscava se conectar com o infinito,
superando os limites da vida material – com suas dores e incompreensões, como
se depreende do poema “Cárcere das almas” (SOUSA, 2006, p. 204), em que a
existência é retratada como uma prisão: “Ó almas presas, mudas e fechadas /
Nas prisões colossais e abandonadas // (...) Que chaveiro do Céu possui as
chaves / para abrir-vos as portas do Mistério?!”. Alphonsus de Guimaraens,
69

atordoado pela morte, aprofunda-se na sua espiritualidade cristã como


contraponto aos desenganos do mundo e realiza uma poética de conteúdo
místico, projetada para além da realidade e, portanto, etérea.

No modernismo, com a geração de 1930, a lírica espiritualista se tornou


uma de suas vertentes mais expressivas, com alguns dos nomes mais
representativos da poesia brasileira, entre eles Jorge de Lima, Cecília Meireles,
Vinicius de Moraes e especialmente Murilo Mendes, que elegeu o cristianismo
como expressão de seu senso religioso e fundamento de sua concepção de vida,
e de sua criação artística. Ao reconhecer o valor e o significado da obra de
Mendes, nesse contexto, Merquior (2013, p. 75) sustenta que “É preciso
compreender a religiosidade muriliana em seu rosto ambivalente e em seu
coração dilacerado de contrários (...) – para atribuir, com certeira justiça, a
condição de grande poeta religioso a Murilo Mendes”. A partir desses escritores, a
lírica espiritualista firmou-se como uma margem representativa da tradição
poética brasileira.

2.3. O essencialismo como caminho para a transcendência

Em 1931, Ismael Nery concluiu um de seus quadros mais expressivos da


concepção de mundo do grupo artístico que se reunia em sua casa e era
frequentado, entre outros artistas e intelectuais, por Mário Pedrosa, Jorge
Burlamaqui, Murilo Mendes, Guignard e Adalgisa Nery. O título é autorreferencial:
“Essencialismo”. Na obra estão expressas as linhas gerais de sua concepção
estético-filosófica e o pressuposto teológico que fundam o seu pensamento: a
abstração do tempo e a diluição do espaço, emoldurados por uma realidade
reduzida aos seus elementos essenciais. O elemento humano é concebido como
um ser em gestação; talvez por isso, descrito ainda envolto por uma placenta – ou
seria o sopro, a alma geradora? –, nascendo de sua condição finita.

A morte prematura de Ismael em 1934 foi um golpe para o grupo e resultou


na descontinuidade do movimento essencialista e na dispersão de seus membros.
O sistema estético-filosófico que pretendiam construir não vingou como corrente
70

teórica. Faltou-lhe fundamento e desenvolvimento, embora algumas ideias que


norteavam as posições dessa confraria de artistas tenham sobrevivido em suas
práticas de vida e realizações artísticas. O caso mais notório dessa sobrevida do
essencialismo é o de Murilo Mendes, que o incorporou à sua concepção religiosa,
identificando-o com o cristianismo, como registra em Discípulo de Emaús (1994,
p. 872): “A vida essencialista cristã, restringindo as necessidades materiais, dilata
o espírito”. No quinto artigo sobre o legado de Ismael, publicado em 1948 e
enfeixado no livro Recordações de Ismael Nery, Mendes (1996a, p. 47-52)
rememora os debates e ideias que animaram o grupo de estudo:

o sistema essencialista é baseado na abstração do tempo e do espaço


(...). Segundo o próprio Ismael, o sistema essencialista era em última
análise uma preparação ao catolicismo (...). O mal do homem moderno
consiste em fazer uma construção de espírito dentro da ideia do tempo.
Ora, o tempo traz no seu bojo a corrupção e a destruição.

A doutrina essencialista combate a desproporção. Prefere-se a uma


sabedoria desproporcionada uma ignorância harmônica, porém deseja-
se uma sabedoria harmônica (...). Felicidade para o essencialista é o
único estado em que o homem poderá começar a compreender as
coisas transcendentes – embora saibamos que muitas vezes a sabedoria
é conseguida pela infelicidade (...). Deve um essencialista procurar
manter-se na vida sempre como se fosse o centro dela, para que possa
ter sempre a perfeita relação das ideias e dos fatos.

Manuel Bandeira (1996, p. 123), na sua conhecida Antologia dos poetas


brasileiros, volume os “Bissextos contemporâneos”, comenta a produção poética
de Ismael e faz um comentário esclarecedor sobre seu sistema de ideias:

o homem deve sempre procurar eliminar os supérfluos que prejudicam a


essência a conhecer: a essência do homem é das coisas que só podem
ser atingidas mediante a abstração do espaço e do tempo, pois a
localização num momento contraria uma das condições da vida, que é o
movimento.

O essencialismo, como uma concepção de mundo, fundada num forte


argumento de cunho existencial e filosófico, poderia ter tido maiores
consequências no processo cultural brasileiro se não tivesse arrefecido com o
desaparecimento de Ismael Nery.
71

Ismael Nery, Essencialismo, 1931

A pintura de Ismael Nery é uma evocação dessa experiência de redenção


do humano e sua libertação pela reconciliação com sua espiritualidade,
simbolizando um renascimento. Observe-se que na cena o céu (retratado num
azul vívido) e a terra (em tons de ocre, esbatido pela luz) convergem para
testemunhar o grande milagre de renascimento do ser humano, simbolizado na
imagem, com nítidos traços expressionistas, com o peito fundido pela luz que
irradia na grande cicatriz que lhe absorve o coração. A dor que a ferida sugere
nos remete à pergunta angustiada de Santo Agostinho (2003, p. 274) nas suas
Confissões: “Que luz é esta que me ilumina de quando em quando e me fere o
coração, sem o lesar? (...), inflamo-me enquanto sou semelhante a ela”.

A tela de Ismael diz-se pela harmonia das massas de cores chapadas que
compõem os planos – em que o azul, no fundo, e o ocre de tonalidade
avermelhada, no primeiro plano, são unificados pelo amarelo refletido pelo sol, na
linha do horizonte. A luz atinge a figura pelas costas, iluminando-lhe os passos e
o caminho que se projeta à sua frente. Isso explica a sombra no seu rosto. O
cenário é despojado, sem a presença de elementos humanos ou referência
72

geográfica. As nuvens e a luminosidade criam uma dissonância nos tons de cores


predominantes. O conjunto da composição, na maneira como o artista combina as
formas, matizes e temas, remete ao trabalho dos pintores Marc Chagall e Giorgio
de Chirico, especialmente na mescla das cores primárias, com o predomínio do
azul e do amarelo, e o recurso a fundos e cenários chapados.

Além da força imagética, há uma fala que pulsa nas formas, no gesto, no
movimento da personagem. Ela se apresenta no silêncio, na ausência de
referências a tempo e espaço. No ser ambíguo que empreende a sua busca e
nela vive sua metamorfose, a meio caminho entre sua condição humana e a
transmutação do corpo físico. O quadro exprime o fundamento do essencialismo:
abstração do real e congeminação do humano com a possibilidade de sua
transcendência e encontro com o divino. A análise do crítico Bernardo Guadalupe
Brandão (2009, p. 44), ao refletir sobre os aspectos marcantes da obra pictórica e
das ideias de Ismael, ajuda-nos na compreensão da pintura do artista:

A aplicação imediata do essencialismo à arte foi feita através da pintura


(...). Competia à pintura achar o seu campo exclusivo, se quisesse
sobreviver. E, para Ismael, esse campo era a ‘representação das ideias
permanentes’ realizadas pela abstração essencialista. É por isso que
encontramos frequentemente, nos seus quadros e desenhos, figuras
humanas reduzidas a seus traços essenciais.

A atmosfera surrealista de Essencialismo dá ao quadro um tom enigmático


e simbólico: que destino aguarda o ser que, como um peregrino, palmilha a
paisagem agreste que o envolve? O que vê com seu olhar azul, projetado para
algo que não nos é acessível? Projetado nessa paisagem desértica, esse ser
espera pelo momento de sua revelação, em que o divino e o humano se
amalgamarão? Ou, como vislumbrou Murilo Mendes (1994, p. 760) em O sinal de
Deus: “O céu, o inferno – Deus! – A poesia da eternidade esclarecendo,
completando e ampliando a poesia do tempo”. O quadro de Ismael Nery, ao
mesmo tempo em que suscita uma discussão sobre seus aspectos estéticos e
filosóficos, propõe uma reflexão sobre o poético e o sentido da existência, ao
mesmo tempo em que lança luzes sobre o universo poético muriliano.
73

2.4. Linguagem, forma poética e o sagrado

A poesia de Murilo Mendes dialoga com a tradição poética em geral,


especialmente com a de recorte metafísico. Ecoam, na tessitura de seus versos
temas, num estado de tensionamento permanente, expressões poéticas,
linguagem e imagética que remetem aos textos bíblicos e à lírica de cunho
celebrativo. Em seu processo criativo, Mendes retoma e atualiza a vertente
espiritualista da poesia ocidental e busca nos escritos sagrados referências para a
elaboração de seu canto.

Em alguns poemas, incorpora ao seu fazer poético formas literárias


consagradas na Bíblia, especialmente nos livros sapienciais e poéticos. Vários
textos têm estrutura de sermões, salmos, orações, provérbios, cânticos e
parábolas. É evidente na poesia de Murilo o espelhamento de conteúdos,
linguagens e procedimentos elaborativos de componente sacro. Isso em paralelo
à tematização de temas da cultura clássica, de caráter profano.

Esse traço da poética muriliana se traduz na atmosfera, no tom, no


conteúdo e, especialmente, na tessitura imagética de seus poemas. Esses
elementos estão relacionados, segundo o professor José Aderaldo Castelo (1999,
p. 243), com a formação da subjetividade do poeta, com os livros que lhe
determinaram a sensibilidade e com a influência do meio familiar católico:

Naturalmente, as leituras da Bíblia, com destaque aos salmos, Cântico


dos Cânticos, Apocalipse, aos Evangelhos e das agiologias e da história
sagrada são fontes de inspiração do poeta. Mas tudo indica que a
gênese do seu sentimento religioso e do seu cristianismo se enraíza na
infância/adolescência no seio de família ligada à nossa tradição religiosa.

Um traço marcante do discurso poético de Mendes para o qual Aderaldo


Castelo (1999, p. 240) chama a atenção e que aflora em diversos poemas é o
biográfico. Segundo o crítico,

acentuando traços da trajetória biográfica, ou seja, a relação entre


infância/adolescência e outros compromissos do poeta com o momento
histórico e literário e com a religião, impõe-se, sobre toda a sua obra,
frequentes autodefinições dele mesmo: o que ele é, ou pensa ser, como
se sente e ao que aspira (...) a auto-impressão da multiplicação de si
mesmo, fragmentado no tempo e no espaço, assim perene e
onipresente; a presença da mulher e a de Deus, que é a Eternidade,
74

sinônimo de Cristo, enquanto ele mesmo, poeta, é síntese do homem


através do tempo, predestinado ao reconhecimento do bem e do mal a
proceder a separação de ambos (‘Alpha e Omega’).

O referencial biográfico, com ênfase na infância/juventude, é recorrente


na produção literária do autor. Isso se torna ainda mais significativo se
observarmos que, conforme avançamos nos anos, é como se fôssemos pouco a
pouco voltando ao porto da infância. Nesse sentido, é revelador o fato de Murilo
Mendes, no livro que fecha, em vida, o ciclo de sua produção poética,
Convergência, dedicar dois grafitos a esses motivos familiares: o primeiro, ao pai;
o segundo, à mãe, intitulado “Grafito na pedra de minha mãe” (2014b, p. 17), em
que rememora Elisa Valentina, falecida quando era criança, que o lançou no
mundo:

Catapultou-me da esfera do teu ventre


Para este território ásperoanguloso
Onde soou no espaço
A primeira ruptura: tempo subtraído-te,
(...)

No grafito à mãe biológica, o poeta reconhece-lhe o significado como a


fonte geradora da vida que o anima. Do “ventre’ de Elisa, foi lançado no mundo –
esse lugar de solidão e indiferente, em tudo o oposto do útero onde se sentia
acolhido. Esse fora, que é o real, é um “território ásperoanguloso”, onde vivencia-
se dores, o desespero de ser e as perdas. E muito cedo, Murilo Mendes
experimentou sua “primeira ruptura”: o tempo foi “subtraído” de Elisa. Sua mãe
partiu e essa dor “soou no espaço”.

Esse aspecto biográfico define igualmente o “Grafito na pedra de meu pai”


(2014b, p. 15). No texto, o eu poético retrata o segundo momento de sua vida
familiar, ressaltando os atributos paternos e registrando a presença de sua mãe
de criação, Maria José. O poema é de uma intensidade e beleza comoventes:

Tu foste
Casa feita / paz / ternura
Aberta para o mundo.
Santo-e-senha distribuías
A pobre, amigo, ignoto.

Irônico / repentista / malincônico


Eis tua marca maior: hombridade.
(...)
75

Tu & Maria José


Montanhosa generosa
Repartiam entre os oito
O coração em fatias.

*
Teu filho pródigo
Polêmico giróvago
Giralivros
Anárquico alicaído
Insoferente do século
Acolhes preparando
Perdão vitualha & serenim.

*
Sem ti & Elisa não seriam:

O Brasil
A Bíblia
Betelgeuse

Maria da Saudade

Mozart
Dante
Paul Klee

O amor da liberpaz
A página branca
A Espanha

*
Trabalhador da vida. Homem de aço
& seda, sinto ainda pulsar
Teu coração

ecumênico.

O texto se define pela densidade e precisão da linguagem. A primeira


parada na incursão pelos seus meandros é no título: “Grafito na pedra de meu
pai”. O autor faz uso de três substantivos: “Grafito”, “pedra” e “pai”. “Grafito” é a
inscrição da mensagem, o poema, feito pelo sujeito poético “na pedra de meu
pai”. A pedra simboliza duração, força, resistência ao tempo e coesão. É a
memória do pai, encarnada e substantiva. O eu lírico esculpe seus versos e suas
lembranças da casa paterna no corpo do pai/pedra. Sugere-se, na forma como o
texto é concebido, que se trata de um epitáfio, em que o filho dirige-se ao pai para
registrar suas qualidades e sua gratidão. Reporta-se ao pai por meio do pronome
pessoal “Tu”. O verbo ser, “foste”, é elemento de ligação entre o sujeito, pai/TU e
seus atributos: “Casa feita / paz / ternura / Aberta para o mundo”.
76

Nesta primeira parte do poema, enfatiza-se as vivências relacionadas à


figura paterna: sua bondade (“Santo-e-senhas distribuías / A pobre, amigo,
ignoto”). Na última estrofe desse primeiro segmento, rememora a relação conjugal
do pai com Maria José, sua segunda mãe. Mendes diz ter riscado do vocabulário
a palavra madrasta, em razão do amor que dela recebera. O eu poético
rememora a generosidade e cuidados de seus pais com os oito filhos: “Tu & Maria
José / (...) Repartiram entre os oito / O coração em fatias”.

Na segunda parte, o ser poético lembra sua relação com o pai,


apresentando-se como “filho pródigo”: “Teu”: “Polêmico / Giralivos / Anárquico (...)
/ Insoferente do século”, mas que, apesar de todos os percalços e desencontros,
o pai o recebe com compaixão: “Acolhes preparando / Perdão”. Nos sete versos
que compõem essa sequência, que corresponde à quinta estrofe do poema, estão
resumidos os predicativos e modos de ser e pensar do sujeito poético (“pródigo”,
“Polêmico”, “Anárquico alicaído”). No terceiro movimento do texto, rememora
aquela que o gerou – Elisa Valentina, que lhe possibilitou vir a este mundo e ser
brasileiro, cristão, encontrar sua esposa, Maria da Saudade, conhecer a arte
(Mozart, Dante, Paul Klee), a liberdade, a escrita (expressa na “página branca”) e
sua segunda pátria, a Espanha.

