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Dissertação de Mestrado
Rio de Janeiro
Novembro de 2016
Jackson Willian Marques da Fonseca
Ficha Catalográfica
CDD: 200
AGRADECIMENTOS
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA
À minha mãe Aurelidia Marques da Fonseca e minha avó Lídia Vasconcelos, que
me incentivaram e me deram condições de estudar a Escritura como Palavra de
Deus.
À minha esposa Liz Mary da Silva Marques, companheira e amor de toda a minha
vida, sem a qual vitórias não seriam alcançadas, nem seriam celebradas.
Às minhas filhas Taissa da Silva Marques e Sarah da Silva Marques. A existência
de vocês traz alegria ao meu coração e um sorriso aos lábios.
À Igreja Presbiteriana do Brasil que me dá o privilégio de exercer o ministério de
ensinar a Palavra de Deus como pastor de ovelhas e professor de futuros pastores.
À Igreja Presbiteriana das Águas, comunidade onde o meu coração cristão tem sido
renovado e que me possibilita dedicar o tempo necessário ao estudo.
Ao meu orientador Professor Isidoro Mazzarolo pelo acompanhamento atencioso e
incentivo constantes, que me impulsionaram à realização deste trabalho.
A todo o Departamento de Pós-Graduação em Teologia da PUC-Rio, por toda a
estrutura acadêmica disponibilizada, e especialmente os seus professores, que com
excelência ofereceram preciosa contribuição a minha formação.
Ao Programa de bolsas de fomento CAPES/PROSUP, do ministério de educação,
que ofereceu as condições financeiras adequadas para o cumprimento de todas as
exigências do curso de mestrado.
E sobretudo, agradeço aquele que é soberano sobre todas as coisas, que me susten-
tou graciosamente em todas as circunstâncias, sendo o sentido último de toda e
qualquer realização.
Resumo
Palavras-Chave
Exaltação de Jesus; Filipenses 2,9-11; Senhor; cristologia do Novo Testa-
mento; hino cristológico.
Abstract
2,6-8 and 2,9-11; and the proposed reading is to see in this second section the climax
of the hymn, which precisely deals with the exaltation of Jesus. The theme of exal-
tation is displayed within an eschatological perspective, since the beginning of the
lordship of Jesus is the fulfillment of the Israelite hope in the triumph of God, it is
the eschatological turn that brings the fulfillment of salvation. Through exaltation,
God shared with His Son the sovereignty over the universe, implying that all beings
must now bend to his knees before Jesus and acknowledge him as Lord. Those who
already do so voluntarily experience in advance what will be the reality of the es-
chatological end. This new role of Jesus is described by the title κύριος, which com-
bined with the other elements of the text gives it contours to the divine and equality
with YHWH, in addition to opposition to Roman ideologies. The exaltation of Jesus
is also connected to the Christological revolution that happened in the worship of
the early Christian, when the Jewish Christians worshipped Jesus alongside God
the Father, without giving up their monotheism. The end of the hymn emphasizes
exactly that the exaltation of Jesus was led by God and results in his own glory.
Keywords
Exaltation of Jesus; Philippians 2,9-11; the Lord; Christology of the New
Testament; Christological hymn.
Sumário
1 Introdução 10
2 O texto, a carta e o contexto 17
2.1 A cidade de Filipos 17
2.2 Paulo e a igreja de Filipos 20
2.3 A carta aos Filipenses 26
2.3.1 Autoria e integridade da carta 26
2.3.2 Objetivo da carta 28
2.3.3 Estrutura da carta 29
2.4 Crítica Textual de Fl 2,9-11 30
2.5 Texto e tradução de Fl 2,9-11 32
2.6 Delimitação de Fl 2,9-11 32
cionais entender o significado do texto em si e na sua relação com a carta aos Fili-
penses. Na dimensão histórica a proposta é investigar o uso de toda a perícope de
Fl 2,6-11 como um hino no culto cristão primitivo anterior ou paralelo ao ministé-
rio de Paulo, avaliar o seu significado dentro do desenvolvimento do cristianismo
primitivo e a interação da sua mensagem com algumas cosmovisões contemporâ-
neas, como o judaísmo, o helenismo e a cultura romana. Teologicamente a inten-
ção é verificar como o texto descreve o tema central da exaltação de Jesus, e sua
inter-relação com outros tópicos teológicos também presentes na perícope e im-
portantes para a fé cristã, como o monoteísmo, a divindade de Jesus, a escatolo-
gia, o culto cristão e a atuação de poderes celestiais no mundo, para então extrair
as implicações dessa narrativa para a compreensão tanto da teologia paulina,
quanto da teologia do cristianismo primitivo.
Estes objetivos já indicam a relevância acadêmica do empreendimento,
mormente para a pesquisa teológica. Explicitando esta relevância, pode-se desta-
car, a princípio, a importância de investigar como Paulo e os primeiros cristãos
entenderam e articularam a sua fé na exaltação de Jesus. Em decorrência deste
tópico, a pesquisa contribuirá para a compreensão da elaboração cristológica ocor-
rida entre os primeiros cristãos no período entre as décadas de 30 e 60 do primeiro
século. O trabalho também será importante para sublinhar os contornos políticos e
11
literário do texto) e análise da história das tradições.1 Nem todas essas etapas apa-
recem explicitamente no decorrer do trabalho, constituindo-se o mesmo como
aquilo que Lima denomina “comentário exegético”, isto é, o resultado final da
exegese, que pressupõe diversas tarefas metodológicas.2 Não obstante, para me-
lhor estudar o texto escolhido, as etapas do método histórico-crítico serão com-
plementadas por outras metodologias. Aqui entrarão em consideração as análises
sincrônicas, com as perspectivas linguístico-sintática, semântica e pragmática, em
especial esta última, utilizada na discussão sobre Fl 2,10-11 no capítulo 4. Tam-
bém complementará a pesquisa a abordagem sociológica, aproveitando-se dos
estudos de J. H. Hellerman, a fim de verificar a interação entre a mensagem do
texto e a cultura romana predominante na cidade de Filipos. E ainda como com-
1
WEGNER, U., Exegese do Novo Testamento, passim.
2
LIMA, M. L. C., Exegese Bíblica: teoria e prática, p. 165-170.
12
Novo Testamento, qual é a sua estrutura, como seu conteúdo está organizado? E,
finalmente, esta etapa que se constituirá no primeiro capítulo da dissertação, fará o
estabelecimento do texto a ser trabalhado, mediante a crítica textual, a tradução e
delimitação.
A segunda etapa da pesquisa se propõe ao status quaestionis da exegese da
passagem. Considerando que uma das teses defendidas neste trabalho é que a pe-
rícope de Fl 2,6-11 é uma narrativa teológica composta por duas partes e com dois
temas distintos, embora interligados, a saber: 2,6-8 a encarnação e humilhação do
filho de Deus e 2,9-11 a exaltação de Jesus, e considerando ainda que esta pesqui-
sa está delimitada no tema da exaltação de Jesus, a dissertação como um todo es-
3
Por “método histórico-crítico tradicional” entende-se as etapas apresentadas na apresentação do
método pelos seguintes autores: LIMA, M. L. C., Exegese Bíblica: teoria e prática, p. 75-76
(crítica textual, tradução, crítica literária, crítica da forma, crítica do gênero literário, crítica da
redação, crítica das tradições, comentário exegético); SCHNELLE, U., Introdução à Exegese do
Novo Testamento, p. 47-48 (crítica textual, análise textual, crítica literária e das fontes, história
das formas, história da tradição, história dos conceitos e motivos, comparação sociorreligiosa,
história da redação); FITZMYER, J. A., A Bíblia na Igreja, p.28-32 (perguntas introdutórias,
crítica textual, análise filológica, crítica das fontes, análise dos gêneros, crítica das tradições, críti-
ca da redação); SILVA, C. M. D., Metodologia de exegese bíblica, p. 11 passim, que defende
após a crítica textual e a delimitação a aplicação de técnicas sincrônicas, para então utilizar as
metodologias diacrônicas do método histórico-crítico, que apresenta como crítica literária, crítica
dos gêneros literários, crítica da tradição, crítica da redação). Em geral as etapas propostas para a
exegese diacrônica no Antigo Testamento são as mesmas para o Novo. Por exemplo, SIMIAN-
YOFRE, H. (coord.), Metodologia do Antigo Testamento, p. 73-108 informa o seguinte caminho
após a crítica textual: crítica da constituição do texto, crítica da redação e da composição, crítica
da transmissão, crítica da forma, crítica do gênero literário, crítica das tradições.
4
FITZMYER, J. A., A Bíblia na Igreja, p. 28.
13
antes da carta? Ou ainda: será que Paulo está citando um texto composto por ele
mesmo em outra ocasião? Entre os tópicos centrais da pesquisa, em terceiro lugar
estão as questões que dizem respeito ao pano de fundo da passagem. O problema
é: quais são os conceitos religiosos que estão por trás de Fl 2,6-11? Esses concei-
tos vêm do helenismo religioso, do Antigo Testamento, do judaísmo ou do cristia-
nismo primitivo? Como eles influenciaram esta composição cristã e que tipo de
interações existem entre o texto e esses supostos conceitos? O quarto e último
tópico central considerado no segundo capítulo é acerca da função que este texto
desempenha na carta aos Filipenses. O impasse é o seguinte: na argumentação
que Paulo faz na carta, o trecho de Fl 2,6-11 funciona como um exemplo do tipo
de comportamento que ele espera dos seus leitores (interpretação ética) ou este
texto seria a descrição do evento escatológico que trouxe os leitores cristãos para
o espaço do senhorio de Jesus Cristo, e a exortação paulina seria para que estes
leitores vivessem em conformidade com esta realidade, isto é, em submissão ao
seu senhor e salvador (interpretação soteriológica)?
A terceira etapa da pesquisa ora apresentada vai adentrar na interpretação
do texto propriamente dito. O foco será a interpretação do versículo 2,9. As per-
guntas a serem respondidas são: Quem o texto apresenta como responsável pela
exaltação de Jesus e qual a importância disso? Como a exaltação era entendida no
Antigo Oriente, no judaísmo e nos escritos neotestamentário não paulinos? Como
14
a exaltação de Jesus aparece na teologia paulina e como ela está diretamente liga-
da à visão escatológica do apóstolo? Qual a relação entre a exaltação descrita em
2,9 e a preexistência de Cristo apresentada em 2,6? A exaltação é simples volta à
preexistência ou indica um estágio superior? Qual a relação entre a exaltação de
Jesus apresentada e a cultura romana de exaltação? Qual o significado teológico
da utilização do verbo χαρίζομαι na passagem? Qual foi o nome dado a Jesus na
sua exaltação e qual a importância disso? A resposta a todos esses questionamen-
tos vai demonstrar, em linhas gerais, que Deus Pai exaltou Jesus e o colocou como
Senhor de todo o universo, compartilhando com ele seu próprio nome e função, e
tudo isso foi interpretado por Paulo como a grande intervenção escatológica, atra-
vés da qual Deus trouxe o último e definitivo éon. A forma como tal mensagem
foi apresentada certamente colidiu com a cultura romana de exaltação, pois para
Paulo o que foi exaltado é o mesmo que voluntariamente se colocou na posição de
servo, se humilhou e foi morto na cruz.
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ros cristãos estavam atribuindo a Jesus quando o chamaram de Senhor? Qual im-
pacto dessa atribuição na teologia, liturgia e práticas cristãs? Quais implicações
políticas e apologéticas estariam subentendidas, sobretudo frente à religiosidade
pagã e às ideologias romanas do culto ao imperador? Após essa discussão seguir-
se-á a análise da última expressão da perícope: para glória de Deus Pai. Entendida
como uma reivindicação ao monoteísmo, esta afirmação trará para o debate o
chamado monoteísmo cristológico, que procura responder como os primeiros cris-
tãos judeus puderam incluir Jesus no seu culto sem renunciar ao monoteísmo vete-
rotestamentário? E mais: os primeiros cristãos judeus acreditavam na divindade de
Jesus? Que tipo de argumentação esteve envolvida nesta construção teológica?
São questões essenciais que aproximaram a pesquisa de temas centrais da fé cris-
tã, como a divindade de Jesus e a doutrina da trindade.
Com esses cinco capítulos, lançando mão de extensa pesquisa bibliográfi-
ca, e tendo como principais referenciais teóricos para compreensão da passagem
Ernst Käsemann e Ralph P. Martin, acredita-se que esta dissertação oferecerá uma
exegese segura do texto de Filipenses 2,9-11, em conformidade com as metodolo-
gias exegéticas contemporâneas, que além de contribuir com a própria pesquisa
sobre estes versículos , trará luz para alguns tópicos da discussão exegética sobre
Fl 2,6-11 e sobre a cristologia neotestamentária, em particular a paulina. Por con-
seguinte, o trabalho oferecerá subsídios para a investigação da cristologia na teo-
16
2.1
A cidade de Filipos
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O texto a ser analisado faz parte da carta que o apóstolo Paulo escreveu
aos cristãos da cidade de Filipos, que em meados do século I d.C. era uma colônia
do Império Romano da província da Macedônia.
A história dessa cidade remonta ao ano 356 a. C., quando Filipe II rei da
Macedônia (o pai do famoso Alexandre, o Grande) toma a cidade de Crenides dos
Tracianos e faz do local uma homenagem a si mesmo: Filipos, a cidade de Filipe.5
Para o governante a cidade possuía uma imediata importância econômica e
militar, pois as minas de ouro da região o ajudariam a aparelhar seus exércitos e
financiar suas batalhas.6 Após quase duzentos anos de domínio macedônio,
Filipos passa para o controle romano em 168 a. C., quando o general romano
Emílius Paulus derrota o rei macedônico Perseu, e faz da Macedônia uma
província romana, dividida em quatro subprovíncias, uma das quais era o próprio
5
A fundação da cidade de Crenides ocorreu menos de cinco antes da ação de Filipe II e remonta a
um exilado ateniense chamado Calístrato que foi para a região com um grupo de colonizadores.
O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 3; MEEKS, Wayne., Os primeiros cristãos
urbanos, p. 107; BRUCE, F. F., Filipenses, p. 12.
6
HENDRIKSEN, William., Efésios e Filipenses, p. 355.
18
7
Embora a capital desse distrito fosse Tessalônica, At 16,12 registra “Filipos, cidade principal
daquela região da Macedônia, e também colônia romana”. Cf. BRUCE, F. F., Filipenses, p. 12,
sugere que a melhor tradução para esse verso é: “ ‘Filipos, a primeira cidade dessa região da
Macedônia’ – isto é, o primeiro entre os quatro distritos em que a Macedônia fora dividida em 167
a.C.”.
8
Segundo OROFINO, Francisco., Filipos – “Colônia Agustus Iulia Victrix Philippensium”, p. 14-
15, e HENDRIKSEN, William., Efésios e Filipenses, p. 355, isto ocorreu em 146 a.C. As
províncias podiam ser imperatorias (como a Síria e a Galácia-Licaônia), quando eram governadas
por uma administração militar subordinada diretamente ao imperador (geralmente nas fronteiras ou
em cidades estratégicas), ou senatorais (como Chipre, Acaia e Macedônia), quando possuíam uma
administração civil razoavelmente independente e, ao mesmo tempo, estavam pacificadas a ponto
de não precisarem de um contingente militar fixo. Cf. REICKE, BO., História do Tempo do
Novo Testamento, p. 236-237 e KOESTER, Helmut., Introdução ao Novo Testamento, p. 328.
9
HENDRIKSEN, William., Efésios e Filipenses, p. 356.
10
OROFINO, Francisco., op. cit., p. 14.
11
A prática dos romanos de criarem colônias para garantir seus domínios remonta ao século IV a.
C., quando a própria Roma garantiu o domínio da Itália através da instalação de colônias. Cf.
OROFINO, Francisco., op. cit., p. 14-15.
12
MEEKS, Wayne, Os primeiros cristãos urbanos, p. 107.
13
Cf. OROFINO, Francisco., op. cit., p. 14-15.
14
Em latim: Colonia Julia Augusta Victrix Philippensium.
15
BRUCE, F. F., Filipenses, p. 12
16
O termos latinos respectivamente são duumviri e lictores, que em Atos 16,22 e 35 aparecem
traduzidos para o grego como στρατηγοὶ e ῥαβδοῦχος.
19
17
SCHNELLE, Udo., Paulo: vida e pensamento, p. 471; HELLERMAN, Joseph H., Vindicating
God’s Servants in Phillippi and in Philippians – The influence of Paul’s Ministry in Philippi
upon the Composition of Philippians 2:6-11, p.88. Este último afirma que quando uma colônia
romana era fundada, ela era identificada como uma das tribos romanas.
18
HENDRIKSEN, William., Efésios e Filipenses, p. 357-358;
19
BARCLAY, William., Filipenses, Colosenses, I y II Tesalonicenses, p. 10.
20
MEEKS, Wayne., Os primeiros cristãos urbanos, p. 108-109.
21
FOWL, Stephen E., Philippians, p. 12.
22
OROFINO, Francisco., Filipos – “Colônia Agustus Iulia Victrix Philippensium”. p. 15.
23
MEEKS, Wayne, op. cit., p. 109-110.
24
SCHNELLE, Udo, op. cit., p. 464; OROFINO, Francisco, op. cit., p. 16.
25
MAZZAROLO, I., Carta de Paulo aos Filipenses, p. 11.
20
2.2
Paulo e a igreja de Filipos
26
Segundo BARTH, Gerhard., A carta aos Filipenses, 1983. p. 5, escavações comprovaram a
existência de mais de 24 divindades diferentes cultuadas em Filipos.
27
SCHNELLE, Udo., Paulo: vida e pensamento, p. 465, nota 29.
28
FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 62.
29
Ibid., p. 173, “Embora a narrativa em At 16,16-22.23-40 esteja enfeitada com traços lendários,
seu cerne histórico é confirmado...”. Mais otimista é HELLERMAN, Joseph H., Vindicating
God’s Servants in Phillippi and in Philippians – The influence of Paul’s Ministry in Philippi
upon the Composition of Philippians 2:6-11, p.85-102, que vai construir toda uma interpretação
de Fl 2.6-11 baseado na narrativa de Atos 16,11-40. Um balanço atual sobre a importância de Atos
para a reconstrução da cronologia paulina é feito por EDO, Pablo M., Cronologías Paulinas: un
estado de la questión, p. 177-198. Segundo ele, tanto as informações das cartas quanto de Atos
devem ser avaliadas criticamente, mas a utilização do livro de Atos como fonte reduz de forma
significativa as suposições e elaborações criativas dos pesquisadores.
30
Considerando o relato de Atos, é provável que a visita de Paulo a Filipos tenha sido
acompanhada por Silas, Timóteo e Lucas. O primeiro partiu junto com o apóstolo nessa viagem
(At15,40). Logo a seguir Timóteo uniu-se aos dois (At 16,3). E é a partir de At 16,10 que a
narrativa de Atos passa para a primeira pessoa do plural, indicando que o narrador passou a
integrar os acontecimentos dali em diante. A tese predominante é que o autor de Atos é Lucas. Que
o cenário da visita a Filipos foi assim, admitem FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los
Filipenses, p. 64 e O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 6.
21
31
O significado exato de προσευχή é discutido. De um lado, parece que o termo era utilizado
como sinônimo de sinagoga na literatura judaica helenística (FOWL, Stephen E., Philippians, p.
13, nota 20). Por outro, o fato de Lucas não mencionar nem a presença de homens na reunião, nem
a ocorrência de um culto formal com leitura da Lei, sendo um sábado, favorece a posição de que
ali seria apenas um lugar de reuniões informais de mulheres simpatizantes do judaísmo. Assim
HENDRIKSEN, William., Efésios e Filipenses, p. 360; MAZZAROLO, Isidoro., Carta de Paulo
aos Filipenses, p. 25, afirma que as “sinagogas nunca estavam fora da cidade”. BOCKMUEHL,
Markus., The Epistle to the Philippians, p. 9, reforça a tese observando que Lucas faz questão de
mencionar quando Paulo visitava uma sinagoga em uma cidade. Assim em Salamina (At 13,5);
Atioquia da Psidia (At 13,14), Icônio (At 14,1), Tessalônica (17,1), Beréia (At 17,10), Atenas (At
17,17) e Corinto (18,4.7). Segundo BRUCE, F. F., Filipenses, p.15, é possível que não houvesse
na cidade o quórum mínimo para o estabelecimento de uma sinagoga que era de 10 homens.
32
Lucas utiliza a expressão σεβομένη τὸν θεόν para descrever Lídia. Segundo BAGD, p. 746, a
expressão era utilizada para os gentios que aderiam ao “monoteísmo ético do Judaísmo” e
frequentavam a sinagoga, mas não tinham a obrigação de seguirem toda a lei judaica. Os homens,
por exemplo, não precisavam circuncidar-se. MEEKS, Wayne A., Os primeiros cristãos
urbanos, p. 89, nota 175, afirma que não há consenso sobre o uso técnico da expressão (nem
mesmo se era usado de forma técnica), mas ela pode indicar tanto esses “simpatizantes” do
judaísmo, quanto pode significar apenas “piedoso”, aplicado inclusive a prosélitos e judeus
nativos.
33
Nessa linha FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 63; MAZZAROLO,
Isidoro., Carta de Paulo aos Filipenses, p. 23-26 e HAWTHORNE, G. F. Filipenses, carta de, In:
DPC, p. 558.
22
34
Barclay faz a interessante avalição do capítulo 16 de Atos para a formação da igreja de Filipos:
“Os três personagens são de diferentes nacionalidades. Lidia era uma asiática; não é necessário que
estejamos diante de um nome próprio, e sim simplesmente ante o qualificativo ‘a senhora da
cidade de Lídia’. A jovem escrava era grega. O carcereiro era cidadão romano. Todo o império
estava reunido na igreja cristã. Porém não estamos somente ante três diferentes nacionalidades, e
sim também ante três estratos muito diferentes da sociedade. Lídia era uma comerciante de
púrpura, uma das mercadorias mais caras do mundo antigo; ela era equivalente a um príncipe
mercador. A jovem escrava, ante a lei não era uma pessoa, mas sim uma ferramenta viva. O
carcereiro era um cidadão romano, um membro da forte classe média romana, que se ocupava dos
serviços civis. Nestes três estavam representados o mais alto, o mais baixo e o mediano da
sociedade. Não há outro capítulo da Bíblia que mostre tão bem o caráter universal da fé que Jesus
traz aos homens”. BARCLAY, William., Filipenses, Colosenses, I y II Tesalonicenses, p. 11.
35
MARTIN, Ralph., Filipenses, p. 22-23 e BARTH, Gerhard., A carta aos Filipenses. p. 7.
23
apenas Timóteo junto dele (2,19-21). A hipótese de Corinto é aquela que goza de
menor aceitação acadêmica.36
Uma segunda possibilidade que goza de maior adesão é a tese que
Filipenses foi escrita em Éfeso.37 Entre outros, esta alternativa é sustentada pelos
seguintes argumentos: a proximidade geográfica entre Éfeso e Filipos; a
informação de At 19,22 dando conta que Timóteo estava com Paulo em Éfeso e
de At 19,10.25-26 da intensa evangelização que ocorreu na cidade e arredores
quando Paulo esteve ali, e a possibilidade da expressão πραιτώριον (1,13) referir-
se a sede do procônsul na cidade.
São apresentados, todavia, três argumentos centrais contra Éfeso.
Primeiramente, como no caso de Corinto, inexiste comprovação para uma prisão
de Paulo em Éfeso (apesar de 2Cor 1,8-10; 6,5 e 11,23 indicarem que ele esteve
preso várias vezes). Na verdade, a questão não é apenas se ele esteve ou não preso
em Éfeso, mas atribuir a esta cidade um aprisionamento que atenda às
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36
HAWTHORNE, Gerald F., Philippians, p. 20; MARTIN, Ralph., Filipenses, p. 57-58. Eles
informam que o primeiro a postular Corinto como lugar de origem da carta aos Filipenses foi G. L.
Oeder, em 1731. Com exceção de Hawthorne e Martin, os demais autores pesquisados nem sequer
consideram Corinto como possibilidade.
37
KÜMMELL, Werner Georg., Introdução ao Novo Testamento, p. 429, que informa que Éfeso
foi proposta em 1897 por A. Deissmann. Em sentido contrário, HAWTHORNE, Gerald F.,
Philippians. p. 19, afirma que Deissmann seguiu proposta apresentada originalmente por H. Lisco
em 1900.
38
Os argumentos acima estão principalmente esboçados em HAWTHORNE, Gerald F.,
Philippians, p. 19-20 e HAWTHORNE, G. F., Filipenses, carta de. In: DPC, p. 560.
39
Assim FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 73-74; O’BRIEN, P. T., The
Epistle to the Philippians, p. 20-21.
24
tropas; residência dos governadores de províncias nas capitais e fora das capitais,
e palácio dos procuradores de província.40 A hipótese de que Paulo escreveu a
partir de Éfeso sustenta que o apóstolo usou a expressão πραιτώριον de forma
mais genérica, não se referindo necessariamente à casa do imperador, “mas à casa
onde estava o administrador romano, cheia de luxo, mordomias e guardas”.41 No
entanto, além de ser discutível que Paulo estivesse utilizando aqui uma linguagem
não específica,42 o argumento fundamental contra a hipótese efésia é a ausência de
qualquer comprovação histórica para a existência na cidade de um pretório ou de
uma guarda pretoriana.43 Éfeso era uma província senatorial e “não existe
exemplo, nos tempos imperiais, do emprego dessa expressão [πραιτώριον] para a
sede de um procônsul, o governador de uma província senatorial como era a da
Ásia [Éfeso], nessa época”.44
A terceira cidade postulada como lugar de onde Paulo escreveu Filipenses
é Cesaréia. A hipótese possui algumas vantagens em relação às anteriores, posto
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que o livro de Atos menciona de forma explícita que Paulo esteve preso nessa
cidade por um período longo, e lá foi detido no πραιτώριον (At 23,31-35). A
coleta para Jerusalém já tinha sido efetuada. Seu desejo de visitar os Filipenses
novamente não contradiz sua intenção missionária de ir à Espanha, visto ele poder
passar por Filipos indo para Espanha. Ainda assim, esta hipótese possui
dificuldades. O quadro da prisão de Paulo em Cesaréia não coaduna com o risco
de morte suposto em Filipenses. Também não há indícios de uma presença cristã
na cidade que corresponda à realidade da carta, ou seja, tanto uma intensa
propagação do cristianismo, quanto divisões dentro da comunidade cristã. Além
disso, de todas as opções (Roma será discutida logo abaixo) Cesaréia é a cidade
mais distante de Filipos. Apesar do argumento geográfico não ser fundamental, é
40
MAZZAROLO, I., Carta aos Filipenses, p. 55.
41
MAZZAROLO, I., Carta aos Filipenses, p. 30. Adiante, nas páginas 55-56 ele afirma: “O
pretório, nesse contexto, precisa ser considerado no sentido genérico”.
42
Crítica levantada por FEE, G. D., Comentário de la Epístola a los Filipenses, p. 74.
43
FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 73-74. Nessa direção, O’BRIEN, P.
T., The Epistle to the Philippians, p. 22, argumenta que tropas militares não ficavam
estacionadas em províncias senatorias, porque eram governadas por civis. Em contrapartida,
BROWN, R., Introdução ao Novo Testamento, p.657, argumenta em favor de Éfeso como a
melhor opção usando a seguinte afirmativa inteiramente especulativa: “Éfeso era a cidade mais
importante da província romana da Ásia e sede do quartel-general proconsular, de modo que deve
ter havido uma importante presença romana ali, até mesmo um praitorion”.
44
BRUCE, F. F., Filipenses, p. 22. Não obstante, em favor de Éfeso, entre outros, estão
SCHLAEPFER, Carlos Frederico, Procurando alguns elementos sobre a redação da carta aos
Filipenses, p. 9-13; BARTH, Gerhard, A carta aos Filipenses, p. 7-8; GNILKA, Joachim.,
Epístola aos Filipenses, p. 9; VOUGA, François., A epístola aos Filipenses, p. 310-311.
25
2.3
A carta aos Filipenses
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2.3.1
Autoria e Integridade
47
Argumento de SCHNELLE, Udo. Paulo: Vida e pensamento. p. 467-472.
48
Para os argumentos acima e em favor de Roma estão, entre outros, SCHNELLE, Udo. Paulo:
Vida e pensamento. p. 465-469; HENDRIKSEN, William. Efésios e Filipenses. p. 376-387;
BOCKMUEHL, Marcus. The Epistle to the Philippians. p. 30-32; FOWL, Stephen E.
Philippians. p. 9; FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 72-76; O’BRIEN,
P. T., The Epistle to the Philippians, p. 19-26
49
De acordo com VOUGA, François., A literatura paulina, p. 186, ela é uma das sete que
pertencem ao conjunto das protopaulinas. Ao lado deste seguem-se mais dois conjuntos: as
deuteropaulinas e as tritopaulinas.
