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Sócrates Nolasco

A violência é masculina
Da virilidade de Tarzan ao conformismo de Homer Simpson, o psicoterapeuta Sócrates Nolasco
discute a crise no universo dos homens
Eliane Lobato

O psicoterapeuta carioca Sócrates Nolasco juntou num só livro dois temas explosivos:
masculinidade e violência. Em De Tarzan a Homer Simpson – banalização e violência masculina
em sociedades contemporâneas ocidentais, recém-lançado pela editora Rocco, ele diz que a
violência não tem raça, cor, idade ou classe social, mas tem sexo. “É macho”, afirma. Os homens
são causa e consequência; matam mais e morrem mais. Eles são 90% do contingente carcerário e,
disparado, as maiores vítimas de acidentes de trânsito, de ingestão de álcool e drogas, além de
cometerem mais suicídio. Esses dados são interpretações qualitativas de números nacionais, como
os do IBGE e do Instituto de Estudos da Religião (Iser), e internacionais, como os da ONU. No
final, uma constatação lamentável e verdadeira: atrás de tudo, a associação de violência à virilidade
e masculinidade.
Assim caminha a humanidade, no encalço do poder masculino, repetindo os mesmos erros. No
entanto, a representação do universo masculino está em crise. Tarzan, o arquétipo do herói viril e
lutador, já começou este século decrépito. Homer Simpson, o pai do desenho Os Simpsons, da tevê,
seria a imagem mais aceita pela mídia como protótipo do homem médio. Mas quem já viu o cartoon
sabe que ele é, também, o oposto da virilidade e da sedução, um anti-herói.
É nesse embaralhamento de questões que Sócrates Nolasco trabalha. Ele começou a estudar o papel
masculino na sociedade em 1985 e, na última pesquisa, ligou o tema à violência. Fez uma análise
qualitativa, com homens de 35 a 45 anos, das classes média e média alta. Entre eles, heterossexuais
e homossexuais de várias profissões e estados civis. “Quando iniciei o estudo, pensava a violência
como decorrência do exagero de atos agressivos. Posteriormente, percebi que os homens estão
expostos a um outro tipo de morte mais complexa que a física: o fim da sua representação social.”
Carioca, 44 anos, o psicoterapeuta e professor adjunto da Escola de Comunicação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro é autor de dois outros livros, A desconstrução do masculino e O mito da
masculinidade. Nolasco deu a seguinte entrevista a ISTOÉ:
A violência é vista como forma de virilidade?
Sócrates Nolasco -
 Nós podemos pensar a violência como um colapso da forma viril, um estado de insegurança que
gera no indivíduo um esforço de reparação. Nessas condições, ele se sente ameaçado pelo outro,
como se este pudesse exterminá-lo. A violência tende a aumentar em culturas nas quais as
representações sociais se transformaram em operadoras da economia e do direito. Ao sentir-se
destituído de sua virilidade, o indivíduo imagina que poderá tirá-la de alguém que a tenha.
Istoé -

A sociedade faz o homem mais violento?


Sócrates Nolasco -
 Podemos pensar essa questão através de diferentes ângulos. No Ocidente, a consolidação das
democracias acontece paralelamente à perpetuação das guerras. Mesmo diante de inúmeros esforços
pacifistas, ainda encontramos um cotidiano cada vez mais militarizado, visível também por meio da
competitividade e da exclusão social.
Istoé -

Essa masculinidade ainda tem valor hoje?


Sócrates Nolasco -
 A masculinidade como uma representação social entrou em decadência. Na transição para o
individualismo moderno, tudo aquilo que simbolizava o mundo dos homens sucumbiu. Dessa
morte, se beneficiam os discursos das minorias, estas mitologias modernas. As mulheres vão
reivindicar paridade salarial e igualdade de direitos com os homens. Os homossexuais vão fazer a
mesma coisa em relação aos heterossexuais, e os negros, em relação aos brancos. É dessa morte
simbólica das insígnias masculinas que nascerão, no Ocidente, as reivindicações contemporâneas.
Então, esse homem branco, heterossexual, continua a existir como projeto, como representação. O
que sucumbe é o indivíduo do sexo masculino identificado pelas estatísticas.
Istoé -