O poema possui uma estrutura circular. Após a enumeração de seu breve


itinerário, o texto se encerra, retomando-se o diálogo com o pai – retratado de
maneira ambivalente: trabalhador, forte e delicado (“Homem de aço / & seda”).
Apesar do tempo e da ausência, sente o pai vivo, pulsante em sua vida: “sinto
pulsar / Teu coração”, presente no mundo, universal – e por isso o qualifica de
“ecumênico”, personificando todos os pais.

“Grafito na pedra de meu pai” é um poema em que se ressalta o apuro da


linguagem e o rigor da sua arquitetura, estruturada a partir da superposição de
palavras, colagens de imagens, cenas, lugares, recortes da história familiar do eu
poético, que, segundo Sebastião Uchoa Leite (2003, p. 70), “São profissões de fé
de uma visão plural (convergência + divergências), e às vezes a profissão radical
de um certo fundamentalismo estético estrutural, uma crítica antiestetização do
real”.
77

O processo de criação poética de Murilo Mendes (2014a, p. 251) se


constrói no decurso de uma longa elaboração e experimentação formal, que aflui
para a atomização de sua poesia, em que o impulso vital se funde à linguagem e
se mineraliza. Essa questão será recorrente em suas falas sobre seu método
criativo e sua compreensão do fenômeno poético:

Em minha poesia procurei criar regras e leis próprias, um ritmo pessoal,


operando desvios de ângulos, mas sem perder de vista a tradição.
Restringi voluntariamente meu vocabulário, procurando atingir o núcleo
da ideia essencial, a imagem mais direta possível, abolindo as
passagens intermediárias. Certo da extraordinária riqueza da metáfora –
que alguns querem até identificar com a própria linguagem – tratei de
instalá-la no poema com toda a sua carga de força.

O universo poético de Mendes é embalado por uma musicalidade que


plasma-lhe o canto, o movimento rítmico dos versos e o conteúdo. Um dos
estudiosos mais argutos da lírica muriliana, Lauro Escorel (2015, p. 132-133)
escreveu um artigo esclarecedor nesse sentido quando da publicação de As
metamorfoses, em 1944. O texto recebeu o mesmo título do livro e foi incluído na
reedição da obra, lançada em 2015. O ponto de vista do crítico é elucidativo do
diálogo recorrente entre o onírico e a realidade, marcante na criação poética de
Murilo Mendes:

É a música, de fato, que alimenta a imaginação do poeta, abrindo-lhe


perspectivas super-reais, enriquecendo-o de visões oníricas, tornando-
o sensível às confidências do invisível e animando-o a lançar-se à livre
aventura da recriação poética do mundo (...). Murilo Mendes convive
com as ficções, com os sonhos, com as imagens, com as
“correspondências”, com as alucinações subjetivas, com os mitos, que
povoam seu espírito e que dão à sua poesia uma auréola de
irrealidade, embora sejam na verdade essenciais para que ele tome
posse plenamente do real.

Essa recorrência de Mendes a elementos e formas de origens tão


diversos faz parte, segundo Escorel, de sua poética, fundada no anseio de
apreender o real em toda sua complexidade, desvelando-lhe os mistérios. A
poesia, portanto, é o despertar desse fogo que crepita nas palavras e que, com
sua luz, desvela o real e o próprio ser do homem, como declara o poeta de As
metamorfoses em entrevista concedida ao jornalista Homero Senna (1996b, p.
260), em 1945, intitulada “Lição de poesia”: “Ora, a poesia é uma coisa muito alta,
profundamente ligada ao destino transcendente do homem, é uma chave do
78

conhecimento do universo, como a religião e a ciência, e não pode, portanto, ser


relegada à condição de um passatempo frívolo”.

O reconhecimento e conexão com o sagrado afirma-se como uma postura


e um meio de compreensão e interlocução com o real. Talvez, por isso, Murilo
Mendes (1994, p. 884) tenha afirmado que “O Cristo é uma pessoa coletiva”. Para
ele, Cristo é o mundo e, como parte desse todo, trazemos no mais profundo de
nós mesmos essa semente à espera do florescimento. Logo, poderíamos nos
questionar: qual o sentido e por que negar essa condição? Tudo não poderia ser
diferente se encarnássemos essa verdade como uma chave para o desvelamento
do que é vital e singular em nós mesmos? Essa possibilidade não poderia nos
levar a um convívio mais humano e tolerante? O poema “Salmo nº 3”
(MENDES,1994, p. 251-252), evidencia essas questões recorrentes na lírica
muriliana e as presentifica na imagem simbólica de Cristo revivida na eucaristia:

Eu te proclamo grande, admirável,


Não porque fizeste o sol para presidir o dia
E as estrelas para presidirem a noite;
Não porque fizeste a terra e tudo que se contém nela,
Frutos do campo, flores, cinemas e locomotivas;
Não porque fizeste o mar e tudo que se contém nele,
Seus animais, suas plantas, seus submarinos, suas sereias:
Eu te proclamo grande e admirável eternamente
Porque te fazes minúsculo na eucaristia,
Tanto assim que qualquer um, mesmo frágil, te contém.

Incluído em Tempo e eternidade, o livro mais cristão de Mendes, o título do


poema é uma indicação importante para a sua compreensão. O autor recorre a
uma forma poética lírica que se tornou clássica na tradição religiosa, dando
inclusive nome a um dos livros sapienciais da Bíblia – Salmos. Essa coleção de
cantos líricos constitui um Saltério, denominação que remete a duas origens
diversas: uma grega – Psaltérion, referente ao instrumento de cordas para
acompanhamento dos cânticos; outra hebraica – Tehillim, “hinos”. Entre os três
gêneros predominantes de salmos (hinos, súplicas e ações de graça), destacam-
se os “hinos”, que seguem certo padrão formal: iniciam com uma exortação a
Deus, em seguida a enumeração das razões do louvor, sua obra criadora e a
bênção da salvação concedida aos homens, concluindo-se com a retomada da
declaração de abertura.
79

Murilo Mendes concebeu o “Salmo nº 3” segundo o padrão bíblico. Seu


lirismo se reveste de um caráter devocional, de evidente conotação religiosa. Sem
mencionar o nome de Deus, inicia seu ato exortatório por meio de um epíteto –
“grande, admirável”. O tom nos remete ao hino celebrativo de Enheduana. Para
reforçar sua natureza majestosa faz uso de um advérbio de negação – “não” – e,
em seguida, enumera seu poder criador: “fizeste o sol para presidir o dia”, o
tempo. Faz uso de uma figura de linguagem, litote, que afirma algo grandioso por
meio da sua negação – contribuindo, assim, para adensar e ampliar a
expressividade do texto. Essa sequência, em que o tom negativo é reiterado,
desdobra-se na enumeração dos feitos do Criador e justificam o louvor do eu
lírico: “Não porque fizeste” – “as estrelas”, “a terra”, “Frutos do campo, flores,
cinemas e locomotivas”, “o mar e tudo que se contém nele”.

Após esse plano, em que são destacados os prodígios e criações divinas, o


poema sofre uma interrupção na estrutura rítmica, retomando-se a exortação
inicial: “Eu te proclamo grande e admirável eternamente”. Note-se a ampliação da
declaração de abertura (“Eu te proclamo grande, admirável”), com o emprego do
advérbio “eternamente” para afirmar a majestade do criador.

A conclusão é surpreendente e de uma beleza plástica ímpar, pois a


atmosfera solene que envolve a tessitura dos versos concorre para um fato
particular e humano, mas, ao mesmo tempo, carregado de profundo simbolismo:
a eucaristia – experiência transfiguradora da presença divina neste plano, no
corpo e na alma de “qualquer um”, que, “mesmo frágil”, despojado de riquezas ou
qualquer emblema de poder, tem a possibilidade de reviver a redenção do filho de
Deus e reforçar seu compromisso pessoal com a salvação (“qualquer um, mesmo
frágil, te contém”). Pai, Filho e Espírito Santo se declaram no pão, no vinho e na
promessa redentora de resgate da humanidade, simbolizada na Trindade – que é
oferecida a todos no ato rememorativo da ceia sagrada.

A força da mensagem manifestada no poema tem como núcleo


desencadeador o verbo “proclamar”, que, pelo seu caráter transitivo, abre-se para
que o maravilhamento e os prodígios criados por Deus sejam anunciados. A
repetição do enunciado verbal – “Eu te proclamo” –, no início e na conclusão, dá
ao texto um caráter circular, de atualização e renovação da promessa divina.
80

2.4.1. O salmo bíblico e a lírica muriliana

O “Salmo nº 3” de Murilo Mendes é uma releitura do “Salmo 145”, do Velho


Testamento, em que Davi louva seu “Rei meu Deus”, bendizendo-o pelos seus
atributos e atos. O texto bíblico se constitui formalmente como um hino de louvor,
em que são exaltados os prodígios de Deus num gesto de gratidão pela criação,
pelo perdão, pelos benefícios da vida e pela promessa de redenção.

O salmo de louvor tem como objeto de celebração Deus – e o “145” é um


dos exemplos paradigmáticos, o que justifica o fato de Mendes usá-lo como mote
para a criação de seu próprio hino para celebrar sua fé e aquele que a
personifica: Jesus Cristo – consagrado no pão e no vinho que é servido em sua
memória e para relembrar o seu sacrifício a favor da salvação dos seres
humanos. O eu lírico manifesta sua reverência pela celebração ritualística da
vitória da vida sobre a morte, representada no ato de “ação de graças” do filho de
Deus: “Porque te fazes minúsculo na eucaristia” (MENDES, 1994, p. 252).

O procedimento estético utilizado por Mendes para conceber seu poema é


a alusão, em que claramente glosa o salmo davídico, incorporando o tom
celebrativo, a força imagética e espelhando a própria linguagem da escrita bíblica.
O cotejamento dos versos que abrem os dois cantos, e que se desdobram nos
demais, não deixa dúvida da relação e diálogo do autor de O discípulo de Emaús
com o “Salmo 145”, do rei Davi (BÍBLIA, 2006, p. 1014-1015). Estudioso da
tradição judaico-cristã, Murilo Mendes processa intencionalmente o hino de Davi e
o adapta ao credo cristão. É nítida a similaridade e a contiguidade temática e
linguística, bem como o tônus poético que os ligam:

Eu te exalto, ó Rei meu Deus,


e bendigo teu nome para sempre e eternamente.
Eu te bendirei todos os dias
e louvarei teu nome para sempre e eternamente.
Grande é Iaweh, e muito louvável,
é incalculável a sua grandeza.

Uma geração apregoa tuas obras a outra,


proclamando as tuas façanhas.
Tua fama é esplendor de glória:
Cantarei o relato das tuas maravilhas.
Falarão do poder dos teus terrores,
e eu cantarei a tua grandeza.
81

(...)

Realiza o desejo dos que o temem,


ouve seu grito e os salva.
Iahweh guarda todos os que o amam,
mas destruirá todos os ímpios.

Que minha boca diga o louvor de Iahweh


e toda carne bendiga seu nome santo,
para sempre e eternamente!

O salmista entoa seu canto, obedecendo o que reza a tradição dos hinos
de louvor: inicia exortando Elohim por meio de um epíteto, denominando-o “ó Rei
meu Deus”; o corpo do salmo é recheado com os feitos e maravilhas divinos, bem
como os motivos que mobilizaram a energia e o encantamento do sujeito poético:
“é incalculável sua grandeza”, “as tuas façanhas”, o “poder dos teus terrores”, a
proteção para “os que o amam” e a punição para “todos os ímpios”. A conclusão
assume o caráter de uma pequena prece em que manifesta o compromisso de
dizer louvores a “Iahweh / e toda carne bendiga seu nome santo, / para sempre e
eternamente!”.

Mendes e Davi celebram o criador segundo a perspectiva religiosa que


cultivam: o primeiro – exalta a figura de Cristo: presentificado no pão e no vinho
da eucaristia; já o rei hebreu – exulta Deus: imagem mosaica do “Rei” capaz de
façanhas grandiosas, fiador da salvação, mas vingativo com os que o ofendem e
caem na iniquidade. Os dois convergem na promessa de redenção e na garantia
da “eternidade” como emblema de uma existência vivida com justiça, amor e
bondade.

A transcendência, portanto, é uma experiência que nasce no plano terreno,


como fruto do bom e do justo, e se projeta no infinito. Simone Weil (2016, p. 56),
percebendo esse liame do humano com o inefável, concluiu que “O bem é a única
fonte do sagrado. Só o bem e o que lhe é relativo são sagrados”. Desse modo, o
divino se manifesta ao/no homem como expressão de uma força numinosa, esse
impulso supra-humano que nos excita e invade, e que se pronuncia
misteriosamente no real.
82

2.4.2. Os hinos de louvor na tradição lírica

A compreensão do divino como parte constitutiva da condição humana e


forma de compreensão do mundo está na origem da própria poesia. Os primeiros
registros poéticos, entoados nas praças e templos da antiga Suméria, eram
avivados pelo sopro divino e iluminados pela fagulha criadora que desencobriu o
existente e o trouxe para a presença do seu brilho. Essa voz originária e esse
luminescer embebiam e animavam os hinos devocionais da poeta e sacerdotisa
sumeriana Enheduana, consagrados à deusa reinante de Ur, Inana, guerreira e
“bondosa mulher de coração radiante”.

Seu cantar laudatório, sincopado por repetições reiterativas da grandeza e


beleza da deusa, os epítetos veneráveis, as metáforas arrebatadoras, o
reconhecimento e o temor do poder punitivo da “Senhora suprema” da cidade
sagrada de Ur e “de todas as terras”, ecoará, ainda que submersos sob as
camadas do tempo, na poesia ocidental: nos cantos dos líricos gregos e nos
hinos, salmos e cantares da tradição judaico-cristã.

Os rapsodos da antiga Grécia, os salmistas e poetas hebreus e cristãos


reverberam não só a voz de Enheduana, mas também os procedimentos formais
que fixou ao conceber seus poemas, como se depreende de algumas estrofes do
hino a Inana (BORGES, 2014, p. 25-28):

Eu também gostaria de celebrar


Os desejos bons da rainha da batalha,
(...)

Senhora, és grande, és importante,


Inana, tu és grande, tu és importante,
Minha Senhora, tua grandeza é manifesta,
Que teu coração por mim “volte a seu lugar!”
(...)

No Gipar que determina meu destino, eu entrei por ti.


Eu, a en-sacerdotisa, eu, En-hedu-ana,
Equanto levava a cesta, entoei uma canção de júbilo.
(...)

Minha rainha – tornou-te maior,


Tu te tornaste a maior!
Minha rainha, amada de Na,
Eu anunciarei toda tua ira!
(...)
83

Começo agora tua canção que determina o destino!


(...)

En-hedu-ana sou eu, e direi uma prece a ti.

A rainha, a forte,
que rege sobre a assembleia de en,
aceitou a prece o sacrifício.
O coração de Inana, senhora do destino, voltou a seu lugar.

A poesia de Murilo Mendes manifesta um nexo profundo e inquestionável


com essa tradição. O exame comparativo dos dois salmos analisados com o hino
dedicado a Inana (“Nin-me-sara”) evidencia os liames que unem as primeiras
manifestações poéticas, configuradas pelos poetas sumerianos, com os
desdobramentos posteriores da lírica no Ocidente, ao mesmo tempo em que é
uma confirmação do vínculo de continuidade da tradição da poesia ao longo dos
últimos cinco milênios, como registra Adorno (2003, p. 77) na “Palestra sobre
lírica e sociedade”, ao identificar esse curso de águas que brota do ventre do
tempo: “Uma corrente subterrânea coletiva é o fundamento de toda lírica (...), pois
somente ela faz da linguagem o meio em que o sujeito se torna mais do que
apenas sujeito”.

