Você está na página 1de 171

Jackson Willian Marques da Fonseca

A exaltação de Jesus em Filipenses 2,9-11


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Teologia da PUC-Rio, como requisito parcial para ob-
tenção do título de Mestre em Teologia. Aprovada pela co-
missão examinadora abaixo assinada.

Prof. Isidoro Mazzarolo

Rio de Janeiro
Novembro de 2016
Jackson Willian Marques da Fonseca

A exaltação de Jesus em Filipenses 2,9-11

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Teologia da PUC-Rio, como requisito parcial para ob-
tenção do título de Mestre em Teologia. Aprovada pela co-
missão examinadora abaixo assinada.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

Prof. Isidoro Mazzarolo


Orientador
Departamento de Teologia – PUC-Rio

Prof. Waldecir Gonzaga


Departamento de Teologia – PUC-Rio

Prof. Paulo Severino Da Silva Filho


Igreja Presbiteriana do Brasil

Profª. Monah Winograd


Coordenadora Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa
do Centro de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 2016.


Todos os direitos reservados. É proibida reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor
e do orientador.

Jackson Willian Marques da Fonseca


Cursou o Seminário Teológico Presbiteriano Rev. Ashbel
Green Simonton (2004) e o Centro de Pós-Graduação An-
drew Jumper (2010). Graduou-se em teologia pela Universi-
dade Presbiteriana Mackenzie (2012). É ministro da Igreja
Presbiteriana do Brasil (IPB). Leciona desde 2010 disciplinas
relacionadas à exegese do Novo Testamento no Seminário
Presbiteriano Simonton.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

Ficha Catalográfica

Fonseca, Jackson Willian Marques da

A exaltação de Jesus em Filipenses 2,9-11 / Jackson Willian Mar-


ques da Fonseca ; orientador: Isidoro Mazzarolo. – 2016.
171 f. ; 30 cm

Dissertação (mestrado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio


de Janeiro, Departamento de Teologia, 2016.
Inclui bibliografia

1. Teologia – Teses. 2. Exaltação de Jesus. 3. Filipenses 2,9-11.


4. Senhor. 5. Cristologia do Novo Testamento. 6. Hino cristológico. I.
Mazzarolo, Isidoro. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Ja-
neiro. Departamento de Teologia. III. Título.

CDD: 200
AGRADECIMENTOS
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

À minha mãe Aurelidia Marques da Fonseca e minha avó Lídia Vasconcelos, que
me incentivaram e me deram condições de estudar a Escritura como Palavra de
Deus.
À minha esposa Liz Mary da Silva Marques, companheira e amor de toda a minha
vida, sem a qual vitórias não seriam alcançadas, nem seriam celebradas.
Às minhas filhas Taissa da Silva Marques e Sarah da Silva Marques. A existência
de vocês traz alegria ao meu coração e um sorriso aos lábios.
À Igreja Presbiteriana do Brasil que me dá o privilégio de exercer o ministério de
ensinar a Palavra de Deus como pastor de ovelhas e professor de futuros pastores.
À Igreja Presbiteriana das Águas, comunidade onde o meu coração cristão tem sido
renovado e que me possibilita dedicar o tempo necessário ao estudo.
Ao meu orientador Professor Isidoro Mazzarolo pelo acompanhamento atencioso e
incentivo constantes, que me impulsionaram à realização deste trabalho.
A todo o Departamento de Pós-Graduação em Teologia da PUC-Rio, por toda a
estrutura acadêmica disponibilizada, e especialmente os seus professores, que com
excelência ofereceram preciosa contribuição a minha formação.
Ao Programa de bolsas de fomento CAPES/PROSUP, do ministério de educação,
que ofereceu as condições financeiras adequadas para o cumprimento de todas as
exigências do curso de mestrado.
E sobretudo, agradeço aquele que é soberano sobre todas as coisas, que me susten-
tou graciosamente em todas as circunstâncias, sendo o sentido último de toda e
qualquer realização.
Resumo

Fonseca, Jackson Willian Marques da; Mazzarolo, Isidoro (Orientador). A


exaltação de Jesus em Fl 2,9-11. Rio de Janeiro, 2016. p. 171. Dissertação
de Mestrado – Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro.

Filipenses 2,6-11 é texto fundamental na cristologia do cristianismo primi-


tivo e neotestamentária. Inserido na parênese da carta de Paulo aos Filipenses, a
passagem desenvolve uma narrativa cristológica que começa na preexistência,
passa pela encarnação e culmina na exaltação de Jesus. No contexto da carta funci-
ona como um chamado ético aos que estão “em Cristo” à obediência ao Senhor
exaltado. Literariamente o texto é um hino composto de duas partes: 2,6-8 e 2,9-11,
e a leitura proposta é ver nesta segunda seção o clímax do hino, que justamente trata
da exaltação de Jesus. O tema da exaltação é apresentado dentro de uma perspectiva
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

escatológica, pois o início do senhorio de Jesus é o cumprimento da esperança isra-


elita no triunfo de Deus, é a virada escatológica que traz o tempo de salvação. Atra-
vés da exaltação Deus compartilhou com seu Filho a soberania sobre o universo,
implicando que todos os seres precisam agora dobrar os joelhos diante de Jesus e
reconhecê-lo como Senhor. Aqueles que já fazem isso voluntariamente vivenciam
antecipadamente o que será a realidade escatológica final. Esse novo papel de Jesus
é descrito pelo título κύριος, que combinado com outros elementos do texto atribui
a ele contornos divinos e de igualdade com YHWH, além de uma oposição às ide-
ologias romanas. A exaltação de Jesus também está ligada com a revolução cristo-
lógica que aconteceu no culto cristão primitivo, quando os cristãos judeus adoraram
Jesus ao lado de Deus Pai, sem renunciar ao seu monoteísmo. O final do hino enfa-
tiza exatamente que a exaltação de Jesus foi conduzida por Deus e resulta em sua
própria glória.

Palavras-Chave
Exaltação de Jesus; Filipenses 2,9-11; Senhor; cristologia do Novo Testa-
mento; hino cristológico.
Abstract

Fonseca, Jackson Willian Marques; Mazzarolo, Isidoro (Orientador). The


Exaltation of Jesus in Phil 2:9-11. Rio de Janeiro, 2016. p. 171. Disserta-
ção de Mestrado – Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Ca-
tólica do Rio de Janeiro.

Philippians 2,6-11 is a fundamental text in the Christology of early Christi-


anity and the New Testament. Inserted in the parenesis of Paul's letter to the Philip-
pians, the passage develops a Christological narrative that begins in the preexist-
ence, passes through the incarnation and culminates in the exaltation of Jesus. In
the context of the letter functions as an ethical call to those who are "in Christ" in
obedience to the exalted Lord. Literarily, the text is a hymn composed of two parts:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

2,6-8 and 2,9-11; and the proposed reading is to see in this second section the climax
of the hymn, which precisely deals with the exaltation of Jesus. The theme of exal-
tation is displayed within an eschatological perspective, since the beginning of the
lordship of Jesus is the fulfillment of the Israelite hope in the triumph of God, it is
the eschatological turn that brings the fulfillment of salvation. Through exaltation,
God shared with His Son the sovereignty over the universe, implying that all beings
must now bend to his knees before Jesus and acknowledge him as Lord. Those who
already do so voluntarily experience in advance what will be the reality of the es-
chatological end. This new role of Jesus is described by the title κύριος, which com-
bined with the other elements of the text gives it contours to the divine and equality
with YHWH, in addition to opposition to Roman ideologies. The exaltation of Jesus
is also connected to the Christological revolution that happened in the worship of
the early Christian, when the Jewish Christians worshipped Jesus alongside God
the Father, without giving up their monotheism. The end of the hymn emphasizes
exactly that the exaltation of Jesus was led by God and results in his own glory.

Keywords
Exaltation of Jesus; Philippians 2,9-11; the Lord; Christology of the New
Testament; Christological hymn.
Sumário
1 Introdução 10
2 O texto, a carta e o contexto 17
2.1 A cidade de Filipos 17
2.2 Paulo e a igreja de Filipos 20
2.3 A carta aos Filipenses 26
2.3.1 Autoria e integridade da carta 26
2.3.2 Objetivo da carta 28
2.3.3 Estrutura da carta 29
2.4 Crítica Textual de Fl 2,9-11 30
2.5 Texto e tradução de Fl 2,9-11 32
2.6 Delimitação de Fl 2,9-11 32

3 Status Quaestionis da pesquisa a respeito de Fl 2,6-11 35


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

3.1 O início da pesquisa contemporânea 35


3.2 A pesquisa sobre o gênero e a estrutura de Fl 2,6-11 36
3.3 A pesquisa sobre autoria e origem de Fl 2,6-11 40
3.4 O pano de fundo de Fl 2,6-11 45
3.5 A função de Fl 2,6-11 na carta (interpretação ética e soteriológica) 48

4 A exaltação de Jesus e seu novo nome 59


4.1 Introdução do capítulo 59
4.2 O responsável pela exaltação de Jesus 61
4.3 A exaltação de Jesus e o sentido do verbo ὑπερυψόω 63
4.3.1 A exaltação no Antigo Oriente em geral e no judaísmo em particular 63
4.3.2 A exaltação no Novo Testamento 66
4.3.3 A exaltação de Jesus na literatura paulina 68
4.3.3.1 Linhas gerais da exaltação de Jesus na literatura paulina 68
4.3.3.2 A exaltação de Jesus como evento escatológico 71
4.3.4 A exaltação de Jesus em relação a sua preexistência 75
4.3.5 A exaltação de Jesus e a cultura romana de exaltação 82
4.4 A exaltação de Jesus e a doação de um novo nome 84
4.4.1 O verbo χαρίζομαι 84
4.4.2 O nome dado a Jesus 85
4.4.2.1 “Nome” no Antigo Testamento e no judaísmo 86
4.4.2.2 “Nome” no Novo Testamento 87
4.4.2.3 A identificação do nome dado a Jesus em Fl 2,9 88
4.5 Conclusão do capítulo 92

5 A reverência e a confissão ao Jesus exaltado 96


5.1 Introdução ao capítulo 96
5.2 Isaías 45,23 e a exaltação de Jesus 96
5.3 Ações feitas “em nome de Jesus” 100
5.4 Joelhos dobrados ao nome de Jesus 102
5.5 O alcance da reverência a Jesus: no céu, na Terra e debaixo da Terra 103
5.6 E toda língua confesse 106
5.7 O significado bíblico-teológico da reverência oferecida em Fl 2,10-11 108
5.7.1 Quem reverencia e quem é reverenciado 108
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

5.7.2 Quando é reverenciado 111


5.8 Fl 2,10-11 e a adoração a Jesus 117
5.9 Conclusão do capítulo 120

6 Jesus é Senhor para glória de Deus Pai 122


6.1 Introdução ao capítulo 122
6.2 A confissão “Jesus Cristo é Senhor” 122
6.2.1 A confissão “Jesus Cristo é Senhor” no Novo Testamento 123
6.2.2 A confissão “Jesus Cristo é Senhor” em Fl 2,11 128
6.3 O título κύριος atribuído a Jesus 129
6.3.1 Panorama da atribuição de κύριος Jesus no Novo Testamento 129
6.3.2 Panorama da história da pesquisa sobre o título κύριος 131
6.3.3 A importância teológica de confessar Jesus como Senhor 134
6.4 Para glória de Deus Pai 140
6.5 Monoteísmo cristológico 143
6.6 Conclusão do capítulo 148
7 Conclusão 149
8 Referências bibliográficas 162
ABREVIATURAS

BAGD - A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early


Christian Literature.
Cf – Conferir.
DENT – Diccionario Exegetico del Nuevo Testamento.
DITAT – Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento.
DLNTD - Dictionary of the Later New Testament its Developments.
DPL – Dicionário de Paulo e suas cartas.
DITNT – Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento.
IDB - The Interpreter’s Dictionary of the Bible.
NCBSJ – Novo Comentário Bíblico São Jerônimo.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

NDITEAT – Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo


Testamento
TDNT – Theological Dictionary of the New Testament.
1
Introdução

A pesquisa ora apresentada está situada dentro da ciência teológica no


campo da teologia bíblica do Novo Testamento, mais especificamente nas áreas
dos estudos da teologia paulina e do cristianismo primitivo. O objeto material é o
texto bíblico paulino de Filipenses 2,9-11 e o objeto formal a partir deste texto é o
tema da exaltação de Jesus. Ele aparece no texto pela utilização do verbo
u`peruyo/w e os conceitos relacionados a essa ação de Deus exaltar Jesus: um nome
que foi dado a ele; diante desse nome haverá uma reverência universal; há uma
confissão a ser feita, e tudo isso ocorre para glória de Deus Pai.
O objetivo do trabalho é apresentar uma compreensão exegética do texto,
salientando os aspectos literários, históricos e, principalmente, teológicos. Na
perspectiva literária busca-se através da crítica textual, análise semântica, sintáti-
ca, tradução, delimitação, análise das formas, análises linguísticas e análises reda-
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

cionais entender o significado do texto em si e na sua relação com a carta aos Fili-
penses. Na dimensão histórica a proposta é investigar o uso de toda a perícope de
Fl 2,6-11 como um hino no culto cristão primitivo anterior ou paralelo ao ministé-
rio de Paulo, avaliar o seu significado dentro do desenvolvimento do cristianismo
primitivo e a interação da sua mensagem com algumas cosmovisões contemporâ-
neas, como o judaísmo, o helenismo e a cultura romana. Teologicamente a inten-
ção é verificar como o texto descreve o tema central da exaltação de Jesus, e sua
inter-relação com outros tópicos teológicos também presentes na perícope e im-
portantes para a fé cristã, como o monoteísmo, a divindade de Jesus, a escatolo-
gia, o culto cristão e a atuação de poderes celestiais no mundo, para então extrair
as implicações dessa narrativa para a compreensão tanto da teologia paulina,
quanto da teologia do cristianismo primitivo.
Estes objetivos já indicam a relevância acadêmica do empreendimento,
mormente para a pesquisa teológica. Explicitando esta relevância, pode-se desta-
car, a princípio, a importância de investigar como Paulo e os primeiros cristãos
entenderam e articularam a sua fé na exaltação de Jesus. Em decorrência deste
tópico, a pesquisa contribuirá para a compreensão da elaboração cristológica ocor-
rida entre os primeiros cristãos no período entre as décadas de 30 e 60 do primeiro
século. O trabalho também será importante para sublinhar os contornos políticos e
11

sociológicos da fé professada pelos primeiros cristãos, especialmente para os ci-


dadãos de Filipos, destino da carta paulina estudada, tendo em vista a forte ligação
entre a cidade de Filipos e a capital do império romano. Outrossim, a própria aná-
lise exegética que será oferecida, estando os versículos 2,9-11 inseridos em uma
perícope central do corpus paulino, é outro indício do valor científico desta disser-
tação, oferecendo a outros um exemplo da metodologia exegética aplicada. E con-
siderando a enorme bibliografia associada à exegese desta passagem, o trabalho
contribuirá para informar o status atual da pesquisa acadêmica, apresentando as
principais discussões e soluções propostas.
Para alcançar os objetivos elencados acima foram usadas, a priori, as eta-
pas da metodologia histórico-crítica conforme apresentadas por Wegner, a saber:
crítica textual, tradução, análise literária (incluindo delimitação, avaliação da es-
trutura do texto, verificação do uso de fontes, sobretudo veterotestamentárias),
análise redacional dos contextos, análise das formas (a discussão sobre o gênero
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

literário do texto) e análise da história das tradições.1 Nem todas essas etapas apa-
recem explicitamente no decorrer do trabalho, constituindo-se o mesmo como
aquilo que Lima denomina “comentário exegético”, isto é, o resultado final da
exegese, que pressupõe diversas tarefas metodológicas.2 Não obstante, para me-
lhor estudar o texto escolhido, as etapas do método histórico-crítico serão com-
plementadas por outras metodologias. Aqui entrarão em consideração as análises
sincrônicas, com as perspectivas linguístico-sintática, semântica e pragmática, em
especial esta última, utilizada na discussão sobre Fl 2,10-11 no capítulo 4. Tam-
bém complementará a pesquisa a abordagem sociológica, aproveitando-se dos
estudos de J. H. Hellerman, a fim de verificar a interação entre a mensagem do
texto e a cultura romana predominante na cidade de Filipos. E ainda como com-

1
WEGNER, U., Exegese do Novo Testamento, passim.
2
LIMA, M. L. C., Exegese Bíblica: teoria e prática, p. 165-170.
12

plementação ao método histórico-crítico tradicional3 serão desenvolvidas no esco-


po do trabalho as análises de conteúdo e teológica como indicadas por Wegner,
identificando os conteúdos que a passagem quer ressaltar, suas interações, impli-
cações e avaliação teológica dos mesmos.
O conteúdo do trabalho foi distribuído em cinco etapas. A primeira tem
como objetivo responder ao que Fitzmyer chama de “perguntas inicias” na aplica-
ção do método histórico-crítico.4 Dessa forma, buscar-se-á aqui caracterizar os
destinatários da carta aos Filipenses, descrevendo histórica e sociologicamente a
cidade de Filipos e seus moradores, e pelo mesmo ângulo discorrer sobre a atua-
ção de Paulo naquele lugar e a sobre a comunidade cristã resultante da atuação do
apóstolo ali. Esta etapa também será o espaço para a discussão de questões intro-
dutórias relativas ao documento canônico Carta aos Filipenses: Quem escreveu?
Quando? Onde? Por que? A carta é um documento único ou é a compilação de
dois ou três documentos anteriores? Como se encontra atualmente no cânon do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

Novo Testamento, qual é a sua estrutura, como seu conteúdo está organizado? E,
finalmente, esta etapa que se constituirá no primeiro capítulo da dissertação, fará o
estabelecimento do texto a ser trabalhado, mediante a crítica textual, a tradução e
delimitação.
A segunda etapa da pesquisa se propõe ao status quaestionis da exegese da
passagem. Considerando que uma das teses defendidas neste trabalho é que a pe-
rícope de Fl 2,6-11 é uma narrativa teológica composta por duas partes e com dois
temas distintos, embora interligados, a saber: 2,6-8 a encarnação e humilhação do
filho de Deus e 2,9-11 a exaltação de Jesus, e considerando ainda que esta pesqui-
sa está delimitada no tema da exaltação de Jesus, a dissertação como um todo es-
3
Por “método histórico-crítico tradicional” entende-se as etapas apresentadas na apresentação do
método pelos seguintes autores: LIMA, M. L. C., Exegese Bíblica: teoria e prática, p. 75-76
(crítica textual, tradução, crítica literária, crítica da forma, crítica do gênero literário, crítica da
redação, crítica das tradições, comentário exegético); SCHNELLE, U., Introdução à Exegese do
Novo Testamento, p. 47-48 (crítica textual, análise textual, crítica literária e das fontes, história
das formas, história da tradição, história dos conceitos e motivos, comparação sociorreligiosa,
história da redação); FITZMYER, J. A., A Bíblia na Igreja, p.28-32 (perguntas introdutórias,
crítica textual, análise filológica, crítica das fontes, análise dos gêneros, crítica das tradições, críti-
ca da redação); SILVA, C. M. D., Metodologia de exegese bíblica, p. 11 passim, que defende
após a crítica textual e a delimitação a aplicação de técnicas sincrônicas, para então utilizar as
metodologias diacrônicas do método histórico-crítico, que apresenta como crítica literária, crítica
dos gêneros literários, crítica da tradição, crítica da redação). Em geral as etapas propostas para a
exegese diacrônica no Antigo Testamento são as mesmas para o Novo. Por exemplo, SIMIAN-
YOFRE, H. (coord.), Metodologia do Antigo Testamento, p. 73-108 informa o seguinte caminho
após a crítica textual: crítica da constituição do texto, crítica da redação e da composição, crítica
da transmissão, crítica da forma, crítica do gênero literário, crítica das tradições.
4
FITZMYER, J. A., A Bíblia na Igreja, p. 28.
13

tará, necessariamente, fixada na segunda parte da passagem. No entanto, como se


trata de apenas uma única perícope, as discussões introdutórias sempre dizem res-
peito ao conjunto integral de Fl 2,6-11.
Dessa forma a segunda etapa pretende mostrar que a exegese contemporâ-
nea de Fl 2,6-11 remonta ao estudo do texto por Ernst Lohmeyer em 1928. Quase
90 anos depois é possível constatar alguns tópicos centrais na literatura acadêmica
especializada. Primeiro, a discussão sobre o gênero e a estrutura da passagem.
Qual é o gênero literário específico desta perícope: hino, prosa exaltada, encômio
ou ainda um outro gênero? Em quantas partes o segmento deve ser dividido: duas,
três ou quatro estrofes? Quantos e quais versos devem ser colocados em cada es-
trofe? A estrutura do suposto hino original é diferente desta encontrada hoje na
carta aos Filipenses? O segundo tópico central na pesquisa deste texto está relaci-
onado à sua autoria e origem. A pergunta é se realmente o autor da carta aos Fili-
penses escreveu Fl 2,6-11 ou ele está citando uma composição cristã já existente
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

antes da carta? Ou ainda: será que Paulo está citando um texto composto por ele
mesmo em outra ocasião? Entre os tópicos centrais da pesquisa, em terceiro lugar
estão as questões que dizem respeito ao pano de fundo da passagem. O problema
é: quais são os conceitos religiosos que estão por trás de Fl 2,6-11? Esses concei-
tos vêm do helenismo religioso, do Antigo Testamento, do judaísmo ou do cristia-
nismo primitivo? Como eles influenciaram esta composição cristã e que tipo de
interações existem entre o texto e esses supostos conceitos? O quarto e último
tópico central considerado no segundo capítulo é acerca da função que este texto
desempenha na carta aos Filipenses. O impasse é o seguinte: na argumentação
que Paulo faz na carta, o trecho de Fl 2,6-11 funciona como um exemplo do tipo
de comportamento que ele espera dos seus leitores (interpretação ética) ou este
texto seria a descrição do evento escatológico que trouxe os leitores cristãos para
o espaço do senhorio de Jesus Cristo, e a exortação paulina seria para que estes
leitores vivessem em conformidade com esta realidade, isto é, em submissão ao
seu senhor e salvador (interpretação soteriológica)?
A terceira etapa da pesquisa ora apresentada vai adentrar na interpretação
do texto propriamente dito. O foco será a interpretação do versículo 2,9. As per-
guntas a serem respondidas são: Quem o texto apresenta como responsável pela
exaltação de Jesus e qual a importância disso? Como a exaltação era entendida no
Antigo Oriente, no judaísmo e nos escritos neotestamentário não paulinos? Como
14

a exaltação de Jesus aparece na teologia paulina e como ela está diretamente liga-
da à visão escatológica do apóstolo? Qual a relação entre a exaltação descrita em
2,9 e a preexistência de Cristo apresentada em 2,6? A exaltação é simples volta à
preexistência ou indica um estágio superior? Qual a relação entre a exaltação de
Jesus apresentada e a cultura romana de exaltação? Qual o significado teológico
da utilização do verbo χαρίζομαι na passagem? Qual foi o nome dado a Jesus na
sua exaltação e qual a importância disso? A resposta a todos esses questionamen-
tos vai demonstrar, em linhas gerais, que Deus Pai exaltou Jesus e o colocou como
Senhor de todo o universo, compartilhando com ele seu próprio nome e função, e
tudo isso foi interpretado por Paulo como a grande intervenção escatológica, atra-
vés da qual Deus trouxe o último e definitivo éon. A forma como tal mensagem
foi apresentada certamente colidiu com a cultura romana de exaltação, pois para
Paulo o que foi exaltado é o mesmo que voluntariamente se colocou na posição de
servo, se humilhou e foi morto na cruz.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

A quarta etapa da dissertação estudará os versículos 2,10-11, com exceção


do segmento ὅτι κύριος Ἰησοῦς Χριστὸς εἰς δόξαν θεοῦ πατρός, reservado ao pró-
ximo capítulo. Aqui trata-se da utilização de Is 45,23, a releitura cristológica e
escatológica feitas neste texto de Isaías, o sentido da expressão “em nome de Je-
sus” no período, e qual significado o autor pretende comunicar através das ações
de dobrar os joelhos e confessar. Entre outras questões, este capítulo pretende
responder: Quem é o destinatário da reverência indicada em 2,10-11 (Deus Pai ou
Jesus)? Quem o texto pressupõe que irá prestar essa reverência (todos os seres
humanos, toda a criação ou apenas seres e poderes cósmicos)? A Igreja está inclu-
ída ou não nessa reverência? Qual a dimensão temporal do texto: é algo que já
deve acontecer ou é a descrição de um evento futuro? Sobretudo esse capítulo será
importante para entrar na discussão da adoração a Jesus. Como, a partir de sua
visão escatológica, e por intermédio de uma releitura veterotestamentária, Paulo
inclui o Jesus exaltado como alvo da adoração que o ser humano deve oferecer.
Como ele apresenta a reverência e a confissão a Jesus Cristo como um aconteci-
mento futuro, de alcance cósmico, mas que simultaneamente desafia os ouvintes e
leitores da passagem. E como esse entendimento lança luz sobre a prática litúrgica
dos primeiros cristãos.
A quinta etapa do trabalho se debruça sobre a última parte do versículo
2,11, a saber: ὅτι κύριος Ἰησοῦς Χριστὸς εἰς δόξαν θεοῦ πατρός. Este trabalho
15

adotará como proposta de leitura de todo o conjunto de Fl 2,6-11 o conceito de


narrativa teológica, e neste modo de ver a passagem alcança o seu clímax neste
ponto, ou seja, na confissão do senhorio de Jesus. O drama soteriológico e escato-
lógico desenvolvido na passagem chega neste ponto respondendo às seguintes
perguntas: Quem é Jesus hoje? E, quem é Senhor hoje? Dessa forma, este quinto
capítulo começará estudando o significado da confissão “Jesus Cristo é Senhor”
no contexto geral do Novo Testamento e mais especificamente em Fl 2,11. Uma
atenção especial será dedicada ao título κύριος, primeiro identificando na literatu-
ra neotestamentária os diferentes estágios na aplicação do título a Jesus, perce-
bendo o que era atribuído a Jesus em cada momento. Em seguida apresentar-se-á
uma breve história da pesquisa sobre a relação entre a aplicação do título a Jesus e
sua utilização na Septuaginta e dentro do judaísmo, tanto anterior, quanto posteri-
or à Septuaginta. A conclusão da discussão sobre κύριος será a avaliação do signi-
ficado teológico desta designação cristológica, isto é: o que exatamente os primei-
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

ros cristãos estavam atribuindo a Jesus quando o chamaram de Senhor? Qual im-
pacto dessa atribuição na teologia, liturgia e práticas cristãs? Quais implicações
políticas e apologéticas estariam subentendidas, sobretudo frente à religiosidade
pagã e às ideologias romanas do culto ao imperador? Após essa discussão seguir-
se-á a análise da última expressão da perícope: para glória de Deus Pai. Entendida
como uma reivindicação ao monoteísmo, esta afirmação trará para o debate o
chamado monoteísmo cristológico, que procura responder como os primeiros cris-
tãos judeus puderam incluir Jesus no seu culto sem renunciar ao monoteísmo vete-
rotestamentário? E mais: os primeiros cristãos judeus acreditavam na divindade de
Jesus? Que tipo de argumentação esteve envolvida nesta construção teológica?
São questões essenciais que aproximaram a pesquisa de temas centrais da fé cris-
tã, como a divindade de Jesus e a doutrina da trindade.
Com esses cinco capítulos, lançando mão de extensa pesquisa bibliográfi-
ca, e tendo como principais referenciais teóricos para compreensão da passagem
Ernst Käsemann e Ralph P. Martin, acredita-se que esta dissertação oferecerá uma
exegese segura do texto de Filipenses 2,9-11, em conformidade com as metodolo-
gias exegéticas contemporâneas, que além de contribuir com a própria pesquisa
sobre estes versículos , trará luz para alguns tópicos da discussão exegética sobre
Fl 2,6-11 e sobre a cristologia neotestamentária, em particular a paulina. Por con-
seguinte, o trabalho oferecerá subsídios para a investigação da cristologia na teo-
16

logia dogmática e para articulação de ações pastorais bíblica e cristologicamente


embasadas. O resumo das principais conclusões a que se chegou na pesquisa será
apresentado na conclusão, seguida das referências bibliográficas utilizadas.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA
2
O texto, a carta e o contexto

Este capítulo tenciona estabelecer uma aproximação com o texto de Fl 2,9-


11 fazendo um olhar panorâmico dos seus contextos. Seguindo a lógica do maior
para o menor, serão apresentados a cidade de Filipos, a igreja que existia na
cidade de Filipos, a carta enviada aos cristãos dessa igreja e, finalmente, o texto de
Fl 2,9-11, objeto material da pesquisa. Esta parte introdutória será muito
importante para evitar que o texto seja estudado como se estivesse isolado no
tempo e no espaço, prevenindo assim argumentos anacrônicos e de frágil
sustentação literária.

2.1
A cidade de Filipos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

O texto a ser analisado faz parte da carta que o apóstolo Paulo escreveu
aos cristãos da cidade de Filipos, que em meados do século I d.C. era uma colônia
do Império Romano da província da Macedônia.
A história dessa cidade remonta ao ano 356 a. C., quando Filipe II rei da
Macedônia (o pai do famoso Alexandre, o Grande) toma a cidade de Crenides dos
Tracianos e faz do local uma homenagem a si mesmo: Filipos, a cidade de Filipe.5
Para o governante a cidade possuía uma imediata importância econômica e
militar, pois as minas de ouro da região o ajudariam a aparelhar seus exércitos e
financiar suas batalhas.6 Após quase duzentos anos de domínio macedônio,
Filipos passa para o controle romano em 168 a. C., quando o general romano
Emílius Paulus derrota o rei macedônico Perseu, e faz da Macedônia uma
província romana, dividida em quatro subprovíncias, uma das quais era o próprio

5
A fundação da cidade de Crenides ocorreu menos de cinco antes da ação de Filipe II e remonta a
um exilado ateniense chamado Calístrato que foi para a região com um grupo de colonizadores.
O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 3; MEEKS, Wayne., Os primeiros cristãos
urbanos, p. 107; BRUCE, F. F., Filipenses, p. 12.
6
HENDRIKSEN, William., Efésios e Filipenses, p. 355.
18

distrito da Macedônia no qual estava localizado Filipos.7 Em 148 a.C. a


Macedônia é feita uma província senatorial,8 mas a importância econômica da
cidade diminui devido à exaustão dos recursos minerais.9 A situação muda no
século I a. C. quando duas batalhas decisivas para a história do Império Romano
ocorrem próximas a Filipos. Em 42 a.C. as tropas lideradas por Brutus e Cássio
são derrotadas pelo exército de Antônio e Otaviano, pondo fim a era da República
Romana.10 A cidade é refundada por Antônio como Colonia Julia Filipense,11 e é
iniciada uma intensa colonização romana quando ele transfere para lá os veteranos
da sua vigésima oitava legião.12 Em 31 a.C., na mesma região, Antônio é
derrotado por Otaviano, surgindo assim o Império Romano propriamente dito,
posto que em 29 a.C. ele é proclamado Imperador e em 27 a. C. Augustus.13 Em
comemoração ao título a cidade de Filipos recebeu um novo nome: Vitoriosa
Colônia Augusto Júlia dos Filipenses.14 Otaviano intensificou a colonização
romana levando para Filipos outro grupo de soldados veteranos (das tropas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

derrotadas de Antônio), inclusive a coorte de pretorianos, junto com famílias


italianas que tiveram suas posses confiscadas por apoiarem Antônio.15
O status de colônia desde 42 a.C. trouxe ganhos significativos para a
cidade de Filipos. Ela possuía uma administração própria a cargo de magistrados e
oficiais.16 Os cidadãos eram considerados cidadãos romanos, como se em Roma
estivessem. Nos róis das tribos da cidade de Roma os cidadãos romanos de Filipos

7
Embora a capital desse distrito fosse Tessalônica, At 16,12 registra “Filipos, cidade principal
daquela região da Macedônia, e também colônia romana”. Cf. BRUCE, F. F., Filipenses, p. 12,
sugere que a melhor tradução para esse verso é: “ ‘Filipos, a primeira cidade dessa região da
Macedônia’ – isto é, o primeiro entre os quatro distritos em que a Macedônia fora dividida em 167
a.C.”.
8
Segundo OROFINO, Francisco., Filipos – “Colônia Agustus Iulia Victrix Philippensium”, p. 14-
15, e HENDRIKSEN, William., Efésios e Filipenses, p. 355, isto ocorreu em 146 a.C. As
províncias podiam ser imperatorias (como a Síria e a Galácia-Licaônia), quando eram governadas
por uma administração militar subordinada diretamente ao imperador (geralmente nas fronteiras ou
em cidades estratégicas), ou senatorais (como Chipre, Acaia e Macedônia), quando possuíam uma
administração civil razoavelmente independente e, ao mesmo tempo, estavam pacificadas a ponto
de não precisarem de um contingente militar fixo. Cf. REICKE, BO., História do Tempo do
Novo Testamento, p. 236-237 e KOESTER, Helmut., Introdução ao Novo Testamento, p. 328.
9
HENDRIKSEN, William., Efésios e Filipenses, p. 356.
10
OROFINO, Francisco., op. cit., p. 14.
11
A prática dos romanos de criarem colônias para garantir seus domínios remonta ao século IV a.
C., quando a própria Roma garantiu o domínio da Itália através da instalação de colônias. Cf.
OROFINO, Francisco., op. cit., p. 14-15.
12
MEEKS, Wayne, Os primeiros cristãos urbanos, p. 107.
13
Cf. OROFINO, Francisco., op. cit., p. 14-15.
14
Em latim: Colonia Julia Augusta Victrix Philippensium.
15
BRUCE, F. F., Filipenses, p. 12
16
O termos latinos respectivamente são duumviri e lictores, que em Atos 16,22 e 35 aparecem
traduzidos para o grego como στρατηγοὶ e ῥαβδοῦχος.
19

estavam inscritos na lista da tribo Voltinia.17 A colônia recebeu o direito ao Jus


Italicum, que proporcionava a sua população privilégios econômicos (isenção de
impostos sobre as Terras agricultáveis e o direito a negociar ou conservar estas
Terras), políticos (independência de receber interferência do governador da
província e possibilidade de regulamentar seus próprios assuntos cívicos) e
militares (proteção contra prisões arbitrárias e castigos corporais como flagelação
e crucificação).18 A importância do status de colônia e os efeitos sociais
decorrentes são bem expostos por W. Barclay:
Estas colônias tinham uma grande característica própria. Onde quer que existiam,
constituíam pequenos fragmentos de Roma, e a nota dominante era o orgulho de
sua cidadania romana. Se falava o idioma de Roma; se usavam vestimentas
romanas; se observavam costumes romanos; seus magistrados tinham títulos
romanos e observavam as mesmas cerimônias que em Roma. Onde quer que
estivessem, as colônias eram obrigatória e inalteravelmente romanas. Nunca lhe
ocorrera assimilar-se ao povo que lá vivia. Eram parte de Roma, miniatura da
cidade de Roma e jamais esqueciam disso.19

Este processo de colonização fez a população de Filipos ser


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

predominantemente romana, convivendo, no entanto, com antigos moradores


trácios e gregos, além de grupos de imigrantes vindos do Egito, da Anatólia e da
Palestina.20 Todos esses grupos formavam na metade do século I d.C. um
contingente populacional em torno de 10 mil moradores,21 sendo o latim o idioma
corrente, e o grego possivelmente utilizado nas transações comerciais.22 A parte
construída da cidade era pequena, não ultrapassando 1km2.23 A economia estava
baseada na agricultura e no comércio, este impulsionado pela Via Egnatia, uma
importante rota comercial que ligava Roma à parte oriental do império,
culminando na cidade de Bizâncio, futura Constantinopla, capital imperial no
século IV d.C.24 Os habitantes tinham bom nível de instrução, e usando categorias
atuais a cidade poderia ser classificada como de classe média alta.25 A realidade
religiosa da cidade no século I d. C. era de grande sincretismo. Existiam lado a

17
SCHNELLE, Udo., Paulo: vida e pensamento, p. 471; HELLERMAN, Joseph H., Vindicating
God’s Servants in Phillippi and in Philippians – The influence of Paul’s Ministry in Philippi
upon the Composition of Philippians 2:6-11, p.88. Este último afirma que quando uma colônia
romana era fundada, ela era identificada como uma das tribos romanas.
18
HENDRIKSEN, William., Efésios e Filipenses, p. 357-358;
19
BARCLAY, William., Filipenses, Colosenses, I y II Tesalonicenses, p. 10.
20
MEEKS, Wayne., Os primeiros cristãos urbanos, p. 108-109.
21
FOWL, Stephen E., Philippians, p. 12.
22
OROFINO, Francisco., Filipos – “Colônia Agustus Iulia Victrix Philippensium”. p. 15.
23
MEEKS, Wayne, op. cit., p. 109-110.
24
SCHNELLE, Udo, op. cit., p. 464; OROFINO, Francisco, op. cit., p. 16.
25
MAZZAROLO, I., Carta de Paulo aos Filipenses, p. 11.
20

lado o culto ao imperador e a adoração de divindades gregas, romanas, egípcias,


além de deuses locais.26 Segundo o relato de Atos 16, também haviam judeus e
prosélitos do judaísmo na cidade, embora em número reduzido. A existência de
uma sinagoga em Filipos só é atestada a partir do século III d.C.27 Quando o
apóstolo Paulo chegou na cidade, ela era, de fato, um centro urbano e político na
região.28

2.2
Paulo e a igreja de Filipos

A primeira visita de Paulo à cidade de Filipos ocorreu entre os anos de 48-


50 d.C. Ali o apóstolo fundou sua primeira comunidade em solo europeu. O livro
de Atos narra a passagem de Paulo pela cidade em 16,11-40. Embora a
fidedignidade histórica deste capítulo de Atos seja bastante discutida, seus dados
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

essenciais são considerados confiáveis e úteis para melhor compreensão do início


da igreja em Filipos.29 Nessa perspectiva, após alguns dias na cidade Paulo e seu
grupo de colaboradores missionários30 encontraram um lugar de oração

26
Segundo BARTH, Gerhard., A carta aos Filipenses, 1983. p. 5, escavações comprovaram a
existência de mais de 24 divindades diferentes cultuadas em Filipos.
27
SCHNELLE, Udo., Paulo: vida e pensamento, p. 465, nota 29.
28
FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 62.
29
Ibid., p. 173, “Embora a narrativa em At 16,16-22.23-40 esteja enfeitada com traços lendários,
seu cerne histórico é confirmado...”. Mais otimista é HELLERMAN, Joseph H., Vindicating
God’s Servants in Phillippi and in Philippians – The influence of Paul’s Ministry in Philippi
upon the Composition of Philippians 2:6-11, p.85-102, que vai construir toda uma interpretação
de Fl 2.6-11 baseado na narrativa de Atos 16,11-40. Um balanço atual sobre a importância de Atos
para a reconstrução da cronologia paulina é feito por EDO, Pablo M., Cronologías Paulinas: un
estado de la questión, p. 177-198. Segundo ele, tanto as informações das cartas quanto de Atos
devem ser avaliadas criticamente, mas a utilização do livro de Atos como fonte reduz de forma
significativa as suposições e elaborações criativas dos pesquisadores.
30
Considerando o relato de Atos, é provável que a visita de Paulo a Filipos tenha sido
acompanhada por Silas, Timóteo e Lucas. O primeiro partiu junto com o apóstolo nessa viagem
(At15,40). Logo a seguir Timóteo uniu-se aos dois (At 16,3). E é a partir de At 16,10 que a
narrativa de Atos passa para a primeira pessoa do plural, indicando que o narrador passou a
integrar os acontecimentos dali em diante. A tese predominante é que o autor de Atos é Lucas. Que
o cenário da visita a Filipos foi assim, admitem FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los
Filipenses, p. 64 e O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 6.
21

(προσευχή) junto ao rio Gangites, onde estavam reunidas algumas mulheres.31


Entre elas estava Lídia, uma gentia, vendedora de púrpura, temente a Deus, isto é,
simpatizante do judaísmo.32 Ela se converteu e foi batizada junto com a sua casa,
surgindo ali o núcleo inicial da igreja em Filipos. O início da igreja em uma
reunião de mulheres, na casa de uma mulher, mais as mulheres que aparecem
nomeadas na carta, indicam a predominância do elemento feminino naquela
igreja, inclusive em funções de liderança. Isto, na verdade, é o reflexo na igreja da
realidade social da região, pois na Macedônia as mulheres ocupavam um papel na
vida pública muito maior do que em outros lugares do mundo greco-romano da
época.33
Atos 16 também registra a conversão e o batismo de uma segunda família,
a do carcereiro que vigiava os missionários na prisão. Levando em conta a família
de Lídia e a família do carcereiro, mais os nomes indicados na carta aos Filipenses
(Epafrodito; Evódia; Sintique, Clemente) conclui-se que a igreja de Filipos era
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

constituída em sua maioria por membros gentios, pessoas de diversas origens e


segmentos sociais: asiáticos, gregos, romanos, judeus, mulheres com

31
O significado exato de προσευχή é discutido. De um lado, parece que o termo era utilizado
como sinônimo de sinagoga na literatura judaica helenística (FOWL, Stephen E., Philippians, p.
13, nota 20). Por outro, o fato de Lucas não mencionar nem a presença de homens na reunião, nem
a ocorrência de um culto formal com leitura da Lei, sendo um sábado, favorece a posição de que
ali seria apenas um lugar de reuniões informais de mulheres simpatizantes do judaísmo. Assim
HENDRIKSEN, William., Efésios e Filipenses, p. 360; MAZZAROLO, Isidoro., Carta de Paulo
aos Filipenses, p. 25, afirma que as “sinagogas nunca estavam fora da cidade”. BOCKMUEHL,
Markus., The Epistle to the Philippians, p. 9, reforça a tese observando que Lucas faz questão de
mencionar quando Paulo visitava uma sinagoga em uma cidade. Assim em Salamina (At 13,5);
Atioquia da Psidia (At 13,14), Icônio (At 14,1), Tessalônica (17,1), Beréia (At 17,10), Atenas (At
17,17) e Corinto (18,4.7). Segundo BRUCE, F. F., Filipenses, p.15, é possível que não houvesse
na cidade o quórum mínimo para o estabelecimento de uma sinagoga que era de 10 homens.
32
Lucas utiliza a expressão σεβομένη τὸν θεόν para descrever Lídia. Segundo BAGD, p. 746, a
expressão era utilizada para os gentios que aderiam ao “monoteísmo ético do Judaísmo” e
frequentavam a sinagoga, mas não tinham a obrigação de seguirem toda a lei judaica. Os homens,
por exemplo, não precisavam circuncidar-se. MEEKS, Wayne A., Os primeiros cristãos
urbanos, p. 89, nota 175, afirma que não há consenso sobre o uso técnico da expressão (nem
mesmo se era usado de forma técnica), mas ela pode indicar tanto esses “simpatizantes” do
judaísmo, quanto pode significar apenas “piedoso”, aplicado inclusive a prosélitos e judeus
nativos.
33
Nessa linha FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 63; MAZZAROLO,
Isidoro., Carta de Paulo aos Filipenses, p. 23-26 e HAWTHORNE, G. F. Filipenses, carta de, In:
DPC, p. 558.
22

independência financeira e poder econômico, comerciantes, romanos militares e


possíveis antigos colonizadores romanos.34
Os registros de Atos, Filipenses e 1Tessalonicensses confirmam que Paulo
foi forçado a sair da cidade debaixo de oposição e perseguição. A atmosfera de
hostilidade contra o cristianismo continuou ali, mesmo após a saída dos
missionários, só que então transferiu-se para a igreja, conforme se deduz da carta.
Antes de escrever a carta aos Filipenses, é possível que Paulo tenha visitado
pessoalmente a comunidade ao menos duas vezes, conforme 2Cor 8,1-5 e At 20,3-
6.35
Questão muito debatida é: onde estava o apóstolo quando escreveu a carta?
Seja qual for a resposta, deve atender as seguintes condições supostas no texto de
Filipenses: Paulo estava preso. Sua prisão é junto à guarda pretoriana e (1,13) e de
pessoas da τῆς Καίσαρος οἰκίας (4,22). Parece haver a possibilidade de o
julgamento terminar em morte (1,20 e 2,17), mas ao mesmo tempo Paulo nutre a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

expectativa de reencontrar os filipenses (1,25-26). De alguma forma esta prisão


contribuiu com a divulgação do evangelho na região (1,12-13). Além de Timóteo,
ele tinha poucas pessoas confiáveis ao seu lado (2,19-21), e enquanto ele estava
preso aconteceram algumas viagens (pelo menos quatro) entre Filipos e a esta
cidade.
Na pesquisa foram sugeridas quatro alternativas para atender essas
características. A primeira possibilidade é a cidade de Corinto. Em seu favor estão
a proximidade geográfica com Filipos, a existência de um procônsul na cidade e
toda oposição que o apóstolo enfrentou ali, inclusive com perigo de morte. No
entanto, não existe comprovação de um aprisionamento do apóstolo em Corinto e,
segundo At 18,1-2.18, Paulo contava com um razoável apoio nesta cidade,
especialmente de Priscila e Áquila, o que não corresponde ao lamento de ter

34
Barclay faz a interessante avalição do capítulo 16 de Atos para a formação da igreja de Filipos:
“Os três personagens são de diferentes nacionalidades. Lidia era uma asiática; não é necessário que
estejamos diante de um nome próprio, e sim simplesmente ante o qualificativo ‘a senhora da
cidade de Lídia’. A jovem escrava era grega. O carcereiro era cidadão romano. Todo o império
estava reunido na igreja cristã. Porém não estamos somente ante três diferentes nacionalidades, e
sim também ante três estratos muito diferentes da sociedade. Lídia era uma comerciante de
púrpura, uma das mercadorias mais caras do mundo antigo; ela era equivalente a um príncipe
mercador. A jovem escrava, ante a lei não era uma pessoa, mas sim uma ferramenta viva. O
carcereiro era um cidadão romano, um membro da forte classe média romana, que se ocupava dos
serviços civis. Nestes três estavam representados o mais alto, o mais baixo e o mediano da
sociedade. Não há outro capítulo da Bíblia que mostre tão bem o caráter universal da fé que Jesus
traz aos homens”. BARCLAY, William., Filipenses, Colosenses, I y II Tesalonicenses, p. 11.
35
MARTIN, Ralph., Filipenses, p. 22-23 e BARTH, Gerhard., A carta aos Filipenses. p. 7.
23

apenas Timóteo junto dele (2,19-21). A hipótese de Corinto é aquela que goza de
menor aceitação acadêmica.36
Uma segunda possibilidade que goza de maior adesão é a tese que
Filipenses foi escrita em Éfeso.37 Entre outros, esta alternativa é sustentada pelos
seguintes argumentos: a proximidade geográfica entre Éfeso e Filipos; a
informação de At 19,22 dando conta que Timóteo estava com Paulo em Éfeso e
de At 19,10.25-26 da intensa evangelização que ocorreu na cidade e arredores
quando Paulo esteve ali, e a possibilidade da expressão πραιτώριον (1,13) referir-
se a sede do procônsul na cidade.
São apresentados, todavia, três argumentos centrais contra Éfeso.
Primeiramente, como no caso de Corinto, inexiste comprovação para uma prisão
de Paulo em Éfeso (apesar de 2Cor 1,8-10; 6,5 e 11,23 indicarem que ele esteve
preso várias vezes). Na verdade, a questão não é apenas se ele esteve ou não preso
em Éfeso, mas atribuir a esta cidade um aprisionamento que atenda às
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

características supostas em Filipenses, isto é, de duração razoável; risco de ser


condenado à morte e ao mesmo tempo liberdade para pregar o evangelho. Em
segundo lugar, sendo a carta escrita de Éfeso, seria muito difícil explicar o motivo
pelo qual o apóstolo nem sequer menciona a coleta aos pobres de Jerusalém,
assunto que dominava as preocupações do apóstolo no período, conforme indicam
as cartas aos Coríntios. Ao contrário, Filipenses supõe que a coleta já tinha
terminado.38 E, finalmente, é preciso discutir a existência de um pretório na
cidade. O entendimento mais básico para a expressão πραιτώριον em 1,13 é o da
guarda pessoal do imperador, que ficava estabelecida em Roma, o que também
combina com a interpretação mais natural do termo τῆς Καίσαρος οἰκίας em
4,22.39 Porém, dentro da administração romana πραιτώριον servia como
designação de várias residências oficiais, a saber: a residência do general e de suas

36
HAWTHORNE, Gerald F., Philippians, p. 20; MARTIN, Ralph., Filipenses, p. 57-58. Eles
informam que o primeiro a postular Corinto como lugar de origem da carta aos Filipenses foi G. L.
Oeder, em 1731. Com exceção de Hawthorne e Martin, os demais autores pesquisados nem sequer
consideram Corinto como possibilidade.
37
KÜMMELL, Werner Georg., Introdução ao Novo Testamento, p. 429, que informa que Éfeso
foi proposta em 1897 por A. Deissmann. Em sentido contrário, HAWTHORNE, Gerald F.,
Philippians. p. 19, afirma que Deissmann seguiu proposta apresentada originalmente por H. Lisco
em 1900.
38
Os argumentos acima estão principalmente esboçados em HAWTHORNE, Gerald F.,
Philippians, p. 19-20 e HAWTHORNE, G. F., Filipenses, carta de. In: DPC, p. 560.
39
Assim FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 73-74; O’BRIEN, P. T., The
Epistle to the Philippians, p. 20-21.
24

tropas; residência dos governadores de províncias nas capitais e fora das capitais,
e palácio dos procuradores de província.40 A hipótese de que Paulo escreveu a
partir de Éfeso sustenta que o apóstolo usou a expressão πραιτώριον de forma
mais genérica, não se referindo necessariamente à casa do imperador, “mas à casa
onde estava o administrador romano, cheia de luxo, mordomias e guardas”.41 No
entanto, além de ser discutível que Paulo estivesse utilizando aqui uma linguagem
não específica,42 o argumento fundamental contra a hipótese efésia é a ausência de
qualquer comprovação histórica para a existência na cidade de um pretório ou de
uma guarda pretoriana.43 Éfeso era uma província senatorial e “não existe
exemplo, nos tempos imperiais, do emprego dessa expressão [πραιτώριον] para a
sede de um procônsul, o governador de uma província senatorial como era a da
Ásia [Éfeso], nessa época”.44
A terceira cidade postulada como lugar de onde Paulo escreveu Filipenses
é Cesaréia. A hipótese possui algumas vantagens em relação às anteriores, posto
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

que o livro de Atos menciona de forma explícita que Paulo esteve preso nessa
cidade por um período longo, e lá foi detido no πραιτώριον (At 23,31-35). A
coleta para Jerusalém já tinha sido efetuada. Seu desejo de visitar os Filipenses
novamente não contradiz sua intenção missionária de ir à Espanha, visto ele poder
passar por Filipos indo para Espanha. Ainda assim, esta hipótese possui
dificuldades. O quadro da prisão de Paulo em Cesaréia não coaduna com o risco
de morte suposto em Filipenses. Também não há indícios de uma presença cristã
na cidade que corresponda à realidade da carta, ou seja, tanto uma intensa
propagação do cristianismo, quanto divisões dentro da comunidade cristã. Além
disso, de todas as opções (Roma será discutida logo abaixo) Cesaréia é a cidade
mais distante de Filipos. Apesar do argumento geográfico não ser fundamental, é

40
MAZZAROLO, I., Carta aos Filipenses, p. 55.
41
MAZZAROLO, I., Carta aos Filipenses, p. 30. Adiante, nas páginas 55-56 ele afirma: “O
pretório, nesse contexto, precisa ser considerado no sentido genérico”.
42
Crítica levantada por FEE, G. D., Comentário de la Epístola a los Filipenses, p. 74.
43
FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 73-74. Nessa direção, O’BRIEN, P.
T., The Epistle to the Philippians, p. 22, argumenta que tropas militares não ficavam
estacionadas em províncias senatorias, porque eram governadas por civis. Em contrapartida,
BROWN, R., Introdução ao Novo Testamento, p.657, argumenta em favor de Éfeso como a
melhor opção usando a seguinte afirmativa inteiramente especulativa: “Éfeso era a cidade mais
importante da província romana da Ásia e sede do quartel-general proconsular, de modo que deve
ter havido uma importante presença romana ali, até mesmo um praitorion”.
44
BRUCE, F. F., Filipenses, p. 22. Não obstante, em favor de Éfeso, entre outros, estão
SCHLAEPFER, Carlos Frederico, Procurando alguns elementos sobre a redação da carta aos
Filipenses, p. 9-13; BARTH, Gerhard, A carta aos Filipenses, p. 7-8; GNILKA, Joachim.,
Epístola aos Filipenses, p. 9; VOUGA, François., A epístola aos Filipenses, p. 310-311.
25

um fator complicador para a proposta explicar as viagens e troca de informações


entre Paulo e a igreja de Filipos.45
A sugestão mais antiga para a proveniência da carta aos Filipenses é
Roma. Ela remonta ao século II d.C., aparecendo no prólogo marcionita e
posteriormente em outros manuscritos. Esta opção predominou sem
questionamentos até o século XVIII. O grande argumento em favor da capital do
império é que a descrição que Lucas faz em Atos 28 da prisão de Paulo lá
equivale aos pontos essenciais da carta aos Filipenses: facilmente explica os
termos πραιτώριον e τῆς Καίσαρος οἰκίας; o risco de morte vislumbrado por
Paulo é plausível, visto ela já ter apelado a César; a coleta para Jerusalém já tinha
sido concluída; Paulo está em uma cidade com a presença razoável de cristãos,
com os quais, porém, possui um relacionamento distanciado; a prisão foi longa e
ele possuía relativa liberdade para divulgar o evangelho (At 28,30-31). Contra
Roma, residem dois argumentos principais. De um lado, a distância até Filipos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

que dificultaria a intensa comunicação pressuposta na carta. Do outro, o desejo de


Paulo visitar novamente os filipenses vai contra os seus planos de atuar na
Espanha. Quanto à primeira questão, embora muita valorizada no passado, já não
goza de tanta aceitação entre os estudiosos. Considerando apenas uma viagem por
Terra, nas boas condições das estradas romanas, tem-se uma estimativa de 4
semanas. Inferindo-se da carta pelo menos 4 viagens entre Filipos e Roma, o
tempo total seria de 16 semanas, que no contexto de dois anos de aprisionamento
(At 28,30) é tempo suficiente. Sendo a viagem pelo mar, o tempo reduziria ainda
mais, para aproximadamente 2 semanas cada viagem, e tempo total de 8 semanas.
Em relação à suposta mudança de planos de Paulo, os anos na prisão de Cesareía e
em Roma podem ter feito o apóstolo alterar seus planos, não necessariamente
substituí-los, mas talvez postergá-los.46 De qualquer forma, o quadro de Filipenses
não indica que ele tenha desistido da Espanha. Por último, mas não menos
importante, há em favor de Roma um argumento relativo ao conteúdo.
Considerando o pensamento do apóstolo no conjunto das suas cartas, é possível
45
A hipótese de Cesaréia foi originalmente apresentada em 1779 por H. E. G. Paulus. Cf. BRUCE,
F. F., Filipenses. p. 22-23; MARTIN, Ralph P., Filipenses. p. 58-60; HAWTHORNE, G. F.,
Filipenses, carta aos. In: DPC, p. 560-561. Este último é a favor da cidade de Cesaréia como lugar
de origem para a carta.
46
Ao final da prisão de Roma, quando provavelmente escreveu Filipenses, já tinham se passado
mais de quatro anos de aprisionamento do apóstolo (somando-se Cesaréia e Roma) e quase 10
anos da redação da carta aos Romanos (situada em meados na década de 50), onde Paulo registrou
seus planos de fazer missão na Espanha (Rm 16,22-23.28).
26

enxergar em Filipenses um desenvolvimento em relação às grandes cartas


anteriores (Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas e 1Tessalonicenses), acompanhado
por um progresso da situação eclesiástica indo na direção das cartas pastorais, e
ainda o amadurecimento no apóstolo de uma “consciência de mártir” (1,23 e
2,17).47 Diante do exposto, a solução para o local de origem da carta aos
Filipenses continuará no campo das hipóteses, mas é plausível afirmar que
daquelas apresentadas acima, Roma é a que possui maior probabilidade, por
reunir e explicar uma maior quantidade de informações presentes na carta. Sendo
Roma o local de proveniência, a data para a publicação seria entre os anos 61 e 62
d.C., no final do seu cativeiro na capital.48

2.3
A carta aos Filipenses
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

2.3.1
Autoria e Integridade

Na atual avaliação do corpus paulino Filipenses é indiscutivelmente


considerada uma carta autêntica.49 Na história da pesquisa não se estabeleceu
nenhuma tese que negasse a autoria paulina de Filipenses. O consenso nos estudos
paulinos contemporâneos é em favor de Paulo como genuíno autor da carta.50
Situação oposta é a avaliação da integridade da carta. Uma série de
observações levantam suspeitas se a carta aos Filipenses circulou desde o início
como ela se apresenta hoje no corpus paulino, isto é, se desde o início ela era um
escrito único que ia de 1,1 até 4,23. As principais questões levantadas são: A) A
redação de 3,1 (com a utilização do termo λοιπός) parece encaminhar de maneira

47
Argumento de SCHNELLE, Udo. Paulo: Vida e pensamento. p. 467-472.
48
Para os argumentos acima e em favor de Roma estão, entre outros, SCHNELLE, Udo. Paulo:
Vida e pensamento. p. 465-469; HENDRIKSEN, William. Efésios e Filipenses. p. 376-387;
BOCKMUEHL, Marcus. The Epistle to the Philippians. p. 30-32; FOWL, Stephen E.
Philippians. p. 9; FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 72-76; O’BRIEN,
P. T., The Epistle to the Philippians, p. 19-26
49
De acordo com VOUGA, François., A literatura paulina, p. 186, ela é uma das sete que
pertencem ao conjunto das protopaulinas. Ao lado deste seguem-se mais dois conjuntos: as
deuteropaulinas e as tritopaulinas.
50
HAWTHORNE, G. F. Filipenses, carta aos. In: DPC, p. 558. Segundo ele, a tentativa mais
famosa de negar a autoria paulina da carta foi feita, sem sucesso, por Ferdinand Christian Baur.
27

natural para à conclusão da carta. Entretanto, ao invés disso Paulo inicia uma
áspera repreensão contra adversários.51 B) O trecho de 4,10-20 deve preceder 1,1-
3,1, como gratidão de Paulo pelo donativo enviado pela igreja através de
Epafrodito.52 C) O trecho de 3,2-4,3 não faz menção da situação de
aprisionamento de Paulo, que é a situação pressuposta para 1,1-3,1.53 D) A
diferença de tom com que Paulo trata os adversários na primeira parte (1,15-18)
em relação à seção iniciada em 3,2. Mais do que indicar adversários diferentes,
essa mudança pode refletir dois momentos distintos na vida de Paulo, duas
maneiras distintas de o apóstolo encarar seus adversários.54 E) Uma série de frases
conclusivas em 4,7-9 e 4,19-20.55 Os estudiosos partidários da hipótese de
Filipenses como uma compilação de várias cartas combinam todos esses
elementos acima e ainda outros, e propõem que a carta atual é resultado da união
de duas ou três cartas menores. A delimitação do conteúdo exato de cada uma
dessas supostas cartas varia, resultando em pelo menos seis arranjos diferentes de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

conteúdo.56
No entanto, são mais consistentes os argumentos em favor da unidade da
carta.57 Em primeiro lugar, não há nenhuma evidência manuscrita de que algum
dia a carta aos Filipenses circulou de forma diferente como ela hoje existe no
Novo Testamento. Em segundo lugar, existe uma série de correlações
morfológicas e conceituais entre as diversas seções da carta, inclusive entre 1,1-
3,1 e 3,2-4,9. O próprio texto de Fl 2,6-11 ecoa em 3,7-11 e 3,20-21. Em terceiro
lugar, as teorias de montagem levantam mais perguntas que respondem,
acumulando conjecturas em cima de conjecturas, como, por exemplo, quando se
tenta responder qual a intenção teve o editor final ao juntar desta forma as
supostas cartas avulsas. Em quarto lugar, “a Antiguidade, que conhecia bem o
gênero literário da coleção de cartas ou da correspondência editada e vendida

51
BOCKMUELH, Marcus, op. cit., p. 21.
52
BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians., p. 21.
53
Idem.
54
BRUCE, F. F. Filipenses. p. 27-29.
55
BOCKMUELH, Marcus, op. cit., p. 21; VOUGA, François., A epístola aos Filipenses, p. 300-
303.
56
VOUGA, François, op. cit., p. 300-303, vai apresentar os seis esquemas de organização, três
relativos à existência de duas cartas e três para existência de três cartas. O único consenso nessa
visão é que 1,1-3,1 forma uma unidade.
57
Para os argumentos que seguem em favor da unidade da carta cf. HAWTHORNE, G. F.
Filipenses, carta aos, In: DPC, p. 558-559; BRUCE, F. F. Filipenses. p. 26-30; MARTIN, Ralph
P. Filipenses. p. 23-35; MAZZAROLO, Isidoro. Carta de Paulo aos Filipenses. p. 18-20;
BOCKMUELH, Marcus, op. cit., p. 20-25; VOUGA, François, op. cit., p. 302-303.
28

como livro, não oferece nenhum exemplo de cartas ou de fragmentos epistolares


combinados ou re-redigidos sob forma de carta”.58 Em quinto lugar, é possível (e
provavelmente mais fácil) compreender o fluxo de pensamento da carta como uma
unidade.59

2.3.2
Objetivo da carta

Quanto ao objetivo da carta, a razão principal para o envio desta carta está
no âmbito do relacionamento entre Paulo e a Igreja de Filipos, que era do mais
alto nível. Nesse sentido, pode-se dizer que Filipenses é uma carta de amizade.60
Paulo escreve para agradecer à comunidade as ofertas enviadas; recomendar a
recepção de Epafrodito que está retornando, anunciar o envio de Timóteo e contar
sobre as circunstâncias atuais do apóstolo preso.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

Não obstante, o apóstolo aproveita a oportunidade para orientar a


comunidade diante dos sérios desafios que ela tem enfrentado. Se de um lado a
igreja não estava passando por uma séria crise teológica,61 do outro ela estava
ameaçada por diversos adversários. A caraterização exata desses adversários é
objeto de discussão. Eles podem ser encontrados em 1,15-18; 1,28; 3,2 e 3,18. O
grande problema é a chamada “leitura através do espelho”, isto é, reconstruir
grupos e ideias com base tão somente nos argumentos contrários oferecidos não
sistematicamente por Paulo.62 Dessa forma, uma proposta cautelosa é a
identificação de dois grupos de adversários por trás da argumentação de paulina
em Filipenses.63 O primeiro grupo apresentado em 1,15-18 seriam cristãos que
estavam atuando na cidade em que Paulo estava preso, e que apesar de pregarem
Cristo, faziam oposição a Paulo, afirmando que os sofrimentos dele eram

58
VOUGA, François., A epístola aos Filipenses, p. 302.
59
Ainda sim, BARTH, Gerhard. A carta aos Filipenses. p. 9-10 e SCHLAEPFER, Carlos
Frederico. Procurando alguns elementos sobre a redação da carta aos Filipenses. p. 11-12,
favorecem a hipótese que Filipenses é uma composição de três cartas de Paulo.
60
MAZZAROLO, Isidoro. Carta de Paulo aos Filipenses. p. 12. SCHNELLE, Udo. Paulo: vida
e pensamento. p. 469, afirma que “Paulo sentia-se tão ligado aos filipenses como a nenhuma outra
comunidade”.
61
FOWL, Stephen E. Philippians. p. 11.
62
Ibidem, p. 11-12.
63
Segue-se aqui a explicação apresentada por HAWHTHORNE, G. F., Philippians, p. 24-27 e
HAWTHORNE, G. F., Filipenses, carta aos, In: DPC, p. 561-562.
29

evidências de sua fraqueza como líder. Ao que parece, a divergência de Paulo com
eles era de natureza mais pessoal do que teológica:
É verdade que alguns anunciam o Cristo [τὸν Χριστὸν κηρύσσουσιν] por inveja e
porfia, e outros por boa vontade: estes por amor proclamam a Cristo [τὸν Χριστὸν
καταγγέλλουσιν], sabendo que fui posto para defesa do evangelho, e aqueles por
rivalidade, não sinceramente, julgando com isso acrescentar sofrimentos às minhas
prisões. Mas que importa? De qualquer maneira – ou com segundas intenções ou
sinceramente – Cristo é proclamado [τὸν Χριστὸν καταγγέλλουσιν] e com isto me
regozijo. (1,15-18)64

A partir de 3,2 Paulo tem em vista outro tipo de adversários. Ao contrário dos
primeiros, estes não são cristãos. Eles confiam na carne, exigem a circuncisão e
outros rituais judaicos, e com uma escatologia realizada prometem a possibilidade
de se alcançar a perfeição nesta vida e desde já experimentar as dádivas do mundo
porvir. Menosprezam o sofrimento, e consequentemente a figura e a pregação de
Paulo. Enfim, são τοὺς ἐχθροὺς τοῦ σταυροῦ τοῦ Χριστοῦ. Eles podem ser
qualificados como missionários judeus que representavam para os filipenses uma
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

ameaça real proveniente do ambiente exterior à igreja, mas que não


necessariamente já estavam atuando junto à igreja.