Você diz no livro que o garoto tem que ser bad (mau) para poder ser boy (menino). Há
possibilidade de as mães, a sociedade em geral, dissociarem o macho da violência?
Sócrates Nolasco -
 É interessante observarmos que isso não acontece com as meninas, só com os meninos. O homem
que tenta ser diferente deste bad boy é identificado como aquele que tem uma “alma feminina”,
uma “porção mulher”. Como se ele não pudesse manter-se viril e, ao mesmo tempo, acolhedor,
flexível e generoso. Creio que isso possa ser mudado. Embora eu não acredite nessa história de
novo homem; acho isso uma bobagem, um produto da mídia. Da caverna ao apartamento, o mundo
mudou, os homens também. A questão é saber para onde. As sociedades perderam a capacidade de
produzir adultos aptos a dar qualidade às democracias. É importante observar que esse macho foi
uma invenção social necessária a uma determinada sociedade, ele tinha uma função que independe
de um juízo moral. Hoje, ele não é mais necessário e em seu lugar colocaram uma outra invenção,
que é o homem feminino – no Canadá, ele é chamado de homem rosa. Foi a idéia de sociedade
bélica que associou masculinidade à violência. E esse conceito ainda está aí.
Istoé -

Por quê?
Sócrates Nolasco -
 A lógica de construção da masculinidade é diferente daquela sob a qual se produz a feminilidade.
Parafraseando Simone de Beauvoir, a literatura recente sobre o tema diz que não se nasce homem,
torna-se homem. Eu não encontrei essa mesma lógica nas sociedades que analisei. Isso é um
equívoco. As sociedades não tratam a masculinidade como um vir a ser indivíduo. É homem ou não.
As mães ficam preocupadas com a possibilidade de seus filhos se tornarem homossexuais. Sobre os
meninos há sempre vigilância: ele é homem ou não é homem? Com as meninas, não. Não se duvida
que uma menina vá se tornar mulher. Há uma certeza: ela será uma mulher. Poderá até se tornar
uma homossexual, mas, mesmo assim, sua feminilidade não será colocada à prova. Com os
meninos, não acontece o mesmo.
Istoé -

Por que De Tarzan a Homer Simpson? Um é o extremo do outro?


Sócrates Nolasco -
São duas referências que eu utilizei para ilustrar a banalização e a decadência da representação
social masculina. Tarzan foi criado por meio de vários outros mitos, de homens que vencem as
intempéries da natureza e se sobrepõem a elas. Enfim, é um amálgama de várias representações
masculinas fragmentadas. Mas Tarzan já começa como expressão da decadência deste século,
revelada pelo temor do desemprego, num contexto de violência, fertilidade baixa e um cotidiano
massacrante. Por outro lado, Homer Simpson é expressão de ineficiência, da inadequação e do
fracasso. Cada qual tem uma função distinta, ou seja, eles são funcionalmente diferentes.
Istoé -

Há como situar o homem brasileiro contemporâneo entre os dois?


Sócrates Nolasco -
 O homem brasileiro sofre influência de ambos. Há um apelo para que ele desempenhe o papel de
Tarzan, mas, ao mesmo tempo, são acusados de se comportar como Simpson. O homem
heterossexual está sem representação social positiva. O pai de família, o sujeito que pega o ônibus e
vai para o trabalho, aparece na mídia como Homer Simpson. O desempenho de Tarzan ficou restrito
a performances do Viagra e do anabolizante – recursos ineficazes para lidar com a depressão.
Istoé -

  Se o homem brasileiro é retratado como Simpson, então ele é um rei sem reinado, um herói
construído pelo esquecimento e pela negação?
Sócrates Nolasco -
Exatamente. Mesmo diante da depressão social, existia a lembrança do vigor, do desejo de ir além.
Simpson é expressão da conformidade, da impotência e da inércia. As sociedades ocidentais
prescindiram do investimento para criar novas formas de representação daquilo que faz com que um
homem se sinta homem. No final dos anos 90, encontramos a representação de um homem
banalizado. Homer Simpson é retrato deste feito. A história do Ocidente é assim: no passado,
demandou um homem violento, agressivo, corajoso, vigoroso, necessário à demarcação de
fronteiras e garantias do Estado. A história valorizou este homem, mas hoje ele não tem mais
função.
Istoé -

No campo da sexualidade também?