O cotejamento do “Salmo nº 3”, de Murilo Mendes, o “Salmo 145”, de Davi,


e o “Nin-me-sara”, de Enheduana, é um exercício que ilustra como a linguagem e
as expressões poéticas evoluíram e, ao mesmo tempo, conservaram um nexo de
continuidade, sendo possível perceber procedimentos linguísticos, recursos
imagéticos, o tom, o ritmo e a atmosfera da lírica sumeriana nas tradições
poéticas posteriores.

A partir da análise e identificação da estrutura formal e da maneira como os


temas eram e continuam sendo abordados nos hinos de louvor, é possível
estabelecer a similitude e, assim, constatar a precedência estética de Enheduana
na fixação desse gênero poético:

1. Exortação (Invocação de Deus/Deusa):

– “Nin-me-sara” (Enheduana):

Eu também gostaria de celebrar


Os desejos bons da rainha da batalha;
84

– “Salmo 145” (Davi):

Eu te exalto, ó Rei meu Deus,


e bendigo teu nome para sempre e eternamente;

– “Salmo nº 3” (Murilo Mendes):

Eu te proclamo grande, admirável,


Não porque fizeste o sol para presidir o dia.

Embora alguns milhares de anos separem os textos, seguem o padrão


estabelecido no “Nin-me-sara”, inscrito em argila aproximadamente no ano de
2300 a.C., por Enheduana. Para efeito de registro e comparação, observe-se que
o salmo de Davi foi concebido provavelmente entre 1010 a 970 a.C. e o de Murilo
Mendes, em 1934.

2. Corpo (Descrição dos motivos do louvor e os prodígios da divindade):

– “Nin-me-sara”:

Senhora, és grande, és importante,


Inana, tu és grande, tu és importante,
Minha Senhora, tua grandeza é manifesta,
(...)
Minha rainha, amada de An,
Eu anunciarei toda tua ira!

– “Salmo 145”:

Uma geração apregoa tuas obras a outra,


proclamando as tuas façanhas.

Tua fama é esplendor de glória:


Cantarei o relato das tuas maravilhas;

– “Salmo nº 3”:

Eu te proclamo...
Não porque fizeste a terra e tudo que se contém nela,
Frutos do campo, flores, cinemas e locomotivas;
Não porque fizeste o mar e tudo que se contém nele.

3. Conclusão (Retoma o padrão inicial ou entoa uma breve prece de


encerramento, agradecendo pelos favores da divindade e reconhecendo sua
majestade):
85

– “Nin-me-sara”:

A rainha, a forte,
que rege sobre a assembleia de en,
aceitou a prece e o sacrifício.
O coração de Inana, senhora do destino, voltou a seu lugar;

–“Salmo 145”:

Que minha boca diga o louvor de Iahweh


e toda carne bendiga seu nome santo,
para sempre e eternamente!;

–“Salmo nº 3”:

Eu te proclamo grande e admirável eternamente


Porque te fazes minúsculo na eucaristia,
Tanto assim que qualquer um, mesmo frágil, te contém.

“Salmo nº 3” é um poema prenhe de tempo, memória e rastros de uma


mística rediviva conectada à história e à tradição religiosa ocidental, que, por
esses vínculos, conteúdo e expressividade poética, é emblemático da lírica e do
sentido do sagrado que plasma a poesia de Murilo Mendes. Nos dez versos que o
compõem estão encerrados os valores e fundamentos do Cristianismo, o sentido
poético do autor, sua compreensão humana do divino, seu compromisso com a
redenção do mundo e sua confiança e reverência pelo “grande e admirável” –
expresso na mensagem do discípulo que se encontrou com a verdade revelada
em Emaús e, assim, descobriu que “Cristo fundiu os tempos e descerrou a
eternidade” (MENDES, 1994, p. 869).

As palavras possibilitaram o espelhamento do ser humano e do real na


linguagem e no pensamento. E, pela linguagem, pensamento, emoção,
inventividade e poder encantatório, a poesia, esse espelho estilhaçado em que se
prefiguram o tempo e a memória, faz-se veículo não só da presença do divino na
existência, mas também do humano e seus anseios, sonhos e desejo de
felicidade. Por isso, a escrita foi uma das conquistas mais expressivas da
civilização, pois permitiu a fixação e a preservação do passado, bem como o
enriquecimento do patrimônio cultural da humanidade. Nesse particular, os livros,
desde as primeiras páginas de argila, foram veículos e repositórios desses
86

saberes milenares que chegaram até nosso tempo, apesar das guerras, incêndios
e destruições.

A poesia é um testemunho e uma representação de nossa historicidade, e


nosso espanto diante do real e sua aparência multifacetada, nosso desassossego
com o que somos e com nossa condição incerta e precária. Ao tecer seu canto, o
poeta busca instaurar uma outra compreensão sobre a realidade, uma outra fala –
dissonante, singular e distinta da fala cotidiana, desgastada e esvaziada de seu
sentido primordial. O poeta João de Jesus Paes Loureiro (2017, p. 255)
problematiza esse caráter restaurador da linguagem e sua consubstanciação
poética: “Poesia é palavra original e fundadora, não apenas de todos os povos,
como também das culturas e religiões. Devoradora do agora em sua forma de
eternidade, ela confere ao poeta (...) a dupla dimensão de memória viva dos
povos e do vidente entressonhado por Rimbaud”.

2.5. Despertar e conversão em Murilo Mendes

Para Nietzsche (1996, p. 211), a historicidade humana é travessia,


passagem. E do ponto de vista individual – é ultrapassar-se. Isso fica claro
quando o autor de Assim falou Zaratustra afirma que “O homem é uma corda
sobre o abismo”. E como “corda”, uma passagem arriscada, sendo, assim, sua
própria ponte – ninguém pode cumprir esse papel em seu lugar. Na condição de
ser “a-caminho”, o perigo é o emblema de sua travessia: e a mais dramática e
decisiva para sua autorrealização é a que terá de fazer entre o “animal e o além-
do-homem”. A leitura que o filósofo faz da expressão “além-do-homem” está
associada ao ser humano que consegue ultrapassar os limites de sua
humanidade, mesmo tendo de confrontar-se com seu deus. Para ele, esse
confrontar-se é um ato amoroso.

Pela força inebriadora do amor, o homem pode elevar-se à condição


anunciadora do “relâmpago”, que, pela sua força desmesurada de elemento da
natureza, revela o além-do-homem. O relâmpago, como fonte luminosa, também
desencobre o que está oculto pela obscuridade. Essa imagem prenuncia o
87

sentido de liberdade a que todo homem deve aspirar. O ato de libertar-se não é
pacífico, é espantoso e violento.

A percepção de Murilo Mendes sobre o seu processo de busca interior e de


significação existencial não é menos dramática e nem destituída de simbolismo,
como se depreende de “Novíssimo Prometeu”, de O visionário, com poemas
escritos entre 1930-33, e publicado em 1941. O título do poema é sugestivo de
seus fundamentos e remete aos dois heróis retratados: Prometeu, personagem-
símbolo da humanidade, por seu gesto de se insurgir contra os deuses, roubando-
lhes o fogo e oferecendo-o aos humanos. Sua saga apresenta elementos épicos
(seu embate contra Zeus) e dramáticos (expressos na sua queda, perda da
liberdade e seus questionamentos subjetivos sobre sua condição). Gilgámesh,
Zaratustra e Prometeu são figuras arquetípicas que personificam a irresignação, a
paixão humana e a busca de um novo estado de ser. São personagens de
movimento e passagem. O Prometeu, concebido por Mendes (1994, p. 237),
expressa propósitos (“acender o espírito da vida”) e ações denegatórias (“Me
rebelei contra Deus, / o papa, os banqueiros”) que o levam ao aprisionamento:

Eu quis acender o espírito da vida,


Quis refundir meu próprio molde,
Quis conhecer a verdade dos seres, dos elementos;
Me rebelei contra Deus,
Contra o papa, os banqueiros, a escola antiga,
Contra minha família, contra meu amor,
Depois contra o trabalho,
Depois contra a preguiça,
Depois contra mim mesmo,
Contra minhas três dimensões:

Então o ditador do mundo


Mandou me prender no Pão de Açúcar:

“Novíssimo Prometeu” é apresentado como uma presentificação


contemporânea do mito grego, adaptada ao contexto e circunstâncias históricas
de seu autor e identificada com seus valores e temas. A primeira estrofe abre com
o pronome pessoal “Eu”, com o sujeito poético se revelando de modo explícito, e
se desdobra numa gradação de posturas manifestas em que ele exprime seus
propósitos. Nos três primeiros versos, destaca-se o plano subjetivo – com seu
pronunciamento de intenções existenciais e ontológicas, definida pelo verbo
“querer” no pretérito perfeito: “quis” – “acender o espírito da vida” / “refundir meu
88

próprio molde” / “conhecer a verdade dos seres”. O auxiliar modal “querer”


combina-se aos verbos principais no infinitivo (“acender”, “refundir”, “conhecer”),
tornando mais rigoroso o desdobramento da ação verbal que, como forma infinita,
não se refere propriamente à pessoa do discurso, mas reporta-se a uma ação que
se enforma para além do sujeito do enunciado. A sequência de versos é uma
denegação do eu lírico, a exemplo de Zaratustra, “contra Deus (...) o papa, os
banqueiros, a escola antiga”, afluem para o seu círculo particular: “minha família,
contra meu amor”. “Depois”, volta-se contra as obrigações e contra si: “o trabalho”
e suas “três dimensões”.

Num mundo que se rege não mais pelo registro dos deuses, mas de um
agente político ordenador, no caso, “o ditador do mundo”, seu gesto insurgente é
punido com a prisão “no Pão de Açúcar”. A referência à figura do “ditador” é
alusiva ao contexto histórico da década de 1930, dominado pelo poder
hegemônico soviético e alemão, espelhando o Estado Novo no Brasil. Espírito
libertário, Murilo Mendes exercitou por meio da poesia e de ações políticas sua
indignação contra Hitler, Stalin, Mussolini, Franco, figuras que encarnaram em
sua época o pensamento autocrático que repugnava. Além dessas questões,
realça-se no poema um traço marcante do discurso de Mendes: o humor e sua
intenção dessacralizadora. Um detalhe que merece registro é o uso no título do
adjetivo “Novíssimo”, delimitando de modo elevado o substantivo, “Prometeu”.

Como um atributo superlativo absoluto, “Novíssimo” indica que a qualidade


do ser extrapola a perspectiva comum que se tem dele – ao mesmo tempo
singular por não guardar semelhança com nenhum outro ser. Esse novíssimo
Prometeu, como figura personalíssima, encontra em Murilo Mendes, pela sua
postura irresignada, anseios de mudança e convicções libertárias, personificação
exemplar. A comparação entre o prometeu grego e nosso prometeu poeta é
emblemática: o herói da mitologia grega se insurgiu contra seus deuses para
empoderar o homem, dando-lhe o esclarecimento, simbolizado no fogo. Já o
nosso prometeu poeta luta pela redenção espiritual da humanidade e a
reconciliação dos seres humanos com o deus reinante judaico-cristão.
89

2.5.1. A morte de Ismael Nery e a conversão de Murilo Mendes

A morte de Ismael foi impactante na vida de Murilo Mendes. Foi um evento


arrebatador, desarmonizando e pondo por terra o que parecia seguro. O teólogo
alemão Rudolf Otto denominava este fenômeno de Mysterium tremendum, que,
na sua força terrível, manifesta o numinoso, descortinando o impulso que
desencadeia o espanto e o sentimento religioso. O poeta John Donne (2007, p.
11) referia-se a essa experiência como o despertar da “brasa, um breve brilho de
imortalidade dentro de nós”, colocada por Deus.

Estudioso das implicações do sagrado nas relações sociais e humanas,


René Girard considera que o fenômeno da conversão é uma maneira de romper
com a circularidade do desejo e, assim, sacrificiar a carne sempre sedenta de
prazer. Ao mesmo tempo, considera que essa vitória sobre o corpo só é possível
pela intervenção divina, como ilustra o arrebatamento do apóstolo Paulo na
estrada que o levava a Damasco. Para o pensador francês (GIRARD, 2011, p.
188),

é preciso vivenciar essa mudança radical que os crentes chamam de


“conversão”. Segundo a concepção clássica, a conversão não é
voluntária; ela assinala a intervenção de Deus em nossa vida. Tal é, para
um cristão, a experiência mais marcante: tornar-se crente sob a ação de
uma força irresistível, que não pode provir de si próprio, mas unicamente
de Deus. O que torna a conversão fascinante para aqueles que a
vivenciaram (...) é a impressão de uma raríssima proximidade de Deus,
que transtorna nossa vida.

O processo de conversão de Murilo Mendes, testemunhado pelo cronista


Pedro Nava e descrito por ele em detalhes, apresenta nítida correspondência com
a análise de Girard. O relato do memorialista mineiro compreende uma sequência
de acontecimentos, tendo como fato desencadeador a morte de Ismael Nery.
Esse testemunho rico e minucioso só foi possível porque Nava (1983), médico e
amigo de Mendes, acompanhou os momentos finais do pintor, como registra no
sexto volume de suas memórias, O círio perfeito. Para efeito de acompanhamento
e compreensão, estabeleci uma sequência para os acontecimentos, a partir da
descrição do memorialista, e nominei cada uma das partes:

Descrição da morte e breve notícia de uma vida:


90

Esta veio às oito horas e quarenta minutos da noite de 6 de abril de


1934. Nascido em 9 de outubro de 1900, ele tinha 33 anos, 5 meses e 28
dias de uma existência vivida com intensidade e a exaltação de um
extraordinário artista e homem integral na grande acepção do termo. Foi
absolutamente devotado à sua arte e a uma ânsia permanente de
indagação filosófica da vida e do mundo (...). Era um mestre,
principalmente das cores tristes como o roxo, o violeta da paixão e do
livor, o amarelo do ouro desmaiando, do branco absoluto e dos azuis de
todas as castas – do mais celeste ao mais profundo, ao mais noturno –
quase nerprum (p. 313).

Do velório e suas impressões:

Do velório de Ismael (...) guardou três impressões indeléveis. Do


desespero de sua mãe que lembrava o das heroínas do teatro antigo
(...). Da atitude exemplar de Adalgisa cuja dor era mostrada apenas pelo
silêncio, pela imobilidade, pelo decorum da atitude, pelo espanto e pela
palidez que a cobria (p. 313).
(...)

O terceiro fato ocorrido no velório de Ismael Nery e que ficou para


sempre gravado na memória (...) foi a conversão instantânea de Murilo
Mendes. Devia ser meia noite, talvez meia noite e meia e tudo tinha
entrado na quietude e no silêncio que caem como um sudário logo
depois das manifestações de Dora, estardalhaço e surpresa que causam
numa casa a entrada e a presença da Morte.

Esta a razão porque são transcritas aqui e circunstanciadas as


ocorrências daquela noite de 6 para 7 de abril de 1934 (p. 314).

Murilo Mendes: a perda do amigo e sua conversão:

Na frente, o portão pelo qual, até tarde, entraram e saíram as nossas


maiores personalidades da pintura, escultura e na literatura. Outros
tinham entrado mais para o fundo, até o terreiro, um pouco para além do
corpo da casa. Eram seu tanto numerosos e tinham como figura central o
Murilo Mendes (...). Todos como cochichavam – abafados pela
solenidade do momento. De repente uma fala começou a ser percebida.
Parecia no princípio uma lamentação, depois um encadeado de frase
tumultuando na excitação de uma palestra, que depois se elevou como
numa discussão, subiu, cresceu, tomou conta do pátio feito um atroado
de altercação e disputa, clamores como num discurso e gritos. Era o
Murilo bradando no escuro. Era uma espécie de arenga, com fluxos de
onda (...). Os do portão foram se aproximando numa curiosidade da roda
estupefacta e calada em cujo centro um Murilo, pálido de espanto ou
como de um alumbramento, gesticulava e se debatia como se estivesse
atacado por sombras invisíveis. Só ele as via e aos anjos e arcanjos que
anunciava pelos nomes indesvendáveis que têm no Peito do Eterno
ocultos para todos os mais (p. 318).