2.3.3
Estrutura da carta

Existem diversas propostas de arranjo do conteúdo da carta, e muitas são


plausíveis. Este trabalho, no entanto, oferece como contribuição à pesquisa a
possibilidade de compreender o conteúdo da carta aos Filipenses estruturado em
seções paralelas que se correspondem, como pode ser visualizado abaixo.

64
A tradução citada é de A Bíblia de Jerusalém, nova edição, revista e ampliada. As demais
citações bíblicas do trabalho serão extraídas dessa tradução, salvo outra indicação.
30

A - Saudação – 1,1-2
B - Ação de graças – 1,3-11
C - Situação e planos de Paulo: 1,12-26
D - Exortação: 1,27-2,17
C’ - Situação e planos de Paulo: 2,19-30
D’ - Exortação: 3,1-4,9
B’ Ação de Graças – 4,10-20
A’ Saudação – 4,21-23

2.4
Crítica Textual de Fl 2,9-11

Estes três versículos não apresentam nenhuma séria dificuldade crítico-


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

textual, mas é pertinente a consideração das variantes existentes, a fim de detectar


já na própria tradição manuscrita tendências na interpretação do texto.

Versículo 9b: καὶ ἐχαρίσατο αὐτῷ τὸ ὄνομα τὸ ὑπὲρ πᾶν ὄνομα


O artigo τὸ que acompanha ὄνομα é omitido nos unciais D, F, G, K, L, P,
Y, 075 e 0278; nos cursivos 81, 104, 365, 630, 1175, 1241, 1505, 1881 e 2464;
nos manuscritos que pertencem ao texto Bizantino (M) e ainda em Clemente
conforme Teódoto. Apoiam o texto sem a omissão o papiro P46, os unciais a, A,
B, C, os cursivos 33, 629, 1175, 1739. Segundo Metzger, com a omissão do artigo
o texto estaria afirmando “que Jesus recebeu um nome não especificado, que
depois é definido com aquele nome que está acima de todo nome”.65 O mesmo
autor explica que a omissão pode ter surgido quando um copista se confundiu com
o final do verbo ἐχαρίσατο. Outra possibilidade, é que os copistas interpretaram
que Paulo não estivesse referindo-se a um nome específico (um título como se
verá adiante na pesquisa), mas à noção de reputação, fama e honra,66 isto é: Deus
deu a Jesus a honra acima de todas as honras. E embora a evidência externa apoie

65
METZGER, Bruce M., Un Comentario Textual Al Nuevo Testamento Griego, p. 542. O
mesmo comentário encontra-se em OMANSON, Roger., Variantes textuais do Novo
Testamento, p. 414.
66
FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 287; HELLERMAN, J. H.,
Philippians, p. 120.
31

a autenticidade do artigo,67 esta última intepretação é bastante plausível no


contexto.

Versículo 11a: καὶ πᾶσα γλῶσσα ἐξομολογήσηται


O verbo ἐξομολογήσηται (verbo subjuntivo aoristo médio 3ª p. singular de
ἐξομολογέω) é substituído por ἐξομολογήσεται (verbo no futuro do indicativo
ativo 3ª p. singular) nos unciais A, C, D, F*, G, K, L, P, YVID, 075 e 0278; nos
cursivos 6, 33, 81, 104, 365, 630*, 1175, 1241, 1505, 1739, 1881, 2464, muitos
outros manuscritos pertencentes ao texto majoritário, e em uma leitura alternativa
presente em Irineu (Irv.l.). Apoiam o texto sem a substituição o papiro P46, os
unciais a, B, Fc; os cursivos 323, 630c, 2495, muitos manuscritos pertencentes ao
texto majoritário, Irineu, Clemente conforme Teódoto e Clemente de Alexandria.
Do ponto de vista da tradução o que está em questão seria a troca do subjuntivo
para o futuro. Com o subjuntivo a tradução está: “para toda língua confessar
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

que...”. Com o futuro ficaria: “e toda língua confessará que...”. Omanson oferece
explicações para as duas mudanças, isto é, se original fosse futuro, os copistas
teriam alterado para o subjuntivo para concordar com o verbo κάμψῃ do versículo
10, que está no subjuntivo. Se a forma original foi o subjuntivo, a alteração dos
copistas tinha como objetivo concordar com o termo ὀμεῖται (jurará), que aparece
em alguns manuscritos da LXX em Isaías 45,23. Nesse caso, a evidência externa
(seguindo o texto Alexandrino) favorece a manutenção do texto com o subjuntivo.
Por outro lado, parece que a divisão dos manuscritos aponta para o que a exegese
do texto vai confirmar, isto é, que na passagem o verbo em questão tanto tem uma
aplicação presente, desafiando ouvintes e leitores a confessarem Jesus como
Senhor, quanto uma dimensão futura, proclamando o que será realidade
escatológica final, quando todos os seres se submeterão a Jesus.

Versículo 11b: ὅτι κύριος Ἰησοῦς Χριστὸς


Ainda neste versículo, os unciais A, F e G; o cursivo 1505 e alguns poucos
divergentes do texto majoritário; os manuscritos da antiga versão latina b e g; um
manuscrito da Vulgata e um da versão Saídica, e uma das citações de Fl 2,11 na

67
FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 287; HELLERMAN, J. H.,
Philippians, p. 120.
32

tradução latina de Orígenes omite o termo Χριστὸς.68 Assim o texto seria lido:
“que Jesus é Senhor”. No entanto, é possível explicar a omissão como uma
tentativa de harmonização com o versículo 10. A qualidade dos testemunhos
externos e a presença comum da designação Ἰησοῦς Χριστὸς em Paulo (só
considerando as fórmulas de benção nas saudações e despedidas, a expressão
aparece em todo corpus paulino, com exceção de Colossenses e Tito) favorecem a
manutenção do texto como está. Exegeticamente, a omissão da expressão pode
testemunhar a desvalorização do termo Χριστὸς como título que explica a pessoa
e obra de Jesus. É por isso, então, que a exegese deve-se perguntar pela utilização
da expressão no texto.

2.5
Texto e tradução de Fl 2,9-11
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

9
διὸ καὶ ὁ θεὸς αὐτὸν ὑπερύψωσεν καὶ ἐχαρίσατο αὐτῷ τὸ ὄνομα τὸ ὑπὲρ
10
πᾶν ὄνομα, ἵνα ἐν τῷ ὀνόματι Ἰησοῦ πᾶν γόνυ κάμψῃ ἐπουρανίων καὶ
ἐπιγείων καὶ καταχθονίων 11καὶ πᾶσα γλῶσσα ἐξομολογήσηται ὅτι κύριος
Ἰησοῦς Χριστὸς εἰς δόξαν θεοῦ πατρός.69

9
E por isso, Deus o exaltou sobremaneira e o agraciou com o nome acima
10
de todo o nome, a fim de que todo o joelho se dobre ao nome de Jesus,
11
no céu, na Terra e debaixo da Terra, e toda língua confesse que 'Jesus
Cristo é Senhor', para glória de Deus Pai.

2.6
Delimitação

A delimitação do objeto material será realizada aqui em dois momentos.


Primeiro a distinção dos versículos 6 a 11 do seu contexto literário, e depois, o
estabelecimento dos versículos 9 a 11 como uma seção específica do texto de 2,6-
11.

68
Existe ainda a atestação única feita pelo uncial K da leitura Χριστὸς κύριος.
69
Texto grego conforme NESTLE-ALAND, Novum Testamentum Graece, 28ª edição.
33

A delimitação de 2,6-11 pode ser evidenciada por diversos argumentos.


Antes de tudo, existe a diferença em relação ao contexto anterior. De 1,27 a 2,4
Paulo está trabalhando a parênese, ou seja, apresentando exortações à igreja,
sobretudo no que tange à sua unidade. Veja-se os imperativos: πολιτεύεσθε
(1,27); πληρώσατέ (2,2); φρονεῖτε (2,5), além de orientações do tipo: “não façam
isso, mas façam aquilo” (2,3-4). Justamente o versículo 2,5 faz a transição,
mantendo-se, no entanto, na parênese.
Nos versículos de 6 a 11 não se encontram mais exortações, e sim a
descrição de eventos relacionados à pessoa de Jesus. Passa-se da 2ª pessoa para a
3ª. E no contexto posterior, a partir de 2,12, Paulo retoma o estilo parenético
anterior. Voltam os verbos no imperativo e na 2ª pessoa, como o importante
κατεργάζεσθε.
Há ainda considerações linguísticas e literárias indicando que esta
passagem foi construída em estilo poético e não de prosa, distinguindo-se do seu
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

contexto na carta. É possível inclusive que ela tenha tido uma existência anterior
independente da própria carta. Porém, como essa discussão é complexa, e ao
mesmo tempo muito importante para a compreensão de Fl 2,6-11, o assunto será
discutido em capítulo à parte.
Quanto à delimitação dos versículos 9 a 11 em relação ao texto de 2,6-11,
a primeira consideração é a mudança de tema. Do versículo 6 a 8 o texto descreve
o caminho do Filho de Deus da existência na forma de Deus até a morte na cruz,
passando pelo seu esvaziamento, sua humanidade, e sua humilhação. Os
versículos 9 a 11 descrevem Deus o exaltando, dando-lhe um nome especial,
joelhos se dobrando diante dele e toda língua confessando-o. Ou seja, a primeira
parte do texto gira em torno do eixo existência na forma de Deus - esvaziamento -
encarnação – cruz, enquanto que a segunda parte segue a temática da exaltação –
adoração – confissão – glória de Deus. Outra consideração importante é que na
primeira parte Jesus é o sujeito de todos os verbos: são três verbos no indicativo e
cinco no particípio nominativo, todos referindo-se a Jesus. A partir do versículo 9
Deus passa a ser o sujeito e Jesus o objeto. São dois verbos no indicativo tendo
Deus como sujeito e Jesus como objeto. E há dois verbos no subjuntivo que estão
sintaticamente subordinados aos verbos que tem Deus como sujeito. E também ali
Jesus continua sendo o objeto.
34

Portanto, Filipenses 2.6-11 forma uma unidade textual na qual é possível


distinguir duas seções: 2,6-8 e 2,9-11. Esta pesquisa pretende trabalhar apenas
sobre esta última parte.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA
3
Status Quaestionis da Pesquisa a respeito de Fl 2,6-11

3.1
O início da pesquisa contemporânea

O grande impulso para a pesquisa acadêmica de Fl 2,6-11 foi dado em 1928,


quando Ernst Lohmeyer apresentou sua análise da passagem na obra que se tornaria
clássica para a exegese da perícope: Kyrios Jesus: Eine Untersuchung zu Phil. 2,5-
11.70 Segundo Martin, o caráter poético da passagem já tinha sido reconhecido antes
por Johannes Weiss em um artigo de 1899, argumento que foi confirmado por A.
Deissmann em 1925.71 Contudo, para Martin o grande mérito de Lohmeyer foi
detalhar essas características poéticas, percebendo-a como uma composição
litúrgica, especificamente um hino, composto por seis estrofes, cada qual com três
linhas, e apresentando uma sólida argumentação em favor dessa estrutura.72 A partir
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

de então, afirmar que Fl 2,6-11 é um hino cristológico citado por Paulo no contexto
da carta aos Filipenses tornou-se lugar comum nos estudos do Novo Testamento.73
A proliferação de textos acadêmicos sobre a passagem foi enorme, discutindo-a por
diversos ângulos, a tal ponto de se afirmar que Fl 2,6-11 “é uma das mais exaltadas,
uma das mais amadas, e uma das mais discutidas e debatidas passagens no corpus
Paulino”.74 A quantidade de literatura especializada relacionada à passagem
evidencia que a mesma é a mais importante da carta aos Filipenses.75 Abaixo será
apresentado o desenvolvimento da interpretação acadêmica sobre o texto, segundo
os principais tópicos de discussão: gênero literário, estrutura, autoria, origem, pano
de fundo e função na carta.

70
BROWN, C., Ernst Lohmeyer’s Kyrios Jesus, p. 6 e 31. Dois anos depois Lohmeyer reproduziu
os resultados do estudo na publicação do seu comentário da carta aos Filipenses.
71
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 24.
72
Ibid., p. 28-29. Escrevendo em 1965 Martin afirma que até então ninguém tinha conseguido
reverter a avaliação de Lohmeyer que o texto é um hino, e os poucos questionamentos não afetaram
o consenso na comunidade exegética.
73
Parece que o primeiro a designar a passagem como um “hino cristológico” foi H. Lietzmann em
uma publicação de 1954, conforme FITZMYER, J. A., The Aramaic Background of Philippians
2:6-11, p. 471, nota 2.
74
FEE, G. D., Philippians 2:5-11: Hymn or Exalted Pauline Prose?, p. 29.
75
BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 115. HELLERMANN, J. H. Vindicating
God’s Servants in Philippi and in Philippians, p.85, vai além, e afirma que Fl 2,6-11 é o texto que
mais atrai atenção erudita no corpus Paulino.
36

3.2
A pesquisa sobre o Gênero e Estrutura de Fl 2,6-11

A importância do estudo de Lohmeyer faz dele o ponto de partida para esta


discussão. Conforme mencionado, ele qualificou a passagem como um hino
composto de duas partes (vs. 6-8 e 9-11), cada parte com três estrofes, e cada estrofe
com três linhas, sendo a expressão “θανάτου δὲ σταυρου” omitida da parte três, por
ser considerada um acréscimo paulino ao hino original. O resultado é a seguinte
estrutura:
I ὃς ἐν μορφῇ θεοῦ ὑπάρχων
οὐχ ἁρπαγμὸν ἡγήσατο
τὸ εἶναι ἴσα θεῷ,

II ἀλλὰ ἑαυτὸν ἐκένωσεν


μορφὴν δούλου λαβών
ἐν ὁμοιώματι ἀνθρώπων γενόμενος

III καὶ σχήματι εὑρεθεὶς ὡς ἄνθρωπος


ἐταπείνωσεν ἑαυτὸν
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

γενόμενος ὑπήκοος μέχρι θανάτου

IV διὸ καὶ ὁ θεὸς αὐτὸν


ὑπερύψωσεν καὶ ἐχαρίσατο αὐτῷ
τὸ ὄνομα τὸ ὑπὲρ πᾶν ὄνομα

V ἵνα ἐν τῷ ὀνόματι Ἰησοῦ


πᾶν γόνυ κάμψῃ
ἐπουρανίων καὶ ἐπιγείων καὶ καταχθονίων

VI καὶ πᾶσα γλῶσσα ἐξομολογήσηται


ὅτι κύριος Ἰησοῦς Χριστὸς
εἰς δόξαν θεοῦ πατρός.76

Outra influente compreensão sobre a forma da passagem foi apresentada por J.


Jeremias. Ele seguiu Lohmeyer entendendo o Fl 2,6-11 como um hino pré paulino,
mas enxergou sua estrutura de forma diversa, como segue:
I ὃς ἐν μορφῇ θεοῦ ὑπάρχων
οὐχ ἁρπαγμὸν ἡγήσατο τὸ εἶναι ἴσα θεῷ
ἀλλὰ ἑαυτὸν ἐκένωσεν
μορφὴν δούλου λαβών

II ἐν ὁμοιώματι ἀνθρώπων γενόμενος


καὶ σχήματι εὑρεθεὶς ὡς ἄνθρωπος
ἐταπείνωσεν ἑαυτὸν
γενόμενος ὑπήκοος μέχρι θανάτου

76
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 29.
37

III διὸ καὶ ὁ θεὸς αὐτὸν ὑπερύψωσεν


καὶ ἐχαρίσατο αὐτῷ τὸ ὄνομα τὸ ὑπὲρ πᾶν ὄνομα
ἵνα ἐν τῷ ὀνόματι Ἰησοῦ πᾶν γόνυ κάμψῃ
καὶ πᾶσα γλῶσσα ἐξομολογήσηται ὅτι κύριος Ἰησοῦς Χριστὸς77

Em primeiro lugar, ele concluiu que o hino está organizado em pares de versos,
refletindo o esquema hebraico do paralelismo de membros. São 12 versos. Para
chegar a essa estrutura ele propõe excluir três linhas do texto, qualificando-as como
acréscimos de Paulo ao hino original. As linhas são: θανάτου δὲ σταυροῦ (final do
versículo 8), ἐπουρανίων καὶ ἐπιγείων καὶ καταχθονίων (final do versículo 9) e εἰς
δόξαν θεοῦ πατρός (final do versículo 11). Dessa forma estes 12 versos estariam
distribuídos em três estrofes, em que cada uma descreve um estágio cristológico: a
pré-preexistência (2,6ab-7ab), o ministério terreno (2,7cd-8ab) e a exaltação (2,9-
11).78
Da perspectiva da organização dos versos, outras propostas foram feitas, mas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

todas são na verdade variações das propostas originais de Lohmeyer e Jeremias.79


Grandes contestações, no entanto, foram dirigidas à classificação da passagem sob
o gênero “hino”. Embora até a década de 1980 houvesse um consenso sobre essa
classificação,80 faltavam critérios para julgar as conclusões exegéticas, isto é,
determinadas passagens do Novo Testamento eram classificadas como hinos, e
passavam a servir como parâmetro para o julgamento de outras passagens.
Evidencia-se um argumento circular, pois sobre qual consideração as primeiras
passagens foram consideradas hinos? Em outras palavras, qual seria o texto padrão
no Novo Testamento ou na literatura cristã primitiva para, em comparação, avaliar
por exemplo se Fl 2,6-11 tem ou não características hínicas?
Em 1992, Gordon Fee publicou um artigo expondo essas dificuldades.81
Segundo Fee, esta passagem não podia ser considerada hino porque divergia da

77
FEWSTER, G. P., The Philippians ‘Christ Hymn’: Trends in Critical Scholarschip, p. 195-
196.
78
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p.32-35; FEWSTER, G. P., op. cit., p. 195-196.
79
SCHNELLE, U., Paulo: Vida e Pensamento, p. 473. Observe-se, por exemplo, a proposta de
MARTIN, R. P., op. cit., p. 36-37. Ele segue Jeremias na perspectiva do paralelismo de membros,
mas adota a divisão de Lohmeyer em seis estrofes, somente omitindo o θανάτου δὲ σταυροῦ do final
do vs. 8.
80
No prefácio à nova edição do seu livro em 1982, R. P. Martin atualiza a pesquisa sobre Fl 2,6-11
entre 1965 (data da primeira edição) e 1982 e afirma: “o caráter poético ou hínico dos versos
permanece um consenso virtual no debate recente, sem nenhuma séria tentativa de revertê-lo”.
MARTIN, R. P., op. cit, p. xvi.
81
FEE, G. D., Philippians 2:5-11: Hymn or Prose Exalted?, p. 29-46.
38

hinódia, tanto grega, quanto semítica. Não obstante, Paulo utilize aqui uma prosa
exaltada, isto não é sinônimo de hino. O papel do pronome relativo ὃς aqui é
diferente dos textos de Cl 1,15 e 1Tm 3,16 classificados como hinos, e a sequência
das frases é típica da argumentação em prosa paulina (argumento que ele considera
mais forte). Assim, ele considera que o texto possui um caráter poético indiscutível,
e ao mesmo tempo, um inegável estilo narrativo. Por isso ele classifica a passagem
como prosa exaltada.82 Alguns autores seguiram Fee na rejeição ao consenso de
classificar Fl 2,6-11 como hino,83 e outros apresentaram variações da classificação
da passagem como “prosa exaltada”. Collins propôs a designação “prosa hínica”,84
enquanto Basevi chamou-a de “prosa rítmica”.85
Em 1997, Martin reagiu às conclusões de Fee, reafirmando o caráter hínico da
passagem.86 E em 2015, Martin e Nash apresentaram um artigo com uma
contundente defesa do gênero Hymnos para Fl 2,6-11. O texto deles realiza duas
tarefas.87 Primeiro, eles discorrem sobre o caráter do gênero hino nos manuais de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

retórica grega, com a devida cautela cronológica, ou seja, preferindo os manuais


que são contemporâneos à carta aos Filipenses e aqueles que são anteriores a ela
em mais de um século. Em um segundo momento, os autores demonstram como a
passagem em questão reflete as características literárias do gênero helenista hino:
“o texto apresenta todas as caraterísticas que os teóricos julgavam essenciais para o
gênero”.88 Segundo estes critérios o texto de Fl 2,6-11 possui a seguinte estrutura:

82
FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 259-260. Antes mesmo de Fee,
BERGER, K., As Formas Literárias do Novo Testamento, p.311, tinha classificado Fl 2,6-11 não
como hino, mas como um encômio, um gênero da retórica grega que objetiva a apresentação
elogiosa de uma pessoa. Mais recentemente, também HELLERMAN, J., Philippians, p. 106,
considerou Fl 2,6-11 como encômio.
83
Entre outros, BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 116-117; FOWL, S.
Philippians, p.108-110.
84
COLLINS, A. Y., Psalms, Philippians 2:6-11, and The Origins of Christology, p. 368.
85
BASEVI, C., Estudio Literario y Teológico del Himno Cristológico de la Epístola a los
Filipenses, p. 443, nota 16.
86
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. lvii-lviii. É a 3ª edição da obra de Martin, na qual ele
apresenta e discute os principais temas da exegese acadêmica de Fl 2,6-11 entre 1982 (data da
segunda edição) e 1997 (data da terceira).
87
MARTIN, M. W.; NASH, B. A., Philippians 2:6-11 as Subversive Hymnos: A Study in the
Light of Ancient Rhetorical Theory, p. 90-138.
88
Ibid., p. 109. Também em 2015 apareceu um outro artigo criticando a classificação de Fl 2,6-11
(e de Cl 1,15-20) como hino. EDSALL, B.; STRAWBRIDGE, J. R., The Songs we Used to Sing?
Hymn ‘Traditions’ and Reception in Pauline Letters, p. 290-311, argumenta que Fl 2,6-11 não
atende critérios gregos para considerá-lo como hino, e nas mais de 570 citações da passagem entre
os pais da Igreja antes de 325 d.C., nunca ela é qualificada como hino. O último argumento é uma
dedução a partir do silêncio, e para o primeiro, as respostas estão no artigo de Martin e Nash, que
Edsall e Strawbrigdge não tiveram como levar em consideração.
39

Origem (ampliada por Syncrisis) ὃς ἐν μορφῇ θεοῦ ὑπάρχων οὐχ


ἁρπαγμὸν ἡγήσατο τὸ εἶναι ἴσα θεῷ,
ἀλλὰ ἑαυτὸν ἐκένωσεν μορφὴν
δούλου λαβών
Nascimento ἐν ὁμοιώματι ἀνθρώπων γενόμενος·
Corpo καὶ σχήματι εὑρεθεὶς ὡς ἄνθρωπος
Mente/Virtudes ἐταπείνωσεν ἑαυτὸν
Proezas γενόμενος ὑπήκοος μέχρι θανάτου,
Maneira de morrer θανάτου δὲ σταυροῦ.
Eventos póstumos διὸ καὶ ὁ θεὸς αὐτὸν ὑπερύψωσεν
Nomes e títulos (ampliado por καὶ ἐχαρίσατο αὐτῷ τὸ ὄνομα τὸ ὑπὲρ
Syncrisis) πᾶν ὄνομα,
ἵνα ἐν τῷ ὀνόματι Ἰησοῦ πᾶν γόνυ
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

κάμψῃ ἐπουρανίων καὶ ἐπιγείων καὶ


καταχθονίων

Um dos pontos a favor dessa estrutura é que ela explica o texto sem precisar
excluir qualquer linha, uma das características das propostas apresentadas acima. O
trabalho de Martin e Nash, portanto, reforça o consenso exegético que já dura quase
um século de classificar Fl 2,6-11 como hino.
Quanto à estrutura da passagem, enquanto os resultados da proposta de
Martin e Nash ainda serão avaliados pela comunidade exegética, a organização que
parece mais difundida (tanto entre autores que classificam a passagem como hino,
quanto entre os que divergem dessa classificação) é a que percebe o texto dividido
em duas partes: os vs. 6-8 e os vs. 9-11, a saber:89
ὃς ἐν μορφῇ θεοῦ ὑπάρχων οὐχ ἁρπαγμὸν ἡγήσατο τὸ εἶναι ἴσα θεῷ, ἀλλὰ ἑαυτὸν
ἐκένωσεν μορφὴν δούλου λαβών, ἐν ὁμοιώματι ἀνθρώπων γενόμενος· καὶ σχήματι
εὑρεθεὶς ὡς ἄνθρωπος ἐταπείνωσεν ἑαυτὸν γενόμενος ὑπήκοος μέχρι θανάτου,
θανάτου δὲ σταυροῦ.

89
Entre os que seguem esta estrutura estão FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses,
p. 261-262; SCHNELLE, U., Paulo: Vida e Pensamento, p. 473; HAWTHORNE, G. F.,
Philippians, p. 101-103; BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 125-126;
COLLINS, A. Y., Psalms, Philippians 2:6-11, and The Origins of Christology, p. 368; BARTH,
G., A carta aos Filipenses, p. 45; BASEVI, C., Estudio Literario y Teológico del Himno
Cristológico de la Epístola a los Filipenses, p. 445-446; MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p.
lviii. A favor de uma divisão em três partes, além de Jeremias mencionado acima, CERFAUX, L.,
Cristo na Teologia de Paulo, p. 297-298.
40

διὸ καὶ ὁ θεὸς αὐτὸν ὑπερύψωσεν καὶ ἐχαρίσατο αὐτῷ τὸ ὄνομα τὸ ὑπὲρ πᾶν
ὄνομα,
ἵνα ἐν τῷ ὀνόματι Ἰησοῦ πᾶν γόνυ κάμψῃ ἐπουρανίων καὶ ἐπιγείων καὶ
καταχθονίων
καὶ πᾶσα γλῶσσα ἐξομολογήσηται ὅτι κύριος Ἰησοῦς Χριστὸς εἰς δόξαν θεοῦ
πατρός.

Os argumentos para essa divisão são múltiplos. Cada parte é composta por
uma sentença, que por sua vez possui dois verbos principais. Nos vs. 6-8 são
ἡγήσατο e ἐκένωσεν e em 9-11 ὑπερύψωσεν e ἐχαρίσατο.90 Se por um lado, a
expressão θανάτου δὲ σταυροῦ é o ponto crítico da primeira parte,91 a utilização da
preposição διὸ no vs. 9 marca uma virada na descrição dramática. Ela é nesse caso
uma preposição consecutiva, mostrando que a sequência é consequência do que foi
dito antes.92 Existem também diferenças que apontam para a separação das partes.
A primeira dá preferência a versos com menos de dez sílabas, enquanto na segunda
predominam os versos com mais de dez sílabas.93 Nos vs. 6-8 encontram-se cinco
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

particípios, em 9-11 nenhum sequer.94 Além, é claro, da mudança de sujeito: nos


vs.6-8 o sujeito dos verbos principais é Jesus, e em 9-11 as ações principais são
realizadas por Deus Pai.

3.3
A pesquisa sobre a autoria e origem de Fl 2,6-11

Segundo Lohmeyer, Fl 2,6-11 é um hino pré-paulino, uma composição poética,


utilizada nos cultos, editada e citada por Paulo na carta aos Filipenses. Este juízo
foi divulgado e aceito por parte da comunidade acadêmica, em especial com o apoio
dos trabalhos de A. M. Hunter e E. Schweizer.95 Em 1965 Martin avaliava que a
maioria dos comentaristas alemães e franceses seguiam as conclusões de Lohmeyer,

90
COLLINS, A. Y., Psalms, Philippians 2:6-11, and The Origins of Christology, p. 368.
91
BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 125-126.
92
BASEVI, C., Estudio Literario y Teológico del Himno Cristológico de la Epístola a los
Filipenses, p. 446. MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. lviii, afirma que a expressão διὸ καὶ
funciona como a peripeteia no drama grego, descrevendo o reverso do destino do herói vítima.
93
BASEVI, C., op. cit., p. 448.
94
Idem.
95
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 55.
41

enquanto a situação entre os especialistas britânicos e americanos era exatamente


contrária.96
Entre os principais argumentos contrários à autoria paulina de Fl 2,6-11, em
primeiro lugar vem a forma do texto. De acordo com Lohmeyer, o texto apresenta
características de um hino semítico, mas com formulações próprias do idioma
grego. Disso ele conclui que o autor compôs o hino em grego, mas seu idioma
nativo era semítico.97 O texto seria então um salmo judeu-cristão originado na
primitiva comunidade judaico-cristã de Jerusalém.98 Um segundo argumento contra
a autoria paulina é a linguagem. De um lado, existem termos utilizados no texto que
são hapax legomena no corpus Paulino e alguns, inclusive, no Novo Testamento
inteiro. Os termos ἁρπαγμός, ὑπερυψόω e καταχθόνιος nunca são usados no Novo
Testamento além deste texto, sendo que o primeiro é raro até mesmo no grego
secular. Também não se encontra no Novo Testamento a descrição do universo em
três estágios como na expressão ἐπουρανίων καὶ ἐπιγείων καὶ καταχθονίων, e a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

palavra μορφή só ocorre em Mc 16,12.99 Outro dado interessante é que algumas


palavras encontradas aqui são utilizadas por Paulo de forma diferente em outros
contextos. O verbo κενόω, por exemplo, é usado pelo apóstolo em Rm 4,14; 1Co
1,17; 4,15; e 2Co 9,3, mas sempre o sentido é negativo, contrariamente à Fl 2,7. O
substantivo σχῆμα é usado em 1Co 7,31 com sentido distinto de Fl 2,7 e o termo
ὑπήκοος, que nunca é usado no Novo Testamento (nem na LXX) no sentido de
obediência a Deus.100 Ainda no campo da linguagem, mais ligado aos conceitos,
existem duas outras considerações que pesam contra a autoria paulina. É que são
encontradas no hino ideias estranhas à teologia de Paulo. São elas: a designação de
Jesus como εἶναι ἴσα θεῷ e como δοῦλος; o uso do verbo ὑπερυψόω para expressar
a exaltação de Jesus, e o fato desta ser retratada como um dom que Jesus recebe da
parte de Deus, através do verbo χαρίζομαι.101 Em contrapartida, faltam temas
característicos da cristologia paulina, a saber: a doutrina da redenção pela cruz, a
ressurreição de Cristo e o papel da igreja.102

96
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 61.
97
O curioso dessa observação de Lohmeyer é a ironia dela favorecer à autoria paulina (que alhures
ele nega), pois em Paulo encontramos um cristão, cuja língua nativa era semita, mas que escrevia
em grego!
98
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 46-47.
99
Ibid, p. 48.
100
Ibid., p. 44.
101
Ibid., p. 48-49.
102
Ibid., p. 49.
42

A estes argumentos somam-se outros dois, começando pela a suposição que Fl


2,6-11 refletiria a cristologia do Servo do Senhor, inspirada nos cânticos de servo
de Isaías 53. Ao que parece, essa cristologia não é orginalmente paulina, mas só é
utilizada pelo apóstolo quando ele faz referência ao que recebeu dos seus
predecessores no Evangelho.103 E esse ponto traz à tona um outro argumento contra
autoria paulina, que é o fato amplamente reconhecido pelos estudiosos
neotestamentários que boa parte da teologia de Paulo é reflexo da comunidade pré
paulina, e assim, Fl 2,6-11 seria parte dessa herança primitiva herdada por Paulo.104
Não obstante, nem todos se convenceram de uma autoria não paulina para Fl
2,6-11. Até 1965 o expoente em favor da autenticidade paulina foi L. Cerfaux.105
Os argumentos apresentados por ele e por uma série de outros autores após ele
podem ser resumidos da seguinte forma. Primeiramente, em relação à forma, a
questão levantada é por que Paulo pode ser considerado autor de outros textos
qualificados como poéticos, como 1Co 13, e não ser o autor desta composição na
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

carta aos Filipenses?106 Nesse sentido, percebe-se um cruzamento entre a questão


do gênero literário do texto com a da autoria. Isto porque um dos argumentos usados
para negar a autoria paulina do texto foi sua forma literária como um hino. Esse
quadro, porém, está se alterando, sobretudo através da exegese do texto pela ótica
da retórica grega. Assim, tanto Basevi, que qualifica o texto como prosa rítmica,
quanto Martin e Nash, que defendem o texto como hino, propõe a autoria paulina.107
Outro argumento usado contra a autoria paulina está relacionado aos hapax
legomena. No entanto, o argumento é considerado inconclusivo, pois passagens
tidas como paulinas também possuem certo número de hapax. É o caso de 1Co 13,
que contém três palavras que não aparecem em nenhum lugar do Novo Testamento,
e outras três que só ocorrem fora da literatura paulina.108 Soma-se a isso o dado de

103
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 51-52.
104
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 52-54.
105
Avaliação de MARTIN, R. P., op. cit., p. 55-56. Cf. CERFAUX, L., Cristo na Teologia de
Paulo, p. 292-293.
106
CERFAUX, L., Cristo na Teologia de Paulo, p. 293. O argumento é recuperado por BLACK,
D. A., The Autorship of Philippians 2:6-11: Some Literary-Critical Observations, p. 274-275,
escrevendo 30 anos depois de Cerfaux.
107
BASEVI, C., Estudio Literario y Teológico del Himno Cristológico de la Epístola a los
Filipenses, p. 450; MARTIN, M. W.; NASH, B. A., Philippians 2:6-11 as Subversive Hymnos: A
Study in the Light of Ancient Rhetorical Theory, p. 137, nota 110. Estes últimos de forma menos
contundente que o primeiro.
108
BLACK, D. A., op. cit., p. 276.
43

que Filipenses é a carta paulina com maior grau de hapax.109 Destarte, além de
existir no texto um grupo de palavras que refletem fielmente o pensamento paulino,
são em passagens de natureza poética que se esperam a utilização de um
vocabulário próprio e não usual, consequentemente com um grau maior de
hapax.110
Também em favor da autoria paulina está a intrínseca relação entre 2,6-11 e
outras partes da carta aos Filipenses. Dois paralelos são muito importantes nesse
quesito. Primeiro a conexão entre 2,6-11 e 3,20-21, que pode ser visualizada a
seguir:111

2,6-11 3,20-21
μορφῇ; μορφὴν σύμμορφον
ὑπάρχων ὑπάρχει
σχήματι μετασχηματίσει
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

ἐταπείνωσεν ταπεινώσεως
ἐπουρανίων ἐν οὐρανοῖς
κύριος Ἰησοῦς κύριον Ἰησοῦν
Χριστὸς Χριστόν
δόξαν τῆς δόξης

Em segundo lugar, a relação de 2,6-11 com o contexto anterior, a saber:


ἡγούμενοι ὑπερέχοντας (2,3) com οὐχ ἁρπαγμὸν ἡγήσατο (2,6); κενοδοξίαν (2,3)
com ἑαυτὸν ἐκένωσεν (2,7); ταπεινοφροσύνῃ (2,3) com ταπεινώσεως ἑαυτὸν (2,8);
ἐχαρίσθη (2,9) com ἐχαρίσατο (2,9),112 e mesmo o versículo 5, que faz a ponte
entre a seção anterior e o hino conecta-se ao versículo 2,2 através do verbo
φρονεῖτε.113

109
BLACK, D. A., The Autorship of Philippians 2:6-11: Some Literary-Critical Observations,
p. 274-275. De acordo com MAZZAROLO, I., Carta de Paulo aos Filipenses, p. 180-184, a
epístola como um todo possui 17 hapax em relação ao corpus paulino, e 39 em relação ao Novo
Testamento como um todo.
110
BLACK, D. A., The Autorship of Philippians 2:6-11: Some Literary-Critical Observations,
p. 276-277.
111
Ibid, p. 278.
112
CERFAUX, L., Cristo na Teologia de Paulo, p. 293.
113
FEWSTER, G. P., The Philippians ‘Christ Hymn’: Trends in Critical Scholarschip, p. 194.
44

Quanto às ideias que formam o pano de fundo do hino, tanto uma cristologia
influenciada pelas ideias do servo de YHWH não é incompatível com o pensamento
paulino,114 quanto é possível identificar a influência sobre Fl 2,6-11 da temática do
segundo Adão, como em Rm 5 e 1Co 15, textos cuja autoria paulina não é
discutida.115 Não obstante, são encontradas no hino ideias que verdadeiramente
correspondem à teologia paulina, como o tema da obediência de Jesus, a ênfase na
morte de cruz e a exaltação de Jesus como κύριος.116
Uma última reflexão a ser feita no que diz respeito à autoria de Fl 2,6-11 é
sobre o conceito de autenticidade. Conforme a argumentação de Fee, um
documento é considerado autêntico quando ele foi escrito pela pessoa a quem o
escrito é atribuído. Se Filipenses é atribuída a Paulo e ele realmente escreveu esta
carta, ela é autêntica. Se 2Pedro é atribuída a Pedro e ele não escreveu a carta, ela
não é autêntica. Quando este documento sofre interpolação de um autor posterior,
diz-se que aquela parte interpolada não é autêntica, isto é, não pertence ao escritor
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

a quem a obra como um todo é atribuída. No caso de Fl 2,6-11, a argumentação


contra a autoria paulina resulta em uma interpolação do próprio autor do
documento, na verdade ditada ou escrita junto com o restante do documento
original, e que, em última análise é considerada inautêntica!117 Nas palavras de Fee:
Concentrando-nos, porém, nesta passagem, a autenticidade toma um novo
significado: que o próprio Paulo interpolou em 2,6 uma parte de material
tradicional (material pré-paulino) do qual não era o autor original, quer seja de
forma literal ou parafraseada por ele em maior ou menor grau; e, por tanto, ainda
que a escreveu, ele não foi o autor, por isso esta parte não é autêntica e não se pode
utilizar para reconstruir a teologia paulina. Contudo, esta é uma teoria muito
estranha, pois segundo esta definição, a maioria do Evangelho de Mateus teria que
ser vista como não autêntica; afinal, nenhum dos materiais que ele aproveitou de
Marcos ou de Q foram escritos por ele!118

O protesto de Fee e as considerações acima têm persuadido cada vez mais


os autores em favor da autoria paulina. Escrevendo em 2010, Hellerman afirma que
o consenso em favor da autoria pré-paulina pertenceu à geração anterior de

114
BLACK, D. A., The Autorship of Philippians 2:6-11: Some Literary-Critical Observations,
p. 280. No prefácio à edição de 1997 da sua obra, Martin afirma estar mais inclinado a reconhecer a
influência do Servo de YHWH de Isaías sobre Fl 2,6-11 do que na edição original da sua obra em
1965. Cf. MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. lx. Os expoentes dessa linha de interpretação são
J. Jeremias e L. Cerfaux. Cf. CERFAUX, L., Cristo na Teologia de Paulo, p. 294-297 e MARTIN,
R. P., A Hymn of Christ., p. 182-183.
115
MARTIN, R. P., op. cit., p. 58.
116
Ibid., p. 59-60.
117
FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 85-86.
118
FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 86.
45

eruditos.119 Que essa é a tendência percebe-se pela lista de eruditos que ele
apresenta favorável à autoria paulina. Dos 12 autores mencionados, apenas 2 são
anteriores a 1990.120 Parece que se está a caminho de um novo consenso. Não
obstante, mesmo entre os que defendem a autoria paulina, o pano de fundo da
cristologia desenvolvida em Fl 2,6-11 é passível de discussão, como será exposto
no item a seguir.

3.4
O pano de fundo de Fl 2,6-11

Na história da exegese de Fl 2,6-11 os intérpretes buscaram qual seria o pano


de fundo fundamental para as ideias desenvolvidas no texto. A suposição é que a
determinação desse pano de fundo estabeleceria a rota correta para a interpretação
da passagem. Nesse intuito, foram apresentadas seis propostas principais.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

Käsemann propôs o pano de fundo do helenismo religioso,121 como


evidenciado na literatura Hermética. Segundo ele Fl 2,6-11 é construído sobre o
mito gnóstico do homem divino, o redentor celestial, mas é uma composição cristã
genuína, pois faz a releitura do mito e, na verdade, supera o mito.122 A hipótese de
Käsemann não recebeu muitas adesões, entre outros motivos, porque a literatura
Hermética na qual ela se baseia é datada a partir do segundo século d. C., e é
discutível se no período pré-cristão um mito gnóstico do redentor estava
completamente desenvolvido. Além disso, importantes elementos do referido mito
estão ausentes no texto de Filipenses, como o destino pré-temporal do redentor e
um explícito conflito ativo entre o redentor e os poderes cósmicos.123
De acordo com Martin, entre as propostas que procuram o pano de fundo
fora do próprio cristianismo, a hipótese de Käsemann foi a única tentativa séria de
estudar o hino sem levar em consideração o Antigo Testamento. Todas as outras

119
HELLERMANN, J. H., Vindicating God’s Servants in Philippi and in Philippians, p. 100,
nota 38.
120
Idem. Aos 12 mencionados por ele pode se acrescentar outros dois: BLACK, D. A., The
Autorship of Philippians 2:6-11: Some Literary-Critical Observations, p. 269-289, e BASEVI,
C., Estudio Literario y Teológico del Himno Cristológico de la Epístola a los Filipenses, p. 439-
472.
121
KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 87-89. Em sua ótica, o helenismo religioso diferencia-
se tanto do helenismo clássico quanto do helenismo popular.
122
Ibid., p. 119.
123
O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 193-194.
46

propostas vão buscar no Antigo Testamento, ou em algum desdobramento dos seus


temas no judaísmo a explicação do que está por trás de Fl 2,6- 11. Esse foi o
caminho original proposto por Lohmeyer. De acordo com ele, o hino é proveniente
de um contexto judaico cristão, mais especificamente, a primitiva comunidade de
Jerusalém, que utilizaria o cântico nas celebrações da eucaristia.124 Um passo à
frente foi a delimitação desse pano de fundo no Antigo Testamento. O’Brien indica
que Cerfaux e Jeremias foram os primeiros a identificar o pano de fundo da
passagem nos cânticos do Servo do Senhor de Isaías. O último autor, inclusive
mostra que importantes termos de Fl 2,6-11 devem ser interpretados a partir da
descrição do Servo Sofredor em Is 53.125 Alguns seguiram e aprofundaram essa
perspectiva, supondo que o hino original foi composto em aramaico e apresentando
possíveis versões do hino em aramaico.126 No entanto, tal empreitada envolve alto
grau de especulação, inclusive quando a prova da existência de um original
aramaico é a própria possibilidade de traduzir para o aramaico!127
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

O’Brien também associa a E. Schweizer a proposta de levar o pano de fundo


do Servo sofredor para a temática do justo sofredor do judaísmo. Fruto da
martiriologia do período macabeu, a tese é que o justo sofredor é humilde e leal a
Deus, se preciso, até a morte. O problema aqui é a associação do justo sofredor com
uma figura preexistente. Schweizer tentou resolver o problema especulando uma
associação entre este tema e o do filho do homem, mas posteriormente ele mesmo
abandou essa ideia.128
A sabedoria judaica também foi postulada como o contexto original para as
ideias de Fl 2,6-11. Baseada sobretudo no livro da Sabedoria, a tese é que o servo
justo se torna o instrumento da sabedoria. A sabedoria é preexistente com Deus e
entra no mundo para habitar o servo justo. A primeira objeção levantada aqui é que
a sabedoria ocupa principalmente um papel de mediadora da criação, enquanto que
esse não é um tema apresentado em Fl 2,6-11. Outra questão que não encontrou

124
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 27-28.
125
O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 194; JEREMIAS, J., Estudos do Novo
Testamento, p. 176-178.
126
As duas principais traduções são apresentadas por MARTIN, R. P., op. cit., p. 40-41 e
FITZMYER, J. A., The Aramaic Background of Philippians 2:6-11, p.470-483.
127
Avaliação de FEWSTER, G., The Philippians ‘Christ Hymn’: Trends in Critical Scholarship,
p. 193. Segundo ele, como o aramaico do 1º século não é bem atestado, algumas palavras gregas são
traduzidas conforme o aramaico de um período posterior. Ele também afirma que contra o
empreendimento está o fato das traduções resultantes serem distintas.
128
O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 194-195.
47

uma explicação plausível foi quando e onde aconteceu essa conexão entre a
sabedoria e o justo.129
Atualmente o pano de fundo mais discutido (o que não quer dizer mais
adotado) para o hino de Fl 2,6-11 é o que olha para Gn 1,26-27 e 3,1-5,
estabelecendo o contraste entre o primeiro e o segundo Adão. De fato, a reflexão é
encontrada na teologia paulina (Rm 5,18-19 e 1Co 15,45-47). É possível identificar
três variações nesse tratamento. A primeira acredita que por trás de Fl 2,6-11 está a
especulação judaica associada a Fílon, que vê um homem celestial em Gn 1 e um
homem terreno em Gn 3. O autor do hino apresenta um redentor relacionando as
duas figuras a Jesus.130 A segunda variação foi desenvolvida por J. D. G. Dunn. Ele
afasta a ideia de um homem celestial, e de qualquer ideia de preexistência no hino.
Segundo ele, Jesus está na mesma posição de Adão, um homem que possui a glória
divina. Só que enquanto Adão a perdeu por sucumbir à tentação, Jesus por sua
obediência proporciona a sua restauração na humanidade.131 A terceira variação da
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

chamada cristologia adâmica é a proposta por N. T. Wright. Aqui se visualiza uma


estreita conexão entre Adão, Israel e Cristo. A intenção de Deus para humanidade
estava perfeitamente apresentada em Adão. A desobediência deste desfigurou esse
relacionamento, porém não o destruiu. Como parte do plano de restauração desse
relacionamento, Deus constitui Israel para levar suas intenções para a humanidade.
O projeto de Deus para Israel se cumpre em Jesus, o Messias. Nessa exegese,
Wright entende que Filipenses não estabelece um rígido paralelo entre Adão e
Cristo, e assim, ao contrário de Dunn, Wright defende a ideia da preexistência de
Cristo.132

129
O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 195-196. Ele mostra que a conexão de Fl
2,6-11 com a sabedoria judaica foi formulada por D. Georgi.
130
Esta primeira alternativa remonta a J. Héring e a O. Cullmann. Cf. O’BRIEN, P. T., The Epistle
to the Philippians, p. 196.
131
DUNN, J. D. G., Christology in the Making, p. 114-121. Para uma avaliação da posição de
Dunn quanto a esta passagem cf. O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 196. Dunn
cita com aprovação a proposta veiculada por Murphy-O’Connor. A opinião deste estudioso quanto
a este tema pode ser resumida no seguinte período: “Ele era o que Adão deveria ter sido, o modelo
inspirador do que Deus pretendia que o ser humano fosse. A pureza de Cristo dava-lhe o direito de
ser tratado como se fosse um deus, isto é, gozar da incorruptibilidade em que Adão foi criado.
Entretanto, ele não usou esse direito em proveito próprio. Pelo contrário, entregou-se às
consequências de um modo de existência inaugurado pelo Adão caído” (grifos acrescentados).
MURPHY-O’CONNOR, J. Paulo – Biografia crítica. p. 234.
132
WRIGHT, N. T., The Climax of the Covenant, p. 56-98; FOWL, S. E., Philippians, p. 114-
115.
48

Resta ainda a possibilidade de encontrar o pano de fundo do hino no próprio


cristianismo primitivo. Há duas variações aqui. Hawthorne acredita que o hino seja
o resultado da profunda meditação que Paulo ou algum outro cristão fez do gesto
de Jesus lavar os pés dos discípulos, e dos significados deste ato.133 Para Hurtado a
primeira parte do hino, ou seja, 2,6-8, reflete a linguagem da parênese do
cristianismo primitivo, ou mesmo de tradições do Jesus terreno que circulavam no
período paulino.134
É provável que nunca se alcance um consenso quanto a essa questão, até
porque a complexidade e profundidade da passagem insinua conexões com vários
contextos, e cada qual traz um pouco de luz à exegese de Fl 2,6-11. Talvez, seja
importante refletir na pergunta formulada por O’Brien: “Não poderia ser [Fl 2,6-
11] uma simples composição cristã na qual o autor tirou certos conceitos de
diferentes contextos – talvez os combinando ou encontrando-os já combinados –
para explicar o evento Cristo?”135
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

3.5
A função de Fl 2,6-11 na carta (interpretação ética e soteriológica)

Questão também muito importante para a interpretação de Fl 2,6-11 é o seu


papel no fluxo da argumentação paulina em Filipenses. Geralmente a pergunta é
formulada a partir da compreensão de gênero e autoria: Por que Paulo inseriu este
hino cristológico nesta carta e exatamente nesse contexto literário? Ou: Por que
Paulo compôs este hino e o citou como parte de sua carta aos Filipenses? Ou ainda:
Qual papel 2,6-11 desempenha no argumento que o apóstolo desenvolve na carta
aos Filipenses? A despeito da formulação, ainda não foi encontrada uma resposta
consensual entre os estudiosos.
Logo de início o que entra em consideração é a relação entre 2,6-11 e o
contexto anterior. A seção inteira de 1,27-2,18, na qual Paulo trabalha a parênese,

133
HAWTHORNE, G. F., Philippians, p. 78 e 87; O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians,
p. 196.
134
Um dos problemas da exegese de Hurtado é justamente privilegiar a primeira parte do hino em
detrimento da segunda. cf.
135
O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 196.
49

está dividia em subseções: 1,27-30; 2,1-4;136 2,6-11; e 2,12-18. É pacífico que 2,1-
4 é um trecho no qual Paulo exorta a igreja à unidade, mediante uma atitude de
humildade:
Εἴ τις οὖν παράκλησις ἐν Χριστῷ, εἴ τι παραμύθιον ἀγάπης, εἴ τις κοινωνία
πνεύματος, εἴ τις σπλάγχνα καὶ οἰκτιρμοί, πληρώσατέ μου τὴν χαρὰν ἵνα τὸ αὐτὸ
φρονῆτε, τὴν αὐτὴν ἀγάπην ἔχοντες, σύμψυχοι, τὸ ἓν φρονοῦντες, μηδὲν κατ᾽
ἐριθείαν μηδὲ κατὰ κενοδοξίαν ἀλλὰ τῇ ταπεινοφροσύνῃ ἀλλήλους ἡγούμενοι
ὑπερέχοντας ἑαυτῶν, μὴ τὰ ἑαυτῶν ἕκαστος σκοποῦντες ἀλλὰ [καὶ] τὰ ἑτέρων
ἕκαστοι (Fl 2,1-4).