50
HAWTHORNE, G. F. Filipenses, carta aos. In: DPC, p. 558. Segundo ele, a tentativa mais
famosa de negar a autoria paulina da carta foi feita, sem sucesso, por Ferdinand Christian Baur.
27
natural para à conclusão da carta. Entretanto, ao invés disso Paulo inicia uma
áspera repreensão contra adversários.51 B) O trecho de 4,10-20 deve preceder 1,1-
3,1, como gratidão de Paulo pelo donativo enviado pela igreja através de
Epafrodito.52 C) O trecho de 3,2-4,3 não faz menção da situação de
aprisionamento de Paulo, que é a situação pressuposta para 1,1-3,1.53 D) A
diferença de tom com que Paulo trata os adversários na primeira parte (1,15-18)
em relação à seção iniciada em 3,2. Mais do que indicar adversários diferentes,
essa mudança pode refletir dois momentos distintos na vida de Paulo, duas
maneiras distintas de o apóstolo encarar seus adversários.54 E) Uma série de frases
conclusivas em 4,7-9 e 4,19-20.55 Os estudiosos partidários da hipótese de
Filipenses como uma compilação de várias cartas combinam todos esses
elementos acima e ainda outros, e propõem que a carta atual é resultado da união
de duas ou três cartas menores. A delimitação do conteúdo exato de cada uma
dessas supostas cartas varia, resultando em pelo menos seis arranjos diferentes de
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conteúdo.56
No entanto, são mais consistentes os argumentos em favor da unidade da
carta.57 Em primeiro lugar, não há nenhuma evidência manuscrita de que algum
dia a carta aos Filipenses circulou de forma diferente como ela hoje existe no
Novo Testamento. Em segundo lugar, existe uma série de correlações
morfológicas e conceituais entre as diversas seções da carta, inclusive entre 1,1-
3,1 e 3,2-4,9. O próprio texto de Fl 2,6-11 ecoa em 3,7-11 e 3,20-21. Em terceiro
lugar, as teorias de montagem levantam mais perguntas que respondem,
acumulando conjecturas em cima de conjecturas, como, por exemplo, quando se
tenta responder qual a intenção teve o editor final ao juntar desta forma as
supostas cartas avulsas. Em quarto lugar, “a Antiguidade, que conhecia bem o
gênero literário da coleção de cartas ou da correspondência editada e vendida
51
BOCKMUELH, Marcus, op. cit., p. 21.
52
BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians., p. 21.
53
Idem.
54
BRUCE, F. F. Filipenses. p. 27-29.
55
BOCKMUELH, Marcus, op. cit., p. 21; VOUGA, François., A epístola aos Filipenses, p. 300-
303.
56
VOUGA, François, op. cit., p. 300-303, vai apresentar os seis esquemas de organização, três
relativos à existência de duas cartas e três para existência de três cartas. O único consenso nessa
visão é que 1,1-3,1 forma uma unidade.
57
Para os argumentos que seguem em favor da unidade da carta cf. HAWTHORNE, G. F.
Filipenses, carta aos, In: DPC, p. 558-559; BRUCE, F. F. Filipenses. p. 26-30; MARTIN, Ralph
P. Filipenses. p. 23-35; MAZZAROLO, Isidoro. Carta de Paulo aos Filipenses. p. 18-20;
BOCKMUELH, Marcus, op. cit., p. 20-25; VOUGA, François, op. cit., p. 302-303.
28
2.3.2
Objetivo da carta
Quanto ao objetivo da carta, a razão principal para o envio desta carta está
no âmbito do relacionamento entre Paulo e a Igreja de Filipos, que era do mais
alto nível. Nesse sentido, pode-se dizer que Filipenses é uma carta de amizade.60
Paulo escreve para agradecer à comunidade as ofertas enviadas; recomendar a
recepção de Epafrodito que está retornando, anunciar o envio de Timóteo e contar
sobre as circunstâncias atuais do apóstolo preso.
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58
VOUGA, François., A epístola aos Filipenses, p. 302.
59
Ainda sim, BARTH, Gerhard. A carta aos Filipenses. p. 9-10 e SCHLAEPFER, Carlos
Frederico. Procurando alguns elementos sobre a redação da carta aos Filipenses. p. 11-12,
favorecem a hipótese que Filipenses é uma composição de três cartas de Paulo.
60
MAZZAROLO, Isidoro. Carta de Paulo aos Filipenses. p. 12. SCHNELLE, Udo. Paulo: vida
e pensamento. p. 469, afirma que “Paulo sentia-se tão ligado aos filipenses como a nenhuma outra
comunidade”.
61
FOWL, Stephen E. Philippians. p. 11.
62
Ibidem, p. 11-12.
63
Segue-se aqui a explicação apresentada por HAWHTHORNE, G. F., Philippians, p. 24-27 e
HAWTHORNE, G. F., Filipenses, carta aos, In: DPC, p. 561-562.
29
evidências de sua fraqueza como líder. Ao que parece, a divergência de Paulo com
eles era de natureza mais pessoal do que teológica:
É verdade que alguns anunciam o Cristo [τὸν Χριστὸν κηρύσσουσιν] por inveja e
porfia, e outros por boa vontade: estes por amor proclamam a Cristo [τὸν Χριστὸν
καταγγέλλουσιν], sabendo que fui posto para defesa do evangelho, e aqueles por
rivalidade, não sinceramente, julgando com isso acrescentar sofrimentos às minhas
prisões. Mas que importa? De qualquer maneira – ou com segundas intenções ou
sinceramente – Cristo é proclamado [τὸν Χριστὸν καταγγέλλουσιν] e com isto me
regozijo. (1,15-18)64
A partir de 3,2 Paulo tem em vista outro tipo de adversários. Ao contrário dos
primeiros, estes não são cristãos. Eles confiam na carne, exigem a circuncisão e
outros rituais judaicos, e com uma escatologia realizada prometem a possibilidade
de se alcançar a perfeição nesta vida e desde já experimentar as dádivas do mundo
porvir. Menosprezam o sofrimento, e consequentemente a figura e a pregação de
Paulo. Enfim, são τοὺς ἐχθροὺς τοῦ σταυροῦ τοῦ Χριστοῦ. Eles podem ser
qualificados como missionários judeus que representavam para os filipenses uma
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2.3.3
Estrutura da carta
64
A tradução citada é de A Bíblia de Jerusalém, nova edição, revista e ampliada. As demais
citações bíblicas do trabalho serão extraídas dessa tradução, salvo outra indicação.
30
A - Saudação – 1,1-2
B - Ação de graças – 1,3-11
C - Situação e planos de Paulo: 1,12-26
D - Exortação: 1,27-2,17
C’ - Situação e planos de Paulo: 2,19-30
D’ - Exortação: 3,1-4,9
B’ Ação de Graças – 4,10-20
A’ Saudação – 4,21-23
2.4
Crítica Textual de Fl 2,9-11
65
METZGER, Bruce M., Un Comentario Textual Al Nuevo Testamento Griego, p. 542. O
mesmo comentário encontra-se em OMANSON, Roger., Variantes textuais do Novo
Testamento, p. 414.
66
FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 287; HELLERMAN, J. H.,
Philippians, p. 120.
31
que...”. Com o futuro ficaria: “e toda língua confessará que...”. Omanson oferece
explicações para as duas mudanças, isto é, se original fosse futuro, os copistas
teriam alterado para o subjuntivo para concordar com o verbo κάμψῃ do versículo
10, que está no subjuntivo. Se a forma original foi o subjuntivo, a alteração dos
copistas tinha como objetivo concordar com o termo ὀμεῖται (jurará), que aparece
em alguns manuscritos da LXX em Isaías 45,23. Nesse caso, a evidência externa
(seguindo o texto Alexandrino) favorece a manutenção do texto com o subjuntivo.
Por outro lado, parece que a divisão dos manuscritos aponta para o que a exegese
do texto vai confirmar, isto é, que na passagem o verbo em questão tanto tem uma
aplicação presente, desafiando ouvintes e leitores a confessarem Jesus como
Senhor, quanto uma dimensão futura, proclamando o que será realidade
escatológica final, quando todos os seres se submeterão a Jesus.
67
FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 287; HELLERMAN, J. H.,
Philippians, p. 120.
32
tradução latina de Orígenes omite o termo Χριστὸς.68 Assim o texto seria lido:
“que Jesus é Senhor”. No entanto, é possível explicar a omissão como uma
tentativa de harmonização com o versículo 10. A qualidade dos testemunhos
externos e a presença comum da designação Ἰησοῦς Χριστὸς em Paulo (só
considerando as fórmulas de benção nas saudações e despedidas, a expressão
aparece em todo corpus paulino, com exceção de Colossenses e Tito) favorecem a
manutenção do texto como está. Exegeticamente, a omissão da expressão pode
testemunhar a desvalorização do termo Χριστὸς como título que explica a pessoa
e obra de Jesus. É por isso, então, que a exegese deve-se perguntar pela utilização
da expressão no texto.
2.5
Texto e tradução de Fl 2,9-11
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9
διὸ καὶ ὁ θεὸς αὐτὸν ὑπερύψωσεν καὶ ἐχαρίσατο αὐτῷ τὸ ὄνομα τὸ ὑπὲρ
10
πᾶν ὄνομα, ἵνα ἐν τῷ ὀνόματι Ἰησοῦ πᾶν γόνυ κάμψῃ ἐπουρανίων καὶ
ἐπιγείων καὶ καταχθονίων 11καὶ πᾶσα γλῶσσα ἐξομολογήσηται ὅτι κύριος
Ἰησοῦς Χριστὸς εἰς δόξαν θεοῦ πατρός.69
9
E por isso, Deus o exaltou sobremaneira e o agraciou com o nome acima
10
de todo o nome, a fim de que todo o joelho se dobre ao nome de Jesus,
11
no céu, na Terra e debaixo da Terra, e toda língua confesse que 'Jesus
Cristo é Senhor', para glória de Deus Pai.
2.6
Delimitação
68
Existe ainda a atestação única feita pelo uncial K da leitura Χριστὸς κύριος.
69
Texto grego conforme NESTLE-ALAND, Novum Testamentum Graece, 28ª edição.
33
contexto na carta. É possível inclusive que ela tenha tido uma existência anterior
independente da própria carta. Porém, como essa discussão é complexa, e ao
mesmo tempo muito importante para a compreensão de Fl 2,6-11, o assunto será
discutido em capítulo à parte.
Quanto à delimitação dos versículos 9 a 11 em relação ao texto de 2,6-11,
a primeira consideração é a mudança de tema. Do versículo 6 a 8 o texto descreve
o caminho do Filho de Deus da existência na forma de Deus até a morte na cruz,
passando pelo seu esvaziamento, sua humanidade, e sua humilhação. Os
versículos 9 a 11 descrevem Deus o exaltando, dando-lhe um nome especial,
joelhos se dobrando diante dele e toda língua confessando-o. Ou seja, a primeira
parte do texto gira em torno do eixo existência na forma de Deus - esvaziamento -
encarnação – cruz, enquanto que a segunda parte segue a temática da exaltação –
adoração – confissão – glória de Deus. Outra consideração importante é que na
primeira parte Jesus é o sujeito de todos os verbos: são três verbos no indicativo e
cinco no particípio nominativo, todos referindo-se a Jesus. A partir do versículo 9
Deus passa a ser o sujeito e Jesus o objeto. São dois verbos no indicativo tendo
Deus como sujeito e Jesus como objeto. E há dois verbos no subjuntivo que estão
sintaticamente subordinados aos verbos que tem Deus como sujeito. E também ali
Jesus continua sendo o objeto.
34
3.1
O início da pesquisa contemporânea
de então, afirmar que Fl 2,6-11 é um hino cristológico citado por Paulo no contexto
da carta aos Filipenses tornou-se lugar comum nos estudos do Novo Testamento.73
A proliferação de textos acadêmicos sobre a passagem foi enorme, discutindo-a por
diversos ângulos, a tal ponto de se afirmar que Fl 2,6-11 “é uma das mais exaltadas,
uma das mais amadas, e uma das mais discutidas e debatidas passagens no corpus
Paulino”.74 A quantidade de literatura especializada relacionada à passagem
evidencia que a mesma é a mais importante da carta aos Filipenses.75 Abaixo será
apresentado o desenvolvimento da interpretação acadêmica sobre o texto, segundo
os principais tópicos de discussão: gênero literário, estrutura, autoria, origem, pano
de fundo e função na carta.
70
BROWN, C., Ernst Lohmeyer’s Kyrios Jesus, p. 6 e 31. Dois anos depois Lohmeyer reproduziu
os resultados do estudo na publicação do seu comentário da carta aos Filipenses.
71
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 24.
72
Ibid., p. 28-29. Escrevendo em 1965 Martin afirma que até então ninguém tinha conseguido
reverter a avaliação de Lohmeyer que o texto é um hino, e os poucos questionamentos não afetaram
o consenso na comunidade exegética.
73
Parece que o primeiro a designar a passagem como um “hino cristológico” foi H. Lietzmann em
uma publicação de 1954, conforme FITZMYER, J. A., The Aramaic Background of Philippians
2:6-11, p. 471, nota 2.
74
FEE, G. D., Philippians 2:5-11: Hymn or Exalted Pauline Prose?, p. 29.
75
BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 115. HELLERMANN, J. H. Vindicating
God’s Servants in Philippi and in Philippians, p.85, vai além, e afirma que Fl 2,6-11 é o texto que
mais atrai atenção erudita no corpus Paulino.
36
3.2
A pesquisa sobre o Gênero e Estrutura de Fl 2,6-11
76
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 29.
37
Em primeiro lugar, ele concluiu que o hino está organizado em pares de versos,
refletindo o esquema hebraico do paralelismo de membros. São 12 versos. Para
chegar a essa estrutura ele propõe excluir três linhas do texto, qualificando-as como
acréscimos de Paulo ao hino original. As linhas são: θανάτου δὲ σταυροῦ (final do
versículo 8), ἐπουρανίων καὶ ἐπιγείων καὶ καταχθονίων (final do versículo 9) e εἰς
δόξαν θεοῦ πατρός (final do versículo 11). Dessa forma estes 12 versos estariam
distribuídos em três estrofes, em que cada uma descreve um estágio cristológico: a
pré-preexistência (2,6ab-7ab), o ministério terreno (2,7cd-8ab) e a exaltação (2,9-
11).78
Da perspectiva da organização dos versos, outras propostas foram feitas, mas
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77
FEWSTER, G. P., The Philippians ‘Christ Hymn’: Trends in Critical Scholarschip, p. 195-
196.
78
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p.32-35; FEWSTER, G. P., op. cit., p. 195-196.
79
SCHNELLE, U., Paulo: Vida e Pensamento, p. 473. Observe-se, por exemplo, a proposta de
MARTIN, R. P., op. cit., p. 36-37. Ele segue Jeremias na perspectiva do paralelismo de membros,
mas adota a divisão de Lohmeyer em seis estrofes, somente omitindo o θανάτου δὲ σταυροῦ do final
do vs. 8.
80
No prefácio à nova edição do seu livro em 1982, R. P. Martin atualiza a pesquisa sobre Fl 2,6-11
entre 1965 (data da primeira edição) e 1982 e afirma: “o caráter poético ou hínico dos versos
permanece um consenso virtual no debate recente, sem nenhuma séria tentativa de revertê-lo”.
MARTIN, R. P., op. cit, p. xvi.
81
FEE, G. D., Philippians 2:5-11: Hymn or Prose Exalted?, p. 29-46.
38
hinódia, tanto grega, quanto semítica. Não obstante, Paulo utilize aqui uma prosa
exaltada, isto não é sinônimo de hino. O papel do pronome relativo ὃς aqui é
diferente dos textos de Cl 1,15 e 1Tm 3,16 classificados como hinos, e a sequência
das frases é típica da argumentação em prosa paulina (argumento que ele considera
mais forte). Assim, ele considera que o texto possui um caráter poético indiscutível,
e ao mesmo tempo, um inegável estilo narrativo. Por isso ele classifica a passagem
como prosa exaltada.82 Alguns autores seguiram Fee na rejeição ao consenso de
classificar Fl 2,6-11 como hino,83 e outros apresentaram variações da classificação
da passagem como “prosa exaltada”. Collins propôs a designação “prosa hínica”,84
enquanto Basevi chamou-a de “prosa rítmica”.85
Em 1997, Martin reagiu às conclusões de Fee, reafirmando o caráter hínico da
passagem.86 E em 2015, Martin e Nash apresentaram um artigo com uma
contundente defesa do gênero Hymnos para Fl 2,6-11. O texto deles realiza duas
tarefas.87 Primeiro, eles discorrem sobre o caráter do gênero hino nos manuais de
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82
FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 259-260. Antes mesmo de Fee,
BERGER, K., As Formas Literárias do Novo Testamento, p.311, tinha classificado Fl 2,6-11 não
como hino, mas como um encômio, um gênero da retórica grega que objetiva a apresentação
elogiosa de uma pessoa. Mais recentemente, também HELLERMAN, J., Philippians, p. 106,
considerou Fl 2,6-11 como encômio.
83
Entre outros, BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 116-117; FOWL, S.
Philippians, p.108-110.
84
COLLINS, A. Y., Psalms, Philippians 2:6-11, and The Origins of Christology, p. 368.
85
BASEVI, C., Estudio Literario y Teológico del Himno Cristológico de la Epístola a los
Filipenses, p. 443, nota 16.
86
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. lvii-lviii. É a 3ª edição da obra de Martin, na qual ele
apresenta e discute os principais temas da exegese acadêmica de Fl 2,6-11 entre 1982 (data da
segunda edição) e 1997 (data da terceira).
87
MARTIN, M. W.; NASH, B. A., Philippians 2:6-11 as Subversive Hymnos: A Study in the
Light of Ancient Rhetorical Theory, p. 90-138.
88
Ibid., p. 109. Também em 2015 apareceu um outro artigo criticando a classificação de Fl 2,6-11
(e de Cl 1,15-20) como hino. EDSALL, B.; STRAWBRIDGE, J. R., The Songs we Used to Sing?
Hymn ‘Traditions’ and Reception in Pauline Letters, p. 290-311, argumenta que Fl 2,6-11 não
atende critérios gregos para considerá-lo como hino, e nas mais de 570 citações da passagem entre
os pais da Igreja antes de 325 d.C., nunca ela é qualificada como hino. O último argumento é uma
dedução a partir do silêncio, e para o primeiro, as respostas estão no artigo de Martin e Nash, que
Edsall e Strawbrigdge não tiveram como levar em consideração.
39
Um dos pontos a favor dessa estrutura é que ela explica o texto sem precisar
excluir qualquer linha, uma das características das propostas apresentadas acima. O
trabalho de Martin e Nash, portanto, reforça o consenso exegético que já dura quase
um século de classificar Fl 2,6-11 como hino.
Quanto à estrutura da passagem, enquanto os resultados da proposta de
Martin e Nash ainda serão avaliados pela comunidade exegética, a organização que
parece mais difundida (tanto entre autores que classificam a passagem como hino,
quanto entre os que divergem dessa classificação) é a que percebe o texto dividido
em duas partes: os vs. 6-8 e os vs. 9-11, a saber:89
ὃς ἐν μορφῇ θεοῦ ὑπάρχων οὐχ ἁρπαγμὸν ἡγήσατο τὸ εἶναι ἴσα θεῷ, ἀλλὰ ἑαυτὸν
ἐκένωσεν μορφὴν δούλου λαβών, ἐν ὁμοιώματι ἀνθρώπων γενόμενος· καὶ σχήματι
εὑρεθεὶς ὡς ἄνθρωπος ἐταπείνωσεν ἑαυτὸν γενόμενος ὑπήκοος μέχρι θανάτου,
θανάτου δὲ σταυροῦ.
89
Entre os que seguem esta estrutura estão FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses,
p. 261-262; SCHNELLE, U., Paulo: Vida e Pensamento, p. 473; HAWTHORNE, G. F.,
Philippians, p. 101-103; BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 125-126;
COLLINS, A. Y., Psalms, Philippians 2:6-11, and The Origins of Christology, p. 368; BARTH,
G., A carta aos Filipenses, p. 45; BASEVI, C., Estudio Literario y Teológico del Himno
Cristológico de la Epístola a los Filipenses, p. 445-446; MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p.
lviii. A favor de uma divisão em três partes, além de Jeremias mencionado acima, CERFAUX, L.,
Cristo na Teologia de Paulo, p. 297-298.
40
διὸ καὶ ὁ θεὸς αὐτὸν ὑπερύψωσεν καὶ ἐχαρίσατο αὐτῷ τὸ ὄνομα τὸ ὑπὲρ πᾶν
ὄνομα,
ἵνα ἐν τῷ ὀνόματι Ἰησοῦ πᾶν γόνυ κάμψῃ ἐπουρανίων καὶ ἐπιγείων καὶ
καταχθονίων
καὶ πᾶσα γλῶσσα ἐξομολογήσηται ὅτι κύριος Ἰησοῦς Χριστὸς εἰς δόξαν θεοῦ
πατρός.
Os argumentos para essa divisão são múltiplos. Cada parte é composta por
uma sentença, que por sua vez possui dois verbos principais. Nos vs. 6-8 são
ἡγήσατο e ἐκένωσεν e em 9-11 ὑπερύψωσεν e ἐχαρίσατο.90 Se por um lado, a
expressão θανάτου δὲ σταυροῦ é o ponto crítico da primeira parte,91 a utilização da
preposição διὸ no vs. 9 marca uma virada na descrição dramática. Ela é nesse caso
uma preposição consecutiva, mostrando que a sequência é consequência do que foi
dito antes.92 Existem também diferenças que apontam para a separação das partes.
A primeira dá preferência a versos com menos de dez sílabas, enquanto na segunda
predominam os versos com mais de dez sílabas.93 Nos vs. 6-8 encontram-se cinco
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3.3
A pesquisa sobre a autoria e origem de Fl 2,6-11
90
COLLINS, A. Y., Psalms, Philippians 2:6-11, and The Origins of Christology, p. 368.
91
BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 125-126.
92
BASEVI, C., Estudio Literario y Teológico del Himno Cristológico de la Epístola a los
Filipenses, p. 446. MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. lviii, afirma que a expressão διὸ καὶ
funciona como a peripeteia no drama grego, descrevendo o reverso do destino do herói vítima.
93
BASEVI, C., op. cit., p. 448.
94
Idem.
95
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 55.
41
96
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 61.
97
O curioso dessa observação de Lohmeyer é a ironia dela favorecer à autoria paulina (que alhures
ele nega), pois em Paulo encontramos um cristão, cuja língua nativa era semita, mas que escrevia
em grego!
98
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 46-47.
99
Ibid, p. 48.
100
Ibid., p. 44.
101
Ibid., p. 48-49.
102
Ibid., p. 49.
42
103
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 51-52.
104
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 52-54.
105
Avaliação de MARTIN, R. P., op. cit., p. 55-56. Cf. CERFAUX, L., Cristo na Teologia de
Paulo, p. 292-293.
106
CERFAUX, L., Cristo na Teologia de Paulo, p. 293. O argumento é recuperado por BLACK,
D. A., The Autorship of Philippians 2:6-11: Some Literary-Critical Observations, p. 274-275,
escrevendo 30 anos depois de Cerfaux.
107
BASEVI, C., Estudio Literario y Teológico del Himno Cristológico de la Epístola a los
Filipenses, p. 450; MARTIN, M. W.; NASH, B. A., Philippians 2:6-11 as Subversive Hymnos: A
Study in the Light of Ancient Rhetorical Theory, p. 137, nota 110. Estes últimos de forma menos
contundente que o primeiro.
108
BLACK, D. A., op. cit., p. 276.
43
que Filipenses é a carta paulina com maior grau de hapax.109 Destarte, além de
existir no texto um grupo de palavras que refletem fielmente o pensamento paulino,
são em passagens de natureza poética que se esperam a utilização de um
vocabulário próprio e não usual, consequentemente com um grau maior de
hapax.110
Também em favor da autoria paulina está a intrínseca relação entre 2,6-11 e
outras partes da carta aos Filipenses. Dois paralelos são muito importantes nesse
quesito. Primeiro a conexão entre 2,6-11 e 3,20-21, que pode ser visualizada a
seguir:111
2,6-11 3,20-21
μορφῇ; μορφὴν σύμμορφον
ὑπάρχων ὑπάρχει
σχήματι μετασχηματίσει
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ἐταπείνωσεν ταπεινώσεως
ἐπουρανίων ἐν οὐρανοῖς
κύριος Ἰησοῦς κύριον Ἰησοῦν
Χριστὸς Χριστόν
δόξαν τῆς δόξης
109
BLACK, D. A., The Autorship of Philippians 2:6-11: Some Literary-Critical Observations,
p. 274-275. De acordo com MAZZAROLO, I., Carta de Paulo aos Filipenses, p. 180-184, a
epístola como um todo possui 17 hapax em relação ao corpus paulino, e 39 em relação ao Novo
Testamento como um todo.
110
BLACK, D. A., The Autorship of Philippians 2:6-11: Some Literary-Critical Observations,
p. 276-277.
111
Ibid, p. 278.
112
CERFAUX, L., Cristo na Teologia de Paulo, p. 293.
113
FEWSTER, G. P., The Philippians ‘Christ Hymn’: Trends in Critical Scholarschip, p. 194.
44
Quanto às ideias que formam o pano de fundo do hino, tanto uma cristologia
influenciada pelas ideias do servo de YHWH não é incompatível com o pensamento
paulino,114 quanto é possível identificar a influência sobre Fl 2,6-11 da temática do
segundo Adão, como em Rm 5 e 1Co 15, textos cuja autoria paulina não é
discutida.115 Não obstante, são encontradas no hino ideias que verdadeiramente
correspondem à teologia paulina, como o tema da obediência de Jesus, a ênfase na
morte de cruz e a exaltação de Jesus como κύριος.116
Uma última reflexão a ser feita no que diz respeito à autoria de Fl 2,6-11 é
sobre o conceito de autenticidade. Conforme a argumentação de Fee, um
documento é considerado autêntico quando ele foi escrito pela pessoa a quem o
escrito é atribuído. Se Filipenses é atribuída a Paulo e ele realmente escreveu esta
carta, ela é autêntica. Se 2Pedro é atribuída a Pedro e ele não escreveu a carta, ela
não é autêntica. Quando este documento sofre interpolação de um autor posterior,
diz-se que aquela parte interpolada não é autêntica, isto é, não pertence ao escritor
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114
BLACK, D. A., The Autorship of Philippians 2:6-11: Some Literary-Critical Observations,
p. 280. No prefácio à edição de 1997 da sua obra, Martin afirma estar mais inclinado a reconhecer a
influência do Servo de YHWH de Isaías sobre Fl 2,6-11 do que na edição original da sua obra em
1965. Cf. MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. lx. Os expoentes dessa linha de interpretação são
J. Jeremias e L. Cerfaux. Cf. CERFAUX, L., Cristo na Teologia de Paulo, p. 294-297 e MARTIN,
R. P., A Hymn of Christ., p. 182-183.
115
MARTIN, R. P., op. cit., p. 58.
116
Ibid., p. 59-60.
117
FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 85-86.
118
FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 86.
45
eruditos.119 Que essa é a tendência percebe-se pela lista de eruditos que ele
apresenta favorável à autoria paulina. Dos 12 autores mencionados, apenas 2 são
anteriores a 1990.120 Parece que se está a caminho de um novo consenso. Não
obstante, mesmo entre os que defendem a autoria paulina, o pano de fundo da
cristologia desenvolvida em Fl 2,6-11 é passível de discussão, como será exposto
no item a seguir.
3.4
O pano de fundo de Fl 2,6-11
119
HELLERMANN, J. H., Vindicating God’s Servants in Philippi and in Philippians, p. 100,
nota 38.
120
Idem. Aos 12 mencionados por ele pode se acrescentar outros dois: BLACK, D. A., The
Autorship of Philippians 2:6-11: Some Literary-Critical Observations, p. 269-289, e BASEVI,
C., Estudio Literario y Teológico del Himno Cristológico de la Epístola a los Filipenses, p. 439-
472.
121
KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 87-89. Em sua ótica, o helenismo religioso diferencia-
se tanto do helenismo clássico quanto do helenismo popular.
122
Ibid., p. 119.
123
O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 193-194.
46
124
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 27-28.
125
O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 194; JEREMIAS, J., Estudos do Novo
Testamento, p. 176-178.
126
As duas principais traduções são apresentadas por MARTIN, R. P., op. cit., p. 40-41 e
FITZMYER, J. A., The Aramaic Background of Philippians 2:6-11, p.470-483.