O êxtase do encontro com o divino: a presença do numinoso:

Seus olhos agora cintilavam e dele todo desprendia-se a luminosidade


do raio que o tocara. E não parava a catadupa de suas palavras todas
altas e augustas como se ele estivesse envultado pelos profetas e pelas
91

sibilas que estão misturados nos firmamentos da capela Sistina. Ele


disse primeiro, longamente, de como sentia-se penetrado pela essência
do Ismael Nery e seu espírito religioso. Falava dos anjos que estavam ali
com ele – já não mais como as imagens poéticas que habitavam seus
versos, mas do que se incorporavam nele que recebia também na dele a
alma do amigo morto. Finalmente clamou mais alto – DEUS! – e com a
mão direita fechada castigou o próprio peito mais duramente o coração
(...). O Murilo não está nervoso (...). O que ele está é sendo arrebatado
num êxtase e o que estou vendo é o que viram os acompanhantes na
estrada de Damasco quando Saulo rolou do cavalo e foi fulminado pela
luz suprema. É isto. Exista ou não essa luz e esse fogo – neles ou na
sua impressão o Murilo acabou de encadear-se. Está se queimando todo
nas chamas que descem como lavas do Coração paramonte de Jesus
Cristo Nosso Senhor (p. 319).

Transfiguração e batismo espiritual:

Quando subitamente calou-se, o poeta retomou o velório do amigo (...) e


foi assim e sem dizer palavra mais que ele acompanhou o corpo ao
cemitério. Deste saiu sozinho e foi direto procurar os monges nas
catacumbas do Mosteiro de São Bento. Quando três dias depois
ressurgiu para os homens, tinha deixado de ser o antigo iconoclasta, o
homem desvairado, o poeta do poema piada e o sectário de Marx e
Lenine. Estava transformado no ser ponderoso, cheio de uma seriedade
de pedra e no católico apostólico romano que seria até ao fim de sua
vida. Descrevera volta de cento e oitenta graus. Sua poesia tornara-se
mais pura e trazia a mensagem secreta da face invisível dos satélites (p.
319).

A experiência religiosa vivida por Murilo Mendes não foi uma mera adesão,
mas uma experiência arrebatadora motivada, segundo a concepção de Girard
(2011, p. 188) para esse tipo de acontecimento, pela “ação de uma força
irresistível, que não pode provir de si próprio, mas unicamente de Deus”. Foi algo
de tamanha profundidade e alcance que, confessa o ser poético, “mudou a
direção do meu olhar”. Sintonizado com o divino, não teme a morte, mas espera
“a integração do próprio ser definitivo / Sob o olhar fixo e incompreensível de
Deus”. A eternidade era o destino de Murilo Mendes (2015, p. 101) como deixa
evidente no sugestivo poemeto “A chave”, do livro As metamorfoses:

Onde estás eternidade


Nasci para te encontrar

Habituei-me à minha forma


Já estou cansado de me ver

Estou cansado de me interrogar


De decifrar as mesmas cores
E de acolher os mesmos sons
92

Quero os novos elementos.


Onde estás eternidade.

Há uma nota dissonante no canto peregrino de Murilo Mendes. Essa nota


deixa claro seu inconformismo diante dos limites impostos pela rigidez das
convenções sociais, da monotonia alienante do cotidiano – expressa no
conformismo (“Habituei-me à minha forma”) e insatisfação do eu lírico com sua
condição narcísica (“Já estou cansado de me ver”). Esse estado de saturação se
estende às inquietações interiores: “Estou cansado de me interrogar”. Ao mesmo
tempo, as imagens e estímulos que o cercam perderam o sentido e se tornaram
cansativas: “decifrar as mesmas cores” / “acolher os mesmos sons”.

A tensão vivida pelo ser poético se projeta na tessitura do poema e se


manifesta na oposição entre o anseio pela eternidade, concebida como o espaço
da cura do sofrimento, e a vida comum – repetitiva e insuficiente. No centro desse
torvelinho existencial, o poeta vive seu drama e vislumbra, na superação dos
limites impostos pelo espaço e o tempo, a possibilidade de conquista de uma
forma de existir nova e harmônica. Subentende-se que sua jornada tem como
propósito alcançar a eternidade, pois, como assinala, foi para encontrá-la que veio
a este plano. O canto rememora a odisseia do sujeito poético em seu desejo de
encontrar-se e possui uma estrutura circular, encerrando-se com a repetição do
primeiro verso: “Onde estás eternidade”. O tom interrogativo apenas sugerido, já
que não faz uso do sinal de interrogação, dá ao texto uma modulação
ambivalente.

Contrapondo sua forma de vida convencional, revela a vontade de


conquistar novos referenciais capazes de atribuir um sentido novo à sua
existência: por isso enfático, ao deslocar o tempo verbal, antes usado no passado
(“Nasci”, “Habituei-me”), para o presente: “Quero os novos elementos”. A
utilização da palavra “elementos” tem um propósito já que tradicionalmente
remetem às quatro substâncias (água, ar, terra, fogo) formadoras do universo. No
poema, o sentido de “elementos” refere-se ao cósmico, associado às forças
criadoras do existente e, portanto, intrinsecamente vinculado ao divino. O uso do
adjetivo “novos” deixa evidente que os “elementos” desejados não são os da
93

ciência antiga, mas os espirituais, capazes de remir o homem de sua humanidade


precária.

Cabe ainda uma reflexão sobre o título do poema: o substantivo “chave”


não é apenas o objeto a que se refere, mas um símbolo de algo a ser realizado e,
ao mesmo tempo, instrumento para sua execução. Representa igualmente posse
e autoridade, o segredo que abre a porta para o conhecimento e a revelação de
algo que se procura, no caso prefigurado no texto: a “eternidade” – que na
antiguidade clássica era simbolizada alegoricamente por uma mulher segurando o
sol e a lua, numa clara representação da ordem no mundo e o reinado do tempo
infinito. Embora manifestasse essa crença na abolição do sofrimento e incertezas
da existência, figurada na eternidade, isso não era algo pacífico para Murilo
Mendes (1994, p. 829), como deixa evidente no aforismo 144 de O discípulo de
Emaús: “A eternidade será um tempo infinito – ou antes, um estado infinito?”.

2.6. Itinerário de uma busca ou as estações de uma vida

Numa das passagens mais expressivas de O arco e a lira, Octavio Paz


(2012, p. 42) considera que o ser humano é uma criação de si mesmo e seu
nascimento tem um ponto de inflexão no momento em que exercita a habilidade
da linguagem: “O homem é um ser que criou a si mesmo ao criar uma linguagem.
Pela palavra, o homem é a constante produção de imagens e formas verbais
rítmicas, é uma prova do caráter simbolizador da fala, de sua natureza poética”.

Essa percepção sobre o caráter genésico da linguagem é definidora do ato


poético. Os grandes criadores da poesia são mestres na arte de minerar as
palavras para que revelem seu brilho e sua pureza. Sabem, entretanto, que esse
ofício carece de exercício constante e pesquisa de novas modalidades de
expressão. O poeta é um iniciado nos mistérios do verbo e um experimentador
em busca de uma imagem, de um efeito sonoro ou de um arranjo linguístico ainda
não tentado, capazes de revelar um olhar novo sobre tudo o que existe,
iluminador e singular. Isso pode se constituir no trabalho de uma vida – como foi
para Murilo Mendes. Sua trajetória poética, seus livros, cartas e entrevistas
94

testemunham essa busca para “Conhecer os limites da linguagem” e “fundar o


ser, próprio à palavra”, como registra no “Murilograma a Ungaretti” (MENDES,
2014b, p. 127).

O itinerário poético-existencial de Murilo Mendes é exemplificativo dos


compromissos do poeta com seu aprendizado e autoconstrução, como apontou
Haroldo de Campos (2017, p. 65-66) no ensaio “Murilo e o mundo substantivo”, ao
refletir sobre o seu processo criativo, sobretudo a partir da publicação de O
discípulo de Emaús. Segundo o crítico, o livro ilustra a transição, do autor de A
poesia em pânico, de uma dicção qualificativa para um registro poético fundado
no apuro da linguagem:

Pode-se dizer que o itinerário do poeta, a culminar no Tempo espanhol,


de 1959, tem sido um longo empenho no sentido de transfundir essa
posição teórica na prática de sua poesia (...). O dado mais significativo
da poética muriliana de então (e não apenas desse livro, onde ele se
intensifica, mas já de muitos poemas de obras anteriores) é a introdução
da dissonância no campo da imagem.

Incansável na sua busca de autoconhecimento, compreensão do mundo e


aprimoramento artístico, Mendes alimentou ao longo dos anos uma atitude de
irresignação e postura de vanguarda, ao incorporar à sua fala poética novos
procedimentos criativos e, sobretudo, ao dialogar com outras manifestações
artísticas: a pintura, a música, a dança e o cinema. Esse posicionamento
anticonvencional e inquieto tem relação com o espírito iconoclasta do surrealismo,
que plasmou sua poesia e sua percepção do processo criativo. A leitura dos
primeiros livros do poeta evidencia essa margem expressiva de seu discurso
lírico.

Há um nexo próprio na poesia de Murilo Mendes, que se distingue do


habitual das convenções semânticas. Esse aspecto tem relação com o
fundamento experimental de sua poética. Antonio Candido (1986, p. 88-89), ao
analisar o poema “O pastor pianista”, de As metamorfoses, destaca o paradoxo
das imagens, do cenário, das cenas e objetos descritos, ressaltando-lhes o
choque e o insólito das relações dos mesmos com a realidade convencional.
Afinal, é improvável contemplar pianos soltos, pastando “na planície deserta” ou,
sendo apascentados, ouvir-lhes o grito do “antigo clamor do homem”. Atento a
95

esses elementos, associados de forma incomum no texto, Candido considera que


“este nexo próprio se manifesta na natureza surrealista do poema, caracterizada
pelos desvios da função habitual de seres e objetos”.

Mendes agiu poeticamente, ao longo de sua trajetória, como um alquimista


das palavras. Sempre atento ao novo, às novas experiências no campo da
linguagem e das artes em geral. Isso sem descurar do conhecimento e estudo da
tradição, como um referencial inarredável no processo de compreensão do
humano e na criação artística. Essa avidez contribuiu para o enriquecimento de
sua poesia e seu amadurecimento pessoal e criativo. Ser contemporâneo era a
norma que o guiava na sua jornada, como sugere em “Texto de informação”,
poema que abre a terceira parte de Convergência (MENDES, 2014b, p. 137),
denominada sugestivamente de “Sintaxe”:

1
Noitefazes
Ou diafazes?
Noite redonda
Cararredonda
Ar voando:
Sono da palavra
Coisa-feita.

Dia quadrado
Caraquadrada
Ar parando:
Insônia da palavra.
Coisa-fazes.
Diafazes.

2
Tiro do bolso examino
Certas figuras de gramática
de retórica
de poética
Considero-as na sua forma visual
Fora de função / no seu peso específico
& som próprio
de palavras isoladas:
Oxímoron; anáclase. sinérese
Sinédoque. anacoluto. metáfora
Hipérbato. hipérbole. hipálage
Assíndeto

3
Ponga, s.f. (Bras. Norte) Espécie de jogo. Consiste num quadri-
látero de madeira ou papel em que se traçam duas diagonais e
duas perpendiculares que se cruzam e em que se jogam dados.
96

4
Inserido numa paisagem quadrilíngue
Tento operar com violência
Essa coluna vertebral, a linguagem.

Esquadrinho nas palavras


Meu espaço e meu tempo justapostos.
E dobro-me ao fascínio dos fatos
Que investem a página branca:

Perdoai-me
Valéry
Drummond.

5
... as palavras / coisas / são belas
No seu vestido justo
Criado por alfaiates-óticos

6
Eu tenho a vista e a visão:
Soldei o concreto e abstrato.

Webernizei-me. Joãocabralizei-me.
Francispongei-me. Mondrianizei-me.

“Texto de informação” é um poema que se define pelo rigor da linguagem,


pela sua natureza subliminar, seu caráter metalinguístico e pela riqueza imagética
e temática. A reflexão que o embasa é o processo criativo, com ênfase na
composição do texto, em que submete as palavras à sua forja, como explicita no
quarto segmento: “Tento operar com violência / Essa coluna vertebral, a
linguagem. // Esquadrinho nas palavras / Meu espaço e meu tempo justapostos. /
E dobro-me ao fascínio dos fatos / Que investem a página branca:”.

Como um fino cirurgião, o foco de sua ação é a “coluna vertebral, a


linguagem”. Sem referir, recorre ao tema marcante de seu discurso lírico desde as
obras iniciais: a eternidade, sob nova roupagem. O eu poético não o perscruta
fora, nas suas relações exteriores, mas nas palavras, na justaposição do “espaço”
e “tempo” pessoais. O visionário, dos primeiros tempos, afeito às imagens
hiperbólicas e abstrações de conotações religiosas, cede lugar a um criador
fascinado pelos “fatos”, que se substantivam na “página branca”. Fecha essa
declaraçãode fé, na quinta parte, ressaltando a beleza das “palavras” entranhadas
pelas “coisas”, com a precisão dos “alfaiates-óticos” (que permitem, pelo
conhecimento da luz e do olhar, uma visão mais precisa das “coisas”):
97

... as palavras / coisas / são belas


No seu vestido justo
Criado por alfaiates-óticos

Esse processo de substantivação da palavra só se tornou possível, como


esclarece, porque conseguiu ver além do que é visto e, por isso, uniu o “concreto
e o abstrato”. Como artífice da língua, o poeta precisa fazer-se senhor do seu
ofício e dominar as ferramentas da criação – os recursos estético-linguísticos
disponíveis para dar cor e vivacidade à sua fala: “Tiro do bolso examino / Certas
figuras de gramática / de retórica / de poética / Considero-as na sua forma visual /
Fora de função / no seu peso específico”.

A sombra de Nietzsche paira sobre o texto. Nos versos de abertura, há


uma interrogação: “Noitefazes / Ou diafazes?”. Nota-se uma alusão velada a
Apolo (dia) e Dionísio (noite) como símbolos da criação. A noite é o espaço do
onírico, do sono e do sonho criador: “Sono da palavra / Coisa-feita”. O dia é o
rotineiro, “quadrado”: espaço das obrigações sufocantes, em que a palavra não
descansa, insone, ocupada com os seus afazeres: “Coisa-fazes”. O dia se perde,
extraviado na alienação do trabalho e das ocupações ordinárias. O embate entre
os dois impulsos criativos é metaforizado na “Noite redonda” (“Ar voando”), o
dionisíaco, e o “Dia quadrado” (“Ar parando”), o apolíneo como o configurador dos
fazeres diários. Poeticamente, o eu lírico resolve esse impasse fundindo os dois:
“Soldei concreto e abstrato”.

Mendes engendra sua estética fazendo uso de procedimentos típicos das


artes plásticas e do cinema para arquitetar seu canto: corte, superposição,
montagem, como explicita Uchoa Leite (2003, p. 64):

A ideia de montagem/desmontagem, que, além do caráter plástico, traz


consigo as ideias de corte, movimento e ritmo, que são as mesmas das
artes visuais, sobretudo as narrativas, como o cinema, que dão a essa
poesia o aspecto intenso de modernidade.