A passagem toda é controlada pelo imperativo πληρώσατέ do versículo 2,2


e possui algumas conexões vocabulares e conceituais com Fl 2,6-11, como entre
ταπεινοφροσύνῃ (vs.3) e ἐταπείνωσεν (vs.8), e entre as formulações μηδὲν κατ᾽
ἐριθείαν μηδὲ κατὰ κενοδοξίαν ἀλλὰ τῇ ταπεινοφροσύνῃ (vs.3) e ἀλλὰ ἑαυτὸν
ἐκένωσεν (vs.7). O grande impasse está na tradução de 2,5, que vincula todo o
conjunto 2,1-4 e 2,6-11. Em grego o versículo está assim: Τοῦτο φρονεῖτε ἐν ὑμῖν
ὃ καὶ ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ.137 Na verdade, são duas orações:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

Τοῦτο φρονεῖτε ἐν ὑμῖν


ὃ καὶ ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ

A tradução desse versículo requer a resolução de várias questões. Em 2,5a


a primeira questão é o referente do pronome demonstrativo Τοῦτο, que é melhor
entendido como referindo-se ao argumento precedente, e não ao que vem a

136
O versículo 5 é considerado um versículo ponte, tanto ele conclui o trecho de 2,1-4, quanto
introduz 2,6-11.
137
Existem dois problemas de crítica textual nesse versículo. Alguns manuscritos inserem a
conjunção γὰρ após o pronome demonstrativo Τοῦτο e outros substituem a forma verbal φρονεῖτε
por fronei/sqw. No entanto, a evidência manuscrita é contra a inserção das duas variantes, e o texto
é inteligível como está. A inclusão de γὰρ é rapidamente discutida e desconsiderada por
OMANSON, R., As Variantes Textuais do Novo Testamento, p. 413-414. FOWL, S. E.,
Philippians, p. 89, observa que com a colocação da conjunção o verbo deveria ser lido como
indicativo (a forma é a mesma para o imperativo e o indicativo), dando a entender que os Filipenses
já estavam tendo o tipo de fro/nhsij desejado por Paulo. Isto, porém, contraria a argumentação de
2,1-4. Contra à inserção da conjunção FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p.
264, apresenta três argumentos: o texto assindético tem melhor apoio textual; a variante atesta o
desejo dos escribas de se desfazerem do assíndeto, e não há nenhuma razão plausível para se omitir
a conjunção se ela fosse original. Quanto à substituição da forma verbal, HAWTHORNE, G. F.,
Philippians, p. 104-105, argumenta em favor do paralelismo das duas orações, e opta pela forma
verbal fronei/sqw., isto é, da 2ª pessoa do plural para 3ª pessoa do singular. No entanto, FEE, G. D.,
op. cit. p.264, mostra que Hawthorne cai no mesmo erro dos escribas: usar uma variante inferior
para tornar Paulo um escritor mais ordenado e legível.
50

seguir.138 Paulo está referindo-se a tudo o que exortou à igreja em 2,1-4. Outra
questão menor é reconhecer que o sintagma ἐν ὑμῖν diz respeito ao que deve ter
lugar na comunidade cristã, com acento eclesiástico, sugerindo a tradução: “entre
vós” ao invés de “em vós”, que privilegiaria o aspecto da conduta individual.139
Também é necessário lidar em 2,5a com a tradução do verbo φρονέω. Este é um
verbo importante na literatura paulina, particularmente na carta aos Filipenses.140
Seu sentido básico é “pensar”,141 mas em Paulo seu significado é mais do que
atividade racional, envolve decisão, vontade, é a orientação da vida, os alvos que o
ser humano escolhe e o determinam em sua totalidade.142 Isso fica evidenciado no
uso do termo em Romanos 8,5: οἱ γὰρ κατὰ σάρκα ὄντες τὰ τῆς σαρκὸς φρονοῦσιν,
οἱ δὲ κατὰ πνεῦμα τὰ τοῦ πνεύματος. Uma vida κατὰ σάρκα tem um φρονέω
determinado pela σάρξ. Uma vida κατὰ πνεῦμα tem o seu φρονέω condicionado
pelo πνεῦμα. A fim de se escolher uma forma verbal que corresponda na tradução
à todas essas nuances do verbo grego propõe-se o verbo “viver”,143 ficando 2,5a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

traduzido como: “Isto vivei entre vós”.


A segunda oração é ainda mais difícil, pois falta um verbo em 2,5b. As
propostas de resolução resultam em duas principais opções de traduções. Uma supre
a lacuna com o verbo ἦν. A ideia subjacente a essa opção é que a recomendação de
Paulo à igreja estaria presente na vida e ministério de Jesus, conforme será
apresentado em 2,6-11. Jesus seria o exemplo máximo do φρονέω que o cristão
deve ter. Esta interpretação também compreende a expressão ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ

138
Assim FOWL, S. E., Philippians, p. 90; BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p.
122; FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 266. Outra forma de entender é
ver todo o versículo 2,5 como fórmula de citação, considerando-se 2,6-11 material pré-paulino.
Assim, KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 116-117.
139
Reconhecido por FEE, G. D., op. cit., p. 266-267. Ironicamente, este argumento vai trabalhar
contra a interpretação ética adotada pelo autor, conforme a discussão abaixo.
140
Segundo PAULSEN, H., φρονέω. In: DENT, p. 1995-1998, o termo ocorre 26 vezes no Novo
Testamento, sendo 22 nas cartas paulinas incontestáveis, das quais 10 ocorrências apenas na carta
aos Filipenses. Em segundo lugar está Romanos com 9.
141
BAGD, p. 886.
142
PAULSEN, H., φρονέω. In: DENT, p. 1995-1998; GOETZMANN, J., Mente. In: DITNT, p.
1270-175. Este último afirma: “O pensar e o empenho do homem não podem ser encarados em
isolamento da orientação global da sua vida; esta última será refletida nos alvos que ele estabelece
para si”.
143
O esforço para corresponder a tudo o que o verbo significa aparece na tradução de FOWL, S. E.,
Philippians, p. 88: “Seja esse o seu padrão de pensamento, ação e sentimento…”. Uma alternativa
em uma única palavra seria “atitude” como fazem FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los
Filipenses, p. 264 e BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 121. A dificuldade é
que isso requer a inserção de termos auxiliares (Fee: “Vossa atitude deveria ser”, Bockmuehl: “Esta
é a atitude que vocês devem ter entre vocês”, grifos acrescentados), além do incômodo de se traduzir
um verbo por um substantivo.
51

literalmente, isto é, Paulo está se referindo a algo (o φρονέω) que esteve presente
no comportamento, na atitude, na vida da pessoa qualificada como Cristo Jesus.
Outra opção é suprir a lacuna verbal de 2,5b a partir da forma verbal de 2,5a.
Aqui existem variantes. De um lado estaria a hipótese de φρονέω em uma forma
passada. Quando essa escolha verbal é combinada com a interpretação literal da
expressão ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ mencionada acima, o resultado é uma tradução do tipo:
o que também pensou, agiu, viveu Jesus Cristo.144 Do outro lado está a hipótese do
φρονέω em uma forma presente, combinada com uma interpretação não literal da
expressão ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ. Na história da pesquisa sobre esta expressão postulou-
se primeiramente por A. Deissmann que ela se refere a um sentido espacial, no qual
o cristão possui a experiência de intimidade com o Cristo. “Estar em Cristo” refere-
se a uma experiência mística.145 Essa maneira de entender foi aplicada à exegese de
Fl 2,5, ocasionando a seguinte tradução de 2,5b: “como vocês têm em comunhão
com Jesus Cristo”.146 Outro entendimento foi apresentado por K. Barth, que
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

enxerga na expressão ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ o espaço da realidade em que estão


inseridos Paulo e seus leitores, espaço onde opera a lei da graça. É o espaço da
comunhão do corpo de Cristo. É o espaço da Igreja.147 Em outra direção, postulou-
se a hipótese da determinação histórica. “Estar em Cristo” é ser determinado pelo
acontecimento histórico da cruz e ressurreição de Jesus, cujos efeitos continuam no
presente.148
Com exceção da primeira perspectiva, as outras duas sobrevivem na exegese
atual, conquanto isso não signifique que alguma noção de comunhão com o Jesus
Cristo vivo esteja excluída, pois apesar da expressão possuir um sentido técnico em
Paulo, ela não possui de forma alguma um sentido único.149 O conjunto de
ocorrências mostram que Paulo utiliza a expressão (com suas respectivas variações,
ἐν Χριστῷ, ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ, e ἐν κύριος) com duas intenções principais: para
descrever a ação salvífica de Deus através de Cristo e o espaço de influência que o

144
Como a tradução de HAWTHORNE, G. F., Philippians, p. 105: “Esta forma de pensamento
deve ser adotada por vocês, que também foi a forma de pensamento adotada por Jesus”, grifos
acrescentados.
145
GNILKA, J., Teologia del Nuevo Testamento, p. 102.
146
Segundo MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 70, essa interpretação “mística” de 2,5b foi
realizada por Michaelis e C. H. Dodd.
147
BARTH, K., Epistle to the Philippians, p. 60.
148
GNILKA, J., op. cit., p. 103.
149
SEIFRID, M. A., Em Cristo, In: DPC, p. 453.
52

cristão vive em decorrência da salvação trazida por Jesus.150 Há, portanto, uma
combinação de perspectivas na expressão ἐν Χριστῷ: soteriológica, pois ela
concentra afirmações da realização dos planos de Deus em Jesus;151 eclesiológica,
porque ela serve para descrever a comunhão iniciada no batismo entre os crentes
uns com os outros e com Jesus exaltado (estar em Cristo é estar no Corpo de Cristo,
que equivale a estar na Igreja);152 escatológica, visto que o espaço salvífico ἐν
Χριστῷ é resultado da intervenção de Deus na história, fazendo irromper o novo
éon, o tempo escatológico, e permitindo àqueles que participam desse espaço
experimentar de antemão as primícias da nova criação;153 e, finalmente, uma
perspectiva existencial, dado que ἐν Χριστῷ não designa um lugar, mas estar sob
uma influência, uma orientação de vida contrária ao antigo e ainda presente éon,
caracterizada pela direção do Espírito Santo.154 A combinação dessas perspectivas
pode ser resumida nas seguintes palavras:
Em seu sentido básico, ἐν Χριστῷ deve ser entendido de modo local-existencial:
por meio do batismo, os crentes entram no espaço do Cristo pneumático, e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

constitui-se a nova existência na doação do espírito como sinal da salvação que


começa de modo real no tempo presente e se realiza plenamente no futuro. O ser
humano é arrancado da sua autolocalização e encontra a si mesmo, seu self, na
relação com Cristo.155

Quando se aplica todo esse entendimento da expressão ἐν Χριστῷ à exegese


de 2,5, a relação entre 2,5 e 2,6-11 ganha contornos bem específicos. Foi E.
Käsemann quem primeiro notou a importância desta expressão para a compreensão
da passagem, e sobretudo, foi ele quem primeiro tirou dela todas as consequências
exegéticas para o conjunto 2,5 e 2,6-11. Em um celebrado artigo publicado em 1950
ele estudou o texto de Fl 2,6-11 dialogando com os mais importantes autores que o
precederam nessa pesquisa: E. Lohmeyer; M. Dibelius; K. Barth; W. Michaelis, K.

150
SEIFRID, M. A., Em Cristo, In: DPC, p. 456.
151
KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 117: “a fórmula técnica ‘Em Cristo’ remete sem
dúvida de nenhuma classe ao acontecimento da salvação, tem um caráter soteriológico”.
152
MARTIN, R. P., Hymn of Christ, p. 71. Segundo ele, essa percepção remonta a R. Bultmann.
Da mesma forma GNILKA, J., Teologia del Nuevo Testamento, p. 105.
153
Notado por RIDDERBOS, H., Teologia do Apóstolo Paulo, p. 62, na comparação com a
expressão “em Adão”. Da mesma forma, GNILKA, J., op. cit., p. 106, afirma que “Em Cristo – No
Senhor... É o espaço da salvação escatológica, a fronteira entre o mundo antigo e o novo”.
154
SEIFRID, M. A., Em Cristo, In: DPC, p. 453, que nota que o “estar em Cristo” leva ao “estar no
Espírito”.
155
SCHNELLE, U., Paulo: Vida e Pensamento, p. 618.
53

Staab e A. Erhardt.156 A grande pergunta que o seu artigo quer responder é a respeito
do papel que o hino de 2,6-11 desempenha na parênese paulina em Filipenses.
Nessa direção ele vai criticar o que ele chamou de interpretação ética. Essa
interpretação, que retrocede ao trabalho primordial de Lohmeyer em 1928 e persiste
até os dias de hoje, entende que 2,6-11 é onde Paulo apresenta aos Filipenses o
exemplo máximo de todas as virtudes que ele recomenda à igreja. Esta
interpretação é justificada pelas traduções de 2,5b mencionadas acima, que suprem
a lacuna verbal da oração pela inclusão de ἦν ou de alguma forma passada do verbo
φρονέω. Os argumentos apresentados em favor da interpretação ética são: de fato
Paulo utiliza a vida de Jesus para tirar consequências para o comportamento cristão.
É o que ele faz em Rm 15,2-3 e 2Co 8,9, e o argumento encaixaria bem no contexto
parenético de 2,1-4.157 Em contrapartida, o apóstolo não esperaria que seus leitores
tivessem uma imitação “isomórfica” de Cristo. Nenhum ser humano pode realmente
imitar o que está descrito em Fl 2,6-11, a não ser de forma análoga, sobretudo no
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

que tange à renúncia para servir os outros.158 Também é possível construir uma
analogia entre a exaltação de Jesus descrita em 2,9-11 com a esperança cristã de
ετασχηματίσει τὸ σῶμα τῆς ταπεινώσεως ἡμῶν σύμμορφον τῷ σώματι τῆς δόξης
αὐτου apresentada em 3,21.159 Por fim, mas não menos importante, esta
interpretação parece ser preferida por alguns estudiosos por não ter necessidade de
supor um estágio pré-paulino para Fl 2,6-11, um tempo no qual o texto faria parte
do culto cristão primitivo, onde se cantava a salvação trazida Deus em Jesus.160
Acredita-se que a chamada “interpretação ética” de 2,6-11 repousa apenas no
contexto literário da carta.161
Não obstante, apesar de cada um destes argumentos serem verdadeiros,
quando totalizados e colocados na balança ao lado da posição contrária, o peso é

156
Escrevendo em 1998, Martin afirma que os dois marcos na história da exegese de Fl 2,6-11 são
a obra de Lohmeyer de 1928 e o artigo de Käsemann de 1950. MARTIN, R. P., Carmen Christi
Revisited, p. 1.
157
Reconhecido, entre outros, por BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 122.
158
FOWL, S. E., Philippians, p. 106-107.
159
Ibid., p. 107.
160
Crítica de BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 122.
161
A interpretação ética da passagem é mantida, entre outros, por Lohmeyer, Cerfaux, Hurtado,
Susan Eastman, Bockmuehl, Fee, Hawthorne. Cf. MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 68-74;
CERFAUX, L., Cristo na Teologia de Paulo, p. 292; BOCKMUEHL, M. op. cit., p. 122-123; FEE,
G. D., Philippians 2:5-11: Hymn or Exalted Pauline Prose?, p. 37-39; FEE, G. D., Comentario
de la Epístola a los Filipenses, p. 262-263; HAWTHORNE, G., Philippians, p. 104-105;
FEWSTER, G. P., The Philippians ‘Christ Hymn’: Trends in Critical Scholarschip, p. 198-200.
54

muito maior em favor da outra interpretação, chamada “interpretação kerygmática”


ou “interpretação soteriológica”, postulada inicialmente em 1950 por E. Käsemann,
e que tem em Ralph Martin o seu maior defensor contemporâneo. São vários os
pilares dessa interpretação. Antes de tudo, a ênfase da conexão entre 2,5 e 2,6-11 é
colocada na expressão ἐν Χριστῷ, acentuando toda a força teológica que a
expressão tem no corpus paulino, como exposto acima. Desse modo o que Paulo
está afirmando em 2,5 é que os cristãos devem praticar as virtudes e
comportamentos indicados em 2,1-4, como convém àqueles que fazem parte do
Corpo de Cristo e estão debaixo do senhorio dele. De fato, a interpretação
soteriológica acentua mais do que a interpretação ética o valor exegético da
expressão ἐν Χριστῷ. E esta maneira de entender o texto não deixa de fazer justiça
ao contexto parenético de 2,1-4, e mais ainda de 1,27-2,18. Pois, na perspectiva de
Paulo, ele está exortando a igreja, a comunidade de batizados, portanto, pessoas que
fazem parte do corpo de Cristo, que experimentaram o dom escatológico do Espírito
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

Santo, que se submeteram a Jesus como κύριος, rejeitando todos os outros. O que
o apóstolo está dizendo é que os cristãos de Filipos devem viver em conformidade
com este espaço espiritual, escatológico, cristológico onde foram inseridos, como é
adequado aos que fazem parte da Igreja. A diferença é que a parênese está mais
para a obediência a Jesus do que para imitação a Jesus, como se constata pelo
contexto imediato posterior, o versículo 2,12: Ωστε, ἀγαπητοί μου, καθὼς πάντοτε
ὑπηκούσατε, μὴ ὡς ἐν τῇ παρουσίᾳ μου μόνον ἀλλὰ νῦν πολλῷ μᾶλλον ἐν τῇ
ἀπουσίᾳ μου, μετὰ φόβου καὶ τρόμου τὴν ἑαυτῶν σωτηρίαν κατεργάζεσθε· Não
obstante, não se está negando absolutamente que Cristo seja um modelo para os
cristãos,162 mas que o papel de Fl 2,6-11 na epístola não é apresentar um modelo
ético e sim descrever o acontecimento escatológico da salvação, ou melhor dizendo,
apresentar uma ética fundamentada na soteriologia.163

162
Nas palavras de Barth: “Com isto, sua conduta [a de Jesus descrita em 2,6-11] é a razão para
depois ser também a norma e o critério para o cristão”. BARTH, G., A carta aos Filipenses, p. 44.
Um pouco mais hesitante afirma BYRNE, B., A Carta aos Filipenses, In: NCBSJ, p. 449: “Embora
um aspecto de imitação ética não seja necessariamente excluído, Paulo mais provavelmente cita o
hino para exortar os Filipenses a viver a atitude altruísta (phronein) que deveria brotar de dentro
deles por estarem ‘em Cristo’”.
163
SCHNELLE, U., Paulo: Vida e Pensamento, p. 472, tenta oferecer uma solução intermediária
através das categorias “imagem primordial” e “imagem modelar”. Ele afirma: “Como imagem
primordial, Jesus Cristo possibilita a nova existência dos cristãos, como imagem modelar, ele os
marca por sua própria conduta” (grifos dele). Faltou, porém, um detalhamento maior de como isso
funciona na interpretação do hino e na relação dele com o contexto.
55

Outra crítica levantada por Käsemann contra a interpretação ética é que ela
tende a valorizar mais a primeira parte do hino, isto é, os versículos 6-8, de modo
que os versículos 9-11 não seriam mais que um excurso, “necessários para nada”.164
Isso porque se o objetivo do hino é apenas apresentar o exemplo de Jesus, somente
nos versículos 6-8 trata-se da atitude de Jesus,165 pois em 9-11 há uma mudança de
sujeito. Só que a segunda parte da passagem não é um apêndice, um suplemento à
primeira, ela é parte integrante e necessária.166 Na verdade, o hino é um todo, tendo
o seu clímax em 9-11 por conta do seu caráter escatológico e narrativo, como se
verá a seguir.167
Nesta perspectiva Fl 2,6-11 descreve um evento, na verdade, o evento
escatológico por excelência que tem efeitos sobre todo o universo: “É o ato de
salvação o que se celebra... se apresenta aqui o acontecimento da salvação em todas
as suas características”.168 O hino é marcado pela visão escatológica do cristianismo
primitivo, que em relação à apocalíptica judaica distingue-se pela afirmação do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

caráter presente da salvação. A era da salvação já chegou. Deus já exaltou Jesus.


Ele já é o κύριος que deve ser reverenciado e confessado. Em relação ao helenismo
religioso, o texto distingue-se pela afirmação de que esse κύριος realmente se fez
homem e foi morto na cruz.169 Por sinal, esta é a relação entre 9-11 e 6-8, porque a
exaltação sem a encarnação e a cruz resultaria em uma “teologia da glória” sem

164
Observação extrema de Käsemann contra a intepretação ética, sobretudo no formato que ela
apareceu nos livros de E. Lohmeyer e M. Dibelius. KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 80.
165
KREITZER, L., “When He at Last Is First”: Philippians 2:9-11, p. 113: “É difícil incorporar a
estrofe final do hino cristológico dentro de uma interpretação da passagem que foca somente o
exemplo ético de Jesus”.
166
KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 117. Segundo MARTIN, R. P., Filipenses, p. 106, as
interpretações que divergem de Käsemann entendem os versículos 9-11 como digressão, dada a
dificuldade de se aplicar ao tema da imitação de Cristo.
167
Isso não significa que inexistam diferenças entre as duas seções do hino. Entre outras, além da
mudança de sujeito do Filho para o Pai, enquanto a primeira parte descreve a “descida” do Filho, a
segunda parte descreve a sua “subida”. Cf. MAZZAROLO, I., Carta aos Filipenses, p. 86. O que
se está propondo, porém, é que a relação entre essas partes não é linear, e sim progressiva, de forma
que 2,9-11 é a continuidade e o clímax de 2,6-8.
168
KÄSEMANN, E., op. cit., p. 94.
169
KÄSEMANN, E., op. cit., p. 118-119. Na página 111, referindo-se à exaltação de Jesus em 2,9-
11, ele afirma: “Ainda que não se pense aqui em um ato no final dos tempos, o acontecimento
descrito é sem dúvida escatológico enquanto tal, da mesma maneira que a encarnação, a cruz
[tratadas em 6-8] e a ressurreição que são consideradas sempre no Novo Testamento como
acontecimentos escatológicos. Segundo a concepção neotestamentária, o tempo do fim começa
precisamente no que se realiza com Cristo e em Cristo”. Segundo KREITZER, L. J., “When He at
Last Is First”: Philippians 2:9-11, p. 113, a desconsideração do contexto escatológico é a grande
negligência na intepretação de Fl 2,6-11, especialmente responsável pela omissão do papel dos
versículos 2,9-11.
56

uma “teologia da cruz”. O que foi exaltado é aquele se encarnou, se humilhou e foi
obediente até a morte.170
Nesse sentido, a questão por trás do hino não é responder à questão
dogmática sobre o relacionamento entre o Pai e o Filho,171 ou sobre as duas
naturezas, nem oferecer um padrão comportamental. O seu objetivo é narrar o
evento histórico da salvação, em um colorido escatológico, culminando no atual
senhorio de Cristo sobre todo o universo. Em favor desta interpretação está a
observação de Martin e Nash que, considerando Fl 2,6-11 um hino segundo os
critérios da retórica helenista, afirmam que nessa perspectiva o hino
necessariamente apresenta uma sequência cronológica.172 Com efeito, isso quer
dizer que o texto não é uma peça dogmática, mas uma narrativa, apresentando uma
sucessão de fases: um início, um meio e um clímax, um auge. Esse auge está
justamente no que acontece após a morte de Cruz, que representa o status presente
daquele cuja história é narrada. Falando sobre Fl 2,6-11 Becker comenta:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

Para reconhecer isso, é preciso ter claro que Cristo sempre é descrito mediante uma
história. Ela é o evento soteriológico para todos os crentes. Ela faz de Cristo a
figura escatológica central da salvação. O seu destino como um todo aconteceu
‘por nós’. Exatamente isso, não sua humildade subjetiva, é o que se descreve com
as afirmações sobre o sentido fundamental e objetivo desse evento e desse
salvador... Não é por meio da imitação que os cristãos estabelecem uma relação
com o modelo Cristo. Sua relação como Cristo não se baseia na ação imitativa, mas
sim em uma realidade: viver no novo estado de salvação.173

E esse “novo estado de salvação”, essa realidade presente, é descrita na


seção de 9-11, que deve ser considerado o apogeu da narrativa hiníca,174 pois o
clímax no senhorio de Jesus faz de forma efetiva a conexão com o contexto
parenético da carta. Porque os cristãos estão “em Cristo”, eles estão debaixo do
senhorio de Jesus. Porque Jesus é o Senhor eles devem obedecê-lo (versículo
2,12).175 Porque eles são participantes desse evento escatológico e soteriológico,
devem viver correspondendo a essa nova existência. Diga-se, aliás, que essa
maneira de entender Fl 2,6-11 dá à passagem a condição de coração teológico da

170
KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 119.
171
KÄSEMANN, E., op. cit., p. 94: “Não é uma relação o que se descreve aqui, e sim um
acontecimento, um drama...”. No mesmo local ele informa que tal reconhecimento ele tirou de K.
Barth.
172
MARTIN, M. W.; NASH, B. A., Philippians 2:6-11 as Subversive Hymnos: A Study in the
Light of Ancient Rhetorical Theory, p. 135.
173
BECKER, J., Apóstolo Paulo: Vida, Obra e Teologia, p. 450-451.
174
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. xv, xviii, utiliza o termo alemão mitte.
175
Ibid., p. xvi.
57

epístola, sem a qual faltaria na carta uma seção de exposição teológica, em torno da
qual gravitariam as seções de exortações, repreensão aos adversários, gratidão e
apresentação da situação e planos do apóstolo.
Outro dado em favor de 9-11 como clímax do hino é a presença da fórmula
“Jesus Cristo é Senhor”. A expressão é reconhecida como a “confissão de fé por
excelência, que está na origem de todas as demais e a todas abarca”.176 O texto tanto
mostra quem é esse Senhor a ser confessado (é o que se tornou homem, se
humilhou, morreu na cruz, foi exaltado por Deus, e recebeu dele o nome sobre
todos), quanto, em uma suposta utilização litúrgica como hino antes da inserção na
carta, desafiava os ouvintes a reverenciar e confessá-lo como Senhor. No contexto
literário em que está, reforça a ideia de que estar “em Cristo” é simultaneamente
estar debaixo do senhorio de Jesus.
Por outro lado, considerar Fl 2,9-11 o clímax do hino não significa desprezar
2,6-8 para a interpretação da passagem como um todo. Na verdade, não se entende
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

2,9-11 sem 2,6-8, porque ambas as seções fazem parte de uma única trama
narrativa, literariamente formatada como um hino em duas partes, e teologicamente
descrevendo o evento histórico-salvífico fundamental. O que se está afirmando é
que o auge dessa trama está em 2,9-11 e que essa maneira de entender o conjunto
de Fl 2,6-11 e o seu papel no contexto da carta aos Filipenses é mais bem explicado
pela chamada interpretação soteriológica.
Por tudo isso, a interpretação soteriológica proposta por Käsemann deve ser
preferida e adotada nesta dissertação,177 por apresentar uma argumentação coerente
para o hino como um todo fazendo jus às suas duas partes; explicar de maneira
adequada a relação do hino com o versículo 2,5, sobretudo a força da expressão ἐν
Χριστῷ, e não desconsiderar o contexto parenético da epístola, mas tirar a questão
ética do viés da imitação (como proposto pela chamada “interpretação ética”) para
o contexto da participação ἐν Χριστῷ e da submissão ao senhorio de Jesus.
E dada a importância do versículo 2,5 para a compreensão de 2,6-11, diante
do que foi exposto acima, e somando-se ao paralelismo existente entre as

176
CULMANN, O., Cristologia do Novo Testamento, p. 284, embora aqui a fórmula esteja em
uma versão aumentada. Não apenas “Jesus é Senhor”, mas “Jesus Cristo é Senhor”.
177
Esta interpretação é adotada, entre outros, por MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 68-74;
MARTIN, R. P., Filipenses, p. 104-107; BARTH, G., A carta aos Filipenses, p. 43-45; BECKER,
J., Apóstolo Paulo: Vida, Obra e Teologia, p. 449-451; KREITZER, L. J., “When He at Last Is
First”: Philippians 2:9-11, p. 111-118. Uma posição intermediária é defendida por FOWL, S. E.,
Philippians, p. 1006-108.
58

expressões ἐν ὑμῖν e ἐν Χριστῷ, e de que o normal no grego em frases elípticas


como 2,5b é suprir o verbo a partir da primeira proposição,178 a seguinte tradução
poderia ser sugerida para o versículo 2,5: “Vivam isto entre vocês, como convém
viver em Cristo Jesus”, que parafraseado seria: “Vivam tudo isto que mencionei
acima entre vocês, como convém a todos que fazem parte do corpo de Cristo e estão
debaixo do senhorio dele”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

178
FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 267.
4
A exaltação de Jesus e o seu novo nome

4.1
Introdução ao capítulo

A seção que se inicia em 2,9 vincula-se à anterior pelo tema. O assunto de


2,6-8 é o mesmo de 2,9-11: Jesus, só que agora em uma nova perspectiva. Antes
encarnação e humilhação. Agora exaltação e senhorio. O sujeito também muda,
mas o epicentro temático continua o mesmo.179 Isso é sugerido pela posição
enfática do pronome αὐτὸν, mostrando que “ele”, o que se humilhou, é o mesmo
“ele” que será exaltado.180 Cristo continua o centro da narrativa.181 Quer dizer, na
primeira parte Jesus é o sujeito das ações: ele não se apegou ao ser igual ao Deus,
ele se esvaziou, ele assumiu a forma humana e a forma de servo e foi obediente
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

até a morte. Na segunda parte, Deus o exalta, dá ele o nome sobre todo nome,
diante do nome dele todos os joelhos se dobrarão e toda língua confessará que ele
é o Senhor. A passagem como um todo é cristocêntrica, sem, contudo, abrir mão
do monoteísmo.182
Pela perspectiva da história das formas, é possível que toda a seção de 2,9-
11 esteja emoldurada segundo os antigos cerimoniais de entronização orientais
(especialmente egípcios), presentes em alguns textos do Novo Testamento. Nestes
rituais a entronização do rei divino seguia três partes: exaltação, a apresentação
diante dos deuses e a entronização. Em Fl 2,9-11 esta estrutura foi adaptada da
seguinte forma: exaltação (διὸ καὶ ὁ θεὸς ὑπερύψωσε αὐτὸν); proclamação do

179
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 230.
180
BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 141. HELLERMAN, J. H.,
Philippians, p. 119, também observa que o objeto direto αὐτὸν é enfático aqui.
181
HELLERMAN, J. H., Philippians, p. 118.
182
Existem, no entanto, diferenças entre Fl 2,6-8 e 2,9-11. Além do sujeito dos verbos, nota-se o
contraste na utilização dos particípios: são cinco na primeira parte e nenhum na segunda. Há
também uma mudança no pano de fundo lexical, porém as opiniões são diversas. Enquanto
BASEVI, C., Estudio literario y teológico del himno cristológico de la epístola a los Filipenses
(Phil 2,6-11), p. 447, defende que a terminologia de 2,6-8 possui colorido semítico e 2,9-11 um
vocabulário caracteristicamente helenista, SCHNELLE, U., Paulo: Vida e Pensamento, p. 473,
argumenta exatamente o contrário.
60

novo nome (καὶ ἐχαρίσατο αὐτῷ τὸ ὄνομα τὸ ὑπὲρ πᾶν ὄνομα) e homenagem ao
entronizado por gestos e confissão (os versículos 10-11).183
Do ponto de vista da retórica grega, como notado no capítulo anterior,
Martin e Nash entendem que o segmento διὸ καὶ ὁ θεὸς αὐτὸν ὑπερύψωσεν faz
parte do tópico “Eventos Póstumos” e todo o restante do versículo 9, junto com os
versos 10 e 11 estariam incluídos no tópico “Nomes e Títulos”. Todavia, a
expressão τὸ ὑπὲρ πᾶν ὄνομα funcionaria como uma syncrisis, isto é, um tópico
adicional que ampliaria o entendimento de outro tópico através de comparação.184
Sintaticamente Fl 2,9-11 constitui uma única sentença, que pode ser
dividida em duas orações. διὸ καὶ ὁ θεὸς αὐτὸν ὑπερύψωσεν καὶ ἐχαρίσατο αὐτῷ
τὸ ὄνομα τὸ ὑπὲρ πᾶν ὄνομα seria o período principal porque traz os dois verbos
no indicativo (ὑπερύψωσεν e ἐχαρίσατο) e compreende todo o verso 9. Estes dois
verbos estão conectados por um καὶ que pode ser entendido como epexegético,
fazendo a frase toda ser uma hendíadis, ou seja, os dois verbos não apontam para
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

acontecimentos independentes, mas são dois aspectos de um mesmo evento.185 A


exaltação e o novo nome são simultâneos. Um resultado semelhante é alcançado
através de uma outra abordagem sintática, isto é, quando se desmembra o período
principal em duas pequenas orações, cada qual com um verbo, em uma relação de
paralelismo sinonímico.186
O segundo período é composto por duas orações subordinadas às orações
principais do versículo 9 e coordenadas entre si. Este período abrange os versos
10 e 11: ἵνα ἐν τῷ ὀνόματι Ἰησοῦ πᾶν γόνυ κάμψῃ ἐπουρανίων καὶ ἐπιγείων καὶ
καταχθονίων καὶ πᾶσα γλῶσσα ἐξομολογήσηται ὅτι κύριος Ἰησοῦς Χριστὸς εἰς
δόξαν θεοῦ πατρός. Ele é comandado pela conjunção de propósito ἵνα e traz seus
dois verbos no subjuntivo (κάμψῃ e ἐξομολογήσηται).187 Pode-se dizer que
enquanto o versículo 9 descreve a exaltação de Jesus, os versos 10 e 11 trazem o
propósito (ou consequência, conforme será discutido mais à frente) desta

183
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 242-243; GOPPELT, L., Teologia do Novo
Testamento, p. 331. Este último afirma que o mesmo modelo é encontrado em 1Tm 3,6; Hb 1,3-
13 e Ap 5,6-14.
184
MARTIN, M. W.; NASH, B. A., Philippians 2:6-11 as Subversive Hymnos: A Study in the
Light of Ancient Rhetorical Theory, p. 112-113.
185
FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 289. Segundo ele, na hendíadis o
segundo verbo desenvolve ou completa o significado do primeiro. A mesma opinião tem
HELLERMAN, J. H., Philippians, p. 119.
186
BASEVI, C., Estudio literario y teológico del himno cristológico de la epístola a los
Filipenses (Phil 2,6-11), p. 446.
187
Entre outros, esta perspectiva sintática é apresentada em SILVA, Moisés., Philippians. p. 108.
61

exaltação. Portanto, este capítulo tem como objetivo investigar a descrição da


exaltação no versículo 9, enquanto que os próximos capítulos se ocuparão do
propósito (ou consequência) da exaltação de Jesus apresentadas em Fl 2,10-11.
O versículo 9 é iniciado pela expressão διὸ καὶ. O primeiro elemento διὸ é
uma conjunção inferencial. Ela é, em geral, usada para coordenar o que segue com
o que vem antes, e sua tradução comum é: por isso, por essa razão. O καὶ que vem
associado pode ser entendido como intensificando a conjunção,188 indicando que a
inferência é auto evidente,189 ou que a conclusão a seguir é de alguma forma
óbvia.190 Essa interpretação resultaria em uma tradução livre do tipo: por isso,
naturalmente, obviamente... Silva, no entanto, questiona esse raciocínio,
mostrando que a utilização de διὸ e a combinação διὸ καὶ no Novo Testamento
não oferecem suporte para esta maneira de ver, pois nem sempre a expressão
combinada indica uma “inferência auto evidente”, e ao mesmo tempo, a
conjunção sozinha às vezes pode, de fato, apontar nesta direção. Ele prefere
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

sugerir que o papel do καὶ seja intensificar ou realçar a conjunção, e que o uso
paulino pode estar influenciado pelo texto de Is 53,12 na LXX (διὰ τοῦτο).191 Isto
encaminha uma tradução mais simples, com apenas um “e por isso”.192

4.2
O responsável pela exaltação de Jesus

O texto não deixa dúvida que o responsável pela exaltação de Jesus é


Deus. De fato, a seção de 2,9-11 é marcada de forma profunda pelo monoteísmo:
Deus exalta Jesus, compartilha com ele o seu próprio nome, e tudo isso resulta na
glória de Deus. É importante delimitar o que significa o substantivo θεὸς no
contexto da teologia paulina. Enquanto judeu, o conceito que Paulo tinha acerca
de Deus é profundamente marcado pelo Antigo Testamento, como, aliás, é o caso

188
FEE, G., Christology. p. 395.
189
De acordo com BAGD, p.198.
190
Conforme BALZ, H.; SCHNEIDER, G., διό. In: DENT, v. I, p. 1018. HELLERMAN, J. H.,
Philippians, 118, percebe uma ironia aqui, pois do ponto de vista da cultura romana predominante
em Filipos, a exaltação de alguém qualificado na primeira parte como δοῦλος e que terminou sua
vida crucificado, seria tudo, menos uma coisa óbvia.
191
Isto foi primeiro afirmado por CERFAUX, L., Cristo na teologia de Paulo, p.295 e 304.
Cerfaux acredita que por trás de Fl 2,6-11 existe uma grande influência dos cânticos de servo em
Isaías.
192
SILVA, Moisés., Philippians, p. 115.
62

de todos os autores neotestamentários, embora com matizes diferentes. Para o


apóstolo o θεὸς que enviou seu Filho ao mundo e agora o exaltou é o mesmo Deus
de Israel revelado nas Escrituras hebraicas. Porém, o encontro com o Cristo
ressuscitado levou o apóstolo a inclui-lo na sua fé monoteísta. A herança judaica e
a convicção cristológica constituem assim o cerne do entendimento paulino de
Deus.
Dessa forma, o θεὸς para ele é o criador do mundo (Rm 1,20.25), que atua
de maneira contínua nele e se importa com ele a ponto de redimi-lo. O impacto do
evangelho fez Paulo incluir nessa argumentação o papel de Cristo na criação,
como mediador e finalidade (respectivamente em 1Co 8,5-6 e Cl 1,16).
Igualmente, se no Antigo Testamento Israel poderia ser chamado de Filho de
Deus (Os 11,1), para Paulo Deus é o Pai de toda a criação, mas de maneira
particular ele é o Pai de Jesus e dos cristãos. Esse Deus que é criador e Pai
também reina soberano sobre todo o universo, e um dia atuará como juiz de todas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

as pessoas (Rm 14,10.12). E nestes temas verifica-se de novo a influência


cristológica, pois Paulo pode falar do reinado exercido por Jesus (1Co 15,25, com
efeito a partir da sua exaltação) e do juízo que vem através de Jesus na parusia
(Rm 2,16; 2Co 5,10). E ainda a visão paulina de Deus é caracterizada por uma
série de atributos compartilhados com a tradição judaica, a saber: a glória (Rm
3,23; 1Co 10,31; Ef 1,17); a sabedoria (1Co 2,7; 1,30, onde ele identifica Cristo
com a sabedoria de Deus); a santidade (percebida como exortação em especial por
aqueles que agora são filhos de Deus em Cristo, como Rm 1,7; 1Ts 4,7; 1Co 6,19-
20); justiça (Rm 3,21-22; 10,3; Gl 2,6); amor e graça (Rm 3,24; 5,5; 2Co 13,13), e
fidelidade (1Co 1,9; 10,13). Para Paulo, esse foi o Deus que exaltou Jesus.193
Outro ponto importante é perguntar como a mudança de sujeito no
contexto do hino seria notada pelos cidadãos filipenses. É muito provável que essa
virada na narrativa chamaria a atenção deles, por conta da sua sensibilidade sócio-
política. O ponto é que no mundo romano da época existia uma enorme
valorização da cultura da honra e do prestígio público. “Status era uma
commoditie pública no mundo romano”.194 Nesse sistema cultural, quando se era
honrado por alguém, a honra do homenageado aumentava proporcionalmente à
honra que o doador possuía. Em consequência, o ideal era ser honrado por um

193
GUTHRIE, D.; MARTIN, R. P., Deus. In: DPL, p. 379-397.
194
HELLERMAN, J. H., Philippians. p. 119.
63

homem honrado, receber prestígio de quem ocupasse a mais alta posição social.195
Essa lógica é elevada à última potência em Fl 2,9, mostrando que Jesus foi
exaltado pelo ser mais honrado e exaltado do universo: Deus. A autoridade do
doador garante a eficácia da honra recebida.

4.3
A exaltação de Jesus e o sentido do verbo ὑπερυψόω

O verbo ὑπερυψόω pode ser traduzido d forma literal como elevar alguém
ao lugar mais alto.196O termo é um hapax no Novo Testamento, e na literatura
cristã primitiva foi utilizada uma única vez na 1ª carta de Clemente 14,5. Em
contrapartida, o termo foi utilizado 50 vezes na LXX.197BAGD indica que Fl 2,9
parece ecoar Sl 96,9 LXX: “Pois tu és Senhor, o Altíssimo sobre a Terra,
grandemente exaltado acima de todos os deuses”.198 Há, dessa forma, uma
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

perspectiva de comparação: a exaltação de YHWH é considerada em relação aos


deuses (τοὺς θεούς na LXX, ‫ֱ†הים‬
ֽ ִ ‫ א‬no texto hebraico). Interessante observar que
o texto hebraico utiliza a mesma preposição nas duas partes do versículo (‫) ַﬠל‬,
enquanto a LXX utiliza ἐπὶ na primeira parte, quando o termo de comparação é a
Terra, e ὑπὲρ na segunda parte, quando o contraste é com os deuses. É esta última
preposição que Fl 2,9 vai usar. Ademais, essa relação com o Salmo contribui para
a compreensão comparativa do verbo ὑπερυψόω no conjunto de Fl 2,6-11, como
será discutido abaixo.

4.3.1
A exaltação no Antigo Oriente em geral e no judaísmo em particular

A ideia de exaltação desempenhava papel importante nos mitos do Antigo


Oriente. Por exemplo, no mito babilônico Enûma Elish, Marduque foi exaltado na
assembleia dos deuses após derrotar Tiamate e Kingu, o que lhe proporcionou a

195
HELLERMAN, J. H., Philippians. p. 119.
196
BAGD, p. 842.
197
Segundo a contagem de MÜLLER, D., ὑψόω. In: DITNT, v.1, p. 83-87.
198
BAGD, p. 842. O versículo corresponde ao Sl 97,9 da Bíblia Hebraica Sl 97,9. O hebraico traz
literalmente “Pois tu és YHWH, o Altíssimo sobre toda a Terra, exaltado sobre todos os deuses”.
64

soberania sobre o mundo. Em consequência, ele instala na Terra Hamurabi como


seu representante exaltado entre os homens. Entre os egípcios existia o mito de
exaltação do faraó Tutmose III realizado pelo deus sol Rê. Através da exaltação o
faraó foi coroado e instalado como filho de deus. Também existiam mitos
babilônicos que descreviam a tentativa de seres humanos buscarem a exaltação
através do esforço próprio. Contudo, o empreendimento terminava mal, porque
não contava com o favor dos deuses.199
O Antigo Testamento utiliza alguns termos para expressar a ideia de
exaltação. No texto hebraico são ‫רוּם‬, ‫גָּבַ הּ‬, ‫ גָּדַל‬e ‫ָשׂא‬
֥ ָ ‫נ‬. A LXX os traduz pelos
verbos ὑψόω e ὑπερυψόω. O pensamento israelita é que somente Deus tem o
poder de exaltar (e, ao mesmo tempo, de humilhar). A auto-exaltação humana é
sempre rejeitada. É algo que se opõe a Deus e recebe a sua condenação (Sl 75,7;
Is 2,11 e 17). A exaltação é vista de um modo mais positivo quando o homem está
em uma situação de opressão e busca o socorro divino. Ele é exaltado quando
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

Deus muda suas circunstâncias, exaltado a uma realidade melhor (Sl 37, 34; 89,17
e 112,9). Em relação a Deus, ele é exaltado nos cultos e demais cerimônias
religiosas através da adoração do seu povo (Sl 34,33). E à medida que começa a
surgir uma esperança escatológica dentro do Antigo Testamento, também vai se
desenvolvendo uma expectativa de exaltação do povo de Deus. É nesse contexto
que estão inseridos os cânticos de servo em Isaías, um dos possíveis panos de
fundo para a narrativa da exaltação de Jesus em Fl 2,9-11. Entre outros, L.
Cerfaux acredita que todo o hino de Fl 2,6-11 está sob a influência desta tradição
específica. Dessa forma, lá é prometido que o servo receberá na exaltação as
multidões (Is 53,12), aqui seu triunfo estende-se ao cosmos. Em Isaías (LXX) a
exaltação é descrita com o verbo ὑψόω, em Filipenses com o verbo ὑπερυψόω.200
E além de Is 52,13-53,12, existe em Fl 2,9-11 a alusão ao trecho de Is 45,21-23,
como será avaliado adiante no trabalho.
De fato, o Novo Testamento interpreta o ‫ ﬠֶ בֶ ד‬do Dêutero-Isaías como uma
figura messiânica que tem o seu cumprimento em Jesus (At 8,26-40). Contudo, no
contexto de Isaías tanto é possível que o termo faça referência a um indivíduo,

199
Para todo este parágrafo cf. MÜLLER, D., ὑψόω. In: DITNT, v. 1, p. 83-87.
200
CERFAUX, L., Cristo na teologia de Paulo, p. 304-306. Para ele a mudança de verbo diz
respeito à intenção de Paulo de acentuar a exaltação de Cristo sobre as potestades celestes.
65

quanto que ele esteja designando o povo de Israel como um todo.201 E essas
alternativas não são necessariamente excludentes, pois é provável que em algumas
passagens exista uma distinção entre o servo e Israel (Is 49,1-9; 42,1-7; 50,4-10),
e em outras (Is 54,17; 56,6; 63,17; 65,8-9) uma identificação entre ambos.202 O
judaísmo, por sua vez, interpretava o ‫ ﬠֶ בֶ ד‬como uma referência ao povo de
Israel.203 Tudo isso vai ser importante para a exegese proposta por N. T. Wright
para Fl 2,6-11. Na visão dele, por trás dessa passagem está a expectativa da
exaltação de Israel a uma posição de proeminência por conta da sua obediência,
algo que se cumpriu na exaltação de Jesus. Ele chama esse raciocínio de
“cristologia israelita”,204 uma variação da mais conhecida cristologia adâmica. O
fundamento para essa exegese seriam os ecos intertextuais entre Fl 2,6-11 e Gn
1,26-28; Sl 8,4-7; Dn 7,14 e, acima de tudo, Is 45,23.
Também a literatura apocalíptica judaica testemunha essa expectativa
escatológica, sendo a exaltação parte da esperança humana. Há tanto uma
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

perspectiva futura, como algo que será consumado no fim dos tempos, quanto
espacial, com a ideia de ser exaltado aos mais altos céus (particularmente na
tradição de Enoque). Seja como for, e a despeito de ser possível uma delimitação
precisa das influências veterotestamentárias sobre Fl 2,9-11, é certo que esse texto
deve ser lido e interpretado a partir das expectativas israelitas de uma exaltação
escatológica, que o cristianismo primitivo entendeu estarem cumpridas na
exaltação de Jesus.

201
KAISER, W. C., ‫ﬠָבַ ד‬. In: DITAT, p. 1067. CARPENTER, E., ‫עבד‬. In: NDITEAT, v. III, p.
308.
202
KAISER, W. C., ‫ﬠָבַ ד‬. In: DITAT, p. 1067.
203
CARPENTER, E., ‫עבד‬. In: NDITEAT, v. III, p. 310.
204
Para Wright, a cristologia a partir de Adão e a cristologia a partir do servo sofredor de Isaías
não são contraditórias. Ambas são cristologias baseadas em Israel. Como último Adão Jesus
assumiu o papel que Israel deveria ter desempenhado, segundo o Antigo Testamento. Ainda
segundo Wright, Paulo não chegou a essa conclusão porque havia na fé judaica pré-cristã a
expectativa da vinda de um Messias escatológico a partir de Isaías 53. Pelo contrário, foram os
eventos da cruz que fizeram ele repensar o clímax do plano salvífico de Deus. WRIGHT, N. T.,
The Climax of the Covenant, p. 60-61.
66

4.3.2
A exaltação no Novo Testamento

O Novo Testamento articula o tema da exaltação sobretudo através do


verbo ὑψόω utilizado em vinte ocasiões. Ele é aplicado a Jesus em João 3,14;
8,28; 12,32.34; At 2,33; 5,31. Na mensagem de Jesus a exaltação é vista dentro da
temática do discipulado, e com uma dimensão escatológica. Ela é geralmente
trabalhada através do binômio exaltação-humilhação A exaltação passa pelo
caminho da humilhação e obediência diante de Deus. Quem se exalta nesta vida,
será humilhando no julgamento final. Quem se humilha (para servir a Deus e ao
próximo) será exaltado pelo próprio Deus no juízo final. Tiago e 1Pedro vão
exortar os cristãos a partir deste paradigma (Tg 4,10; 1Pe 5,6). Diversos
testemunhos no Novo Testamento apontam para a esperança da exaltação dos
cristãos na parusia, e a exaltação de Jesus vai se tornar o fundamento desta
esperança.205
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

E para tratar da exaltação de Jesus, o Novo Testamento segue o padrão


veterotestamentário, e não a situa em termos de mito, mas de história. O exaltado
é Jesus de Nazaré, o mesmo que foi levantado em uma cruz. Destarte, esse
conceito é trabalhado de forma diversificada nos escritos neotestamentários.
Tradições primitivas presentes no livro de Atos em 2,33 e 5,31 designam a
entronização de Jesus como Senhor por meio do verbo ὑψόω.206 Na literatura
paulina encontra-se em Fl 2,9-11 a exaltação relacionada à ideia de senhorio, mas
em Rm 1,4 ela diz respeito a Jesus ser designado Filho de Deus, e 1Tm 3,16 a ele
ser recebido na glória.207 No quarto evangelho o tema da exaltação será paralelo
ao da glorificação, através do verbo δοξάζω (Jo 7;39; 12,16; 17,5). Ali, Jesus já é
o exaltado na sua crucificação, que é o cumprimento da sua missão. Hebreus não
utiliza o verbo ὑψόω e vai articular a teologia da exaltação através de outras
expressões: coroado (1,9); ungido (1,13; 10,12; 12,2); assentado à direita de Deus
(5,5). Em resumo, como notado por Bruce, todas as fontes do Novo Testamento
celebram a exaltação de Jesus.208

205
LÜDEMANN, G., ὑψόω. In: DENT, v. II, p. 1910-1911.
206
Ibid., p. 1911-1912. De acordo com MAZZAROLO, I., Carta de Paulo aos Filipenses, p. 112,
a exaltação de Jesus fazia parte do “‘kerygma’ apostólico conservado nos Atos dos Apóstolos”.
207
MÜLLER, D., ὑψόω. In: DITNT, v. I, p. 83-87.
208
BRUCE, F. F., Filipenses, p. 88.
67

Quanto à origem e disseminação do conceito da exaltação de Jesus no


Novo Testamento, era corrente afirmar até metade do século passado que uma
cristologia da exaltação, isto é, o reconhecimento de que o Jesus ressuscitado atua
no presente como κύριος, podendo ser inclusive invocado e cultuado pela
comunidade, foi um fenômeno surgido na comunidade cristã helenista. Essa foi a
tese defendida originalmente por W. Bousset, na obra Kyrios Christos, em 1913.
De acordo com ele, a comunidade cristã primitiva de Jerusalém, de fala aramaica,
não possuía uma cristologia da exaltação, tese que foi aprovada e assumida por
Bultmann, como observa Cullmann.209
Posteriormente, entretanto, a tese recebeu muitas críticas, ficando
desprestigiada no final do século 20.210 Fundamental para esse processo de
superação foi a identificação de trechos e expressões nos livros do Novo
Testamento, a maior parte em textos paulinos, que remontam a um período
anterior à produção destes livros. São testemunhos do cristianismo mais primitivo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

recolhidos e transmitidos pelos autores do Novo Testamento. Entre estes textos


estão alguns sermões no livro de Atos, textos considerados hinos cristológicos,
como 1Tm 3,16 e Fl 2,6-11, confissões de fé como “Jesus é Senhor” (Rm 10,23;
1Co 12,3), e acima de tudo, a expressão μαράναθά presente em 1Co 16,22. Esta
expressão, que também ocorre no cristianismo primitivo em Didaquê 10,6,211 é a
transliteração de uma frase aramaica, que pode ser traduzida como uma súplica:
“Nosso Senhor, vem!”.212 Entende-se que ela está por trás de Ap 22,10b, onde
estaria sendo citada de forma traduzida. Enquanto súplica seria uma petição
dirigida ao próprio Jesus Cristo exaltado,213 seja para que ele realize sua parusia,
seja para que ele se manifeste de uma forma especial à igreja que está reunida em
209
CULLMANN, O., Cristologia do Novo Testamento, p.280-281, mostra que na obra posterior
“Jesus der Herr”, de 1916, Bousset abandou sua explicação original, mas acabou reassumindo-a na
segunda edição de Kyrios Christos em 1921. Curiosamente Cullmann informa que Bultmann
adotou em sua Teologia do Novo Testamento a explicação provisória dada por Bousset em 1916.
210
Veja-se que além de Bultmann, encontra-se uma adoção da tese de Bousset em KRAMER, W.,
Christ, Lord and Son of God, p. 65-71, obra lançada em 1966 e GOPPELT, L., Teologia do
Novo Testamento, p. 327-333, que remonta a meados da década de 1970.
211
“Que venha a graça, e passe este mundo. Hosana ao filho de Davi. Se alguém for santo, que
venha! Se alguém não for santo, faça penitência. Maranata! Amém”. Texto segundo FITZMYER,
J. A., To Advance The Gospel, p. 224.
212
Existe discussão sobre a correta divisão da expressão, e consequentemente, sua respectiva
tradução. A saber: μαραν ἀθῆ - “Nosso Senhor está vindo”; μαραν ἄθα – “Nosso Senhor veio” ou
“Nosso Senhor está aqui”; μαράνα θά - “Nosso Senhor, vem!”. Cf. FITZMYER, J. A., To
Advance The Gospel, p. 226. A última forma é a adotada no Novo Testamento grego de Nestlé-
Aland.
213
SCHNACKENBURG, R., Cristologia do Novo Testamento, p. 29; GOPPELT, L., Teologia
do Novo Testamento, p. 278.
68

torno da eucaristia.214 De qualquer jeito, a expressão μαράναθά e os demais


extratos do cristianismo primitivo no Novo Testamento atestam que desde o início
da igreja, já na comunidade de fala aramaica em Jerusalém, os cristãos criam em
um Jesus exaltado, Senhor dos cosmos, mas também Senhor da comunidade e de
suas vidas, Senhor com quem eles podiam se relacionar de forma especial no
culto.215 Logo após a ressurreição, quando os discípulos ser reuniram como igreja
cristã, creram que sobre eles Jesus estava como Senhor exaltado. É a ressurreição
o acontecimento fundamental para o surgimento do conceito de exaltação de
Jesus. Nas palavras de Cullmann:
É a convicção dos discípulos de que a ressurreição de Cristo havia inaugurado o
fim dos tempos. O que já havia sido realizado dava à sua esperança esta firme
confiança... o fim dos tempos já havia começado, Cristo não podia ser para eles
meramente o Filho do Homem que havia de vir. Ele devia, também, ter uma
significação presente, já que este presente pertencia ao tempo da consumação. A
esperança ardente da manifestação próxima do século vindouro não é, pois, a
causa, mas a consequência da fé na ressurreição de Cristo. 216
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

4.3.3
A exaltação de Jesus na literatura paulina

4.3.3.1
Linhas gerais da exaltação de Jesus na literatura paulina

A exaltação de Jesus é um tema central na cristologia paulina. É ela que


revela “a verdadeira identidade de Jesus, dá um significado definitivo a sua vida e
morte e fornece a base para a esperança cristã”.217 Isto pode remontar a sua
própria experiência com Jesus (e, portanto, das suas comunidades), que não foi
uma experiência com o Jesus terreno (como os 12 apóstolos), mas
fundamentalmente com o Cristo exaltado. A sua experiência de encontrar o Jesus
exaltado na estrada para Damasco tornou-se o epicentro da sua cristologia. Isso

214
“Temos visto a dupla significação de Maranata: ‘Vem a nós, que estamos reunidos em teu
nome! e ‘Vem definitivamente’ [...] A ceia evoca, com efeito, retrospectivamente, a última
refeição de Jesus antes de sua morte e as da Páscoa onde o ressuscitado apareceu; e, por outro
lado, ela prefigura o banquete messiânico de Cristo e dos seus, reunidos no Reino de Deus”,
CULMMANN, O., Cristo e o Tempo, p. 199.
215
Entre outros, BROWN, R., Introduccion a la cristologia del Nuevo Testamento, p. 121-158;
e SCHNACKENBURG, R., Cristologia do Novo Testamento, p. 24-38.
216
CULMANN, O., Cristologia do Novo Testamento, p. 272.
217
MAILE, J. F., Exaltação e Entronização, In: DPC, p. 522.
69

não quer dizer que Paulo imaginasse o Cristo exaltado dissociado do Jesus
histórico, como pensaram Bultmann e outros. Para Paulo, o exaltado não era
ninguém diferente daquele Jesus que foi crucificado em Jerusalém e ressuscitou
três dias depois. Nessa perspectiva, o hino de Fl 2,6-11 ocupa papel importante,
pois como expressão de uma cristologia paulina autêntica (articulada de forma
original por ele, ou aproveitada de tradição litúrgica já existente) ele revela que
este que agora está exaltado, é Senhor, e deve ser reverenciado e confessado não é
outro senão aquele que se encarnou completamente, assumindo a forma humana, e
humilhou-se como servo e morreu na cruz como ápice da sua obediência ao Pai.218
Essa cristologia da exaltação articulada por Paulo segue e desenvolve
linhas que já existiam no cristianismo anterior a ele, como a leitura cristológica do
Sl 110,1, a profissão de fé de Jesus como κύριος e os trechos de cunho litúrgico
mais desenvolvidos como Rm 1,3-4; 1Co 15,3-8; Cl 1,15-20; 1Tm 3,16. A partir
dessa base cristológica tradicional, somada a sua matriz de pensamento judaica e a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

sua experiência de encontro com Cristo, o apóstolo desenvolve sua cristologia da


exaltação a partir de quatro aspectos:219 a ressurreição, a ascensão, a
entronização220 e a parusia.221
Aqui em Fl 2,9 é provável que as primeiras três ações estejam incluídas no
verbo ὑπερύψωσεν.222 Neste texto a exaltação de Jesus não é descrita em estágios.
Tudo está indicado através de um único verbo.223 Como notado por Bockmuehl:
“Paulo enfatiza somente o fato, não o processo desta exaltação, que em outros
lugares envolve ressurreição, ascensão e sentar-se à direita de Deus”.224
A ressurreição atesta o início da exaltação, sendo a reversão imediata do
auge da sua humilhação, a morte de cruz. A ressurreição é mais do que um
218
MAILE, J. F., Exaltação e Entronização, In: DPC, p. 522-523.
219
Conforme MAILE, J. F, Exaltação e Entronização, In: DPC, p. 523-524.
220
Nem todos os autores trabalham com a categoria da “entronização” de Cristo, como algo
distinto da ascensão, dado que o Novo Testamento não menciona um acontecimento específico
relacionado à entronização. Geralmente a discussão acerca da “ascensão” já inclui a entronização.
221
MAZZAROLO, I., Carta de Paulo aos Filipenses, p. 112-113, apresenta a partir da obra de J.
MacArthur, uma descrição da exaltação que também contém quatro aspectos, com a diferença que
o quarto aspecto não é a parusia, mas a atuação de Jesus no governo celestial.
222
Assim pensa, entre muitos outros, HENDRIKSEN, W., Efésios e Filipenses, p. 485. Segundo
ele, a parte da parusia aparecerá nos versículos 10 e 11, quando todos irão confessar e se ajoelhar
diante de Jesus. O pensamento contrário foi defendido por Lohmeyer em sua exposição clássica da
passagem. Para ele o verbo diz respeito ao assentar-se de Cristo à direita de Deus Pai, e não à
ressurreição. Isso indicaria a origem não paulina do hino, pois o apóstolo contrariamente iria se
referir à ressurreição, e não à exaltação. Isso aproxima, de acordo com este autor, o pensamento do
hino da teologia joanina. BROWN, C. Ernst Lohmeyer’s Kyrios Jesus. p. 14.
223
O’Brien, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 236.
224
BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 141.
70

simples voltar à vida, é uma nova existência, gloriosa, não mais sujeita às
fraquezas da vida humana e aos poderes malignos que ainda atuam neste universo.
Quanto à ascensão, Paulo não a menciona de maneira explícita, o que não quer
dizer que ele não conhecesse nada a respeito. Em alguma medida, Paulo
pressupõe uma transição entre o ministério terreno de Jesus (que vai até a cruz e
se desenvolve na Terra) e o ministério exaltado (que começa na ressurreição, mas
vai se desenvolver no céu), mas parece que ele não descreve essa transição como
ascensão, sendo mesmo possível que ele não conhecesse essa tradição.225 Não
obstante, o Jesus ressurreto vai ser entronizado. Paulo descreve esta realidade por
intermédio da metáfora do “estar sentado à direita de Deus”, e ter os inimigos
debaixo dos pés, ambas tiradas do Sl 110,1 (talvez em combinação com o Sl 8,6).
Cinco vezes ele usa explicitamente esse versículo: Rm 8,34; 1Cor 15,25; Ef
1,20.22; Cl 3,1.226 E é bastante possível que por trás de Fl 2,9-11 também esteja
presente uma reflexão cristológica que parte do Sl 110,1. A ideia é que Cristo está
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

exercendo a sua soberania sobre todo o universo, acima de todo poder e


autoridade. E quando ocorrer a parusia, a glória do Senhor exaltado será revelada
(1Cor 1,7), seus inimigos serão derrotados em definitivo (1Cor 15,24-26) e todo o
universo o aclamará como Senhor.
Quanto à exaltação como entronização, a perspectiva paulina envolve a
temática da vitória de Jesus sobre poderes espirituais, que por sua vez remonta à
perspectiva veterotestamentária de YHWH como guerreiro divino. Conforme
Reid, encontra-se no Antigo Testamento a visão de YHWH como um guerreiro
que luta, primeiro em favor e junto com seu povo Israel, mas posteriormente
contra ele, por conta da sua desobediência.227 O paradigma para essa perspectiva
foi a luta de YHWH contra as forças do Egito em favor da libertação do seu povo.
A infidelidade de Israel à aliança fez com que YHWH se tornasse guerreiro contra
Israel, revogando o êxodo e levando seu povo ao exílio. Isto é descrito por Isaías
como a “obra insólita” de YHWH (Is 28,21). A última fase dessa perspectiva no
Antigo Testamento é a esperança escatológica de quando YHWH agirá como
guerreiro divino contra os inimigos de Israel. Será o dia da restauração, através do

225
Diferente do que defende MAILE, J. F., Exaltação e Entronização, In: DPC, p. 523. Lohfink,
citado por Maile, argumenta que Paulo não conhecia a estrutura lucana de ressurreição, quarenta
dias e ascensão.
226
Caso se desconsidere Efésios e Colossenses como cartas autênticas, então temos duas
ocorrências explícitas.
227
REID, D. G., Triunfo, In: DPC, p. 1208-1209.
71

triunfo contra todos aqueles que se levantaram contra o povo da aliança. É a partir
deste pano de fundo veterotestametário que Paulo vai compreender a exaltação de
Jesus Cristo, que terá assim uma orientação tanto monoteísta quanto escatológica,
isto é, a exaltação de Jesus é vista como a realização do triunfo de YHWH sobre
os inimigos, cumprindo a esperança judaica da intervenção divina no fim dos
tempos. É por isso que em Fl 2,9 o sujeito é explicitamente mencionado, ao
contrário da primeira parte 2,6-8, enfatizando que a exaltação de Jesus é o
cumprimento do plano escatológico de Deus.