127
Avaliação de FEWSTER, G., The Philippians ‘Christ Hymn’: Trends in Critical Scholarship,
p. 193. Segundo ele, como o aramaico do 1º século não é bem atestado, algumas palavras gregas são
traduzidas conforme o aramaico de um período posterior. Ele também afirma que contra o
empreendimento está o fato das traduções resultantes serem distintas.
128
O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 194-195.
47
uma explicação plausível foi quando e onde aconteceu essa conexão entre a
sabedoria e o justo.129
Atualmente o pano de fundo mais discutido (o que não quer dizer mais
adotado) para o hino de Fl 2,6-11 é o que olha para Gn 1,26-27 e 3,1-5,
estabelecendo o contraste entre o primeiro e o segundo Adão. De fato, a reflexão é
encontrada na teologia paulina (Rm 5,18-19 e 1Co 15,45-47). É possível identificar
três variações nesse tratamento. A primeira acredita que por trás de Fl 2,6-11 está a
especulação judaica associada a Fílon, que vê um homem celestial em Gn 1 e um
homem terreno em Gn 3. O autor do hino apresenta um redentor relacionando as
duas figuras a Jesus.130 A segunda variação foi desenvolvida por J. D. G. Dunn. Ele
afasta a ideia de um homem celestial, e de qualquer ideia de preexistência no hino.
Segundo ele, Jesus está na mesma posição de Adão, um homem que possui a glória
divina. Só que enquanto Adão a perdeu por sucumbir à tentação, Jesus por sua
obediência proporciona a sua restauração na humanidade.131 A terceira variação da
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129
O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 195-196. Ele mostra que a conexão de Fl
2,6-11 com a sabedoria judaica foi formulada por D. Georgi.
130
Esta primeira alternativa remonta a J. Héring e a O. Cullmann. Cf. O’BRIEN, P. T., The Epistle
to the Philippians, p. 196.
131
DUNN, J. D. G., Christology in the Making, p. 114-121. Para uma avaliação da posição de
Dunn quanto a esta passagem cf. O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 196. Dunn
cita com aprovação a proposta veiculada por Murphy-O’Connor. A opinião deste estudioso quanto
a este tema pode ser resumida no seguinte período: “Ele era o que Adão deveria ter sido, o modelo
inspirador do que Deus pretendia que o ser humano fosse. A pureza de Cristo dava-lhe o direito de
ser tratado como se fosse um deus, isto é, gozar da incorruptibilidade em que Adão foi criado.
Entretanto, ele não usou esse direito em proveito próprio. Pelo contrário, entregou-se às
consequências de um modo de existência inaugurado pelo Adão caído” (grifos acrescentados).
MURPHY-O’CONNOR, J. Paulo – Biografia crítica. p. 234.
132
WRIGHT, N. T., The Climax of the Covenant, p. 56-98; FOWL, S. E., Philippians, p. 114-
115.
48
3.5
A função de Fl 2,6-11 na carta (interpretação ética e soteriológica)
133
HAWTHORNE, G. F., Philippians, p. 78 e 87; O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians,
p. 196.
134
Um dos problemas da exegese de Hurtado é justamente privilegiar a primeira parte do hino em
detrimento da segunda. cf.
135
O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 196.
49
está dividia em subseções: 1,27-30; 2,1-4;136 2,6-11; e 2,12-18. É pacífico que 2,1-
4 é um trecho no qual Paulo exorta a igreja à unidade, mediante uma atitude de
humildade:
Εἴ τις οὖν παράκλησις ἐν Χριστῷ, εἴ τι παραμύθιον ἀγάπης, εἴ τις κοινωνία
πνεύματος, εἴ τις σπλάγχνα καὶ οἰκτιρμοί, πληρώσατέ μου τὴν χαρὰν ἵνα τὸ αὐτὸ
φρονῆτε, τὴν αὐτὴν ἀγάπην ἔχοντες, σύμψυχοι, τὸ ἓν φρονοῦντες, μηδὲν κατ᾽
ἐριθείαν μηδὲ κατὰ κενοδοξίαν ἀλλὰ τῇ ταπεινοφροσύνῃ ἀλλήλους ἡγούμενοι
ὑπερέχοντας ἑαυτῶν, μὴ τὰ ἑαυτῶν ἕκαστος σκοποῦντες ἀλλὰ [καὶ] τὰ ἑτέρων
ἕκαστοι (Fl 2,1-4).
136
O versículo 5 é considerado um versículo ponte, tanto ele conclui o trecho de 2,1-4, quanto
introduz 2,6-11.
137
Existem dois problemas de crítica textual nesse versículo. Alguns manuscritos inserem a
conjunção γὰρ após o pronome demonstrativo Τοῦτο e outros substituem a forma verbal φρονεῖτε
por fronei/sqw. No entanto, a evidência manuscrita é contra a inserção das duas variantes, e o texto
é inteligível como está. A inclusão de γὰρ é rapidamente discutida e desconsiderada por
OMANSON, R., As Variantes Textuais do Novo Testamento, p. 413-414. FOWL, S. E.,
Philippians, p. 89, observa que com a colocação da conjunção o verbo deveria ser lido como
indicativo (a forma é a mesma para o imperativo e o indicativo), dando a entender que os Filipenses
já estavam tendo o tipo de fro/nhsij desejado por Paulo. Isto, porém, contraria a argumentação de
2,1-4. Contra à inserção da conjunção FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p.
264, apresenta três argumentos: o texto assindético tem melhor apoio textual; a variante atesta o
desejo dos escribas de se desfazerem do assíndeto, e não há nenhuma razão plausível para se omitir
a conjunção se ela fosse original. Quanto à substituição da forma verbal, HAWTHORNE, G. F.,
Philippians, p. 104-105, argumenta em favor do paralelismo das duas orações, e opta pela forma
verbal fronei/sqw., isto é, da 2ª pessoa do plural para 3ª pessoa do singular. No entanto, FEE, G. D.,
op. cit. p.264, mostra que Hawthorne cai no mesmo erro dos escribas: usar uma variante inferior
para tornar Paulo um escritor mais ordenado e legível.
50
seguir.138 Paulo está referindo-se a tudo o que exortou à igreja em 2,1-4. Outra
questão menor é reconhecer que o sintagma ἐν ὑμῖν diz respeito ao que deve ter
lugar na comunidade cristã, com acento eclesiástico, sugerindo a tradução: “entre
vós” ao invés de “em vós”, que privilegiaria o aspecto da conduta individual.139
Também é necessário lidar em 2,5a com a tradução do verbo φρονέω. Este é um
verbo importante na literatura paulina, particularmente na carta aos Filipenses.140
Seu sentido básico é “pensar”,141 mas em Paulo seu significado é mais do que
atividade racional, envolve decisão, vontade, é a orientação da vida, os alvos que o
ser humano escolhe e o determinam em sua totalidade.142 Isso fica evidenciado no
uso do termo em Romanos 8,5: οἱ γὰρ κατὰ σάρκα ὄντες τὰ τῆς σαρκὸς φρονοῦσιν,
οἱ δὲ κατὰ πνεῦμα τὰ τοῦ πνεύματος. Uma vida κατὰ σάρκα tem um φρονέω
determinado pela σάρξ. Uma vida κατὰ πνεῦμα tem o seu φρονέω condicionado
pelo πνεῦμα. A fim de se escolher uma forma verbal que corresponda na tradução
à todas essas nuances do verbo grego propõe-se o verbo “viver”,143 ficando 2,5a
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138
Assim FOWL, S. E., Philippians, p. 90; BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p.
122; FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 266. Outra forma de entender é
ver todo o versículo 2,5 como fórmula de citação, considerando-se 2,6-11 material pré-paulino.
Assim, KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 116-117.
139
Reconhecido por FEE, G. D., op. cit., p. 266-267. Ironicamente, este argumento vai trabalhar
contra a interpretação ética adotada pelo autor, conforme a discussão abaixo.
140
Segundo PAULSEN, H., φρονέω. In: DENT, p. 1995-1998, o termo ocorre 26 vezes no Novo
Testamento, sendo 22 nas cartas paulinas incontestáveis, das quais 10 ocorrências apenas na carta
aos Filipenses. Em segundo lugar está Romanos com 9.
141
BAGD, p. 886.
142
PAULSEN, H., φρονέω. In: DENT, p. 1995-1998; GOETZMANN, J., Mente. In: DITNT, p.
1270-175. Este último afirma: “O pensar e o empenho do homem não podem ser encarados em
isolamento da orientação global da sua vida; esta última será refletida nos alvos que ele estabelece
para si”.
143
O esforço para corresponder a tudo o que o verbo significa aparece na tradução de FOWL, S. E.,
Philippians, p. 88: “Seja esse o seu padrão de pensamento, ação e sentimento…”. Uma alternativa
em uma única palavra seria “atitude” como fazem FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los
Filipenses, p. 264 e BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 121. A dificuldade é
que isso requer a inserção de termos auxiliares (Fee: “Vossa atitude deveria ser”, Bockmuehl: “Esta
é a atitude que vocês devem ter entre vocês”, grifos acrescentados), além do incômodo de se traduzir
um verbo por um substantivo.
51
literalmente, isto é, Paulo está se referindo a algo (o φρονέω) que esteve presente
no comportamento, na atitude, na vida da pessoa qualificada como Cristo Jesus.
Outra opção é suprir a lacuna verbal de 2,5b a partir da forma verbal de 2,5a.
Aqui existem variantes. De um lado estaria a hipótese de φρονέω em uma forma
passada. Quando essa escolha verbal é combinada com a interpretação literal da
expressão ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ mencionada acima, o resultado é uma tradução do tipo:
o que também pensou, agiu, viveu Jesus Cristo.144 Do outro lado está a hipótese do
φρονέω em uma forma presente, combinada com uma interpretação não literal da
expressão ἐν Χριστῷ Ἰησοῦ. Na história da pesquisa sobre esta expressão postulou-
se primeiramente por A. Deissmann que ela se refere a um sentido espacial, no qual
o cristão possui a experiência de intimidade com o Cristo. “Estar em Cristo” refere-
se a uma experiência mística.145 Essa maneira de entender foi aplicada à exegese de
Fl 2,5, ocasionando a seguinte tradução de 2,5b: “como vocês têm em comunhão
com Jesus Cristo”.146 Outro entendimento foi apresentado por K. Barth, que
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144
Como a tradução de HAWTHORNE, G. F., Philippians, p. 105: “Esta forma de pensamento
deve ser adotada por vocês, que também foi a forma de pensamento adotada por Jesus”, grifos
acrescentados.
145
GNILKA, J., Teologia del Nuevo Testamento, p. 102.
146
Segundo MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 70, essa interpretação “mística” de 2,5b foi
realizada por Michaelis e C. H. Dodd.
147
BARTH, K., Epistle to the Philippians, p. 60.
148
GNILKA, J., op. cit., p. 103.
149
SEIFRID, M. A., Em Cristo, In: DPC, p. 453.
52
cristão vive em decorrência da salvação trazida por Jesus.150 Há, portanto, uma
combinação de perspectivas na expressão ἐν Χριστῷ: soteriológica, pois ela
concentra afirmações da realização dos planos de Deus em Jesus;151 eclesiológica,
porque ela serve para descrever a comunhão iniciada no batismo entre os crentes
uns com os outros e com Jesus exaltado (estar em Cristo é estar no Corpo de Cristo,
que equivale a estar na Igreja);152 escatológica, visto que o espaço salvífico ἐν
Χριστῷ é resultado da intervenção de Deus na história, fazendo irromper o novo
éon, o tempo escatológico, e permitindo àqueles que participam desse espaço
experimentar de antemão as primícias da nova criação;153 e, finalmente, uma
perspectiva existencial, dado que ἐν Χριστῷ não designa um lugar, mas estar sob
uma influência, uma orientação de vida contrária ao antigo e ainda presente éon,
caracterizada pela direção do Espírito Santo.154 A combinação dessas perspectivas
pode ser resumida nas seguintes palavras:
Em seu sentido básico, ἐν Χριστῷ deve ser entendido de modo local-existencial:
por meio do batismo, os crentes entram no espaço do Cristo pneumático, e
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150
SEIFRID, M. A., Em Cristo, In: DPC, p. 456.
151
KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 117: “a fórmula técnica ‘Em Cristo’ remete sem
dúvida de nenhuma classe ao acontecimento da salvação, tem um caráter soteriológico”.
152
MARTIN, R. P., Hymn of Christ, p. 71. Segundo ele, essa percepção remonta a R. Bultmann.
Da mesma forma GNILKA, J., Teologia del Nuevo Testamento, p. 105.
153
Notado por RIDDERBOS, H., Teologia do Apóstolo Paulo, p. 62, na comparação com a
expressão “em Adão”. Da mesma forma, GNILKA, J., op. cit., p. 106, afirma que “Em Cristo – No
Senhor... É o espaço da salvação escatológica, a fronteira entre o mundo antigo e o novo”.
154
SEIFRID, M. A., Em Cristo, In: DPC, p. 453, que nota que o “estar em Cristo” leva ao “estar no
Espírito”.
155
SCHNELLE, U., Paulo: Vida e Pensamento, p. 618.
53
Staab e A. Erhardt.156 A grande pergunta que o seu artigo quer responder é a respeito
do papel que o hino de 2,6-11 desempenha na parênese paulina em Filipenses.
Nessa direção ele vai criticar o que ele chamou de interpretação ética. Essa
interpretação, que retrocede ao trabalho primordial de Lohmeyer em 1928 e persiste
até os dias de hoje, entende que 2,6-11 é onde Paulo apresenta aos Filipenses o
exemplo máximo de todas as virtudes que ele recomenda à igreja. Esta
interpretação é justificada pelas traduções de 2,5b mencionadas acima, que suprem
a lacuna verbal da oração pela inclusão de ἦν ou de alguma forma passada do verbo
φρονέω. Os argumentos apresentados em favor da interpretação ética são: de fato
Paulo utiliza a vida de Jesus para tirar consequências para o comportamento cristão.
É o que ele faz em Rm 15,2-3 e 2Co 8,9, e o argumento encaixaria bem no contexto
parenético de 2,1-4.157 Em contrapartida, o apóstolo não esperaria que seus leitores
tivessem uma imitação “isomórfica” de Cristo. Nenhum ser humano pode realmente
imitar o que está descrito em Fl 2,6-11, a não ser de forma análoga, sobretudo no
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que tange à renúncia para servir os outros.158 Também é possível construir uma
analogia entre a exaltação de Jesus descrita em 2,9-11 com a esperança cristã de
ετασχηματίσει τὸ σῶμα τῆς ταπεινώσεως ἡμῶν σύμμορφον τῷ σώματι τῆς δόξης
αὐτου apresentada em 3,21.159 Por fim, mas não menos importante, esta
interpretação parece ser preferida por alguns estudiosos por não ter necessidade de
supor um estágio pré-paulino para Fl 2,6-11, um tempo no qual o texto faria parte
do culto cristão primitivo, onde se cantava a salvação trazida Deus em Jesus.160
Acredita-se que a chamada “interpretação ética” de 2,6-11 repousa apenas no
contexto literário da carta.161
Não obstante, apesar de cada um destes argumentos serem verdadeiros,
quando totalizados e colocados na balança ao lado da posição contrária, o peso é
156
Escrevendo em 1998, Martin afirma que os dois marcos na história da exegese de Fl 2,6-11 são
a obra de Lohmeyer de 1928 e o artigo de Käsemann de 1950. MARTIN, R. P., Carmen Christi
Revisited, p. 1.
157
Reconhecido, entre outros, por BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 122.
158
FOWL, S. E., Philippians, p. 106-107.
159
Ibid., p. 107.
160
Crítica de BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 122.
161
A interpretação ética da passagem é mantida, entre outros, por Lohmeyer, Cerfaux, Hurtado,
Susan Eastman, Bockmuehl, Fee, Hawthorne. Cf. MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 68-74;
CERFAUX, L., Cristo na Teologia de Paulo, p. 292; BOCKMUEHL, M. op. cit., p. 122-123; FEE,
G. D., Philippians 2:5-11: Hymn or Exalted Pauline Prose?, p. 37-39; FEE, G. D., Comentario
de la Epístola a los Filipenses, p. 262-263; HAWTHORNE, G., Philippians, p. 104-105;
FEWSTER, G. P., The Philippians ‘Christ Hymn’: Trends in Critical Scholarschip, p. 198-200.
54
Santo, que se submeteram a Jesus como κύριος, rejeitando todos os outros. O que
o apóstolo está dizendo é que os cristãos de Filipos devem viver em conformidade
com este espaço espiritual, escatológico, cristológico onde foram inseridos, como é
adequado aos que fazem parte da Igreja. A diferença é que a parênese está mais
para a obediência a Jesus do que para imitação a Jesus, como se constata pelo
contexto imediato posterior, o versículo 2,12: Ωστε, ἀγαπητοί μου, καθὼς πάντοτε
ὑπηκούσατε, μὴ ὡς ἐν τῇ παρουσίᾳ μου μόνον ἀλλὰ νῦν πολλῷ μᾶλλον ἐν τῇ
ἀπουσίᾳ μου, μετὰ φόβου καὶ τρόμου τὴν ἑαυτῶν σωτηρίαν κατεργάζεσθε· Não
obstante, não se está negando absolutamente que Cristo seja um modelo para os
cristãos,162 mas que o papel de Fl 2,6-11 na epístola não é apresentar um modelo
ético e sim descrever o acontecimento escatológico da salvação, ou melhor dizendo,
apresentar uma ética fundamentada na soteriologia.163
162
Nas palavras de Barth: “Com isto, sua conduta [a de Jesus descrita em 2,6-11] é a razão para
depois ser também a norma e o critério para o cristão”. BARTH, G., A carta aos Filipenses, p. 44.
Um pouco mais hesitante afirma BYRNE, B., A Carta aos Filipenses, In: NCBSJ, p. 449: “Embora
um aspecto de imitação ética não seja necessariamente excluído, Paulo mais provavelmente cita o
hino para exortar os Filipenses a viver a atitude altruísta (phronein) que deveria brotar de dentro
deles por estarem ‘em Cristo’”.
163
SCHNELLE, U., Paulo: Vida e Pensamento, p. 472, tenta oferecer uma solução intermediária
através das categorias “imagem primordial” e “imagem modelar”. Ele afirma: “Como imagem
primordial, Jesus Cristo possibilita a nova existência dos cristãos, como imagem modelar, ele os
marca por sua própria conduta” (grifos dele). Faltou, porém, um detalhamento maior de como isso
funciona na interpretação do hino e na relação dele com o contexto.
55
Outra crítica levantada por Käsemann contra a interpretação ética é que ela
tende a valorizar mais a primeira parte do hino, isto é, os versículos 6-8, de modo
que os versículos 9-11 não seriam mais que um excurso, “necessários para nada”.164
Isso porque se o objetivo do hino é apenas apresentar o exemplo de Jesus, somente
nos versículos 6-8 trata-se da atitude de Jesus,165 pois em 9-11 há uma mudança de
sujeito. Só que a segunda parte da passagem não é um apêndice, um suplemento à
primeira, ela é parte integrante e necessária.166 Na verdade, o hino é um todo, tendo
o seu clímax em 9-11 por conta do seu caráter escatológico e narrativo, como se
verá a seguir.167
Nesta perspectiva Fl 2,6-11 descreve um evento, na verdade, o evento
escatológico por excelência que tem efeitos sobre todo o universo: “É o ato de
salvação o que se celebra... se apresenta aqui o acontecimento da salvação em todas
as suas características”.168 O hino é marcado pela visão escatológica do cristianismo
primitivo, que em relação à apocalíptica judaica distingue-se pela afirmação do
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164
Observação extrema de Käsemann contra a intepretação ética, sobretudo no formato que ela
apareceu nos livros de E. Lohmeyer e M. Dibelius. KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 80.
165
KREITZER, L., “When He at Last Is First”: Philippians 2:9-11, p. 113: “É difícil incorporar a
estrofe final do hino cristológico dentro de uma interpretação da passagem que foca somente o
exemplo ético de Jesus”.
166
KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 117. Segundo MARTIN, R. P., Filipenses, p. 106, as
interpretações que divergem de Käsemann entendem os versículos 9-11 como digressão, dada a
dificuldade de se aplicar ao tema da imitação de Cristo.
167
Isso não significa que inexistam diferenças entre as duas seções do hino. Entre outras, além da
mudança de sujeito do Filho para o Pai, enquanto a primeira parte descreve a “descida” do Filho, a
segunda parte descreve a sua “subida”. Cf. MAZZAROLO, I., Carta aos Filipenses, p. 86. O que
se está propondo, porém, é que a relação entre essas partes não é linear, e sim progressiva, de forma
que 2,9-11 é a continuidade e o clímax de 2,6-8.
168
KÄSEMANN, E., op. cit., p. 94.
169
KÄSEMANN, E., op. cit., p. 118-119. Na página 111, referindo-se à exaltação de Jesus em 2,9-
11, ele afirma: “Ainda que não se pense aqui em um ato no final dos tempos, o acontecimento
descrito é sem dúvida escatológico enquanto tal, da mesma maneira que a encarnação, a cruz
[tratadas em 6-8] e a ressurreição que são consideradas sempre no Novo Testamento como
acontecimentos escatológicos. Segundo a concepção neotestamentária, o tempo do fim começa
precisamente no que se realiza com Cristo e em Cristo”. Segundo KREITZER, L. J., “When He at
Last Is First”: Philippians 2:9-11, p. 113, a desconsideração do contexto escatológico é a grande
negligência na intepretação de Fl 2,6-11, especialmente responsável pela omissão do papel dos
versículos 2,9-11.
56
uma “teologia da cruz”. O que foi exaltado é aquele se encarnou, se humilhou e foi
obediente até a morte.170
Nesse sentido, a questão por trás do hino não é responder à questão
dogmática sobre o relacionamento entre o Pai e o Filho,171 ou sobre as duas
naturezas, nem oferecer um padrão comportamental. O seu objetivo é narrar o
evento histórico da salvação, em um colorido escatológico, culminando no atual
senhorio de Cristo sobre todo o universo. Em favor desta interpretação está a
observação de Martin e Nash que, considerando Fl 2,6-11 um hino segundo os
critérios da retórica helenista, afirmam que nessa perspectiva o hino
necessariamente apresenta uma sequência cronológica.172 Com efeito, isso quer
dizer que o texto não é uma peça dogmática, mas uma narrativa, apresentando uma
sucessão de fases: um início, um meio e um clímax, um auge. Esse auge está
justamente no que acontece após a morte de Cruz, que representa o status presente
daquele cuja história é narrada. Falando sobre Fl 2,6-11 Becker comenta:
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Para reconhecer isso, é preciso ter claro que Cristo sempre é descrito mediante uma
história. Ela é o evento soteriológico para todos os crentes. Ela faz de Cristo a
figura escatológica central da salvação. O seu destino como um todo aconteceu
‘por nós’. Exatamente isso, não sua humildade subjetiva, é o que se descreve com
as afirmações sobre o sentido fundamental e objetivo desse evento e desse
salvador... Não é por meio da imitação que os cristãos estabelecem uma relação
com o modelo Cristo. Sua relação como Cristo não se baseia na ação imitativa, mas
sim em uma realidade: viver no novo estado de salvação.173
170
KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 119.
171
KÄSEMANN, E., op. cit., p. 94: “Não é uma relação o que se descreve aqui, e sim um
acontecimento, um drama...”. No mesmo local ele informa que tal reconhecimento ele tirou de K.
Barth.
172
MARTIN, M. W.; NASH, B. A., Philippians 2:6-11 as Subversive Hymnos: A Study in the
Light of Ancient Rhetorical Theory, p. 135.
173
BECKER, J., Apóstolo Paulo: Vida, Obra e Teologia, p. 450-451.
174
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. xv, xviii, utiliza o termo alemão mitte.
175
Ibid., p. xvi.
57
epístola, sem a qual faltaria na carta uma seção de exposição teológica, em torno da
qual gravitariam as seções de exortações, repreensão aos adversários, gratidão e
apresentação da situação e planos do apóstolo.
Outro dado em favor de 9-11 como clímax do hino é a presença da fórmula
“Jesus Cristo é Senhor”. A expressão é reconhecida como a “confissão de fé por
excelência, que está na origem de todas as demais e a todas abarca”.176 O texto tanto
mostra quem é esse Senhor a ser confessado (é o que se tornou homem, se
humilhou, morreu na cruz, foi exaltado por Deus, e recebeu dele o nome sobre
todos), quanto, em uma suposta utilização litúrgica como hino antes da inserção na
carta, desafiava os ouvintes a reverenciar e confessá-lo como Senhor. No contexto
literário em que está, reforça a ideia de que estar “em Cristo” é simultaneamente
estar debaixo do senhorio de Jesus.
Por outro lado, considerar Fl 2,9-11 o clímax do hino não significa desprezar
2,6-8 para a interpretação da passagem como um todo. Na verdade, não se entende
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2,9-11 sem 2,6-8, porque ambas as seções fazem parte de uma única trama
narrativa, literariamente formatada como um hino em duas partes, e teologicamente
descrevendo o evento histórico-salvífico fundamental. O que se está afirmando é
que o auge dessa trama está em 2,9-11 e que essa maneira de entender o conjunto
de Fl 2,6-11 e o seu papel no contexto da carta aos Filipenses é mais bem explicado
pela chamada interpretação soteriológica.
Por tudo isso, a interpretação soteriológica proposta por Käsemann deve ser
preferida e adotada nesta dissertação,177 por apresentar uma argumentação coerente
para o hino como um todo fazendo jus às suas duas partes; explicar de maneira
adequada a relação do hino com o versículo 2,5, sobretudo a força da expressão ἐν
Χριστῷ, e não desconsiderar o contexto parenético da epístola, mas tirar a questão
ética do viés da imitação (como proposto pela chamada “interpretação ética”) para
o contexto da participação ἐν Χριστῷ e da submissão ao senhorio de Jesus.
E dada a importância do versículo 2,5 para a compreensão de 2,6-11, diante
do que foi exposto acima, e somando-se ao paralelismo existente entre as
176
CULMANN, O., Cristologia do Novo Testamento, p. 284, embora aqui a fórmula esteja em
uma versão aumentada. Não apenas “Jesus é Senhor”, mas “Jesus Cristo é Senhor”.
177
Esta interpretação é adotada, entre outros, por MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 68-74;
MARTIN, R. P., Filipenses, p. 104-107; BARTH, G., A carta aos Filipenses, p. 43-45; BECKER,
J., Apóstolo Paulo: Vida, Obra e Teologia, p. 449-451; KREITZER, L. J., “When He at Last Is
First”: Philippians 2:9-11, p. 111-118. Uma posição intermediária é defendida por FOWL, S. E.,
Philippians, p. 1006-108.
58
178
FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 267.
4
A exaltação de Jesus e o seu novo nome
4.1
Introdução ao capítulo
até a morte. Na segunda parte, Deus o exalta, dá ele o nome sobre todo nome,
diante do nome dele todos os joelhos se dobrarão e toda língua confessará que ele
é o Senhor. A passagem como um todo é cristocêntrica, sem, contudo, abrir mão
do monoteísmo.182
Pela perspectiva da história das formas, é possível que toda a seção de 2,9-
11 esteja emoldurada segundo os antigos cerimoniais de entronização orientais
(especialmente egípcios), presentes em alguns textos do Novo Testamento. Nestes
rituais a entronização do rei divino seguia três partes: exaltação, a apresentação
diante dos deuses e a entronização. Em Fl 2,9-11 esta estrutura foi adaptada da
seguinte forma: exaltação (διὸ καὶ ὁ θεὸς ὑπερύψωσε αὐτὸν); proclamação do
179
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 230.
180
BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 141. HELLERMAN, J. H.,
Philippians, p. 119, também observa que o objeto direto αὐτὸν é enfático aqui.
181
HELLERMAN, J. H., Philippians, p. 118.
182
Existem, no entanto, diferenças entre Fl 2,6-8 e 2,9-11. Além do sujeito dos verbos, nota-se o
contraste na utilização dos particípios: são cinco na primeira parte e nenhum na segunda. Há
também uma mudança no pano de fundo lexical, porém as opiniões são diversas. Enquanto
BASEVI, C., Estudio literario y teológico del himno cristológico de la epístola a los Filipenses
(Phil 2,6-11), p. 447, defende que a terminologia de 2,6-8 possui colorido semítico e 2,9-11 um
vocabulário caracteristicamente helenista, SCHNELLE, U., Paulo: Vida e Pensamento, p. 473,
argumenta exatamente o contrário.