Por fim, um breve exame do título: “Texto de informação” é elucidativo das


intenções do sujeito poético em relação ao seu processo criativo. “Texto” – um
escrito, o encadear das palavras, o dizer da “vista” e da “visão” do criador.
“Informação” – notícia, uma comunicação: sua intenção de dar ciência da
mudança operada no seu registro estético, em que “o poeta foi transformando a
98

realidade da linguagem na própria poesia do real para o qual sempre teve olhos e
ouvidos atentos. Entre linguagem e realidade passa a não mais existir obstáculos
intransponíveis”, conforme juízo acurado de João Alexandre Barbosa (1974, p.
136).

Num jogo metonímico surpreendente, sob a forma de uma homenagem,


explicita o cerne da “informação”: “Webernizei-me. Joãocabralizei-me. /
Francispongei-me. Mondrianizei-me”. O poeta declara sua opção por um registro
poético substantivo, fundado no rigor da linguagem, elucidando assim a referência
a artistas que se destacaram exatamente pela precisão formal com que
conceberam suas obras. Para dar conta desse processo de mudança, faz uso de
um artifício metalinguístico e gramatical, transformando os substantivos em verbo
reflexivo para indicar o incidir da ação verbal sobre o sujeito poético: João Cabral
(substantivo): “Joãocabralizei-me” (verbo).

Para efeito de verificação da mudança na concepção poética e no apuro


construtivo do autor, basta cotejarmos “Texto de informação” com um poema da
primeira fase de Murilo Mendes. É reveladora a distância que separa o poeta da
maturidade do jovem autor em busca de um caminho e um sentido norteador para
sua poesia. Vejamos a estrofe final de “A testemunha”, de Tempo e eternidade
(MENDES, 1994, p. 261-262):

Poeta, cobre-te de cinzas, volta à inocência,


Impede que se derrame o cálice da ira de Deus,
Tu que és a testemunha sustenta o candelabro,
Monta o cavalo branco e reconstrói o altar
Onde se transforma pão e vinho,
Indica à turba as profecias que se hão de cumprir,
Revela aos presos olhando através das grades
Que o mundo será mudado pelo fogo do Espírito Santo,
Descerra os véus da Criação, mostra a face do Cristo.

Do ponto de vista do tom e da maneira como a linguagem é abordada, tem-


se a impressão de que se trata de um outro escritor. A semelhança, entretanto,
persiste no plano do conteúdo, com a prevalência de símbolos e imagens que
remetem ao universo religioso judaico-cristão: “cinzas” (dissolução/purgação),
“cálice” (sua forma alusiva ao transcendente), “candelabro” (luz da salvação),
“cavalo branco” (cavalo: movimento/vida, inconsciente, força cósmica; branco:
síntese, libertação – no livro do Apocalipse: é a cor dos que saíram da tribulação),
99

“altar” (espaço da celebração/conexão com o sagrado), “pão e vinho” (corpo e


sangue de Cristo).

O tom retórico, característico do discurso religioso, é predominante no


poema. O eu lírico encarna a personalidade de um pregador – assumindo a
posição de um profeta, “a testemunha (‘que’) sustenta o candelabro”, com a
missão de despertar os incautos, “turba”, para “as profecias que se hão de
cumprir”. Como pregador, deve anunciar a boa nova: “o mundo será mudado pelo
fogo do Espírito Santo” e deve abolir “os véus” para que “a face do Cristo” seja
mostrada a todos.

A força expressiva de “A testemunha” está concentrada no plano do


conteúdo. Percebe-se que o foco do sujeito poético é a divulgação da mensagem
redentora do cristianismo e não o processo de construção da linguagem, que é
tecida com frouxidão. Essa tonalidade bíblica de sua fala, sem a precisão
cirúrgica necessária no trato da “coluna vertebral, a linguagem”, suscitou críticas
ao poeta em razão do que Sebastião Uchoa Leite (2003, p. 63) nominou de
“excessos messiânicos”.

A comparação dos dois poemas lança luzes sobre uma questão


fundamental do processo poético: a poesia não é uma questão de boa vontade e
nem deve se sujeitar a missões ou compromissos que não aqueles que lhe são
característicos e que a definem, como veio a reconhecer posteriormente Murilo
Mendes. “Poema de informação” retrata essa mudança do ponto de vista do poeta
e, embora evoque temas frequentes da lírica muriliana, exprime-os num outro
registro estético-linguístico, como destacou Barbosa (1974, p. 133):

o real, mesmo o da experiência religiosa, é agora, para o poeta Murilo


Mendes, instaurado no plano da linguagem de forma não mais
evanescente, como ainda acontecia em obras anteriores, mas pela
própria construção dependente do poema.

A obra poética de Murilo Mendes pode ser analisada como uma biografia
de sua própria construção poética – em que estão marcados os rastros de seu
itinerário poético, com seus impasses, escolhas, princípios, experimentações
verbais, mudanças de perspectivas, tudo isso convergindo para o momento de
100

sua plenitude como criador, quando percebe que “as palavras / coisas / são
belas”.

2.6.1. Virada estética na poética de Murilo Mendes

As sementes do desassossego, da inventividade e do desejo do novo


renovaram-se permanentemente no ser de Murilo Mendes. Do primeiro ao último
livro é notória essa sede de conhecer, essa ânsia de desvelar o mundo e o
desespero de compreender os desígnios de Deus. Sua poesia é seu testemunho
estético-existencial e uma metáfora desse jogo de espelhos em que o divino e o
humano se refletem, se imbricam e se repelem – mas, como contrafaces do
próprio homem, convergentes no processo de transfiguração poética da
existência.

Contra os apelos da conformação aos fundamentos de sua religiosidade,


seu lado dionisíaco o instigou sempre a manter-se em movimento, em busca de
novas formas de compreensão e expressão do poético. Ruggero Jacobbi (2014b,
p. 217), estudioso e tradutor de sua obra para italiano, destacou essa tensão
entre o contingente humano e o eterno que pulsa na tessitura de seus versos:

A poesia de Murilo Mendes se exprime em um espaço existencial que


constantemente alude ao eterno, segundo uma dimensão religiosa, mas
na realidade cheio da sua angústia cotidiana, do seu sangue. É dessa
contínua presença das coisas terrenas que nasce a relevância amarga e
forte da sua palavra, o impulso a frear o canto e a submetê-lo a
metálicas, atrozes definições.

Essa inquietude e compromisso com seu ofício irão movê-lo no embate


pessoal pela renovação de sua linguagem e dos procedimentos de composição.
Esse processo resultou de uma longa depuração em que os primeiros indícios já
eram perceptíveis em obras como Poesia e pânico e As metamorfoses, embora
os críticos apontem como marco dessa ruptura os livros publicados a partir de
1945, com destaque para O discípulo de Emaús (Haroldo de Campos) e Os
sonetos brancos (Alfredo Bosi).
101

Escritos entre os anos de 1936 e 1937, os poemas de Poesia e pânico


apresentam um intenso conteúdo de humanidade permeado pela dúvida, e por
um tom interrogativo e certo desconsolo em relação ao divino. No texto “O
estrangeiro” (MENDES, 1994, p. 302), esses elementos estão evidenciados. O eu
lírico se apresenta como alguém à margem, um gauche que não consegue se
adequar e ser ouvido: “Quem recolherá meu clamor, que justificará minha
existência?”. O impulso erótico, representado na figura da mulher, o persegue,
pois ela está “Em toda parte”, “até nas nuvens”: em seu delírio o próprio céu
assume o formato de um corpo feminino. Ignorado pela mulher e por Deus, vive
um estado de desconsolo – “o céu não me ouve”:

Em toda parte vejo esta mulher, até nas nuvens:


O céu é um grande corpo azul e branco de mulher.
Esta mulher não me vê, e o céu não meu ouve.
Quem recolherá meu clamor, que justificará minha existência?
Os que esperam por mim nos degraus das igrejas,
No campo, na prisão, no hospital, no deserto,
Morrerão sem me ver. Como espalharei consolo
Se entravam meu andar, se algemaram meus pulsos
E meu olfato febril já pressente as violetas.
Se a ideia de semear para outra vida
Pesa mais sobre mim que uma cortina de chumbo.

Nota-se em “O estrangeiro”, enfeixado em A poesia em pânico, certo


arrefecimento no messianismo de Murilo Mendes. A solidão e a incerteza
assaltam o sujeito: quem se importará com o seu sofrimento? Desalentado, faltará
ao encontro com os que o esperavam. Surpreendentemente duvida da sua
própria fé e da “ideia de semear para outra vida”, que pesa-lhe como “uma cortina
de chumbo”. Sebastião Uchoa Leite (2003, p. 64) foi certeiro na sua análise sobre
esse momento de fermentação na lírica muriliana:

incorporam-se elementos de problematicidade ‘demoníaca’ em A poesia


em pânico (“A fulguração que me cerca vem do demônio”) e expande-se
a sensibilidade ‘herética’ (...). E mais: acentuam-se as dualidades e os
contrastes através das imagens ‘barrocizantes’.

Há uma mudança igualmente na tonalidade da linguagem. “O estrangeiro”


é vertido num registro menos dramático, sem o tom profético marcante em Tempo
e eternidade.
102

As metamorfoses (1944), embora faça parte do recorte inicial da produção


poética de Murilo Mendes, identifica-se em muitos aspectos com traços que serão
marcantes nas obras publicadas depois de 1945. O cuidado com a linguagem é
um aspecto marcante desse livro. O sujeito lírico problematiza essa questão em
alguns poemas, em especial em “A criação e o criador” (MENDES, 2015, p. 61):

O poema obscuro dorme na pedra:

“Levanta-te, toma essência, corpo”.

Imediatamente o poema corre na areia,


Sacode os pés onde já nascem asas,
Volta coberto com a espuma do oceano.

O poema entrando na cidade


É tentado e socorrido por um demônio,
Abraça-se ao busto de Altair,
Recebe contrastes do mundo inteiro,
Ouve a secreta sinfonia
Em combinação com o céu e os peixes.

E agora é ele quem me persegue


Ora branco, ora azul, ora negro,
É ele quem empunha o chicote
Até que o verbo da noite
O faça voltar domado
Ao pó de onde proveio.

O poema sugere uma mudança de abordagem tanto do plano


composicional como no enfoque do tema. Superpõe-se um novo olhar que
procura equilibrar esses dois planos do texto. O livro tem um caráter enunciativo,
pois prefigura caminhos e conquistas que definirão os trabalhos futuros do poeta.
São tão evidentes esses atributos estéticos e a maneira singular de expressá-los,
que o professor Murilo Marcondes de Moura (2015, p. 140) considera ser As
metamorfoses “o primeiro grande livro da maturidade artística de Murilo Mendes,
sobrevindo mais de dez anos após uma trajetória bastante conturbada”.

“A criação e o criador” é uma reflexão sobre o processo criativo. A exemplo


da concepção do homem, elevado da terra, o poema adormecido “na pedra”,
levanta-se e toma “corpo” pela ação do poeta, assemelhando-se assim a Deus,
com poderes de criador. Revestido de vida, o poema lança-se na vida: toma
banho de mar, visita a “cidade”, como Jesus Cristo “É tentado e socorrido por um
demônio”. Abraça-se a Altair (aquele que voa/estrela guia) e vive a experiência
103

miraculosa de ouvir “a secreta sinfonia”. Por fim, insurge-se contra seu criador,
enquanto espera “o verbo da noite” que o fará voltar “Ao pó de onde proveio”.

O texto é de uma sobriedade incomum, expresso numa linguagem


equilibrada e sem excessos. Esses atributos de apuro na arquitetura
composicional do poema guarda um nexo evidente com as grandes obras que
virão depois, especialmente com Convergência.

O “Murilograma a Nanni Balestrini”, destacado poeta experimental italiano,


um dos vários textos em Convergência sobre o ato criativo, é uma densa reflexão
sobre a palavra poética, o poema e o poeta. De forma ambígua, sem fechar
questão, num tom interrogativo, como se inquirisse o leitor, o eu lírico expõe seus
questionamentos e pontos de vista sobre a luta do criador com a linguagem para
trazer sua criação à luz. Murilo Mendes (2014b, p. 128) concebe seu murilograma
como uma poética:

Truncar a palavra / coisa


Podá-la nas patas
Estilhaçá-la consciente.

A um engenho eletrônico
Entregar o osso de um texto
Que resultará noutro texto
Cifrado:
O do engenho eletrônico?
(...)

*
Que é finalmente o poema:
Palavra ou frase?
Sem frase levanta-se palavra?

*
O poeta planifica
O texto de linhas retas
Não o que o texto quer.

O texto não-total
Será mesmo divisão:
(...)

A discussão sobre a linguagem está no centro do poema. E o ato criativo é


retratado como um processo consciente em que o criador deve ter uma profunda
compreensão dos mecanismos da criação poética, evocada como um trabalho de
artesania, meticuloso e cirúrgico, em que “a palavra / coisa” deve ser podada “nas
104

patas”, para que não se disperse. Forjar as palavras é ato de perícia, que exige
domínio dessa arte. E um texto, com sua ossatura, sempre enseja outros textos,
mesmo que por meios técnicos: “engenho eletrônico”.

A criação do poema é fruto desse embate complexo, tenso e paradoxal que


exige atitude, habilidade e sensibilidade por parte do poeta, pois a ele cabe
planificar o escrito, mantê-lo na rédea, podando-lhe as vontades e os excessos. O
que deve prevalecer não é a vontade do texto, mas o projeto definido no momento
da forja e “Não o que o texto quer”. Poeta e poema vivem uma confrontação
penosa e esquiva, mas inevitável para que se opere o milagre da poesia, que é
um processo de desencobrimento da verdade que liberta, mas sonegada ao
homem. Ou como diz João Alexandre Barbosa (1974, p. 126): “O exercício do
poema, do texto, é também necessariamente o exercício de uma leitura pelo
poeta dos objetos que se oferecem à sua circunstância”.

O viés biográfico, evidenciado na poética muriliana, constrói-se como uma


reflexão recorrente de sua vida, seus valores e seu processo criativo, em que os
fatos, as leituras, seu amadurecimento, as relações, viagens e descobertas vão
se articulando, formando um caleidoscópio matizado de formas, cores e sentidos
que compõem sua constituição existencial e subjetiva. Percebe-se, no percurso
de sua criação poética, sua atitude reflexiva, auto-avaliativa e de revisão de seus
conceitos e, sobretudo, de suas concepções estéticas. O poema “Grafito no pão
de açúcar” (MENDES, 2014b, p. 22-23) é uma síntese de seu percurso vivencial e
literário. O texto se configura a partir do registro dos acontecimentos e temas que
marcaram-lhe o ser e a sensibilidade:

No cume desta colina


Nove bilhões de anos
Contemplam-nos.

Neste Rio descobri

O Brasil / cruz e delícia


Saudade minha amada.
Neste Rio ásperofísico
Nomeei-me poeta.

Aqui conversei
Ismael Nery
Mestre / malungo máximo
Entre canto gregoriano e jazz.
105

(...)

Daqui pude aferrar


Picasso / Mallarmé / Strawinski

Lutei com o Verbo encarnado.


Matéria fui / para forma.
(...)

*
Senti crescer-me
Comunicante
O duplo fogo eternofísico
Pai de todos e meu.
(...).

*
Do cume desta colina
Contorno o BR acelerado
retardado
extrovertido
coisificado

Meu olho circular navega o mundo


Que aceito
Malgrado mil ____________

O poema se estrutura como um testemunho autobiográfico em que pontua


passagens marcantes de seu itinerário. Imagético, o texto vai se descortinando, a
partir da indicação do lugar onde o sujeito poético se encontra: “No cume desta
colina”, o pão de açúcar, que o observa a partir de sua memória geológica de
“Nove bilhões de anos”. Composto em planos, como um filme, o cenário vai se
ampliando e se volta para o espaço urbano, o Rio de Janeiro, lugar vital de sua
trajetória pessoal, onde viveu fatos emblemáticos de seu existir: o despertar de
sua consciência histórica sobre o Brasil; sua fé, prefigurada na “cruz”, como
símbolo do cristianismo, e também o encontro da amada “Saudade”, ou melhor, a
escritora Maria da Saudade Cortesão, sua esposa. Fato significativo é que foi
neste “Rio ásperofísico” que se firmou como artista e, como afirma: “Nomeei-me
poeta”.