4.3.3.2
A exaltação de Jesus como evento escatológico

O que foi dito acima já aponta para a importância da escatologia para a


compreensão da exaltação de Jesus na teologia paulina. A escatologia é uma das
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

estruturas fundamentais da teologia paulina.228 Ela não é apenas um ponto de


partida para a sua reflexão teológica, mas todas as linhas da sua argumentação são
influenciadas por essa base. A escatologia paulina funciona de forma
bidimensional: uma dimensão temporal (presente e futuro) e uma dimensão
espacial (terreno e celeste).229 Com efeito, é a primeira dimensão que predomina.
Como muitos autores judeus do primeiro século, Paulo entendia que o
aparecimento do Messias significava a chegada do futuro tempo de salvação. De
forma mais específica, ele entende que a “ressurreição de Jesus é primordialmente
um acontecimento escatológico”,230 que fez o futuro escatológico invadir o
presente. Em consequência, a partir da ressurreição o reino de Deus é posto em
ação na história humana, os inimigos de YHWH são derrotados e o cosmos é
colocado debaixo do senhorio de Jesus. E nisso Paulo não está sozinho no

228
É melhor utilizar o plural “estruturas”, como H. Ridderboss, do que entrar na discussão que não
alcança nenhum consenso sobre qual seria a “estrutura” fundamental para o pensamento paulino.
Segundo Ridderboss, essas estruturas seriam a revelação do mistério na plenitude do tempo; a
relação entre escatologia e cristologia; Cristo como o primogênito dos mortos e último Adão;
“estar em Cristo” (o velho e o novo homem); a carne e o Espírito; Cristo como imagem de Deus;
Cristo como primogênito da criação; Cristo como exaltado. RIDDERBOS, H., A teologia do
apóstolo Paulo, p. 47-99.
229
KREITZER, L., Escatologia, In: DPC, p. 478-479.
230
KREITZER, L., Escatologia, In: DPC, p. 464.
72

cristianismo primitivo. Ele compartilha a determinação escatológica de todo o


kerygma cristão.231
Quando se entende a ressurreição de Jesus como parte da sua exaltação, e
se reconhece que em Fl 2,9 o verbo ὑπερύψωσεν pressupõe a ressurreição, fica
muito claro todo o contexto escatológico que envolve a exaltação de Jesus em Fl
2,9-11.232 Ainda mais quando se leva em consideração a utilização do texto de
Isaías 45,23 no versículo 10, visto ser esse um texto de forte acento escatológico,
quando YHWH anuncia a realidade de um futuro tempo de salvação. O hino de Fl
2,6-11 está afirmando que esse tempo chegou no momento em que Deus
ὑπερύψωσεν Jesus. A exaltação de Jesus é o cumprimento escatológico de Is 45,
pois através da confissão de Jesus como κύριος é que vem o reconhecimento
escatológico universal de YHWH como criador.233 Existe um fortíssimo
monoteísmo escatológico expresso nas profecias do Dêutero-Isaías, que anuncia,
entre outras coisas, um futuro ato de salvação, que resultará em um
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

reconhecimento universal de YHWH como soberano.234 Fl 2,9-11 está mostrando


que esse ato de salvação já aconteceu (a encarnação, a morte e ressurreição de
Jesus), e resultou em Deus exaltando Jesus para que ele seja reconhecido como
soberano universal. O reconhecimento de Jesus como soberano é a aceitação da
soberania de YHWH. Portanto, Fl 2,9-11 é “uma versão cristológica da
escatologia monoteísta do Deutero Isaías”.235 Esse raciocínio revela como o hino
constrói a sua cristologia sem recuar um palmo sequer do seu monoteísmo.
Através da exaltação, também é possível detectar em Fl 2,9-11 uma
dimensão escatológica espacial. Primeiro porque o senhorio de Jesus abrange
todas as partes do cosmos, como se percebe na tríplice expressão ἐπουρανίων καὶ
ἐπιγείων καὶ καταχθονίων. Segundo porque, do ponto de vista dos leitores da carta

231
KÄSEMANN, E, Ensayos Exegeticos, p. 101.
232
Entre outros, GUTHRIE, D., Teologia do Novo Testamento. p. 354 e MARTIN, R. P., A
Hymn of Christ, p. 239, afirmam que o verbo ὑπερύψωσεν abrange tanto a ressurreição, quanto a
ascensão. Para Martin um paralelo seria o texto de 1Pe 3,18-20, onde a expressão ζῳοποιηθεὶς δὲ
πνεύματι expressaria toda a realidade do ministério pós-ressurreição de Jesus. Em outra direção,
LÜDEMANN, G., ὑψόω. In: DENT, v. II, p. 1912, afirma que no Novo Testamento a exaltação
não foi identificada com a ressurreição, ainda que isso houvesse acontecido em tempos primitivos.
233
GOPPELT, L., Teologia do Novo Testamento, p. 331-332.
234
BAUCKHAM, R. J., The Worsphip of Jesus in Philippians 2:9-11, p. 132-133.
235
BAUCKHAM, R. J., The Worsphip of Jesus in Philippians 2:9-11, p. 133. Segundo ele, Isaías
40-66 foi fundamento escriturístico para os primitivos cristãos compreenderem o significado dos
eventos relacionados a Jesus e ao seu futuro. É uma influência que perpassa todos os escritos do
Novo Testamento. Contudo, ele chama atenção para o fato que eles não liam as assim chamadas
passagens-servo isoladas dos temas da salvação escatológica e do monoteísmo escatológico que
dominam aqueles capítulos.
73

(e talvez um dia daqueles que ouviram e cantaram o hino) os versículos 10-11


desafia os que estão na Terra a reverenciar e confessar aquele que está sentado
agora nos céus, à direita do Pai (embora esta expressão não esteja presente aqui,
faz parte da perspectiva paulina da exaltação). E isso encaminha um terceiro
aspecto, pois a comunidade de fé é o espaço no qual o Cristo exaltado reina
através do Espírito Santo.236 A Igreja funciona como epicentro do reinado
cósmico de Jesus.
Assim, tanto em um ângulo temporal, quanto em uma dimensão espacial,
não se pode subestimar a importância da escatologia para a compreensão do
conjunto de Fl 2,6-11, sobretudo na parte que trata da exaltação. A ausência desta
perspectiva no tratamento exegético da passagem foi denunciada por Käsemann
ao constatar que “talvez seja a característica mais singular e mais surpreendente
da história recente da exegese do nosso texto o fato de que a palavra chave
‘escatológico’ desapareça por trás dessas outras palavras chaves ‘ético’ e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

‘mítico’”.237 Se na exegese atual “mito” como palavra chave para entender o texto
não goza da mesma popularidade que no passado, o mesmo não se pode dizer a
respeito da palavra chave “ético”.
Destarte, no pensamento paulino essa linha escatológica que se desenvolve
a partir do Antigo Testamento vai culminar em Cristo, através de quem Deus
triunfa sobre os seus inimigos. Paulo vai descrever esse triunfo de Deus em Cristo
através dos eventos da morte e ressurreição de Jesus (o ponto de partida) e da
parusia (o ponto de culminância). Nesse intervalo de tempo, Cristo está no céu
exercendo seu domínio sobre seus adversários e guiando seu povo aqui na Terra
que continua lutando contra as forças hostis, ainda que gozando os benefícios e as
vantagens da vitória de Cristo na cruz e na expectativa da consumação na
parusia.238 A exaltação de Cristo efetua uma espécie de troca de soberania no
universo, um universo que até então estava em confronto com poderes que
tentavam escravizá-lo.239

236
VOUGA, F., Teologia del Nuevo Testamento, p. 253.
237
KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 101-102. Esta observação é de certa forma irônica,
pois o próprio Käsemann entende que por trás do hino está o mito do redentor cósmico, e que esse
pano de fundo mitológico é fundamental para o entendimento do hino e rejeitar o modelo de
interpretação ético.
238
REID, D. G., Triunfo, In: DPC, p. 1208-1209.
239
KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 119.
74

Esses poderes e autoridades que agora estão subordinados ao Cristo


exaltado são, conforme Reid, equivalentes às nações inimigas de Israel.240 Na
verdade, o judaísmo interpretava esses poderes espirituais ou demônios como as
forças atuantes por detrás das nações inimigas e seus deuses. Enquanto inimigos
de Israel, esses poderes são inimigos de YHWH, e em consequência, tornam-se
inimigos de Cristo. A crucificação pode ser vista como o contínuo ataque desses
poderes contra Israel, a tentativa de destruir aquele que representava o povo da
aliança. O aparente êxito deles na morte de Jesus significou, no entanto, sua
própria derrota. O seu ataque ao segundo Adão obediente foi sua própria derrota.
“Cristo os levou após si no cortejo triunfal da cruz, revelou a derrota deles e os
expôs publicamente”.241
Assim, na narrativa paulina a exaltação não é uma simples vindicação do
justo sofredor, o reconhecimento e aceitação de Deus Pai da obediência do seu
Filho, e muito menos a recompensa por um sacrifício voluntário. A cruz e a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

exaltação estão no centro de um drama soteriológico, pois de acordo com o


substrato judaico com o qual Paulo trabalha não existe salvação sem o triunfo
escatológico de YHWH sobre os inimigos de Israel. A cruz e a exaltação não são
dois tópicos que se equivalem um ao lado do outro, mas dois capítulos de uma
mesma sequência narrativa. Essa metáfora faz perceber que a “morte de cruz” não
é sozinha o cumprimento da esperança escatológica israelita. E em contrapartida,
os inimigos que agora estão subordinados ao Cristo exaltado, só foram vencidos
porque ele era o Filho de Deus, que não apegou ao ser igual a Deus, mas assumiu
a forma humana, adotou a forma de servo e foi obediente até a morte, e morte de
cruz. O Exaltado é o crucificado. Para Paulo, o acontecimento escatológico da
crucificação e exaltação de Jesus foi a derrota destes poderes e a sua subordinação
ao Cristo exaltado. “Desse modo, o tema paulino da exaltação e entronização de
Cristo simboliza o triunfo de Deus em Cristo”.242

240
REID, D. G., Triunfo, In: DPC, p. 1209.
241
REID, D. G., Triunfo, In: DPC, p. 1211.
242
Ibid., p. 1210.
75

4.3.4
A exaltação de Jesus em relação a sua preexistência

A reflexão anterior contribui para elucidação do papel da exaltação na


trama do texto de Fl 2,6-11 como um todo. A questão é dimensionar o valor exato
do verbo ὑπερυψόω no contexto. São duas opções. A primeira acentua o valor
comparativo do verbo, reconhecendo a força da preposição ὑπὲρ presente na
palavra. Nesse caso, a interpretação resultante é que Cristo foi exaltado a uma
posição superior a que ele tinha na sua preexistência, isto é, Fl 2,9 vai além de Fl
2,6.243 A segunda possibilidade é dar ao verbo um valor superlativo, indicando
que Cristo está exaltado acima de todos e na mais alta posição. Em favor desta
linha de interpretação afirma-se antes de tudo que o verbo aqui é derivado da
LXX de Is 52,13, que afirma que o servo de YHWH se “elevará, será exaltado
[ὑψωθήσεται], será posto nas alturas”. Outro argumento é que os verbos
compostos com ὑπὲρ fazem parte do estilo característico de Paulo, geralmente
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

com sentido superlativo. Além disso, o uso aqui teria mais a ver com o estilo do
autor do que com um significado superior ao uso do verbo simples (ὑψόω).244
Todavia, ainda que a tradição dos cânticos de servo tenha influenciado a
elaboração do hino cristológico, não há como provar que justo o texto de Is 52,13
esteja por trás de Fl 2,9. Ademais, o verbo que Paulo usa é diferente do utilizado
pela LXX em Is 52,13. De fato, seria de se esperar que Paulo usasse o verbo mais
comum ὑψόω, pois além de prover um paralelo perfeito com o texto de Isaías, já
era utilizado no cristianismo primitivo para descrever a exaltação de Jesus.245 Ele,
contudo, escolheu ὑπερυψόω.246 Quanto à preferência paulina por verbos
compostos, é difícil de imaginar que em uma passagem com palavras tão
selecionadas, formando um delicado e criativo equilíbrio teológico, Paulo
escolhesse descrever a exaltação de Jesus com um termo que nunca usou em outro
lugar apenas por uma questão de “estilo literário”. E quanto à comparação com os
243
Enquanto proposta foi adotada na clássica exegese da passagem feita por E. Lohmeyer.
244
Entre os que adotam a posição superlativa estão O’Brien, P. T., The Epistle to the Philippians,
p. 235-236.
245
Assim em At 2,33 e 5,31, textos reconhecidos como tradições primitivas utilizadas por Lucas,
tradições que Paulo deve ter conhecido. ὑψόω também é utilizado pelo quarto evangelho para
descrever a exaltação de Jesus (3,14; 8,28 e 12,32), mas o texto é posterior a Paulo.
246
Como nota MAZZAROLO, I., Carta de Paulo aos Filipenses, p. 83: “não obstante tenha
havido um texto como inspiração [do hino], a terminologia e o estilo são uma construção nova. Por
outro lado, é difícil sustentar a tese de CERFAUX, L, Cristo na teologia de Paulo, p. 305, para
quem a mudança do verbo foi porque Paulo queria estender a exaltação de Jesus para além da
humanidade, a fim de incluir o seu senhorio sobre as potestades.
76

outros compostos verbais que fazem uso da mesma preposição, ela é instrutiva,
mas não determinante.247 Nada impede que Paulo, que está usando um hapax
legomena, utilize este composto verbal de uma forma específica, por conta do seu
contexto.248 Dessa forma, o fato exegético é que o verbo ὑπερυψόω é usado no
corpus paulino e no Novo Testamento de maneira exclusiva dentro da passagem
de Fl 2,6-11, e este contexto literário deve ser o privilegiado para explicá-la.
Assim sendo, partindo do pressuposto que Paulo tinha um outro verbo a
sua disposição (ὑψόω), mesmo que não se deva exagerar o valor do composto
verbal, não é boa exegese subestimar que foi exatamente este o termo que Paulo
escolheu. Como observa Cullmann: “Notamos que este ὑπερύψωσεν não é uma
mera figura de retórica, mas que o prefixo ὑπερ, ‘sobre’, tem de ser tomado em
seu pleno sentido”.249 Em outras palavras, o verbo ὑπερυψόω vai além do que o
simples ὑψόω.250 Por conseguinte, é bastante plausível compreender a passagem
como um todo, e o versículo 9 em particular, concedendo um valor comparativo e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

assim específico ao verbo ὑπερυψόω.251


Em primeiro lugar, a interpretação natural de Fl 2,9 é que Jesus recebe um
nome que não tinha anteriormente. Conforme será aprofundado a seguir, esse
novo nome indica um novo ofício, uma nova função do Filho de Deus diante do
cosmos. Uma outra consideração é que o grande argumento em favor da
interpretação superlativa é dogmático, não exegético, pois diz respeito à
impossibilidade de se ir além da “igualdade com Deus” pressuposta em Fl 2,6.252

247
KREITZER, L. J., “When He at Last Is First!”: Philippians 2:9-11 and the Exaltation of the
Lord, p. 118, afirma que Paulo aprecia muito as construções com ὑπερ, mas essas comparações são
uma base insuficiente para afastar o sentido comparativo do verbo.
248
Por exemplo, FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 290, argumenta que
“na grande maioria dos casos” em que Paulo usa verbos compostos com a preposição ὑπὲρ não
indica uma posição superior à anterior. Ora, é possível extrair uma conclusão segura apenas pela
combinação da mesma preposição com outros verbos completamente diferentes, que ainda assim,
só possuem essa utilização “na grande maioria dos casos”?
249
CULLMANN, O., Cristologia do Novo Testamento, p. 285.
250
CULMANN, O., Cristologia do Novo Testamento, p. 236. Ele, por sua vez, toma essa
informação de J. Héring.
251
Segundo SILVA, Moisés, Philippians, p. 115, a etimologia da forma verbal aponta para um
sentido comparativo.
252
Por conta disso, o tratamento que a cristologia dogmática da Igreja Antiga dava a passagem
sempre fazia do versículo 6 o centro do hino. KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 94.
77

Só que a exaltação não quer dizer uma mudança de οὐσία mas de função.253 Paulo
não está seguindo uma agenda de discussão ontológica, mas desenvolve uma
narrativa cristológica, para descrever um evento soteriológico e escatológico, que
acarreta implicações eclesiológicas, tendo em vista o contexto parenético de 1,27-
2,17.254 Como destaca Bockmuehl: “Enquanto não há nenhuma sugestão de uma
mudança do ser, existe, apesar de tudo, uma mudança de nome e de função”
(grifos dele).255 O paralelo neotestamentário seria Mt 28,18, onde apenas após a
ressurreição Jesus recebe toda autoridade sobre o céu e sobre a Terra.256
Deve-se ainda notar que a interpretação do hino de forma linear (e não
cíclica), a partir de um pano de fundo histórico-salvífico, deixa claro que a ênfase
da narrativa está na virada escatológica que ocorre a partir do 2,9. O hino caminha
para exaltação e tem seu clímax nela. É muito difícil sustentar exegeticamente que
tudo o que é descrito em 2,9-11 já estava presente nas expressões ἐν μορφῇ θεοῦ /
τὸ εἶναι ἴσα θεῷ. De fato, “no início ele era ἐν μορφῇ θεοῦ, mas não era
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

253
SILVA, Moisés., Philippians, p. 115, considera afirmação de que a exaltação levou o Filho de
Deus a um estágio superior ao que ele tinha na preexistência estranha ao texto. Seria, de fato,
estranho se o conjunto de Fl 2,6-11 não mencionasse qualquer tipo de preexistência. No entanto,
preexistência e exaltação fazem parte do mesmo conjunto literário. Não tentar relacioná-las é que é
estranho. Como observa CULLMANN, O., Cristologia do Novo Testamento, p.236: “Se Jesus
era já, em sua preexistência, a imagem de Deus – é, com efeito, do v. 6 que é preciso partir [...] – e
se agora se diz que Deus fez mais do que elevá-lo, não significa isto que, depois de sua morte,
Jesus não voltou tão somente à existência que tinha antes de sua encarnação [...], mas que em
virtude de uma nova função, entrou em relação ainda mais estreita com Deus, relação que lhe
confere o título Kyrios, com plena soberania sobre o universo inteiro?” (grifos dele).
254
O ponto é bem observado por HELLERMANN, J. H., Philippians, p. 105-106. Entretanto,
parece que ele vai longe demais ao afirmar que o interesse de Paulo no hino seria apenas
sociológico. O hino possui implicações sociológicas, mas esse não é o seu objetivo principal.
255
BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 144. Na mesma página, ele ainda faz a
ousada afirmação que “A humilhação e o triunfo da encarnação, em outras palavras, fez uma
diferença identificável mesmo dentro da divindade”.
256
Este parágrafo é importante para afastar qualquer relação entre a exegese proposta e algum tipo
de arianismo. De acordo com BASEVI, C., Estudio literario y teológico del himno cristológico
de la epístola a los Filipenses (Phil 2,6-11), p. 464, os arianos tomavam os versículos 9-11 como
prova de que antes da exaltação Cristo não era Deus como o Pai. Porém, como observado acima,
não está se discutindo aqui a divindade do Filho de Deus, que deve ser considerada completa e
sem alterações ao longo de toda a passagem, do versículo 2,6 a 2,11. Destarte, CASEY, P. M.,
From Jewish Prophet to Gentile God, p. 114-115, ao mesmo tempo que afirma que a exaltação
de Jesus é estágio acima do que ele possuía na sua preexistência, vai ao extremo quando defende
que em nenhum momento do hino Jesus é considerado inteiramente divino.
78

κύριος”.257 Há uma progressão, não apenas um retorno. “O novo status de Jesus


Cristo é mais do que uma mera volta para a preexistente igualdade com Deus”.258
Outro ponto diz respeito à tese que a exaltação é uma simples volta ao
estágio da preexistência, ou que a exaltação é relativa ao Jesus encarnado
apenas.259 Afirmações como esta deixam de perceber o peso e o significado do
título κύριος dado a Jesus a partir da exaltação, segundo o contexto do próprio
hino.260 Na verdade, na perspectiva escatológica de Paulo, a exaltação de Jesus
corresponde à intervenção de Deus na história, de modo que um novo éon chegou,
o novo e definitivo éon, e ao contrário do antigo, esse é caracterizado pela
soberania de Jesus e pela necessidade de se reverenciá-lo como Senhor do
universo. Diversos textos no corpus paulino, tanto das cartas autênticas, quanto
daquelas consideradas posteriores, são unânimes em afirmar que foi agora, a partir
da exaltação, que os poderes desse mundo, aqueles que dominavam no antigo éon,
estão todos subordinados a Jesus (cf. Ef 1,21-22; Cl 2,15; 1Co 15,24-25).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

257
BROWN, C., Ernst Lohmeyer’s Kyrios Jesus, p. 29-30. Em sentido oposto, FOWL, S. E.,
Philippians, p. 104, entende que esse tipo de intepretação sugere que alguma coisa estava ausente
na divindade de Cristo pressuposta no versículo 6, o que seria, na sua visão, impossível do ponto
de vista teológico. A questão, entretanto, é o que determina a interpretação da passagem: ela
mesma ou algum sistema teológico? Ele observa: “Simplesmente tratar esta passagem como uma
narrativa direta, na qual um evento cria as condições para o próximo evento, levantaria sérias
questões sobre a lógica teológica da passagem que devem, no mínimo, ser notadas”. O ponto é,
além de notar essas questões, respondê-las de forma coerente com o texto, e como ele mesmo
reconhece, quando se dá atenção apenas ao fluxo narrativo da passagem, é difícil fugir da ideia que
Cristo recebeu algo que não tinha anteriormente.
258
SCHNELLE, U., Paulo: Vida e Pensamento, p. 473, grifos dele. Na mesma linha BARTH, G.,
A carta aos Filipenses, p. 47: “esta exaltação não significa apenas a restauração do seu estado
anterior em subsistência divina, mas que ela lhe concede mais do que possuía anteriormente”.
259
FOWL, S. E., Philippians, p. 104, informa que Tomás de Aquino, enfrentando a questão
teológica de uma possível mudança em Cristo nos versículos 9-11, aponta duas possíveis soluções.
A primeira, adotada por Ambrósio, propõe que a exaltação corresponde à divinização da natureza
humana de Jesus. A segunda, que remonta a Agostinho, defende que a exaltação é apenas a
manifestação à criação daquilo era verdade desde a eternidade. Ocorre tão só uma mudança na
revelação. Segundo Fowl, Aquino considera as duas explicações plausíveis para o texto. Em
tempos mais recentes, HENDRIKSEN, W., Efésios e Filipenses, p. 486, está entre os que seguem
a primeira solução, enquanto HELLERMAN, J. H., Philippians, p. 120-121, se aproxima da
segunda, quando a partir de categorias sociológicas afirma que na exaltação Jesus não recebeu um
novo nome, mas sim uma aclamação pública da sua reputação. Contudo, a primeira solução de
Aquino deve ser rejeitada porque o autor do texto não desenvolveu sua argumentação seguindo a
categoria “duas naturezas”, que conquanto seja uma categoria teológica legítima, é anacrônica ao
texto. O sentido do fluxo narrativo é que o evento do versículo 9 está relacionado ao mesmo
personagem que é sujeito no versículo 6. Dizer que no versículo 6 trata-se da natureza divina e no
versículo 9 da natureza humana, não é razoável exegeticamente. Tampouco a segunda solução de
Aquino é uma saída melhor, porque ela desloca o fenômeno da exaltação de Jesus para o mundo. É
o mundo que muda, possuindo uma nova visão sobre Deus. Embora isso de fato tenha ocorrido, é
uma consequência da exaltação de Jesus, e não a exaltação em si.
260
Conforme O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 238: “Em seu estado exaltado
Jesus tem uma nova posição que envolve o exercício do senhorio universal”.
79

Uma quinta observação envolve a percepção que, em geral, a opção pelo


verbo como superlativo é muito comum nas explicações da passagem de cunho
ético, onde o objetivo de Fl 2,6-11 seria não mais que a apresentação aos cristãos
de um modelo de vida baseado nas atitudes de Jesus.261 E para estabelecer um
paralelo entre a exaltação de Jesus e a futura exaltação dos cristãos, não seria
interessante entender a primeira em termos de uma nova missão, um novo ofício
(como defende este trabalho). Seria melhor (segundo os proponentes da
interpretação ética) compreender a exaltação apenas como a justificação de Jesus,
o reconhecimento da humilhação dele por Deus. O complicado é que isso dá aos
versículos 9-11 um valor completamente relativo diante de 6-8. Veja, por
exemplo, a afirmação de Fee: “Com esta nota de exaltação, Paulo tanto afirma a
correção do paradigma ao qual ele chamou os filipenses e mantém ante os seus
olhos a vindicação que aguarda aqueles que estão em Cristo”.262 Nesse modo de
ver, os versículos 9-11 servem apenas para confirmar o valor de 6-8, o verdadeiro
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

centro da passagem.
Por sua vez, a aplicação do modelo interpretativo paradigmático na
segunda parte do hino reduz a exaltação de Jesus a um modelo para os cristãos: se
Deus exaltou Jesus porque ele renunciou aos seus interesses e foi obediente, da
mesma forma exaltará todo aquele que abrir mão do seu interesse em favor da
missão de Deus para sua vida.263 O detalhe é que na perspectiva paulina a
exaltação de Jesus não é um modelo, do tipo: Deus fez uma vez, vai fazer de
novo. A exaltação de Jesus fundamenta a esperança cristã porque ela inaugurou
um novo tempo escatológico, pondo em operação uma nova criação (“Se alguém
está em Cristo, é nova criatura. Passaram-se as coisas antigas; eis que se fez

261
Cf. o capítulo anterior.
262
FEE, G. D., Pauline Christology, p. 393. Também em FEE, G. D., Comentario de la Epístola
a los Filipenses, p. 262: “O contexto deixa claro que os vs. 6-8 funcionam principalmente como
um paradigma”. Já BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians., p. 141-142, segue a
mesma direção da exaltação de Jesus como vindicação da parte de Deus, mas acrescenta que isso
seria uma necessidade para que Deus manifeste a sua justiça. Por conseguinte, caso se considere o
texto como um credo, em uma prosa exaltada, como sugere Fee, rejeitando qualquer relação do
texto com o gênero hino, isso não alteraria a avaliação exposta acima, posto que os credos são
afirmações concisas das verdades centrais da fé, com acento especial na cristologia e soteriologia
(e não na ética ou parênese).
263
É o que pensa FOWL, S., Christology and Ethics in Philippians 2:5-11, p. 147, quando diz que,
se os filipenses estiverem unidos, colocando em prática as virtudes listadas em Fl 2,2-4, mesmo
diante de perseguições, “então Deus irá salvá-los da mesma forma que salvou o Cristo obediente,
humilhado e sofredor em 2:6-11”.
80

realidade nova” 2Co 5,17).264 Se Deus exaltou Jesus em Fl 2,9, a mensagem


paulina não é ser exaltado como ele, mas exaltado por ele (Fl 3,21). A partir da
exaltação Jesus é o agente escatológico que cumprirá a esperança cristã.265 O
conjunto inteiro de Fl 2,6-11 descreve o evento escatológico da encarnação, morte
e exaltação do Filho de Deus, e esse evento singular traz o indivíduo crente para o
domínio de Cristo. Esse é o significado exato do estar “ἐν Χριστῷ” (2,5), domínio
no qual se entra através da confissão na ressurreição de Jesus (Rm 10,9)266 e pelo
sacramento do batismo, que estabelece uma união entre o fiel e o Jesus ressurreto
(Rm 6,3-11), a ponto de aquele já experimentar no presente os efeitos
escatológicos da ressurreição deste. E é a experiência desse poder quando se está
em Cristo que capacita o fiel à resposta ética necessária ao evangelho, e não a
tentativa de imitar Jesus.267
A esperança cristã não é vencer a morte como ele venceu, mas vencer
porque ele venceu, porque é a ressurreição dele que torna possível a ressurreição
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

dos mortos no futuro (“Com efeito, visto que a morte veio por um homem,
também por um homem vem a ressurreição dos mortos” 1Co 15,21). Enquanto
Senhor do cosmos ele tem a “força que lhe dá poder de submeter a si todas as
coisas”, e por esse motivo os cristãos podem esperar que ele transfigurará o seu
corpo humilhado (Fl 3,21). “Fazer viver os mortos é direito escatológico
exclusivo de Deus”, comenta Becker, “contudo, em Fl 3,21, Cristo tem o poder de
transfigurar os homens mortais”,268 porque a partir da exaltação Deus o agraciou
com essa autoridade.
Dessa forma, não basta ao indivíduo fazer como Jesus fez (se que é
possível!), mas submeter-se a ele como Senhor. Por isso o hino culmina na
exaltação, celebra Jesus como Senhor, e desafia os leitores à submissão e
obediência a ele. Tudo agora depende de ser ou não ser obediente a Jesus, o
κύριος.269 O tema da obediência vai ser explicitamente usado por Paulo no

264
ὥστε εἴ τις ἐν Χριστῷ, καινὴ κτίσις· τὰ ἀρχαῖα παρῆλθεν, ἰδοὺ γέγονεν καινά. Notar que o
verbo γίνομαι está no indicativo perfeito, talvez para indicar a continuidade dos efeitos dessa nova
realidade escatológica no presente.
265
DODD, B. J., The Story of Christ and the Imitation of Paul, p. 157.
266
Texto que, inclusive, associa a confissão de Jesus como Senhor à ressurreição: “Porque, se
confessares com tua boca que Jesus é Senhor [κύριον Ἰησοῦν] e creres em teu coração que Deus o
ressuscitou dentre os mortos, serás salvo”.
267
DODD, B. J., The Story of Christ and the Imitation of Paul, p. 160.
268
BECKER, J., Apóstolo Paulo: vida, obra e teologia, p. 563.
269
MORGAN, R., Incarnation, Myth and Theology, p. 65.
81

contexto imediato, em Fl 2,12, através do verbo ὑπακούω, quando ele retoma a


parênese, extraindo do hino implicações para a igreja. O caminho para essa
obediência é pontuado por Morgan: “Nós nos tornamos obedientes não pela
imitação de um modelo, mas através de uma palavra que nos diz que pertencemos
a ele”.270
A última consideração em favor deste sentido comparativo de ὑπερύψωσεν
é que ele pode fechar com a interpretação do tipo res rapienda de Fl 2,6, a saber,
quando a expressão οὐχ ἁρπαγμὸν é interpretada indicando que o Filho de Deus,
embora existindo ἐν μορφῇ θεοῦ, ainda não possuía o governo soberano sobre
todo o universo (significado no contexto da expressão τὸ εἶναι ἴσα θεῷ), e não
buscou consegui-lo de forma independente, alheio à vontade do Pai.271 Aliás, o
hino nem mesmo sugere que o Filho de Deus almejasse por isso, pois senão
chegaríamos à conclusão de que a obediência e humilhação do Filho de Deus
foram um meio para um fim, um caminho para se chegar na soberania. Se o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

clímax do hino realmente é a exaltação, então ele não tem como objetivo justificar
porque Jesus foi exaltado, mas mostrar para os leitores quem é o verdadeiro
Senhor de todo o cosmos,272 ou ainda mais especificamente responder: “como é
possível confessar o senhorio de alguém que viveu e morreu como um homem
qualquer, e chamar de Senhor alguém que na sua vida se configurou a um
escravo”?273 A resposta de Fl 2,6-11 é que ele não era um homem qualquer, mas
tinha a imagem de Deus e foi até a cruz em submissão a Deus. E não foi ele quem

270
MORGAN, R., Incarnation, Myth and Theology, p. 67.
271
Assim MARTIN, R. P., A Hymn of a Christ, p. 148-153. Também CULLMANN, O.,
Cristologia do Novo Testamento, p. 233-234, que enxerga todo o hino de Fl 2,6-11 como uma
antítese entre Jesus e Adão. Este desejou a igualdade com Deus, e abriu mão da obediência a Deus
para buscá-la. Em sentido totalmente oposto, o Filho de Deus além de não desejar ser igual a Deus
(que Cullmann interpreta não em termos de divindade, mas de soberania sobre o universo),
submeteu-se com humildade e obediência a Deus. Na mesma linha COLLINS, A. Y., Psalms,
Philippians 2:6-11, and the Origins of Christology, p.336, que opta pela interpretação res
rapienda e ainda declara: “O enredo da passagem requer que o estado final de Jesus seja maior que
o estado inicial”. Por sua vez, GUTHRIE, D., Teologia do Novo Testamento, p. 351, avalia essa
interpretação como “razoável”. Ele afirma: “O hino certamente sugere alguma forma na qual a
exaltação ia além do estado preexistente”. Não obstante, o próprio R. P. Martin entende que a sua
interpretação seria uma variação entre as clássicas posições res rapta (Cristo já possuía a
igualdade com Deus na preexistência e não se apegou a isso, e a exaltação não muda nada em
relação a isso) e res rapienda (Cristo não possuía a igualdade com Deus, inclusive a divindade,
que seriam recebidas na exaltação). WRIGHT, N. T., The Climax of the Covenant, p. 62-81, faz
uma extensa avaliação das interpretações do termo ἁρπαγμός na literatura especializada, e
identifica 17 possibilidades diferentes. Na avaliação dele, a exegese de Cullmann e Martin deve
ser classificada como res rapienda.
272
Conforme VOUGA, F., Teologia del Nuevo Testamento, p. 268, mostra que o tema do hino é
a afirmação de que o Senhor do mundo é o crucificado.
273
BARBAGLIO, G., As cartas de Paulo II, p. 378.
82

se exaltou, mas o próprio Deus o colocou na posição mais elevada do universo,


compartilhando sua soberania com ele. Ou seja, o κύριος que Deus exaltou não
são os imperadores de Roma, nem as divindades orientais. O κύριος exaltado pelo
único Deus de Israel é aquele que não buscou a exaltação, se esvaziou e assumiu a
forma de servo, e foi obediente a Deus até a morte de cruz. O κύριος é aquele que
agora é soberano sobre todo o universo, acima de todos os poderes, visíveis e
invisíveis. Este κύριος deve ser confessado e reverenciado por todos, sem
exceção. E o reconhecimento de que esse κύριος é Jesus Cristo glorifica Deus Pai,
o Deus único de Israel.
Portanto, ainda que não seja impossível tomar o verbo ὑπερύψωσεν em
uma dimensão superlativa, parece que faz mais jus ao texto como um todo e ao
papel desempenhado pela exaltação de Jesus no conjunto, a dimensão
comparativa.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

4.3.5
A exaltação de Jesus e a cultura romana de exaltação

O Jesus exaltado apresentado em Fl 2,6-11 é diametralmente oposto às


figuras consideradas exaltadas no ambiente sócio-político da época paulina. O
anúncio da exaltação de Jesus é contra cultural, quase subversivo, tanto no que diz
respeito ao seu status atual como κύριος, como no que se refere ao caminho que
ele trilhou até chegar a esse status de exaltação. Porque ao contrário das
autoridades que chegavam ao poder através da violência e do roubo, o Filho de
Deus nem sequer desejou o poder.274 Ao invés da apoteose, ocorreu a kenosis.275
Ele optou pela obediência, agir como servo, humilhou-se e morreu recebendo a
pena romana da crucificação.276
É uma mensagem que causaria impacto em qualquer canto do império
romano onde ecoasse a ideologia do cursus honorum. Este pensamento levava os
cidadãos romanos na capital e em toda extensão do império a lutar entre si por
títulos, cargos, homenagens e outras situações que acarretassem prestígio e

274
SCHNELLE, U., Paulo: Vida e Pensamento, p. 475.
275
BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 143.
276
WRIGHT, N. T., Paulo: novas perspectivas, p. 89: “o suplício da cruz veio a se tornar um
símbolo eficaz e temido nas mãos do poder imperial bem antes de vir a se tornar o símbolo de
qualquer outra coisa”
83

reconhecimento, que tempos depois eram listadas de forma ascendente e


colocadas em inscrições públicas.277 Esse código cultural era muito importante
para a cidade de Filipos enquanto colônia romana, que tanto se orgulhava da sua
ligação com o império, exibindo sua influência por toda parte. Para esse cenário
sociocultural, Fl 2,6-11 funciona como uma mensagem contra cultural,
descrevendo o caminho de Jesus como cursus pudorum, onde ele abriu mão da
sua alta posição de honra, prestígio e glória, e desceu para servir aos outros,
chegando ao mais baixo patamar da condição humana da época: a morte de
cruz.278 A mensagem cristã proclamava um Senhor acima de todos os senhores
que não chegou a esse status pelo cursus honorum romano, mas que seguiu pelo
cursus pudorum.
Só que o texto não termina afirmando que o humilhado foi simplesmente
exaltado. O texto vai adiante para mostrar que o exaltado recebeu o nome sobre
todo nome, o próprio título κύριος, e agora é o único que deve ser reverenciado e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

confessado (Fl 2,10-11) por todos os seres do universo. O imperador romano era
considerado Senhor do império, e no culto ao imperador, a figura dele
representava a unidade do império. Fl 2,9-11 apresenta Jesus como Senhor do
universo, e a unidade do universo nele é celebrada no culto cristão.279 Tudo isso
aponta para a clara dimensão política da exaltação de Cristo,280 que como
realidade escatológica traz sérias implicações para a vida dos cidadãos de Filipos
que estão debaixo do poder de Roma.281 A partir de então é impossível para os
cristãos reconhecerem a reivindicação de domínio do imperador, ou de qualquer
outro. Com a exaltação de Jesus eles estão debaixo de um novo Senhor, de um

277
HELLERMAN, J. H., Philippians, p. 106.
278
Idem. Enquanto cursus honorum significa um caminho de honras, cursus pudorum quer dizer
um caminho de vergonha, de humilhações.
279
WORTHAM, R. A., Christology as Community Identity in the Philppians Hymn: the
Philippians Hymn as Social Drama (Philippians 2:5-11), p. 282.
280
O próprio formato da passagem, como reconhecido de forma ampla, segue a estrutura dos
cerimoniais de entronização do rei, pode intencionar um contraste com os governantes
contemporâneos que foram entronizados. E pelo ângulo da retórica grega chega-se a mesma
impressão, pois como nota MARTIN, M. W.; NASH, B. A., Philippians 2:6-11 as Subversive
Hymnos: a Study in the Light of Ancient Rhetorical Theory, p. 130, em geral esse tópico era
utilizado em referência a deificação pós-morte do imperador. Daí, em Fl 2,6-11 este tópico
funciona como uma aguda retórica apontada contra Roma. Também nessa perspectiva, KRENTZ,
E., Paulo, os jogos e a milícia, p. 325, cita R. R. Brewer, segundo o qual Paulo teria formulado Fl
2,9-11 com a intenção de fazer oposição ao culto ao imperador Nero.
281
FOWL, S. E., Philippians, p. 105: “Esses versos assentam o fundamento para a contra-política
que Paulo deseja que os filipenses incorporem em sua vida comum”.
84

novo domínio,282 e possuem uma nova cidadania, o que o apóstolo expressa


através do verbo πολιτεύομαι em Fl 1,27.283 Através da afirmação da exaltação de
Cristo “Paulo introduz uma autoridade nova e insuperável do tempo
escatológico”.284

4.4
A exaltação de Jesus e a doação de um novo nome

4.4.1
O verbo χαρίζομαι

Como apontado no início deste capítulo, o verbo ἐχαρίσατο está nessa


frase em paralelo com o verbo anterior ὑπερύψωσεν, “amplificando seu
significado e indicando sua natureza”.285 No Novo Testamento, χαρίζομαι
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

significa uma doação feita de forma livre, graciosa, como um favor feito a
alguém.286 Em Fl 2,9 naturalmente o favor é feito por Deus. É curioso que fora do
Novo Testamento χαρίζομαι não ocorre tendo Deus como sujeito antes do século
II d.C. A partir de então, passa a ser usado no sentido de “dar graciosamente”, que
é o sentido predominante na LXX, a provável fonte de influência
neotestamentária.287

282
FOWL, S. E., Philippians, p. 105.
283
WORTHAM, R. A., Christology as Community Identity in the Philppians Hymn: the
Philippians Hymn as Social Drama (Philippians 2:5-11), p. 269-287, propõe fazer uma leitura
da passagem toda de Fl 2,6-11 privilegiando a função social que ela desempenharia na comunidade
cristã primitiva. Desse modo, o humilhado que é exaltado representaria o início da transformação
do cristianismo de uma subcultura dentro do judaísmo para uma comunidade religiosa
independente com poder e autoridade legítimos.
284
SCHNELLE, UDO., Teologia do Novo Testamento, p. 285-286. Este autor prefere falar de
uma dimensão política da teologia paulina, ao invés de uma teologia anti-imperial de Paulo, como
se o apóstolo de forma explícita ou velada, estivesse articulando uma crítica a Roma. Ele avalia
que esta última interpretação tem sido importante na literatura teológica anglo-americana. Em
contrapartida, FEWSTER, G. P., The Philippians ‘Christ Hymn’: Trends in Critical
Scholarship, p. 202, salienta que a passagem em análise “teria funcionado como uma forma
pública de resistência contra o culto imperial”, se tivesse sido utilizada repetidamente como hino
na comunidade.
285
O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 237.
286
BAGD, p. 876-877. O verbo é muito importante para Paulo, como indica a estatística. São 23
ocorrências no Novo Testamento, sendo 11 nas cartas paulinas, a saber: Rm 8,32; 1Co 2,12; 2Co
2,7; 2Co 2,10 (3x); 2Co 12,13; Gl 3,18; Ef 4,32 (2x); Fl 1,29 e 2,9; Cl 2,13 e 3,13 (2x); Fm 1,22.
287
ESSER, H. H., χάρις. In: DITNT, v. I, p.907-915.
85

No contexto de Fl 2,9-11 o verbo χαρίζομαι acentua que a exaltação não


foi a conquista do herói Jesus Cristo. Muito pelo contrário, o verbo sugere que a
exaltação de Jesus foi uma “dádiva da graça”,288 e que, embora Jesus merecesse,
Deus não o exaltou como se fosse obrigado ou constrangido a isso por uma lei
moral cósmica, nem mesmo pela ação de Jesus descrita nos versículos 6-8.289 A
exaltação de Jesus foi um ato livre da graça de Deus.290 Trazendo isso para um
contexto trinitário, o relacionamento que o conjunto de Fl 2,6-11 supõe entre
Cristo e Deus Pai não é do tipo em que “obediência é oferecida em troca de
exaltação”.291 É muito mais um relacionamento de dom e doação que fluem de
uma superabundância de amor.292

4.4.2
O nome dado a Jesus
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

No pequeno segmento τὸ ὄνομα τὸ ὑπὲρ πᾶν ὄνομα, duas vezes o


substantivo ὄνομα é utilizado, sendo que na primeira ele é acompanhado do
artigo,293 indicando que o nome recebido é específico e especial (não é “um
nome”, mas “o nome”) e na segunda vez é antecedido pelo adjetivo πᾶν,
indicando que “o nome” está acima de todos os nomes existentes, em um paralelo
com Ef 1,20-21. Já a preposição ὑπὲρ está conectada a um duplo acusativo. Nesse
caso, ela significa “sobre”, “além”, “mais que”,294 expressando uma
intensificação, um conceito superlativo.295 Ou seja, Fl 2,9 está afirmando que o
nome dado a Jesus é o mais exaltado, mais glorioso que qualquer outro nome do
universo. O artigo que antecede a preposição funciona aqui como pronome

288
MARTIN, R. P., Filipenses, p. 114.
289
FOWL, S. E., Philippians, p. 101.
290
MAZZAROLO, I., Carta de Paulo aos Filipenses, p. 113, reconhece que Jesus tinha méritos,
isto é, a obediência, a humildade, o aceitar a missão do Pai, mas “não se pode vincular a exaltação
a algum mérito específico”.
291
FOWL, S. E., Philippians, p. 101. Como observa O’Brien, P. T., The Epistle to the
Philippians, p. 234, se Cristo tivesse se humilhado mirando algum tipo de exaltação, isso não
seria uma verdadeira e sincera renúncia, e sim uma forma de procurar o seu próprio interesse.
292
Idem.
293
Alguns manuscritos omitem o artigo. Conferir a discussão sobre a crítica textual do texto na
introdução.
294
BAGD. p. 839.
295
PATSCH, H., ὑπὲρ. In: DENT, v. II. p. 1874. Segundo ele, o mesmo acontece em Ef 1,22.
86

relativo,296 ligando o objeto direto τὸ ὄνομα à oração preposicional ὑπὲρ πᾶν


ὄνομα: o nome, o qual é sobre todo nome.

4.4.2.1
“Nome” no Antigo Testamento e no judaísmo

No Israel antigo e em outros povos contemporâneos, nomear significa


estabelecer uma relação de domínio sobre o que é nomeado.297 Assim, em Gn
2,19-20 Adão exerce domínio sobre a criação ao dar nome aos animais. No Sl
147,4 YHWH dá o nome às estrelas e é Senhor delas. O nome de YHWH está
sobre Israel porque este é o seu povo (Is 63,19). Nomear uma cidade ou uma terra
é sujeitá-la ao seu poder (2Sm 12,28; Sl 49,11).298 Ainda nesse contexto, o nome é
mais do que um rótulo que diferencia pessoas. Ele expressa a identidade, a
verdadeira natureza do indivíduo.299 Consequentemente, um novo nome indica
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

uma nova realidade, uma mudança de vida, uma virada na história, como no caso
de Jacó em Gn 32,28, e em particular a promessa de um novo nome para Israel em
Is 62,2.
O nome de YHWH é um aspecto essencial da revelação bíblica: Deus se
apresenta com um nome pessoal, através do qual pode ser invocado. Ao mesmo
tempo, seu nome é expressão de soberania e poder. É um modo alternativo de
falar do próprio YHWH. Seu nome passa a ter uma existência própria e
independente, como expressão do próprio YHWH. Faz o papel que nas demais
religiões é desempenhado pelas imagens rituais. A esperança veterotestamentária
é que um dia todo joelho se dobre somente diante do nome de YHWH.300
O judaísmo, entretanto, vai aos poucos deixando de lado a utilização do
tetragrama. A tradição rabínica evita a todo custo a menção, considerada infração
do 3º mandamento. A mesma tradição informa que após a morte de Simão, o Justo
(200 a.C.) os sacerdotes deixaram de pronunciar o nome sagrado nas ações de

296
HELLERMAN, J. H., Philippians, p. 120.
297
BIETENHARD, H., ὄνομα. In: DITNT, v. II, p. 1395; BIETENHARD, H., ὄνομα. In: TDNT,
v. IV, p. 253.
298
Essa última concepção pode ajudar a compreender a prática política de nomear cidades e
territórios. Com efeito, esse foi o caso da cidade de Filipos, que passou a ter esse nome quando foi
dominada por Filipe II da Macedônia em 356 a.C.
299
HAWTHORNE, G. F., Philippians, p. 91.
300
BIETENHARD, H., ὄνομα. In: DITNT, v. II, p. 1395-1396.
87

graças. No culto do templo apenas o Sumo Sacerdote poderia fazê-lo no dia da


expiação. Nas leituras da Escritura era substituído por ‫שֵׁ ם‬. Essa tendência em
relação ao tetragrama também se encontra em Josefo, que não emprega nem
mesmo o substituto tradicional κύριος. Quando precisa, ele se refere ao ὄνομα ou
a προσηγορίᾳ (título, apelativo de Deus).301
Também faz parte desse pano de fundo o interesse judaico, de maneira
especial no formato representado por Qumran, nos “nomes poderosos de Deus e
dos seus agentes celestiais”, referindo-se a arcanjos de muitos nomes, e que
traziam o nome e o poder de Deus.302 Depois os gnósticos vão valorizar essa
especulação em torno de nomes divinos e celestiais, e citações de Fl 2,6-11 nos
pais da igreja indicam que esta passagem foi nesse sentido utilizada por eles.303

4.4.2.2
“Nome” no Novo Testamento
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

No Novo Testamento o substantivo ὄνομα, além de outros usos, é utilizado


teologicamente de forma bastante diversificada. Bietenhard comenta que nos
escritos neotestamentários “o nome, a pessoa e a ação de Deus estão, com várias
diferenciações, inseparavelmente ligados ao nome, a pessoa e ação de Jesus
Cristo”.304 Por exemplo, em João 17,6 é Jesus quem revela o nome de Deus como
Pai aos homens. Jesus age em nome de Deus e em prol do nome de Deus. Mas o
nome de Jesus em si mesmo ganha importância. À semelhança do que os judeus
fizeram com o nome de Deus, também ocorre no Novo Testamento a substituição
do nome de Jesus pela expressão “o nome” (At 5,41; 3Jo 7). “A plenitude da obra
salvífica de Cristo é contida no nome dEle (assim como a obra salvífica de Javé
também se continha no seu nome)”.305 O perdão de pecados está vinculado à fé
no nome de Jesus (At 10,43; 1Jo 2,12). Quem invoca o nome de Jesus pertence à
igreja e é salvo (At 9,14; 1Co 1,2; At 2,17-21; Rm 10,13), talvez uma aplicação
cristológica de Jl 2,32. Ser cristão é ter a vida inteira dominada por esse nome.

301
BIETENHARD, H., ὄνομα. In: DITNT, v. II, p.1396-1397. O próximo capítulo discutirá a
questão da substituição no judaísmo do tetragrama por κύριος.
302
BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 143.
303
Idem.
304
BIETENHARD, H., ὄνομα. In: TDNT, v. IV, p. 271.
305
BIETENHARD, H., ὄνομα. In: DITNT, p. 1401.
88

Inclusive, o Novo Testamento registra Jesus dando um novo nome a algumas


pessoas, o que, segundo a tradição veterotestamentária, pode indicar uma nova
direção de vida.306
Talvez o paralelo neotestamentário mais próximo de Fl 2,9 seja Ef 1,20-
21, que expressa a soberania do Jesus exaltado sobre todos os poderes:
Que ele fez operar em Cristo, ressuscitando-o de entre os mortos e fazendo-o
assentar à sua direita nos céus, muito acima de qualquer Principado e Autoridade
e Poder e Soberania e de todo o nome que se pode nomear [καὶ παντὸς ὀνόματος
ὀνομαζομένου] não só neste século, mas também no vindouro.