60
novo nome (καὶ ἐχαρίσατο αὐτῷ τὸ ὄνομα τὸ ὑπὲρ πᾶν ὄνομα) e homenagem ao
entronizado por gestos e confissão (os versículos 10-11).183
Do ponto de vista da retórica grega, como notado no capítulo anterior,
Martin e Nash entendem que o segmento διὸ καὶ ὁ θεὸς αὐτὸν ὑπερύψωσεν faz
parte do tópico “Eventos Póstumos” e todo o restante do versículo 9, junto com os
versos 10 e 11 estariam incluídos no tópico “Nomes e Títulos”. Todavia, a
expressão τὸ ὑπὲρ πᾶν ὄνομα funcionaria como uma syncrisis, isto é, um tópico
adicional que ampliaria o entendimento de outro tópico através de comparação.184
Sintaticamente Fl 2,9-11 constitui uma única sentença, que pode ser
dividida em duas orações. διὸ καὶ ὁ θεὸς αὐτὸν ὑπερύψωσεν καὶ ἐχαρίσατο αὐτῷ
τὸ ὄνομα τὸ ὑπὲρ πᾶν ὄνομα seria o período principal porque traz os dois verbos
no indicativo (ὑπερύψωσεν e ἐχαρίσατο) e compreende todo o verso 9. Estes dois
verbos estão conectados por um καὶ que pode ser entendido como epexegético,
fazendo a frase toda ser uma hendíadis, ou seja, os dois verbos não apontam para
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183
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 242-243; GOPPELT, L., Teologia do Novo
Testamento, p. 331. Este último afirma que o mesmo modelo é encontrado em 1Tm 3,6; Hb 1,3-
13 e Ap 5,6-14.
184
MARTIN, M. W.; NASH, B. A., Philippians 2:6-11 as Subversive Hymnos: A Study in the
Light of Ancient Rhetorical Theory, p. 112-113.
185
FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 289. Segundo ele, na hendíadis o
segundo verbo desenvolve ou completa o significado do primeiro. A mesma opinião tem
HELLERMAN, J. H., Philippians, p. 119.
186
BASEVI, C., Estudio literario y teológico del himno cristológico de la epístola a los
Filipenses (Phil 2,6-11), p. 446.
187
Entre outros, esta perspectiva sintática é apresentada em SILVA, Moisés., Philippians. p. 108.
61
sugerir que o papel do καὶ seja intensificar ou realçar a conjunção, e que o uso
paulino pode estar influenciado pelo texto de Is 53,12 na LXX (διὰ τοῦτο).191 Isto
encaminha uma tradução mais simples, com apenas um “e por isso”.192
4.2
O responsável pela exaltação de Jesus
188
FEE, G., Christology. p. 395.
189
De acordo com BAGD, p.198.
190
Conforme BALZ, H.; SCHNEIDER, G., διό. In: DENT, v. I, p. 1018. HELLERMAN, J. H.,
Philippians, 118, percebe uma ironia aqui, pois do ponto de vista da cultura romana predominante
em Filipos, a exaltação de alguém qualificado na primeira parte como δοῦλος e que terminou sua
vida crucificado, seria tudo, menos uma coisa óbvia.
191
Isto foi primeiro afirmado por CERFAUX, L., Cristo na teologia de Paulo, p.295 e 304.
Cerfaux acredita que por trás de Fl 2,6-11 existe uma grande influência dos cânticos de servo em
Isaías.
192
SILVA, Moisés., Philippians, p. 115.
62
193
GUTHRIE, D.; MARTIN, R. P., Deus. In: DPL, p. 379-397.
194
HELLERMAN, J. H., Philippians. p. 119.
63
homem honrado, receber prestígio de quem ocupasse a mais alta posição social.195
Essa lógica é elevada à última potência em Fl 2,9, mostrando que Jesus foi
exaltado pelo ser mais honrado e exaltado do universo: Deus. A autoridade do
doador garante a eficácia da honra recebida.
4.3
A exaltação de Jesus e o sentido do verbo ὑπερυψόω
O verbo ὑπερυψόω pode ser traduzido d forma literal como elevar alguém
ao lugar mais alto.196O termo é um hapax no Novo Testamento, e na literatura
cristã primitiva foi utilizada uma única vez na 1ª carta de Clemente 14,5. Em
contrapartida, o termo foi utilizado 50 vezes na LXX.197BAGD indica que Fl 2,9
parece ecoar Sl 96,9 LXX: “Pois tu és Senhor, o Altíssimo sobre a Terra,
grandemente exaltado acima de todos os deuses”.198 Há, dessa forma, uma
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4.3.1
A exaltação no Antigo Oriente em geral e no judaísmo em particular
195
HELLERMAN, J. H., Philippians. p. 119.
196
BAGD, p. 842.
197
Segundo a contagem de MÜLLER, D., ὑψόω. In: DITNT, v.1, p. 83-87.
198
BAGD, p. 842. O versículo corresponde ao Sl 97,9 da Bíblia Hebraica Sl 97,9. O hebraico traz
literalmente “Pois tu és YHWH, o Altíssimo sobre toda a Terra, exaltado sobre todos os deuses”.
64
Deus muda suas circunstâncias, exaltado a uma realidade melhor (Sl 37, 34; 89,17
e 112,9). Em relação a Deus, ele é exaltado nos cultos e demais cerimônias
religiosas através da adoração do seu povo (Sl 34,33). E à medida que começa a
surgir uma esperança escatológica dentro do Antigo Testamento, também vai se
desenvolvendo uma expectativa de exaltação do povo de Deus. É nesse contexto
que estão inseridos os cânticos de servo em Isaías, um dos possíveis panos de
fundo para a narrativa da exaltação de Jesus em Fl 2,9-11. Entre outros, L.
Cerfaux acredita que todo o hino de Fl 2,6-11 está sob a influência desta tradição
específica. Dessa forma, lá é prometido que o servo receberá na exaltação as
multidões (Is 53,12), aqui seu triunfo estende-se ao cosmos. Em Isaías (LXX) a
exaltação é descrita com o verbo ὑψόω, em Filipenses com o verbo ὑπερυψόω.200
E além de Is 52,13-53,12, existe em Fl 2,9-11 a alusão ao trecho de Is 45,21-23,
como será avaliado adiante no trabalho.
De fato, o Novo Testamento interpreta o ﬠֶ בֶ דdo Dêutero-Isaías como uma
figura messiânica que tem o seu cumprimento em Jesus (At 8,26-40). Contudo, no
contexto de Isaías tanto é possível que o termo faça referência a um indivíduo,
199
Para todo este parágrafo cf. MÜLLER, D., ὑψόω. In: DITNT, v. 1, p. 83-87.
200
CERFAUX, L., Cristo na teologia de Paulo, p. 304-306. Para ele a mudança de verbo diz
respeito à intenção de Paulo de acentuar a exaltação de Cristo sobre as potestades celestes.
65
quanto que ele esteja designando o povo de Israel como um todo.201 E essas
alternativas não são necessariamente excludentes, pois é provável que em algumas
passagens exista uma distinção entre o servo e Israel (Is 49,1-9; 42,1-7; 50,4-10),
e em outras (Is 54,17; 56,6; 63,17; 65,8-9) uma identificação entre ambos.202 O
judaísmo, por sua vez, interpretava o ﬠֶ בֶ דcomo uma referência ao povo de
Israel.203 Tudo isso vai ser importante para a exegese proposta por N. T. Wright
para Fl 2,6-11. Na visão dele, por trás dessa passagem está a expectativa da
exaltação de Israel a uma posição de proeminência por conta da sua obediência,
algo que se cumpriu na exaltação de Jesus. Ele chama esse raciocínio de
“cristologia israelita”,204 uma variação da mais conhecida cristologia adâmica. O
fundamento para essa exegese seriam os ecos intertextuais entre Fl 2,6-11 e Gn
1,26-28; Sl 8,4-7; Dn 7,14 e, acima de tudo, Is 45,23.
Também a literatura apocalíptica judaica testemunha essa expectativa
escatológica, sendo a exaltação parte da esperança humana. Há tanto uma
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perspectiva futura, como algo que será consumado no fim dos tempos, quanto
espacial, com a ideia de ser exaltado aos mais altos céus (particularmente na
tradição de Enoque). Seja como for, e a despeito de ser possível uma delimitação
precisa das influências veterotestamentárias sobre Fl 2,9-11, é certo que esse texto
deve ser lido e interpretado a partir das expectativas israelitas de uma exaltação
escatológica, que o cristianismo primitivo entendeu estarem cumpridas na
exaltação de Jesus.
201
KAISER, W. C., ﬠָבַ ד. In: DITAT, p. 1067. CARPENTER, E., עבד. In: NDITEAT, v. III, p.
308.
202
KAISER, W. C., ﬠָבַ ד. In: DITAT, p. 1067.
203
CARPENTER, E., עבד. In: NDITEAT, v. III, p. 310.
204
Para Wright, a cristologia a partir de Adão e a cristologia a partir do servo sofredor de Isaías
não são contraditórias. Ambas são cristologias baseadas em Israel. Como último Adão Jesus
assumiu o papel que Israel deveria ter desempenhado, segundo o Antigo Testamento. Ainda
segundo Wright, Paulo não chegou a essa conclusão porque havia na fé judaica pré-cristã a
expectativa da vinda de um Messias escatológico a partir de Isaías 53. Pelo contrário, foram os
eventos da cruz que fizeram ele repensar o clímax do plano salvífico de Deus. WRIGHT, N. T.,
The Climax of the Covenant, p. 60-61.
66
4.3.2
A exaltação no Novo Testamento
205
LÜDEMANN, G., ὑψόω. In: DENT, v. II, p. 1910-1911.
206
Ibid., p. 1911-1912. De acordo com MAZZAROLO, I., Carta de Paulo aos Filipenses, p. 112,
a exaltação de Jesus fazia parte do “‘kerygma’ apostólico conservado nos Atos dos Apóstolos”.
207
MÜLLER, D., ὑψόω. In: DITNT, v. I, p. 83-87.
208
BRUCE, F. F., Filipenses, p. 88.
67
4.3.3
A exaltação de Jesus na literatura paulina
4.3.3.1
Linhas gerais da exaltação de Jesus na literatura paulina
214
“Temos visto a dupla significação de Maranata: ‘Vem a nós, que estamos reunidos em teu
nome! e ‘Vem definitivamente’ [...] A ceia evoca, com efeito, retrospectivamente, a última
refeição de Jesus antes de sua morte e as da Páscoa onde o ressuscitado apareceu; e, por outro
lado, ela prefigura o banquete messiânico de Cristo e dos seus, reunidos no Reino de Deus”,
CULMMANN, O., Cristo e o Tempo, p. 199.
215
Entre outros, BROWN, R., Introduccion a la cristologia del Nuevo Testamento, p. 121-158;
e SCHNACKENBURG, R., Cristologia do Novo Testamento, p. 24-38.
216
CULMANN, O., Cristologia do Novo Testamento, p. 272.
217
MAILE, J. F., Exaltação e Entronização, In: DPC, p. 522.
69
não quer dizer que Paulo imaginasse o Cristo exaltado dissociado do Jesus
histórico, como pensaram Bultmann e outros. Para Paulo, o exaltado não era
ninguém diferente daquele Jesus que foi crucificado em Jerusalém e ressuscitou
três dias depois. Nessa perspectiva, o hino de Fl 2,6-11 ocupa papel importante,
pois como expressão de uma cristologia paulina autêntica (articulada de forma
original por ele, ou aproveitada de tradição litúrgica já existente) ele revela que
este que agora está exaltado, é Senhor, e deve ser reverenciado e confessado não é
outro senão aquele que se encarnou completamente, assumindo a forma humana, e
humilhou-se como servo e morreu na cruz como ápice da sua obediência ao Pai.218
Essa cristologia da exaltação articulada por Paulo segue e desenvolve
linhas que já existiam no cristianismo anterior a ele, como a leitura cristológica do
Sl 110,1, a profissão de fé de Jesus como κύριος e os trechos de cunho litúrgico
mais desenvolvidos como Rm 1,3-4; 1Co 15,3-8; Cl 1,15-20; 1Tm 3,16. A partir
dessa base cristológica tradicional, somada a sua matriz de pensamento judaica e a
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simples voltar à vida, é uma nova existência, gloriosa, não mais sujeita às
fraquezas da vida humana e aos poderes malignos que ainda atuam neste universo.
Quanto à ascensão, Paulo não a menciona de maneira explícita, o que não quer
dizer que ele não conhecesse nada a respeito. Em alguma medida, Paulo
pressupõe uma transição entre o ministério terreno de Jesus (que vai até a cruz e
se desenvolve na Terra) e o ministério exaltado (que começa na ressurreição, mas
vai se desenvolver no céu), mas parece que ele não descreve essa transição como
ascensão, sendo mesmo possível que ele não conhecesse essa tradição.225 Não
obstante, o Jesus ressurreto vai ser entronizado. Paulo descreve esta realidade por
intermédio da metáfora do “estar sentado à direita de Deus”, e ter os inimigos
debaixo dos pés, ambas tiradas do Sl 110,1 (talvez em combinação com o Sl 8,6).
Cinco vezes ele usa explicitamente esse versículo: Rm 8,34; 1Cor 15,25; Ef
1,20.22; Cl 3,1.226 E é bastante possível que por trás de Fl 2,9-11 também esteja
presente uma reflexão cristológica que parte do Sl 110,1. A ideia é que Cristo está
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225
Diferente do que defende MAILE, J. F., Exaltação e Entronização, In: DPC, p. 523. Lohfink,
citado por Maile, argumenta que Paulo não conhecia a estrutura lucana de ressurreição, quarenta
dias e ascensão.
226
Caso se desconsidere Efésios e Colossenses como cartas autênticas, então temos duas
ocorrências explícitas.
227
REID, D. G., Triunfo, In: DPC, p. 1208-1209.
71
triunfo contra todos aqueles que se levantaram contra o povo da aliança. É a partir
deste pano de fundo veterotestametário que Paulo vai compreender a exaltação de
Jesus Cristo, que terá assim uma orientação tanto monoteísta quanto escatológica,
isto é, a exaltação de Jesus é vista como a realização do triunfo de YHWH sobre
os inimigos, cumprindo a esperança judaica da intervenção divina no fim dos
tempos. É por isso que em Fl 2,9 o sujeito é explicitamente mencionado, ao
contrário da primeira parte 2,6-8, enfatizando que a exaltação de Jesus é o
cumprimento do plano escatológico de Deus.
4.3.3.2
A exaltação de Jesus como evento escatológico
228
É melhor utilizar o plural “estruturas”, como H. Ridderboss, do que entrar na discussão que não
alcança nenhum consenso sobre qual seria a “estrutura” fundamental para o pensamento paulino.
Segundo Ridderboss, essas estruturas seriam a revelação do mistério na plenitude do tempo; a
relação entre escatologia e cristologia; Cristo como o primogênito dos mortos e último Adão;
“estar em Cristo” (o velho e o novo homem); a carne e o Espírito; Cristo como imagem de Deus;
Cristo como primogênito da criação; Cristo como exaltado. RIDDERBOS, H., A teologia do
apóstolo Paulo, p. 47-99.
229
KREITZER, L., Escatologia, In: DPC, p. 478-479.
230
KREITZER, L., Escatologia, In: DPC, p. 464.
72
231
KÄSEMANN, E, Ensayos Exegeticos, p. 101.
232
Entre outros, GUTHRIE, D., Teologia do Novo Testamento. p. 354 e MARTIN, R. P., A
Hymn of Christ, p. 239, afirmam que o verbo ὑπερύψωσεν abrange tanto a ressurreição, quanto a
ascensão. Para Martin um paralelo seria o texto de 1Pe 3,18-20, onde a expressão ζῳοποιηθεὶς δὲ
πνεύματι expressaria toda a realidade do ministério pós-ressurreição de Jesus. Em outra direção,
LÜDEMANN, G., ὑψόω. In: DENT, v. II, p. 1912, afirma que no Novo Testamento a exaltação
não foi identificada com a ressurreição, ainda que isso houvesse acontecido em tempos primitivos.
233
GOPPELT, L., Teologia do Novo Testamento, p. 331-332.
234
BAUCKHAM, R. J., The Worsphip of Jesus in Philippians 2:9-11, p. 132-133.
235
BAUCKHAM, R. J., The Worsphip of Jesus in Philippians 2:9-11, p. 133. Segundo ele, Isaías
40-66 foi fundamento escriturístico para os primitivos cristãos compreenderem o significado dos
eventos relacionados a Jesus e ao seu futuro. É uma influência que perpassa todos os escritos do
Novo Testamento. Contudo, ele chama atenção para o fato que eles não liam as assim chamadas
passagens-servo isoladas dos temas da salvação escatológica e do monoteísmo escatológico que
dominam aqueles capítulos.
73
‘mítico’”.237 Se na exegese atual “mito” como palavra chave para entender o texto
não goza da mesma popularidade que no passado, o mesmo não se pode dizer a
respeito da palavra chave “ético”.
Destarte, no pensamento paulino essa linha escatológica que se desenvolve
a partir do Antigo Testamento vai culminar em Cristo, através de quem Deus
triunfa sobre os seus inimigos. Paulo vai descrever esse triunfo de Deus em Cristo
através dos eventos da morte e ressurreição de Jesus (o ponto de partida) e da
parusia (o ponto de culminância). Nesse intervalo de tempo, Cristo está no céu
exercendo seu domínio sobre seus adversários e guiando seu povo aqui na Terra
que continua lutando contra as forças hostis, ainda que gozando os benefícios e as
vantagens da vitória de Cristo na cruz e na expectativa da consumação na
parusia.238 A exaltação de Cristo efetua uma espécie de troca de soberania no
universo, um universo que até então estava em confronto com poderes que
tentavam escravizá-lo.239
236
VOUGA, F., Teologia del Nuevo Testamento, p. 253.
237
KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 101-102. Esta observação é de certa forma irônica,
pois o próprio Käsemann entende que por trás do hino está o mito do redentor cósmico, e que esse
pano de fundo mitológico é fundamental para o entendimento do hino e rejeitar o modelo de
interpretação ético.
238
REID, D. G., Triunfo, In: DPC, p. 1208-1209.
239
KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 119.
74
240
REID, D. G., Triunfo, In: DPC, p. 1209.
241
REID, D. G., Triunfo, In: DPC, p. 1211.
242
Ibid., p. 1210.
75
4.3.4
A exaltação de Jesus em relação a sua preexistência
com sentido superlativo. Além disso, o uso aqui teria mais a ver com o estilo do
autor do que com um significado superior ao uso do verbo simples (ὑψόω).244
Todavia, ainda que a tradição dos cânticos de servo tenha influenciado a
elaboração do hino cristológico, não há como provar que justo o texto de Is 52,13
esteja por trás de Fl 2,9. Ademais, o verbo que Paulo usa é diferente do utilizado
pela LXX em Is 52,13. De fato, seria de se esperar que Paulo usasse o verbo mais
comum ὑψόω, pois além de prover um paralelo perfeito com o texto de Isaías, já
era utilizado no cristianismo primitivo para descrever a exaltação de Jesus.245 Ele,
contudo, escolheu ὑπερυψόω.246 Quanto à preferência paulina por verbos
compostos, é difícil de imaginar que em uma passagem com palavras tão
selecionadas, formando um delicado e criativo equilíbrio teológico, Paulo
escolhesse descrever a exaltação de Jesus com um termo que nunca usou em outro
lugar apenas por uma questão de “estilo literário”. E quanto à comparação com os
243
Enquanto proposta foi adotada na clássica exegese da passagem feita por E. Lohmeyer.
244
Entre os que adotam a posição superlativa estão O’Brien, P. T., The Epistle to the Philippians,
p. 235-236.
245
Assim em At 2,33 e 5,31, textos reconhecidos como tradições primitivas utilizadas por Lucas,
tradições que Paulo deve ter conhecido. ὑψόω também é utilizado pelo quarto evangelho para
descrever a exaltação de Jesus (3,14; 8,28 e 12,32), mas o texto é posterior a Paulo.
246
Como nota MAZZAROLO, I., Carta de Paulo aos Filipenses, p. 83: “não obstante tenha
havido um texto como inspiração [do hino], a terminologia e o estilo são uma construção nova. Por
outro lado, é difícil sustentar a tese de CERFAUX, L, Cristo na teologia de Paulo, p. 305, para
quem a mudança do verbo foi porque Paulo queria estender a exaltação de Jesus para além da
humanidade, a fim de incluir o seu senhorio sobre as potestades.
76
outros compostos verbais que fazem uso da mesma preposição, ela é instrutiva,
mas não determinante.247 Nada impede que Paulo, que está usando um hapax
legomena, utilize este composto verbal de uma forma específica, por conta do seu
contexto.248 Dessa forma, o fato exegético é que o verbo ὑπερυψόω é usado no
corpus paulino e no Novo Testamento de maneira exclusiva dentro da passagem
de Fl 2,6-11, e este contexto literário deve ser o privilegiado para explicá-la.
Assim sendo, partindo do pressuposto que Paulo tinha um outro verbo a
sua disposição (ὑψόω), mesmo que não se deva exagerar o valor do composto
verbal, não é boa exegese subestimar que foi exatamente este o termo que Paulo
escolheu. Como observa Cullmann: “Notamos que este ὑπερύψωσεν não é uma
mera figura de retórica, mas que o prefixo ὑπερ, ‘sobre’, tem de ser tomado em
seu pleno sentido”.249 Em outras palavras, o verbo ὑπερυψόω vai além do que o
simples ὑψόω.250 Por conseguinte, é bastante plausível compreender a passagem
como um todo, e o versículo 9 em particular, concedendo um valor comparativo e
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247
KREITZER, L. J., “When He at Last Is First!”: Philippians 2:9-11 and the Exaltation of the
Lord, p. 118, afirma que Paulo aprecia muito as construções com ὑπερ, mas essas comparações são
uma base insuficiente para afastar o sentido comparativo do verbo.
248
Por exemplo, FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 290, argumenta que
“na grande maioria dos casos” em que Paulo usa verbos compostos com a preposição ὑπὲρ não
indica uma posição superior à anterior. Ora, é possível extrair uma conclusão segura apenas pela
combinação da mesma preposição com outros verbos completamente diferentes, que ainda assim,
só possuem essa utilização “na grande maioria dos casos”?
249
CULLMANN, O., Cristologia do Novo Testamento, p. 285.
250
CULMANN, O., Cristologia do Novo Testamento, p. 236. Ele, por sua vez, toma essa
informação de J. Héring.
251
Segundo SILVA, Moisés, Philippians, p. 115, a etimologia da forma verbal aponta para um
sentido comparativo.
252
Por conta disso, o tratamento que a cristologia dogmática da Igreja Antiga dava a passagem
sempre fazia do versículo 6 o centro do hino. KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 94.
77
Só que a exaltação não quer dizer uma mudança de οὐσία mas de função.253 Paulo
não está seguindo uma agenda de discussão ontológica, mas desenvolve uma
narrativa cristológica, para descrever um evento soteriológico e escatológico, que
acarreta implicações eclesiológicas, tendo em vista o contexto parenético de 1,27-
2,17.254 Como destaca Bockmuehl: “Enquanto não há nenhuma sugestão de uma
mudança do ser, existe, apesar de tudo, uma mudança de nome e de função”
(grifos dele).255 O paralelo neotestamentário seria Mt 28,18, onde apenas após a
ressurreição Jesus recebe toda autoridade sobre o céu e sobre a Terra.256
Deve-se ainda notar que a interpretação do hino de forma linear (e não
cíclica), a partir de um pano de fundo histórico-salvífico, deixa claro que a ênfase
da narrativa está na virada escatológica que ocorre a partir do 2,9. O hino caminha
para exaltação e tem seu clímax nela. É muito difícil sustentar exegeticamente que
tudo o que é descrito em 2,9-11 já estava presente nas expressões ἐν μορφῇ θεοῦ /
τὸ εἶναι ἴσα θεῷ. De fato, “no início ele era ἐν μορφῇ θεοῦ, mas não era
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253
SILVA, Moisés., Philippians, p. 115, considera afirmação de que a exaltação levou o Filho de
Deus a um estágio superior ao que ele tinha na preexistência estranha ao texto. Seria, de fato,
estranho se o conjunto de Fl 2,6-11 não mencionasse qualquer tipo de preexistência. No entanto,
preexistência e exaltação fazem parte do mesmo conjunto literário. Não tentar relacioná-las é que é
estranho. Como observa CULLMANN, O., Cristologia do Novo Testamento, p.236: “Se Jesus
era já, em sua preexistência, a imagem de Deus – é, com efeito, do v. 6 que é preciso partir [...] – e
se agora se diz que Deus fez mais do que elevá-lo, não significa isto que, depois de sua morte,
Jesus não voltou tão somente à existência que tinha antes de sua encarnação [...], mas que em
virtude de uma nova função, entrou em relação ainda mais estreita com Deus, relação que lhe
confere o título Kyrios, com plena soberania sobre o universo inteiro?” (grifos dele).
254
O ponto é bem observado por HELLERMANN, J. H., Philippians, p. 105-106. Entretanto,
parece que ele vai longe demais ao afirmar que o interesse de Paulo no hino seria apenas
sociológico. O hino possui implicações sociológicas, mas esse não é o seu objetivo principal.
255
BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 144. Na mesma página, ele ainda faz a
ousada afirmação que “A humilhação e o triunfo da encarnação, em outras palavras, fez uma
diferença identificável mesmo dentro da divindade”.
256
Este parágrafo é importante para afastar qualquer relação entre a exegese proposta e algum tipo
de arianismo. De acordo com BASEVI, C., Estudio literario y teológico del himno cristológico
de la epístola a los Filipenses (Phil 2,6-11), p. 464, os arianos tomavam os versículos 9-11 como
prova de que antes da exaltação Cristo não era Deus como o Pai. Porém, como observado acima,
não está se discutindo aqui a divindade do Filho de Deus, que deve ser considerada completa e
sem alterações ao longo de toda a passagem, do versículo 2,6 a 2,11. Destarte, CASEY, P. M.,
From Jewish Prophet to Gentile God, p. 114-115, ao mesmo tempo que afirma que a exaltação
de Jesus é estágio acima do que ele possuía na sua preexistência, vai ao extremo quando defende
que em nenhum momento do hino Jesus é considerado inteiramente divino.
78
257
BROWN, C., Ernst Lohmeyer’s Kyrios Jesus, p. 29-30. Em sentido oposto, FOWL, S. E.,
Philippians, p. 104, entende que esse tipo de intepretação sugere que alguma coisa estava ausente
na divindade de Cristo pressuposta no versículo 6, o que seria, na sua visão, impossível do ponto
de vista teológico. A questão, entretanto, é o que determina a interpretação da passagem: ela
mesma ou algum sistema teológico? Ele observa: “Simplesmente tratar esta passagem como uma
narrativa direta, na qual um evento cria as condições para o próximo evento, levantaria sérias
questões sobre a lógica teológica da passagem que devem, no mínimo, ser notadas”. O ponto é,
além de notar essas questões, respondê-las de forma coerente com o texto, e como ele mesmo
reconhece, quando se dá atenção apenas ao fluxo narrativo da passagem, é difícil fugir da ideia que
Cristo recebeu algo que não tinha anteriormente.
258
SCHNELLE, U., Paulo: Vida e Pensamento, p. 473, grifos dele. Na mesma linha BARTH, G.,
A carta aos Filipenses, p. 47: “esta exaltação não significa apenas a restauração do seu estado
anterior em subsistência divina, mas que ela lhe concede mais do que possuía anteriormente”.
259
FOWL, S. E., Philippians, p. 104, informa que Tomás de Aquino, enfrentando a questão
teológica de uma possível mudança em Cristo nos versículos 9-11, aponta duas possíveis soluções.
A primeira, adotada por Ambrósio, propõe que a exaltação corresponde à divinização da natureza
humana de Jesus. A segunda, que remonta a Agostinho, defende que a exaltação é apenas a
manifestação à criação daquilo era verdade desde a eternidade. Ocorre tão só uma mudança na
revelação. Segundo Fowl, Aquino considera as duas explicações plausíveis para o texto. Em
tempos mais recentes, HENDRIKSEN, W., Efésios e Filipenses, p. 486, está entre os que seguem
a primeira solução, enquanto HELLERMAN, J. H., Philippians, p. 120-121, se aproxima da
segunda, quando a partir de categorias sociológicas afirma que na exaltação Jesus não recebeu um
novo nome, mas sim uma aclamação pública da sua reputação. Contudo, a primeira solução de
Aquino deve ser rejeitada porque o autor do texto não desenvolveu sua argumentação seguindo a
categoria “duas naturezas”, que conquanto seja uma categoria teológica legítima, é anacrônica ao
texto. O sentido do fluxo narrativo é que o evento do versículo 9 está relacionado ao mesmo
personagem que é sujeito no versículo 6. Dizer que no versículo 6 trata-se da natureza divina e no
versículo 9 da natureza humana, não é razoável exegeticamente. Tampouco a segunda solução de
Aquino é uma saída melhor, porque ela desloca o fenômeno da exaltação de Jesus para o mundo. É
o mundo que muda, possuindo uma nova visão sobre Deus. Embora isso de fato tenha ocorrido, é
uma consequência da exaltação de Jesus, e não a exaltação em si.