Nesse grafito autobiográfico, distingue aqueles que acresceram


significados e conhecimentos à sua formação: Ismael Nery, “Mestre / malungo
máximo”; os artistas aos quais se prendeu pelos valores estéticos e afinidade
criativa: “Picasso / Mallarmé / Strawinski” – mestres da inventividade. A referência
a eles denota sua perspectiva experimental do fazer artístico, que, como registra,
106

nasceu de sua luta com o “Verbo encarnado”. Concebe-se como fundamento de


sua própria criação: “Matéria fui / para forma”.

Essa busca como criador e ser em desassossego, comprometido com o


sentido do sagrado no mundo, transfigurou-se no fortalecimento de sua fé,
crescendo como “O duplo fogo eternofísico”, retratado como o pai gerador de
todas as coisas, numa clara referência ao filósofo Heráclito, que acreditava no
fogo como elemento transformador, de onde tudo nasce. O fogo é fonte de luz,
associado ao divino, ao que reluz, que vence as trevas e simboliza, pelo seu
poder revelador, a transcendência da condição humana. O eu lírico retrata o fogo
como uma metáfora de Deus, de forma ambivalente e afirmativa do paradoxo de
tudo o que existe, mesmo o transcendente: é “eterno/físico”. O poeta reforça, a
todo momento, sua perspectiva imanente da espiritualidade. Sua crença no
divino/humano.

O poema foi concebido de forma circular. Na penúltima estrofe, retoma o


foco inicial: volta para o cume da colina, de onde contempla o Brasil/BR, conforme
certos atributos que o expressariam: “acelerado / retardado / extrovertido /
coisificado”. Nos versos finais, o eu lírico desloca seu “olho circular” e “navega o
mundo” – que aceita com desagrado, mas com energia: “Malgrado mil”. Sabe-se
limitado diante do mundo grande, “mil”, indeterminado. Pequena nau singrando o
oceano cósmico. Examina tudo com seu olhar esférico, abrangente – que, como
uma representação do círculo solar, simboliza o celeste, a perfeição e a
eternidade. Elementos definidores da poética muriliana.

A jornada de Murilo Mendes e sua conquista poética, como um dos


grandes intérpretes de nosso tempo, une três caminhos que se bifurcam: o da sua
busca pessoal por um sentido para o seu existir no mundo; a conexão com o
divino como porto e ancoragem face à precariedade da condição humana; e a
poesia como experiência demiúrgica de criação da beleza, de conexão com o
transcendente e, como professa em O discípulo de Emaús (MENDES, 1994, p.
833), “confere a investidura na universalidade, uma participação da linhagem
divina”.
107

Considerações finais

Pois a mensagem sintética de Murilo é esta: a de


que a significação do mundo reside essencialmente
em seu dinamismo, e de que esse dinamismo, esse
movimento, consiste em nosso poder de alterá-lo,
ao arbítrio da nossa vontade criadora.
José Guilherme Merquior – “Murilo Mendes ou a poética do visionário”

A trajetória literária de Murilo Mendes compõe um traçado complexo de seu


processo de autoconstrução existencial e poética. Esse percurso foi construído
em consonância com seu compromisso social de trabalhar para construir um
mundo novo sob o signo de uma espiritualidade renovada e enraizada na vida.
Esse aspecto ético-político de sua práxis humana conecta-se a um
posicionamento inovador do ponto de vista criativo, sempre aberto às
transformações da realidade cultural e identificado com uma perspectiva
experimental de seu fazer poético, sem subestimar a contribuição da tradição. A
palavra é a sua ferramenta de trabalho e o instrumento de que faz uso para
dialogar e se esgrimir com a realidade, elaborando e compartilhando sua
mensagem.

O poeta, entretanto, sabia dos riscos que envolvem a experiência de


concepção da linguagem e que enseja a criação poética. Murilo Mendes tinha a
compreensão desses limites da comunicação, especialmente pelo excesso e
banalização da palavra em nossos dias. Cioso de seu propósito de chegar ao
sentido das coisas e expressá-lo de forma vívida e singular, apurou seu olhar e
sentidos para perceber o que estava submerso sob a superfície do aparente, pois
como assinala no “Murilograma a Ungaretti” (MENDES, 2014b, p. 127) é
imperativo afrontar “as palavras travestidas”. E “Assumir a palavra refratária /
Nossa única herança e território // Frioviolento, já extrair a coisa / Sinônimo de
palavras, revelando-a”.

O eu lírico compromete-se em não se contaminar pelo verbo fofo e


superficial e manter uma atitude insubmissa, protegendo-se sob o manto da
palavra que questiona, que se nega a ser apropriada pelo discurso dominante que
108

a aliena e a esvazia de seu componente mágico e transfigurador. Assegurar-se de


que sua linguagem está protegida dos refolhos vazios e enganosos dos discursos
rotinizados é a condição para a concepção de um canto substantivo e revelador.
A palavra que não entrega seus segredos nos abre a porta da nossa “herança”
cultural e nos possibilita habitar o mundo e fundar um “território”, que é a própria
“palavra”.

Murilo Mendes (2014a, p. 255) compreendia a linguagem como


fundamento da “operação poética, afetividade e engenho construtivo”, e
considerava que “A missão particular do poeta consiste em desvendar o território
da poesia, nomeando as coisas criadas e imaginadas, instalando-as no espaço da
linguagem , conferindo-lhes uma dimensão nova”.

O estudo da lírica muriliana é uma confirmação desse compromisso


manifestado pelo poeta, ao longo de sua trajetória, de conceber uma obra capaz
de conservar sua singularidade, seu pressuposto ético-estético e uma
interlocução com o sagrado, entendida como uma experiência humana, possível
de ser vivida pelos homens no plano de suas vivências. Mendes concebia a
espiritualidade, conforme manifesta em seus poemas, aforismos, entrevistas e
artigos, como um acontecimento imanente capaz de contribuir para o
aprimoramento subjetivo dos seres humanos e ajudar na construção de um
convívio social baseado na tolerância e no respeito pelo outro.

A poesia de Mendes não é mero artifício poético ou um ato criativo que se


esgota em si mesmo, mas uma forma de expressão e diálogo com o mundo que
se traduz por meio de uma fala que se nega a capitular diante da banalização da
vida e busca no divino a investidura necessária para sua afirmação. O humano e
o divino, numa relação interlocutória ambígua e tensa, se amalgamam no discurso
poético do autor de O discípulo de Emaús, desdobrando-se num processo de
revelação de sua presença neste plano e de um aprendizado necessário para sua
elevação espiritual. O sujeito poético, segundo Mendes (2014a, p. 255), ao
conceber sua obra “escreverá, portanto, para manifestar suas constelações
próprias”.
109

A concepção poético-filosófica do escritor funda-se num ponto de vista


religioso cristão, de componente católico. Mas, como é característico de seu
posicionamento estético, congemina os opostos em seu discurso poético. Por
isso, não soa contraditório quando afirma que sua “vocação é de universalismo, é
de pertencer ao mundo; ao Brasil, e ao mundo ao mesmo tempo; foi por desejo de
universalismo que eu me tornei católico” (MENDES, 2018, p. 186).

As considerações decorrentes deste estudo nos sugerem que o fenômeno


poético, como um processo de diálogo e apreensão do mundo, ao mesmo tempo
em que pressupõe uma “operação poética”, é também uma experiência de
compreensão capaz de oferecer elementos aos leitores e impulsioná-los em
direção a uma postura questionadora e de auto-entendimento diante da realidade.
Para Mendes, a poesia é uma importante forma de conhecimento e um caminho
possível de conexão do homem com o transcendente.

O poeta não estava só ao defender esse posicionamento. Ao refletir sobre


o tema, Gadamer (2010, p. 429) o apresenta de maneira significativa e considera
que o poeta tem um importante papel a cumprir na busca e revelação da verdade:

A tarefa do poeta consiste justamente em aspirar pela palavra


verdadeira, que não é o teto protetor usual, como por sua verdadeira
terra natal e, por isso, precisa destruir sílaba por sílaba a armação dos
termos cotidianos. Ele precisa lutar contra a função desgastada, usual e
encobridora da linguagem, uma função que a tudo nivela, a fim de liberar
o olhar para o brilho lá em cima. Isso é que poesia.

Essa percepção aponta para a natureza do ofício do poeta, que não é outro
senão o de desvestir a linguagem de suas roupagens falseadoras. Nesse sentido,
a hermenêutica, como método de compreensão do texto, entendido como um
objeto inerente ao domínio da cultura e por ela determinado, cumpre um papel
auxiliar na construção de um entendimento e interpretação possíveis. A poética
de Murilo Mendes é construída sob essa perspectiva.

O discurso lírico muriliano alcançou esse nível de apuro e exigência em


razão da opção do poeta por uma relação com o texto e suas formas expressivas,
fundada na alteridade, em que criador e escrito se imbricam, questionam-se,
leem-se e se enunciam em sua tessitura verbal.
110

Outro desdobramento significativo do exame das obras que compõem o


corpus desta pesquisa, reporta-se ao fato de que a religiosidade não é um fator
impeditivo de compreensão da condição humana e sua interlocução com o real,
mas se constitui numa maneira igualmente válida de reflexão, pois, ao ser
articulada e posta em ação, os mecanismos do pensamento se mobilizam como
ocorre nos demais procedimentos reflexivos. Assim, a suposta incompatibilidade e
superioridade da razão em relação à religião não teria sentido, como assinalou o
papa Bento XVI (HABERMAS/RATZINGER, 2007, p. 89) ao considerar a
possibilidade de uma “correlação polifônica na qual elas próprias possam abrir-se
à complementaridade essencial de razão e fé, de modo que possa ter início um
processo universal de purificação”.

Outra evidência é quanto ao fato de que a lírica de conteúdo espiritualista


se constitui numa das linhagens mais importantes e antigas da poesia. Há fortes
evidências de que o fenômeno poético se originou dos cantos celebrativos que
remontam à antiga Suméria, em que sobressaíram os poemas exaltativos de
Enheduana e a Epopeia de Gilgámesh, desdobrando-se séculos depois na lírica
grega e influenciando a poesia de diversas tradições, especialmente a hebraica e
os hinos bíblicos.

Embora o discurso lírico de Murilo Mendes apresente um arcabouço


cristão, seu conteúdo e fundamento expressivo, comprometido com a
compreensão do sagrado e o sentido primordial da vida, conecta-o a essa
linhagem milenar da poesia que busca estabelecer, por meio da linguagem
poética, um diálogo com o transcendente. Sua lírica apresenta, portanto, um
caráter espiritual e cósmico, que o poeta acreditava ser o futuro da arte da
palavra: “Podemos entretanto arriscar uma profecia: provavelmente se voltará a
acentuar o caráter ‘cósmico’ da poesia” (MENDES, 2014a, p. 248).

É possível igualmente identificar, no âmbito da literatura brasileira, vínculos


entre a poesia de Murilo Mendes e a vertente religiosa de nosso discurso lírico.
Muitos estudiosos têm apontado como momento inicial desse segmento poético a
obra de José de Anchieta, ainda que marcada por evidente conteúdo doutrinário
católico. Essa tendência desdobrou-se e teve prosseguimento na poesia sacra de
Gregório de Matos, na lírica de conteúdo reflexivo sobre o sentido da existência
111

de Junqueira Freire e especialmente na obra dos simbolistas, com destaque para


Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens. No contexto do modernismo,
sobressaem os autores da segunda geração, identificados com um discurso lírico
de componente existencial, espiritualista e tom questionador sobre a condição do
ser humano: Jorge de Lima, Cecília Meireles, Vinicius de Moraes e o próprio
Murilo Mendes. Contemporaneamente, Adélia Prado é a representante mais
destacada dessa tradição poética.

O cotejamento dos livros e a análise do processo criativo de Murilo Mendes


evidenciam uma mudança na sua construção poética, marcada por um rigor
crescente no tratamento da linguagem e na forma de estruturar o texto poético.
Essa alteração no curso de seu processo criativo foi notada inicialmente pelo
crítico Haroldo de Campos que apontou para uma crescente substantivação de
seu discurso poético. Ponto de vista reiterado igualmente pelo professor Alfredo
Bosi. O ensaísta José Guilherme Merquior (1976, p. xvii), no ensaio “À beira do
antiuniverso debruçado ou introdução livre à poesia de Murilo Mendes”, ressalta
que “O estilo muriliano assume depois da Guerra uma direção classicizante,
análoga à que conheceram o Jorge de Lima de Invenção de Orfeu e o Drummond
de Claro enigma”.

Esse processo marca o distanciamento de Mendes do messianismo que


caracterizou sua poesia nos anos de 1930, especialmente no livro Tempo e
eternidade. Percebe-se, a partir das obras Poesia em pânico, As metamorfoses e
Mundo enigma, uma mudança não só no tom de seu discurso lírico, mas uma
atenção maior com a linguagem de sua escritura poética, que se torna menos
dramática e menos retórica. Os estudiosos de sua poesia apontam que, depois de
O discípulo de Emaús, sua produção literária assume novo feitio, com um registro
estético mais rigoroso.

A culminação dessa nova experiência criativa de Murilo Mendes atingirá


seu ápice com o livro Convergência, publicado em 1970, e apontado pelos críticos
como sua obra mais significativa em termos de reflexão e elaboração poética. O
livro, como destaca Sebastião Uchoa Leite, é de uma precisão e densidade
incomuns. A professora e crítica italiana Luciana Stegagno-Picchio (2004, p. 547)
avalia esse processo vivido pelo poeta e considera que
112

nesse sentido, rigorosamente epistemológico, a poesia de Murilo, às


vezes, se faz metapoesia: mas não há jamais a torre de marfim, o poeta
cinzelador, hedonisticamente satisfeito com seu artesanato. Se o texto a
interpretar é o mundo e o meio cognoscitivo a linguagem, o ofício do
poeta é fazer-se contemporâneo de todo acontecimento, sofrer e gozar,
em primeira pessoa, as dores e as alegrias da humanidade, permanecer
sempre de vigia entre as intempéries.

Considera-se, por fim, que o processo de busca de Murilo Mendes não se


limitava ao plano de sua religiosidade, mas encontrava expressão pungente na
construção de seu discurso poético e na maneira como foi substantivando sua
linguagem. Nesse percurso, a palavra passa a ser o espaço de representação do
existente e das preocupações existenciais do autor. Nesse amalgamento as
palavras dialogam com o mundo e o contêm, como declara João Alexandre
Barbosa (1974, p. 136): “o poeta foi transformando a realidade da linguagem na
própria poesia do real para o qual sempre teve olhos e ouvidos atentos. Entre
linguagem e realidade passa a não mais existir obstáculos intransponíveis”.

Murilo Mendes é o criador de uma poesia vívida, aberta para a vida e


receptiva às novas experiências no âmbito da linguagem e sua construção. Por
isso é considerado um poeta experimental e inovador, ou, como preferia, um
contemporâneo de si mesmo. Sua mensagem de humanidade e reconciliação,
sua confiança no divino como caminho e possibilidade de um reencontro do ser
humano com sua essência, bem como a espiritualidade como um modo de ser no
mundo, capaz de nos ajudar a compreender a complexidade de nosso existir, são
pressupostos que podem contribuir para uma convivência humana baseada na
compaixão e no acolhimento e reconhecimento do outro.