Outro paralelo importante para Fl 2,9 é Hb 1,4, onde também se fala de um


nome para o Jesus exaltado. Em Filipenses esse nome indica soberania, e em
Hebreus é um nome superior aos anjos (um paralelo aos poderes espirituais de
Efésios), que aqui se refere à natureza e à posição de Filho.307
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

4.4.2.3
A Identificação nome dado a Jesus em Fl 2,9

Antes de mais nada deve-se notar a pouca probabilidade da exegese


alcançar uma resposta definitiva para a questão: qual o nome foi dado a Jesus em
sua exaltação? O obstáculo quase insuperável é que o texto em si não apresenta
uma resposta explícita.308 No entanto, pode-se avaliar entre as possíveis soluções
qual seria a melhor resposta, ou pelo menos, a mais provável. Assim, de antemão
percebe-se que algumas propostas são menos recomendáveis, e consequentemente
recebem pouco apoio. Entre estas estão a identificação deste nome com o nome
próprio Ἰησοῦς, ou em uma forma mais ampliada, Ἰησοῦς Χριστὸς. Segundo o

306
HARTMAN, L., ὄνομα. In: DENT, p. 559.
307
HARTMAN, L., ὄνομα. In: DENT, p. 563.
308
Nas palavras bem-humoradas de BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Phillipians. p. 142:
“A questão precisa é difícil de decidir com certeza, e é talvez, em qualquer caso, uma tempestade
em uma xícara de chá exegética”. Não obstante, como notado na crítica textual, alguns
manuscritos omitem o artigo na expressão τὸ ὄνομα, o que de acordo com HELLERMAN, J. H.,
Philippians, p. 120, indica que alguns escribas e pais da igreja entenderam ὄνομα não como um
título, mas como um reconhecimento. Deus exaltou Jesus e deu a ele fama, reconhecimento
universal. E mesmo admitindo que o texto com artigo seja com certeza o mais bem testemunhado,
significando o título κύριος que aparece no versículo 11, Hellerman defende que esse sentido de
fama e reconhecimento público deva ser incluído na exegese do nome dado ao Jesus exaltado,
tendo em vista o contexto sócio-político de Filipos. Em uma cultura onde as pessoas brigavam
para ter uma reputação reconhecida, Fl 2,9 afirma que Deus deu a Jesus a “reputação que está
acima de toda a reputação”. Segundo BIETENHARD, H., ὄνομα. In: TDNT, v. IV, p. 270, ὄνομα
como reputação é encontrado no Novo Testamento em Mc 6,14 e Ap 3,1.
89

Novo Testamento, entretanto, é este o nome que Jesus possuía desde o seu
nascimento, e Fl 2,9 fala de uma reverência a um novo nome que ele recebeu a
partir da sua exaltação. Não obstante, Fl 2,11 vai fazer referência a Ἰησοῦς
Χριστὸς de uma forma tradicional, sem o peso do significado que o versículo 9
indica. Entre os pais da igreja as propostas variaram entre υἱὸς e θεός, mas não há
nada no texto que substancie essas soluções.309
Um caminho razoável para solução é, considerando que quem dá o nome é
Deus, pensar que ele deu a Jesus o seu próprio nome. Segundo o Antigo
Testamento esse nome é YHWH, que a LXX traduz por κύριος. Justamente esse o
nome que, segundo Fl 2,11, desde a exaltação toda língua deve confessar. Este
versículo é fundamental nesta identificação, pois ele está fazendo uma releitura
cristológica de Is 45,23, texto que anuncia um tempo de salvação futura, no qual
todo joelho se dobrará diante de YHWH e toda língua jurará por ele. A sequência
de Is 45,24 também é importante: ‫לי אָ ַ ֖מר צְ דָ ֣קוֹתו ֑ ָֹﬠז‬
֥ ִ ‫ בַּ יהוָ ֛ה‬Ì‫א‬:
֧ ַ “dizendo: Só em
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

YHWH há justiça e força”. Ora, em Fl 2,9-11 o próprio YHWH está dando esse
nome a Jesus, para que agora diante do nome dele todo joelho se dobre, e toda
língua confesse.
O’Brien apresenta quatro argumentos em favor da identificação de τὸ
ὄνομα como κύριος. Primeiro, na oração subordinada dos versículos 10-11 Jesus é
identificado com κύριος, e pode assim receber reverência universal. Segundo, ele
considera plausível entender as expressões τῷ ὀνόματι Ἰησοῦ e τὸ ὑπὲρ πᾶν
ὄνομα como justapostas. Terceiro, para judeus como Paulo um nome superlativo
como este sempre seria entendido como equivalente a YHWH. E, em quarto
lugar, cria-se uma simetria no hino como um todo, pois aquele que era ἴσα θεῷ,
passa a ser δοῦλος e agora se torna κύριος.310
Esta identificação faz jus ao contexto escatológico da passagem e à
perspectiva mais ampla do Novo Testamento, que, como será visto, relaciona o
título κύριος dado a Jesus com a sua ressurreição, e consequentemente, sua
exaltação.311 Também é preciso perceber que nesta interpretação o termo ὄνομα é

309
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 235.
310
O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 238.
311
MARTIN escrevendo em 1967 afirmou que havia um consenso geral para reconhecer que o
nome dado a Jesus na exaltação é mesmo κύριος. Cf. MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 245.
No entanto, SILVA, Moisés., Philippians, p. 110-111, faz algumas reservas a essa identificação,
lembrando que o texto não é explícito a esse respeito.
90

tomado como ofício, função, missão.312 Isso é corroborado pela tendência


teológica judaica iniciada no Antigo Testamento de pensar ‫ ֵ ֤שׁם‬como uma
hipóstase de YHWH. O ‫ ֵ ֤שׁם‬de YHWH é uma entidade transcendente através da
qual o próprio YHWH atua no mundo. Sobre esse pano de fundo Fl 2,9 significa
que YHWH deu a Jesus muito mais que um título, mas colocou sobre ele o seu
poder. Especificando ainda mais, pode-se dizer que esse poder significa
autoridade, um novo ofício que Cristo desempenhará ao lado do Pai e diante do
cosmos. Uma nova função na história da salvação.313 O paralelo de Fl 2,9-11 com
as cerimônias de entronização do antigo oriente, percebido anteriormente,
corrobora essa visão, pois neles um novo nome significa ser investido em uma
nova posição de poder e autoridade.314 No caso de Cristo, investido como Senhor
soberano do cosmo. A partir da exaltação ele atua como Senhor do universo,
exercendo a soberania que antes pertencia apenas a YHWH, com o diferencial que
esse Senhor cósmico é o mesmo personagem histórico que viveu na Galileia e foi
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

crucificado em Jerusalém, conhecido como Jesus de Nazaré. Esta identificação era


fundamental para distinguir a mensagem do hino das especulações mitológicas
contemporâneas.
Essa maneira de enxergar o substantivo ὄνομα ajuda ainda a perceber a
conexão entre a exaltação e a preexistência de Cristo, como visto acima. O
problema pode ser formulado assim: se a partir de Fl 2,6 entende-se que Cristo
tinha a plena igualdade com Deus, como ele pode ser exaltado a uma posição
superior? O que poderia ser maior do que ser igual a Deus? Mediante a categoria
“função” ao invés de “essência” consegue-se sair desse dilema dogmático. Em
outras palavras, não houve uma mudança ontológica no Filho de Deus, mas
funcional. E de fato, os dados neotestamentários indicam que a partir da exaltação
Cristo passou a exercer uma nova função no cosmos, algo que ele não tinha antes.
Essa nova função é a soberania sobre o universo, que o versículo Fl 2,11 (e
aliás o Novo Testamento em geral) vai associar ao novo nome que ele recebeu:

312
Entre outros, MAZZAROLO, I., Carta de Paulo aos Filipenses, p. 114, que afirma que um
novo nome pode ser o equivalente a uma nova missão.
313
CULMANN, O., Cristologia do Novo Testamento, p. 237. BOCKMUEHL, M., The Epistle
to the Philippians, p. 142, nota que no mundo antigo em geral, e no judaísmo em particular,
nomes eram importantes pelo que significavam, e não como rótulos.
314
BARTH, G., A carta aos Filipenses, p. 47. CULLMANN, O., Cristologia do Novo
Testamento, p. 285, afirma: “no judaísmo, como em todas as religiões antigas, o nome representa
ao mesmo tempo um poder” (grifos dele). Em contrapartida, SILVA, Moisés., Phillipians, p. 110,
é bastante reticente com essa interpretação.
91

κύριος.315 Por certo foi um passo decisivo no desenvolvimento da cristologia


primitiva a fé que Jesus foi exaltado por Deus para, ao lado dele, governar sobre
todo o universo. Porque Jesus compartilha a soberania de Deus ele pode
compartilhar o próprio nome de Deus. Afinal, como visto acima, o nome sobre
todo nome significava para os judeus o próprio tetragrama YHWH, que entre os
judeus de fala grega tinha como substituto adequado o título κύριος, que a partir
da exaltação também é o nome de Jesus. A importância desse desenvolvimento
teológico é que “para o monoteísmo judaico soberania sobre todas as coisas era a
definição de quem Deus é”.316 O resultado é a inclusão de Jesus na identidade do
Deus único de Israel.317 O ponto de partida principal para essa reflexão
neotestamentária é a leitura cristológica do Salmo 110,1. O hino cristológico,
entretanto, recorre a Isaías 45,23.318
Além da soberania, essa nova função de Jesus também pode ser associada
à categoria da “revelação”. Este ponto é sublinhando por Käsemann.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

Reconhecendo que realmente τὸ ὄνομα aponta para a designação de Jesus como


κύριος do universo, ele avalia o que novo nome traz uma novidade revelacional. A
partir de agora, o relacionamento do cosmos com Deus passa pelo Jesus κύριος.
O kyrios é Deus em sua relação com o mundo. Na entronização, a representação
de Deus diante do mundo se transferiu para aquele que foi elevado. É através dele
somente que Deus exerce sua ação sobre o cosmo (no sentido de 1Co 15,28
poderia dizer-se: até a parusia!). Consciente ou inconscientemente é com Cristo
com quem tem que tratar o mundo, na medida que tem que tratar com Deus. A
partir de agora ele é o seu senhor e seu juiz...319

315
Assim MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 236-237.
316
BAUCKHAM, R. J., The Worsphip of Jesus in Philippians 2:9-11, p. 130.
317
Idem. Segundo HURTADO, L. W., Senhor Jesus Cristo, p. 818, o fato de Jesus receber o
nome de Deus é “o mais próximo que chegamos a um equivalente de um elo ‘ontológico’ de Deus
com Jesus”.
318
BAUCKHAM, R. J., The Worsphip of Jesus in Philippians 2:9-11, p. 130. Não obstante, ao
contrário do que foi exposto aqui HELLERMAN, J. H., Vindicating God’s Servants in Philippi
and in Philippians, p. 96-97, acredita que o termo ὄνομα deve ser conectado a κύριος, mas não se
trata de um novo dado a Jesus, e sim da manifestação pública do nome que ele já tinha ao longo de
toda a sua carreira. Parece, contudo, que sua exegese é influenciada pelo desejo de fazer um
paralelo entre Fl 2,6-11 com At 16,11-40, onde Paulo só revela seu “título” de cidadão romano
depois do sofrimento e da humilhação.
319
KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 110.
92

4.5
Conclusão do capítulo

Diante do exposto acima, é possível nesta conclusão enfrentar uma última


questão: por que Deus exaltou Jesus? Para isso é necessário voltar à expressão διὸ
καὶ que inicia o versículo 9, e pode ser interpretada como estabelecendo uma
relação de causa e efeito entre 2,6-8 e 2,9-11. A causa da exaltação é a
humilhação. De acordo com Martin, isso fez Lohmeyer entender que 2,9-11 é
simplesmente a realização em Jesus do princípio divino da exaltação dos justos: o
sofrimento do justo leva necessariamente à exaltação.320 Seria uma espécie de
resultado lógico. Contudo, como bem observado por Martin: “O hino não foi
escrito para provar a validade de um princípio”.321
Com efeito, não se pode negar que a tradição judaica afirma que Deus
defende e recompensa o sofrimento do servo justo. Por exemplo, os cânticos do
servo de Deus em Isaías trazem uma expectativa de exaltação do servo após o seu
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

sofrimento. Segundo a tradição sinótica, o próprio Jesus ensinou que os que se


humilham diante de Deus, por obediência, serão exaltados pelo próprio Deus (Mt
23,12; Lc 14,11; 18,14). E quem ousaria afirmar que Jesus não merecia ser
exaltado? Isso tudo aponta na direção da exaltação como uma recompensa ao
sofrimento obediente de Jesus, uma resposta de Deus a todas as ações descritas
nos versículos 6-8.322 No entanto, não se deve menosprezar a importância do
verbo χαρίζομαι utilizado no contexto, apontando para uma exaltação como obra
da graça de Deus.
Talvez o melhor, na verdade, fosse afastar esta questão (o motivo pelo qual
Deus exaltou Jesus) da exegese do texto, que tem muito mais jeito de especulação
dogmática, do que investigação exegética. É bem provável que o papel da
expressão διὸ καὶ no contexto vá além do estabelecimento de uma relação tipo
causa-feito. Na verdade, ela faz a transição de um acontecimento escatológico
para outro, ou melhor ainda, conecta dois acontecimentos que fazem parte do
mesmo evento escatológico. O pano de fundo escatológico da exaltação, que foi
desenvolvido ao longo deste capítulo, a compreensão específica de Paulo acerca

320
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 233-235. Esta opinião foi adotada depois por
HAWTHORNE, G. F., Philippians, p. 113.
321
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 234.
322
Assim O’Brien, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 233-234.
93

desta exaltação, a perspectiva linear de interpretação do hino,323 que tem como


clímax a exaltação,324 apontam nessa direção.
Porque o problema das interpretações que valorizam a ideia de
recompensa, é que elas acabam por não fazer jus à importância do cenário descrito
em Fl 2,9-11, fazendo deste segmento um anexo, um posfácio à obra principal que
estaria em Fl 2,6-8. Se fosse assim, exaltação seria tão somente o reconhecimento
do caminho de Jesus como justo,325 e consequentemente, esse caminho, por ter
sido aprovado por Deus, se tornaria agora o caminho-modelo para todas as
pessoas.326 No entanto, na exegese defendida neste trabalho a exaltação de Jesus
vai certamente além disso. Ela faz parte do evento escatológico, que trouxe um
novo éon, o tempo de triunfo sobre os inimigos de Deus e salvação para todos os
povos, conforme a expectativa veterotestamentária. Não dá para separar a morte e
ressurreição de Jesus do seu significado escatológico e dos seus efeitos
soteriológicos.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

O texto possui uma sequência de acontecimentos interconectados pelo


tema (Jesus), numa linha progressiva que começa na preexistência, passa pela
encarnação e o sacrifício na cruz, e termina na exaltação, que é (para os leitores do
texto) o estado atual de Jesus. O texto revela o caminho desse que agora é o
κύριος de todo o cosmos, e sobretudo da Igreja, daqueles que já no presente o
confessam e dobram os joelhos diante do seu nome.
Esse momento é oportuno para discutir uma interpretação recente que
também afasta o conceito de “recompensa” no texto. É o entendimento defendido
principalmente por N. T. Wright, que todo conjunto de Fl 2,6-11 deve ser

323
Conferir a discussão no capítulo anterior.
324
MARTIN, R. P., Filipenses, p. 129, “o ponto central do ensino do hino – como parece certo –
não é o kenosis, nem uma lista das características da vida terrena de Jesus, em humilhação e
obediência, mas Seu senhorio presente, e final, e o caminho que Ele tomou para esse título” (grifos
dele).
325
MÜLLER, D., ὑψόω. In: DITNT, v. I, p. 83-87, argumenta que Fl 2,9-11 seria apenas um
comentário antigo onde os eventos da Páscoa são a vindicação de Jesus, Deus reconhecendo Jesus
como justo.
326
Isto é afirmado com clareza por Moisés Silva, que justifica a utilização do conceito de
“recompensa” à exaltação de Jesus na medida que “o hino cristológico implica a correspondência
entre a experiência de Cristo e a santificação do crente”. A ideia é que assim como Cristo foi
recompensado por sua obediência, o cristão também será. A despeito da correção desta teologia
específica, o ponto é que a interpretação da exaltação de Jesus no conjunto de Fl 2,6-11 é
determinada pela necessidade de fazer do texto um paradigma para a vida cristã. Cf. SILVA,
Moisés., Philippians, p. 109. Também BRUCE, F. F., Filipenses, p. 81, descreve o versículo 2,9
como “a suprema ilustração de suas próprias palavras: ‘quem a si mesmo se humilhar será
exaltado’.
94

encarado como revelação do caráter de Deus, ou, como se tornou comum afirmar,
o caráter do Deus de Israel. “A real ênfase teológica do hino, então, não é
simplesmente uma nova visão de Jesus. É um novo entendimento de Deus”.327
Para Wright isso significa que divindade é sinônimo de doação, e não obtenção.328
Foi assim que Jesus interpretou a sua igualdade com Deus. As ações de 2,6-8 são
a revelação disso, enquanto que a exaltação seria o reconhecimento por parte de
Deus Pai que realmente a encarnação e morte de Jesus são “a revelação do amor
divino em ação”.329
S. E. Fowl, trabalhando a partir da exegese de Wright, afirma que tanto o
sofrimento de Jesus narrado em 2,6-8, quanto a exaltação dele descrito em 2,9-11
são, essencialmente, revelação de Deus ao mundo, manifestação da glória do Deus
de Israel.330 E para o sofrimento servir a esse propósito revelacional ele precisa ser
vindicado por Deus. E aí que entra a exaltação, pois como vindicação do
sofrimento de Jesus ela atesta que o Deus apresentado no conjunto é realmente o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

Deus de Israel e Jesus é realmente seu Cristo.331


É verdadeiramente certo que o hino de Fl 2,6-11 está ancorado no
monoteísmo veterotestamentário. Isso fica especialmente claro na seção dos
versículos 9-11, pois a exaltação de Jesus não é narrada como um herói pagão que
depois de vencer na Terra, também vai vencer no céu, tomando o lugar dos outros
deuses. Jesus não tomou o lugar de Deus. Ele foi exaltado por Deus; Deus
compartilha gratuitamente com ele a soberania que era exclusivamente sua, sem,
no entanto, deixar de tê-la; todos os seres são chamados a reconhecer Jesus como
κύριος, mas no final, tudo isso que acontece é εἰς δόξαν θεοῦ πατρός.
Em contrapartida, como já observado neste capítulo, o tema do conjunto
inteiro de Fl 2,6-11 é Jesus, o Filho de Deus, já indicado pelo pronome relativo ὃς
que abre o hino no versículo 6. O que é apresentado aqui é a sua decisão pessoal e
voluntária de se encarnar, de assumir a forma de servo, de se humilhar e ser

327
WRIGHT, N. T., The Climax of the Covenant, p. 84.
328
Idem, citando palavras de C. F. D. Moule. Nesse sentido Wright é seguido por FEE, G. D.,
Philippians 2:5-11: Hymn or Exalted Pauline Prose? p. 40 e 45.
329
Ibid., p. 86.
330
FOWL, S. E., Philippians, p. 101. Que a exaltação de Jesus é muito mais que a vindicação de
Jesus foi exposto acima.
331
FOWL, S. E., Philippians, p. 101. Essa linha de raciocínio fecha com a interpretação ética da
passagem como um todo, pois se o caráter de Deus é vindicar o justo sofredor, então o cristão pode
esperar que esse mesmo Deus fará isso com ele, quando nesse mundo sofre de forma injusta. Nas
páginas 106 e 107 Fowl afirma que essa argumentação ajuda a responder uma das críticas feitas à
chamada interpretação ética.
95

obediente até a morte e morte de cruz. E em seguida, a ação gratuita de Deus em


exaltá-lo como Senhor, com todos os contornos já apresentados e outros que ainda
serão explorados. E dentro do cristianismo primitivo, o texto era muito mais do
que uma mera lista de eventos. Ele oferecia uma interpretação do evento
escatológico que envolveu a encarnação, a morte e ressurreição de Jesus,
cumprindo as esperanças do povo de Israel.332 A interpretação de Wright e Fowl
tenta deslocar o epicentro do hino de Cristo para Deus Pai (o Deus de Israel), e faz
do amor o tema da passagem. Não só a passagem não fala de amor (nenhum termo
é usado nesse sentido), como essa exegese parece nascer de uma preocupação
externa ao texto,333 não levando em consideração a narrativa em si, que é
fundamentalmente cristológica. E é por esse viés cristológico que aparece o tema
da revelação de Deus, porque na teologia cristã Cristo é a revelação de Deus.
Tanto o sofrimento, quanto a exaltação de Cristo são revelação de Deus ao
mundo,334 algo acentuado justamente quando se dá a devida atenção ao contexto
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

escatológico envolvido nesses eventos.


E, como se verá adiante, sobretudo no quarto capítulo, mais do que
descrever ou reafirmar o caráter do Deus de Israel, o hino cristológico de Fl 2,6-
11, sobretudo quando trata da exaltação de Cristo, foi muito importante para o
cristianismo primitivo redefinir o monoteísmo judaico, em termos de um
monoteísmo cristológico. Mas antes enfrentar a discussão do monoteísmo que
aparece claramente no final do versículo 11, é necessário considerar o conteúdo
dos versos 10 e 11, que apresentam os desdobramentos da exaltação de Jesus,
nada menos do que o universo inteiro reverenciá-lo e confessá-lo como Senhor.

332
BROWN, C., Ernst Lohmeyer’s Kyrios Jesus, p. 24, para quem nos versículos 6-8 se oferece
uma interpretação da encarnação e da morte de Jesus, e nos versículos 9-11 da ressurreição de
Jesus. Interpretação que podia ser cantada nos cultos (caso Fl 2,6-11 tenha existido como um hino
de fato), ou confessada pelos convertidos (entendendo o texto como confissão).
333
A tendência da exegese contemporânea de compreender Paulo dentro do judaísmo, e não contra
o judaísmo.
334
KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 75-76, foi talvez o primeiro a defender o aspecto
revelacional de Fl 2,6-11. Para ele o hino não trata diretamente da relação entre Deus e a igreja, ou
entre Deus e os crentes, mas sim da relação total entre Deus e o mundo. O hino descreve a
revelação de Deus ao mundo inteiro. Em especial quanto à seção de Fl 2,9-11 ele afirma: “não se
trata unicamente de sentimentos éticos apropriados, mas ao contrário, de uma vitória sobre o
mundo, da eliminação das oposições até o cumprimento escatológico desejado por Deus”.
5
A reverência e a confissão ao Jesus exaltado

5.1
Introdução ao capítulo

O objetivo do presente capítulo é estudar o texto de Fl 2,10-11, com exceção


do último segmento que será analisado no próximo capítulo. Assim, o texto a ser
trabalhado é o seguinte: ἵνα ἐν τῷ ὀνόματι Ἰησοῦ πᾶν γόνυ κάμψῃ ἐπουρανίων καὶ
ἐπιγείων καὶ καταχθονίων καὶ πᾶσα γλῶσσα ἐξομολογήσηται.
Todo o segmento dos versículos 10 e 11 depende da conjunção ἵνα. Ela é a
ligação com o versículo 9. Ela traz duas possibilidades para o conjunto: a ideia de
finalidade: Jesus foi exaltado a fim de que todo joelho se dobre e toda língua o
confesse, ou a ideia de resultado, consequência: Jesus foi exaltado,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

consequentemente agora todo o joelho deve se dobrar e toda a língua deve confessá-
lo. Existe uma leve vantagem para a primeira opção, visto ser esse o uso
predominante de ἵνα no grego clássico, no Novo Testamento e inclusive no corpus
paulino,335 entendendo assim a submissão e reverência de todo o universo a Jesus
como partes da intenção divina ao exaltar Jesus, e ao mesmo tempo não dar a
impressão que o conteúdo dos versículos 10 e 11 são uma espécie de resultado
casual. Contudo, não se deve insistir na distinção, pois as duas noções andam juntas
na literatura bíblica do Antigo e do Novo Testamento, e é possível que ambas
estejam presentes neste texto.336

5.2
Isaías 45,23 e a exaltação de Jesus

Antes de tudo é preciso registrar a tendência paulina de citar textos do


Antigo Testamento que trazem afirmações sobre YHWH, e aplicá-las a Jesus por
intermédio do título κύριος. De acordo com Hurtado é certo que essa transferência
ocorre em Rm 10,13 (citando Jl 3,5); 1Cor 1,31 (citando Jr 9,23-24); 1Cor 10,26

335
FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 292.
336
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 249. O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians,
p. 238, opina que as duas ideias estão presentes.
97

(citando Sl 24,1) e 2Cor 10,17 (citando Jr 9,23-24).337 Além dessas citações,


existem textos paulinos que fazem alusões a passagens do Antigo Testamento que
falam de YHWH e Paulo as emprega para Jesus como Senhor. São elas: 1Cor 10,21
(aludindo a Ml 1,7.21); 1Cor 10,22 (aludindo a Dt 32,21); 2Co 3,16 (aludindo a Ex
34,34); 1Ts 3,13 (Zc 14,5); 1Ts 4,6 (aludindo a Sl 94,1) e o texto em análise de Fl
2,10-11, considerada a mais impressionante alusão paulina, o que reforça a
importância da exegese em curso.338
Para iniciar o estudo desse período, é necessário verificar a relação do
mesmo com o texto aludido de Isaías 45,23. Se a expressão ἐπουρανίων καὶ
ἐπιγείων καὶ καταχθονίων for separada como um aposto de Fl 2,10-11,339 a
justaposição dos textos deixa clara a ligação entre eles:

Is 45,23 (LXX): ἐμοὶ κάμψει πᾶν γόνυ καὶ ἐξομολογήσεται πᾶσα γλῶσσα τῷ θεῷ
Fl 2,10-11: ἐν τῷ ὀνόματι Ἰησοῦ πᾶν γόνυ κάμψῃ καὶ πᾶσα γλῶσσα
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

ἐξομολογήσηται ὅτι κύριος Ἰησοῦς Χριστὸς

Deve-se notar que o contexto de Is 45,23 traz duas ênfases. A primeira é a


fé de que só YHWH é Deus. Há uma clara crítica à idolatria: “Não têm
conhecimento os que carregam os seus ídolos de madeira, os que dirigem as suas
súplicas a um deus que não pode salvar... Não há outro Deus fora de mim” (Is 45,20-
21). E logo chama a atenção que o hino em Filipenses vai fazer uma aplicação
cristológica a partir de um texto do Antigo Testamento que traz um monoteísmo
acentuado, um expediente muito semelhante ao usado por Paulo em 1Cor 8,6 em
relação ao shemá. Como se verá adiante, é possível que a intenção exata do autor
seja mostrar que o senhorio de Jesus a partir da exaltação é algo completamente
diferente da idolatria. Continua-se, na verdade, no mesmo monoteísmo. A segunda
ênfase no contexto de Is 45 é a nota escatológica, isto é, a expectativa que um dia
todos os confins da terra se voltarão para YHWH, se prostrarão diante dele e dirão

337
HURTADO, L. W., Senhor. In: DPL, p. 1150-1151. Existem citações em que Paulo manteve
κύριος referindo-se a Deus, o que segundo Hurtado, ocorre em 10 referências. Ele também menciona
duas passagens em que a identificação é disputada. São elas: Rm 14,11 (Is 45,23) e 1Cor 2,16 (Is
40,13).
338
HURTADO, L. W., Senhor. In: DPL, p. 1151.
339
Como notado por FOWL, S., Philippians., p. 103, a frase quebra a alusão a Is 45,23.
98

que só nele há justiça e força.340 Por sinal, há em Is 45 uma dupla perspectiva de


futuro, que será exatamente aquela que melhor explica Fl 2,10-11, pois esse último
dia que trará o reconhecimento universal de YHWH não trará junto uma alegria
universal. Será um tempo de júbilo para o povo de Deus que já vivencia essa
experiência e anseia por essa ocasião, porém de constrangimento para aqueles que
rejeitam o Senhor: “A ele virão, cobertos de vergonha, todos os que se irritaram
contra ele” (Is 45,24).341
De fato, o monoteísmo escatológico era parte fundamental do judaísmo do
segundo templo, uma esperança expressa e alimentada pelo Dêutero-Isaías. A
leitura escatológica de Isaías 45 estava presente no judaísmo, como evidenciam por
exemplo textos de Enoque. Descrevendo o que acontecerá na vinda do juiz do
mundo Enoque 48,5 diz: “Todos os que habitam sobre a terra seca irão prostrar-se
diante dele e cultuá-lo e adorá-lo, exaltá-lo e cantar louvores ao nome do Senhor
dos espíritos”.342 Ademais, antes da sua utilização cristã, o texto de Is 45,23
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

desempenhou papel importante na liturgia sinagogal, sendo incluído nas antigas


orações ‘Alênu e Nishmat Kol Hay, recomendadas pela Mishnah para o final da
Haggadah.343 Isso evidencia que uma audiência judaica perceberia com clareza a
operação teológica que está se desenrolando no hino de Filipenses (mas não é certo
se leitores não judeus teriam a mesma percepção),344 isto é, que o monoteísmo
escatológico se tornou monoteísmo cristológico.345
O Novo Testamento utiliza Is 45,23 em dois lugares. Em Rm 14,11 Paulo
explicitamente cita o texto: “Com efeito, está escrito: Por minha vida, diz o Senhor,
todo joelho se dobrará diante de mim e toda língua dará glória a Deus”. Nesse caso,
o texto de Isaías é usado para fortalecer a argumentação de um juízo escatológico
que está por vir, expresso antes e depois da citação: “Pois todos nós

340
BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 145, considera que as ênfases de Isaías
45 são a singularidade de Deus e o universalismo. Este último tema está presente de fato, mas como
ele mesmo reconhece, em termos de expectativa para o futuro. Por isso é melhor falar de uma
esperança escatológica, que é universal em sua abrangência.
341
O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 243.
342
Conforme MICHEL, O., ὁμολογέω. In: TDNT, p. 207.
343
BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 145.
344
BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 82. Esse é o provável cenário da Igreja
de Filipos, uma comunidade predominantemente gentílica. Por conseguinte, a avaliação acima
aponta para duas direções: que o autor do hino estava familiarizado com o Antigo Testamento, e
provavelmente com o judaísmo, e ao mesmo tempo, favorece a tese de que Fl 2,6-11 existiu antes
de ser usado na carta aos Filipenses, isto é, foi produzido em um contexto sensível às interrelações
estabelecidas com o texto veterotesmentário.
345
BAUCKHAM, R. J., The Worship of Jesus in Philippians 2:9-11, p. 133.
99

compareceremos ao tribunal de Deus... [Is 45,23] Assim, cada um de nós prestará


contas a Deus de si próprio” (Rm 14,10-12).
O outro lugar em que o texto aparece no Novo Testamento é aqui em
Filipenses. A citação não é literal como em Romanos,346 mas é possível notar as
significativas alterações feitas pelo hino a partir do texto básico de Isaías. Primeiro,
na forma dos verbos κάμπτω e ἐξομολογέω, respectivamente curvar-se e confessar.
A LXX usa ambos os verbos no indicativo futuro.347 Paulo, por sua vez, usa os dois
no subjuntivo aoristo. O que era então uma promessa de Deus para o futuro, o hino
cristológico mostra com uma realidade cumprida.348 Segundo, os objetos dos dois
verbos são substituídos: o pronome pessoal ἐμοὶ pela locução ἐν τῷ ὀνόματι Ἰησοῦ
e a expressão τῷ θεῷ por ὅτι κύριος Ἰησοῦς Χριστὸς. Essas duas substituições
chamam atenção pela repetição do substantivo Ἰησοῦς, enfatizando a releitura
cristológica que está em operação, isto é, o que antes era uma promessa relacionada
à ação de Deus no fim dos tempos, agora é uma realidade escatológica em Jesus
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

Cristo.349 É ainda pertinente notar que em Romanos o contexto da citação de Isaías


também é escatológico, porém ali Paulo mantém o aspecto futuro do Antigo
Testamento, enquanto que em Filipenses o verbo no subjuntivo aoristo indica algo
que já aconteceu. Isso evidencia o equilíbrio entre o já e o ainda não da escatologia
paulina. As duas citações também mostram a harmonia que existia na teologia de
Paulo entre cristologia e monoteísmo. Ele pode aplicar o mesmo versículo do
Antigo Testamento tanto para algo que teve lugar a partir da exaltação de Jesus
Cristo, quanto para ação futura de Deus Pai, que segundo Rm 14,10-12 julgará toda
humanidade.

346
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 256, afirma que o autor do hino (que para ele não é Paulo)
está citando de forma inconsciente, pois enxerga a si mesmo como um homem em situação
pneumática, sob direta ação do Espírito Santo. Tudo isso, porém, é uma grande conjectura, difícil
de provar. É possível ainda que o autor do hino esteja partindo de um texto de Isaías diferente do
Texto Massorético e da versão da LXX aceita atualmente. A possibilidade é aventada por MICHEL,
O., ὁμολογέω. In: TDNT, p. 214. Isso poderia explicar algumas das alterações do texto de
Filipenses, mas não a mais importante, que é a sua releitura cristológica.
347
O texto hebraico traz respectivamente os verbos ‫ כּ ַָרע‬e ‫ שָׁ בַ ע‬no yiqtol, reconhecido com uma forma
futura, cf. JOÜON, P.; MURAOKA, T., A Grammar of Biblical Hebrew, p. 114.
348
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 256.
349
É possível que exista alguma relação entre o texto de Filipense e o texto de Enoque. A sugestão
é feita por Michel, observando que Enoque 61,7 aplica Is 45,23 ao Messias. MICHEL, O.,
ὁμολογέω. In: TDNT, p. 207. O problema é confirmar se o texto de Enoque é, de fato, anterior ao
de Filipenses, e que assim, a influência seria inversa. Segundo BROWN, R. E.; PERKINS, P;
SALDARINI, A. J., Apócrifos, Manuscritos do Mar Morto e Outros Tipos de Literatura Judaica,
IN: NCBSJ, p. 951, o conjunto dos capítulos 37-71, onde encontra-se a referência acima, tem a sua
datação disputada, variando entre o século 1 a.C. até o 3 d.C.
100

Há ainda uma terceira alteração de Filipenses em relação ao texto de Isaías.


Acima a expressão ἐπουρανίων καὶ ἐπιγείων καὶ καταχθονίων foi separada para
visualização do paralelo entre Is 45,23 e Fl 2,10-11. A questão é que não existe um
equivalente direto dessa expressão em Isaías 45,23, mas o versículo imediatamente
anterior (45,22) mostra que o alcance das promessas apresentadas no contexto do
oráculo profético é a Terra inteira. Isso fica claro no seguinte segmento hebraico:

‫י־א ֶרץ‬
֑ ָ ֵ‫כָּל־אַ פְ ס‬, que a Septuaginta traduziu como οἱ ἀπ᾽ ἐσχάτου τῆς γῆς. Portanto,
parece que Paulo opera uma ampliação. Se em Isaías a escatologia fala de uma
reverência universal de todo joelho e toda língua, incluindo todas as nações até os
limites da Terra, Filipenses apresenta uma escatologia cósmica, que vai além dos
limites da Terra, alcançando todo o cosmos.350

5.3
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

Ações feitas “Em nome de Jesus”

A expressão ἐν τῷ ὀνόματι é usada na maioria das vezes com uma conotação


temporal, e assim significa que algo deve acontecer quando o nome é mencionado
ou invocado.351 Em Filipenses a ideia seria que a pessoa deve prostrar-se e fazer
confissão quando o nome de Jesus é mencionado. Conquanto o aspecto temporal
possa estar presente, parece que há mais coisas envolvidas. A expressão
preposicional utilizada no Novo Testamento ecoa a expressão hebraica ‫בְּ שֵׁ ם‬, muito
utilizada no Antigo Testamento em associação com YHWH.352 Sua tradução
regular na LXX é pela expressão ἐν τῷ ὀνόματι, em uma tentativa, segundo ele, de
traduzir com exatidão o hebraico. Na tradução grega a expressão liga-se
principalmente a verbos relacionados a ações de culto, indicando que nome
invocado é o fundamento, o pressuposto e a condição para a realização do culto.353
Em linhas gerais, no Antigo e no Novo Testamento a expressão significa não apenas
mencionar, pronunciar ou invocar o nome, mas também agir por comissão. O Novo

350
CERFAUX, L., Cristo na Teologia de Paulo, p. 307; MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p.
256.
351
BAGD, p. 572.
352
BIETENHARD, H., ὄνομα. In: TDNT, p. 262, 263 e 271; BIETENHARD, H., Nome. In:
DITNT, p. 1396. Para HARTMAN, L., ὄνομα, In: DENT, p. 563, a expressão neotestamentária
deve ser considerada um semitismo.
353
HARTMAN, L., ὄνομα, In: DENT, p. 564-565.
101

Testamento em particular vai utilizá-la 40 vezes, sendo que em 8 o nome referido é


o de Deus e em 28 é o de Cristo.
Na literatura paulina a expressão ocorre em 1Cor 5,4; 6,11; 2Ts 3,6, Ef 5,20;
Cl 3,17e aqui em Fl 2,10.354 Em 2Ts 3,6 a ideia é dar instruções com base na
autoridade do soberano Jesus.355 Em 1Cor 5,4 ἐν τῷ ὀνόματι pode ser ligada a três
termos diferentes no contexto, significando tanto a autoridade do nome de Jesus,
quanto a invocação do seu nome. 1Cor 6,11 mostra a salvação recebida em nome
de Jesus Cristo (“Mas vós vos lavastes, mas fostes santificados, mas fostes
justificados em nome do Senhor Jesus”). Os textos de Ef e Cl são paralelos e
indicam que todas as coisas devem ser feitas em nome do Senhor Jesus, isto é, “toda
a vida deve ser vivida sob a consciente autoridade de Cristo e com dedicação ativa
e grata a sua pessoa magnífica”.356 O texto de Filipenses amplia essa reivindicação
de obediência para todo o cosmos, pois o que será feito ἐν τῷ ὀνόματι alcança quem
está no céu, na terra e debaixo da terra.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

Em particular, o uso da expressão em Fl 2,10 deve ser entendido como


causal, isto é, o nome que a partir da exaltação Jesus tem é a causa eficiente da
submissão.357 Porque Jesus tem o nome e desempenha a função de Senhor, todos
devem prostrar-se diante dele.
A utilização do substantivo Ἰησοῦς aqui não significa que o nome ao qual
todo joelho deve se dobrar e toda língua deve confessar seja simplesmente “Jesus”.
Na verdade, o texto quer sublinhar que essas ações acontecem ao nome que agora
está vinculado ao personagem histórico chamado desde o nascimento de Jesus, e
esse nome é “Senhor”.358 Todavia, é fundamental para a narrativa identificar o
κύριος como o homem de Nazaré, que andou pela região da Galiléia e arredores, e
foi crucificado em Jerusalém. Quer dizer que o exaltado não é um personagem
mítico, algum tipo de semideus ou espírito. Esse que foi exaltado por Deus ao
senhorio de todo universo, é o Filho de Deus encarnado chamado Jesus.359 A

354
Aqui, a despeito da discussão de autoria, considera-se Efésios, Colossenses e 2Tessalonicenses
parte da literatura paulina.
355
LUTER JR, A. B., Nome, In: DPC, p. 880.
356
LUTER JR, A. B., Nome. In: DPC, p. 881.
357
HELLERMAN, J. H., Philippians, p. 121.
358
HAWTHORNE, G. F., Philippians, p. 115; HELLERMAN, J. H., Philippians, p. 121.
359
MARTIN, R. P., Hymn of Christ, p. 254 ; HAWTHORNE, G. F., Philippians, p. 115.
102

exaltação não mudou a identidade de Jesus. Ele assumiu uma nova função, mas não
se tornou uma nova pessoa.360

5.4
Joelhos dobrados ao nome de Jesus

O verbo κάμπτω é aplicado na LXX para situações de devoção religiosa,


como em 1Cr 29,20: “E toda assembleia bendisse a Iahweh, Deus de seus pais, e se
ajoelhou [κάμψαντες τὰ γόνατα] para se prostrar diante de Deus e diante do rei”;
2Cr 29,29: “Terminando o holocausto, o rei e todos os que os acompanhavam se
ajoelharam [ἔκαμψεν] e se prostraram”; Dn 6,11: “três vezes por dia ele se punha
de joelhos [κάμπτων ἐπὶ τὰ γόνατα], orando e confessando a seu Deus...”, além do
já citado Is 45,23. O Novo Testamento usa o verbo apenas quatro vezes, sempre em
conexão com o substantivo γόνυ (Ef 3,14; Rm 11,4; 14,11 e aqui em Filipenses) e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

acompanha a LXX no aspecto da devoção.361


Cerfaux opina que cair de joelhos diante do rei era a prática entre os súditos
dos reis orientais, bem como uma prática regular nas orações. No mundo grego, o
comum seria orar em pé.362 Pelo menos era uma prática conhecida e praticada no
judaísmo, como se depreende dos textos acima. No entanto, como observa Martin,
o contraste principal não é entre o estilo litúrgico grego ou oriental, mas sim entre
uma atitude religiosa comum (o orar e o adorar em pé) e o sentimento de aguda
necessidade e humildade do adorador diante de Deus, que o levava em situações
extraordinárias a prostrar-se em devoção, visto que não fazia parte da rotina
religiosa contemporânea o ajoelhar-se diante da divindade.363 No caso de Fl 2,10 a
ideia é de uma profunda sujeição e reconhecimento diante do senhorio de Jesus.
Embora em outro contexto, um paralelo neotestamentário seria Ap 5,8: “Ao receber
o livro, os quatro seres viventes e os vinte e quatro Anciãos prostraram-se diante do
Cordeiro”. O texto descreve uma realidade celestial de prostração diante de Jesus,
o que (como é a perspectiva do livro de Apocalipse) funciona com paradigma para

360
É interessante comparar essa descrição do hino com o fenômeno social do apego aos títulos.
Quantos pessoas ao receberem um título qualquer, querem esquecer sua identidade, como eram
conhecidas anteriormente, para serem agora somente reconhecidas pelo título.
361
BAGD, p. 402; BALZ, H.; SCHNEIDER, G., κάμπτω. In: DENT, p. 2190.
362
CERFAUX, L., Cristo na teologia de Paulo, p. 306.
363
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 265.
103

a Igreja aqui na Terra fazer o mesmo.364 A reverência ao Cordeiro que foi morto é
o reconhecimento da honra daquele que justamente foi desonrado e blasfemado na
sua morte na cruz.365 E um dia, como será exposto abaixo, os mesmos que o
mataram estarão diante dele outra vez, não mais para desonrá-lo, mas de joelhos
dobrados diante dele.

5.5
O alcance da reverência a Jesus: no céu, na Terra e debaixo da Terra

Na língua grega ἐπουρανίων é usado de forma literal para referir-se aos seres
celestiais, ἐπιγείων aos seres que habitam na Terra e καταχθονίων aos seres que
habitam debaixo da terra.366 Os dois primeiros estão geralmente em oposição, e
ἐπιγείων inclui os seres humanos. Entre os seres celestiais estão aliados e inimigos
de Deus,367 estes últimos descritos em Ef 6,12: “contra os Principados, contra as
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

Autoridades, contra os Dominadores deste mundo de trevas, contra os Espíritos do


Mal, que povoam as regiões celestiais [ἐν τοῖς ἐπουρανίοις]”.
Na exegese contemporânea foi Lightfoot quem primeiro defendeu a
interpretação de que a lista tríplice envolve tudo o que existe no universo, incluindo
seres humanos, seres espirituais (anjos e demônios) e a própria natureza em si.
Nesse caso, os três adjetivos são tomados como neutros. A inclusão dos elementos
naturais vem da comparação com passagens como o Sl 148 e Rm 8,22, que mostram
o relacionamento da natureza com o seu criador.368 De fato, o caráter poético da
passagem favorece a opinião de Lightfoot, pois talvez Paulo não estivesse
distinguindo três grupos, mas tão só expressando a universalidade da reverência
prestada a Jesus.369
Uma segunda possibilidade de interpretação é entender que por trás da
expressão tríplice apenas estão seres racionais, sejam seres humanos, anjos ou

364
BRUCE, F. F., Filipenses, p. 82.
365
MAZZAROLO, I., Carta aos Filipenses, p. 116.
366
BAGD, p. 290, 360 e 420.
367
MICHEL, O., ἐπουράνιος. In: DENT, p. 1562.
368
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 257-258. A tese de Lightfoot foi adotada, entre outros,
por SILVA, M., Philippians, p. 116; FOWL, S., Philippians, p. 103, embora este último cite com
aprovação a opinião de Crisóstomo, de que a referência seria aos seres racionais.
369
BRUCE, F. F., Filipenses, p. 83. Ele indica que as referências a céu e terra no hino de Cl 1,15-
20 seria um paralelo poético ao texto de Filipenses.
104

demônios, entendendo as três palavras como masculinas. O ponto é que apenas eles
podem cumprir as ações descritas na sequência narrativa.370 Essa perspectiva em
uma forma modificada remonta à antiga exegese feita pelos pais da igreja, e talvez
seja a que talvez encontre maior número de adeptos entre os estudiosos. Em seu
favor estaria, por exemplo, o paralelo com Ap 5,13: “καὶ πᾶν κτίσμα ὃ ἐν τῷ οὐρανῷ
καὶ ἐπὶ τῆς γῆς καὶ ὑποκάτω τῆς γῆς καὶ ἐπὶ τῆς θαλάσσης καὶ τὰ ἐν αὐτοῖς
πάντα...”.371 Para delimitar ainda esses seres racionais em questão, há duas
propostas de identificação dos respectivos habitantes dos três compartimentos do
universo apresentados pelo texto: os anjos no céu, os seres humanos que estão na
Terra e os que estão debaixo da Terra (no Sheol), ou simplesmente, anjos, seres
humanos e demônios.372
Um terceiro entendimento dessa expressão defende a inexistência de uma
situação cúltica em Fl 2,10-11. O cenário é determinado pelas antigas cerimônias
de entronização. Assim sendo, não há aqui seres humanos, nem Igreja, nem mesmo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

anjos. O que existem são os poderes que atuavam em todo o universo de forma
rebelde para com Deus. Em uma palavra, são demônios. Eles dominavam essas três
áreas da realidade, conforme a antiga cosmologia que o judaísmo compartilhava. E
quando o cristianismo primitivo celebrou a vitória e exaltação de Jesus, incluiu sua
vitória sobre os poderes.373 A ideia não é de um reconhecimento voluntário e alegre
do senhorio Jesus, mas que as forças demoníacas “são compelidas a admitir que ele
é o vencedor, e eles apresentam sua submissão pela sua prostração diante dele”374.
Para combinar essa interpretação com o segmento inteiro dos versículos 2,10-11,
Martin aponta a ligação entre a confissão “Jesus Cristo é Senhor” do versículo 10
com os exorcismos presentes nos evangelhos sinóticos. O ponto de comparação é
que, quando o nome de Jesus é proclamado, os poderes demoníacos se submetem.

370
HAWTHORNE, G. F., Philippians, p. 115.
371
BALZ, H.; SCHNEIDER, G., καταχθόνιος. In: DENT, p. 2259. Assim FEE, G., Comentario
de la Epístola a los Filipenses, p. 293-294; SILVA, M., Philippians, p. 116, mostra que essa
possibilidade é a menos objetável; HELLERMAN, J. H., Philippians, p. 122.
372
MARTIN, R. P., Hymn of Christ, p. 258, informa que a primeira versão foi defendida por
Clemente de Alexandria e Teodoreto, enquanto que a segunda por Crisóstomo. BOCKMUEHL, M.,
The Epistle to the Philippians, p. 146, defende a primeira alternativa informando não existe
atestação para a inclusão dos demônios na expressão καταχθόνιος. Na mesma direção, DE BOOR,
W.; HAHN, E., Carta aos Efésios, Filipenses e Colossenses, p. 212, entende que a cosmovisão
bíblica não visualiza Satanás e os demônios debaixo da Terra.
373
Parece que a tese foi originalmente postulada por M. Dibelius, conforme MARTIN, R. P., A
Hymn of Christ, p. 260. Nessa mesma linha KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 109;
BARTH, G., A carta aos Filipenses, p. 48.
374
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 261.
105

No segundo século, Justino afirma que a expulsão de demônios é possível porque


Jesus é o Senhor de todos os poderes. Para fechar essa interpretação, Martin defende
que o verbo ἐξομολογέω tem na passagem sentido neutro, diferente da confissão de
fé no sentido eclesiástico, mas como nas cerimônias de entronização antigas, trata-
se apenas da admissão da autoridade do Jesus exaltado como Senhor.
Diante do exposto, pode-se dizer que Martin está certo no que afirma, e
errado no que nega. De fato, a exaltação de Jesus levou à submissão de todos os
poderes a Jesus. São demônios que já foram derrotados, mas que reconhecerão essa
realidade na parusia apenas. Entretanto, não é uma exegese razoável fazer da
expressão totalizante ἐπουρανίων καὶ ἐπιγείων καὶ καταχθονίων uma referência
exclusiva aos demônios.375 Na verdade, a carta aos Filipenses demonstra que os
crentes daquela cidade não estavam muito preocupados com demônios, mas sim
com as autoridades romanas que se opunham à igreja.376 Assim sendo, a lista tríplice
de adjetivos, juntos com a dupla πᾶν/πᾶσα, quer mostrar que o senhorio de Jesus
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

possui alcance cósmico. Existe aqui uma cristologia cósmica, muito semelhante a
esboçada em Cl 1,15-20.377 Todo o universo, visível e invisível, foi impactado pela
exaltação de Jesus. Essa era uma mensagem fundamental para a mentalidade
helenista, que, ao contrário da judaica, valorizava muito mais a dimensão espacial
do que a temporal. Na visão helenista existe o mundo divino que está acima nos
céus e o mundo “abaixo” que é Terra, possuída e dominada pelos poderes arbitrários
e malignos.378 A certeza de que há agora um único Senhor sobre todos os “mundos”
era, de fato, uma boa notícia. Muito mais ainda quando o anúncio desse senhorio
faz parte do evangelho que mostra que o novo Senhor é um bom Senhor, que
governa com amor e proporciona liberdade.
E se Jesus é Senhor de todo universo, espera-se que todo o universo se
submeta diante dele e o reconheça como tal. No máximo, pode-se excluir os
elementos da natureza (vegetais, animais e minerais) que não podem realizar as
ações descritas pelos verbos κάμπτω e ἐξομολογέω, ainda que também eles estejam

375
FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 294, mostra que o equívoco dessa
interpretação começa na suposição de que a passagem depende exclusivamente de uma cosmologia
gnóstica ou helenística.
376
FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 294,
377
Lohmeyer sugere que as origens dessa cristologia cósmica remontam a junção pré cristã das
tradições do filho do homem de Dn 7,13-14 e do servo sofredor de Is 53. BROWN, C., Ernst
Lohmeyer’s Kyrios Jesus, p. 17-18.
378
SCHWEIZER, E., Lordship and Discipleship, p. 59-60.
106

subordinados ao Cristo exaltado, e sejam alvo da transformação escatológica que


está em curso e culminará em um novo céu e uma nova terra (Rm 8,19-21; Ap 21,1).
Essa interpretação caminha de acordo com o Antigo Testamento, no qual YHWH
faz exortação para que ele seja adorado e receba a glória devida ao seu nome, uma
exortação que é dirigida ao povo de Israel (Sl 95,1-17), e também aos seres
celestiais (Sl 29,1-2; 148,2), às pessoas em geral (Sl 47,1-2), a todo ser que respira
(Sl 150,6), à toda a Terra (Sl 66,1-2), e finalmente, à toda a criação, que é convocada
a adorar o Senhor (Sl 69,34; 96,9-13; 98,4-9). A única mudança é que agora o título
“Senhor” não se refere apenas a YHWH, mas também a Jesus.379

5.6
E toda língua confesse

O verbo ἐξομολογέω pode ser tomado em um sentido neutro de admitir,


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

reconhecer, sem nenhum elemento de gratidão ou devoção sincera envolvida.380 A


ideia é que o termo estaria mais próximo da aclamação nas antigas cerimônias de
entronização, do que do conceito moderno de confissão pessoal de fé. Não é uma
experiência religiosa, mas uma “ação de direito sagrado” onde “se reconhece
pública e indefectivelmente o proclamado”.381
Entretanto, o respectivo sentido neutro do verbo em questão é característica
do seu uso no grego secular. A Septuaginta vai carregar o sentido do grupo de
palavras relacionadas a ὁμολογέω com conteúdo hebraico, veterotestamentário, que
seria a leitura natural para um judeu. Dessa forma, as ideias básicas subjacentes são
confessar pecados e exaltar a Deus. No Novo Testamento, por sua vez, o sentido
mais importante do grupo de palavras é o de dar testemunho com uma conotação
legal. Como em Lc 12,8 e Mt 10,32, a confissão implica em um comprometimento
com Jesus, que trará implicações escatológicas no julgamento final. É natural que
essas palavras passem daí para a ideia de confissão de fé (Rm 10,9-10). O ponto é
que confessar é se comprometer com quem é confessado, de modo que essa acepção
carrega junto aspectos do entendimento anterior. Contudo, parece que a

379
O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 242.
380
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 263-264.
381
KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 112.
107

terminologia passou de um compromisso pessoal de fé, para funcionar como


diferenciação teológica entre grupos cristãos (1Jo 4,2).
O uso predominante de ἐξομολογέω no Novo Testamento não segue o uso
do grego secular, mas a perspectiva judaica de utilização no culto, na adoração.
Dessa forma, prioritariamente envolve a igreja que adora o Cristo Exaltado sobre a
Terra e no céu. Mas não se deve excluir a expectativa escatológica do texto e o seu
alcance cósmico, que inclui todo o universo. Esta não pode ser uma exegese do tipo
isso-ou-aquilo, isto é, ou ἐξομολογέω tem um alcance exclusivamente cósmico ou
apenas eclesiástico. Nenhuma “língua” deveria ser excluída das palavras πᾶσα
γλῶσσα, pois a intenção do autor é mostrar que o Jesus exaltado é Senhor de todo
o universo, e a expectativa escatológica envolve nada menos do que todo universo
reconhecendo o senhorio de Jesus. Literalmente falando, um dia todos os seres
racionais reconhecerão que só existe um Senhor, e o nome dele é Jesus.382 E como
isso inclui demônios e pessoas que rejeitam Jesus Cristo, é certo que eles não farão
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

isso com alegria, ou voluntariedade, mas contra a sua própria vontade diante de um
poder a que não podem resistir. No caso desse grupo, ἐξομολογέω tem, sem
dúvidas, um significado apenas formal, sem qualquer conotação de louvor, ação de
graças e confissão de fé. Em contrapartida, a Igreja antecipa essa realidade
escatológica quando aqui e agora dobra os seus joelhos e confessa Jesus como
κύριος, e faz isso de livre e espontânea vontade, com alegria e louvor. Por sua vez,
a função pragmática do hino é convocar os ouvintes e leitores a desde já se juntarem
nessa adoração, e assumirem o senhorio de Jesus sobre suas vidas. Para esse grupo,
ἐξομολογέω tem o sentido prioritariamente bíblico de confissão de fé. Não se pode
afastar essa hipótese simplesmente atribuindo “confissão de fé” ao individualismo
moderno e estranha ao cristianismo primitivo.383 Esse é um argumento falacioso,
porque o objeto do verbo ἐξομολογέω é a sentença κύριος Ἰησοῦς Χριστὸς,
reconhecida como uma das mais antigas confissões de fé cristãs, utilizada no

382
HAWTHORNE, G. F., Philippians, p. 116. Aqui volta-se novamente à discussão de quem está
por trás da lista tríplice ἐπουρανίων καὶ ἐπιγείων καὶ καταχθονίων. Conquanto Hawthorne tenha
optado pelo entendimento de que o texto se refere a todos os seres racionais, ele observa que a
expressão “toda a língua” é sinônima de todos os povos da Terra (Is 66,18; Dn 3,4 e 7; Ap 5,9; 7,9;
10,11).
383
Opinião esboçada por MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 264.
108

período pré paulino na igreja de fala aramaica,384 e que talvez seja a mãe das
posteriores confissões de fé.385
Dessa forma, a exegese do texto deve admitir a ambiguidade do verbo
utilizado, e considerá-lo em conjunto com o horizonte escatológico presente na
passagem, para solucionar a tensão existente no universalismo encontrado aqui.386
Não é necessário trazer para o verbo ἐξομολογέω um improvável exclusivo sentido
proveniente do grego clássico para explicar que nem todos confessarão Jesus como
Senhor de maneira espontânea. Aliás, o verbo em tela é parte de uma passagem com
profundas influências do Antigo Testamento, e da LXX em particular, e faz parte
de uma alusão ao texto de Is 45,23, que traz o mesmo verbo, alterando apenas o seu
aspecto temporal. Ou seja: o sentido neutro de simples admissão está presente em
ἐξομολογέω, como também o aspecto positivo, de um alegre e sincero
reconhecimento. A escatologia paulina e a do cristianismo primitivo presentes na
passagem são decisivas para a elucidação da questão.387
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

5.7
O significado bíblico-teológico da reverência oferecida em Fl 2,10-11

5.7.1
Quem reverencia e quem é reverenciado

São possíveis duas interpretações sobre o destinatário e a ocasião vinculados


às ações aqui descritas. A primeira possibilidade enxerga o texto dentro de um
contexto litúrgico. Essa perspectiva começa pela análise da relação entre os verbos
κάμπτω e ἐξομολογέω e a expressão ἐν τῷ ὀνόματι Ἰησοῦ. Em Fl 2,9-11 o sentido

384
FITZMYER, J. κύριος. In: DENT, p. 2439; BIETENHARD, H. κύριος. In: DITNT, p. 2320.
385
CULLMANN, O., Cristologia do Novo Testamento, p. 284.
386
O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 247-250, apresenta seis extensos argumentos
em favor do sentido neutro de ἐξομολογέω. Ele, porém, nem conjectura a possibilidade do autor
estar usando o verbo de forma propositadamente ambígua. O ponto é que a maioria dos autores que
defendem o verbo como neutro querem com isso afastar a implicação teológica de que no final dos
tempos todos os seres, sem exceção, oferecerão uma adoração voluntária e alegre a Jesus, incluindo
os poderes atualmente hostis a Deus. No entanto, ao fazerem isso esquecem que o verbo no texto
também funciona para a Igreja, a qual não faz uma mera admissão do senhorio de Jesus. Nesse
sentido, essa interpretação só é coerente quando a Igreja é excluída da cena, e apenas as forças
contrárias a Deus, os demônios, são visualizados. É a proposta original de Lohmeyer, seguida por
Martin. Todavia, coerência não é correção, e esta interpretação deve ser afastada por outras
considerações.
387
Apesar do contrário parecer óbvio, a tese de Martin de interpretar ἐξομολογέω à luz do grego
clássico é seguida por vários exegetas, como HELLERMAN, J. H., Philippians, p. 123.
109

desta última expressão não é instrumental, como se as ações dos verbos em questão
fossem feitas através do nome de Jesus, mas dirigidas a Deus Pai. Ao contrário, a
honra é dirigida ao Cristo exaltado.388 Tudo aqui é feito para o próprio Jesus e por
causa do nome que agora ele tem. Na locução preposicional o genitivo Ἰησοῦ é
possessivo, ou seja, dobrar o joelho e confessar o nome que pertence a Jesus, e já
ficou estabelecido que esse nome é o título κύριος. O Cristo exaltado como κύριος
é o recipiente das ações descritas nos versículos 10-11.389 A evidência da
Septuaginta fortalece esse argumento, pois nela cultuar “em nome de Deus”
significa adoração dirigida ao próprio Deus.390 Entre outros, é o caso de 2Sm 22,50;
Sl 43,9; 62,5 e 88,13, textos que literalmente usam a expressão ἐν τῷ ὀνόματι.
Assim a ênfase da frase está na proclamação de Jesus como Senhor. Quando
o nome daquele que tem o nome sobre todo nome é proclamado todos devem dobrar
os joelhos, reverenciá-lo e reconhecê-lo como Senhor. Em outras palavras,
adoração dever ser dirigida a Jesus.391 A situação típica no culto cristão em que isso
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

pode acontecer é o batismo, onde o batizado se ajoelha e faz a confissão do nome


de Jesus.392 Quanto à outra questão que discute a existência de uma adoração a Jesus
no cristianismo neotestamentário, ela será enfrentada mais à frente.
A outra alternativa de interpretação foi apresentada inicialmente por
Lohmeyer. Segundo ele, a igreja não está presente em nenhum lugar da passagem.
O texto descreve um drama cósmico e mostra Jesus como Senhor do cosmos, e não
Senhor da Igreja.393 Jesus continua sendo o alvo da reverência, mas quem se
submete não são os cristãos, e sim os poderes cósmicos. Existe aqui, para esta
interpretação, uma descrição mítica, paralela as que são feitas no livro de
Apocalipse, descrevendo uma cena do “outro mundo” com a linguagem deste
mundo: Cristo está assumindo o domínio celestial e é saudado por isso.394

388
O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 240.
389
MARTN, R. P., A Hymn of Christ, p. 249-250. Da mesma forma pensa BRUCE, F. F.,
Filipenses, p. 83; HAWTHORNE, G., Philippians, p. 115; entre outros.
390
BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 145.
391
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 251-252; BOCKMUEHL, M., The Epistle to the
Philippians, p. 145
392
MARTIN, R. P., Filipenses, p. 115. De fato, o batismo é considerado por alguns como a possível
situação litúrgica na qual o hino originalmente teria sido usado, se algum dia ele existiu fora da carta
aos Filipenses. cf. MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 81-82.
393
Esse foi um dos pontos fundamentais para Lohmeyer rejeitar a autoria paulina do hino. Da mesma
forma KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 109
394
Segundo MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 253, Lohmeyer está usando mito conforme a
definição de Bultmann: “o uso de imagens para expressar o outro mundo em termos deste mundo e
o divino em termos de vida humana, o outro lado em termos deste lado”.
110

Käsemann adotou e desenvolveu essa interpretação, mostrando que a utilização do


nome “Jesus” na passagem é fundamental para distinguir o mito do uso cristão do
mito. Pois, na medida em que o autor utiliza nessa segunda parte o nome terreno do
κύριος exaltado, ele assume que esse κύριος é o mesmo homem-servo descrito na
primeira parte, que se humilhou, foi obediente e morreu em uma cruz. Esta ligação
do κύριος com Jesus mostra que o hino apenas utiliza a estrutura do mito, mas
afasta-se dele em um ponto determinante.
O duplo uso do adjetivo πᾶν/πᾶσα já indica algo total, universal. Com a lista
tríplice de adjetivos ἐπουρανίων καὶ ἐπιγείων καὶ καταχθονίων percebe-se que o
autor quer descrever aqui ações que vão muito além de uma situação restrita a um
ambiente eclesiástico. Seja como for que se entenda cada uma das três palavras,
elas querem acentuar que o senhorio de Jesus é cósmico, universal, está fora de
qualquer limitação geográfica. No entanto, é problemático seguir esta ideia
esboçada acima e excluir a situação de culto do quadro de Fl 2,9-11. Primeiro, como
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

argumentado na exposição sobre o versículo 2,5, o hino apresenta o que significa


estar ἐν Χριστῷ, e nesse sentido, inclui e diz respeito diretamente aos cristãos. Se o
quadro pintado é cósmico é porque o alcance do senhorio de Jesus Cristo também
é cósmico. Isso não exclui a igreja, mas a inclui.395 Segundo, por conta do viés
escatológico da passagem, a Igreja já aqui e agora pode e deve dobrar-se diante do
nome de Jesus e confessá-lo como seu Senhor, antecipando o final dos tempos.
Todos aqueles que um dia ouviram o hino, ou ouviram a carta de Paulo ser lida no
culto ou hoje a leem são desafiados a reverenciar e confessar Jesus. Chegará o
tempo em que todos farão isso, voluntariamente com alegria, ou constrangidos por
simples constatação da realidade.396 Nas palavras de De Boor:
Bilhões de pessoas passaram por esta terra e morreram sem ter conhecido Jesus.
Todas elas o conhecerão, todas dobrarão o joelho diante dele. [...] Atualmente
milhões ainda não sabem nada a respeito de Jesus, milhões o rejeitam, desprezam,
ridicularizam ou odeiam, porém esses milhões hão de se ajoelhar diante dele, todos,
sem exceção! [...] Com que júbilo e beatitude se ajoelharão diante de Jesus aqueles
que se deixaram salvar por ele, que por isso o amaram e viveram para ele! Como
de pavor cairão de joelhos aqueles que passaram orgulhosamente por ele ou o
combateram!397

395
BRUCE, F. F., Filipenses, p. 89.
396
Não significa assim que um dia todo o universo tornar-se-á discípulo voluntário e feliz de Jesus.
VOLF-GUNDRY, J. M., Universalismo. In: DPC, p. 1220-1221.
397
DE BOOR, W.; HAHN, E., Cartas aos Efésios, Filipenses e Colossenses, p. 212.
111

O fato é que Fl 2,10-11 opera dentro do famoso esquema neotestamentário


do já-e-ainda-não escatológico. O curioso é que o próprio Käsemann caiu no erro
que criticou de desprezar o escatológico em favor do mítico.
E embora não decisivo, um argumento adicional em favor da tese que inclui
a Igreja nessa submissão a Jesus é a pergunta pela função pragmática do texto, isto
é, por que e com qual objetivo foi escrito tal texto?398 E a resposta provável não é
simplesmente informar os leitores de um evento cósmico, mas descrever um evento
escatológico e desafiar os leitores a reconhecer Jesus como Senhor, e em
consequência, viver o estilo de vida correspondente a essa submissão, que é o
objetivo da parênese paulina no contexto, como visto um pouco antes.