Sócrates Nolasco -
 Acho que sim. As tecnologias reprodutivas nos apontam para uma tendência quanto à questão da
reprodução humana. Ela acontece cada vez mais fora do corpo. As técnicas de reprodução in vitro, a
clonagem, as estratégias de mapeamento de DNA, enfim, há vários sinais de que isso pode
acontecer. Diante disso, qual será a função da sexualidade? Finalmente, ela ficará exclusivamente
restrita ao prazer, sem nenhuma implicação com a reprodução. Ou seja, ela deixará de ser regulada
pela relação homem/mulher como convencionalmente conhecemos. O homem, portanto, entra nesse
mundo como objeto de entretenimento. A sexualidade, tal e qual conhecemos tradicionalmente, não
tem mais sentido nesse mundo regulado pela tecnologia. Nem como força, vigor ou expressão da
natureza.
Istoé -

Essa violência masculina faz também com que a mulher morra menos do que o homem...
Sócrates Nolasco -
 Sim. Os homens morrem antes, em brigas, homicídios ou doenças cardiovasculares. Comecei o
livro pensando por que os homens se envolvem mais em situações de violência do que as mulheres.
Em diferentes bases de dados, o homem é causa e consequência dessa violência. Eu poderia fazer
uma reflexão dentro de um enfoque biológico, hormonal, mas percebi que a cultura disponibilizava
um recurso mais denso e desafiador para criar um argumento qualitativo sobre essas mortes.
Percebo que a violência emerge como uma tentativa de resolução de conflito na busca de
reconhecimento e visibilidade social. Para se sentirem homens, estes indivíduos acabam se
envolvendo em situações violentas. Elas são formas de resolução de um impasse existencial que
transcende a dimensão sexual.
Istoé -

E o homossexual, como ele aparece nas estatísticas oficiais?


Sócrates Nolasco -
 A violência entre os homossexuais é mais alta no grupo de lésbicas do que no de gays. Em alguns
grupos de homossexuais femininos existe uma radicalização do estereótipo de macho. Da mesma
forma, em alguns grupos de homossexuais masculinos, há uma radicalização da representação
feminina. Fala-se sobre a violência contra homossexuais. Ela existe, mas também encontrei
depoimentos de homens e mulheres que dizem que os homossexuais masculinos são hostis em
relação aos heterossexuais. Há uma tendência que busca rastrear uma determinada parcela de
homossexualidade escondida quando se trata de olhar um heterossexual. O inverso seria
interessante: permitiria olhar o homossexual como um heterossexual enrustido, “no armário.” A
aversão é um fato presente entre homens, quer sejam homos ou heteros.
Istoé -

Os homossexuais aparecem como agressivos, violentos?


Sócrates Nolasco -
 Existem poucos estudos sobre isso. Essa resposta só seria possível cruzando dados que não
entraram em minha pesquisa, como um tratamento específico de informações das áreas de saúde e
justiça. O que encontramos nas estatísticas, habitualmente, são homens e mulheres mortos.
Istoé -

A androginia pode ser o futuro?


Sócrates Nolasco -
Fala-se de androginia como algo novo, “moderno”. A androginia já foi, agora é o andróide, o
ciborgue, que se produz por meio de próteses, substituição de órgãos ou, ainda, de um corpo-robô.
O filme Matrix é uma boa metáfora do corpo-máquina.
Istoé -

A mulher, tentando ocupar espaço, acaba incorporando muitos “defeitos” masculinos. Em que vai
resultar isso?
Sócrates Nolasco -
Não é mais a idéia de masculinização da mulher, como se pensou na década de 80. Ou seja, ocupar
o lugar do homem não significa masculinizar-se. O maior impacto disso é que ela deixa de ter
referências de feminilidade. Fica sem identidade e é reduzida ao desempenho na cadeia de direitos:
ganhar mais dinheiro, ter mais poder, por exemplo. Perde a aspiração emocional que a diferencia do
homem.
Istoé -

Ela pode chegar ao mesmo grau de violência do homem?


Sócrates Nolasco -
Certamente. A radicalização das marcas masculinas leva à violência. Prova disso é a agressividade
entre homossexuais femininos.
Istoé -

Nesse processo, está embutido o que você chama de banalização da violência?


Sócrates Nolasco -
Sim. Ao banalizar, se autoriza que aconteça. Essa banalização se prestou para descaracterizar os
homens, ao mesmo tempo que serviu como projeto para diferentes segmentos. Ou seja, a sociedade
implodiu a feminilidade. A representação masculina se mantém presente como eixo orientador
através das aspirações de prestígio, poder, competição. Então, a sociedade se assumiu masculina.
Tudo o que dava colorido e diferenciação ficou pasteurizado. Onde é que foi parar a visibilidade
necessária à singularidade de cada indivíduo? 
http://www.istoe.com.br/assuntos/entrevista/detalhe/40095_A+VIOLENCIA+E+MASCULINA

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