Essa compreensão do poeta baseava-se no entendimento de que a palavra


é portadora de uma potência adormecida que pode ser despertada pela força
evocativa e transfiguradora do verbo, como comenta em carta recolhida por Laís
Corrêa de Araújo (2000, p. 191), datada de 9 de abril de 1969: Qual será o futuro
da poesia, não sei; espero que não seja o da ecolalia e do monossilabismo (...)
mas creio ainda na tentativa de se combinar humanidade, experimentalismo e
concisão”.
113

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MENDES, Murilo. Poemas. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2014c.

MENDES, Murilo. As metamorfoses. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

MENDES, Murilo. Poliedro. 2. ed. São Paulo: Editora Companhia das Letras,
2017.

MENDES, Murilo. A idade do serrote. São Paulo: Editora Companhia das Letras,
2018.

MERQUIOR, José Guilherme. “À beira do antiuniverso ou introdução livre à


poesia de Murilo Mendes”. In: Antologia poética. MENDES, Murilo. Rio de Janeiro:
Fontana, 1976.

MERQUIOR, José Guilherme. Razão do poema. 3. ed. São Paulo: É Realizações,


2013.

MESTRE ECKHART. O Livro da Divina Consolação e outros textos seletos. Trad.


Fr. Raimundo Vier et alii. 6. ed. Bragança Paulista/SP. Ed. Universitária São
Francisco, 2006.

MOISÉS, Massaud. A literatura brasileira através dos textos. 29 ed. rev. e ampl.
São Paulo: Cultrix, 2012.

MOURA, Murilo Marcondes de. Murilo Mendes: a poesia como totalidade. São
Paulo: Edusp, 1995.

MOURA, Murilo Marcondes de. “Os jasmins da palavra jamais”. In: Leitura de
poesia. Org. BOSI, Alfredo. São Paulo: Ática, 2001.

MOURA, Murilo Marcondes de. “Posfácio”. In: MENDES, Murilo. As


metamorfoses. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

MUNCK JUNIOR, Edson. “A heterodoxia muriliana na dança com o sagrado”. III


Jornada Interna PPG Letras – Estudos Literários UFJF. Juiz de Fora/MG: UFJF,
2012. Acessada em 2 de julho de 2018.
119

NAVA, Pedro. O círio perfeito – memórias VI. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1983.

NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho.


São Paulo: Nova Cultural, 1996.

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. 2.


ed. Trad. Jacó Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

NOVALIS. Fragmentos de Novalis. Trad. Rui Chafes. 2. ed. Lisboa: Assírio &
Alvim, 2000.

NUNES, Benedito. Hermenêutica e poesia: o pensamento poético. Belo


Horizonte: Editora UFMG, 2007.

NUNES, Benedito. A clave do poético. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

OTTO, Rudolf. O sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua


relação com o racional. Trad. Walter O. Schlupp. Petrópolis/RJ: Vozes; São
Leopoldo/RS: Sinodal/EST, 2007.

PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Ari Roitman; Paulina Wacht. São Paulo:
Cosac Naify, 2012.

PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Hélade: Antologia da cultura grega. Trad.


Maria Helena da Rocha Pereira. 2. ed. Porto: Asa Editores, 2005.

PEREIRA, Maria Luiza Scher & SILVA, Teresinha Vânia Zimbrão (Orgs.).
Imaginação de uma biografia literária: os acervos de Murilo Mendes / Chronicas
Mundanas e outras crônicas: as crônicas de Murilo Mendes. Juiz de Fora: Editora
UFJF, 2004.

PLATÃO. Íon. Trad. Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.

RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação: O discurso e o excesso de significação.


Trad. Artur Morão. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1987.
120

RICOEUR, Paul. Do texto à acção: ensaios de hermenêutica II. Trad. Alcino


Cartaxo; Maria José Sarabando. Porto, Portugal: Rés-Editora, 1989.

RYKEN, Leland. Formas literárias da Bíblia. Trad. Sandra Salum Marra. São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 2017.

SAFO. Fragmentos completos. Trad. Guilherme Gontijo Flores. São Paulo: Ed.
34, 2017.

SANTO AGOSTINHO. Confissões. Trad. J. Oliveira Santos; A. Ambrósio de Pina.


20. ed. Bragança Paulista/SP: Ed. Universitária São Francisco, 2003.

SENNA, Homero. República das letras. Entrevistas com 20 grandes escritores


brasileiros. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.

SOUSA, Cruz e. Antologia poética. São Paulo: Ática, 2006.

STEGAGNO-PICCHIO. Luciana. História da literatura brasileira. 2. ed. rev. e


atualizada. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2004.

TSVETÁEVA, Marina. O poeta e o tempo. Trad. Aurora Fornoni Bernardini. Belo


Horizonte: Editora Âyiné, 2017.

VIEIRA, Trajano. Lírica grega, hoje. Trad. Trajano Vieira. São Paulo: Ed.
Perspectiva, 2017.

UNNÍNNI, Sin-léqi-. Epopeia de Gilgámesh – Ele que o abismo viu. Trad.


Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017.

VIEIRA, Trajano. Lírica grega, hoje. Trad. Trajano Vieira. São Paulo: Ed.
Perspectiva, 2017.

WEIL, Simone. Pela supressão dos partidos políticos. Trad. Lucas Neves. Belo
Horizonte: Ed. Âyiné, 2016.

ZAMBRANO, María. O homem e o divino. Trad. Cristina Rodriguez; Artur Guerra.


Lisboa: 1995.
121

ANEXO: POEMAS – MURILO MENDES & OUTROS TEXTOS

POEMAS – MURILO MENDES

Os poemas citados parcialmente no corpo do trabalho são transcritos


integralmente neste anexo para efeito de apreciação na sua totalidade. Os que
não constam desta seleção estão citados na íntegra no transcurso da
argumentação. A organização desta seleta seguiu a sequência cronológica de
publicação dos livros:

– Poemas (1930)

Alma numerosa
Nascerei em outras terras, com olhos novos.
Deixarei minhas partes inferiores, a parte do diabo.
Não me perseguirão mais visões complicadas,
nem eu serei a luta entre as construções do meu espírito.
Para subir tenho que largar esta pele multicor,
feiticeiro de mim mesmo, alma penada,
presa das formas exteriores, do cheiro, do movimento.
Me desdobrarei em planos infinitos, estarei nos olhos da criança nascendo,
na cabeça dos amantes, nos degraus do espaço,
na última luz dos velhos morrendo, no sonho do místico,
e em todos os lugares onde existir alguém sofrendo e amando.

Aqui não posso fazer o que penso. Me livrarei de mim mesmo


quando a luz enorme se anunciar pelos círios vacilantes
e a minha alma penetrar nos espaços futuros.

– Tempo e eternidade (1935)

Eternidade do Homem
Abandonarei as formas de expressões finitas,
Abandonarei a música dos dias e das noites,
Abandonarei os amores improvisados e fáceis,
Abandonarei a procura da ciência imediata
Serei a testemunha de um mundo que caiu,
Até que te manifeste na tua Parusia.

Aceitarei a pobreza para que me dês a plenitude,


Aceitarei a simplicidade para que me dês a multiplicidade,
Descerei até o fundo da mina do sofrimento
Para que um dia me apontes o céu da paz.

Minha história se desdobrará em poemas:


Assim outros homens compreenderão
Que sou apenas um elo da universal corrente
Começada em Adão e a terminar no último homem.
122

A testemunha
O céu se retira como um livro que se enrola.
Um anjo blindado solta os sete pecados mortais.
Mulheres-cavalos galopam furiosamente nas ruas,
Homens ajoelham-se diante do sexo duma fêmea,
Outros diante dum ídolo de ouro e prata.
Poderosos refletores iluminam milhares de sovacos.
Quem passeia no mar, quem sonha no mar
Se o mar está tinto do sangue derramado das virgens.
Mil fanáticos fuzilam o coração de Jesus.
Chacais hienas e urtigas invadem a alma dos ditadores.

Crianças nascem nos tanks ao som de um clarim


As cidades transbordam de famintos,
Famintos de comida e da palavra de consolo.

Poeta, cobre-te de cinzas, volta à inocência,


Impede que se derrame o cálice da ira de Deus,
Tu que és a testemunha sustenta o candelabro,
Monta o cavalo branco e reconstrói o altar
Onde se transforma pão e vinho,
Indica à turba as profecias que se hão de cumprir,
Revela aos presos olhando através das grades
Que o mundo será mudado pelo fogo do Espírito Santo,
Descerra os véus da Criação, mostra a face do Cristo.

– O sinal de Deus (1936)

Nossa vida
Vida infernal e divina do poeta – Corpos de mulheres descendo e subindo em torno da
gente – Pensamentos para Deus, por Deus, contra Deus – Solidão – Ânsias de guerra – de
paz – de morte – Nascer, viver, sofrer, morrer e ressuscitar com todos os entes – Não ser
amado – Insultar a lei, o mundo – Tragédia do amor à mulher objetiva – Viver segundo o
espírito, mas ter nascido do sangue e da vontade da carne – Dar-se a todos, ao mesmo
tempo rejeitar-se – A humildade – a majestade – o poder – a conversação dos antipoetas –
A população e o vazio – O real com mais força que o ideal – O NÃO a Jesus Cristo – a
volúpia – o veneno – a música – a dança – os perfumes – a embriaguez sem álcool – O
orgulho da vida – O princípio, o fim – O céu, o inferno – Deus! – A poesia da eternidade
esclarecendo, completando e ampliando a poesia do tempo.
O bem e o mal não são a mesma coisa. Os poetas reconduzirão o homem a Deus. E
submeterão os chefes temporais à ordem da caridade.

– A poesia em pânico (1937)

Poema visto por fora


O espírito da poesia me arrebata
Para a região sem forma onde passo longo tempo imóvel
Num silêncio de antes da criação das coisas.
Súbito estendo o braço direito e tudo se encarna:
O esterco novo da volúpia aquece a terra,
Os peixes sobem dos porões do oceano,
As massas precipitam-se na praça pública.
123

Os diversos personagens que encerrei


Deslocam-se uns dos outros, fundam uma comunidade
Que eu presido ora triste ora alegre.

Não sou Deus porque parto para Ele,


Sou um deus porque partem para mim.
Somos todos deuses porque partimos para um fim único.

– O visionário (1941)

Novíssimo Prometeu
Eu quis acender o espírito da vida,
Quis refundir meu próprio molde,
Quis conhecer a verdade dos seres, dos elementos;
Me rebelei contra Deus,
Contra o papa, os banqueiros, a escola antiga,
Contra minha família, contra meu amor,
Depois contra o trabalho,
Depois contra a preguiça,
Depois contra mim mesmo,
Contra minhas três dimensões:

Então o ditador do mundo


Mandou me prender no Pão de Açúcar:
Vêm esquadrilhas de aviões
Bicar o meu pobre fígado.
Vomito bílis em quantidade,
Contemplo lá embaixo as filhas do mar
Vestidas de maiô, cantando sambas,
Vejo madrugadas e tardes nascerem
-– Pureza e simplicidade da vida! –
Mas não posso pedir perdão.

– As metamorfoses (1944)

Poema hostil
Os pés do deserto me alcançam,
Trazem recados das rosas migradoras.
À beira da sombra vigio a matéria,
Trago lendas negras para o meu amor.

Esqueceram as constelações em cima dos cadernos de música.

Subo pelas cariátides


Para derrubar o manequim de Eva
E grito:
O mundo é muito pouco,
Trazei-me os antigos segredos.
Daqui vejo os netos dos que ainda não nasceram.
Quem me tocar perderá a memória.
124

– Mundo enigma (1945)

Nihil
Profundo penoso
Das nuvens do inferno
Surgiu meu destino.
Grandeza não tive,
Nem jeito pra vida.

Nesta noite maquinal,


Ouvinte apenas da guerra,
Sem passado nem futuro,
Odiando o presente,
Me encontro face a face
Com a estátua do pó,
À toa, esperando
A mão do Criador
Finalmente me abater.

– O discípulo de Emaús (1945)

33
O reino de Deus está em nós. Não está sujeito ao tempo nem ao espaço.

144
A eternidade será um tempo infinito – ou antes, um estado infinito?

159
A poesia é a realidade; a imaginação, seu vestíbulo.

192
A poesia confere a investidura na universalidade, uma participação da linhagem divina.

195
A poesia é uma transubstanciação do leigo no sagrado, do particular no universal, do
humano no divino.

200
O verdadeiro poeta é conjuntamente um ser de circunstância, e eterno.

263
O reino de Deus é suprapolítico, supra-econômico, supratrabalhista.

310
Deus sempre se manifestou poeticamente.

371
Passaremos do mundo adjetivo para o mundo substantivo.

463
A leitura deve-nos ler, tanto quanto ser lida.

536
Cristo fundiu os tempos e descerrou a eternidade.
125

563
Através dos séculos o poeta é encarregado, não só de revelar aos outros, mas de viver
praticamente no seu espírito e no seu sangue, a vocação transcendente do homem.

573
A vida essencialista cristã, restringindo as necessidades materiais, dilata o espírito.

686
O Cristo é uma pessoa coletiva.

– Convergência (1970)

Grafito na pedra de meu pai


Tu foste
Casa feita / paz / ternura
Aberta para o mundo.
Santo-e-senha distribuías
A pobre, amigo, ignoto.

Irônico / repentista / malincônico


Eis tua marca maior: hombridade.

Essa cabeça ovalbranca


De mineiro gentilhomem
(Belo)
Sinais emitia de célere
De soaveforte comando
À tribo de songamongas.

Tu & Maria José


Montanhosa generosa
Repartiam entre os oito
O coração em fatias.

*
Teu filho pródigo
Polêmico giróvago
Giralivros
Anárquico alicaído
Insoferente do século
Acolhes preparando
Perdão vitualha & serenim.

*
Sem ti & Elisa não seriam:

O Brasil
A Bíblia
Betelgeuse

Maria da Saudade

Mozart
Dante
Paul Klee
126

O amor da liberpaz
A página branca
A Espanha

*
Trabalhador da vida. Homem de aço
& seda, sinto ainda pulsar
Teu coração

ecumênico.

Grafito na pedra de minha mãe


A pedra abre os olhos mansos de colomba.

Morte polêmica
Morte que separa homem & sombra
rosa & espinho
Catapultou-me da esfera do teu ventre
Para este território ásperoanguloso
Onde soou no espaço
A primeira ruptura: tempo subtraído-te,
História em mito permutada
Eletronicamente.

Bela / jovem / magnética


Talhada para canto & clavicímbalo
Te eclipsas no limiar do século
Que cedo iria me absorver
No seu contexto polêmico.

Extraindo-te de mim
Fechando-te magnólia móbile
selenocêntrica
Elisa Valentina minha filha unigênita
Tornaste-me
Espiritado esdrúxulo;
Geraste
Minha cosmogonia.

Murilograma a Ungaretti
Conhecer os limites da linguagem
Afrontando as palavras travestidas.

“Uomo ferito” ir, prestes arando


Para fundar o ser, próprio à palavra.

Recompor o espaço ocupado por outrem


Com inútil ornato. Refazer a base.

Assumir a palavra refratária


Nossa única herança e território.

Frioviolento, já extrair a coisa


Sinônimo de palavras, revelando-a.
127

*
Álacre. Fogo interno, não fogo-fátuo
Elétrico, nutre-lhe o silêncio-grito.

A natureza, didascália informe,


Exaure-se, frente ao diagrama abstrato.

Murilograma a Nani Balestrini


Truncar a palavra / coisa
Podá-la nas patas
Estilhaçá-la consciente.

A um engenho eletrônico
Entregar o osso de um texto
Que resultará noutro texto
Cifrado:
O do engenho eletrônico?
FORSE GLI AUTOMI
HANNO RAGIONE
Montale.

Começo: sem fim.


Começo: sem intermédio
Nem começo.

*
Que é finalmente o poema:
Palavra ou frase?
Sem frase levanta-se palavra?