260
Conforme O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 238: “Em seu estado exaltado
Jesus tem uma nova posição que envolve o exercício do senhorio universal”.
79
centro da passagem.
Por sua vez, a aplicação do modelo interpretativo paradigmático na
segunda parte do hino reduz a exaltação de Jesus a um modelo para os cristãos: se
Deus exaltou Jesus porque ele renunciou aos seus interesses e foi obediente, da
mesma forma exaltará todo aquele que abrir mão do seu interesse em favor da
missão de Deus para sua vida.263 O detalhe é que na perspectiva paulina a
exaltação de Jesus não é um modelo, do tipo: Deus fez uma vez, vai fazer de
novo. A exaltação de Jesus fundamenta a esperança cristã porque ela inaugurou
um novo tempo escatológico, pondo em operação uma nova criação (“Se alguém
está em Cristo, é nova criatura. Passaram-se as coisas antigas; eis que se fez
261
Cf. o capítulo anterior.
262
FEE, G. D., Pauline Christology, p. 393. Também em FEE, G. D., Comentario de la Epístola
a los Filipenses, p. 262: “O contexto deixa claro que os vs. 6-8 funcionam principalmente como
um paradigma”. Já BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians., p. 141-142, segue a
mesma direção da exaltação de Jesus como vindicação da parte de Deus, mas acrescenta que isso
seria uma necessidade para que Deus manifeste a sua justiça. Por conseguinte, caso se considere o
texto como um credo, em uma prosa exaltada, como sugere Fee, rejeitando qualquer relação do
texto com o gênero hino, isso não alteraria a avaliação exposta acima, posto que os credos são
afirmações concisas das verdades centrais da fé, com acento especial na cristologia e soteriologia
(e não na ética ou parênese).
263
É o que pensa FOWL, S., Christology and Ethics in Philippians 2:5-11, p. 147, quando diz que,
se os filipenses estiverem unidos, colocando em prática as virtudes listadas em Fl 2,2-4, mesmo
diante de perseguições, “então Deus irá salvá-los da mesma forma que salvou o Cristo obediente,
humilhado e sofredor em 2:6-11”.
80
dos mortos no futuro (“Com efeito, visto que a morte veio por um homem,
também por um homem vem a ressurreição dos mortos” 1Co 15,21). Enquanto
Senhor do cosmos ele tem a “força que lhe dá poder de submeter a si todas as
coisas”, e por esse motivo os cristãos podem esperar que ele transfigurará o seu
corpo humilhado (Fl 3,21). “Fazer viver os mortos é direito escatológico
exclusivo de Deus”, comenta Becker, “contudo, em Fl 3,21, Cristo tem o poder de
transfigurar os homens mortais”,268 porque a partir da exaltação Deus o agraciou
com essa autoridade.
Dessa forma, não basta ao indivíduo fazer como Jesus fez (se que é
possível!), mas submeter-se a ele como Senhor. Por isso o hino culmina na
exaltação, celebra Jesus como Senhor, e desafia os leitores à submissão e
obediência a ele. Tudo agora depende de ser ou não ser obediente a Jesus, o
κύριος.269 O tema da obediência vai ser explicitamente usado por Paulo no
264
ὥστε εἴ τις ἐν Χριστῷ, καινὴ κτίσις· τὰ ἀρχαῖα παρῆλθεν, ἰδοὺ γέγονεν καινά. Notar que o
verbo γίνομαι está no indicativo perfeito, talvez para indicar a continuidade dos efeitos dessa nova
realidade escatológica no presente.
265
DODD, B. J., The Story of Christ and the Imitation of Paul, p. 157.
266
Texto que, inclusive, associa a confissão de Jesus como Senhor à ressurreição: “Porque, se
confessares com tua boca que Jesus é Senhor [κύριον Ἰησοῦν] e creres em teu coração que Deus o
ressuscitou dentre os mortos, serás salvo”.
267
DODD, B. J., The Story of Christ and the Imitation of Paul, p. 160.
268
BECKER, J., Apóstolo Paulo: vida, obra e teologia, p. 563.
269
MORGAN, R., Incarnation, Myth and Theology, p. 65.
81
clímax do hino realmente é a exaltação, então ele não tem como objetivo justificar
porque Jesus foi exaltado, mas mostrar para os leitores quem é o verdadeiro
Senhor de todo o cosmos,272 ou ainda mais especificamente responder: “como é
possível confessar o senhorio de alguém que viveu e morreu como um homem
qualquer, e chamar de Senhor alguém que na sua vida se configurou a um
escravo”?273 A resposta de Fl 2,6-11 é que ele não era um homem qualquer, mas
tinha a imagem de Deus e foi até a cruz em submissão a Deus. E não foi ele quem
270
MORGAN, R., Incarnation, Myth and Theology, p. 67.
271
Assim MARTIN, R. P., A Hymn of a Christ, p. 148-153. Também CULLMANN, O.,
Cristologia do Novo Testamento, p. 233-234, que enxerga todo o hino de Fl 2,6-11 como uma
antítese entre Jesus e Adão. Este desejou a igualdade com Deus, e abriu mão da obediência a Deus
para buscá-la. Em sentido totalmente oposto, o Filho de Deus além de não desejar ser igual a Deus
(que Cullmann interpreta não em termos de divindade, mas de soberania sobre o universo),
submeteu-se com humildade e obediência a Deus. Na mesma linha COLLINS, A. Y., Psalms,
Philippians 2:6-11, and the Origins of Christology, p.336, que opta pela interpretação res
rapienda e ainda declara: “O enredo da passagem requer que o estado final de Jesus seja maior que
o estado inicial”. Por sua vez, GUTHRIE, D., Teologia do Novo Testamento, p. 351, avalia essa
interpretação como “razoável”. Ele afirma: “O hino certamente sugere alguma forma na qual a
exaltação ia além do estado preexistente”. Não obstante, o próprio R. P. Martin entende que a sua
interpretação seria uma variação entre as clássicas posições res rapta (Cristo já possuía a
igualdade com Deus na preexistência e não se apegou a isso, e a exaltação não muda nada em
relação a isso) e res rapienda (Cristo não possuía a igualdade com Deus, inclusive a divindade,
que seriam recebidas na exaltação). WRIGHT, N. T., The Climax of the Covenant, p. 62-81, faz
uma extensa avaliação das interpretações do termo ἁρπαγμός na literatura especializada, e
identifica 17 possibilidades diferentes. Na avaliação dele, a exegese de Cullmann e Martin deve
ser classificada como res rapienda.
272
Conforme VOUGA, F., Teologia del Nuevo Testamento, p. 268, mostra que o tema do hino é
a afirmação de que o Senhor do mundo é o crucificado.
273
BARBAGLIO, G., As cartas de Paulo II, p. 378.
82
4.3.5
A exaltação de Jesus e a cultura romana de exaltação
274
SCHNELLE, U., Paulo: Vida e Pensamento, p. 475.
275
BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 143.
276
WRIGHT, N. T., Paulo: novas perspectivas, p. 89: “o suplício da cruz veio a se tornar um
símbolo eficaz e temido nas mãos do poder imperial bem antes de vir a se tornar o símbolo de
qualquer outra coisa”
83
confessado (Fl 2,10-11) por todos os seres do universo. O imperador romano era
considerado Senhor do império, e no culto ao imperador, a figura dele
representava a unidade do império. Fl 2,9-11 apresenta Jesus como Senhor do
universo, e a unidade do universo nele é celebrada no culto cristão.279 Tudo isso
aponta para a clara dimensão política da exaltação de Cristo,280 que como
realidade escatológica traz sérias implicações para a vida dos cidadãos de Filipos
que estão debaixo do poder de Roma.281 A partir de então é impossível para os
cristãos reconhecerem a reivindicação de domínio do imperador, ou de qualquer
outro. Com a exaltação de Jesus eles estão debaixo de um novo Senhor, de um
277
HELLERMAN, J. H., Philippians, p. 106.
278
Idem. Enquanto cursus honorum significa um caminho de honras, cursus pudorum quer dizer
um caminho de vergonha, de humilhações.
279
WORTHAM, R. A., Christology as Community Identity in the Philppians Hymn: the
Philippians Hymn as Social Drama (Philippians 2:5-11), p. 282.
280
O próprio formato da passagem, como reconhecido de forma ampla, segue a estrutura dos
cerimoniais de entronização do rei, pode intencionar um contraste com os governantes
contemporâneos que foram entronizados. E pelo ângulo da retórica grega chega-se a mesma
impressão, pois como nota MARTIN, M. W.; NASH, B. A., Philippians 2:6-11 as Subversive
Hymnos: a Study in the Light of Ancient Rhetorical Theory, p. 130, em geral esse tópico era
utilizado em referência a deificação pós-morte do imperador. Daí, em Fl 2,6-11 este tópico
funciona como uma aguda retórica apontada contra Roma. Também nessa perspectiva, KRENTZ,
E., Paulo, os jogos e a milícia, p. 325, cita R. R. Brewer, segundo o qual Paulo teria formulado Fl
2,9-11 com a intenção de fazer oposição ao culto ao imperador Nero.
281
FOWL, S. E., Philippians, p. 105: “Esses versos assentam o fundamento para a contra-política
que Paulo deseja que os filipenses incorporem em sua vida comum”.
84
4.4
A exaltação de Jesus e a doação de um novo nome
4.4.1
O verbo χαρίζομαι
significa uma doação feita de forma livre, graciosa, como um favor feito a
alguém.286 Em Fl 2,9 naturalmente o favor é feito por Deus. É curioso que fora do
Novo Testamento χαρίζομαι não ocorre tendo Deus como sujeito antes do século
II d.C. A partir de então, passa a ser usado no sentido de “dar graciosamente”, que
é o sentido predominante na LXX, a provável fonte de influência
neotestamentária.287
282
FOWL, S. E., Philippians, p. 105.
283
WORTHAM, R. A., Christology as Community Identity in the Philppians Hymn: the
Philippians Hymn as Social Drama (Philippians 2:5-11), p. 269-287, propõe fazer uma leitura
da passagem toda de Fl 2,6-11 privilegiando a função social que ela desempenharia na comunidade
cristã primitiva. Desse modo, o humilhado que é exaltado representaria o início da transformação
do cristianismo de uma subcultura dentro do judaísmo para uma comunidade religiosa
independente com poder e autoridade legítimos.
284
SCHNELLE, UDO., Teologia do Novo Testamento, p. 285-286. Este autor prefere falar de
uma dimensão política da teologia paulina, ao invés de uma teologia anti-imperial de Paulo, como
se o apóstolo de forma explícita ou velada, estivesse articulando uma crítica a Roma. Ele avalia
que esta última interpretação tem sido importante na literatura teológica anglo-americana. Em
contrapartida, FEWSTER, G. P., The Philippians ‘Christ Hymn’: Trends in Critical
Scholarship, p. 202, salienta que a passagem em análise “teria funcionado como uma forma
pública de resistência contra o culto imperial”, se tivesse sido utilizada repetidamente como hino
na comunidade.
285
O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 237.
286
BAGD, p. 876-877. O verbo é muito importante para Paulo, como indica a estatística. São 23
ocorrências no Novo Testamento, sendo 11 nas cartas paulinas, a saber: Rm 8,32; 1Co 2,12; 2Co
2,7; 2Co 2,10 (3x); 2Co 12,13; Gl 3,18; Ef 4,32 (2x); Fl 1,29 e 2,9; Cl 2,13 e 3,13 (2x); Fm 1,22.
287
ESSER, H. H., χάρις. In: DITNT, v. I, p.907-915.
85
4.4.2
O nome dado a Jesus
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288
MARTIN, R. P., Filipenses, p. 114.
289
FOWL, S. E., Philippians, p. 101.
290
MAZZAROLO, I., Carta de Paulo aos Filipenses, p. 113, reconhece que Jesus tinha méritos,
isto é, a obediência, a humildade, o aceitar a missão do Pai, mas “não se pode vincular a exaltação
a algum mérito específico”.
291
FOWL, S. E., Philippians, p. 101. Como observa O’Brien, P. T., The Epistle to the
Philippians, p. 234, se Cristo tivesse se humilhado mirando algum tipo de exaltação, isso não
seria uma verdadeira e sincera renúncia, e sim uma forma de procurar o seu próprio interesse.
292
Idem.
293
Alguns manuscritos omitem o artigo. Conferir a discussão sobre a crítica textual do texto na
introdução.
294
BAGD. p. 839.
295
PATSCH, H., ὑπὲρ. In: DENT, v. II. p. 1874. Segundo ele, o mesmo acontece em Ef 1,22.
86
4.4.2.1
“Nome” no Antigo Testamento e no judaísmo
uma nova realidade, uma mudança de vida, uma virada na história, como no caso
de Jacó em Gn 32,28, e em particular a promessa de um novo nome para Israel em
Is 62,2.
O nome de YHWH é um aspecto essencial da revelação bíblica: Deus se
apresenta com um nome pessoal, através do qual pode ser invocado. Ao mesmo
tempo, seu nome é expressão de soberania e poder. É um modo alternativo de
falar do próprio YHWH. Seu nome passa a ter uma existência própria e
independente, como expressão do próprio YHWH. Faz o papel que nas demais
religiões é desempenhado pelas imagens rituais. A esperança veterotestamentária
é que um dia todo joelho se dobre somente diante do nome de YHWH.300
O judaísmo, entretanto, vai aos poucos deixando de lado a utilização do
tetragrama. A tradição rabínica evita a todo custo a menção, considerada infração
do 3º mandamento. A mesma tradição informa que após a morte de Simão, o Justo
(200 a.C.) os sacerdotes deixaram de pronunciar o nome sagrado nas ações de
296
HELLERMAN, J. H., Philippians, p. 120.
297
BIETENHARD, H., ὄνομα. In: DITNT, v. II, p. 1395; BIETENHARD, H., ὄνομα. In: TDNT,
v. IV, p. 253.
298
Essa última concepção pode ajudar a compreender a prática política de nomear cidades e
territórios. Com efeito, esse foi o caso da cidade de Filipos, que passou a ter esse nome quando foi
dominada por Filipe II da Macedônia em 356 a.C.
299
HAWTHORNE, G. F., Philippians, p. 91.
300
BIETENHARD, H., ὄνομα. In: DITNT, v. II, p. 1395-1396.
87
4.4.2.2
“Nome” no Novo Testamento
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301
BIETENHARD, H., ὄνομα. In: DITNT, v. II, p.1396-1397. O próximo capítulo discutirá a
questão da substituição no judaísmo do tetragrama por κύριος.
302
BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 143.
303
Idem.
304
BIETENHARD, H., ὄνομα. In: TDNT, v. IV, p. 271.
305
BIETENHARD, H., ὄνομα. In: DITNT, p. 1401.
88
4.4.2.3
A Identificação nome dado a Jesus em Fl 2,9
306
HARTMAN, L., ὄνομα. In: DENT, p. 559.
307
HARTMAN, L., ὄνομα. In: DENT, p. 563.
308
Nas palavras bem-humoradas de BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Phillipians. p. 142:
“A questão precisa é difícil de decidir com certeza, e é talvez, em qualquer caso, uma tempestade
em uma xícara de chá exegética”. Não obstante, como notado na crítica textual, alguns
manuscritos omitem o artigo na expressão τὸ ὄνομα, o que de acordo com HELLERMAN, J. H.,
Philippians, p. 120, indica que alguns escribas e pais da igreja entenderam ὄνομα não como um
título, mas como um reconhecimento. Deus exaltou Jesus e deu a ele fama, reconhecimento
universal. E mesmo admitindo que o texto com artigo seja com certeza o mais bem testemunhado,
significando o título κύριος que aparece no versículo 11, Hellerman defende que esse sentido de
fama e reconhecimento público deva ser incluído na exegese do nome dado ao Jesus exaltado,
tendo em vista o contexto sócio-político de Filipos. Em uma cultura onde as pessoas brigavam
para ter uma reputação reconhecida, Fl 2,9 afirma que Deus deu a Jesus a “reputação que está
acima de toda a reputação”. Segundo BIETENHARD, H., ὄνομα. In: TDNT, v. IV, p. 270, ὄνομα
como reputação é encontrado no Novo Testamento em Mc 6,14 e Ap 3,1.
89
Novo Testamento, entretanto, é este o nome que Jesus possuía desde o seu
nascimento, e Fl 2,9 fala de uma reverência a um novo nome que ele recebeu a
partir da sua exaltação. Não obstante, Fl 2,11 vai fazer referência a Ἰησοῦς
Χριστὸς de uma forma tradicional, sem o peso do significado que o versículo 9
indica. Entre os pais da igreja as propostas variaram entre υἱὸς e θεός, mas não há
nada no texto que substancie essas soluções.309
Um caminho razoável para solução é, considerando que quem dá o nome é
Deus, pensar que ele deu a Jesus o seu próprio nome. Segundo o Antigo
Testamento esse nome é YHWH, que a LXX traduz por κύριος. Justamente esse o
nome que, segundo Fl 2,11, desde a exaltação toda língua deve confessar. Este
versículo é fundamental nesta identificação, pois ele está fazendo uma releitura
cristológica de Is 45,23, texto que anuncia um tempo de salvação futura, no qual
todo joelho se dobrará diante de YHWH e toda língua jurará por ele. A sequência
de Is 45,24 também é importante: לי אָ ַ ֖מר צְ דָ ֣קוֹתו ֑ ָֹﬠז
֥ ִ בַּ יהוָ ֛הÌא:
֧ ַ “dizendo: Só em
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YHWH há justiça e força”. Ora, em Fl 2,9-11 o próprio YHWH está dando esse
nome a Jesus, para que agora diante do nome dele todo joelho se dobre, e toda
língua confesse.
O’Brien apresenta quatro argumentos em favor da identificação de τὸ
ὄνομα como κύριος. Primeiro, na oração subordinada dos versículos 10-11 Jesus é
identificado com κύριος, e pode assim receber reverência universal. Segundo, ele
considera plausível entender as expressões τῷ ὀνόματι Ἰησοῦ e τὸ ὑπὲρ πᾶν
ὄνομα como justapostas. Terceiro, para judeus como Paulo um nome superlativo
como este sempre seria entendido como equivalente a YHWH. E, em quarto
lugar, cria-se uma simetria no hino como um todo, pois aquele que era ἴσα θεῷ,
passa a ser δοῦλος e agora se torna κύριος.310
Esta identificação faz jus ao contexto escatológico da passagem e à
perspectiva mais ampla do Novo Testamento, que, como será visto, relaciona o
título κύριος dado a Jesus com a sua ressurreição, e consequentemente, sua
exaltação.311 Também é preciso perceber que nesta interpretação o termo ὄνομα é
309
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 235.
310
O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 238.
311
MARTIN escrevendo em 1967 afirmou que havia um consenso geral para reconhecer que o
nome dado a Jesus na exaltação é mesmo κύριος. Cf. MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 245.
No entanto, SILVA, Moisés., Philippians, p. 110-111, faz algumas reservas a essa identificação,
lembrando que o texto não é explícito a esse respeito.
90
312
Entre outros, MAZZAROLO, I., Carta de Paulo aos Filipenses, p. 114, que afirma que um
novo nome pode ser o equivalente a uma nova missão.
313
CULMANN, O., Cristologia do Novo Testamento, p. 237. BOCKMUEHL, M., The Epistle
to the Philippians, p. 142, nota que no mundo antigo em geral, e no judaísmo em particular,
nomes eram importantes pelo que significavam, e não como rótulos.
314
BARTH, G., A carta aos Filipenses, p. 47. CULLMANN, O., Cristologia do Novo
Testamento, p. 285, afirma: “no judaísmo, como em todas as religiões antigas, o nome representa
ao mesmo tempo um poder” (grifos dele). Em contrapartida, SILVA, Moisés., Phillipians, p. 110,
é bastante reticente com essa interpretação.
91
315
Assim MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 236-237.
316
BAUCKHAM, R. J., The Worsphip of Jesus in Philippians 2:9-11, p. 130.
317
Idem. Segundo HURTADO, L. W., Senhor Jesus Cristo, p. 818, o fato de Jesus receber o
nome de Deus é “o mais próximo que chegamos a um equivalente de um elo ‘ontológico’ de Deus
com Jesus”.
318
BAUCKHAM, R. J., The Worsphip of Jesus in Philippians 2:9-11, p. 130. Não obstante, ao
contrário do que foi exposto aqui HELLERMAN, J. H., Vindicating God’s Servants in Philippi
and in Philippians, p. 96-97, acredita que o termo ὄνομα deve ser conectado a κύριος, mas não se
trata de um novo dado a Jesus, e sim da manifestação pública do nome que ele já tinha ao longo de
toda a sua carreira. Parece, contudo, que sua exegese é influenciada pelo desejo de fazer um
paralelo entre Fl 2,6-11 com At 16,11-40, onde Paulo só revela seu “título” de cidadão romano
depois do sofrimento e da humilhação.
319
KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 110.
92
4.5
Conclusão do capítulo
320
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 233-235. Esta opinião foi adotada depois por
HAWTHORNE, G. F., Philippians, p. 113.
321
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 234.
322
Assim O’Brien, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 233-234.
93
323
Conferir a discussão no capítulo anterior.
324
MARTIN, R. P., Filipenses, p. 129, “o ponto central do ensino do hino – como parece certo –
não é o kenosis, nem uma lista das características da vida terrena de Jesus, em humilhação e
obediência, mas Seu senhorio presente, e final, e o caminho que Ele tomou para esse título” (grifos
dele).
325
MÜLLER, D., ὑψόω. In: DITNT, v. I, p. 83-87, argumenta que Fl 2,9-11 seria apenas um
comentário antigo onde os eventos da Páscoa são a vindicação de Jesus, Deus reconhecendo Jesus
como justo.
326
Isto é afirmado com clareza por Moisés Silva, que justifica a utilização do conceito de
“recompensa” à exaltação de Jesus na medida que “o hino cristológico implica a correspondência
entre a experiência de Cristo e a santificação do crente”. A ideia é que assim como Cristo foi
recompensado por sua obediência, o cristão também será. A despeito da correção desta teologia
específica, o ponto é que a interpretação da exaltação de Jesus no conjunto de Fl 2,6-11 é
determinada pela necessidade de fazer do texto um paradigma para a vida cristã. Cf. SILVA,
Moisés., Philippians, p. 109. Também BRUCE, F. F., Filipenses, p. 81, descreve o versículo 2,9
como “a suprema ilustração de suas próprias palavras: ‘quem a si mesmo se humilhar será
exaltado’.
94
encarado como revelação do caráter de Deus, ou, como se tornou comum afirmar,
o caráter do Deus de Israel. “A real ênfase teológica do hino, então, não é
simplesmente uma nova visão de Jesus. É um novo entendimento de Deus”.327
Para Wright isso significa que divindade é sinônimo de doação, e não obtenção.328
Foi assim que Jesus interpretou a sua igualdade com Deus. As ações de 2,6-8 são
a revelação disso, enquanto que a exaltação seria o reconhecimento por parte de
Deus Pai que realmente a encarnação e morte de Jesus são “a revelação do amor
divino em ação”.329
S. E. Fowl, trabalhando a partir da exegese de Wright, afirma que tanto o
sofrimento de Jesus narrado em 2,6-8, quanto a exaltação dele descrito em 2,9-11
são, essencialmente, revelação de Deus ao mundo, manifestação da glória do Deus
de Israel.330 E para o sofrimento servir a esse propósito revelacional ele precisa ser
vindicado por Deus. E aí que entra a exaltação, pois como vindicação do
sofrimento de Jesus ela atesta que o Deus apresentado no conjunto é realmente o
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327
WRIGHT, N. T., The Climax of the Covenant, p. 84.
328
Idem, citando palavras de C. F. D. Moule. Nesse sentido Wright é seguido por FEE, G. D.,
Philippians 2:5-11: Hymn or Exalted Pauline Prose? p. 40 e 45.
329
Ibid., p. 86.
330
FOWL, S. E., Philippians, p. 101. Que a exaltação de Jesus é muito mais que a vindicação de
Jesus foi exposto acima.
331
FOWL, S. E., Philippians, p. 101. Essa linha de raciocínio fecha com a interpretação ética da
passagem como um todo, pois se o caráter de Deus é vindicar o justo sofredor, então o cristão pode
esperar que esse mesmo Deus fará isso com ele, quando nesse mundo sofre de forma injusta. Nas
páginas 106 e 107 Fowl afirma que essa argumentação ajuda a responder uma das críticas feitas à
chamada interpretação ética.
95
332
BROWN, C., Ernst Lohmeyer’s Kyrios Jesus, p. 24, para quem nos versículos 6-8 se oferece
uma interpretação da encarnação e da morte de Jesus, e nos versículos 9-11 da ressurreição de
Jesus. Interpretação que podia ser cantada nos cultos (caso Fl 2,6-11 tenha existido como um hino
de fato), ou confessada pelos convertidos (entendendo o texto como confissão).
333
A tendência da exegese contemporânea de compreender Paulo dentro do judaísmo, e não contra
o judaísmo.
334
KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 75-76, foi talvez o primeiro a defender o aspecto
revelacional de Fl 2,6-11. Para ele o hino não trata diretamente da relação entre Deus e a igreja, ou
entre Deus e os crentes, mas sim da relação total entre Deus e o mundo. O hino descreve a
revelação de Deus ao mundo inteiro. Em especial quanto à seção de Fl 2,9-11 ele afirma: “não se
trata unicamente de sentimentos éticos apropriados, mas ao contrário, de uma vitória sobre o
mundo, da eliminação das oposições até o cumprimento escatológico desejado por Deus”.
5
A reverência e a confissão ao Jesus exaltado
5.1
Introdução ao capítulo
consequentemente agora todo o joelho deve se dobrar e toda a língua deve confessá-
lo. Existe uma leve vantagem para a primeira opção, visto ser esse o uso
predominante de ἵνα no grego clássico, no Novo Testamento e inclusive no corpus
paulino,335 entendendo assim a submissão e reverência de todo o universo a Jesus
como partes da intenção divina ao exaltar Jesus, e ao mesmo tempo não dar a
impressão que o conteúdo dos versículos 10 e 11 são uma espécie de resultado
casual. Contudo, não se deve insistir na distinção, pois as duas noções andam juntas
na literatura bíblica do Antigo e do Novo Testamento, e é possível que ambas
estejam presentes neste texto.336
5.2
Isaías 45,23 e a exaltação de Jesus
335
FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 292.
336
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 249. O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians,
p. 238, opina que as duas ideias estão presentes.
97
Is 45,23 (LXX): ἐμοὶ κάμψει πᾶν γόνυ καὶ ἐξομολογήσεται πᾶσα γλῶσσα τῷ θεῷ
Fl 2,10-11: ἐν τῷ ὀνόματι Ἰησοῦ πᾶν γόνυ κάμψῃ καὶ πᾶσα γλῶσσα
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337
HURTADO, L. W., Senhor. In: DPL, p. 1150-1151. Existem citações em que Paulo manteve
κύριος referindo-se a Deus, o que segundo Hurtado, ocorre em 10 referências. Ele também menciona
duas passagens em que a identificação é disputada. São elas: Rm 14,11 (Is 45,23) e 1Cor 2,16 (Is
40,13).
338
HURTADO, L. W., Senhor. In: DPL, p. 1151.
339
Como notado por FOWL, S., Philippians., p. 103, a frase quebra a alusão a Is 45,23.
98
340
BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 145, considera que as ênfases de Isaías
45 são a singularidade de Deus e o universalismo. Este último tema está presente de fato, mas como
ele mesmo reconhece, em termos de expectativa para o futuro. Por isso é melhor falar de uma
esperança escatológica, que é universal em sua abrangência.
341
O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 243.
342
Conforme MICHEL, O., ὁμολογέω. In: TDNT, p. 207.
343
BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 145.
344
BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 82. Esse é o provável cenário da Igreja
de Filipos, uma comunidade predominantemente gentílica. Por conseguinte, a avaliação acima
aponta para duas direções: que o autor do hino estava familiarizado com o Antigo Testamento, e
provavelmente com o judaísmo, e ao mesmo tempo, favorece a tese de que Fl 2,6-11 existiu antes
de ser usado na carta aos Filipenses, isto é, foi produzido em um contexto sensível às interrelações
estabelecidas com o texto veterotesmentário.
345
BAUCKHAM, R. J., The Worship of Jesus in Philippians 2:9-11, p. 133.
99
346
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 256, afirma que o autor do hino (que para ele não é Paulo)
está citando de forma inconsciente, pois enxerga a si mesmo como um homem em situação
pneumática, sob direta ação do Espírito Santo. Tudo isso, porém, é uma grande conjectura, difícil
de provar. É possível ainda que o autor do hino esteja partindo de um texto de Isaías diferente do
Texto Massorético e da versão da LXX aceita atualmente. A possibilidade é aventada por MICHEL,
O., ὁμολογέω. In: TDNT, p. 214. Isso poderia explicar algumas das alterações do texto de
Filipenses, mas não a mais importante, que é a sua releitura cristológica.