5.7.2
Quando é reverenciado
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

A questão é: qual perspectiva temporal está envolvida no senhorio de Jesus,


e consequentemente, na reverência oferecida a Jesus, isto é, Jesus já assumiu o seu
senhorio sobre o cosmos e as ações de Fl 2,10-11 já são oferecidas a ele como tal,
ou tudo isso só ocorrerá na parusia? Quando será esse momento em que todo o
universo se prostrará diante de Jesus? Existe, assim, uma tensão escatológica no
texto. A melhor solução é a que foi desenvolvida por Cullmann.399 Dentro da
perspectiva da história da salvação, Cullmann defende que para o cristianismo
primitivo o evento Cristo – a aparição do Messias, sua morte e ressurreição – é o
acontecimento central da história da salvação.
É o ponto central que dá o verdadeiro sentido salvífico ao passado: à luz do
evento central a narrativa do Antigo Testamento é compreendida como preparatória
para a aparição do Cristo.400 Quanto ao futuro, o cristianismo primitivo alterou o
seu significado em relação ao judaísmo. Neste, toda a esperança de salvação tendia

398
EGGER, W., Metodologia do Novo Testamento, p. 131.
399
Nesse quesito ele foi seguido de perto por MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 267-270. Outra
solução é apresentada por BARTH, G., A carta aos Filipenses, p. 48, 52-53. Ele entende que Fl
2,10-11 apresenta o que os poderes espirituais ofereceram a Jesus no momento da sua exaltação.
Seguindo o padrão das cerimônias de entronização, no momento da ressurreição / exaltação, os
poderes espirituais que atuavam no universo de forma rebelde, se prostraram diante de Jesus e
reconheceram ele como o legítimo Senhor do cosmos. Disso ele conclui que o hino traz uma
escatologia diferente daquela caracteristicamente paulina, ou seja, uma escatologia já completa e
realizada, sem esperança futura.
400
CULLMANN, O., Cristo e o Tempo, p. 179.
112

para o futuro, para o que Deus tinha preparado para o final dos tempos. Já os
primeiros cristãos entenderam que o acontecimento salvífico preparado por Deus já
aconteceu. Para eles “o futuro não é mais, como no judaísmo, o telos doador de
sentido a toda a história... Na realidade, o τέλος que dá seu sentido à história é Jesus
Cristo que já veio”.401 Isso não significa, porém, que o futuro perdeu o seu valor.
Ele foi sim resignificado no cristianismo primitivo em relação ao judaísmo.
O papel do futuro fica ainda mais claro quando se entende o sentido
histórico-salvífico do presente nesse esquema. Antes de tudo, é um presente
delimitado. Não é um presente ad eternum. Ele começou na exaltação de Cristo e
terminará na sua parusia.402 E o conteúdo cristológico desse presente é o reinado de
Jesus. Aqui volta-se para o conteúdo de Fl 2,10-11. Para o cristianismo primitivo,
a exaltação de Jesus caracteriza o início da sua soberania cósmica: nos céus, na
Terra e debaixo da Terra.403
W. Bousset sustentou que essa era uma compreensão que somente se
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

desenvolveu no cristianismo em comunidades cristãs helenistas. O foco cristológico


palestinense era apenas a expectativa da volta do filho do homem.404 Inclusive o
título κύριος era entendido por esse viés escatológico: Jesus é o κύριος que virá na
parusia. Contudo, essa rígida diferenciação entre uma cristologia helenista e outra

401
CULLMANN, O., Cristo e o Tempo, p. 182. Grifos dele.
402
CULLMANN, O., Cristo e o Tempo, p. 194. Assim também KÄSEMANN, E., Ensayos
Exegeticos, p. 111: “Segundo a concepção neotestamentária, o tempo do fim começa precisamente
com o que se realiza com Cristo e em Cristo. Naturalmente, o que aqui se descreve não pode
considerar-se, todavia, como acabado. Ele se cumpre continuamente... até que chegue a parusia”.
403
Segundo 1Cor 15,24 no final desse presente Jesus entregará o reino a Deus Pai. É difícil, no
entanto, distinguir entre um Reino de Deus e um Reino de Cristo (Regnum Dei e Regnum Christi).
Kreitzer opina que ao invés de forçar a passagem nessa direção, é necessário compatibilizá-la com
outros textos paulinos, e assim concluir que não existe uma diferença real entre Reino de Deus e
Reino de Cristo. KREITZER, L. J., Reino de Deus/Cristo. In: DPC, p. 1054-1055. Pode-se tão
somente dizer que nesse período da história da salvação Deus está reinando através de Cristo. “No
pensamento do apóstolo não há distinção real entre o reino de Deus e o reino de Cristo”. GUTHRIE,
D.; MARTIN, R. P., Deus. In: DPC, p. 385. Veja que Ap 11,5 vislumbra um reinado conjunto entre
Deus e o Messias: “O reino do mundo se tornou de nosso Senhor e do seu Cristo, e ele reinará pelos
séculos dos séculos”.
404
Para BULTMANN, R., Teologia do Novo Testamento, p. 173, essa ênfase no senhorio presente
de Jesus, inclusive com suas implicações litúrgicas, “é o aspecto característico da comunidade
escatológica do cristianismo helenista, pois foi nela que, pela primeira vez, a figura de Jesus Cristo
não é apenas a do salvador escatológico”.
113

aramaico-palestinense foi considerada muito duvidosa, e mesmo equivocada,405 de


modo que se reconheceu que o cristianismo primitivo, já no seu primeiro segmento
em Jerusalém, sempre teve uma cristologia da exaltação com amplos coloridos
litúrgicos, conjugada com a expectativa escatológica de uma futura parusia de
Cristo.406 Esse duplo foco no reinado presente e na esperança futura pode ter
seguido o caminho apontado por Marshall: “a igreja não tinha razão para supor que
Jesus iria retornar como Senhor se ele não tivesse sido exaltado por Deus”, por
outro lado, “sobre a base da ressurreição os discípulos devem ter argumentado...
que Jesus deve ser o Senhor exaltado, e, portanto, o Senhor vindouro e Filho do
Homem”407.
No Novo Testamento a cristologia do presente está associada de modo
especial ao Salmo 110,1 e a confissão de fé “Jesus Cristo é Senhor”. Ambos os
elementos estão presentes aqui em Fl 2,10-11 (o que reforça a importância
cristológica desse texto). A confissão de fé aparece explicitamente no verso 11 e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

será objeto do próximo capítulo. O Sl 110,1 pode estar implícito na expressão πᾶν
γόνυ κάμψῃ ἐπουρανίων καὶ ἐπιγείων καὶ καταχθονίων. O Salmo diz “Oráculo de
Iahweh ao meu senhor: ‘Senta-te à minha direita, até que eu ponha teus inimigos
como escabelo de teus pés’”. Esse texto tornou-se uma fonte de reflexão
cristológica já na fase mais primitiva da igreja,408 um caminho indicado pelo próprio
Jesus segundo os evangelhos sinóticos (Mt 22,4-16; Mc 12,35-37; Lc 20,41-44). E
ainda nesta fase inicial, ele foi ligado a um versículo de outro salmo de intepretação
messiânica, o Sl 8,7, que afirma: “Para que domine as obras de tuas mãos sob seus
pés tudo colocaste”.409 A associação entre os dois salmos pode ser constatada em

405
Parece que a ideia uma igreja helenística separada de Jerusalém e anterior à conversão de Paulo
foi apresentada pela primeira vez em 1912 (um ano antes do lançamento da obra de Bousset) em um
artigo de W. Heimüller, como informa HENGEL, M., Between Jesus and Paul, p. 32-33. Destarte,
Hengel também afirma que cresceu entre os estudiosos da área a consciência de que na Igreja de
Jerusalém havia cristãos de fala grega, de modo que formulações cristológicas feitas em grego não
necessariamente refletem um período posterior. Nas palavras de DODD, C. H., Segundo as
Escrituras, p. 116: “remontar a uma época em que não havia nenhum cristão de língua grega é uma
tarefa desesperadora”.
406
SCHNACKENBURG, R., Cristologia do Novo Testamento, p. 24-38; DUNN, J. D. G.,
Unidade e Diversidade no Novo Testamento, p. 147-151; RIDDERBOS, H., A teologia do
apóstolo Paulo, p. 85.
407
MARSHALL, I. H., The Origins of New Testament Christology, p. 102-103.
408
DODD, C. H., Segundo as Escrituras, p. 104-105; BRUCE, F. F., Paulo: apóstolo da graça,
p. 111. Ambos os autores relacionam o salmo 110,1 como um dos mais antigos testimonia da igreja
pimitiva.
409
DUNN, J. D. G., A teologia do apóstolo Paulo, p. 296.
114

1Cor 15,25-27; Ef 1,20-22; 1Pe 3,22 e Hb 1,13-2,9.410 Os dois salmos foram ligados
à exaltação de Jesus, e assim, ao título κύριος. O “Senta-te à minha direita” ligou-
se à ascensão de Jesus (chegando a ser incluído no chamado “Credo apostólico”);
o “sob seus pés tudo colocaste” relacionava-se ao senhorio presente e universal de
Cristo, e os “inimigos” do Sl 110,1 foram interpretados como os principados e
potestades, indicando a soberania espiritual de Jesus.411 E como notado acima, o
entendimento correto da expressão πᾶν γόνυ κάμψῃ ἐπουρανίων καὶ ἐπιγείων καὶ
καταχθονίων inclui o conceito da subordinação das forças cósmicas ao Jesus
exaltado. Justamente o reinado de Cristo no presente envolve a subjugação de todos
esses “inimigos” que, no entanto, serão finalmente derrotados na parusia, nessa
tensão entre presente e futuro. 412
Dessa forma, para o cristianismo primitivo o reinado de Cristo já começou
em sua exaltação,413 e o seu senhorio sobre as forças cósmicas está dentro da famosa
categoria neotestamentária do já-e-ainda-não, ou seja, Cristo já as subjugou e é
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

Senhor sobre elas, mas elas ainda não foram destruídas e ainda exercem algum tipo
de atividade no mundo.414 Esse paradoxo está bem expresso em outros textos do
cristianismo primitivo, como em 1Pe 3,22: “que, tendo subido ao céu, está à direita
de Deus, estando-lhe sujeitos os anjos, as Dominações e as Potestades” e na
Segunda Epístola de Policarpo aos Filipenses 2,1: “crendo naquele que ressuscitou
nosso Senhor Jesus Cristo dos mortos e lhe deu a glória e o trono à sua direita. Tudo
o que existe no céu ou na terra lhe está submisso”.415

410
DUNN, J. D. G., A teologia do apóstolo Paulo, p. 296.
411
DODD, C. H., Segundo as Escrituras, p. 118; CULLMANN, O. Cristologia do Novo
Testamento, p. 292; CULLMANN, O., Cristo e o Tempo, p. 239. Neste último o autor defende
que a interpretação dos inimigos do Sl 110,1 como potestades pelo Novo Testamento, foi
intermediada pela crença existente no judaísmo tardio de que as nações são governadas por anjos.
412
KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 113, vai entender que esse tema da subjugação dos
poderes é uma adaptação cristã do mito helenista do salvador entronizado, presente especialmente
na quarta écloga de Virgílio.
413
A interpretação da temática do reino de Deus nos evangelhos sinóticos dá conta que o ministério
terreno de Jesus já inaugurou esse reino. A presença de Jesus já é a manifestação do Reino. Só que
a ação de Jesus que traz o reino não é só a encarnação e sua pregação, mas o complexo de eventos
que marca essa virada escatológica, e cujo último acontecimento foi a exaltação. Dessa forma, Paulo
de forma acertada enfatiza o reinado de Cristo a partir da sua exaltação, sem estabelecer
necessariamente uma contradição com os sinóticos.
414
BARCLAY, W., Filipenses, Colosenses, I y II Tesalonicenses, p. 46, apresenta um tipo de
universalismo romântico, através do qual defende que o senhorio de Cristo nunca envolve
subjugação. Segundo ele, no final dos tempos, todo o universo aclamara Jesus como Senhor
constrangido pelo tamanho do seu amor e sacrifício.
415
POLICARPO DE ESMIRNA, Segunda Carta aos Filipenses, p. 139-140.
115

Ademais, os primeiros cristãos diluíam essa tensão entre o presente e futuro


histórico salvífico na sua experiência de adoração. “Sempre nos momentos de culto
cristão, tempo e espaço são obliterados e a igreja adoradora sobre a Terra é uma em
eternidade com a Igreja nos lugares celestiais”.416 De fato, há uma forte conexão
entre Fl 2,6-11 e o culto cristão. Se a passagem não tiver sua origem em um hino
cristão primitivo (o que é improvável, como visto acima), a ideia de dobrar os
joelhos e fazer confissão, e no caso, particularmente a confissão “Jesus é Senhor”,
remetem, de fato, ao contexto de culto. Destarte, não existe um dilema real entre a
adoração a Jesus no presente e no futuro. O texto fala de uma adoração no presente
e no futuro, descrevendo o que agora já acontece na Igreja e o futuro que envolverá
todo o universo.417
O segundo conteúdo teologicamente importante do presente na história da
salvação é a igreja.418 O período entre a ascensão e a parusia é o tempo da igreja. E
se Cristo está reinando sobre todo o universo, a igreja é “o centro espacial dessa
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

soberania”, pois nela essa soberania torna-se visível.419 Isso ocorre porque dentro
desse período delimitado como presente e dentro desse espaço que é o cosmos, é na
Igreja que se pode encontrar aqueles que dobram os seus joelhos ao nome de Jesus
e confessam com seus lábios que Jesus Cristo é Senhor. Aquilo que será no tempo
futuro uma realidade universal, já acontece no tempo presente, no espaço chamado
Igreja. Nesse contexto deve ser mencionada a proximidade entre o Jesus exaltado e
Espírito Santo. Porque nesse presente da história da salvação a Igreja é a
comunidade caracterizada pela presença do Espírito e dirigida por ele. E esse
fenômeno é consequência da exaltação de Jesus. Estar na Igreja é equivalente a estar
em Cristo, que é sinônimo de estar no Espírito. Ou ainda, na ótica do presente da
história da salvação estar na Igreja e estar no Espírito equivale a vivenciar o reinado
do Cristo exaltado.420 E por outro lado, o Espírito Santo é nesse tempo o agente de
Cristo, pois ele age na comunidade promovendo o nome de Jesus.421 “Assim, o

416
MOULE, C. F. D., The Birth of the New Testament, p. 149.
417
KREITZER, L. J., “When He at Last Is First!”, p. 120.
418
CULLMANN, O., Cristo e o Tempo, p. 194-195.
419
CULLMANN, O., Cristo e o Tempo, p. 194.
420
KREITZER, L. J., Reino de Deus/Cristo. In: DPC, p. 1054.
421
WITHERINGTON III, B., Cristologia. In: DPC, p. 324. Isso não implica dizer que Paulo
confundia o Senhor exaltado com o Espírito Santo.
116

Senhor exaltado está presente e disponível para o fiel por meio do Espírito que nele
habita”.422
E essa perspectiva possui uma dupla função pragmática. Para a Igreja
propriamente dita, o hino faz ver além do presente para contemplar a realidade
escatológica completa, quando todas as forças, poderes e seres que hoje se opõem
e mesmo perseguem o corpo de Cristo aqui na Terra, dobrarão os joelhos diante do
Senhor da Igreja, e confessarão o seu nome reconhecendo então sua derrota.423
Assim “quando o hino é cantado, e seu poderoso senhorio é reconhecido e
confessado, a Igreja mostra que, mesmo agora e aqui sobre a Terra, existe um
presente Reino de Cristo; e que ela é chamada a viver (e sofrer) sob o senhorio dele
que é a cabeça da Igreja”.424 Nessa perspectiva, o texto tanto traz esperança, pois
mostra a realidade que hoje só é conhecida pela fé,425 quanto reafirma para o cristão
a sua situação atual de estar “ἐν Χριστῷ” (Fl 2,5), e que a sua vida deve
corresponder a essa situação escatológica na qual ele está inserido, tendo Jesus, o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

Senhor do cosmos, como seu senhor pessoal.426 Aqui reencontra-se o elemento


parenético da passagem.
Por outro lado, esse texto traz uma dimensão ainda maior. Como nem todas
as pessoas que vivem nesse tempo presente estão dentro desse espaço chamado
Igreja, Fl 2,10-11 também cumpre a função de desafiar seus ouvintes e leitores a já
se submeterem e a confessarem Jesus como seu κύριος. Nessa linha, Fl 2,10-11
vislumbra um duplo reconhecimento do senhorio de Jesus. Aqueles que tanto aqui
e agora, quanto no final dos tempos celebram alegremente Jesus como Senhor, e

422
MAILE, J. F., Exaltação e Entronização. In: DPC, p. 524.
423
Ao contrário do exposto acima, HAWTHORNE, G. F., Philippians, p. 116, apresenta uma
opinião bem peculiar. Na visão dele, o hino esboça a expectativa de que um dia todo o universo se
submeterá alegremente a Jesus como Senhor. Ele parte da premissa de que o texto tem em mira
todos os seres inteligentes do universo, e que todos eles têm a liberdade de escolher a quem vão se
submeter. Nesse sentido, o hino estaria afirmando que Deus exaltou Jesus com essa intenção, porém,
por causa da liberdade dos seres, a própria expectativa de Deus pode ser frustrada. É difícil, no
entanto, considerando os dados bíblicos, pensar que essa seja a expectativa de Deus em relação aos
demônios, por exemplo.
424
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 291.
425
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 269-270. Cullmann indica que no momento da Eucaristia
em cada culto cristão, a Igreja experimenta a atualização da história da salvação, evocando os
acontecimentos do evento central (morte e ressurreição) e antecipando algo que só deveria ocorrer
no final dos tempos, que é a comunhão com Jesus Cristo ressurreto. CULLMANN, O., Cristo e o
Tempo, p. 199. Isso dá alguma razão aos que pensam que Fl 2,6-11 se originou em um contexto
eucarístico. Essa era a tese de Lohmeyer, que entre outros argumentos afirmou que nesta perícope
“a fé da igreja é direcionada a um alvo puramente escatológico”. E. Lohmeyer apud “MARTIN, R.
P., A Hymn of Christ, p. 94.
426
MARTIN, R. P., Filipenses, p. 115-116.
117

por isso, com gratidão e de forma voluntária, dobram os joelhos diante de Jesus.
Em contrapartida, aqueles que aqui rejeitam Jesus Cristo, na sua parusia terão de
curvar-se diante dele com vergonha e tristeza.427

5.8
Fl 2,10-11 e a adoração a Jesus

Conforme observado acima, os verbos κάμπτω e ἐξομολογέω descrevem


ações religiosas que são dirigidas ao próprio Jesus. No contexto bíblico são verbos
próprios da adoração.428 Cabe aqui, então, aprofundar um pouco a discussão de uma
adoração a Jesus no Novo Testamento e em Fl 2,10-11 de modo específico.
A questão é que alguns estudiosos continuaram seguindo o esquema de uma
comunidade helenística distinta do cristianismo palestinense, com uma ênfase
cristológica completamente diferenciada. Nesta perspectiva, muitos consideraram
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

que a adoração a Jesus no culto resultante de uma cristologia da exaltação foi uma
deturpação, equivalente à criação de uma nova religião, em relação aos cristãos de
Jerusalém.429 O pressuposto é que seria inconcebível para um judeu adorar outra
pessoa ao lado de Deus. Para sair desse dilema, uma das propostas foi reconhecer
que a liturgia das igrejas palestinense e helenística, a saber, os hinos, as orações, o
próprio culto, sempre foi destinado a Deus. Jesus desempenhava um duplo papel: o
de conteúdo do culto, onde a igreja louvava e agradecia a Deus por Jesus; e
mediador do culto: as orações, ações de graças e louvores chegam ao Pai por meio
do Senhor Jesus. De fato, ambas as funções de Jesus são atestadas no Novo
Testamento. Como mediador, Jo 16,23,26; Rm 1,8; Ef 5,20; Cl 3,17; 1Tm 2,5, entre
outros. Como conteúdo, os hinos de Fl 2,6-11; Cl 1,15-20; 1 Tm 3,16, e em especial
a celebração da Ceia do Senhor. Mas deve se parar por aí? J. D. G. Dunn acha que
sim.430 Ele recomenda cautela quando se fala de um culto a Jesus no cristianismo
primitivo. Ele sugere seguir a terminologia proposta no concílio de Nicéia em 787,

427
BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 146-147.
428
BASEVI, C., Estudio Literario y Teológico del Himno Cristológico de la Epístola a los
Filipenses (Phil 2,6-11), p. 467-468.
429
BULTMANN, R., Crer e compreender, p. 109, afirma: “o cristianismo helenístico é uma
religião de culto; ele é, no fundo, uma religião totalmente nova em relação ao protocristianismo
palestinense”. Já FULLER, R. H., The foundations of New Testament Christology, p. 158,
considera que uma adoração a Jesus nem na igreja helenista ocorreu.
430
DUNN, J. D. G., A teologia do apóstolo Paulo, p. 305-308.
118

distinguindo culto e veneração: “temos que falar da veneração de Cristo


significando com isso algo menos que o culto pleno”.431 Entretanto, essas são
categorias anacrônicas quando utilizadas dentro do Novo Testamento.432 E a
consideração de outras evidências no Novo Testamento aponta na direção de que
no cristianismo primitivo Jesus era realmente adorado junto com Deus Pai.
Primeiro, existem alguns exemplos de orações dirigidas a Jesus. Embora em
Atos o título κύριος seja usado de forma um pouco ambígua,433 o que as vezes
dificulta saber se a referência é a Deus ou a Jesus, é possível que o referente seja
Jesus nos seguintes textos: 1,24; 13,2; e especialmente 7,59-60, onde Estevão
invoca (ἐπικαλούμενον) o Senhor Jesus, e em seguida ajoelhou-se e clamou ao
Senhor (θεὶς δὲ τὰ γόνατα ἔκραξεν), pedindo que ele perdoe os seus assassinos.434
Atitude de Estevão lembra a de Jesus na cruz, mas enquanto Jesus se dirigiu a Deus
Pai, Estevão se dirigiu ao Jesus exaltado.435 No corpus paulino se admite que o
provável único exemplo de oração dirigida a Jesus é 2Co 12,8 “... três vezes pedi
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

ao Senhor que o afastasse de mim”.436 A expressão transliterada μαράνα θά, em


1Cor 16,22 também deve ser encarada como uma súplica dirigida ao Jesus exaltado,
assim como sua equivalente traduzida em Ap 22,10b.437
O paralelo mais estreito com Fl 2,10-11 no Novo Testamento é Ap 5,13 que
apresenta Jesus recebendo ao lado de Deus Pai adoração de todos os seres do
cosmos: “Então, ouvi que toda criatura que há no céu e sobre a terra, debaixo da
terra e sobre o mar, e tudo o que neles há, estava dizendo: Àquele que está sentado

431
DUNN, J. D. G., A teologia do apóstolo Paulo, p. 308.
432
Como observa HURTADO, L. W., As Origens da Adoração Cristã, p. 110, “A antiga
distinção entre ‘veneração’ e ‘adoração’ a que Dunn se refere não é tão antiga o bastante para que
seja levada em conta na exegese do NT”.
433
O uso ambíguo que Atos faz do título pressupõe a divindade de Jesus, como se verá no ponto
4.1.3 do próximo capítulo. Por conseguinte, segundo WITHERINGTON III, B., Lord. In: DLNTD.
p. 670, “Esta ambigüidade não incomodou Lucas porque em sua visão a terminologia é igualmente
apropriada quando usada para Deus ou para Jesus, especialmente porque ele via Jesus como um
objeto de culto apropriado”. O título será κύριος será analisado com maior profundidade no próximo
capítulo.
434
Quanto à identificação de κύριος nesses textos como sendo Jesus, WITHERINGTON III, B., op.
cit., p. 670; MARSHALL, I. H., Atos, passim, e DUNN, J. D. G., The Christ and the Spirit, p.
245-248, concordam em relação a 7,60. A identificação de 1,24 é proposta por Marshall, e 13,2 por
Witherington III. Dunn considera que 1,24 refere-se a Deus, e que 13,2 é ambíguo.
435
MARSHALL, I. H., op. cit., p. 145-146.
436
Entre outros, assim pensam CULLMANN, O., A oração no Novo Testamento. p. 200; DUNN,
J. D. G., A teologia do apóstolo Paulo. p. 306; MARXEN, W., Christology. In: IDB, p. 151.
437
BULTMANN, R., Teologia do Novo Testamento, p. 176-178, defende que o Novo Testamento
testemunha apenas exemplos de orações feitas a Jesus fora do ambiente litúrgico, na vida pessoal,
como 2Co 12,8 e outros. Para ele orações litúrgicas dirigidas diretamente a Jesus na antiguidade só
são encontradas nos Atos dos apóstolos apócrifos.
119

no trono e ao Cordeiro, seja o louvor, e a honra, e a glória, e o domínio pelos séculos


dos séculos”. Em ambos os textos o culto a Jesus não é separado do culto a Deus
Pai. É interessante notar ainda que o texto de Apocalipse traz as mesmas duas
tensões presentes aqui em Filipenses. Ele apresenta uma realidade escatológica
futura que deve ser replicada no presente, e traz a questão – até de uma forma mais
impressionante pela doxologia empregada – se esse louvor a Jesus é prestado
sinceramente por todos, ou se alguns o farão apenas por reconhecimento.
L. W. Hurtado aprofundou a pesquisa nessa direção. Ele chamou a atenção
para a estreita relação entre o culto a Jesus e o desenvolvimento da cristologia no
cristianismo primitivo.438 Ao contrário de outros estudiosos, ele não considera que
a fonte da cristologia palestinense esteja nas especulações judaicas pós-exílicas,
como na famosa personificação da sabedoria. Para ele o judaísmo ofereceu a
linguagem e os modelos para a articulação da cristologia, porém, a propulsão do
pensamento cristológico ocorreu no culto cristão. As diversas especulações do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

judaísmo pós-exílico não alteraram o seu culto. A partir da ressurreição e exaltação


de Jesus, os cristãos judeus alteram o seu culto, passando a ter um culto
“Binitariano”. Percebe-se a estreita relação da exaltação de Jesus com o culto. Era
“tanta glória divina superlativa e sem precedentes, que eles [os primeiros cristãos]
sentiram-se compelidos a responder devocionalmente como eles fizeram”.439
Esta inovação religiosa não afetou o monoteísmo, como se verá no próximo
capítulo. O culto a Jesus não é um culto separado do culto a Deus. O culto no
cristianismo primitivo dirigia-se tanto a Deus quanto a Jesus. Cabe notar que,
segundo padrões judaicos de pensamento, se alguém está ao lado de Deus,
compartilha da soberania de Deus, tem inclusive o próprio nome de Deus (Fl 2,10-
11), esse alguém não pode receber nada menos que a mesma adoração que é a dada
a Deus. Quer dizer que simplesmente prestar honras a Jesus, sem cultuá-lo ao lado
de Deus, era uma forma sofisticada de politeísmo para os padrões judaicos.440 Isso
reforça a tese do parágrafo anterior, pois pela ótica judaica, o culto era o verdadeiro
teste prático do monoteísmo, separando quem adora de quem é adorado.441 Assim,

438
CASEY, P. M., Lord Jesus Christ: A response to professor Hurtado, p. 83 – 96; HURTADO,
L. W., Devotion to Jesus and historical investigation: a grateful, clarifying and critical response
to professor Casey, p. 97-104; GREEN, J. B., Larry W. Hurtado, One God, One lord: early
christian devotion and ancient jewish monotheism, p. 58-59.
439
HURTADO apud GREEN, J. B, Larry W. Hurtado, One God, One lord, p.59.
440
Ibidem, p. 134.
441
BAUCKHAM, R. J., The Worship of Jesus in Philippians 2:9-11, p. 129.
120

a elevação de Jesus a Senhor exaltado fez não apenas que a igreja entendesse que
ele tinha um ministério no presente junto à igreja, mas proporcionou que a igreja
também adorasse Jesus como Deus. Essa resenha dos dados neotestamentários,
somada à aplicação a Jesus do texto profético de Is 45,23, torna certo que o escopo
de Fl 2,10-11 é de uma adoração a Jesus, expressa através de atitudes bem
concretas: dobrar os joelhos e confessar Jesus como Senhor. A importância do texto
para a questão é expressa categoricamente pela frase: “Fl 2,9-11 é o texto existente
mais antigo no qual a adoração a Jesus é representada”.442

5.9
Conclusão do capítulo

Este capítulo tratou do segmento dos versículos 2,10-11 que apresentam o


desdobramento da exaltação de Jesus: “a fim de que todo o joelho se dobre ao nome
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

de Jesus, no céu, na Terra e debaixo da Terra, e toda língua confesse...”. É


interessante observar certo paralelismo com o verso 2,9, pois tanto a exaltação,
quanto o que decorre dela é descrito com dois verbos. Lá, a exaltação é descrita
combinando “exaltar” e “dar o nome sobre todos os nomes”. Aqui também pode-se
dizer que “dobrar os joelhos” e “confessar” são duas ações que estão conectadas,
como finalidade ou consequência da exaltação de Jesus. Não obstante, as duas
atitudes são provenientes da utilização e adaptação que o hino faz do texto de Is
45,23, o que resulta na transferência da esperança profética em relação a YHWH
para o Jesus exaltado. Há ainda outra ampliação que o hino cristológico faz em
relação ao texto do Dêutero-Isaías. Pois enquanto o profeta imaginava que todos os
povos, até os “confins da Terra”, um dia reverenciariam o Senhor, Fl 2,9-11 amplia
o alcance para todo o cosmos. A exaltação de Jesus requer que todos os seres –
anjos, demônios e seres humanos - se curvem diante dele e o reconheçam como
Senhor. E dentro perspectiva escatológica do Novo Testamento, entende-se que
Jesus já assumiu a soberania cósmica, e desde então todos são convocados a
reconhecê-lo como Senhor. Nesse sentido, o segmento analisado possui um papel
profético e pragmático, pois tanto descreve o que será realidade no futuro, por
ocasião da parusia, quanto convoca já agora ouvintes e leitores a submeterem diante

442
BAUCKHAM, R. J., The Worship of Jesus in Philippians 2:9-11, p. 128.
121

de Jesus, e o confessarem como o Senhor de suas vidas. A importância,


profundidade e as implicações do senhorio de Jesus Cristo serão o assunto do
próximo capítulo.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA
6
Jesus é Senhor para glória de Deus Pai

6.1
Introdução ao capítulo

Nas palavras ὅτι κύριος Ἰησοῦς Χριστὸς εἰς δόξαν θεοῦ πατρός o hino
alcança o seu clímax. A narrativa que trouxe o drama cristológico que começou na
preexistência, passou pela encarnação, humilhação e foi até a exaltação, que
mostrou o grande evento escatológico da exaltação de Jesus, seu alcance cósmico
e suas implicações soteriológicas e parenéticas, chega ao seu auge na declaração:
Jesus Cristo é Senhor.443 É uma frase que responde a duas perguntas
fundamentais, para os cristãos de Filipos e de todos os lugares e épocas: quem é
Jesus hoje? O cristão responde: Ele é Senhor. E à pergunta: quem é Senhor hoje?,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

ele responde: É Jesus. E a partir dessa última frase, é possível entender o restante
do hino respondendo às pertinentes questões: por que ele é Senhor? Porque Deus,
o Deus de Israel, o exaltou. E o que se deve fazer diante desse Senhor? Submeter-
se a ele em obediência e adoração e confessá-lo como seu Senhor. A proposta do
presente capítulo é entender exegeticamente a última frase do versículo 11, e
identificar todo o conteúdo teológico presente nela.

6.2
A confissão “Jesus Cristo é Senhor”

É preciso perceber de imediato a ligação existente entre esta sentença e o


versículo 2,9. Com habilidade artística o autor ocultou o nome que foi dado a
Jesus em 2,9, para só agora revelá-lo. O objetivo seria fazer dessa expressão o
clímax da passagem inteira,444 de modo que agora Jesus passa a ser reconhecido
por algo novo, que ele não era quando apenas tinha a μορφῇ θεοῦ (2,6). Deve-se
lembrar a proposta hermenêutica de ler o hino inteiro de forma progressiva.
Também há uma conexão estreita com o que é descrito nos versículos 2,10-11,

443
O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 246; FITZMYER, J. A. Teologia Paulina.
In: NCBSJ, p. 1603.
444
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 271.
123

pois essa afirmação tanto é o conteúdo da confissão que todo o universo deve
fazer, agora e no final dos tempos, quanto a própria razão pela qual é necessário
que todos se sujeitem a ele, porque agora ele e apenas ele é o único κύριος do
universo.445
Martin defende que essa é a confissão das forças espirituais que foram
subjugadas por Jesus, excluindo a Igreja, porque a confissão não é “Jesus Cristo é
nosso Senhor”.446 Ora, o simples paralelo com outros dois textos no Novo
Testamento afasta esta interpretação. Em Rm 10,9 Paulo afirma: “Porque, se
confessares [ὁμολογήσῃς] com tua boca que Jesus é Senhor e creres em teu
coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo”. Aqui o primeiro
critério soteriológico apresentado por Paulo é confessar que Jesus é Senhor, sem
qualquer necessidade de um pronome possessivo. Outro texto que entra nessa
discussão é 1Cor 12,3: “... ninguém pode dizer: ‘Jesus é Senhor’ a não ser no
Espírito Santo”. Neste texto, confessar Jesus como κύριος é evidência da presença
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

e ação do Espírito Santo no indivíduo. Dessa forma, seria muito estranho que em
Filipenses o apóstolo imaginasse a sentença que era praticamente a confissão de fé
fundamental dos círculos paulinos com exclusividade na boca de anjos, demônios,
principados e potestades, excluindo os seres humanos crentes em Jesus.

6.2.1
A confissão “Jesus Cristo é Senhor” no Novo Testamento

Os estudos literários no Novo Testamento identificam pequenos textos que


são anteriores aos livros nos quais estão inseridos e são considerados confissões
de fé primitivas, denominadas tecnicamente de homologias.447 A confissão de
Jesus como Senhor que aparece aqui em Fl 2,11 é considerada uma dessas

445
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 272.
446
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 279.
447
Isso provém da associação da fórmula com o termo grego ὁμολογία. VIELHAUER, P., A
história da literatura cristã primitiva, p. 52; KRAMER, W., Christ, Lord and Son of God, p.
65-67. Kramer reputa a H. Conzelmann a designação da confissão de fé como homologia.
Outrossim, STAUFFER, E., New Testament Theology, p. 338, apresenta um apêndice com 12
critérios para se identificar uma fórmula credal no Novo Testamento. Quanto à Rm 10.9; 1Co 12.3
e Fl 2.11, cinco ou seis critérios são válidos.
124

fórmulas confessionais. Ela também é identificada em Rm 10,9; 1Cor 12,3 e 1Cor


8,6.448
καὶ πᾶσα γλῶσσα ἐξομολογήσηται ὅτι κύριος Ἰησοῦς Χριστὸς εἰς δόξαν θεοῦ
πατρός.
(Fl 2,11)

ὅτι ἐὰν ὁμολογήσῃς ἐν τῷ στόματί σου κύριον Ἰησοῦν καὶ πιστεύσῃς ἐν τῇ


καρδίᾳ σου ὅτι ὁ θεὸς αὐτὸν ἤγειρεν ἐκ νεκρῶν, σωθήσῃ· (Rm 10,9)

καὶ οὐδεὶς δύναται εἰπεῖν· Κύριος Ἰησοῦς, εἰ μὴ ἐν πνεύματι ἁγίῳ. (1Cor 12,3)

ἀλλ᾽ ἡμῖν εἷς θεὸς ὁ πατὴρ ἐξ οὗ τὰ πάντα καὶ ἡμεῖς εἰς αὐτόν, καὶ εἷς κύριος
Ἰησοῦς Χριστὸς δι᾽ οὗ τὰ πάντα καὶ ἡμεῖς δι᾽ αὐτοῦ. (1Cor 8,6)

O termo grego ὁμολογία traz a noção de um compromisso feito em


público.449 No caso específico dessa confissão, seu objetivo não é enumerar os
atos da história da salvação, mas aclamar Jesus como Senhor. “Assim, a
aclamação é ‘confissão’ no sentido estrito da palavra, pois a igreja confessa sua
lealdade a este particular Senhor”.450 Do ponto de vista histórico, esta confissão é
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

reputada como a mais antiga do cristianismo,451 sendo originária do cristianismo


de fala aramaica, no qual teria a seguinte formulação: Yesua‘ hu’ mare.452 Embora
seja uma confissão bem simples, traz uma enorme gama de significado teológico e
político:
‘Jesus (Cristo) é Senhor’ é a quintessência do credo cristão, no qual a palavra
“Senhor” recebe o mais augusto sentido. Quando os cristãos de gerações
posteriores se recusaram a dizer ‘César é Senhor’, recusaram-se porque sabiam
que tais palavras não constituíam mera cortesia requerida pelo título: era um

448
Rm 1,3b-4 também é considerado uma fórmula confessional, mas além de ser um pouco mais
elaborada que as fórmulas citadas (talvez na direção de uma formulação próxima a um credo), ela
não tem como foco o senhorio de Jesus, mas a sua designação como Filho de Deus. Ademais, a
caracterização do gênero dos textos nem sempre é consensual, de modo que nem todos os autores
listam os mesmos textos quando falam de confissões de fé. Existe especial confusão entre a
designação “hino” e “confissão de fé”. Destarte, MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. XXVI,
indica Cl 2,6 ao lado dos textos citados acima. O texto diz: Ὡς οὖν παρελάβετε τὸν Χριστὸν
Ἰησοῦν τὸν κύριον, ἐν αὐτῷ περιπατεῖτε. Não há aqui a formula confessional como nos demais
textos citados acima, e por isso Cl 2,6 não será analisado aqui. Por outro lado, quando o texto
remete à experiência de receber Jesus como Senhor, pode estar recordando exatamente a confissão
de fé: “Jesus é Senhor”, como a experiência inicial da vida cristã, ocorrida no batismo.
449
G. Bornkmann apud VIELHAUER, P., A história da literatura cristã primitiva, p. 52. Do
ponto de vista teológico O. Michel define a concepção paulina de homologia como “resposta ao
evangelho de Cristo, obediência à sua mensagem, aceitação de sua declaração e expressão de seu
compromisso”. O. Michel apud RIDDERBOS, H., Teologia do apóstolo Paulo, p. 283.
450
KRAMER, W., Christ, Lord and Son of God, p. 67.
451
Diversos autores, entre eles FITZMYER, J. A., κύριος. In: DENT, p. 2439; BIETENHARD, H.,
κύριος. In: DITNT, p. 2320.
452
F. F. BRUCE apud MARSHALL, I. H., The origins of New Testament Christology, p. 106.
125

título que dava o direito a César de receber honras divinas e, neste sentido, não
podiam atribuí-las a mais ninguém senão a Jesus.453

Em Romanos 10,9 a confissão em questão aparece como critério exterior


para a salvação. O texto preceitua dois elementos para a conversão: crer com o
coração e confessar com a boca. O conteúdo do crer é a ressurreição de Jesus:
“que Deus o ressuscitou dentre os mortos”. Já o da confissão é o senhorio de
Jesus. De fato, é muito forte no Novo Testamento a relação entre a ressurreição e
o senhorio de Jesus.454 Agora é importante perguntar: por que o título que a
confissão traz é Senhor, e não Filho de Deus, Filho do homem, Cristo, Sumo
Sacerdote ou outros? Entre outras considerações, ele talvez fosse o mais adequado
à confissão por conta da sua implicação de discipulado. No ministério de Jesus
antes da Páscoa, conforme observado, essa foi a noção predominante no uso do
termo. Confessar Jesus como Senhor implicava em tornar-se seu discípulo, o que
envolvia renúncia e obediência.455 Por outro lado, mediante esta confissão
estabelecia-se uma polêmica contra os muitos “senhores” da cultura helênica.456
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

Isso é o que leva a identificação deste único Senhor pelo seu nome de nascimento:
o Senhor é Jesus, aquele Jesus de Nazaré. Posteriormente, a mesma confissão
também funcionou como delimitação às pretensões imperiais. Afinal, César
também não é senhor.
Em 1Cor 12,3 a confissão funciona como critério para avaliar nada menos
do que a obra do Espírito Santo. O contexto é a discussão acerca dos carismas.
Tendo em vista a grande confusão que havia em torno desse tema em Corinto,
Paulo estabelece o confessar Jesus como Senhor como critério para quem de fato
“fala pelo Espírito de Deus”. De novo, vem a questão: por que o título κύριος? A
resposta passa pela estreita ligação entre o reconhecimento do senhorio de Jesus e
o culto. A própria existência de um culto cristão gira em torno do fato de Jesus ser
o Senhor. Destarte, também existe no Novo Testamento, sobretudo em Paulo, um
forte vínculo entre o senhorio de Jesus e a ação do Espírito. 2Coríntios 3,17: “Pois

453
BRUCE, F. F., Filipenses, p. 84.
454
Em relação a esse texto Leenhardt afirma “Senhorio e ressurreição são inseparáveis. É a fé na
ressurreição que provê a base para a confissão do Senhorio de Cristo”. F. J. Leenhardt apud
GUTHRIE, D., New Testament Theology, p. 296.
455
MacARTHUR Jr., J. F., O Evangelho Segundo Jesus, p. 278-284, que refuta a tese de que essa
seja simplesmente uma confissão da divindade de Jesus, embora isto esteja incluído. Cf. também
DUNN, J. D. G., Unidade e Diversidade no Novo Testamento, p. 202.
456
VIELHAUER, P., A história da literatura cristã primitiva, p. 53, “Com essa aclamação a
comunidade se submete ao Jesus exaltado como seu Senhor, proclama seu domínio perante o
mundo e realiza uma polêmica delimitação contra as pretensões de qualquer outro κύριος”.
126

o Senhor é o Espírito, e, onde se acha o Espírito do Senhor, aí está a liberdade”.457


O entendimento relacionado é que no período histórico-salvífico do presente,
entre a ascensão e a segunda vinda, o Senhor exaltado age através do Espírito.
Especialmente junto à igreja ele é um kyrios pneumático. O Espírito é a
“praesentia terrena do Senhor exaltado”.458 O κύριος age na igreja e na vida do
crente através do Espírito. Estar “no Senhor” equivale a estar “no Espírito”. O
ministério de Jesus como Senhor é implementado através da ação do Espírito, e
toda a ação do Espírito está em função da obra de Jesus.459 Dessa forma, qualquer
ato litúrgico (no caso dos coríntios, a manifestação dos dons) que não ecoe o
senhorio de Jesus, não provém do Espírito Santo, e não pode fazer parte de um
culto cristão.
1Cor 8,6 está em um segundo degrau no processo de desenvolvimento das
confissões de fé no cristianismo primitivo, porque talvez seja a primeira a ter dois
membros.460 A evolução em relação às outras está em dois sentidos: na inter-
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

relação entre Jesus e o Pai, e em colocar o ministério de Cristo junto à criação.