*
O poeta planifica
O texto de linhas retas
Não o que o texto quer.

O texto não-total
Será mesmo divisão:

Unidade aristotélica
Só funciona no tratado,
Na matéria do homem não.

Dante / Petrarca / Leopardi


Operaram quando ainda
Subsistia
O homem-metáfora.

O homem
Hoje
Não --------------------------
128

Texto de consulta

1
A página branca indicará o discurso
Ou a supressão do discurso?

A página branca aumenta a coisa


Ou ainda diminui o mínimo?

O poema é o texto? O poeta?


O poema é o texto + o poeta?
O poema é o poeta – o texto?

O texto é o contexto do poeta


Ou o poeta o contexto do texto?

O texto visível é o texto total


O antetexto o antitexto
Ou as ruínas do texto?
O texto abole
Cria
Ou restaura?

2
O texto deriva do operador do texto
Ou da coletividade – texto?
O texto é manipulado
Pelo operador (ótico)
Pelo operador (cirurgião)
Ou pelo ótico-cirurgião?

O texto é dado
Ou dador?
O texto é objeto concreto
Abstrato
Ou concretoabstrato?

O texto quando escreve


Escreve
Ou foi escrito
Reescrito?

O texto será reescrito


Pelo tipógrafo / o leitor / o crítico;
Pela roda do tempo?

Sofre o operador:
O tipógrafo trunca o texto.
Melhor mandar à oficina
O texto já truncado.

3
O texto é o micromenabó do poeta
Ou o poeta o macromenabó do texto?

4
A palavra nasce-me
fere-me
mata-me
129

coisa-me
ressuscita-me

5
Serviremos a metáfora?
Arquivaremos a?

Metáfora:instrumento máximo;
CASSIRER
A própria linguagem do homem
ORTEGA Y GASSET
Invenção / translação.

6
A palavra cria o real?
O real cria a palavra?
Mais difícil de aferrar:
Realidade ou alucinação?

Ou será a realidade
Um conjunto de alucinações?

7
Existe um texto regional / nacional
Ou todo texto é universal?
Que relação do texto
Com os dedos? Com os textos alheios?

Giro NÉ POUR D’ETERNELS


Com o texto a tiracolo
PARCHEMINS
Sem o texto
(MALLARMÉ)
Não decifro o itinerário.

Toda palavra é adâmica:


Nomeia o homem
Que nomeia a palavra.

Querendo situar objetos


Construímos um elenco vertical.
Enumeração caótica?
Antes definição.
Catalogar, próprio do homem.

8
Morrer: perder o texto
Perder a palavra / o discurso

Morrer: perder o texto


Ser metido numa caixa
Com testo
Sem texto.

9
Juízo final do texto:
Serei julgado pela palavra
Do dador da palavra / do sopro / da chama.
130

O texto-coisa me espia
Com o olho de outrem.

Talvez me condene ao ergástulo.

O juízo final
Começa em mim
Nos lindes da
Minha palavra.

Grafito no pão de açúcar


No cume desta colina
Nove bilhões de anos
Contemplam-nos.

Neste Rio descobri

O Brasil / cruz e delícia


Saudade minha amada.
Neste Rio ásperofísico
Nomeei-me poeta.

Aqui conversei
Ismael Nery
Mestre / malungo máximo
Entre canto gregoriano e jazz.

Aqui aprendi
Presto a ser
Espiritualmente semita
Alimentei-me de Índia.

Daqui vi crescer
A novíssima Israel:
Karl Marx / Freud / Einstein.

Daqui pude aferrar


Picasso / Mallarmé / Strawinski

Lutei com o Verbo encarnado.


Matéria fui / para forma.

Aqui toquei imediato


Ou por tangência & contaminação

Múltiplas coisas grandes


Visíveis invisíveis.

*
À beira desta baía
Largoespacial
Desamei / amei
Deslouvei / louvei

Cedo desarmei-me.

Senti crescer-me
131

Comunicante
O duplo fogo eternofísico
Pai de todos e meu.

Nesta baía cabem todas as esquadras


Não cabe nenhuma bomba.

*
Do cume desta colina
Contorno o BR acelerado
retardado
extrovertido
coisificado

Meu olho circular navega o mundo


Que aceito
Malgrado mil ____________

– Retratos-relâmpago, 1ª série (1973)

Nietzsche

Sou grato a Nietzsche por certas palavras: “o espírito que dança”; a criação de valores”;
“tudo o que não me faz morrer torna-me mais forte”; “o poder oculto da alma”; “no homem
acham-se reunidos a criatura e criador”.

Sou in-grato a Nietzsche pelo seu culto extremo da força, do mandarinato; pela sua
incompreensão do cristianismo.

Renovar sua didascália sobre o espírito grego como ponto de partida da cultura, e sobre o
espírito israelita como organizador da ação. Desnazificar Nietzsche. Desprussianizá-lo.

Transcristão? Interpreta a disciplina do sofrimento. Cada cristão deveria explorar a parte de


Dionísio que lhe toca.

... Levantar uma Alemanha onde figure entre os elementos da composição o melhor de
Nietzsche lúcido sem espada: na claridade mediterrânea.

“A palavra do passado é sempre palavra de oráculo: só a compreendereis se fordes os


construtores do futuro e os visionários do presente”
132

OUTROS TEXTOS

Os textos mencionados parcialmente no corpo do trabalho, em conexão com os


poemas de Murilo Mendes, são reproduzidos para efeito de reflexão e
cotejamento com as interpretações elaboradas no corpo deste estudo. Servem
igualmente para verificação da similitude e continuidade do discurso e formas
literárias surgidas na Suméria e que dialogaram com a poesia de outras tradições,
inclusive com a lírica muriliana:

– Canto sumeriano à “Senhora de todo o Me” – Enheduana (cerca 2300 a.C)

Nin-me-sara (Canto à Deusa Inana)


Eu também gostaria de celebrar
os desejos bons da rainha da batalha,
a filha primogênita de Sini.

Já que (Ebih) não beijou o chão diante de mim,


Nem varreu o pó perante mim com sua barba,
Porei minha mão neste país instigante:
E o ensinarei a me temer!

Trarei guerra (para Ebih), instigarei o combate,


Atirarei setas de meu tremor,
Lançarei as pedras de minha funda em longa saudação,
Eu o empalarei (Ebih) com minha espada.

Ergui também um templo,


Onde inaugurei eventos importantes:
Montei um trono inexpugnável!
Desembainhei punhal e espada para... (...)
Pandeiro e tambor para os dançarinos (...)
Transmutei homens em mulheres!
“A rainha executando grandes ações,
que junta para si o eu do céu e da terra,
rivaliza com o grande An (...)

Construir uma casa, construir uma alcova de mulher, ter instrumentos,


beijar lábios puros são teus, Inana,
Dar a coroa, o trono,
e o cetro de realeza é teu, Inana.

An e Enlil no universo inteiro determinaram para ti um grande destino,


Eles te deram a Soberania sobre o gu’enna,
Tu determinas o destino das Senhoras magníficas.

Senhora, és grande, és importante,


Inana, tu és grande, tu és importante,
Minha Senhora, tua grandeza é manifesta,
Que teu coração por mim “volte a seu lugar!”

No Gipar que determina meu destino, eu entrei por ti.


Eu, a en-sacerdotisa, eu, En-hedu-ana,
Equanto levava a cesta, entoei uma canção de júbilo.
133

Como se eu não houvesse vivido lá,


eles me ofereceram o sacrifício da morte.

Inin-me-sar-ra, ou “a Senhora de todos os eus”.

Meu destino com Suen e Lugal-Ane,


informai a An! Na resolverá isso por mim.
Informai a An imediatamente.
An resolverá isso por todos nós!

Eu – meu Nana não cuidou de mim.


Na terra rebelde,
eles me destruíram completa e totalmente
Ele falou isto – significa alguma coisa?
Depois, lá se levantou em triunfo,
expulsou-me do templo.
Fez-me voar como uma andorinha da janela –
minha vida foi consumida.

Isto será conhecido, será conhecido:


Nana não proclamou nenhum decreto,
“É teu”, foi o que ele disse!
Que és tão alta quanto o céu, será conhecido!
Que és tão vasta quanto a terra, será conhecido!
Que aniquilas territórios rebeldes, será conhecido!
Que Nana não proclamou,
que ele disse, “é teu”,
Minha rainha – tornou-te maior,
Tu te tornaste a maior!
Minha rainha, amada de An,
Eu anunciarei toda tua ira!

Por causa de teu cônjuge cativo, por causa de teu protegido cativo,
Tua ira tornou-se grande,
teu coração não se tranquilizou.

Minha guia, selvagem vaca divina, expulsai esse “alguém”,


Capturai esse “alguém!”.

Mulher, guia de todos, vestida em brilho amedrontador,


amada por An e Uras,
Nugig de An, estás acima de todos os grandes.
Tu, que amas a coroa de aga certa,
que estás vestida para o en-sacerdócio.

Ele me rasgou a legítima coroa de aga de en,


Minha doce boca ficou venenosa.
Que com ela dei delícias, agora virou pó.

A luz era doce para ela, delícia se esparramou sobre ela,


Cheia de abundante beleza era ela.
Como a luz da lua nascente (Nana),
ela também se vestia de encantos.

Meu próprio julgamento ainda não terminou,


mas uma estranha sentença me cerca
como se fosse a minha sentença.
À cama brilhante não estirei minha mão.
Nem revelei as palavras de Ningal àquele “alguém”
134

A brilhante en-sacerdotisa de Nana sou eu!


Minha rainha, amada de An, possa teu coração ser acalmado por mim.

És maior até que tua própria mãe,


cheia de sabedoria e prudência, rainha de todas as terras,
que permite existência para muitos.
Começo agora tua canção que determina o destino!
Divindade todo-poderosa, a mim adequada,
Pois o que magnificamente me disseste é o mais poderoso!
De coração insondável, oh mulher de tão altos desígnios
de coração brilhante, teu EU agora o listarei para ti.

En-hedu-ana sou eu, e direi agora uma prece a ti.


Minhas lágrimas, como doce cerveja,
Derramei agora livremente para ti, Inana Senhora do Destino,
Teu julgamento! Eu o direi a ti.

Amontoei o carvão, preparei os ritos de purificação,


Os postos de Esdam-ku estão prontos para ti –
não vai teu coração se tranquilizar por mim?

Já que o coração estava cheio, muito cheio,


grande rainha, eu o pari para ti.
O que foi dito a ti nesta meia-noite,
o cantor do culto o repetirá a ti ao meio-dia.

A rainha, a forte,
que rege sobre a assembleia de en,
aceitou a prece o sacrifício.
O coração de Inana, Senhora do Destino, voltou a seu lugar.

Salmo 145: Bíblia – Davi (cerca de 1010 a 970 a.C)


Eu te exalto, ó Rei meu Deus,
e bendigo teu nome para sempre e eternamente.
Eu te bendirei todos os dias
e louvarei teu nome para sempre e eternamente.
Grande é Iaweh, e muito louvável,
é incalculável a sua grandeza.

Uma geração apregoa tuas obras a outra,


proclamando as tuas façanhas.
Tua fama é esplendor de glória:
Cantarei o relato das tuas maravilhas.
Falarão do poder dos teus terrores,
e eu cantarei a tua grandeza.
Difundirão a lembrança da tua bondade imensa
e aclamarão a tua justiça.

Iahweh é piedade e compaixão,


lento para a cólera e cheio de amor;
Iahweh é bom para todos,
compassivo com todas as suas obras.

Que tuas obras todas te celebrem, Iahweh,


e teus fiéis te bendigam;
digam da glória do teu reino
e falem das tuas façanhas,
135

para anunciar tuas façanhas aos filhos de Adão,


e a majestade gloriosa do teu reino.
Teu reino é reino para os séculos todos,
e teu governo para gerações e gerações.

Iahweh é verdade em suas palavras todas,


amor em todas as suas obras;
Iahweh ampara todos os que caem
e endireita todos os curvados.

Em ti esperam os olhos de todos


e no tempo certo tu lhes dás o alimento:
abres a tua mão
e sacias todo ser vivo à vontade

Iahweh é justo em seus caminhos todos,


e fiel em todas as suas obras;
está perto de todos os que o invocam,
de todos os que o invocam sinceramente.

Realiza o desejo dos que o temem,


ouve seu grito e os salva.
Iahweh guarda todos os que o amam,
mas destruirá todos os ímpios.

Que minha boca diga o louvor de Iahweh


e toda carne bendiga seu nome santo,
para sempre e eternamente!

– Teogonia – Hesíodo (no transcurso do século VIII a.C)

Proêmio: hino às Musas


Pelas Musas heliconíades comecemos a cantar.
Elas têm grande e divino o monte Hélicon,
em volta da fonte violácea com pés suaves
dançam e do altar do bem forte filho de Crono.
Banharam a tenra pele no Permesso
ou na fonte do Cavalo ou no Olmio divino
e irrompendo com os pés fizeram coros
belos ardentes no ápice do Hélicon.
Daí precipitando-se ocultas por muita névoa
vão em renques noturnos lançando belíssima voz,
hineando Zeus porta-égide, a soberana Hera
(...)

Elas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto


quando pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divino.
Esta palavra primeiro disseram-me as Deusas
Musas olimpíades, virgens de Zeus porta-égide:
“Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só,
sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos
e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações”.
Assim falaram as virgens do grande Zeus verídicas,
por cetro deram-me um ramos, a um loureiro viçoso
colhendo-o admirável, e inspiraram-me um canto
divino para que eu glorie o futuro e o passado,
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impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos


E a elas primeiro e por último sempre cantar.
Mas por que me vêm isto de carvalho e de pedra?

– Ilíada – Homero (entre o final do século VIII a.C e início do século VII a.C.)

Canto I
Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida
(mortífera!, que tantas dores trouxe aos Aqueus
e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades,
ficando seus corpos como presa para cães e aves
de rapina, enquanto se cumpria a vontade de Zeus),
desde o momento em que primeiro se desentenderam
o Atrida, soberano dos homens, e o divino Aquiles.

Entre eles qual dos deuses provocou o conflito?


Apolo, filho de Leto e de Zeus. Enfurecera-se o deus
contra o rei e por isso espalhara entre o exército
uma doença terrível de que morriam as hostes,
porque o Atrida desconsiderara Crises, seu sacerdote.
Ora este tinha vindo até as naus velozes dos Aqueus
para resgatar a filha, trazendo incontáveis riquezas.
(...)

– Odisseia – Homero (entre o final do século VIII a.C e início do século VII a.C.)

Canto I
Fala-me, Musa, do homem astuto que tanto vagueou,
depois que de Troia destruiu a cidadela sagrada.
Muitos foram os povos cujas cidades observou,
cujos espíritos conheceu; e foram muitos no mar
os sofrimentos por que passou para salvar a vida,
para conseguir o retorno dos companheiros a suas casas.
Mas a eles, embora o quisesse, não logrou salvar.
Não, pereceram devido à sua loucura,
Insensatos, que devoraram o gado sagrado de Hipérion,
O Sol – e assim lhes negou o deus o dia do retorno.
Destas coisas fala-nos agora, ó deusa, filha de Zeus.

Nesse tempo, já todos quantos fugiram à morte escarpada


se encontravam em casa, salvos da guerra e do mar.
Só àquele, que tanto desejava regressar à mulher,
Calipso, ninfa divina entre as deusas, retinha
em côncavas grutas, ansiosa que se tornasse seu marido.
Mas quando chegou o ano (depois de passados muitos outros)
no qual decretaram os deuses que ele a Ítaca regressasse,
nem aí, mesmo entre o seu povo, afastou as provações.
E todos os deuses se compadeceram dele,
todos menos Posêidon: e até que sua terra alcançasse,
o deus não domou a ira contra o divino Ulisses.
(...)

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