347
O texto hebraico traz respectivamente os verbos כּ ַָרעe שָׁ בַ עno yiqtol, reconhecido com uma forma
futura, cf. JOÜON, P.; MURAOKA, T., A Grammar of Biblical Hebrew, p. 114.
348
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 256.
349
É possível que exista alguma relação entre o texto de Filipense e o texto de Enoque. A sugestão
é feita por Michel, observando que Enoque 61,7 aplica Is 45,23 ao Messias. MICHEL, O.,
ὁμολογέω. In: TDNT, p. 207. O problema é confirmar se o texto de Enoque é, de fato, anterior ao
de Filipenses, e que assim, a influência seria inversa. Segundo BROWN, R. E.; PERKINS, P;
SALDARINI, A. J., Apócrifos, Manuscritos do Mar Morto e Outros Tipos de Literatura Judaica,
IN: NCBSJ, p. 951, o conjunto dos capítulos 37-71, onde encontra-se a referência acima, tem a sua
datação disputada, variando entre o século 1 a.C. até o 3 d.C.
100
י־א ֶרץ
֑ ָ ֵכָּל־אַ פְ ס, que a Septuaginta traduziu como οἱ ἀπ᾽ ἐσχάτου τῆς γῆς. Portanto,
parece que Paulo opera uma ampliação. Se em Isaías a escatologia fala de uma
reverência universal de todo joelho e toda língua, incluindo todas as nações até os
limites da Terra, Filipenses apresenta uma escatologia cósmica, que vai além dos
limites da Terra, alcançando todo o cosmos.350
5.3
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350
CERFAUX, L., Cristo na Teologia de Paulo, p. 307; MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p.
256.
351
BAGD, p. 572.
352
BIETENHARD, H., ὄνομα. In: TDNT, p. 262, 263 e 271; BIETENHARD, H., Nome. In:
DITNT, p. 1396. Para HARTMAN, L., ὄνομα, In: DENT, p. 563, a expressão neotestamentária
deve ser considerada um semitismo.
353
HARTMAN, L., ὄνομα, In: DENT, p. 564-565.
101
354
Aqui, a despeito da discussão de autoria, considera-se Efésios, Colossenses e 2Tessalonicenses
parte da literatura paulina.
355
LUTER JR, A. B., Nome, In: DPC, p. 880.
356
LUTER JR, A. B., Nome. In: DPC, p. 881.
357
HELLERMAN, J. H., Philippians, p. 121.
358
HAWTHORNE, G. F., Philippians, p. 115; HELLERMAN, J. H., Philippians, p. 121.
359
MARTIN, R. P., Hymn of Christ, p. 254 ; HAWTHORNE, G. F., Philippians, p. 115.
102
exaltação não mudou a identidade de Jesus. Ele assumiu uma nova função, mas não
se tornou uma nova pessoa.360
5.4
Joelhos dobrados ao nome de Jesus
360
É interessante comparar essa descrição do hino com o fenômeno social do apego aos títulos.
Quantos pessoas ao receberem um título qualquer, querem esquecer sua identidade, como eram
conhecidas anteriormente, para serem agora somente reconhecidas pelo título.
361
BAGD, p. 402; BALZ, H.; SCHNEIDER, G., κάμπτω. In: DENT, p. 2190.
362
CERFAUX, L., Cristo na teologia de Paulo, p. 306.
363
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 265.
103
a Igreja aqui na Terra fazer o mesmo.364 A reverência ao Cordeiro que foi morto é
o reconhecimento da honra daquele que justamente foi desonrado e blasfemado na
sua morte na cruz.365 E um dia, como será exposto abaixo, os mesmos que o
mataram estarão diante dele outra vez, não mais para desonrá-lo, mas de joelhos
dobrados diante dele.
5.5
O alcance da reverência a Jesus: no céu, na Terra e debaixo da Terra
Na língua grega ἐπουρανίων é usado de forma literal para referir-se aos seres
celestiais, ἐπιγείων aos seres que habitam na Terra e καταχθονίων aos seres que
habitam debaixo da terra.366 Os dois primeiros estão geralmente em oposição, e
ἐπιγείων inclui os seres humanos. Entre os seres celestiais estão aliados e inimigos
de Deus,367 estes últimos descritos em Ef 6,12: “contra os Principados, contra as
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364
BRUCE, F. F., Filipenses, p. 82.
365
MAZZAROLO, I., Carta aos Filipenses, p. 116.
366
BAGD, p. 290, 360 e 420.
367
MICHEL, O., ἐπουράνιος. In: DENT, p. 1562.
368
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 257-258. A tese de Lightfoot foi adotada, entre outros,
por SILVA, M., Philippians, p. 116; FOWL, S., Philippians, p. 103, embora este último cite com
aprovação a opinião de Crisóstomo, de que a referência seria aos seres racionais.
369
BRUCE, F. F., Filipenses, p. 83. Ele indica que as referências a céu e terra no hino de Cl 1,15-
20 seria um paralelo poético ao texto de Filipenses.
104
demônios, entendendo as três palavras como masculinas. O ponto é que apenas eles
podem cumprir as ações descritas na sequência narrativa.370 Essa perspectiva em
uma forma modificada remonta à antiga exegese feita pelos pais da igreja, e talvez
seja a que talvez encontre maior número de adeptos entre os estudiosos. Em seu
favor estaria, por exemplo, o paralelo com Ap 5,13: “καὶ πᾶν κτίσμα ὃ ἐν τῷ οὐρανῷ
καὶ ἐπὶ τῆς γῆς καὶ ὑποκάτω τῆς γῆς καὶ ἐπὶ τῆς θαλάσσης καὶ τὰ ἐν αὐτοῖς
πάντα...”.371 Para delimitar ainda esses seres racionais em questão, há duas
propostas de identificação dos respectivos habitantes dos três compartimentos do
universo apresentados pelo texto: os anjos no céu, os seres humanos que estão na
Terra e os que estão debaixo da Terra (no Sheol), ou simplesmente, anjos, seres
humanos e demônios.372
Um terceiro entendimento dessa expressão defende a inexistência de uma
situação cúltica em Fl 2,10-11. O cenário é determinado pelas antigas cerimônias
de entronização. Assim sendo, não há aqui seres humanos, nem Igreja, nem mesmo
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anjos. O que existem são os poderes que atuavam em todo o universo de forma
rebelde para com Deus. Em uma palavra, são demônios. Eles dominavam essas três
áreas da realidade, conforme a antiga cosmologia que o judaísmo compartilhava. E
quando o cristianismo primitivo celebrou a vitória e exaltação de Jesus, incluiu sua
vitória sobre os poderes.373 A ideia não é de um reconhecimento voluntário e alegre
do senhorio Jesus, mas que as forças demoníacas “são compelidas a admitir que ele
é o vencedor, e eles apresentam sua submissão pela sua prostração diante dele”374.
Para combinar essa interpretação com o segmento inteiro dos versículos 2,10-11,
Martin aponta a ligação entre a confissão “Jesus Cristo é Senhor” do versículo 10
com os exorcismos presentes nos evangelhos sinóticos. O ponto de comparação é
que, quando o nome de Jesus é proclamado, os poderes demoníacos se submetem.
370
HAWTHORNE, G. F., Philippians, p. 115.
371
BALZ, H.; SCHNEIDER, G., καταχθόνιος. In: DENT, p. 2259. Assim FEE, G., Comentario
de la Epístola a los Filipenses, p. 293-294; SILVA, M., Philippians, p. 116, mostra que essa
possibilidade é a menos objetável; HELLERMAN, J. H., Philippians, p. 122.
372
MARTIN, R. P., Hymn of Christ, p. 258, informa que a primeira versão foi defendida por
Clemente de Alexandria e Teodoreto, enquanto que a segunda por Crisóstomo. BOCKMUEHL, M.,
The Epistle to the Philippians, p. 146, defende a primeira alternativa informando não existe
atestação para a inclusão dos demônios na expressão καταχθόνιος. Na mesma direção, DE BOOR,
W.; HAHN, E., Carta aos Efésios, Filipenses e Colossenses, p. 212, entende que a cosmovisão
bíblica não visualiza Satanás e os demônios debaixo da Terra.
373
Parece que a tese foi originalmente postulada por M. Dibelius, conforme MARTIN, R. P., A
Hymn of Christ, p. 260. Nessa mesma linha KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 109;
BARTH, G., A carta aos Filipenses, p. 48.
374
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 261.
105
possui alcance cósmico. Existe aqui uma cristologia cósmica, muito semelhante a
esboçada em Cl 1,15-20.377 Todo o universo, visível e invisível, foi impactado pela
exaltação de Jesus. Essa era uma mensagem fundamental para a mentalidade
helenista, que, ao contrário da judaica, valorizava muito mais a dimensão espacial
do que a temporal. Na visão helenista existe o mundo divino que está acima nos
céus e o mundo “abaixo” que é Terra, possuída e dominada pelos poderes arbitrários
e malignos.378 A certeza de que há agora um único Senhor sobre todos os “mundos”
era, de fato, uma boa notícia. Muito mais ainda quando o anúncio desse senhorio
faz parte do evangelho que mostra que o novo Senhor é um bom Senhor, que
governa com amor e proporciona liberdade.
E se Jesus é Senhor de todo universo, espera-se que todo o universo se
submeta diante dele e o reconheça como tal. No máximo, pode-se excluir os
elementos da natureza (vegetais, animais e minerais) que não podem realizar as
ações descritas pelos verbos κάμπτω e ἐξομολογέω, ainda que também eles estejam
375
FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 294, mostra que o equívoco dessa
interpretação começa na suposição de que a passagem depende exclusivamente de uma cosmologia
gnóstica ou helenística.
376
FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 294,
377
Lohmeyer sugere que as origens dessa cristologia cósmica remontam a junção pré cristã das
tradições do filho do homem de Dn 7,13-14 e do servo sofredor de Is 53. BROWN, C., Ernst
Lohmeyer’s Kyrios Jesus, p. 17-18.
378
SCHWEIZER, E., Lordship and Discipleship, p. 59-60.
106
5.6
E toda língua confesse
379
O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 242.
380
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 263-264.
381
KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 112.
107
isso com alegria, ou voluntariedade, mas contra a sua própria vontade diante de um
poder a que não podem resistir. No caso desse grupo, ἐξομολογέω tem, sem
dúvidas, um significado apenas formal, sem qualquer conotação de louvor, ação de
graças e confissão de fé. Em contrapartida, a Igreja antecipa essa realidade
escatológica quando aqui e agora dobra os seus joelhos e confessa Jesus como
κύριος, e faz isso de livre e espontânea vontade, com alegria e louvor. Por sua vez,
a função pragmática do hino é convocar os ouvintes e leitores a desde já se juntarem
nessa adoração, e assumirem o senhorio de Jesus sobre suas vidas. Para esse grupo,
ἐξομολογέω tem o sentido prioritariamente bíblico de confissão de fé. Não se pode
afastar essa hipótese simplesmente atribuindo “confissão de fé” ao individualismo
moderno e estranha ao cristianismo primitivo.383 Esse é um argumento falacioso,
porque o objeto do verbo ἐξομολογέω é a sentença κύριος Ἰησοῦς Χριστὸς,
reconhecida como uma das mais antigas confissões de fé cristãs, utilizada no
382
HAWTHORNE, G. F., Philippians, p. 116. Aqui volta-se novamente à discussão de quem está
por trás da lista tríplice ἐπουρανίων καὶ ἐπιγείων καὶ καταχθονίων. Conquanto Hawthorne tenha
optado pelo entendimento de que o texto se refere a todos os seres racionais, ele observa que a
expressão “toda a língua” é sinônima de todos os povos da Terra (Is 66,18; Dn 3,4 e 7; Ap 5,9; 7,9;
10,11).
383
Opinião esboçada por MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 264.
108
período pré paulino na igreja de fala aramaica,384 e que talvez seja a mãe das
posteriores confissões de fé.385
Dessa forma, a exegese do texto deve admitir a ambiguidade do verbo
utilizado, e considerá-lo em conjunto com o horizonte escatológico presente na
passagem, para solucionar a tensão existente no universalismo encontrado aqui.386
Não é necessário trazer para o verbo ἐξομολογέω um improvável exclusivo sentido
proveniente do grego clássico para explicar que nem todos confessarão Jesus como
Senhor de maneira espontânea. Aliás, o verbo em tela é parte de uma passagem com
profundas influências do Antigo Testamento, e da LXX em particular, e faz parte
de uma alusão ao texto de Is 45,23, que traz o mesmo verbo, alterando apenas o seu
aspecto temporal. Ou seja: o sentido neutro de simples admissão está presente em
ἐξομολογέω, como também o aspecto positivo, de um alegre e sincero
reconhecimento. A escatologia paulina e a do cristianismo primitivo presentes na
passagem são decisivas para a elucidação da questão.387
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5.7
O significado bíblico-teológico da reverência oferecida em Fl 2,10-11
5.7.1
Quem reverencia e quem é reverenciado
384
FITZMYER, J. κύριος. In: DENT, p. 2439; BIETENHARD, H. κύριος. In: DITNT, p. 2320.
385
CULLMANN, O., Cristologia do Novo Testamento, p. 284.
386
O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 247-250, apresenta seis extensos argumentos
em favor do sentido neutro de ἐξομολογέω. Ele, porém, nem conjectura a possibilidade do autor
estar usando o verbo de forma propositadamente ambígua. O ponto é que a maioria dos autores que
defendem o verbo como neutro querem com isso afastar a implicação teológica de que no final dos
tempos todos os seres, sem exceção, oferecerão uma adoração voluntária e alegre a Jesus, incluindo
os poderes atualmente hostis a Deus. No entanto, ao fazerem isso esquecem que o verbo no texto
também funciona para a Igreja, a qual não faz uma mera admissão do senhorio de Jesus. Nesse
sentido, essa interpretação só é coerente quando a Igreja é excluída da cena, e apenas as forças
contrárias a Deus, os demônios, são visualizados. É a proposta original de Lohmeyer, seguida por
Martin. Todavia, coerência não é correção, e esta interpretação deve ser afastada por outras
considerações.
387
Apesar do contrário parecer óbvio, a tese de Martin de interpretar ἐξομολογέω à luz do grego
clássico é seguida por vários exegetas, como HELLERMAN, J. H., Philippians, p. 123.
109
desta última expressão não é instrumental, como se as ações dos verbos em questão
fossem feitas através do nome de Jesus, mas dirigidas a Deus Pai. Ao contrário, a
honra é dirigida ao Cristo exaltado.388 Tudo aqui é feito para o próprio Jesus e por
causa do nome que agora ele tem. Na locução preposicional o genitivo Ἰησοῦ é
possessivo, ou seja, dobrar o joelho e confessar o nome que pertence a Jesus, e já
ficou estabelecido que esse nome é o título κύριος. O Cristo exaltado como κύριος
é o recipiente das ações descritas nos versículos 10-11.389 A evidência da
Septuaginta fortalece esse argumento, pois nela cultuar “em nome de Deus”
significa adoração dirigida ao próprio Deus.390 Entre outros, é o caso de 2Sm 22,50;
Sl 43,9; 62,5 e 88,13, textos que literalmente usam a expressão ἐν τῷ ὀνόματι.
Assim a ênfase da frase está na proclamação de Jesus como Senhor. Quando
o nome daquele que tem o nome sobre todo nome é proclamado todos devem dobrar
os joelhos, reverenciá-lo e reconhecê-lo como Senhor. Em outras palavras,
adoração dever ser dirigida a Jesus.391 A situação típica no culto cristão em que isso
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388
O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 240.
389
MARTN, R. P., A Hymn of Christ, p. 249-250. Da mesma forma pensa BRUCE, F. F.,
Filipenses, p. 83; HAWTHORNE, G., Philippians, p. 115; entre outros.
390
BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 145.
391
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 251-252; BOCKMUEHL, M., The Epistle to the
Philippians, p. 145
392
MARTIN, R. P., Filipenses, p. 115. De fato, o batismo é considerado por alguns como a possível
situação litúrgica na qual o hino originalmente teria sido usado, se algum dia ele existiu fora da carta
aos Filipenses. cf. MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 81-82.
393
Esse foi um dos pontos fundamentais para Lohmeyer rejeitar a autoria paulina do hino. Da mesma
forma KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 109
394
Segundo MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 253, Lohmeyer está usando mito conforme a
definição de Bultmann: “o uso de imagens para expressar o outro mundo em termos deste mundo e
o divino em termos de vida humana, o outro lado em termos deste lado”.
110
395
BRUCE, F. F., Filipenses, p. 89.
396
Não significa assim que um dia todo o universo tornar-se-á discípulo voluntário e feliz de Jesus.
VOLF-GUNDRY, J. M., Universalismo. In: DPC, p. 1220-1221.
397
DE BOOR, W.; HAHN, E., Cartas aos Efésios, Filipenses e Colossenses, p. 212.
111
5.7.2
Quando é reverenciado
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398
EGGER, W., Metodologia do Novo Testamento, p. 131.
399
Nesse quesito ele foi seguido de perto por MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 267-270. Outra
solução é apresentada por BARTH, G., A carta aos Filipenses, p. 48, 52-53. Ele entende que Fl
2,10-11 apresenta o que os poderes espirituais ofereceram a Jesus no momento da sua exaltação.
Seguindo o padrão das cerimônias de entronização, no momento da ressurreição / exaltação, os
poderes espirituais que atuavam no universo de forma rebelde, se prostraram diante de Jesus e
reconheceram ele como o legítimo Senhor do cosmos. Disso ele conclui que o hino traz uma
escatologia diferente daquela caracteristicamente paulina, ou seja, uma escatologia já completa e
realizada, sem esperança futura.
400
CULLMANN, O., Cristo e o Tempo, p. 179.
112
para o futuro, para o que Deus tinha preparado para o final dos tempos. Já os
primeiros cristãos entenderam que o acontecimento salvífico preparado por Deus já
aconteceu. Para eles “o futuro não é mais, como no judaísmo, o telos doador de
sentido a toda a história... Na realidade, o τέλος que dá seu sentido à história é Jesus
Cristo que já veio”.401 Isso não significa, porém, que o futuro perdeu o seu valor.
Ele foi sim resignificado no cristianismo primitivo em relação ao judaísmo.
O papel do futuro fica ainda mais claro quando se entende o sentido
histórico-salvífico do presente nesse esquema. Antes de tudo, é um presente
delimitado. Não é um presente ad eternum. Ele começou na exaltação de Cristo e
terminará na sua parusia.402 E o conteúdo cristológico desse presente é o reinado de
Jesus. Aqui volta-se para o conteúdo de Fl 2,10-11. Para o cristianismo primitivo,
a exaltação de Jesus caracteriza o início da sua soberania cósmica: nos céus, na
Terra e debaixo da Terra.403
W. Bousset sustentou que essa era uma compreensão que somente se
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401
CULLMANN, O., Cristo e o Tempo, p. 182. Grifos dele.
402
CULLMANN, O., Cristo e o Tempo, p. 194. Assim também KÄSEMANN, E., Ensayos
Exegeticos, p. 111: “Segundo a concepção neotestamentária, o tempo do fim começa precisamente
com o que se realiza com Cristo e em Cristo. Naturalmente, o que aqui se descreve não pode
considerar-se, todavia, como acabado. Ele se cumpre continuamente... até que chegue a parusia”.
403
Segundo 1Cor 15,24 no final desse presente Jesus entregará o reino a Deus Pai. É difícil, no
entanto, distinguir entre um Reino de Deus e um Reino de Cristo (Regnum Dei e Regnum Christi).
Kreitzer opina que ao invés de forçar a passagem nessa direção, é necessário compatibilizá-la com
outros textos paulinos, e assim concluir que não existe uma diferença real entre Reino de Deus e
Reino de Cristo. KREITZER, L. J., Reino de Deus/Cristo. In: DPC, p. 1054-1055. Pode-se tão
somente dizer que nesse período da história da salvação Deus está reinando através de Cristo. “No
pensamento do apóstolo não há distinção real entre o reino de Deus e o reino de Cristo”. GUTHRIE,
D.; MARTIN, R. P., Deus. In: DPC, p. 385. Veja que Ap 11,5 vislumbra um reinado conjunto entre
Deus e o Messias: “O reino do mundo se tornou de nosso Senhor e do seu Cristo, e ele reinará pelos
séculos dos séculos”.
404
Para BULTMANN, R., Teologia do Novo Testamento, p. 173, essa ênfase no senhorio presente
de Jesus, inclusive com suas implicações litúrgicas, “é o aspecto característico da comunidade
escatológica do cristianismo helenista, pois foi nela que, pela primeira vez, a figura de Jesus Cristo
não é apenas a do salvador escatológico”.
113
será objeto do próximo capítulo. O Sl 110,1 pode estar implícito na expressão πᾶν
γόνυ κάμψῃ ἐπουρανίων καὶ ἐπιγείων καὶ καταχθονίων. O Salmo diz “Oráculo de
Iahweh ao meu senhor: ‘Senta-te à minha direita, até que eu ponha teus inimigos
como escabelo de teus pés’”. Esse texto tornou-se uma fonte de reflexão
cristológica já na fase mais primitiva da igreja,408 um caminho indicado pelo próprio
Jesus segundo os evangelhos sinóticos (Mt 22,4-16; Mc 12,35-37; Lc 20,41-44). E
ainda nesta fase inicial, ele foi ligado a um versículo de outro salmo de intepretação
messiânica, o Sl 8,7, que afirma: “Para que domine as obras de tuas mãos sob seus
pés tudo colocaste”.409 A associação entre os dois salmos pode ser constatada em
405
Parece que a ideia uma igreja helenística separada de Jerusalém e anterior à conversão de Paulo
foi apresentada pela primeira vez em 1912 (um ano antes do lançamento da obra de Bousset) em um
artigo de W. Heimüller, como informa HENGEL, M., Between Jesus and Paul, p. 32-33. Destarte,
Hengel também afirma que cresceu entre os estudiosos da área a consciência de que na Igreja de
Jerusalém havia cristãos de fala grega, de modo que formulações cristológicas feitas em grego não
necessariamente refletem um período posterior. Nas palavras de DODD, C. H., Segundo as
Escrituras, p. 116: “remontar a uma época em que não havia nenhum cristão de língua grega é uma
tarefa desesperadora”.
406
SCHNACKENBURG, R., Cristologia do Novo Testamento, p. 24-38; DUNN, J. D. G.,
Unidade e Diversidade no Novo Testamento, p. 147-151; RIDDERBOS, H., A teologia do
apóstolo Paulo, p. 85.
407
MARSHALL, I. H., The Origins of New Testament Christology, p. 102-103.
408
DODD, C. H., Segundo as Escrituras, p. 104-105; BRUCE, F. F., Paulo: apóstolo da graça,
p. 111. Ambos os autores relacionam o salmo 110,1 como um dos mais antigos testimonia da igreja
pimitiva.
409
DUNN, J. D. G., A teologia do apóstolo Paulo, p. 296.
114
1Cor 15,25-27; Ef 1,20-22; 1Pe 3,22 e Hb 1,13-2,9.410 Os dois salmos foram ligados
à exaltação de Jesus, e assim, ao título κύριος. O “Senta-te à minha direita” ligou-
se à ascensão de Jesus (chegando a ser incluído no chamado “Credo apostólico”);
o “sob seus pés tudo colocaste” relacionava-se ao senhorio presente e universal de
Cristo, e os “inimigos” do Sl 110,1 foram interpretados como os principados e
potestades, indicando a soberania espiritual de Jesus.411 E como notado acima, o
entendimento correto da expressão πᾶν γόνυ κάμψῃ ἐπουρανίων καὶ ἐπιγείων καὶ
καταχθονίων inclui o conceito da subordinação das forças cósmicas ao Jesus
exaltado. Justamente o reinado de Cristo no presente envolve a subjugação de todos
esses “inimigos” que, no entanto, serão finalmente derrotados na parusia, nessa
tensão entre presente e futuro. 412
Dessa forma, para o cristianismo primitivo o reinado de Cristo já começou
em sua exaltação,413 e o seu senhorio sobre as forças cósmicas está dentro da famosa
categoria neotestamentária do já-e-ainda-não, ou seja, Cristo já as subjugou e é
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Senhor sobre elas, mas elas ainda não foram destruídas e ainda exercem algum tipo
de atividade no mundo.414 Esse paradoxo está bem expresso em outros textos do
cristianismo primitivo, como em 1Pe 3,22: “que, tendo subido ao céu, está à direita
de Deus, estando-lhe sujeitos os anjos, as Dominações e as Potestades” e na
Segunda Epístola de Policarpo aos Filipenses 2,1: “crendo naquele que ressuscitou
nosso Senhor Jesus Cristo dos mortos e lhe deu a glória e o trono à sua direita. Tudo
o que existe no céu ou na terra lhe está submisso”.415
410
DUNN, J. D. G., A teologia do apóstolo Paulo, p. 296.
411
DODD, C. H., Segundo as Escrituras, p. 118; CULLMANN, O. Cristologia do Novo
Testamento, p. 292; CULLMANN, O., Cristo e o Tempo, p. 239. Neste último o autor defende
que a interpretação dos inimigos do Sl 110,1 como potestades pelo Novo Testamento, foi
intermediada pela crença existente no judaísmo tardio de que as nações são governadas por anjos.
412
KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 113, vai entender que esse tema da subjugação dos
poderes é uma adaptação cristã do mito helenista do salvador entronizado, presente especialmente
na quarta écloga de Virgílio.
413
A interpretação da temática do reino de Deus nos evangelhos sinóticos dá conta que o ministério
terreno de Jesus já inaugurou esse reino. A presença de Jesus já é a manifestação do Reino. Só que
a ação de Jesus que traz o reino não é só a encarnação e sua pregação, mas o complexo de eventos
que marca essa virada escatológica, e cujo último acontecimento foi a exaltação. Dessa forma, Paulo
de forma acertada enfatiza o reinado de Cristo a partir da sua exaltação, sem estabelecer
necessariamente uma contradição com os sinóticos.
414
BARCLAY, W., Filipenses, Colosenses, I y II Tesalonicenses, p. 46, apresenta um tipo de
universalismo romântico, através do qual defende que o senhorio de Cristo nunca envolve
subjugação. Segundo ele, no final dos tempos, todo o universo aclamara Jesus como Senhor
constrangido pelo tamanho do seu amor e sacrifício.
415
POLICARPO DE ESMIRNA, Segunda Carta aos Filipenses, p. 139-140.
115
soberania”, pois nela essa soberania torna-se visível.419 Isso ocorre porque dentro
desse período delimitado como presente e dentro desse espaço que é o cosmos, é na
Igreja que se pode encontrar aqueles que dobram os seus joelhos ao nome de Jesus
e confessam com seus lábios que Jesus Cristo é Senhor. Aquilo que será no tempo
futuro uma realidade universal, já acontece no tempo presente, no espaço chamado
Igreja. Nesse contexto deve ser mencionada a proximidade entre o Jesus exaltado e
Espírito Santo. Porque nesse presente da história da salvação a Igreja é a
comunidade caracterizada pela presença do Espírito e dirigida por ele. E esse
fenômeno é consequência da exaltação de Jesus. Estar na Igreja é equivalente a estar
em Cristo, que é sinônimo de estar no Espírito. Ou ainda, na ótica do presente da
história da salvação estar na Igreja e estar no Espírito equivale a vivenciar o reinado
do Cristo exaltado.420 E por outro lado, o Espírito Santo é nesse tempo o agente de
Cristo, pois ele age na comunidade promovendo o nome de Jesus.421 “Assim, o
416
MOULE, C. F. D., The Birth of the New Testament, p. 149.
417
KREITZER, L. J., “When He at Last Is First!”, p. 120.
418
CULLMANN, O., Cristo e o Tempo, p. 194-195.
419
CULLMANN, O., Cristo e o Tempo, p. 194.
420
KREITZER, L. J., Reino de Deus/Cristo. In: DPC, p. 1054.
421
WITHERINGTON III, B., Cristologia. In: DPC, p. 324. Isso não implica dizer que Paulo
confundia o Senhor exaltado com o Espírito Santo.