Deve-se destacar o contexto onde Paulo coloca essa confissão. No capítulo 8 ele
está discutindo a questão do comer alimentos sacrificados aos ídolos, os quais no
versículo 5 ele chama de “muitos deuses e senhores”. Para aquela situação,
existiam duas saídas comuns: ou cair no dualismo, e se isolar da sociedade, ou de
forma simples assimilar a cultura sem nenhum tipo de crítica.461 Paulo rejeita
essas opções, e oferece uma solução cristológica revolucionária. “Seguramente
uma das formulações mais assombrosas de cristologia alguma vez escrita em
qualquer século”.462 Trata-se da reformulação do texto mais famoso do
monoteísmo judaico, o shemá: “Ouve, ó Israel: Iahweh nosso Deus é o único
Iahweh” (Dt 6,4). Cabe notar que na LXX as duas ocorrências do tetragrama são
substituídas por κύριος. A reformulação paulina resulta em um shemá

457
Segundo W. Kramer, a associação entre κύριος e πνεῦμα não existia na tradição, foi criação de
Paulo. KRAMER, W., Christ, Lord and Son of God, p. 165.
458
E. KÄSEMANN apud BRUCE, F.F., Paulo, o apóstolo da graça, p. 116.
459
Na linguagem pouco cautelosa de Dunn: “Isto quer dizer que o Cristo glorificado agora é
experimentado no Espírito, através do Espírito e como Espírito”. DUNN, J. D. G. Espírito. In:
DITNT, p. 736.
460
Sobre 1Co 8,6 CULLMANN, O., Cristo e o Tempo, p. 64, afirma que é “a mais antiga
confissão de fé em dois termos”.
461
WRIGHT, N. T., Un Dios, un Señor, un pueblo, p. 2-3. Segundo este autor a questão dos
ídolos era seriamente importante para os cristãos de Corinto, pois em uma cidade como aquela é
possível que toda a carne disponível tivesse sido oferecida em algum altar.
462
Ibid., p. 5.
127

cristológico, ou melhor, em um monoteísmo cristológico. Eles continuam crendo


em um único Deus, mas agora possuem um novo único Senhor. Daí a primeira
resposta463 que Paulo dá à questão dos alimentos sacrificados é a de que não
existem outros senhores da realidade, só há um Senhor, que é Jesus, por meio de
quem todas as coisas foram criadas.464
Há poucas dúvidas de que o contexto originário de utilização da confissão
em tela era o culto.465 Cullmann propôs como alternativa ao culto o contexto das
perseguições, mas sua hipótese não obteve aprovação entre os estudiosos.466 Pode-
se precisar mais ainda o cenário do culto, e especificar o momento do batismo.467
Pois ali são satisfeitas as exigências do sentido de confissão: existem as
testemunhas, que são os membros da igreja e, é assumido o compromisso com a fé
professada.468 No contexto helenístico esse compromisso significava que o
batizado estava renunciando aos outros κύριοι, para só reconhecer Jesus como
Senhor. Nos ambientes onde se divulgava o culto ao imperador, a confissão
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

implicava que o indivíduo estava negando as pretensões de César como Senhor, e


afirmando o senhorio único, absoluto e universal de Jesus. E na perspectiva da
comunidade de fé, a confissão era o compromisso de cooperação com os outros
fiéis da comunidade (Fl 2,3-4), pois ter Jesus como Senhor significa ser servo dos
outros irmãos. Sobretudo, quando a pessoa confessava Jesus Cristo como Senhor
ela estava realizando uma antecipação escatológica. Na vida dela e no ambiente da
igreja torna-se real aquilo que Fl 2,10-11 apresenta como a realidade do final dos
tempos: pessoas dobrando os joelhos diante de Jesus e confessando-o como

463
Na continuidade da discussão Paulo apresenta o argumento de se pensar na consciência do
próximo.
464
Além dessas confissões que refletem a cristologia do κύριος, VIELHAUER, P., A história da
literatura cristã primitiva, p. 62-63 aponta também para o texto de Efésios 4,5 “há um só Senhor,
uma só fé, um só batismo”, mas a identificação deste texto como confissão de fé é pouco
consensual.
465
DUNN, J. D. G., Unidade e Diversidade no Novo Testamento, p. 131-133 tenta protestar
contra isso, mas seus argumentos são inconclusivos e ele mesmo deixa transparecer as relações
litúrgicas da confissão.
466
Conferir o posicionamento contrário de CERFAUX, L. Cristo na teologia de Paulo, p. 361.
467
Assim KELLY, J. N. D., Primitivos credos cristianos, p. 30; SÁNCHEZ BOSCH, J., Maestro
de los pueblos, p. 188 – 189. Admitem o sitz im leben no culto sem precisar o momento do
batismo KRAMER, W., Christ, Lord and Son of God, p. 65-67; VIELHAUER, P., A história da
literatura cristã primitiva, p. 53; BIETENHARD, H. κύριος. In: DITNT, p. 2320.
468
RIDDERBOS, H., Teologia do apóstolo Paulo, p. 264, “aquilo que é típico de ‘confissão’
encontra-se, assim, no fato de que é a expressão exterior da fé. Nesse sentido, tem certo
significado legal, no qual o ‘fórum’ ou as ‘testemunhas’ podem ser vistos como o tribunal do
mundo composto dos homens em geral, mas também como a Igreja ou seus representantes perante
os quais alguém professa a sua fé e assume um compromisso com o conteúdo da fé”.
128

Senhor.469 Afinal, “esse é o verdadeiro alvo da esperança bíblica e de toda


esperança de futuro autenticamente cristã”.470

6.2.2
A confissão “Jesus Cristo é Senhor” em Fl 2,11

Em Filipenses 2,11 a fórmula confessional é evidenciada pela conjunção


ὅτι, entendido como um recitativum, introduzindo uma citação, que no caso é a
confissão de fé.471 Em relação aos textos de Rm 10,9 e 1Cor 12,3, Fl 2,11 possui
um diferencial. Aqui a confissão não é apenas Jesus é Senhor, mas Jesus Cristo é
Senhor. Basevi opina que essa variação indica que aqui existem duas afirmações
de fé: Jesus é Messias e Jesus é Senhor.472 Porém, isso é improvável, porque além
do uso absoluto do termo κύριος para Jesus (Rm 14,6.8; 1Cor 3,5, e outros), Paulo
usa uma série de combinações como “Jesus Cristo, nosso Senhor” (Rm 1,4);
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

“nosso Senhor Jesus Cristo” (Gl 6,18); “Senhor Jesus Cristo” (2Cor 13,13), e
“Senhor Jesus” (1Co 11,23). Em todas essas variações a ênfase está no senhorio
de Jesus: “sintaticamente, nessas expressões, ‘Jesus’, com ou sem ‘Cristo’,
identifica o ‘Senhor’ e ‘Senhor’ define quem Jesus é para os cristãos e seu
relacionamento com ele”.473 Em termos de origem da confissão de fé nos termos
apresentados aqui em Fl 2,11 é possível que a influência das fórmulas litúrgicas já
utilizadas nas bênçãos (como em Fl 1,2) tenha levado Paulo a fazer uma leve
ampliação da expressão confessional, resultando em uma frase mais completa
cristologicamente.474 Seja como for, mesmo assim o foco da confissão é o título

469
BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 147.
470
DE BOOR, W.; HAHN, E., Cartas aos Efésios, Filipenses e Colossenses, p. 213.
471
FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 294.
472
BASEVI, C., Estudio Literario y Teológico del Himno Cristológico de la Epístola a los
Filipenses (Phil 2,6-11), p. 467-468.
473
HURTADO, L. W., Senhor. In: DPC, p. 1154. CERFAUX, L., Cristo na Teologia de Paulo,
p. 392, sugere que a expressão “Jesus Cristo” nessa ordem está afirmando Deus ressuscitou este
homem Jesus e lhe deu a função e a dignidade de salvador messiânico. Em contrapartida, quando
Paulo diz “Cristo Jesus”, o pensamento parte do Cristo preexistente que se revelou no homem
Jesus de Nazaré. Não parece, contudo, que exista toda essa reflexão teológica em expressões
usadas de forma tão rotineira por Paulo. Para Lohmeyer a ausência do pronome “nosso” apontaria
para o senhorio de Jesus sobre todo o cosmos, e não apenas sobre a Igreja. BROWN, C., Ernst
Lohmeyer’s Kyrios Jesus, p. 16.
474
HURTADO, L. W., Senhor. In: DPC, p. 1152.
129

κύριος, que ocupa posição enfática na sentença,475 e a designação “Cristo” não


funciona como título confessado.
Por outro ângulo, existe uma razão para a inclusão de “Cristo” na simples
confissão de fé “Jesus é Senhor”. A questão é que devido à expansão da
mensagem cristã para ambientes com maioria gentílica, de grande influência
helenista (como era a situação da cidade de Filipos), onde Χριστὸς não possuía a
mesma relevância que tinha no judaísmo, a manutenção da designação judaica era
importante para estabelecer o vínculo da mensagem anunciada com seu ponto de
origem, que é a fé israelita. Com muita probalidade Paulo concordaria com as
palavras de Jesus em João: “porque a salvação vem dos judeus” (Jo 4,22).476
Dessa maneira, ainda que “Cristo” funcione na confissão apenas como sobrenome
de Jesus,477 ele era fundamental para mostrar a identidade do Senhor proclamado e
confessado, que de outra forma, para ouvidos não judaicos poderia se confundido
com os vários κύριοι existentes na religiosidade oriental.478
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

6.3
O título κύριος atribuído a Jesus

6.3.1
Panorama da atribuição de κύριος a Jesus no Novo Testamento

É possível identificar no cristianismo primitivo testemunhado pelo Novo


Testamento dois momentos distintos na aplicação do título κύριος a Jesus. O
primeiro momento é aquele que remonta ao ministério de Jesus anterior à
ressurreição, conforme o testemunho dos evangelhos. Como aquele era um
ambiente de fala aramaica, a utilização de κύριος pelos evangelistas por certo não
é original, mas tem como possíveis correspondentes os termos ‫ מָ ר‬e ‫ ַרבִּ י‬. Nesse
contexto, é possível distinguir dois significados principais à aplicação de κύριος a
Jesus durante esse período anterior a Páscoa. Boa parte das ocorrências, sobretudo
aquelas no vocativo, podem ser classificadas como simples fórmula de tratamento,

475
CERFAUX, L., Cristo na teologia de Paulo, p. 369, “κύριος é a palavra principal”.
Igualmente MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 271.
476
Ele chega próxima a essa afirmação em Rm 9,4-5.
477
Assim MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 279.
478
BULTMANN, R., Teologia do Novo Testamento, p. 174.
130

sem qualquer conotação religiosa (entre outros, Jo 4,11.15.19; 5,7; 8,11; 9,36).479
Em um outro grupo de referências, constata-se que o título é usado com sentido de
mestre, fazendo um par linguístico com δοῦλος, trazendo subjacente a noção de
discipulado entre Jesus e seus interlocutores. Veja-se, por exemplo, a tendência
em Mateus de colocar κύριος onde Marcos utilizou ῥαββί e διδάσκαλος. Isso
ocorre em Mt 8,25 / Mc 4,38; Mt 17,4 / Mc 9,5; Mt 17,15/ Mc 9,17; Mt 20,33 /
Mc 10,51. Isso mostra que nesse período Jesus era reconhecido com mestre (de
uma maneira que tanto se aproximava quanto tinha diferenças em relação ao
mundo judaico contemporâneo). Os evangelistas preservaram esse
reconhecimento, não só mediante o uso de κύριος, como também através de outras
designações, como ῥαββί (Mt 23,7.8; 26,25.49; Mc 9,5; 11,21; 14,45; Jo 1,38;
3,2.26; 4,31; 6,25; 11,8)480 διδάσκαλος (Mt 8,18; 23.8; Mc 4,38; 5.35; 9.38; Lc
7,40; Jo 3,2; 11,28)481 e ἐπιστάτης (Lc 5,5; 8,24.45; 9,33.49; 17,13)482.
O segundo momento da atribuição de κύριος a Jesus no cristianismo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

primitivo testemunhado no Novo Testamento está ligado de maneira direta ao


objeto formal deste trabalho. Pois foram a ressurreição, e a consequente exaltação
de Jesus os catalisadores da utilização deste título com um amplo significado
cristológico. Como observa Longenecker: “‘Senhor’ foi um título pós-ressurreição
e encontrou seu ponto de partida e início racional na ressurreição e exaltação de
Jesus”.483 E o contrário também é verdade, isto é, a cristologia da exaltação que se
desenvolveu a partir da ressurreição estava essencialmente expressa no título em
questão, como evidencia o importante texto de At 2,36. As cartas paulinas
também indicam a estreita relação entre κύριος e a ressurreição de Jesus (Rm
4,24; 1Co 9,1; 2Co 4,14). Isto é reforçado aqui em Fl 2,9-11 pela conexão entre o
título e a exaltação, que pressupõe a ressurreição. Ele passa a ser Senhor a partir

479
HURTADO, L. W., Senhor. In: DPC, p. 1147. Schnelle entende que a importância de Χριστὸς
para os gentios era outra. Ele afirma que as cerimônias de unção que ocorriam na região do
Mediterrâneo naquele período geravam o senso comum religioso de que pessoas (ou coisas)
ungidas são sagradas, santas e consagradas a deus. Assim, judeus e gentios compreenderiam a
afirmação Ἰησοῦς Χριστὸς como predicado da singularidade religiosa de Jesus, ainda que seja
discutível se a utilização paulina e neotestamentária tivesse essa perspectiva religiosa em vista.
SCHNELLE, U., Paulo: Vida e Pensamento, p. 563.
480
A forma transliterada de ‫רבִּ י‬.ַ
481
Nos evangelhos διδάσκαλος ocorre 49 vezes, e apenas em Lc 2,46 não se refere a Jesus.
482
É um termo exclusivo do evangelho de Lucas.
483
LONGENECKER, R., The Christology of Early Jewish Christianity, p. 129. Na mesma
direção afirma Hurtado: “em grupos cristãos primitivos, a ressurreição de Jesus continuou a ser
considerada a base histórica e demonstração da sua exaltação”. HURTADO, L. W., Senhor. In:
DPC, p. 1152.
131

da sua exaltação.484 “Nas passagens em que a teologia de Jesus Senhor é explícita,


aparece claramente que a ressurreição era entendida como evento decisivo para
este se tornar Senhor”.485
Por conseguinte, a conclusão de que Jesus é o κύριος, identificado com o
Deus único de Israel proporcionou um olhar retrospectivo aos cristãos, levando-os
a designar Jesus antes da exaltação com o mesmo título. É o caso específico da
literatura lucana.486 Deve-se registrar, entretanto, que não houve uma mistura de
horizontes cristológicos entre o ministério terreno e o exaltado de Jesus, mas uma
única preocupação com a identidade.487 O objetivo de Lucas e outros era mostrar
que o exaltado é o mesmo homem que nasceu de Maria, caminhou na Galiléia e
foi morto em Jerusalém. E eles se sentem à vontade para aplicar retroativamente
o título Senhor a Jesus porque Deus o exaltou a essa posição no presente.
E lembrando que essa reflexão teológica remonta às primeiras etapas do
cristianismo, é muito pertinente à exegese perguntar-se de onde os cristãos tiraram
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

esse título para explicar a pessoa e obra do Jesus exaltado e qual significado eles
estavam atribuindo a Jesus por meio dessa designação. A resposta para ambas as
perguntas passa em boa parte pela utilização de κύριος na Septuaginta e no
judaísmo.

6.3.2
Panorama da história da pesquisa sobre o título κύριος

“Senhor” é uma designação fundamental para a cristologia


neotestamentária, sobretudo a paulina. Isso prova a estatística e o papel que o

484
A partir daí o título pôde ser associado a outros eventos cristológicos como a parusia. Através
das epístolas aos tessalonicenses percebe-se essa conexão (1Ts 4,16; 3,13; 4,15; 5,23).
CERFAUX, L., Cristo na Teologia de Paulo, p. 361-362.
485
DUNN, J. D. G., Teologia do Apóstolo Paulo, p. 292.
486
ROWE, C. K., Acts 2.36 and the continuity of lukan Christology, p. 51.
487
Veja-se, por exemplo, o quarto evangelho, que tanto no prólogo, quanto nos discursos de Jesus
apresenta uma cristologia “exaltada”, mas tem o cuidado de narrativamente só aplicar o título
κύριος a Jesus após a ressurreição, ou seja, a partir de 20,20: “Tendo dito isso, mostrou-lhes as
mãos e o lado. Os discípulos, então, ficaram cheios de alegria por verem o Senhor”.
132

título ocupa na narrativa teológica do apóstolo.488 E considerando que os escritos


paulinos são cronologicamente os primeiros do Novo Testamento, é muito
provável que Paulo tenha sido um fomentador desse aspecto cristológico.
Todavia, isso não foi uma inovação paulina.489 Por certo o apóstolo herdou dos
primeiros cristãos a designação de Jesus como κύριος, e usa o termo sem
explicações ou justificativas, esperando ser entendido por seus leitores. Apontam
nessa direção frases estereotipadas como “Senhor Jesus Cristo” (1Ts 1,1) e “nosso
Senhor Jesus Cristo” (1Ts 1,3), as fórmulas tradicionais citadas pelo apóstolo que
incluem a designação, como as confissões de fé, as bênçãos usadas nas saudações
das cartas, a expressão μαράνα θά (1Cor 16,22) bem como a releitura de textos
veterotestamentários, aplicando a Jesus o que antes referia-se a Deus. Esse último
fenômeno deve ser agora aprofundado, pois nele encontra-se todo o conteúdo que
judeus cristãos como Paulo acreditavam estar presente quando chamavam Jesus
de Senhor.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

A Septuaginta utiliza κύριος cerca de 9 mil vezes. Destas, 6.156 traduzem


o tetragrama ‫יהוה‬.490 A história da interpretação dessa “tradução” passou por três
fases. Na primeira, chamou-se a atenção para o costume existente no judaísmo
pré-cristão de evitar a pronúncia do tetragrama, substituindo-o na liturgia por
‫אֲדֹ נָי‬.491 Quando se produziu a LXX, o termo grego escolhido para traduzir o nome
de Deus seria o equivalente ao hebraico ‫אָ דוֹן‬, isto é, κύριος. Isso supõe que na
época do surgimento do cristianismo, tanto os judeus de fala aramaica quanto os
de fala grega chamavam Deus de “Senhor”. Daí, quando os primeiros cristãos
passaram a chamar Jesus dessa forma, pela perspectiva judaica estavam

488
Quanto à estatística, κύριος ocorre 274 vezes na literatura paulina global (nas 13 cartas
atribuídas a Paulo no Novo Testamento). Em termos de título cristológico, apenas Χριστός supera
essa marca, com 382 ocorrências. O problema é que muitas vezes este último termo é usado
apenas como nome (ou sobrenome) de Jesus, perdendo importância teológica na narrativa. No caso
de κύριος também deve-se excluir os textos em que o título refere-se a Deus ou outro personagem.
Ainda assim, o número de referências a Jesus é alto. Segundo Hurtado, seriam 180 considerando
apenas nas cartas incontestadas (ele deixa de lado as pastorais, 2Tessalonicensses e Efésios).
HURTADO, L. W., Senhor. In: DPC, p. 1150; WITHERINGTON III, B., Cristo. In: DPC, p. 308.
489
HURTADO, L. W., Senhor. In: DPC, p. 1149.
490
BIETENHARD, H., Senhor. In: DITNT, p. 2317; FOESTER, W.; QUELL, G., κύριος. In:
TDNT, p. 1061.
491
Segundo HURTADO, L. W., The Origin of the Nomina Sacra: a proposal, p. 655-673, essa
reverência ao nome divino influenciou o surgimento no cristianismo primitivo dos chamados
nomina sacra: são quatro nomes que eram abreviados em textos cristãos primitivos (já no 2º
século) por serem considerados sagrados, a saber: Ἰησοῦς; Χριστός, Κύριος e Θεός. A novidade
cristã, conforme Hurtado, é que entre os nomes reverenciados estão títulos cristológicos, bem
como a ausência de qualquer temor em pronunciar estes nomes.
133

designando-lhe com o nome do próprio Deus, algo muitíssimo relevante


teologicamente.492
Em um segundo momento, essa linha de argumentação foi questionada.493
Ocorre que as cópias da LXX em que o tetragrama é substituído de maneira
uniforme por κύριος são cópias cristãs. Textos de uso judaico trazem exemplos da
preservação do tetragrama em caracteres hebraicos, ou em formas alternativas,
com IAW e PIPI.494 A conclusão é que a mudança no texto escrito de ‫ יהוה‬para
κύριος teria sido influenciada pelo uso cristão da expressão, e não o contrário.495
O terceiro momento na história da pesquisa retorna parcialmente ao
primeiro. Os trabalhos de J. A. Fitzmyer foram importantes para demonstrar que
era comum entre os judeus antes do cristianismo designar Deus como Senhor, seja
como ‫אֲדֹ נָי‬, ‫ מָ ר‬ou κύριος (dependendo do idioma falado).496 Na mesma direção
Geza Vermes defende que desde o 2º século antes de Cristo “os judeus usaram o
título ‘Senhor’ ao falar sobre ou com Deus em hebreu, aramaico ou grego”.497 E
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

para refutar a teoria da não originalidade de κύριος na LXX, Martin Rösel


ofereceu algumas proposições bastante pertinentes.498 Ele começa seu argumento
mostrando que os massoretas escolheram as vogais de ‫ אֲדֹ נָי‬para vocalizar o
tetragrama. É uma informação que reforça a tese de Fitzmyer de que “meu
Senhor” era o que deveria ser lido (qêre) quando no texto aparecia o tetragrama.
Rösel propõe que os caracteres hebraicos da LXX provêm de uma revisão pré-
cristã feita no texto, e a forma IAW deveria ser o costume de uma determinada
comunidade judaica que preservou, ao contrário do restante do povo, esta forma

492
FITZMYER, J. A., To Advance the Gospel, p. 221. Ele atribui a Cullmann essa interpretação.
493
Para um resumo desses questionamentos cf. FITZMYER, J. A., The Semitic Background of
the New Testament, p. 119-123; RÖSEL, M., The Reading and Translation of the Divine
Name in the Masoretic Tradition and the Greek Pentateuch, p. 414-419.
494
Entre os textos em questão estão o Papiro Fouad 266 (Dt 31); os doze profetas menores (LXX)
achados na caverna 4 de Qumran; fragmentos de Levítico 2.-5 na mesma caverna; fragmentos de
Áquila (provenientes do Cairo); fragmentos da segunda coluna da Hexapla (conhecidos por
Orígenes e Jerônimo). Cf. FITZMYER, J. A., The Semitic Background of the New Testament,
p. 120.
495
É a conclusão, por exemplo, de FOESTER, W.; QUELL, G., κύριος. In: TDNT, p. 1059.
496
FITZMYER, J. A., The Semitic Background of the New Testament, p. 124-127;
FITZMYER, J. A., To Advance the Gospel, p. 222-223; FITZMYER, J. A., κύριος. In: DENT, p.
2443.
497
VERMES, G., As várias faces de Jesus, p. 223. Da mesma forma HURTADO, L. W., Senhor.
In: DPC, p. 1148.
498
RÖSEL, M., The Reading and Translation of the Divine Name in the Masoretic Tradition
and the Greek Pentateuch, p. 414-419.
134

de pronunciar o tetragrama.499 Mas a principal proposta de Rösel é defender a


originalidade de κύριος como tradução do nome de Deus na LXX. Para tal, ele
busca identificar os critérios teológicos usados pelos autores da tradução na
utilização do termo grego. Ele observa que a tendência geral da LXX é usar
κύριος para ‫ יהוה‬e θεός para ‫אֱ¯הִ ים‬. Porém em algumas ocasiões os tradutores
usaram θεός para o tetragrama no lugar de κύριος. A conclusão de Rösel é que os
tradutores preferiram θεός em contextos de julgamento ou condenação, e
demonstração de poder, enquanto optaram por κύριος em textos que ressaltam a
graça e a misericórdia de Deus. Naturalmente ele admite que essa distinção não
existe no texto hebraico (que usa ‫ יהוה‬nos dois contextos), bem como não é
possível discernir todos os critérios envolvidos, mas é uma proposta plausível em
favor da originalidade de κύριος na LXX. Trazendo isso para Fl 2,9-11, quando o
texto identifica o nome dado por Deus a Jesus na sua exaltação como κύριος, o
autor quer mostrar que Deus agraciou Jesus com seu próprio nome. Portanto, por
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

trás do título que é confessado no versículo 2,11 deve-se enxergar a relação


κύριος-‫אֲדֹ נָי‬-‫יהוה‬, proveniente tanto da tradição litúrgica sinagogal, quanto da
reflexão cristã a partir da LXX.

6.3.3
A importância teológica de confessar Jesus como Senhor

Para a compreensão da amplitude teológica da atribuição de Jesus como


Senhor é preciso ainda responder à seguinte questão: “por que os judeus tiveram a
ideia de ler precisamente Adonai em lugar do tetragrama sagrado”?500 Seja qual
for a resposta, podem ter sido as mesmas razões que também influenciaram a
escolha de κύριος na LXX. Uma explicação razoável é que a escolha passou por
uma interpretação do nome de Deus.501 Porque este sempre indica quem é Deus, a
sua natureza, que no Antigo Testamento é sempre soberania. Por isso, o termo

499
HURTADO, L. W., Senhor. In: DPC, p. 1149, argumenta que a utilização das formas hebraicas
na LXX, ou dos caracteres PIPI era apenas um artifício literário, mas na hora da leitura eles eram
provavelmente substituídos por κύριος. Igualmente DUNN, J. D. G., Teologia do apóstolo Paulo,
p. 296-297.
500
Questionamento formulado por CULLMANN, O., Cristologia do Novo Testamento, p. 264.
501
FOESTER, W.; QUELL, G. κύριος. In: TDNT, p. 1059.
135

“Senhor” funciona como um resumo da fé veterotestamentária.502 E a soberania de


Deus se baseia tanto na criação, quanto na salvação.503 As duas realidades são
testemunhas dessa soberania. E aqui se encontra a conexão com a cristologia do
Novo Testamento, de modo particular com Fl 2,9-11, pois crer em Jesus como
Senhor é acreditar que ele compartilha a soberania de Deus nessas duas áreas. Ele
é o Senhor da salvação, pois ela só é obtida através da fé nele (Rm 10,9), e é
Senhor da criação, porque além de ser o mediador dela (Cl 1,16; Jo 1,2), tudo
agora foi colocado debaixo de seus pés (1Cor 15,27; Hb 2,8).
Na teologia paulina esse senhorio soberano de Jesus vincula-se em
particular a três áreas. Primeiro, à contextos parenéticos, nos quais os cristãos são
chamados a uma vida de obediência ao seu κύριος (Rm 14,1-12; 1Co 6,13-7,40),
ecoando a antiga conotação do título que mostrava Jesus como Mestre. O cristão
deve agir como δοῦλος, e tudo na sua vida deve corresponder ao seu Senhor.504
Desse modo, a exortação de Fl 2,12 pode precisamente estar referindo-se à
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

obediência (verbo ὑπακούω) que os cristãos filipenses têm demonstrado a Jesus


como Senhor, algo que Paulo exorta para que continuem fazendo.505 Com efeito, o
versículo 11 faz a ligação natural entre o indicativo do que Deus já fez, a virada
escatológica com a exaltação de Cristo, e a consequente disponibilidade de uma
nova vida pelo Espírito Santo, e o imperativo do que os cristãos devem fazer
quando estão dentro dessa vida, isto é, estão ἐν Χριστω (2,5). Mas na verdade, a
confissão de Jesus como Senhor coloca o mundo inteiro diante de um desafio, a
questão última que importa no julgamento final: “ser ou não ser obediente. Nosso
destino depende de nossa confrontação com aquele que é Obediente”.506 O destino
do mundo e de cada ser humano passa pela resposta ao senhorio de Jesus, pois,
afinal, é nesse espaço que o ser humano encontra sua verdadeira humanidade, no
espaço da obediência ao Senhor.507 É nessa linha que as implicações éticas são
encontradas na passagem, não em termos de imitação de Jesus.

502
FOESTER, W.; QUELL, G. κύριος. In: TDNT, p. 1062.
503
Ibid., p. 1081-1082.
504
DUNN, J. D. G., Teologia do apóstolo Paulo, p. 294: “no mínimo, professar Jesus como
Senhor expressava uma vida agora dedicada de serviço”.
505
HURTADO, L. W., Senhor. In: DPC, p. 1155.
506
MORGAN, R., Incarnation, Myth, and Theology, p. 65. Morgan mostra que para E. Käsemann
é exatamente essa confrontação, essa necessidade de resposta que faz do hino evangelho e não
mito.
507
MORGAN, R., Incarnation, Myth, and Theology, p. 66.
136

O segundo contexto no qual o senhorio soberano de Jesus é sublinhado por


Paulo é o escatológico. Já foi exposto anteriormente o significado escatológico da
exaltação de Jesus. Destarte, não apenas Paulo usa κύριος para descrever a virada
escatológica que aconteceu a partir da ressurreição, como também para expressar
o que pode ser chamado de vitória escatológica final. Como notado acima, o
futuro escatológico já começou, mas ainda não chegou a sua plenitude. E se
apropriando da linguagem veterotestamentária, Paulo chama essa plenitude de
“dia do Senhor” (1Ts 5,2; 1Cor 5,5; 2Cor 1,4), onde o “Senhor” é Jesus Cristo na
sua parusia. Para o apóstolo, nesse dia Jesus vai trazer duas coisas que o Antigo
Testamento reservava para Deus: o julgamento de todos e a vitória definitiva
sobre o mal. É a hora em que, por alegria ou constrangimento, todos reconhecerão
Jesus como Senhor e se prostrarão diante dele.508
O terceiro contexto no qual o senhorio soberano de Jesus é trabalhado na
literatura paulina é o litúrgico. Já foi notada a forte conexão que existe entre
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

κύριος e o culto. A confissão de fé, as fórmulas de bênçãos, a súplica μαράνα θά,


a designação da eucaristia como κυριακὸν δεῖπνον (1Cor 11,20), confirmam a
tese. Mais importante ainda, como observado no capítulo anterior, é que o culto
cristão foi o propulsor da fé cristã primitiva no senhorio de Jesus. Ali Jesus foi
reconhecido como Senhor soberano, e cristãos judeus se prostraram diante dele, o
adoraram e o confessaram como Senhor das suas vidas, sem que por um momento
acreditassem estar traindo o seu monoteísmo.509 Além disso, no culto cristão onde
o senhorio de Cristo é celebrado os dois horizontes anteriores se conectam, pois a
Igreja tanto alimenta, quanto vivencia de forma antecipada sua esperança
escatológica, e ao mesmo tempo é desafiada a uma vida de obediência ao seu
Senhor. “É a adoração de Cristo e a lembrança do poder fornecido pela sua
ressurreição para aqueles que estão ‘em Cristo’ que capacita a sua resposta
ética”.510 O culto cristão é assim um espaço da ação do Senhor exaltado na Terra.
A comunidade reúne-se em nome dele, e experimenta a ação dele por intermédio

508
HURTADO, L. W., Senhor. In: DPC, p. 1155-1156.
509
HURTADO, L. W., Senhor. In: DPC, p. 1156-1157.
510
DODD, B. J., The Story of Christ and the Imitation of Paul, p. 160. Na frase imediatamente
antes ele afirma de forma sugestiva que não era o cantar repetitivo do modelo de Cristo que
capacitava os cristãos a viverem a vida digna do evangelho.
137

do Espírito, especialmente na eucaristia.511 E esse contexto litúrgico encaminha o


significado eclesiológico do senhorio de Jesus. Porque a Igreja é a comunidade
daqueles que se reconhecem sobre o seu domínio. Ela é o corpo “cuja cabeça é o
Senhor de todas as coisas”.512 E como Senhor ele cuida dos seus servos, pois a
exaltação de Cristo coincide com o início da obra intercessora de Jesus pela Igreja
(Rm 8,34), outro aspecto do ministério exaltado de Cristo. E não se deve esquecer
do papel do Espírito Santo na Igreja como agente do Cristo exaltado, conforme
apontado no início deste capítulo.
Não obstante, se o exposto acima é o conteúdo religioso principal que
Paulo e os primeiros cristãos viam por detrás da designação “Senhor”, pode-se
dizer um conteúdo “judaico”, vale ressaltar o significado que a afirmação do
senhorio teria para os cristãos não judeus, ou para aqueles judeus que estavam
debaixo da poderosa influência helenista. Boa parte dos lugares em que Paulo
transitava no primeiro século sofria a influência do helenismo religioso. Nesse
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

contexto, as pessoas entendiam que suas vidas estavam debaixo de forças


espirituais completamente arbitrárias, que determinavam seus destinos.513 E diante
desses poderes elas consideravam-se completamente impotentes. É contra essa
realidade que a confissão de Jesus como κύριος deve ser compreendida. Para
aquelas pessoas o anúncio do senhorio de Jesus significava que os poderes
malignos que as controlavam foram destronados. Agora o universo foi
reconciliado com Deus. A realidade escatológica do senhorio de Jesus elimina as
fronteiras que separavam o velho mundo do novo mundo. O novo mundo já é real.
Um mundo onde o Senhor é Jesus, aquele que não impôs sua soberania como um
tirano, mas abrindo mão, se esvaziando, servindo, sendo obediente a Deus e
morrendo em favor daqueles a quem ele iria governar. É a esse Jesus que agora o
ser humano libertado é chamado a servir e ser obediente. E essa obediência, como
indicado por Käsemann, não vem por intermédio da imitação do exemplo dele,
mas pela convicção de pertencer a ele.514
Agora, para além dos aspectos religiosos, no cenário político do 1º século
d.C., sobretudo em Filipos, as afirmações dos versículos 2,10-11 seriam notadas.

511
SCHNELLE, U., Paulo: Vida e pensamento, p. 565: “A comunidade reúne-se na presença do
poderosa do Exaltado, cujas forças salvífica, mas também castigadoras operam na celebração da
ceia”.
512
SCHWEIZER, E., Lordship and Discipleship, p. 67.
513
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 281.
514
KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 121.
138

Como em outros tempos, a política do império romano estava entranhada de


simbolismos religiosos. Por sinal, para as pessoas daquela época não fazia
qualquer sentido separar política e religião.515 Entre os povos orientais era prática
comum desde Alexandre Magno oferecer homenagens religiosas a governantes
vivos, “honras iguais a deuses”, que envolviam “templos, sacrifícios, sacerdotes,
festivais e jogos”.516 Nessa seção do império, o imperador romano ocupava um
espaço entre deuses e seres humanos. Registram-se aí sacrifícios em nome do
imperador, mas ainda não para o imperador. E já no final do 1º século a.C., cultos
imperiais eram populares na província romana da Ásia. No ocidente a tradição era
venerar os imperadores mortos. Na verdade, também ainda no 1º século a.C. o
senado romano aprovou a lei da divinização póstuma dos imperadores. Dessa
forma, se durante a vida de Paulo o culto ao imperador ainda não tinha se
consolidado, era algo que estava se disseminando rapidamente: “o culto ao
imperador era a religião que registrava o mais rápido crescimento no mundo de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

Paulo, o mundo do Mediterrâneo oriental”.517 E certamente Paulo acompanhou de


perto as ações de Calígula (37-41 d.C.), que aplicou a si mesmo o título Deus e
ainda tentou construir no Templo de Jerusalém uma estátua em sua própria
homenagem,518 e de Nero, sob o qual a aclamação do imperador vivo como κύριος
espalhou-se grandemente.519 Também não eram estranhas nem para Paulo, nem
para os filipenses, os contornos políticos da crescente religiosidade em torno do
imperador. Como observa Moessner: “Embora o escopo do ‘culto ao imperador’
na Filipos do primeiro século cristão permaneça discutível, o que não é disputado
é o extensivo capital político que a veneração do imperador entregou para Roma
no controle das suas ‘colônias’”.520
Diante desse cenário Fl 2,10-11 chama a atenção por três razões. Primeiro,
o cristão é chamado a rejeitar qualquer um que se apresente como senhor, deus ou

515
WRIGHT, N. T., Novas perspectivas sobre Paulo, p. 84.
516
AUNE, D. E., Imperadores Romanos. In: DPC, p. 674.
517
WRIGHT, N. T., Novas perspectivas sobre Paulo, p. 89.
518
AUNE, D. E., Imperadores Romanos, In: DPC, p. 674.
519
HELLERMAN, J. H., Philippians, p. 124. SCHNELLE, U., Paulo: Vida e Pensamento, p.
476, faz menção de uma inscrição grega do período de Nero que celebrava: “O Kyrios do mundo
inteiro, Nero”.
520
MOESSNER, D. P., Turning Status ‘Upside Down’ in Philippi Christ Jesus’ ‘Emptying
Himself’ as Forfeiting Any Acknowledgment of His ‘Equality with God’ (Phil 2:6-11), p. 132.
KRENTZ cita com aprovação a tese de R. R. Brewer de que havia em Filipos “os Augustales,
libertos especialmente consagrados ao culto do divino Augusto, e que este culto imperial
prosseguiu por todo o século I da Era Comum”. KRENTZ, E., Paulo, os Jogos e a Milícia, p. 325.
139

dominador deste mundo, esteja vivo ou morto. Só há um Senhor, e o nome dele é


Jesus Cristo. Consequentemente, somente ele deve ser honrado como Deus.
Somente a ele o ser humano deve prostrar-se reconhecendo sua autoridade. Não
somente o culto ao imperador, mas toda e qualquer homenagem religiosa dedicada
a governantes humanos são excluídas aqui. Segundo, o argumento de Fl 2,10-11 é
que mesmo os imperadores romanos terão de dobrar os joelhos diante de Jesus e
confessá-lo como κύριος.521 A ironia é que terão de reverenciar aquele que foi
morto por uma autoridade romana, através de uma penalidade romana (embora
requerido por líderes judeus). Nesse sentido, a mensagem do senhorio de Jesus em
Fl 2,9-11 é que não apenas demônios e forças espirituais foram subjugadas por
Jesus, mas que todo poder e autoridade sobre essa Terra, seja política, religiosa,
jurídica, militar ou econômica, está debaixo da autoridade suprema de Jesus.522
Em terceiro lugar, mas não menos importante, é o efeito a ser produzido pela
comparação entre o senhorio de César e o de Jesus: aquele era reconhecido como
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

senhor do império, enquanto este, segundo Filipenses, foi entronizado senhor de


todo o universo.523 Para os cidadãos de Filipos, que incluía muitos soldados
veteranos do império, outros antigos habitantes da própria capital, e muitos outros,
que por motivos diversos admiravam Roma, orgulhavam-se da sua ligação com
ela e bajulavam seus líderes políticos em troca de favores, para todos eles a
mensagem de Fl 2,10-11 era a própria subversão de sua visão de mundo, afinal
“para a maior parte do mundo romano, a ‘divindade’ do imperador era óbvia e
inquestionável, porque ele... possuía um poder evidentemente superior ao poder
de qualquer outro mortal”.524 Nesse aspecto, a mensagem do senhorio absoluto de
Jesus em Fl 2,10-11 era uma mensagem revolucionária.525 Ao mesmo tempo, era
uma proclamação de esperança para a igreja de Filipos. Lembre-se que enquanto
Paulo escreve sua carta ele estava preso em uma prisão romana, provavelmente na

521
HELLERMAN, J. H., Philippians, p. 122, lembra que as autoridades romanas estão incluídas
no termo ἐπιγείων.
522
De um ponto de vista sociológico, essa mensagem poderia provocar nos cristãos e no
cristianismo como movimento a sensação de um novo status privilegiado. Um novo mundo chegou
e agora todos estão subordinados a Jesus como Senhor, e são os cristãos que possuem um
relacionamento especial com este Senhor, eles estariam em uma posição “social” mais vantajosa
que seus adversários. WORTHAM, R. A., Christology as Community Identity in the
Philippians Hymn: The Philippians Hymn as Social Drama (Philippians 2:5-11), p. 285.
523
WORTHAM, R. A., Christology as Community Identity in the Philippians Hymn: The
Philippians Hymn as Social Drama (Philippians 2:5-11), p. 282.
524
WRIGHT, N. T., Novas perspectivas sobre Paulo, p. 90.
525
Não é de modo algum necessário adotar a chamada “interpretação ética” da passagem para se
extrair suas implicações sócio-políticas.
140

capital do império, e que, segundo o registro do livro de Atos, a igreja nasceu


naquela cidade sob oposição das autoridades romanas. Nessa perspectiva, o viés
escatológico da passagem é muito importante porque ela informa aos leitores que,
a despeito das circunstâncias visíveis, o verdadeiro Senhor do universo é aquele
que eles confessam como Senhor das suas vidas, e um dia, não só eles, mas
também os que agora sentem-se poderosos inclusive perseguindo a Igreja se
prostrarão diante de Jesus e terão de admitir sua insuficiência e o senhorio de
Cristo. Por outro ângulo, a maior arma que os governantes desse mundo possuem
é a morte, e o anúncio da exaltação de Jesus mostra que essa arma foi vencida
através da ressureição do Senhor Jesus.526

6.4
Para glória de Deus Pai
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

Quanto à expressão proposicional εἰς δόξαν θεοῦ πατρός o primeiro


desafio a ser enfrentado é sobre a sua originalidade. Conforme discutido
anteriormente, J. Jeremias defendeu que a peça hínica original não continha essa
expressão. Ela teria sido acrescentada quando Paulo a editou para citá-la na carta
aos Filipenses. Martin chega a dizer que “parece conclusivo que a frase deveria
ser separada do texto da confissão”.527 Entretanto, conforme observado no
primeiro capítulo, desde a década de 1990 a pesquisa exegética está caminhando
na direção contrária, afirmando a autoria paulina integral de Fl 2,6-11.
Ainda mais relevante é a questão sobre o significado desta última frase do
conjunto inteiro de Fl 2,6-11. Por certo ela não é a conclusão apenas da segunda
parte do hino, mas do hino inteiro. Significa que tanto a exaltação, quanto a
humilhação foram para a glória de Deus Pai.528 Mais ainda: há uma espécie de
inclusio, pois no primeiro verso do hino o Filho de Deus é identificado com Deus
Pai através das expressões μορφῇ θεοῦ e εἶναι ἴσα θεῷ, ou seja, em termos de
quem ele era na sua preexistência. E agora, na última parte do texto, ele é
identificado com Deus Pai através do que recebe. Ambos tinham a mesma

526
WRIGHT, N. T., Novas perspectivas sobre Paulo, p. 95.
527
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 273.
528
BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 148.
141

“forma”, agora ambos recebem a mesma adoração, sem qualquer competição, ou


diminuição de um ou de outro.529
Destarte, a conclusão do hino acompanha a exaltação muito provavelmente
para afastar dos ouvintes e leitores qualquer noção de que Jesus Cristo seja um
segundo deus ao lado do Pai. Seria assim uma afirmação do monoteísmo bíblico,
que no Novo Testamento vai ser reformulado para um monoteísmo
cristológico.530 Refinando um pouco mais, é muito plausível que essa sentença
queira acentuar que a participação de Cristo na divindade não tem nada a ver com
rivalidade ou disputa. Cristo não é um insurgente, que através de um ato rebelde
conquistou pela força o senhorio cósmico.531 Ao contrário, Fl 2,11 retoma a
primeira parte do hino (Fl 2,6-8) e mostra que κύριος é o obediente, aquele que
não se apegou ao ser igual a Deus, mas se esvaziou. Abriu mão. Renunciou.
Assumiu o papel de servo, se humilhou, e serviu obedientemente até a morte de
cruz. Isso se relaciona com o versículo 2,9, que mostra que o senhorio foi dado
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

(ἐχαρίσατο) por Deus a Jesus. Então, se Fl 2,9-11 mostra que Jesus agora tem toda
autoridade (conforme Mt 28,18), também mostra que essa autoridade é
completamente derivada de Deus Pai,532 e exercida para a glória do Pai. “O
Senhorio de Cristo leva à glória de Deus”,533 para que um dia “Deus seja tudo em
todos” (1Co 15,28). Nas palavras de Kreitzer, poderia se afirmar que a exaltação
de Jesus é também a exaltação de Deus Pai.534
Outra questão importante nesta expressão é o sentido do substantivo
πατρός. Antes de tudo, é preciso observar a força do termo em Paulo. Em sua
teologia a paternidade de Deus é vista em três dimensões: Deus é o Pai de Jesus, é
o Pai dos cristãos e é o Pai do mundo. Com efeito, Guthrie opina que “não há
nenhum outro conceito de Deus que domine a teologia de Paulo mais do que
esse”.535 A questão que se levanta é: qual a dimensão dessa paternidade está
presente em Fl 2,11? Em outras palavras: Deus é pai de quem aqui?536 Käsemann

529
FOWL, S, Philippians, p. 104.
530
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 274.
531
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 275-276.
532
HAWTHORNE, G. F., Philippians, p. 117.
533
O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 251.
534
KREITZER, L. J., “When He at Last Is First!”, p. 121.
535
GUTHRIE, D.; MARTIN, R. P., Deus. In: DPC, p. 383.
536
Ao que tudo indica o primeiro a elaborar essas três possibilidades para o termo πατρός na
passagem foi Lohmeyer. Cf. MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 277.
142

favorece à paternidade sobre à criação.537 Na sua opinião, o hino como um todo


descreve a inter-relação entre dois mundos: o divino e o humano. Cristo sai do
mundo divino, entra no mundo humano e depois volta ao mundo divino. O ponto,
segundo Käsemann, é que nessa volta, quando Cristo é exaltado como Senhor do
cosmos, os dois “mundos” estão unidos debaixo do mesmo Senhor. Através do
evento escatológico descrito pelo hino, ocorreu uma reconciliação do cosmos com
a divindade. Em outras palavras, a instalação de Jesus como Senhor possibilita
que Deus exerça sua paternidade sobre o universo.538 Na verdade, assim como o
Cristo preexistente foi o mediador da criação, o Cristo exaltado é o mediador da
salvação e da nova criação, conduzindo o universo atual aos novos céus e nova
terra, um novo cosmos em comunhão com o Pai.539 Naturalmente nem todos
aceitam e desfrutam dessa paternidade da mesma forma, mas ela foi tornada
possível e está disponível, por assim dizer, por causa da vitória de Jesus que pôs
fim ao conflito cósmico. Portanto, para Fl 2,6-11 o senhorio de Jesus e a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

paternidade de Deus andam juntos.


Outrossim, o substantivo δόξα expressa o que Deus Pai vai receber. No
Novo Testamento o termo carrega o sentido veterotestamentário da ‫כְּ ֣בוֹד יְ ה ֔ ָוה‬,
podendo ser usado para expressar a manifestação visível da divindade ou de seus
atributos. Também no Novo Testamento encontra-se o significado de louvor que é
destinado a Deus. É exatamente isso que εἰς δόξαν quer dizer aqui: que Deus Pai
seja glorificado. O tema aparece alhures em Paulo, tanto quando ele recomenda
que todas as coisas devem ser feitas para a glória de Deus (Rm 15,7; 2Cor 4,15),
como em doxologias como a de Fl 4,20: τῷ δὲ θεῷ καὶ πατρὶ ἡμῶν ἡ δόξα εἰς τοὺς
αἰῶνας τῶν αἰώνων, ἀμήν (cf. Rm 16,27; 2Tm 4,18). Próximo a Fl 2,11 é também
a primeira parte do texto de Ef 1,17 ἵνα ὁ θεὸς τοῦ κυρίου ἡμῶν Ἰησοῦ Χριστοῦ, ὁ
πατὴρ τῆς δόξης.
No caso de Filipenses o termo δόξα possui ainda um caráter sócio-político.
Ele traz em si a conotação de fama, honra e reconhecimento de status. E como já

537
Quanto a isso Käsemann é seguido por MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 277-278.
538
KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos., p. 113-114. Na mesma direção Byrne: “o objetivo
final da sequência inteira [Fl 2,6-11] é recuperar o universo para a soberania e glória de Deus. O
papel e a dignidade de Cristo são meios e estão subordinados a isso”. BYRNE, B., A carta aos
Filipenses, In: NCBSJ, p. 448.
539
SCHNELLE, U., Paulo: Vida e Pensamento, p. 504: “A protologia e a escatologia, a história
universal e a história individual estão em Paulo numa correspondência mútua, porque Deus é o
princípio e a meta de tudo o que existe”.
143

observado, havia em Filipos e por todo o império romano o chamado cursus


honorum, uma cultura de valorização do prestígio e reconhecimento públicos. Sob
esse aspecto, o último segmento do hino mostra que a exaltação de Jesus
funcionou como a manifestação pública da honra divina.540 É como se na
exaltação de Jesus Deus manifestasse seus atributos ao mundo, e fosse por ele
assim reconhecido (embora dentro de uma tensão escatológica). De forma curiosa
esta perspectiva faz um link com o próprio sentido veterotestamentário de δόξα,
que é a manifestação visível do poder e presença divinos.

6.5
Monoteísmo cristológico

Na história da Igreja, os grandes concílios ecumênicos são em grande parte


a história da discussão em torno da divindade de Jesus. E após a consolidação
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

dessa doutrina e da doutrina da trindade no século V, o cristianismo nos seus


diversos segmentos não experimentou mudanças significativas a esse respeito. O
desenvolvimento a partir do século XVIII da crítica histórica e sua aplicação na
exegese do Novo Testamento mudou um pouco esse quadro. Uma das questões
levantadas, conforme já observado neste trabalho, é o suposto dualismo entre
cristianismo judaico e cristianismo gentílico. Como exemplo pode-se citar a
polêmica afirmação de Casey: “A deidade de Jesus é inerentemente não judaica...
a fé que um segundo ser é Deus envolve a saída da comunidade judaica”.541
Contudo, a despeito de posições extremadas como esta, cada vez mais a exegese
do Novo Testamento admite que os primeiros cristãos judeus já criam na
divindade de Jesus, sem que isso significasse uma renúncia ao seu monoteísmo.
Nesse processo, é importante registrar o entendimento atual de que já
havia no judaísmo uma reflexão acerca de agentes divinos, muito próximos de
Deus, mas distintos dele, o que não era considerado um abandono do monoteísmo.
Esse papel podia ser desempenhado por figuras históricas do passado como
Enoque, pelo “anjo de YHWH” (Gn 16,7-14; 18,1-22; Ex 3,2-6) ou mesmo pelo
Messias. Também haviam especulações sobre hipóstases ou personificações da

540
HELLERMAN, J. H, Philippians, p. 124-125.
541
CASEY, P. M., From Jewish Prophet to Gentile God, p. 176.
144

divindade separadas dela, envolvendo a Torá e a Sabedoria Divina,542 além de


tradições judaicas que descreviam a exaltação ao céu e a glorificação de Adão.543
Quer dizer que para a fé judaica “Deus não era considerado um no sentido
matemático de ser unitário”.544 Esses antecedentes ajudam a mostrar que a
reflexão cristã neotestamentária não era desprovida de conexões com o judaísmo.
Mas daí a identificar um personagem contemporâneo morto em uma cruz como
divino havia uma grande distância. De fato, esta é uma das três diferenças básicas
entre a especulação acerca dos agentes divinos e a cristologia do Novo
Testamento, a saber: aqueles nunca eram vistos como pessoas de valor igual a
Deus e com campos autônomos de atuação; nunca recebiam adoração cúltica, e
era inconcebível que alguém morto de forma tão vergonhosa fosse venerado como
agente de Deus, de alguma forma, ligado a ele.545
Como observado antes, a ressurreição foi o grande acontecimento que
impactou a fé dos discípulos de Jesus, pois “a elevação ao senhorio coincide com
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

a ressurreição de Cristo ou é corolário imediato dela”.546 Daí a compreensão de


que aquele que tinha sido crucificado agora está vivo e foi exaltado por Deus
forçou-os a uma necessária reflexão teológica. O primeiro passo importante foi
olhar para os textos do Antigo Testamento, como Sl 110,1.547 Entre outros, a
releitura desse texto a partir da exaltação de Jesus foi muito importante para
atribuir soberania a Jesus, pois permitiu entender o Jesus exaltado ao lado de Deus
Pai exercendo domínio sobre a criação. E sendo a soberania um traço fundamental
do Deus de Israel, essa reflexão permitiu que os cristãos incluíssem Jesus na
identidade do Deus único.548 Aqui, destaca-se também a utilização do título
κύριος, pois a soberania sobre o cosmos assumida por Jesus a partir da sua

542
WHITERINGTON III, B., Cristologia, p. 317; GUTHRIE, D.; MARTIN, R. P. Deus. In: DPC,
p. 380, 394.
543
DUNN, J. D. G., Teologia do apóstolo Paulo, p. 337.
544
GUTHRIE, D.; MARTIN, R. P., Deus. In: DPC, p. 394.
545
SCHNELL, U., Paulo: Vida e Pensamento, p. 608.
546
DUNN, J. D. G., Teologia do Apóstolo Paulo, p. 294.
547
DUNN, J. D. G., Unidade e Diversidade no Novo Testamento, p. 128-129, considera que este
foi um passo decisivo para o cristianismo helenista, entretanto, este passo já tinha se antecipado no
cristianismo de fala aramaica.
548
BAUCKHAM, R. J., The Worship of Jesus in Philippians 2:9-11, p. 130. Ao contrário, DUNN,
J. D. G., Teologia do Apóstolo Paulo, p. 300-303, acredita que Paulo nunca fez essa identificação
de Jesus com Deus. Aliás, para ele o próprio uso de κύριος servia não para identificar Jesus com
Deus, mas para distinguir Jesus de Deus.
145

exaltação é exatamente descrita por essa designação.549 O senhorio de Jesus sobre


a criação vai muito além do que Deus desejou para o homem na criação (Gn 1,26;
Sl 8,6).550 Esse senhorio significa a soberania de Jesus sobre o universo, soberania
que ele recebe das mãos do próprio Deus, o que no hino é expresso pela doação
do nome sobre todo nome, que é, de fato, a função de κύριος. Através desse título
os primeiros cristãos desenvolveram e fortaleceram essa cristologia aplicando a
Jesus textos do Antigo Testamento que falavam de YHWH, da sua soberania e da
esperança que um dia todos os povos se submetessem a ele, que nunca foi a
esperança veterotestamentária para Adão.551 É o caso da já citada alusão a Is 45,23
aqui em Filipenses, pois enquanto Isaías espera o dia em que todos se prostrarão e
confessarão o nome de YHWH, o texto paulino afirma que essa esperança já é
realidade para o nome de Jesus.552
A atribuição a Jesus do título Kyrios tem outra consequência a mais: que todos os
títulos dados a Deus – à exceção do nome de “Pai” – podiam, doravante, ser
conferidos a Jesus. Se, de acordo com a fé primitiva, o nome “que é sobre todo
nome”, isto é, o nome mesmo de Deus: “Senhor”, Adonai, Kyrios, foi dado a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

Jesus desde a sua glorificação, a transferência de atributos divinos tornou-se


ilimitada.553

E nessa reflexão sobre a fé na divindade de Jesus e o monoteísmo, também


é interessante notar ainda relação existente entre κύριος e θεός. A LXX apresenta

549
Textos como o prólogo do quarto evangelho e Cl 1,15-20 acentuam a obra do Cristo
preexistente sobre a criação. Note-se, todavia, que nestes textos o destaque recai tanto sobre a
preexistência do Cristo, quanto sobre seu papel de mediador da criação. Ele é anterior e mediador
da criação de “todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos,
sejam soberanias, quer principados, quer potestades”, (Cl 1.16). O próprio Paulo assume essa visão
no texto já discutido de 1Cor 8,6. Os dois textos expressam a mediação de Jesus sobre a criação
pela preposição διὰ. Mas Colossenses vai além, e acrescenta a preposição εἰς, indicando que, de
alguma forma, a criação foi estabelecida para o Filho de Deus. Pode-se conjecturar que é na
exaltação, quando Cristo assume a soberania sobre o Cosmos, na grande virada escatológica, que
esse εἰς começa a ser cumprido, alcançado sua plenitude no novo céu e nova terra. Essa
perspectiva evidencia que a exaltação de Jesus é muito mais do que a vindicação do justo sofredor.
550
Contrariamente ao que pensa WRIGHT, N. T., The Climax of Covenant, p. 93, apesar de
afirmar um pouco mais à frente (p.95): “A tarefa do homem que iria representar Israel e salvar o
mundo é a tarefa, a qual, na linguagem do Antigo Testamento, está (embora paradoxalmente)
reservada para o próprio Deus”.
551
BAUCKHAM, R., The Worship of Jesus in Philippians 2:9-11, p. 139, observa que é inviável
interpretar Fl 2,6-11 como uma cristologia adâmica e tirar o inteiro significado teológico da alusão
a Is 45,23. Ele considera que Wright fracassou nessa tentativa.
552
Segundo MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. xxvi, mostra que os rabinos Tannaim (que
atuaram entre os anos 10 e 220 depois de Cristo) recorriam a Isaías 44-47 em sua defesa do
monoteísmo contra tendências dentro do judaísmo que o ameaçavam.
553
CULLMANN, O., Cristologia do Novo Testamento, p. 308-309. Grifos dele.
146

os dois termos bem próximos, quase intercambiáveis.554 Entre os gentios, à


exceção dos gregos, o colorido divino de κύριος é indiscutível.555 E esse
pensamento tornou-se a cosmovisão helenista, a ponto de o próprio imperador
romano ganhar traços de divindade ao ser aclamado como senhor. Desse modo,
seja para a percepção judaica, seja para a percepção gentílica, chamar Jesus de
Senhor trazia claras implicações de divindade.556
Assim sendo, dentro da rigorosa fé monoteísta judaica, a fé na divindade
de Jesus produziu um novo tipo de monoteísmo, o chamado “monoteísmo
cristológico”. A ideia é que Jesus não passou a ser algo que Deus deixou de ser.557
A fé dos cristãos no senhorio de Cristo, não alterou sua convicção na soberania de
Deus.558 Prova disso é que os primeiros cristãos não deixaram de se referir a Deus
como “Senhor” quando passaram a designar Jesus com este título. No caso de
Paulo, a sua cristologia não substituiu sua teologia. Ao contrário, a sua cristologia
deve ser entendida dentro da sua teologia. Quando Paulo trata de Jesus, está
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

lidando com o plano de salvação traçado por Deus.559


O corpus paulino oferece muitas indicações do fenômeno do monoteísmo
cristológico. 1Cor 8,6, por exemplo, funciona como uma definição desse
fenômeno. As fórmulas de bênção, sobretudo nas saudações das cartas paulinas,
apontam na mesma direção: “χάρις ὑμῖν καὶ εἰρήνη ἀπὸ θεοῦ πατρὸς ἡμῶν καὶ

554
LONGENECKER, R. N., The Christology of Early Jewish Christianity, p. 136. FOESTER,
W.; QUELL, G. κύριος. In: TDNT, p. 1046, propõem que o exemplo mais antigo do uso de κύριος
para uma divindade é a própria LXX. Isso prova, como eles reconhecem, que a escolha do termo
não foi por intermédio da influência helenista.
555
FOESTER, W.; QUELL, G. κύριος. In: TDNT, p. 1046-1051. Segundo eles, a noção de um
deus soberano, senhor da realidade, era totalmente estranha aos gregos.
556
Contra a opinião de CASEY, P. M., From Jewish Prophet to Gentile God, p. 176.
557
DUNN, J. D. G., A teologia do apóstolo Paulo, p. 302.
558
HURTADO, L. W., The Origin of the Nomina Sacra: a proposal, p. 663, 671-673, defende
que a reverência demonstrada através da abreviação dos nomes divinos e cristológicos evidencia o
padrão “binitariano” de devoção existente no cristianismo primitivo. Não obstante, ele salienta que
esse fenômeno estava ligado aos círculos cristãos “ortodoxos”, de forte tradição e conexão com as
tradições judaicas e o Antigo Testamento.
559
WHITERINGTON III, B., Cristologia. In: DPC, p. 317, 319. Em uma fraseologia mais
polêmica Kreitzer assevera que “Paulo mantém um forte tom de subordinação de Jesus Cristo a
Deus Pai, mesmo nas passagens mais exaltadas”. Aqui ele inclui Fl 2,11. KREITZER, L. J.,
Escatologia. In: DPC, p. 474.
147

κυρίου Ἰησοῦ Χριστοῦ”.560 E nesse elenco o texto inteiro de Fl 2,6-11 merece


destaque. Essa não é a história dos feitos do grande herói Jesus. E exatamente na
segunda parte do hino fica explícito que quem exaltou Jesus foi Deus Pai. E é
Deus Pai quem dá, de forma graciosa, ao Jesus exaltado seu próprio nome. E
finalmente, o clímax do hino, a confissão de Jesus como Senhor, é nada menos do
que para a glória do Pai. Portanto, desde as primeiras reflexões os cristãos
entendiam que a fé em Jesus e a adoração dirigida a ele nada tinha a ver com um
segundo Deus. Ocorreu que eles incluíram Jesus no culto de adoração a Deus, e
por consequência, incluíram Jesus no monoteísmo que eles professavam.561
Não se encontra em Paulo, porém, uma apresentação desenvolvida acerca
da Trindade.562 Paulo prepara um caminho que será trilhado depois pela Igreja.
Também não se deve qualificar Paulo como um “cristomonista”, isto é, como se a
cristologia fosse a única forma da teologia paulina.563 A seção de Fl 2,9-11
expressa isso de forma categórica, pois ao mesmo tempo que dá a Jesus a mais
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

alta exaltação, mostra que isso tudo ocorre por intermédio de Deus Pai. É certo
que o pensamento paulino está distante de perspectivas como o marcionismo, que
separam Jesus do Deus do Antigo Testamento. A cristologia talvez funcione no
pensamento paulino como o epicentro de onde ele articula uma tripla narrativa: de
Deus, de Israel e do mundo.

560
A fórmula é repetida de forma idêntica em Rm 1,7; 1Cor 1,3; Gl 1,3; Ef 1,2; Fl 1,2; 2Ts 1,2;
Fm 3. As cartas a Timóteo acrescentam ἔλεος após χάρις: 1Tm 1,2; 2Tm 1,2. Das 13 cartas
atribuídas a Paulo no Novo Testamento, apenas Colossenses e Tito não possuem a fórmula na
saudação, e em 1Tessalonicesses encontra-se uma adaptação da formulação (1Ts 1,1). As cartas
paulinas também usam uma expressão fixa para as despedidas, porém além da formulação oscilar
mais do que nas saudações, a bênção é relacionada apenas com Jesus Cristo. A frase padrão é: Ἡ
χάρις τοῦ κυρίου ἡμῶν Ἰησοῦ Χριστοῦ μεθ᾽ ὑμῶν. Encontra-se (com pequenas variações) em Rm
16,20; 1Cor 16,23; Fl 4,23; 1Ts 5,28; 2Ts 3,18; Fm 1,2. Quanto à origem, nada impede que Paulo
tenha sido o criador destas fórmulas, mas a maneira recorrente e fixa (no conteúdo e na disposição
dos termos) em que elas aparecem, indicam que elas ecoam elementos litúrgicos. Cf. HURTADO,
L. W., Senhor. In: DPC, p. 116. KRAMER, W., Christ, Lord e Son of God, p. 90-93, 151-156,
considera que as fórmulas de despedidas são pré-paulinas e de origem litúrgica. Já as saudações
seriam de autoria paulina, ainda que Paulo tenha feito uso de elementos litúrgicos anteriores a ele.
A distinção, entretanto, não é boa devido à similaridade entre as fórmulas. A origem litúrgica pode
explicar a ocorrência quase idêntica ao uso paulino que aparece em Ap 22,21: Ἡ χάρις τοῦ κυρίου
Ἰησοῦ μετὰ πάντων.
561
Ao contrário do círculo paulino, parece que as tradições joaninas lidaram com a acusação de
que a fé em Cristo era uma ameaça ao monoteísmo, como testemunham Jo 5,18 e 10,30-33.
562
Não se justifica uma afirmação como a de Basevi, segundo o qual nesse momento o autor “põe
em evidência o aspecto trinitário do texto”. BASEVI, C., Estudio Literario y Teológico del
Himno Cristológico de la Epístola a los Filipenses (Phil 2,6-11), p. 470.
563
Bem observado por WHITERINGTON III, B., Cristologia. In: DPC, p. 318. Nessa linha,
parece que a expressão “teologia cristocêntrica” faz mais jus ao pensamento paulino do que o
contrário.
148

6.5
Conclusão do capítulo

Este capítulo começou mostrando que a confissão de fé κύριος Ἰησοῦς


Χριστὸς responde à pergunta: quem Jesus é hoje? A essa altura fica claro quanta
coisa Jesus é quando é afirmado que ele é Senhor. Afirma-se que Jesus é divino,
sem discutir o ser divino ou o relacionamento entre Jesus e Deus. Em que pese
essa divindade já estivesse expressa no início do hino, aqui, atesta-se que Jesus é
divino porque possui o mesmo nome de Deus, tem a mesma autoridade soberana
sobre o universo que Deus e deve receber a obediência e a adoração que antes
eram devidas somente a Deus. Essa última frase demonstra que o fechamento do
hino que acabou de ser analisado é uma fundamental afirmação da fé cristã e do
culto cristão, um passo importante na direção da posterior doutrina da Trindade.
Afirma-se ainda nesse tópico que nesse hoje Jesus já está exercendo sua
soberania, sendo Senhor sobre os anjos, as potestades espirituais e sobre todos os
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

governantes dessa Terra, inclusive acima do imperador romano. Por tudo isso, o
segmento ὅτι κύριος Ἰησοῦς Χριστὸς εἰς δόξαν θεοῦ πατρός estudado nesse
capítulo é o adequado e merecido gran finale para o hino de Fl 2,6-11.
7
Conclusão

O objetivo formal deste trabalho foi pesquisar a exaltação de Jesus conforme


retratada em Filipenses 2,9-11, que é a segunda parte da perícope de 2,6-11. Esta
passagem é um texto fundamental para a compreensão da cristologia do Novo
Testamento, porque em poucos versículos ela descreve as três principais etapas do
evento Cristo: a preexistência, a existência encarnada que culmina na morte de cruz
e a sua pós-existência exaltada. E justo por essa concentração cristológica, ao longo
da história da teologia Fl 2,6-11 sempre foi um campo muito fértil para a reflexão
dogmática. Na patrística, por exemplo, foi um dos textos da Escritura mais
comentados pelos pais.564 Nesse período a exposição da passagem era estritamente
teológica, girando acima de tudo em torno da divindade e da humanidade de Jesus;
as relações trinitárias entre o Filho e o Pai supostas pelo texto; a adoração ao Cristo
divino junto com Deus Pai, e, do ponto de vista pastoral, a humildade de Cristo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

como exemplo para os cristãos.565 O pano de fundo era a discussão com o arianismo,
e a argumentação se concentra na primeira parte do hino (Fl 2,6-8).
A exegese teológica desenvolvida durante a reforma protestante seguiu os
mesmos trilhos da patrística. O epicentro da exposição gira em torno das duas
naturezas de Cristo, mas houve uma ênfase ainda maior no tema de Cristo como
modelo de humildade.566 No período entre o final do século XIX e o início do século
XX, além dos temas já mencionados, é possível destacar três linhas de interpretação
na exegese teológica da passagem. Primeiro, a “visão dogmática”, desenvolvida por
luteranos, que defende que o versículo 6 faz referência apenas ao ministério terreno
de Jesus, sem qualquer conexão com a preexistência.567 Segundo, a teoria kenótica,
redigida na sua forma clássica por G. Thomasius em 1857, que propõe que no
versículo 7 o esvaziamento do Filho de Deus envolveu a renúncia dos atributos da
onisciência e da onipotência.568 Terceiro, a interpretação ética, que enxerga a
perícope como exortação de Paulo aos cristãos a fim de imitarem a atitude de Cristo,
que não se apegou a sua glória, ao seu status divino, mas abriu mão em favor da

564
EDWARDS, M. J. (ed.), Galatians, Ephesians, Philippians, 1999. p. 236.
565
Ibid., p. 236-256.
566
TOMLIN, G., Comentário Bíblico da Reforma – Filipenses e Colossenses, p. 89-98.
567
MARTIN, R. P., A Hymn a Christ, p. 63-65. No final do século XX, essa interpretação ganhou
uma formulação exegética através da “cristologia adâmica” desenvolvida por J. D. G. Dunn.
568
MARTIN, R. P., A Hymn a Christ, p. 66-68.
150

salvação da humanidade. Da mesma forma, os filipenses deveriam abrir mão de


todo orgulho no intuito de preservar a unidade da igreja.569
O ponto de partida para a pesquisa exegética contemporânea de Fl 2,6-11
pode ser localizado em 1928, com a publicação dos trabalhos de Ernst Lohmeyer.
Quase 90 anos depois a quantidade de literatura especializada em torno destes seis
versículos é gigantesca. Nesse período, os autores mais influentes em relação à
passagem, além de Lohmeyer, foram E. Käsemann, N. T. Wright e R. P. Martin.570
O referencial para a realização desta pesquisa foram especialmente
Käsemann e Martin. Seguindo a sugestão de ambos, procurou-se dar o devido valor
aos versículos 9-11 no conjunto do hino cristológico, fazendo assim uma leitura
progressiva do hino, que culmina na exaltação de Jesus, o verdadeiro clímax da
passagem.
O caminho seguido para o desenvolvimento dessa proposta teve como
primeira estação a discussão em torno da carta aos Filipenses. A carta é endereçada
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

a uma igreja fundada pelo apóstolo Paulo entre os anos 48-50 d.C. Era uma
comunidade com a qual ele tinha um estreito relacionamento pastoral. Com efeito,
o objetivo principal da carta é agradecer o apoio financeiro que o apóstolo recebeu
desta igreja, e apresentar seus planos para estar em contato com a comunidade,
primeiro de enviar missionários até lá, e depois dele mesmo estar pessoalmente com
os filipenses. E aproveitando o ensejo da correspondência, o apóstolo faz algumas
exortações à igreja, sobretudo em relação a adversários que se levantavam dentro e
fora da igreja.
Do ponto de vista sociológico, o principal ponto a considerar é que a igreja
de Filipos estava localizada em uma colônia romana, com boa parte da população
sendo romana e uma fortíssima influência cultural de Roma. Quando Paulo escreve
a carta está preso, possivelmente na capital do império. Esse pano de fundo é, de
fato, uma poderosa influência na redação de Filipenses, de modo que, por toda a
carta, sobretudo em Fl 2,6-11, percebe-se um vocabulário e uma narrativa teológica
que interagem de forma crítica com a cultura, a política e a religião romanas.

569
MARTIN, R. P., A Hymn a Christ, p. 68-74.
570
Martin considera os três primeiros os marcos fundamentais na intepretação de Fl 2,6-11. Cf.
MARTIN, R. P., Carmen Christi Revisited, p. 1. Contudo, o próprio Martin deve ser incluído, pois
a sua obra A Hymn of Christ, lançada em 1967 (com o título Carmen Christi), atualizada em 1983 e
depois em 1997, é de longe a pesquisa mais ampla acerca dos temas e da história da exegese de Fl
2,6-11 no século XX.
151

Quanto à autoria da carta, não há dúvidas de que ela tenha sido escrita pelo
apóstolo Paulo, e embora exista razoável debate se o formato atual seja o resultado
da união de várias cartas menores que Paulo enviou à igreja, a evidência manuscrita
e histórica favorece à tese de que a carta sempre existiu como hoje se encontra no
Novo Testamento.
O objeto material deste trabalho foi o texto de Fl 2,9-11, que é uma parte
literariamente distinguível da passagem de Fl 2,6-11, que por sua vez está inserida
na seção parenética da carta que vai de 1,27 a 2,17, mas é uma unidade textual
distinta, entre outros motivos, justamente porque a parênese é dominada por
imperativos que Paulo dirige à comunidade, enquanto que em 2,6-11 os verbos
principais passam do imperativo para o indicativo e da 2ª pessoa para a 3ª pessoa,
passando-se da exortação para a narração, uma narrativa teológica de eventos
relacionados a Jesus. A plausibilidade de se trabalhar apenas com os versículos 2,9-
11 é verificada sobretudo por duas mudanças: primeiro do sujeito dos verbos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

principais, que em 6-8 é o Filho de Deus e em 9-11 é Deus Pai; depois da temática,
pois na primeira parte há uma sucessão de ações na descendente, que vai da glória
preexistente até à morte de cruz, e na segunda parte há uma ação única na
ascendente, que é a exaltação de Jesus, e a descrição dos desdobramentos desse
evento. Destarte, a pesquisa evidenciou que, entre as diversas propostas de
estruturação do hino, a divisão em duas partes é que possui maior apoio acadêmico.
E considerando que a crítica textual não encontrou motivos razoáveis para
alteração do texto grego apresentado por Nestle-Aland28,571 a tradução proposta e
utilizada para esta dissertação foi a seguinte:
9
E por isso, Deus o exaltou sobremaneira e o agraciou com o nome acima
de todo o nome, 10a fim de que todo o joelho se dobre ao nome de Jesus, no
céu, na Terra e debaixo da Terra, 11e toda língua confesse que 'Jesus Cristo
é Senhor', para glória de Deus Pai.

O segundo momento deste trabalho foi discorrer sobre as principais linhas


da interpretação contemporânea de Fl 2,6-11, fazendo o Status Quaestionis.572 O
primeiro debate sério é acerca do gênero literário e da estrutura da passagem. Desde

571
Novum Testametum Graece.
572
Como várias questões (autoria, gênero, pano de fundo, relação com o contexto da carta, entre
outros) dizem respeito ao texto como um todo, e não só a 2,9-11, optou-se por fazer o Status
Quaestionis tendo em vista Fl 2,6-11, com destaque para os pontos diretamente relacionados à
segunda parte do hino.
152

Lohmeyer a classificação da mesma como hino se tornou predominante entre os


estudiosos. De fato, é quase unânime a opinião de que a passagem foi construída de
maneira poética, mas o consenso termina na hora de definir qual é o gênero literário
usado nessa peça poética. Vários argumentos foram levantados contra a designação
do texto como hino, e apesar de uma série de outras classificações literárias terem
sido apresentadas, a que ainda possui maior adesão e mais argumentos em seu favor
é a classificação de Fl 2,6-11 como um hino, dividido em duas partes: versículos 6-
8 e 9-11.
Também não há concordância quanto ao pano de fundo para interpretação
do hino. São várias propostas: helenismo religioso; o servo sofredor de YHWH; a
sabedoria judaica; Gn 1 e 3 e a comparação com Adão, tradições relacionadas ao
ministério terreno de Jesus, entre outras. Na pesquisa recente, o tópico mais
discutido é a leitura do hino em termos de uma cristologia adâmica, seja na forma
apresentada por J. D. G. Dunn, seja no modelo alternativo de N. T. Wright. Mas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

esse é daqueles problemas exegéticos insolúveis, e talvez o melhor mesmo seja


encarar o texto como uma composição cristã, que interage (intencionalmente ou
não) com várias tradições do mundo religioso contemporâneo, em especial do
contexto judaico-cristão.
Algo que parece caminhar para o consenso é a opinião sobre a autoria da
passagem. Nos últimos 25 anos a maioria dos estudiosos da passagem têm sido
persuadidos pelos argumentos em favor da autoria paulina. Essa é uma mudança
significativa nos estudos neotestamentários, pois Fl 2,6-11 foi e ainda é amplamente
usado como testemunho da cristologia e da liturgia do cristianismo pré-paulino.573
Por certo, a autoria paulina não exclui que o apóstolo herdou (como de fato ele
reconhece, entre outros lugares, em 1Cor 15,3; 11,23) e trabalhou a partir de
conteúdos, fórmulas e ênfases que já existiam no cristianismo quando ele inicia sua
caminhada cristã e antes de ele iniciar sua produção literária. Não obstante, a
alteração na perspectiva do autor faz do texto um testemunho direto da teologia
paulina, e não do cristianismo pré-paulino.

573
Veja-se, por exemplo, J. Gnilka, que, como outros antes dele, entende a passagem como uma
composição pré-paulina, e assim enxerga a teologia paulina exclusivamente nas alterações que o
apóstolo teria feito ao hino original. Forma-se um castelo de hipótese: supõe-se que Fl 2,6-11 existia
antes de ser publicada na carta que Paulo escreveu; supõe-se que essa versão anterior era um pouco
diferente desta utilizada por Paulo; e supõe-se ainda que o apóstolo teria feito certas inserções nessa
versão interior. Simplesmente, nenhuma das três hipóteses pode ser provada. Cf. GNILKA, J., O
Elemento pré-paulino no Querigma Paulino, p. 75-77.
153

Outro ponto fundamental na pesquisa sobre Fl 2,6-11 é a relação entre o


texto e o seu contexto, de modo específico a função que o hino desempenha na
parênese paulina. A discussão passa essencialmente pela exegese do versículo 2,5,
que introduz o hino, fazendo sua ligação com o contexto. A chamada interpretação
ética toma a expressão ἐν Χριστῷ que ocorre neste versículo de forma literal e
entende que aqui Paulo motiva os cristãos a olharem para Jesus Cristo como
exemplo das principais virtudes que eles deveriam apresentar. Por trás de Fl 2,6-11
estaria o tema que aparece alhures em Paulo da imitação a Cristo. A primeira crítica
importante contra esta interpretação bastante popular veio por intermédio de Karl
Barth. Ele observou: “não é por uma referência ao exemplo de Cristo que Paulo
quer fortalecer o argumento de 2,1-4”.574 Seguindo alguns insights de Barth,
Käsemann fez dessa questão o tema principal da sua exegese da passagem,
tornando-se o propositor da chamada interpretação kerygmática de Fl 2,6-11.
A argumentação apresentada por ele começa na exegese do versículo 2,5.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

Além de entender a expressão ἐν ὑμῖν coletivamente (“entre vocês”), e suprir em


2,5b a lacuna verbal com uma forma presente do verbo φρονέω, o pilar principal da
exegese de Käsemann foi dar o devido peso teológico à expressão ἐν Χριστῷ. Esta
importante expressão combina perspectivas soteriológicas, escatológicas,
eclesiológicas e existenciais, cujo sentido básico é o espaço de influência para onde
a pessoa é trazida quando é alcançada pela graça da salvação (sentido que ele tomou
de Barth), com todos os dons relacionados, mas também com os imperativos da
vida cristã. Nesse caso, a exortação paulina é que os cristãos devem viver em
conformidade como essa nova realidade (soteriológica, escatológica, eclesiológica
e existencial) para onde foram levados, que é o espaço do senhorio de Jesus. O
objetivo não é imitar Cristo, mas obedecer a este que é o Senhor de todas coisas,
conforme a confissão feita no final do hino. Essa maneira de olhar o texto não só
afasta a temática da imitação a Jesus, como dá o devido valor aos versículos 2,9-
11. O texto inteiro é visto como a narração do evento escatológico que resultou no
senhorio universal de Jesus. De fato, o clímax do hino é o senhorio de Jesus. Quem
está ἐν Χριστῷ está debaixo do senhorio de Jesus e deve assim obedecer-lhe, como
insinua o contexto imediato de 2,12.

574
BARTH, K., Epistle to the Philippians, p. 59. Grifos dele.
154

A interpretação kerygmática tem como principal expoente contemporâneo


R. P. Martin, e foi certamente um dos pontos que esta dissertação quis ressaltar.
Considerando a popularidade da interpretação ética na exegese anglo-saxã, e dada
a influência desta escola na teologia brasileira e latino-americana, é muito
necessário conhecer uma outra maneira de olhar a passagem, para assim avaliar a
contribuição teológica que ela faz ao entendimento do texto, senão como melhor
exegese, no mínimo para corrigir inconsistências da interpretação ética. Ademais,
um dos pontos que ficam para uma pesquisa posterior, é uma investigação exegética
ainda mais profunda de Fl 2,5, versículo chave para a compreensão a conexão entre
2,1-4 e 2,6-11.
A terceira etapa desta dissertação é, ao mesmo tempo, seu capítulo central.
Nele tratou-se do versículo 2,9, onde precisamente a exaltação de Jesus é
apresentada, e sintaticamente, é o segmento principal do período 2,9-11. No
versículo 9 fica claro que o responsável pela exaltação de Jesus é Deus Pai. Embora
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

no Antigo Oriente o tema da exaltação estivesse presente em várias tradições,


parece que a principal influência por trás de Fl 2,9 é a expectativa judaica da
exaltação de Israel no final dos tempos. No Novo Testamento os diversos grupos
literários reconhecem a exaltação de Jesus com um acontecimento histórico a partir
da sua ressurreição, e o consenso atual nos estudos neotestamentários é que essa
convicção retrocede à experiência de fé dos primeiros cristãos. Isto é, já os
primeiros cristãos da comunidade de Jerusalém de fala aramaica acreditavam que
Jesus Cristo estava exaltado nos céus ao lado do Pai (Sl 110,1) soberano sobre todo
o universo, e exatamente por isso, eles podiam interagir com Jesus Cristo através
de suas orações e das reuniões da comunidade cristã. O consenso atual substituiu a
anterior e influente ideia de que uma cristologia do Jesus exaltado só foi construída
em comunidades gentílicas, quando o cristianismo sofre o impacto de religiões
pagãs.
Na cristologia paulina a exaltação de Cristo é um tema central. Para Paulo,
o Cristo exaltado é o mesmo ser humano Jesus de Nazaré que morreu crucificado
em Jerusalém. Apesar de em Fl 2,9 a exaltação ser afirmada como um ato único, a
partir de outros textos constata-se que Paulo compreendia essa exaltação como
envolvendo a ressurreição, a ascensão e a entronização de Jesus ao lado de Deus
Pai. Por outro lado, o principal aspecto do pensamento paulino acerca da exaltação
de Jesus é escatologia. O apóstolo entendeu que a exaltação fazia parte da grande
155

virada escatológica que aconteceu com o evento Cristo. O futuro chegou e invadiu
o presente, pois ele acredita que a chegada do Messias iniciou o tempo de salvação,
que era a expectativa judaica para o fim dos tempos. Isso é evidenciado pela
referência a Is 45,23, um texto que trazia a esperança de que no final dos tempos
todos os povos da terra se voltariam para YHWH, confessando-o e submetendo-se
a ele. Fl 2,9-11 mostra que essa esperança se cumpriu em Jesus, pois o próprio Deus
o exaltou, e assim o estabeleceu diante do universo como aquele que precisa ser
confessado e reverenciado. Dessa forma, a exaltação de Jesus cumpre a expectativa
escatológica judaica do triunfo de Deus sobre os inimigos de Israel. A exaltação
afirma que YHWH triunfa através de Jesus, um triunfo cuja amplitude vai além dos
povos da terra, mas alcança todos os poderes do cosmos. A dimensão escatológica
também confirma a correção da interpretação kerygmática do hino, pois o propósito
do texto não é apresentar a vindicação do justo sofredor, mas narrar a virada
escatológica ocorrida através da exaltação de Cristo, e mostrar que nesse momento
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

Jesus é muito mais do que o justo vindicado. Ele é o Senhor do universo. Mais do
que exemplo, ele é aquele a quem todos devem obedecer e confessar.
Outra tese fundamental assumida nesta dissertação é a proposta de uma
leitura linear e progressiva do conjunto de Fl 2,6-11. A passagem é uma narrativa
cristológica (o tema é Jesus) que descreve o evento escatológico da encarnação,
crucificação, culminando na exaltação, o clímax do texto, conforme indicado por
R. P. Martin. Neste sentido, faz-se oposição à perspectiva cíclica que entende a
exaltação como simples retorno ao estágio da preexistência, com a única diferença
que agora o Filho de Deus está encarnado. O ponto aqui é o exato entendimento do
composto verbal ὑπερύψωσεν utilizado no versículo 2,9 para descrever a exaltação.
Sem exagerar, nem subestimar a força da preposição ὑπερ, entende-se por certo que
existia uma intenção teológica em sua utilização, que junto com outras
considerações, é afirmar que a exaltação levou Jesus a um status superior ao que o
Filho de Deus tinha na preexistência. Deixando de lado a discussão dogmática sobre
essências e naturezas – que não está presente no hino – percebe-se que a mudança
não foi em termos de divindade, mas de função: a partir da exaltação o Filho de
Deus desempenha uma função que antes era exclusiva de Deus Pai, que é a
soberania sobre o cosmos.
Isso é confirmado porque sem qualquer dúvida o hino mostra que a
exaltação acarretou para Jesus a doação de um novo nome. Deus exaltou Jesus e
156

agraciou-lhe com o nome sobre todo nome. A utilização do verbo χαρίζομαι mostra
que esse novo nome e tudo o que ele representa não foi conquistado a força por um
Jesus revolucionário, nem tampouco foi uma recompensa a um servo que foi
obediente até a morte de cruz. O novo nome, assim como a própria exaltação, foi
dado graciosamente pelo Pai. Jesus, que para os cristãos é instrumento da graça de
Deus, na sua exaltação foi destinatário da mesma graça. Qual nome Deus deu a
Jesus? É difícil oferecer uma resposta absoluta, mas, de fato, a proposta mais
plausível é a que identifica este nome com título Senhor, explicitado no versículo
11. Nesse contexto, nome significa função, missão. Um novo nome significa uma
nova função desempenhada pelo Filho de Deus a partir da exaltação. Quer dizer que
na exaltação Deus Pai dá a Jesus privilégios, responsabilidades e autoridade que o
Filho de Deus não possuía na preexistência. Nesta perspectiva, o hino possui uma
cristologia de três estágios: a preexistência, a existência encarnada e a pós-
existência exaltada, que é caracterizada pelo senhorio de Jesus sobre o cosmos. E
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

não só essa soberania de Cristo é entendida como o cumprimento de esperanças


escatológicas do povo de Israel, como torna-se fundamento para a adoração de Jesus
Cristo junto com Deus Pai no primitivo culto cristão.
E essa progressão que culmina no título κύριος ainda ecoa criticamente a
ideologia romana do cursus honorum, que buscava a divulgação pública de títulos,
honras, cargos e tudo quanto promovesse a fama do indivíduo. Conforme a tese de
Hellerman, Fl 2,6-11 apresenta uma mensagem contrária, um cursus pudorum, pois
o Filho de Deus alcançou o status máximo imaginado por um cidadão romano (o
κύριος, isto é, o status do imperador) seguindo um caminho de renúncia, humildade
e sofrimento. E mais do que um exemplo a ser seguido, o hino proclama a dignidade
e superioridade do κύριος Jesus Cristo, diante de quem todos, inclusive os mais
nobres cidadãos de Roma, deveriam dobrar os joelhos.
A quarta seção desta pesquisa trabalhou a exegese dos versículos 2,10-11,
com exceção do segmento ὅτι κύριος Ἰησοῦς Χριστὸς εἰς δόξαν θεοῦ πατρός,
discutido no último capítulo. Nesta etapa foi muito importante avaliar o uso que o
texto faz de Is 45,23, um texto que critica a idolatria, mostrando que só YHWH é
Deus, e traz uma esperança escatológica, de um dia em que todos os povos da Terra
se voltarão e se curvarão diante de YHWH. O hino cristológico faz duas alterações
significativas: primeiro, partindo do texto da Septuaginta, ele faz uma releitura
cristológica, fazendo com que aquilo que se esperava para YHWH, agora se torna
157

realidade em Cristo. E justamente, a segunda mudança significativa foi no tempo


dos verbos, que na LXX eram futuros, e em Filipenses passam para o passado. Em
outras palavras, Fl 2,10-11 está anunciando que a esperança profética se cumpriu
em Jesus. A exaltação de Jesus marcou o início dessa nova era escatológica, que
ainda não chegou em sua plenitude.
A seguir o texto apresenta duas ações que devem ser feitas ἐν τῷ ὀνόματι
Ἰησοῦ. Entre outras possibilidades, esta expressão foi tomada com causal, ou seja,
as ações de dobrar os joelhos e confessar, indicadas imediatamente depois, devem
ser feitas por conta do nome que agora Jesus tem. Porque Deus o colocou como
Senhor de todo o cosmos todos devem prostrar-se diante dele. O senhorio é a causa
eficiente, e esse Senhor que merece ser reverenciado, o texto deixa claro que é o
mesmo homem judeu que andou pela Galiléia, tinha discípulos e foi crucificado em
Jerusalém: Jesus. Por isso a referência explícita ao seu nome, excluindo explicações
mitológicas.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

A primeira ação que Fl 2,10-11 indica que deve ocorrer diante e por causa
do nome de Jesus é o dobrar de joelhos. Como expressão religiosa era uma prática
conhecida no Antigo Oriente e também entre os judeus. O que chama a atenção, em
especial para a sensibilidade judaica, é que fazer isso a Jesus equivalia a reconhecer
sua divindade junto com o Pai. O texto também traz o alcance dessa consequência
da exaltação de Jesus: nos céus, na Terra e debaixo da Terra. Esta expressão faz que
o senhorio de Jesus tenha um alcance cósmico. Não apenas seres humanos, mas
todos os seres que podem ouvir esta mensagem, são chamados a atende-la, sejam
eles visíveis ou invisíveis, anjos, demônios ou pessoas. Não há nenhuma razão
exegética ou teológica para se excluir a Igreja de todos esses que reverenciam Jesus,
ao contrário do que propõem Lohmeyer e Käsemann. E por sinal, é importante
pontuar que as ações descritas em Fl 2,10-11 são dirigidas a Jesus, e não a Deus
através de Jesus.
Nota-se também nestes versículos uma tensão escatológica, por conta de
uma dupla perspectiva temporal. Seguindo a sugestão de Cullmann, compreende-
se que existe uma perspectiva futura de um dia em que todos os seres estarão
prostrados diante de Jesus Cristo. Neste sentido, o texto funciona como anúncio
profético da realidade da parusia. Por outro lado, diferente do judaísmo, o
cristianismo primitivo valorizou muito mais o presente, pois entendeu que a partir
da exaltação Cristo já assumiu o senhorio sobre todas as coisas. Recorrendo
158

principalmente ao Sl 110,1 os primeiros cristãos entendiam que o reinado de Jesus


já começou, as forças malignas já estão subordinadas a ele, mas somente serão
julgadas e condenadas de forma definitiva na parusia. E enquanto não chega esse
grande dia, a Igreja funciona como epicentro da soberania cósmica de Jesus, pois
ela é o espaço onde o senhorio dele é celebrado e em que as pessoas de maneira
espontânea prostram-se diante dele como κύριος. Nessa linha, a passagem
desempenha uma função pragmática, exortando todos os seus ouvintes e leitores a
colocarem em prática o que será realidade no dia do Senhor. De fato, a tensão
escatológica do já e ainda não, que permeia todo o Novo Testamento, também está
por trás de Fl 2,10-11.
A interpretação do verbo ἐξομολογέω caminha dentro deste mesmo
enquadramento escatológico. Antes de mais nada, deve-se pontuar que o melhor
entendimento deste termo é o que leva em conta a sua ambiguidade. Ele traz uma
conotação predominantemente veterotestamentária, que é de confissão de fé. Então,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

pelo ângulo do já escatológico, os ouvintes e leitores de Fl 2,10-11 são desafiados


não só a reconhecer Jesus Cristo como κύριος do cosmos, mas a confessá-lo como
Senhor pessoal de suas vidas. Na dimensão do ainda-não escatológico, fica a
certeza de que na parusia todos terão que confessar Jesus como Senhor e aqueles
que no éon presente não o fizeram de forma alegre e voluntária, lá o farão por
reconhecimento e constrangimento. Para esse grupo, que inclui anjos, demônios e
pessoas que rejeitaram o senhorio de Cristo, o confessar será algo apenas formal.
Em contrapartida, quando a Igreja em suas reuniões celebra o senhorio de Cristo,
ela antecipa uma realidade escatológica, que simultaneamente está em operação
desde a exaltação de Jesus.
Destarte, se as ações de dobrar os joelhos e confessar são feitas para Jesus,
é difícil fugir da conclusão de que o texto aponta para uma adoração a Jesus. Uma
tentativa de suavizar essa conclusão é a tese, originalmente proposta por W.
Bousset, de que essa cristologia de um Jesus exaltado e adorado pelos cristãos só
se tornou efetiva em comunidades helenísticas. Implicitamente, o que se quer
defender aqui é que o cristianismo supostamente original – e aqui original equivale
a autêntico – é apenas aquele da antiga comunidade primitiva de Jerusalém de fala
aramaica, para quem Jesus é apenas o Filho do Homem que virá na parusia. Essa
proposta foi amplamente refutada, entre outras razões, pela avaliação exegética da
súplica μαράνα θά e pelo entendimento, desenvolvido de forma particular por L.
159

W. Hurtado, de que o fator decisivo para a articulação da cristologia primitiva foi a


inclusão de Jesus Cristo no culto monoteísta destinado a Deus Pai. Nunca houve
uma cristologia sem contornos litúrgicos. Foi a adoração a Jesus, ao lado de Deus,
em um culto “Binitariano”, o propulsor da cristologia neotestamentária. Em
contrapartida, nunca houve um cristianismo no qual Jesus não fosse reconhecido no
culto como Senhor exaltado, e com quem os cristãos podiam interagir. Isso faz
pensar nas implicações para o culto cristão que a desvalorização ou mesmo ou
desconhecimento da cristologia da exaltação pode acarretar. O tema desafia à
reflexão teológica e pastoral, e de antemão pode-se destacar o afastamento da
perspectiva litúrgica neotestamentária, promovendo um culto que olha para o Cristo
que já veio ou para o Cristo que virá, mas ignora o Cristo que está presente e ativo,
porque é Senhor de todas as coisas e tem na Igreja o epicentro dessa soberania.
A quinta e última etapa desse estudo da exaltação de Jesus em Fl 2,9-11 é a
exegese da frase “Jesus Cristo é Senhor para glória de Deus Pai”. Na construção
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

narrativa do hino o clímax ficou para a confissão de fé “Jesus Cristo é Senhor”. Esta
é uma confissão que aparece alhures no Novo Testamento, e provavelmente foi a
primeira fórmula confessional cristã, retrocedendo ao cristianismo primitivo. Ela
responde duas perguntas simultâneas: Quem é Jesus hoje? Quem é Senhor hoje? A
resposta é explícita: Hoje, neste tempo presente da história da salvação, Jesus é
Senhor. E hoje, no presente da história humana, em que sempre muitos se
apresentam ou são identificados como senhores, só há um Senhor: Jesus Cristo
exaltado. A forma básica da expressão é “Jesus é Senhor”, de modo que aqui em Fl
2,11 o uso de Χριστὸς teria a intenção de mostrar o substrato judaico do evangelho
anunciado. O Jesus que é Senhor é, antes de mais nada, o Messias de Israel.
Também chama a atenção que o conteúdo da principal afirmação de fé, pelo
menos nos círculos paulinos, privilegie o título κύριος, em lugar de outras
designações cristológicas. São várias as razões para isso. Primeiro, o título ecoa a
noção de discipulado, fazendo par com δοῦλος, reflexão teológica que perpassa os
quatro evangelistas e também está presente em Paulo, que considera o último termo
adequado para conceituar o cristão. Segundo, o título κύριος conseguia resumir em
uma única palavra tudo o que os cristãos acreditavam acerca de Jesus a partir do
evento fundamental da ressurreição e consequente exaltação. Neste ponto é de
extrema importância perceber o pano de fundo judaico deste título. A questão é que
“Senhor” era a expressão usada pelos judeus para se referirem a YHWH,
160

independente da língua que falassem: hebraico, aramaico ou grego. E quando o


Antigo Testamento foi traduzido para o grego é justamente κύριος a palavra
escolhida para substituir o tetragrama. Significa dizer que para qualquer judeu do
1º século chamar Jesus de Senhor era torná-lo equivalente ao Deus de Israel. E essa
era a intenção dos cristãos. Reconhecer que, pela exaltação, a soberania sobre a
criação e a salvação que antes eram exclusivas de Deus Pai, agora são
compartilhadas com Jesus Cristo. O apóstolo Paulo vai tirar uma série de
implicações desta convicção no senhorio de Jesus Cristo: na parênese, chamando
os cristãos à obediência diante do seu Senhor; na escatologia, mostrando que o
senhorio de Jesus marca o início desse novo éon que irrompeu, mas que chegará na
plenitude na vinda desse mesmo Senhor trazendo vitória e julgamento; e na liturgia,
de modo que uma séria de expressões cúlticas nas cartas paulinas são marcadas não
só pelo κύριος, como também pela compreensão da exaltação de Jesus.
Agora, este título não se tornou o resumo da fé cristã apenas por conta do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

seu pano de fundo judaico. Certamente era importante para proclamação cristã,
sobretudo feita por Paulo, que para ouvidos não judaicos κύριος também era
sinônimo de divindade e poder. A diferença é que, ao contrário dos judeus, os
demais povos da época acreditavam em vários “senhores” que controlavam o
universo e suas vidas, e exigiam submissão e adoração. Para esses a mensagem
cristã é uma contra mensagem: só existe um κύριος, e ele é Senhor sobre todo e
qualquer um que se possa chamar de κύριος. No ambiente romano da cidade de
Filipos esse anúncio era quase subversivo, pois não somente negam-se as
pretensões do imperador, quanto se diz que o cristão apenas deve reconhecer,
obedecer e adorar como Senhor Jesus Cristo. Em contrapartida, era uma teologia de
esperança para aqueles que estavam sendo perseguidos e discriminados por
autoridades romanas.
No entanto, a centralidade da exaltação de Jesus na teologia cristã paulina e
neotestamentária não equivale a um eclipse de Deus Pai. A seção de Fl 2,9-11
começa afirmando que foi Deus que exaltou Jesus e deu a ele a função de Senhor
sobre o cosmos. Ou seja, tudo o que Jesus é como κύριος foi dado por Deus. O
versículo 11 fecha isso mostrando que a exaltação e todo o exercício da soberania
de Jesus, incluindo o prostrar-se diante dele e confessá-lo, são para glória de Deus
Pai. Deus é identificado aqui como “Pai”, e o que deve ser entendido aqui é uma
paternidade sobre toda a criação, que se alienou de Deus por conta do pecado e da
161

rebelião das forças espirituais, mas que é reconciliada com ele exatamente pelos
efeitos soteriológicos da obra de Jesus. Esse Deus Pai que exaltou Jesus e reconcilia
mundo consigo mesmo merece e deseja ser glorificado e honrado.
Esta discussão levanta o questionamento acerca da relação entre Jesus Cristo
e Deus Pai no cristianismo primitivo. É certo que a reflexão daquele período não
enxergava essa relação nos termos da posterior doutrina da Trindade. Tampouco
desenvolveu-se um cristomonismo, no qual Jesus é enfatizado às custas de Deus.
Ainda menos razoável é equiparar a cristologia do Novo Testamento às
especulações judaicas de agentes divinos, que agem em nome de Deus e às vezes
até representam Deus. O cristianismo primitivo deu um passo teologicamente
revolucionário quando deu a Jesus dois aspectos que eram exclusividade de
YHWH: a soberania (sobre a criação e sobre a salvação) e adoração. E o mais
interessante é que isso foi feito sem abrir mão da fé e culto monoteísta. Esse é o
fenômeno denominado monoteísmo cristológico: os cristãos passaram a crer na
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

divindade de Jesus e na sua soberania, sem achar que YHWH tivesse deixado de
ser divino e soberano. Eles passaram a adorá-lo como Senhor no mesmo culto em
que dirigiam orações e louvores a Deus. Fl 2,9-11 evidencia esse monoteísmo
cristológico, e assim, constitui-se texto essencial para a compreensão da fé cristã
primitiva na divindade de Jesus, como para a compreensão de como essa fé foi
articulada em termos completamente distintos da teologia eclesiástica dos séculos
posteriores.
8
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUNE, D. E. Imperadores Romanos. In: HAWTHORNE, Gerald F.; MARTIN,


Ralph P.; REID, Daniel. G. (orgs.). Dicionário de Paulo e suas cartas. 2ª edição.
São Paulo: Vida Nova/Paulus/Loyola, 2008. p. 672-674.

BALZ, H.; SCHNEIDER, G. διό. In: BALZ, H.; SCHNEIDER, G. (orgs.).


Diccionario Exegético del Nuevo Testamento. Salamanca: Sigueme, 1998. p.
2190, v. I.

______ κάμπτω. In: BALZ, H.; SCHNEIDER, G. (orgs.). Diccionario Exegético


del Nuevo Testamento. Salamanca: Sigueme, 1998. p. 2190, v. I.

______ καταχθόνιος. In: BALZ, H.; SCHNEIDER, G. (orgs.). Diccionario


Exegético del Nuevo Testamento. Salamanca: Sigueme, 1998. p. 2259, v. I.

BARBAGLIO, G. As cartas de Paulo II. São Paulo: Loyola, 1991.

BARCLAY, William. Filipenses, Colosenses, I y II Tesalonicenses. Buenos


Aires: La Aurora, 1973.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

BARTH, G. A carta aos Filipenses. São Leopoldo: Sinodal, 1983.

BARTH, K. Epistle to the Philippians – 40th Anniversary Edition. Louisville:


Westminster John Knox, 2002.

BASEVI, C. Estudio Literario y Teológico del Himno Cristológico de la Epístola


a los Filipenses. Scripta Theologica, Navarra, v. 30, nº 2, p. 439-472, 1998.

BAUCKHAM, R. J. The Worsphip of Jesus in Philippians 2:9-11. In: MARTIN,


R. P., DODD, B. J. Where Christology Began. Louisville: Westminster John
Knox, 1998. p. 128-139.

BAUER, Walter. A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other


Early Christian Literature. 2ª edição. Chicago/Londres: The University of
Chicago, 1979.

BECKER, J. Apóstolo Paulo: Vida, Obra e Teologia. Santo André: Academia


Cristã, 2007.

BERGER, K. As Formas Literárias do Novo Testamento, São Paulo: Loyola,


1998.

BIETENHARD, H. ὄνομα. In: COENEN, L., BROWN, C. (orgs.), Dicionário


Internacional de Teologia do Novo Testamento, 2ª ed. São Paulo: Vida Nova,
1999. p. 1394-1401, v. II.
163

BIETENHARD, H. κύριος. In: COENEN, L., BROWN, C. (orgs.), Dicionário


Internacional de Teologia do Novo Testamento, 2ª ed. São Paulo: Vida Nova,
1999. p. 2316 – 2325, v. II.

______ ὄνομα. In: KITTEL, G. (org.). Theological Dictionary of the New


Testament. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1967. p. 242-283, v. IV.

BLACK, D. A. The Autorship of Philippians 2:6-11: Some Literary-Critical


Observations. Criswell Theological Review, Dallas, nº 2.2, p. 269-289, 1988.

BOCKMUEHL, Markus. The Epistle to the Philippians. Grand Rapids: Baker


Academic, 2013.

BROWN, C. Ernst Lohmeyer’s Kyrios Jesus. In: MARTIN, R. P., DODD, B. J.


(orgs.). Where Christology began. Louisville: Westminster John Knox, 1998. p.
6-42.

BROWN, R. E. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2015.


______ Introduccion a la cristologia del Nuevo Testamento. Sígueme:
Salamanca, 2001.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

BROWN, R. E.; PERKINS, P; SALDARINI, A. J. Apócrifos, Manuscritos do


Mar Morto e Outros Tipos de Literatura Judaica. In: BROWN, R. E.;
FITZMYER, J. A.; MURPHY, R.E. (orgs.). Novo Comentário Bíblico São
Jerônimo – Novo Testamento e Artigos Sistemáticos. Santo André: Academia
Cristã; São Paulo: Paulus, 2015.

BRUCE, F. F. Filipenses. Deerfield, Florida: Vida, 1992.

______ Paulo: apóstolo da graça. São Paulo: Shedd, 2003.

BULTMANN, R. Crer e compreender. São Leopoldo: Sinodal, 1987.

______ Teologia do Novo Testamento. Santo André: Academia Fé Cristã, 2008.

BYRNE, B. A carta aos Filipenses. In: BROWN, R. E.; FITZMYER, J. A.;


MURPHY, R.E. (orgs.), Novo Comentário Bíblico São Jerônimo – Novo
Testamento e Artigos Sistemáticos. São André: Academia Cristã; São Paulo:
Paulus, 2015.

CARPENTER, E. ‫עבד‬. In: VAN GEMEREN, W. A. (org.). Novo Dicionário


Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento. São Paulo: Cultura
Cristã, 2011. p. 306-311, v. III.

CASEY, P. M. From Jewish Prophet to Gentile God. Cambridge: James


Clarke; Louisville: Westminster John Knox, 1991.
164

CASEY, P. M. Lord Jesus Christ: A response to professor Hurtado. Journal for


the study of the New Testament, London/New York, nº 27.1, p. 83 – 96, 2004.

CERFAUX, L. Cristo na Teologia de Paulo. 2ª edição. São Paulo: Teológica,


2003.

COLLINS, A. Y. Psalms, Philippians 2:6-11, and The Origins of Christology.


Biblical Interpretation, Leiden, v. 11, nº 3-4; p. 361-372, 2003.

CULLMANN, O. A oração no Novo Testamento, Santo André: Academia


Cristã, 2009.

______ Cristo e o Tempo, São Paulo: Custom, 2003.

______ Cristologia do Novo Testamento, São Paulo: Líber, 2001.

DODD, B. J. The Story of Christ and the Imitation of Paul. In: MARTIN, R. P.,
DODD, B. J. (orgs.). Where Christology began. Louisville: Westminster John
Knox, 1998. p. 154-161.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

DODD, C. H. Segundo as Escrituras. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 1979.

DUNN, J. D. G. A teologia do apóstolo Paulo. São Paulo: Paulus, 2003.

______ Christology in the Making. 2nd ed. London: SCM, 1992.

______ The Christ and the Spirit. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1998. v. I,
Christology.

______ Unidade e Diversidade no Novo Testamento. Santo André: Academia


Cristã, 2009.

______ πνεῦμα. In: COENEN, L., BROWN, C. (orgs.), Dicionário Internacional


de Teologia do Novo Testamento. 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 1999. p. 718-
740, v. I.

EDO, Pablo M. Cronologías Paulinas: un estado de la questión. Scripta


Theológica, Navarra, v. 41, nº1, p. 177-198, 2009.

EDWARDS, M. J. (ed.). Galatians, Ephesians, Philippians. Ancient Christian


commentary on Scripture. New Testament 8. Downers Grove, 1999.

EGGER, W. Metodologia do Novo Testamento. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2005.

ESSER, H. H. χάρις. In: COENEN, L., BROWN, C. (orgs.), Dicionário


Internacional de Teologia do Novo Testamento, 2ª ed. São Paulo: Vida Nova,
1999. p. 907-915, v. I.
165

FEE, G. D. Comentario de la Epístola a los Filipenses. Barcelona: Clie, 2006.

______ Pauline Christology. Peabody: Hendrikson, 2007.

______ Philippians 2:5-11: Hymn or Exalted Pauline Prose? Bulletin for Biblical
Research, Princeton, nº 2, p. 29-46, 1992.

FEWSTER, G. P. The Philippians ‘Christ Hymn’: Trends in Critical Scholarschip.


Currents in Biblical Research, v. 13, nº 2, p. 191-206, 2015.

FITZMYER, J. A. A Bíblia na Igreja. São Paulo: Loyola, 1997.

______ To Advance The Gospel, 2ª ed. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1998.

______ The Aramaic Background of Philippians 2:6-11. The Catholic Biblical


Quarterly, Washington, nº 50, p. 470-483, 1988.

______ κύριος. In: BALZ, H.; SCHNEIDER, G. (orgs.). Diccionario Exegético


del Nuevo Testamento. Salamanca: Sigueme, 1998. p. 2437-2448, v. I.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

FOESTER, W.; QUELL, G. κύριος. In: KITTEL, G. (org.). Theological


Dictionary of the New Testament. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1967. p.
1039-1098, v. III.

FOWL, Stephen E. Philippians. Grand Rapids: William B. Eerdmans, 2005.

FULLER, R. H. The foundations of New Testament Christology, New York:


Charles Scribner’s Sons, 1956.

GOETZMANN, J. φρόνησις. In: COENEN, L., BROWN, C. (orgs.), Dicionário


Internacional de Teologia do Novo Testamento. 2ª ed. São Paulo: Vida Nova,
1999. p. 1270-1275, v. I.

GNILKA, Joachim. Epístola aos Filipenses. Petrópolis: Vozes, 1978.

______ O Elemento pré-paulino no Querigma Paulino. In: SHREINER, J.;


DAUTZENBERG, G. (Orgs.). Forma e Exigências do Novo Testamento. 2ª ed.
São Paulo: Teológica, 2004.

______ Teologia del Nuevo Testamento. Madrid: Trota, 1998.

GOPPELT, L. Teologia do Novo Testamento, 3ª ed. São Paulo: Teológica, 2003.

GREEN, J. B. Larry W. Hurtado, One God, One lord: early christian devotion and
ancient jewish monotheism. Pneuma, v. 12, nº 9, p. 58-59, 1990. Disponível em
<web.ebscohost.com/ehost/pdf>. Acesso em 5 de outubro de 2009.
166

GUTHRIE, D.; MARTIN, R. P. Deus. In: HAWTHORNE, Gerald F.; MARTIN,


Ralph P.; REID, Daniel. G. (orgs.). Dicionário de Paulo e suas cartas. 2ª edição.
São Paulo: Vida Nova/Paulus/Loyola, 2008. p. 379-397.

GUTHRIE, D. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2011.

HAHN, E.; de BOOR, W. Carta aos Efésios, Filipenses e Colossenses. Curitiba:


Esperança, 2006.

HARTMAN, L. ὄνομα. In: BALZ, H.; SCHNEIDER, G. (orgs.). Diccionario


Exegético del Nuevo Testamento. Salamanca: Sigueme, 1998. p. 557-568, v. II.

HAWTHORNE, Gerald F. Philippians. Dallas: Word, 1983.

______ Filipenses, carta de. In: HAWTHORNE, Gerald F.; MARTIN, Ralph P.;
REID, Daniel. G. (orgs.). Dicionário de Paulo e suas cartas. 2ª edição. São
Paulo: Vida Nova/Paulus/Loyola, 2008. p. 556-564.

HELLERMAN, J. H. Philippians. Nashville: Broadman & Holman, 2015.


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

______ Vindicating God’s Servants in Philippi and in Philippians. Bulletin for


Biblical Research, Princeton, v. 20, nº 1, p. 85-102, 2010.

HENDRIKSEN, William. Efésios e Filipenses. 3ª. São Paulo: Cultura Cristã,


2013.
HENGEL, M. Between Jesus and Paul, Eugene: Wipf and Stock, 2003.

HURTADO, L. W. As Origens da Adoração Cristã. São Paulo: Vida Nova,


2011.

______ Devotion to Jesus and historical investigation: a grateful, clarifying and


critical response to professor Casey. Journal for the study of the New
Testament, London/New York: v. 27, nº 1, p. 97-104, 2004.

______ Senhor Jesus Cristo. Santo André: Academia Cristã/Paulus, 2012.

______ Senhor. In: HAWTHORNE, Gerald F.; MARTIN, Ralph P.; REID,
Daniel. G. (orgs.). Dicionário de Paulo e suas cartas. 2ª edição. São Paulo: Vida
Nova/Paulus/Loyola, 2008. p. 1147-1158.

______ The Origin of the Nomina Sacra: a proposal. Journal of Biblical


Literature, Atlanta, v. 117, nº 4, p. 655-673, 1998.

JEREMIAS, J. Estudos no Novo Testamento. Santo André: Academia Cristã,


2010.

JOÜON, P.; MURAOKA, T. A Grammar of Biblical Hebrew. Editrice


Pontificio Instituto Biblico: Roma, 2006.
167

KAISER, W. C. ‫ ָﬠבַ ד‬. In: HARRIS, L. R.; ARCHER JR, G. L.; WALTKE, B. K.
(orgs.). Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São
Paulo: Vida Nova, 2012. p. 1065-1068.

KÄSEMANN, E. Ensayos Exegeticos. Salamanca: Sigueme, 1978.

KELLY, J. N. D. Primitivos credos cristianos. Salamanca: Secretariado


Trinitario, 1980.

KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 2005.


v. I.

KÜMMELL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. 2ª edição. São


Paulo: Paulus, 1982.

KRAMER, W. Christ, Lord and Son of God, Naperville: SCM, 1966.

KREITZER, L. Escatologia. In: HAWTHORNE, Gerald F.; MARTIN, Ralph P.;


REID, Daniel. G. (orgs.). Dicionário de Paulo e suas cartas. 2ª edição. São
Paulo: Vida Nova/Paulus/Loyola, 2008. p. 458-479.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

______ Reino de Deus/Cristo. In: HAWTHORNE, Gerald F.; MARTIN, Ralph


P.; REID, Daniel. G. (orgs.). Dicionário de Paulo e suas cartas. 2ª edição. São
Paulo: Vida Nova/Paulus/Loyola, 2008. p. 1053-1056.

______ “When He at Last Is First”: Philippians 2:9-11. In: MARTIN, R. P.,


DODD, B. J. (orgs.). Where Christology began. Louisville: Westminster John
Knox, 1998. p. 111-127.

KRENTZ, E. Paulo, os jogos e a milícia. In: SAMPLEY, J. Paul (org.). Paulo no


mundo greco-romano. São Paulo: Paulus, 2009.

LIMA, M. L. C. Exegese Bíblica. São Paulo: Paulinas, 2014.

LONGENECKER, R. The Christology of Early Jewish Christianity.


Naperville: SCM, 1970.

LÜDEMANN, G. ὑψόω. In: BALZ, H.; SCHNEIDER, G. (orgs.). Diccionario


Exegético del Nuevo Testamento. Salamanca: Sigueme, 1998. p. 1910-1912, v.
II.

MAILE, J. F. Exaltação e Entronização. In: HAWTHORNE, Gerald F.;


MARTIN, Ralph P.; REID, Daniel. G. (orgs.). Dicionário de Paulo e suas
cartas. 2ª edição. São Paulo: Vida Nova/Paulus/Loyola, 2008. p. 521-526.

MARSHALL, I. H. Atos. São Paulo: Vida Nova, 2008.


168

MARSHALL, I. H. The Origins of New Testament Christology. Downers


Grove: Intervarsity, 1990.

MARTIN, M. W.; NASH, B. A. Philippians 2:6-11 as Subversive Hymnos: A


Study in the Light of Ancient Rhetorical Theory. The Journal of Theological
Studies, Oxford, v. 66, nº 1, 2015.

MARTIN, R. P. A Hymn of Christ. Downers Grove: InterVarsity, 1997.

______ Carmen Christi Revisited. In: MARTIN, R. P., DODD, B. J. (orgs.).


Where Christology began. Louisville: Westminster John Knox, 1998. p. 1-5.

______ Filipenses. São Paulo: Vida Nova, 2011.

MARXEN, W. Christology. In: The Interpreter’s Dictionary of the Bible.


Nashville: Abingdon, 1991. Suplplementary Volume. p. 146-156.

MAZZAROLO, Isidoro. Carta de Paulo aos Filipenses. 2ª edição. Rio de


Janeiro: Mazzarolo editor, 2011.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

MacARTHUR Jr., J. F. O Evangelho Segundo Jesus. 2ª ed. São José dos


Campos: Fiel, 2008.

MEEKS, Wayne. Os primeiros cristãos urbanos. Santo André: Academia


Cristã/Paulus, 2015.

METZGER, Bruce M. Un Comentario Textual Al Nuevo Testamento Griego.


Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 2006.

MICHEL, O. ὁμολογέω. In: KITTEL, G.; FRIEDRICH, G. (orgs.). Theological


Dictionary of the New Testament. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1967. p.
199-220, v. V.

MOESSNER, D. P. Turning Status ‘Upside Down’ in Philippi Christ Jesus’


‘Emptying Himself’ as Forfeiting Any Acknowledgment of His ‘Equality with
God’ (Phil 2:6-11). Horizons in Biblical Theology, Leiden, v. 31, p. 123-143,
2009.

MORGAN, R. Incarnation, Myth and Theology. In: MARTIN, R. P., DODD, B.


J. Where Christology began. Louisville: Westminster John Knox, 1998. p. 43-
73.

MOULE, C. F. D. The Birth of the New Testament. 3rd. Adam & Charles Black:
London, 1981.
169

MÜLLER, D. ὑψόω. In: COENEN, L., BROWN, C. (orgs.), Dicionário


Internacional de Teologia do Novo Testamento, 2ª ed. São Paulo: Vida Nova,
1999. p. 83-87, v. I.

MURPHY-O’CONNOR, J. Paulo – Biografia crítica. São Paulo: Loyola, 2000.

NESTLE-ALAND. Novum Testamentum Graece. 28th revised edition. Stuttgart:


Deutsche Bibelgesellchaft, 2012.

O’BRIEN, P. T. The Epistle to the Philippians. Grand Rapids: Wm. B.


Eerdmans, 1991.

OMANSON, Roger. Variantes textuais do Novo Testamento. Barueri:


Sociedade Bíblica do Brasil, 2010.

OROFINO, Francisco. Filipos – “Colônia Agustus Iulia Victrix Philippensium”.


Estudos Bíblicos, Petrópolis, v. 102, nº 2, p. 14-17, 2009.

PATSCH, H. ὑπὲρ. In: BALZ, H.; SCHNEIDER, G. (orgs.). Diccionario


Exegético del Nuevo Testamento. Salamanca: Sigueme, 1998. p. 1870-1874, v.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

II.

PAULSEN, H. φρονέω. In: BALZ, H.; SCHNEIDER, G. (orgs.). Diccionario


Exegético del Nuevo Testamento. Salamanca: Sigueme, 1998. p. 1995-1998, v.
II.

POLICARPO DE ESMIRNA. Segunda Carta aos Filipenses. In: Padres


Apostólicos. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 1995.

REICKE, BO. História do Tempo do Novo Testamento. Santo André:


Academia Cristã/Paulus, 2015.

REID, D. G. Triunfo. In: HAWTHORNE, Gerald F.; MARTIN, Ralph P.; REID,
Daniel. G. (orgs.). Dicionário de Paulo e suas cartas. 2ª edição. São Paulo: Vida
Nova/Paulus/Loyola, 2008. p.1207-1216.

RIDDERBOS, H. Teologia do Apóstolo Paulo. São Paulo: Cultura Cristã, 2004.

RÖSEL, M. The Reading and Translation of the Divine Name in the Masoretic
Tradition and the Greek Pentateuch. Journal for the Study of Old Testament,
Los Angeles/London/Nova Deli/Singapura, v. 31, nº 4, p. 411-428, 2007.

ROWE, C. Acts 2.36 and the continuity of Lukan Christology. New Testament
Studies. Cambridge, nº 53, p. 37-56, 2007.

SÁNCHEZ BOSCH, J., Maestro de los pueblos, Navarra: Verbo Divino, 2007.
170

SCHLAEPFER, Carlos Frederico. Procurando alguns elementos sobre a redação


da carta aos Filipenses. Estudos Bíblicos, Petrópolis, v. 102, nº 2, p. 9-13, 2009.

SCHNACKENBURG, R. Cristologia do Novo Testamento. Petrópolis: Vozes,


1973. (Mysterium Salutis, III/2).

SCHNELLE, U. Introdução à Exegese do Novo Testamento. São Paulo:


Loyola, 2004.

______ Paulo: Vida e Pensamento. Santo André: Academia Cristã/Paulus, 2014.

SCHWEIZER, E. Lordship and Discipleship. Naperville: SCM, 1960.

SEIFRID, M. A. Em Cristo. In: HAWTHORNE, Gerald F.; MARTIN, Ralph P.;


REID, Daniel. G. (orgs.). Dicionário de Paulo e suas cartas. 2ª edição. São
Paulo: Vida Nova/Paulus/Loyola, 2008. p. 452-457.

SILVA, C. M. D. Metodologia de Exegese Bíblica. 3ª ed. São Paulo: Paulinas,


2015.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

SILVA, Moisés. Philippians. 2ª edição. Grand Rapids: Baker Academic, 2005.

SIMIAN-YOFRE, H. (Org.). Metodologia do Antigo Testamento. São Paulo:


Loyola, 2000.

STAUFFER, E. New Testament. London: SCM, 1955.

TOMLIN, G. (org.). Comentário Bíblico da Reforma – Filipenses e


Colossenses. São Paulo: Cultura Cristã, 2015.

VERMES, G. As várias faces de Jesus. Rio de Janeiro: Record, 2006.

VIELHAUER, P. A História da Literatura Cristã Primitiva. Santo André:


Academia Cristã, 2005.

VOLF-GUNDRY, J. M. Universalismo. In: HAWTHORNE, Gerald F.;


MARTIN, Ralph P.; REID, Daniel. G. (orgs.). Dicionário de Paulo e suas
cartas. 2ª edição. São Paulo: Vida Nova/Paulus/Loyola, 2008. p. 1217-1223.

VOUGA, François. A epístola aos Filipenses. In: MARGUERAT, Daniel (org.).


Introdução ao Novo Testamento: história, escritura e teologia. 3ª edição. São
Paulo: Loyola, 2015.

VOUGA, François. A literatura paulina. In: MARGUERAT, Daniel (org.).


Introdução ao Novo Testamento: história, escritura e teologia. 3ª edição. São
Paulo: Loyola, 2015.
171

WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento. 7ª ed. São Leopoldo: Sinodal,


2012.

WITHERINGTON III, B. Cristo. In: HAWTHORNE, Gerald F.; MARTIN, Ralph


P.; REID, Daniel. G. (orgs.). Dicionário de Paulo e suas cartas. 2ª edição. São
Paulo: Vida Nova/Paulus/Loyola, 2008. p. 307-313.

______ Cristologia. In: HAWTHORNE, Gerald F.; MARTIN, Ralph P.; REID,
Daniel. G. (orgs.). Dicionário de Paulo e suas cartas. 2ª edição. São Paulo: Vida
Nova/Paulus/Loyola, 2008. p. 313-332.

______ Lord. In: MARTIN, R. P.; DAVIDS, P. H. Dictionary of the Later New
Testament its developments. Downers Grove: Intervarsity, 1997. p. 667-678.

WORTHAM, R. A. Christology as Community Identity in the Philppians Hymn:


the Philippians Hymn as Social Drama (Philippians 2:5-11). Perspectives in
Religious Studies, Waco, v. 23, nº 2, p. 269-288, 1996.

WRIGHT, N. T. Paulo: Novas Perspectivas. São Paulo: Loyola, 2009.

______ The Climax of the Covenant. London/New York: T & T Clark, 2004.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA

______ Un Dios, un Señor, un pueblo. p. 1-13, 2006. Disponível em


<http://ntwrightpage.com/1990/05/10/un-dios-un-senor-un-pueblo/>. Acesso em
21 de setembro de 2009

Você também pode gostar