116
Senhor exaltado está presente e disponível para o fiel por meio do Espírito que nele
habita”.422
E essa perspectiva possui uma dupla função pragmática. Para a Igreja
propriamente dita, o hino faz ver além do presente para contemplar a realidade
escatológica completa, quando todas as forças, poderes e seres que hoje se opõem
e mesmo perseguem o corpo de Cristo aqui na Terra, dobrarão os joelhos diante do
Senhor da Igreja, e confessarão o seu nome reconhecendo então sua derrota.423
Assim “quando o hino é cantado, e seu poderoso senhorio é reconhecido e
confessado, a Igreja mostra que, mesmo agora e aqui sobre a Terra, existe um
presente Reino de Cristo; e que ela é chamada a viver (e sofrer) sob o senhorio dele
que é a cabeça da Igreja”.424 Nessa perspectiva, o texto tanto traz esperança, pois
mostra a realidade que hoje só é conhecida pela fé,425 quanto reafirma para o cristão
a sua situação atual de estar “ἐν Χριστῷ” (Fl 2,5), e que a sua vida deve
corresponder a essa situação escatológica na qual ele está inserido, tendo Jesus, o
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422
MAILE, J. F., Exaltação e Entronização. In: DPC, p. 524.
423
Ao contrário do exposto acima, HAWTHORNE, G. F., Philippians, p. 116, apresenta uma
opinião bem peculiar. Na visão dele, o hino esboça a expectativa de que um dia todo o universo se
submeterá alegremente a Jesus como Senhor. Ele parte da premissa de que o texto tem em mira
todos os seres inteligentes do universo, e que todos eles têm a liberdade de escolher a quem vão se
submeter. Nesse sentido, o hino estaria afirmando que Deus exaltou Jesus com essa intenção, porém,
por causa da liberdade dos seres, a própria expectativa de Deus pode ser frustrada. É difícil, no
entanto, considerando os dados bíblicos, pensar que essa seja a expectativa de Deus em relação aos
demônios, por exemplo.
424
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 291.
425
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 269-270. Cullmann indica que no momento da Eucaristia
em cada culto cristão, a Igreja experimenta a atualização da história da salvação, evocando os
acontecimentos do evento central (morte e ressurreição) e antecipando algo que só deveria ocorrer
no final dos tempos, que é a comunhão com Jesus Cristo ressurreto. CULLMANN, O., Cristo e o
Tempo, p. 199. Isso dá alguma razão aos que pensam que Fl 2,6-11 se originou em um contexto
eucarístico. Essa era a tese de Lohmeyer, que entre outros argumentos afirmou que nesta perícope
“a fé da igreja é direcionada a um alvo puramente escatológico”. E. Lohmeyer apud “MARTIN, R.
P., A Hymn of Christ, p. 94.
426
MARTIN, R. P., Filipenses, p. 115-116.
117
por isso, com gratidão e de forma voluntária, dobram os joelhos diante de Jesus.
Em contrapartida, aqueles que aqui rejeitam Jesus Cristo, na sua parusia terão de
curvar-se diante dele com vergonha e tristeza.427
5.8
Fl 2,10-11 e a adoração a Jesus
que a adoração a Jesus no culto resultante de uma cristologia da exaltação foi uma
deturpação, equivalente à criação de uma nova religião, em relação aos cristãos de
Jerusalém.429 O pressuposto é que seria inconcebível para um judeu adorar outra
pessoa ao lado de Deus. Para sair desse dilema, uma das propostas foi reconhecer
que a liturgia das igrejas palestinense e helenística, a saber, os hinos, as orações, o
próprio culto, sempre foi destinado a Deus. Jesus desempenhava um duplo papel: o
de conteúdo do culto, onde a igreja louvava e agradecia a Deus por Jesus; e
mediador do culto: as orações, ações de graças e louvores chegam ao Pai por meio
do Senhor Jesus. De fato, ambas as funções de Jesus são atestadas no Novo
Testamento. Como mediador, Jo 16,23,26; Rm 1,8; Ef 5,20; Cl 3,17; 1Tm 2,5, entre
outros. Como conteúdo, os hinos de Fl 2,6-11; Cl 1,15-20; 1 Tm 3,16, e em especial
a celebração da Ceia do Senhor. Mas deve se parar por aí? J. D. G. Dunn acha que
sim.430 Ele recomenda cautela quando se fala de um culto a Jesus no cristianismo
primitivo. Ele sugere seguir a terminologia proposta no concílio de Nicéia em 787,
427
BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 146-147.
428
BASEVI, C., Estudio Literario y Teológico del Himno Cristológico de la Epístola a los
Filipenses (Phil 2,6-11), p. 467-468.
429
BULTMANN, R., Crer e compreender, p. 109, afirma: “o cristianismo helenístico é uma
religião de culto; ele é, no fundo, uma religião totalmente nova em relação ao protocristianismo
palestinense”. Já FULLER, R. H., The foundations of New Testament Christology, p. 158,
considera que uma adoração a Jesus nem na igreja helenista ocorreu.
430
DUNN, J. D. G., A teologia do apóstolo Paulo, p. 305-308.
118
431
DUNN, J. D. G., A teologia do apóstolo Paulo, p. 308.
432
Como observa HURTADO, L. W., As Origens da Adoração Cristã, p. 110, “A antiga
distinção entre ‘veneração’ e ‘adoração’ a que Dunn se refere não é tão antiga o bastante para que
seja levada em conta na exegese do NT”.
433
O uso ambíguo que Atos faz do título pressupõe a divindade de Jesus, como se verá no ponto
4.1.3 do próximo capítulo. Por conseguinte, segundo WITHERINGTON III, B., Lord. In: DLNTD.
p. 670, “Esta ambigüidade não incomodou Lucas porque em sua visão a terminologia é igualmente
apropriada quando usada para Deus ou para Jesus, especialmente porque ele via Jesus como um
objeto de culto apropriado”. O título será κύριος será analisado com maior profundidade no próximo
capítulo.
434
Quanto à identificação de κύριος nesses textos como sendo Jesus, WITHERINGTON III, B., op.
cit., p. 670; MARSHALL, I. H., Atos, passim, e DUNN, J. D. G., The Christ and the Spirit, p.
245-248, concordam em relação a 7,60. A identificação de 1,24 é proposta por Marshall, e 13,2 por
Witherington III. Dunn considera que 1,24 refere-se a Deus, e que 13,2 é ambíguo.
435
MARSHALL, I. H., op. cit., p. 145-146.
436
Entre outros, assim pensam CULLMANN, O., A oração no Novo Testamento. p. 200; DUNN,
J. D. G., A teologia do apóstolo Paulo. p. 306; MARXEN, W., Christology. In: IDB, p. 151.
437
BULTMANN, R., Teologia do Novo Testamento, p. 176-178, defende que o Novo Testamento
testemunha apenas exemplos de orações feitas a Jesus fora do ambiente litúrgico, na vida pessoal,
como 2Co 12,8 e outros. Para ele orações litúrgicas dirigidas diretamente a Jesus na antiguidade só
são encontradas nos Atos dos apóstolos apócrifos.
119
438
CASEY, P. M., Lord Jesus Christ: A response to professor Hurtado, p. 83 – 96; HURTADO,
L. W., Devotion to Jesus and historical investigation: a grateful, clarifying and critical response
to professor Casey, p. 97-104; GREEN, J. B., Larry W. Hurtado, One God, One lord: early
christian devotion and ancient jewish monotheism, p. 58-59.
439
HURTADO apud GREEN, J. B, Larry W. Hurtado, One God, One lord, p.59.
440
Ibidem, p. 134.
441
BAUCKHAM, R. J., The Worship of Jesus in Philippians 2:9-11, p. 129.
120
a elevação de Jesus a Senhor exaltado fez não apenas que a igreja entendesse que
ele tinha um ministério no presente junto à igreja, mas proporcionou que a igreja
também adorasse Jesus como Deus. Essa resenha dos dados neotestamentários,
somada à aplicação a Jesus do texto profético de Is 45,23, torna certo que o escopo
de Fl 2,10-11 é de uma adoração a Jesus, expressa através de atitudes bem
concretas: dobrar os joelhos e confessar Jesus como Senhor. A importância do texto
para a questão é expressa categoricamente pela frase: “Fl 2,9-11 é o texto existente
mais antigo no qual a adoração a Jesus é representada”.442
5.9
Conclusão do capítulo
442
BAUCKHAM, R. J., The Worship of Jesus in Philippians 2:9-11, p. 128.
121
6.1
Introdução ao capítulo
Nas palavras ὅτι κύριος Ἰησοῦς Χριστὸς εἰς δόξαν θεοῦ πατρός o hino
alcança o seu clímax. A narrativa que trouxe o drama cristológico que começou na
preexistência, passou pela encarnação, humilhação e foi até a exaltação, que
mostrou o grande evento escatológico da exaltação de Jesus, seu alcance cósmico
e suas implicações soteriológicas e parenéticas, chega ao seu auge na declaração:
Jesus Cristo é Senhor.443 É uma frase que responde a duas perguntas
fundamentais, para os cristãos de Filipos e de todos os lugares e épocas: quem é
Jesus hoje? O cristão responde: Ele é Senhor. E à pergunta: quem é Senhor hoje?,
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ele responde: É Jesus. E a partir dessa última frase, é possível entender o restante
do hino respondendo às pertinentes questões: por que ele é Senhor? Porque Deus,
o Deus de Israel, o exaltou. E o que se deve fazer diante desse Senhor? Submeter-
se a ele em obediência e adoração e confessá-lo como seu Senhor. A proposta do
presente capítulo é entender exegeticamente a última frase do versículo 11, e
identificar todo o conteúdo teológico presente nela.
6.2
A confissão “Jesus Cristo é Senhor”
443
O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 246; FITZMYER, J. A. Teologia Paulina.
In: NCBSJ, p. 1603.
444
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 271.
123
pois essa afirmação tanto é o conteúdo da confissão que todo o universo deve
fazer, agora e no final dos tempos, quanto a própria razão pela qual é necessário
que todos se sujeitem a ele, porque agora ele e apenas ele é o único κύριος do
universo.445
Martin defende que essa é a confissão das forças espirituais que foram
subjugadas por Jesus, excluindo a Igreja, porque a confissão não é “Jesus Cristo é
nosso Senhor”.446 Ora, o simples paralelo com outros dois textos no Novo
Testamento afasta esta interpretação. Em Rm 10,9 Paulo afirma: “Porque, se
confessares [ὁμολογήσῃς] com tua boca que Jesus é Senhor e creres em teu
coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo”. Aqui o primeiro
critério soteriológico apresentado por Paulo é confessar que Jesus é Senhor, sem
qualquer necessidade de um pronome possessivo. Outro texto que entra nessa
discussão é 1Cor 12,3: “... ninguém pode dizer: ‘Jesus é Senhor’ a não ser no
Espírito Santo”. Neste texto, confessar Jesus como κύριος é evidência da presença
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e ação do Espírito Santo no indivíduo. Dessa forma, seria muito estranho que em
Filipenses o apóstolo imaginasse a sentença que era praticamente a confissão de fé
fundamental dos círculos paulinos com exclusividade na boca de anjos, demônios,
principados e potestades, excluindo os seres humanos crentes em Jesus.
6.2.1
A confissão “Jesus Cristo é Senhor” no Novo Testamento
445
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 272.
446
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 279.
447
Isso provém da associação da fórmula com o termo grego ὁμολογία. VIELHAUER, P., A
história da literatura cristã primitiva, p. 52; KRAMER, W., Christ, Lord and Son of God, p.
65-67. Kramer reputa a H. Conzelmann a designação da confissão de fé como homologia.
Outrossim, STAUFFER, E., New Testament Theology, p. 338, apresenta um apêndice com 12
critérios para se identificar uma fórmula credal no Novo Testamento. Quanto à Rm 10.9; 1Co 12.3
e Fl 2.11, cinco ou seis critérios são válidos.
124
καὶ οὐδεὶς δύναται εἰπεῖν· Κύριος Ἰησοῦς, εἰ μὴ ἐν πνεύματι ἁγίῳ. (1Cor 12,3)
ἀλλ᾽ ἡμῖν εἷς θεὸς ὁ πατὴρ ἐξ οὗ τὰ πάντα καὶ ἡμεῖς εἰς αὐτόν, καὶ εἷς κύριος
Ἰησοῦς Χριστὸς δι᾽ οὗ τὰ πάντα καὶ ἡμεῖς δι᾽ αὐτοῦ. (1Cor 8,6)
448
Rm 1,3b-4 também é considerado uma fórmula confessional, mas além de ser um pouco mais
elaborada que as fórmulas citadas (talvez na direção de uma formulação próxima a um credo), ela
não tem como foco o senhorio de Jesus, mas a sua designação como Filho de Deus. Ademais, a
caracterização do gênero dos textos nem sempre é consensual, de modo que nem todos os autores
listam os mesmos textos quando falam de confissões de fé. Existe especial confusão entre a
designação “hino” e “confissão de fé”. Destarte, MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. XXVI,
indica Cl 2,6 ao lado dos textos citados acima. O texto diz: Ὡς οὖν παρελάβετε τὸν Χριστὸν
Ἰησοῦν τὸν κύριον, ἐν αὐτῷ περιπατεῖτε. Não há aqui a formula confessional como nos demais
textos citados acima, e por isso Cl 2,6 não será analisado aqui. Por outro lado, quando o texto
remete à experiência de receber Jesus como Senhor, pode estar recordando exatamente a confissão
de fé: “Jesus é Senhor”, como a experiência inicial da vida cristã, ocorrida no batismo.
449
G. Bornkmann apud VIELHAUER, P., A história da literatura cristã primitiva, p. 52. Do
ponto de vista teológico O. Michel define a concepção paulina de homologia como “resposta ao
evangelho de Cristo, obediência à sua mensagem, aceitação de sua declaração e expressão de seu
compromisso”. O. Michel apud RIDDERBOS, H., Teologia do apóstolo Paulo, p. 283.
450
KRAMER, W., Christ, Lord and Son of God, p. 67.
451
Diversos autores, entre eles FITZMYER, J. A., κύριος. In: DENT, p. 2439; BIETENHARD, H.,
κύριος. In: DITNT, p. 2320.
452
F. F. BRUCE apud MARSHALL, I. H., The origins of New Testament Christology, p. 106.
125
título que dava o direito a César de receber honras divinas e, neste sentido, não
podiam atribuí-las a mais ninguém senão a Jesus.453
Isso é o que leva a identificação deste único Senhor pelo seu nome de nascimento:
o Senhor é Jesus, aquele Jesus de Nazaré. Posteriormente, a mesma confissão
também funcionou como delimitação às pretensões imperiais. Afinal, César
também não é senhor.
Em 1Cor 12,3 a confissão funciona como critério para avaliar nada menos
do que a obra do Espírito Santo. O contexto é a discussão acerca dos carismas.
Tendo em vista a grande confusão que havia em torno desse tema em Corinto,
Paulo estabelece o confessar Jesus como Senhor como critério para quem de fato
“fala pelo Espírito de Deus”. De novo, vem a questão: por que o título κύριος? A
resposta passa pela estreita ligação entre o reconhecimento do senhorio de Jesus e
o culto. A própria existência de um culto cristão gira em torno do fato de Jesus ser
o Senhor. Destarte, também existe no Novo Testamento, sobretudo em Paulo, um
forte vínculo entre o senhorio de Jesus e a ação do Espírito. 2Coríntios 3,17: “Pois
453
BRUCE, F. F., Filipenses, p. 84.
454
Em relação a esse texto Leenhardt afirma “Senhorio e ressurreição são inseparáveis. É a fé na
ressurreição que provê a base para a confissão do Senhorio de Cristo”. F. J. Leenhardt apud
GUTHRIE, D., New Testament Theology, p. 296.
455
MacARTHUR Jr., J. F., O Evangelho Segundo Jesus, p. 278-284, que refuta a tese de que essa
seja simplesmente uma confissão da divindade de Jesus, embora isto esteja incluído. Cf. também
DUNN, J. D. G., Unidade e Diversidade no Novo Testamento, p. 202.
456
VIELHAUER, P., A história da literatura cristã primitiva, p. 53, “Com essa aclamação a
comunidade se submete ao Jesus exaltado como seu Senhor, proclama seu domínio perante o
mundo e realiza uma polêmica delimitação contra as pretensões de qualquer outro κύριος”.
126
457
Segundo W. Kramer, a associação entre κύριος e πνεῦμα não existia na tradição, foi criação de
Paulo. KRAMER, W., Christ, Lord and Son of God, p. 165.
458
E. KÄSEMANN apud BRUCE, F.F., Paulo, o apóstolo da graça, p. 116.
459
Na linguagem pouco cautelosa de Dunn: “Isto quer dizer que o Cristo glorificado agora é
experimentado no Espírito, através do Espírito e como Espírito”. DUNN, J. D. G. Espírito. In:
DITNT, p. 736.
460
Sobre 1Co 8,6 CULLMANN, O., Cristo e o Tempo, p. 64, afirma que é “a mais antiga
confissão de fé em dois termos”.
461
WRIGHT, N. T., Un Dios, un Señor, un pueblo, p. 2-3. Segundo este autor a questão dos
ídolos era seriamente importante para os cristãos de Corinto, pois em uma cidade como aquela é
possível que toda a carne disponível tivesse sido oferecida em algum altar.
462
Ibid., p. 5.
127
463
Na continuidade da discussão Paulo apresenta o argumento de se pensar na consciência do
próximo.
464
Além dessas confissões que refletem a cristologia do κύριος, VIELHAUER, P., A história da
literatura cristã primitiva, p. 62-63 aponta também para o texto de Efésios 4,5 “há um só Senhor,
uma só fé, um só batismo”, mas a identificação deste texto como confissão de fé é pouco
consensual.
465
DUNN, J. D. G., Unidade e Diversidade no Novo Testamento, p. 131-133 tenta protestar
contra isso, mas seus argumentos são inconclusivos e ele mesmo deixa transparecer as relações
litúrgicas da confissão.
466
Conferir o posicionamento contrário de CERFAUX, L. Cristo na teologia de Paulo, p. 361.
467
Assim KELLY, J. N. D., Primitivos credos cristianos, p. 30; SÁNCHEZ BOSCH, J., Maestro
de los pueblos, p. 188 – 189. Admitem o sitz im leben no culto sem precisar o momento do
batismo KRAMER, W., Christ, Lord and Son of God, p. 65-67; VIELHAUER, P., A história da
literatura cristã primitiva, p. 53; BIETENHARD, H. κύριος. In: DITNT, p. 2320.
468
RIDDERBOS, H., Teologia do apóstolo Paulo, p. 264, “aquilo que é típico de ‘confissão’
encontra-se, assim, no fato de que é a expressão exterior da fé. Nesse sentido, tem certo
significado legal, no qual o ‘fórum’ ou as ‘testemunhas’ podem ser vistos como o tribunal do
mundo composto dos homens em geral, mas também como a Igreja ou seus representantes perante
os quais alguém professa a sua fé e assume um compromisso com o conteúdo da fé”.
128
6.2.2
A confissão “Jesus Cristo é Senhor” em Fl 2,11
“nosso Senhor Jesus Cristo” (Gl 6,18); “Senhor Jesus Cristo” (2Cor 13,13), e
“Senhor Jesus” (1Co 11,23). Em todas essas variações a ênfase está no senhorio
de Jesus: “sintaticamente, nessas expressões, ‘Jesus’, com ou sem ‘Cristo’,
identifica o ‘Senhor’ e ‘Senhor’ define quem Jesus é para os cristãos e seu
relacionamento com ele”.473 Em termos de origem da confissão de fé nos termos
apresentados aqui em Fl 2,11 é possível que a influência das fórmulas litúrgicas já
utilizadas nas bênçãos (como em Fl 1,2) tenha levado Paulo a fazer uma leve
ampliação da expressão confessional, resultando em uma frase mais completa
cristologicamente.474 Seja como for, mesmo assim o foco da confissão é o título
469
BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 147.
470
DE BOOR, W.; HAHN, E., Cartas aos Efésios, Filipenses e Colossenses, p. 213.
471
FEE, G. D., Comentario de la Epístola a los Filipenses, p. 294.
472
BASEVI, C., Estudio Literario y Teológico del Himno Cristológico de la Epístola a los
Filipenses (Phil 2,6-11), p. 467-468.
473
HURTADO, L. W., Senhor. In: DPC, p. 1154. CERFAUX, L., Cristo na Teologia de Paulo,
p. 392, sugere que a expressão “Jesus Cristo” nessa ordem está afirmando Deus ressuscitou este
homem Jesus e lhe deu a função e a dignidade de salvador messiânico. Em contrapartida, quando
Paulo diz “Cristo Jesus”, o pensamento parte do Cristo preexistente que se revelou no homem
Jesus de Nazaré. Não parece, contudo, que exista toda essa reflexão teológica em expressões
usadas de forma tão rotineira por Paulo. Para Lohmeyer a ausência do pronome “nosso” apontaria
para o senhorio de Jesus sobre todo o cosmos, e não apenas sobre a Igreja. BROWN, C., Ernst
Lohmeyer’s Kyrios Jesus, p. 16.
474
HURTADO, L. W., Senhor. In: DPC, p. 1152.
129
6.3
O título κύριος atribuído a Jesus
6.3.1
Panorama da atribuição de κύριος a Jesus no Novo Testamento
475
CERFAUX, L., Cristo na teologia de Paulo, p. 369, “κύριος é a palavra principal”.
Igualmente MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 271.
476
Ele chega próxima a essa afirmação em Rm 9,4-5.
477
Assim MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 279.
478
BULTMANN, R., Teologia do Novo Testamento, p. 174.
130
sem qualquer conotação religiosa (entre outros, Jo 4,11.15.19; 5,7; 8,11; 9,36).479
Em um outro grupo de referências, constata-se que o título é usado com sentido de
mestre, fazendo um par linguístico com δοῦλος, trazendo subjacente a noção de
discipulado entre Jesus e seus interlocutores. Veja-se, por exemplo, a tendência
em Mateus de colocar κύριος onde Marcos utilizou ῥαββί e διδάσκαλος. Isso
ocorre em Mt 8,25 / Mc 4,38; Mt 17,4 / Mc 9,5; Mt 17,15/ Mc 9,17; Mt 20,33 /
Mc 10,51. Isso mostra que nesse período Jesus era reconhecido com mestre (de
uma maneira que tanto se aproximava quanto tinha diferenças em relação ao
mundo judaico contemporâneo). Os evangelistas preservaram esse
reconhecimento, não só mediante o uso de κύριος, como também através de outras
designações, como ῥαββί (Mt 23,7.8; 26,25.49; Mc 9,5; 11,21; 14,45; Jo 1,38;
3,2.26; 4,31; 6,25; 11,8)480 διδάσκαλος (Mt 8,18; 23.8; Mc 4,38; 5.35; 9.38; Lc
7,40; Jo 3,2; 11,28)481 e ἐπιστάτης (Lc 5,5; 8,24.45; 9,33.49; 17,13)482.
O segundo momento da atribuição de κύριος a Jesus no cristianismo
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479
HURTADO, L. W., Senhor. In: DPC, p. 1147. Schnelle entende que a importância de Χριστὸς
para os gentios era outra. Ele afirma que as cerimônias de unção que ocorriam na região do
Mediterrâneo naquele período geravam o senso comum religioso de que pessoas (ou coisas)
ungidas são sagradas, santas e consagradas a deus. Assim, judeus e gentios compreenderiam a
afirmação Ἰησοῦς Χριστὸς como predicado da singularidade religiosa de Jesus, ainda que seja
discutível se a utilização paulina e neotestamentária tivesse essa perspectiva religiosa em vista.
SCHNELLE, U., Paulo: Vida e Pensamento, p. 563.
480
A forma transliterada de רבִּ י.ַ
481
Nos evangelhos διδάσκαλος ocorre 49 vezes, e apenas em Lc 2,46 não se refere a Jesus.
482
É um termo exclusivo do evangelho de Lucas.
483
LONGENECKER, R., The Christology of Early Jewish Christianity, p. 129. Na mesma
direção afirma Hurtado: “em grupos cristãos primitivos, a ressurreição de Jesus continuou a ser
considerada a base histórica e demonstração da sua exaltação”. HURTADO, L. W., Senhor. In:
DPC, p. 1152.
131
esse título para explicar a pessoa e obra do Jesus exaltado e qual significado eles
estavam atribuindo a Jesus por meio dessa designação. A resposta para ambas as
perguntas passa em boa parte pela utilização de κύριος na Septuaginta e no
judaísmo.
6.3.2
Panorama da história da pesquisa sobre o título κύριος
484
A partir daí o título pôde ser associado a outros eventos cristológicos como a parusia. Através
das epístolas aos tessalonicenses percebe-se essa conexão (1Ts 4,16; 3,13; 4,15; 5,23).
CERFAUX, L., Cristo na Teologia de Paulo, p. 361-362.
485
DUNN, J. D. G., Teologia do Apóstolo Paulo, p. 292.
486
ROWE, C. K., Acts 2.36 and the continuity of lukan Christology, p. 51.
487
Veja-se, por exemplo, o quarto evangelho, que tanto no prólogo, quanto nos discursos de Jesus
apresenta uma cristologia “exaltada”, mas tem o cuidado de narrativamente só aplicar o título
κύριος a Jesus após a ressurreição, ou seja, a partir de 20,20: “Tendo dito isso, mostrou-lhes as
mãos e o lado. Os discípulos, então, ficaram cheios de alegria por verem o Senhor”.
132
488
Quanto à estatística, κύριος ocorre 274 vezes na literatura paulina global (nas 13 cartas
atribuídas a Paulo no Novo Testamento). Em termos de título cristológico, apenas Χριστός supera
essa marca, com 382 ocorrências. O problema é que muitas vezes este último termo é usado
apenas como nome (ou sobrenome) de Jesus, perdendo importância teológica na narrativa. No caso
de κύριος também deve-se excluir os textos em que o título refere-se a Deus ou outro personagem.
Ainda assim, o número de referências a Jesus é alto. Segundo Hurtado, seriam 180 considerando
apenas nas cartas incontestadas (ele deixa de lado as pastorais, 2Tessalonicensses e Efésios).
HURTADO, L. W., Senhor. In: DPC, p. 1150; WITHERINGTON III, B., Cristo. In: DPC, p. 308.
489
HURTADO, L. W., Senhor. In: DPC, p. 1149.
490
BIETENHARD, H., Senhor. In: DITNT, p. 2317; FOESTER, W.; QUELL, G., κύριος. In:
TDNT, p. 1061.
491
Segundo HURTADO, L. W., The Origin of the Nomina Sacra: a proposal, p. 655-673, essa
reverência ao nome divino influenciou o surgimento no cristianismo primitivo dos chamados
nomina sacra: são quatro nomes que eram abreviados em textos cristãos primitivos (já no 2º
século) por serem considerados sagrados, a saber: Ἰησοῦς; Χριστός, Κύριος e Θεός. A novidade
cristã, conforme Hurtado, é que entre os nomes reverenciados estão títulos cristológicos, bem
como a ausência de qualquer temor em pronunciar estes nomes.
133
492
FITZMYER, J. A., To Advance the Gospel, p. 221. Ele atribui a Cullmann essa interpretação.
493
Para um resumo desses questionamentos cf. FITZMYER, J. A., The Semitic Background of
the New Testament, p. 119-123; RÖSEL, M., The Reading and Translation of the Divine
Name in the Masoretic Tradition and the Greek Pentateuch, p. 414-419.
494
Entre os textos em questão estão o Papiro Fouad 266 (Dt 31); os doze profetas menores (LXX)
achados na caverna 4 de Qumran; fragmentos de Levítico 2.-5 na mesma caverna; fragmentos de
Áquila (provenientes do Cairo); fragmentos da segunda coluna da Hexapla (conhecidos por
Orígenes e Jerônimo). Cf. FITZMYER, J. A., The Semitic Background of the New Testament,
p. 120.
495
É a conclusão, por exemplo, de FOESTER, W.; QUELL, G., κύριος. In: TDNT, p. 1059.
496
FITZMYER, J. A., The Semitic Background of the New Testament, p. 124-127;
FITZMYER, J. A., To Advance the Gospel, p. 222-223; FITZMYER, J. A., κύριος. In: DENT, p.
2443.
497
VERMES, G., As várias faces de Jesus, p. 223. Da mesma forma HURTADO, L. W., Senhor.
In: DPC, p. 1148.
498
RÖSEL, M., The Reading and Translation of the Divine Name in the Masoretic Tradition
and the Greek Pentateuch, p. 414-419.
134
6.3.3
A importância teológica de confessar Jesus como Senhor
499
HURTADO, L. W., Senhor. In: DPC, p. 1149, argumenta que a utilização das formas hebraicas
na LXX, ou dos caracteres PIPI era apenas um artifício literário, mas na hora da leitura eles eram
provavelmente substituídos por κύριος. Igualmente DUNN, J. D. G., Teologia do apóstolo Paulo,
p. 296-297.
500
Questionamento formulado por CULLMANN, O., Cristologia do Novo Testamento, p. 264.
501
FOESTER, W.; QUELL, G. κύριος. In: TDNT, p. 1059.
135
502
FOESTER, W.; QUELL, G. κύριος. In: TDNT, p. 1062.
503
Ibid., p. 1081-1082.
504
DUNN, J. D. G., Teologia do apóstolo Paulo, p. 294: “no mínimo, professar Jesus como
Senhor expressava uma vida agora dedicada de serviço”.
505
HURTADO, L. W., Senhor. In: DPC, p. 1155.
506
MORGAN, R., Incarnation, Myth, and Theology, p. 65. Morgan mostra que para E. Käsemann
é exatamente essa confrontação, essa necessidade de resposta que faz do hino evangelho e não
mito.
507
MORGAN, R., Incarnation, Myth, and Theology, p. 66.
136
508
HURTADO, L. W., Senhor. In: DPC, p. 1155-1156.
509
HURTADO, L. W., Senhor. In: DPC, p. 1156-1157.
510
DODD, B. J., The Story of Christ and the Imitation of Paul, p. 160. Na frase imediatamente
antes ele afirma de forma sugestiva que não era o cantar repetitivo do modelo de Cristo que
capacitava os cristãos a viverem a vida digna do evangelho.
137
511
SCHNELLE, U., Paulo: Vida e pensamento, p. 565: “A comunidade reúne-se na presença do
poderosa do Exaltado, cujas forças salvífica, mas também castigadoras operam na celebração da
ceia”.
512
SCHWEIZER, E., Lordship and Discipleship, p. 67.
513
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 281.
514
KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos, p. 121.
138
515
WRIGHT, N. T., Novas perspectivas sobre Paulo, p. 84.
516
AUNE, D. E., Imperadores Romanos. In: DPC, p. 674.
517
WRIGHT, N. T., Novas perspectivas sobre Paulo, p. 89.
518
AUNE, D. E., Imperadores Romanos, In: DPC, p. 674.
519
HELLERMAN, J. H., Philippians, p. 124. SCHNELLE, U., Paulo: Vida e Pensamento, p.
476, faz menção de uma inscrição grega do período de Nero que celebrava: “O Kyrios do mundo
inteiro, Nero”.
520
MOESSNER, D. P., Turning Status ‘Upside Down’ in Philippi Christ Jesus’ ‘Emptying
Himself’ as Forfeiting Any Acknowledgment of His ‘Equality with God’ (Phil 2:6-11), p. 132.
KRENTZ cita com aprovação a tese de R. R. Brewer de que havia em Filipos “os Augustales,
libertos especialmente consagrados ao culto do divino Augusto, e que este culto imperial
prosseguiu por todo o século I da Era Comum”. KRENTZ, E., Paulo, os Jogos e a Milícia, p. 325.
139
521
HELLERMAN, J. H., Philippians, p. 122, lembra que as autoridades romanas estão incluídas
no termo ἐπιγείων.
522
De um ponto de vista sociológico, essa mensagem poderia provocar nos cristãos e no
cristianismo como movimento a sensação de um novo status privilegiado. Um novo mundo chegou
e agora todos estão subordinados a Jesus como Senhor, e são os cristãos que possuem um
relacionamento especial com este Senhor, eles estariam em uma posição “social” mais vantajosa
que seus adversários. WORTHAM, R. A., Christology as Community Identity in the
Philippians Hymn: The Philippians Hymn as Social Drama (Philippians 2:5-11), p. 285.
523
WORTHAM, R. A., Christology as Community Identity in the Philippians Hymn: The
Philippians Hymn as Social Drama (Philippians 2:5-11), p. 282.
524
WRIGHT, N. T., Novas perspectivas sobre Paulo, p. 90.
525
Não é de modo algum necessário adotar a chamada “interpretação ética” da passagem para se
extrair suas implicações sócio-políticas.
140
6.4
Para glória de Deus Pai
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1512070/CA
526
WRIGHT, N. T., Novas perspectivas sobre Paulo, p. 95.
527
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 273.
528
BOCKMUEHL, M., The Epistle to the Philippians, p. 148.
141
(ἐχαρίσατο) por Deus a Jesus. Então, se Fl 2,9-11 mostra que Jesus agora tem toda
autoridade (conforme Mt 28,18), também mostra que essa autoridade é
completamente derivada de Deus Pai,532 e exercida para a glória do Pai. “O
Senhorio de Cristo leva à glória de Deus”,533 para que um dia “Deus seja tudo em
todos” (1Co 15,28). Nas palavras de Kreitzer, poderia se afirmar que a exaltação
de Jesus é também a exaltação de Deus Pai.534
Outra questão importante nesta expressão é o sentido do substantivo
πατρός. Antes de tudo, é preciso observar a força do termo em Paulo. Em sua
teologia a paternidade de Deus é vista em três dimensões: Deus é o Pai de Jesus, é
o Pai dos cristãos e é o Pai do mundo. Com efeito, Guthrie opina que “não há
nenhum outro conceito de Deus que domine a teologia de Paulo mais do que
esse”.535 A questão que se levanta é: qual a dimensão dessa paternidade está
presente em Fl 2,11? Em outras palavras: Deus é pai de quem aqui?536 Käsemann
529
FOWL, S, Philippians, p. 104.
530
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 274.
531
MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 275-276.
532
HAWTHORNE, G. F., Philippians, p. 117.
533
O’BRIEN, P. T., The Epistle to the Philippians, p. 251.
534
KREITZER, L. J., “When He at Last Is First!”, p. 121.
535
GUTHRIE, D.; MARTIN, R. P., Deus. In: DPC, p. 383.
536
Ao que tudo indica o primeiro a elaborar essas três possibilidades para o termo πατρός na
passagem foi Lohmeyer. Cf. MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 277.
142
537
Quanto a isso Käsemann é seguido por MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. 277-278.
538
KÄSEMANN, E., Ensayos Exegeticos., p. 113-114. Na mesma direção Byrne: “o objetivo
final da sequência inteira [Fl 2,6-11] é recuperar o universo para a soberania e glória de Deus. O
papel e a dignidade de Cristo são meios e estão subordinados a isso”. BYRNE, B., A carta aos
Filipenses, In: NCBSJ, p. 448.
539
SCHNELLE, U., Paulo: Vida e Pensamento, p. 504: “A protologia e a escatologia, a história
universal e a história individual estão em Paulo numa correspondência mútua, porque Deus é o
princípio e a meta de tudo o que existe”.
143
6.5
Monoteísmo cristológico
540
HELLERMAN, J. H, Philippians, p. 124-125.
541
CASEY, P. M., From Jewish Prophet to Gentile God, p. 176.
144
542
WHITERINGTON III, B., Cristologia, p. 317; GUTHRIE, D.; MARTIN, R. P. Deus. In: DPC,
p. 380, 394.
543
DUNN, J. D. G., Teologia do apóstolo Paulo, p. 337.
544
GUTHRIE, D.; MARTIN, R. P., Deus. In: DPC, p. 394.
545
SCHNELL, U., Paulo: Vida e Pensamento, p. 608.
546
DUNN, J. D. G., Teologia do Apóstolo Paulo, p. 294.
547
DUNN, J. D. G., Unidade e Diversidade no Novo Testamento, p. 128-129, considera que este
foi um passo decisivo para o cristianismo helenista, entretanto, este passo já tinha se antecipado no
cristianismo de fala aramaica.
548
BAUCKHAM, R. J., The Worship of Jesus in Philippians 2:9-11, p. 130. Ao contrário, DUNN,
J. D. G., Teologia do Apóstolo Paulo, p. 300-303, acredita que Paulo nunca fez essa identificação
de Jesus com Deus. Aliás, para ele o próprio uso de κύριος servia não para identificar Jesus com
Deus, mas para distinguir Jesus de Deus.
145
549
Textos como o prólogo do quarto evangelho e Cl 1,15-20 acentuam a obra do Cristo
preexistente sobre a criação. Note-se, todavia, que nestes textos o destaque recai tanto sobre a
preexistência do Cristo, quanto sobre seu papel de mediador da criação. Ele é anterior e mediador
da criação de “todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos,
sejam soberanias, quer principados, quer potestades”, (Cl 1.16). O próprio Paulo assume essa visão
no texto já discutido de 1Cor 8,6. Os dois textos expressam a mediação de Jesus sobre a criação
pela preposição διὰ. Mas Colossenses vai além, e acrescenta a preposição εἰς, indicando que, de
alguma forma, a criação foi estabelecida para o Filho de Deus. Pode-se conjecturar que é na
exaltação, quando Cristo assume a soberania sobre o Cosmos, na grande virada escatológica, que
esse εἰς começa a ser cumprido, alcançado sua plenitude no novo céu e nova terra. Essa
perspectiva evidencia que a exaltação de Jesus é muito mais do que a vindicação do justo sofredor.
550
Contrariamente ao que pensa WRIGHT, N. T., The Climax of Covenant, p. 93, apesar de
afirmar um pouco mais à frente (p.95): “A tarefa do homem que iria representar Israel e salvar o
mundo é a tarefa, a qual, na linguagem do Antigo Testamento, está (embora paradoxalmente)
reservada para o próprio Deus”.
551
BAUCKHAM, R., The Worship of Jesus in Philippians 2:9-11, p. 139, observa que é inviável
interpretar Fl 2,6-11 como uma cristologia adâmica e tirar o inteiro significado teológico da alusão
a Is 45,23. Ele considera que Wright fracassou nessa tentativa.
552
Segundo MARTIN, R. P., A Hymn of Christ, p. xxvi, mostra que os rabinos Tannaim (que
atuaram entre os anos 10 e 220 depois de Cristo) recorriam a Isaías 44-47 em sua defesa do
monoteísmo contra tendências dentro do judaísmo que o ameaçavam.
553
CULLMANN, O., Cristologia do Novo Testamento, p. 308-309. Grifos dele.
146
554
LONGENECKER, R. N., The Christology of Early Jewish Christianity, p. 136. FOESTER,
W.; QUELL, G. κύριος. In: TDNT, p. 1046, propõem que o exemplo mais antigo do uso de κύριος
para uma divindade é a própria LXX. Isso prova, como eles reconhecem, que a escolha do termo
não foi por intermédio da influência helenista.
555
FOESTER, W.; QUELL, G. κύριος. In: TDNT, p. 1046-1051. Segundo eles, a noção de um
deus soberano, senhor da realidade, era totalmente estranha aos gregos.
556
Contra a opinião de CASEY, P. M., From Jewish Prophet to Gentile God, p. 176.
557
DUNN, J. D. G., A teologia do apóstolo Paulo, p. 302.
558
HURTADO, L. W., The Origin of the Nomina Sacra: a proposal, p. 663, 671-673, defende
que a reverência demonstrada através da abreviação dos nomes divinos e cristológicos evidencia o
padrão “binitariano” de devoção existente no cristianismo primitivo. Não obstante, ele salienta que
esse fenômeno estava ligado aos círculos cristãos “ortodoxos”, de forte tradição e conexão com as
tradições judaicas e o Antigo Testamento.
559
WHITERINGTON III, B., Cristologia. In: DPC, p. 317, 319. Em uma fraseologia mais
polêmica Kreitzer assevera que “Paulo mantém um forte tom de subordinação de Jesus Cristo a
Deus Pai, mesmo nas passagens mais exaltadas”. Aqui ele inclui Fl 2,11. KREITZER, L. J.,
Escatologia. In: DPC, p. 474.
147
alta exaltação, mostra que isso tudo ocorre por intermédio de Deus Pai. É certo
que o pensamento paulino está distante de perspectivas como o marcionismo, que
separam Jesus do Deus do Antigo Testamento. A cristologia talvez funcione no
pensamento paulino como o epicentro de onde ele articula uma tripla narrativa: de
Deus, de Israel e do mundo.
560
A fórmula é repetida de forma idêntica em Rm 1,7; 1Cor 1,3; Gl 1,3; Ef 1,2; Fl 1,2; 2Ts 1,2;
Fm 3. As cartas a Timóteo acrescentam ἔλεος após χάρις: 1Tm 1,2; 2Tm 1,2. Das 13 cartas
atribuídas a Paulo no Novo Testamento, apenas Colossenses e Tito não possuem a fórmula na
saudação, e em 1Tessalonicesses encontra-se uma adaptação da formulação (1Ts 1,1). As cartas
paulinas também usam uma expressão fixa para as despedidas, porém além da formulação oscilar
mais do que nas saudações, a bênção é relacionada apenas com Jesus Cristo. A frase padrão é: Ἡ
χάρις τοῦ κυρίου ἡμῶν Ἰησοῦ Χριστοῦ μεθ᾽ ὑμῶν. Encontra-se (com pequenas variações) em Rm
16,20; 1Cor 16,23; Fl 4,23; 1Ts 5,28; 2Ts 3,18; Fm 1,2. Quanto à origem, nada impede que Paulo
tenha sido o criador destas fórmulas, mas a maneira recorrente e fixa (no conteúdo e na disposição
dos termos) em que elas aparecem, indicam que elas ecoam elementos litúrgicos. Cf. HURTADO,
L. W., Senhor. In: DPC, p. 116. KRAMER, W., Christ, Lord e Son of God, p. 90-93, 151-156,
considera que as fórmulas de despedidas são pré-paulinas e de origem litúrgica. Já as saudações
seriam de autoria paulina, ainda que Paulo tenha feito uso de elementos litúrgicos anteriores a ele.
A distinção, entretanto, não é boa devido à similaridade entre as fórmulas. A origem litúrgica pode
explicar a ocorrência quase idêntica ao uso paulino que aparece em Ap 22,21: Ἡ χάρις τοῦ κυρίου
Ἰησοῦ μετὰ πάντων.
561
Ao contrário do círculo paulino, parece que as tradições joaninas lidaram com a acusação de
que a fé em Cristo era uma ameaça ao monoteísmo, como testemunham Jo 5,18 e 10,30-33.
562
Não se justifica uma afirmação como a de Basevi, segundo o qual nesse momento o autor “põe
em evidência o aspecto trinitário do texto”. BASEVI, C., Estudio Literario y Teológico del
Himno Cristológico de la Epístola a los Filipenses (Phil 2,6-11), p. 470.
563
Bem observado por WHITERINGTON III, B., Cristologia. In: DPC, p. 318. Nessa linha,
parece que a expressão “teologia cristocêntrica” faz mais jus ao pensamento paulino do que o
contrário.
148
6.5
Conclusão do capítulo
governantes dessa Terra, inclusive acima do imperador romano. Por tudo isso, o
segmento ὅτι κύριος Ἰησοῦς Χριστὸς εἰς δόξαν θεοῦ πατρός estudado nesse
capítulo é o adequado e merecido gran finale para o hino de Fl 2,6-11.
7
Conclusão
como exemplo para os cristãos.565 O pano de fundo era a discussão com o arianismo,
e a argumentação se concentra na primeira parte do hino (Fl 2,6-8).
A exegese teológica desenvolvida durante a reforma protestante seguiu os
mesmos trilhos da patrística. O epicentro da exposição gira em torno das duas
naturezas de Cristo, mas houve uma ênfase ainda maior no tema de Cristo como
modelo de humildade.566 No período entre o final do século XIX e o início do século
XX, além dos temas já mencionados, é possível destacar três linhas de interpretação
na exegese teológica da passagem. Primeiro, a “visão dogmática”, desenvolvida por
luteranos, que defende que o versículo 6 faz referência apenas ao ministério terreno
de Jesus, sem qualquer conexão com a preexistência.567 Segundo, a teoria kenótica,
redigida na sua forma clássica por G. Thomasius em 1857, que propõe que no
versículo 7 o esvaziamento do Filho de Deus envolveu a renúncia dos atributos da
onisciência e da onipotência.568 Terceiro, a interpretação ética, que enxerga a
perícope como exortação de Paulo aos cristãos a fim de imitarem a atitude de Cristo,
que não se apegou a sua glória, ao seu status divino, mas abriu mão em favor da
564
EDWARDS, M. J. (ed.), Galatians, Ephesians, Philippians, 1999. p. 236.
565
Ibid., p. 236-256.
566
TOMLIN, G., Comentário Bíblico da Reforma – Filipenses e Colossenses, p. 89-98.
567
MARTIN, R. P., A Hymn a Christ, p. 63-65. No final do século XX, essa interpretação ganhou
uma formulação exegética através da “cristologia adâmica” desenvolvida por J. D. G. Dunn.
568
MARTIN, R. P., A Hymn a Christ, p. 66-68.
150
a uma igreja fundada pelo apóstolo Paulo entre os anos 48-50 d.C. Era uma
comunidade com a qual ele tinha um estreito relacionamento pastoral. Com efeito,
o objetivo principal da carta é agradecer o apoio financeiro que o apóstolo recebeu
desta igreja, e apresentar seus planos para estar em contato com a comunidade,
primeiro de enviar missionários até lá, e depois dele mesmo estar pessoalmente com
os filipenses. E aproveitando o ensejo da correspondência, o apóstolo faz algumas
exortações à igreja, sobretudo em relação a adversários que se levantavam dentro e
fora da igreja.
Do ponto de vista sociológico, o principal ponto a considerar é que a igreja
de Filipos estava localizada em uma colônia romana, com boa parte da população
sendo romana e uma fortíssima influência cultural de Roma. Quando Paulo escreve
a carta está preso, possivelmente na capital do império. Esse pano de fundo é, de
fato, uma poderosa influência na redação de Filipenses, de modo que, por toda a
carta, sobretudo em Fl 2,6-11, percebe-se um vocabulário e uma narrativa teológica
que interagem de forma crítica com a cultura, a política e a religião romanas.
569
MARTIN, R. P., A Hymn a Christ, p. 68-74.
570
Martin considera os três primeiros os marcos fundamentais na intepretação de Fl 2,6-11. Cf.
MARTIN, R. P., Carmen Christi Revisited, p. 1. Contudo, o próprio Martin deve ser incluído, pois
a sua obra A Hymn of Christ, lançada em 1967 (com o título Carmen Christi), atualizada em 1983 e
depois em 1997, é de longe a pesquisa mais ampla acerca dos temas e da história da exegese de Fl
2,6-11 no século XX.
151
Quanto à autoria da carta, não há dúvidas de que ela tenha sido escrita pelo
apóstolo Paulo, e embora exista razoável debate se o formato atual seja o resultado
da união de várias cartas menores que Paulo enviou à igreja, a evidência manuscrita
e histórica favorece à tese de que a carta sempre existiu como hoje se encontra no
Novo Testamento.
O objeto material deste trabalho foi o texto de Fl 2,9-11, que é uma parte
literariamente distinguível da passagem de Fl 2,6-11, que por sua vez está inserida
na seção parenética da carta que vai de 1,27 a 2,17, mas é uma unidade textual
distinta, entre outros motivos, justamente porque a parênese é dominada por
imperativos que Paulo dirige à comunidade, enquanto que em 2,6-11 os verbos
principais passam do imperativo para o indicativo e da 2ª pessoa para a 3ª pessoa,
passando-se da exortação para a narração, uma narrativa teológica de eventos
relacionados a Jesus. A plausibilidade de se trabalhar apenas com os versículos 2,9-
11 é verificada sobretudo por duas mudanças: primeiro do sujeito dos verbos
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principais, que em 6-8 é o Filho de Deus e em 9-11 é Deus Pai; depois da temática,
pois na primeira parte há uma sucessão de ações na descendente, que vai da glória
preexistente até à morte de cruz, e na segunda parte há uma ação única na
ascendente, que é a exaltação de Jesus, e a descrição dos desdobramentos desse
evento. Destarte, a pesquisa evidenciou que, entre as diversas propostas de
estruturação do hino, a divisão em duas partes é que possui maior apoio acadêmico.
E considerando que a crítica textual não encontrou motivos razoáveis para
alteração do texto grego apresentado por Nestle-Aland28,571 a tradução proposta e
utilizada para esta dissertação foi a seguinte:
9
E por isso, Deus o exaltou sobremaneira e o agraciou com o nome acima
de todo o nome, 10a fim de que todo o joelho se dobre ao nome de Jesus, no
céu, na Terra e debaixo da Terra, 11e toda língua confesse que 'Jesus Cristo
é Senhor', para glória de Deus Pai.
571
Novum Testametum Graece.
572
Como várias questões (autoria, gênero, pano de fundo, relação com o contexto da carta, entre
outros) dizem respeito ao texto como um todo, e não só a 2,9-11, optou-se por fazer o Status
Quaestionis tendo em vista Fl 2,6-11, com destaque para os pontos diretamente relacionados à
segunda parte do hino.
152
573
Veja-se, por exemplo, J. Gnilka, que, como outros antes dele, entende a passagem como uma
composição pré-paulina, e assim enxerga a teologia paulina exclusivamente nas alterações que o
apóstolo teria feito ao hino original. Forma-se um castelo de hipótese: supõe-se que Fl 2,6-11 existia
antes de ser publicada na carta que Paulo escreveu; supõe-se que essa versão anterior era um pouco
diferente desta utilizada por Paulo; e supõe-se ainda que o apóstolo teria feito certas inserções nessa
versão interior. Simplesmente, nenhuma das três hipóteses pode ser provada. Cf. GNILKA, J., O
Elemento pré-paulino no Querigma Paulino, p. 75-77.
153
574
BARTH, K., Epistle to the Philippians, p. 59. Grifos dele.
154
virada escatológica que aconteceu com o evento Cristo. O futuro chegou e invadiu
o presente, pois ele acredita que a chegada do Messias iniciou o tempo de salvação,
que era a expectativa judaica para o fim dos tempos. Isso é evidenciado pela
referência a Is 45,23, um texto que trazia a esperança de que no final dos tempos
todos os povos da terra se voltariam para YHWH, confessando-o e submetendo-se
a ele. Fl 2,9-11 mostra que essa esperança se cumpriu em Jesus, pois o próprio Deus
o exaltou, e assim o estabeleceu diante do universo como aquele que precisa ser
confessado e reverenciado. Dessa forma, a exaltação de Jesus cumpre a expectativa
escatológica judaica do triunfo de Deus sobre os inimigos de Israel. A exaltação
afirma que YHWH triunfa através de Jesus, um triunfo cuja amplitude vai além dos
povos da terra, mas alcança todos os poderes do cosmos. A dimensão escatológica
também confirma a correção da interpretação kerygmática do hino, pois o propósito
do texto não é apresentar a vindicação do justo sofredor, mas narrar a virada
escatológica ocorrida através da exaltação de Cristo, e mostrar que nesse momento
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Jesus é muito mais do que o justo vindicado. Ele é o Senhor do universo. Mais do
que exemplo, ele é aquele a quem todos devem obedecer e confessar.
Outra tese fundamental assumida nesta dissertação é a proposta de uma
leitura linear e progressiva do conjunto de Fl 2,6-11. A passagem é uma narrativa
cristológica (o tema é Jesus) que descreve o evento escatológico da encarnação,
crucificação, culminando na exaltação, o clímax do texto, conforme indicado por
R. P. Martin. Neste sentido, faz-se oposição à perspectiva cíclica que entende a
exaltação como simples retorno ao estágio da preexistência, com a única diferença
que agora o Filho de Deus está encarnado. O ponto aqui é o exato entendimento do
composto verbal ὑπερύψωσεν utilizado no versículo 2,9 para descrever a exaltação.
Sem exagerar, nem subestimar a força da preposição ὑπερ, entende-se por certo que
existia uma intenção teológica em sua utilização, que junto com outras
considerações, é afirmar que a exaltação levou Jesus a um status superior ao que o
Filho de Deus tinha na preexistência. Deixando de lado a discussão dogmática sobre
essências e naturezas – que não está presente no hino – percebe-se que a mudança
não foi em termos de divindade, mas de função: a partir da exaltação o Filho de
Deus desempenha uma função que antes era exclusiva de Deus Pai, que é a
soberania sobre o cosmos.
Isso é confirmado porque sem qualquer dúvida o hino mostra que a
exaltação acarretou para Jesus a doação de um novo nome. Deus exaltou Jesus e
156
agraciou-lhe com o nome sobre todo nome. A utilização do verbo χαρίζομαι mostra
que esse novo nome e tudo o que ele representa não foi conquistado a força por um
Jesus revolucionário, nem tampouco foi uma recompensa a um servo que foi
obediente até a morte de cruz. O novo nome, assim como a própria exaltação, foi
dado graciosamente pelo Pai. Jesus, que para os cristãos é instrumento da graça de
Deus, na sua exaltação foi destinatário da mesma graça. Qual nome Deus deu a
Jesus? É difícil oferecer uma resposta absoluta, mas, de fato, a proposta mais
plausível é a que identifica este nome com título Senhor, explicitado no versículo
11. Nesse contexto, nome significa função, missão. Um novo nome significa uma
nova função desempenhada pelo Filho de Deus a partir da exaltação. Quer dizer que
na exaltação Deus Pai dá a Jesus privilégios, responsabilidades e autoridade que o
Filho de Deus não possuía na preexistência. Nesta perspectiva, o hino possui uma
cristologia de três estágios: a preexistência, a existência encarnada e a pós-
existência exaltada, que é caracterizada pelo senhorio de Jesus sobre o cosmos. E
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A primeira ação que Fl 2,10-11 indica que deve ocorrer diante e por causa
do nome de Jesus é o dobrar de joelhos. Como expressão religiosa era uma prática
conhecida no Antigo Oriente e também entre os judeus. O que chama a atenção, em
especial para a sensibilidade judaica, é que fazer isso a Jesus equivalia a reconhecer
sua divindade junto com o Pai. O texto também traz o alcance dessa consequência
da exaltação de Jesus: nos céus, na Terra e debaixo da Terra. Esta expressão faz que
o senhorio de Jesus tenha um alcance cósmico. Não apenas seres humanos, mas
todos os seres que podem ouvir esta mensagem, são chamados a atende-la, sejam
eles visíveis ou invisíveis, anjos, demônios ou pessoas. Não há nenhuma razão
exegética ou teológica para se excluir a Igreja de todos esses que reverenciam Jesus,
ao contrário do que propõem Lohmeyer e Käsemann. E por sinal, é importante
pontuar que as ações descritas em Fl 2,10-11 são dirigidas a Jesus, e não a Deus
através de Jesus.
Nota-se também nestes versículos uma tensão escatológica, por conta de
uma dupla perspectiva temporal. Seguindo a sugestão de Cullmann, compreende-
se que existe uma perspectiva futura de um dia em que todos os seres estarão
prostrados diante de Jesus Cristo. Neste sentido, o texto funciona como anúncio
profético da realidade da parusia. Por outro lado, diferente do judaísmo, o
cristianismo primitivo valorizou muito mais o presente, pois entendeu que a partir
da exaltação Cristo já assumiu o senhorio sobre todas as coisas. Recorrendo
158
narrativa do hino o clímax ficou para a confissão de fé “Jesus Cristo é Senhor”. Esta
é uma confissão que aparece alhures no Novo Testamento, e provavelmente foi a
primeira fórmula confessional cristã, retrocedendo ao cristianismo primitivo. Ela
responde duas perguntas simultâneas: Quem é Jesus hoje? Quem é Senhor hoje? A
resposta é explícita: Hoje, neste tempo presente da história da salvação, Jesus é
Senhor. E hoje, no presente da história humana, em que sempre muitos se
apresentam ou são identificados como senhores, só há um Senhor: Jesus Cristo
exaltado. A forma básica da expressão é “Jesus é Senhor”, de modo que aqui em Fl
2,11 o uso de Χριστὸς teria a intenção de mostrar o substrato judaico do evangelho
anunciado. O Jesus que é Senhor é, antes de mais nada, o Messias de Israel.
Também chama a atenção que o conteúdo da principal afirmação de fé, pelo
menos nos círculos paulinos, privilegie o título κύριος, em lugar de outras
designações cristológicas. São várias as razões para isso. Primeiro, o título ecoa a
noção de discipulado, fazendo par com δοῦλος, reflexão teológica que perpassa os
quatro evangelistas e também está presente em Paulo, que considera o último termo
adequado para conceituar o cristão. Segundo, o título κύριος conseguia resumir em
uma única palavra tudo o que os cristãos acreditavam acerca de Jesus a partir do
evento fundamental da ressurreição e consequente exaltação. Neste ponto é de
extrema importância perceber o pano de fundo judaico deste título. A questão é que
“Senhor” era a expressão usada pelos judeus para se referirem a YHWH,
160
seu pano de fundo judaico. Certamente era importante para proclamação cristã,
sobretudo feita por Paulo, que para ouvidos não judaicos κύριος também era
sinônimo de divindade e poder. A diferença é que, ao contrário dos judeus, os
demais povos da época acreditavam em vários “senhores” que controlavam o
universo e suas vidas, e exigiam submissão e adoração. Para esses a mensagem
cristã é uma contra mensagem: só existe um κύριος, e ele é Senhor sobre todo e
qualquer um que se possa chamar de κύριος. No ambiente romano da cidade de
Filipos esse anúncio era quase subversivo, pois não somente negam-se as
pretensões do imperador, quanto se diz que o cristão apenas deve reconhecer,
obedecer e adorar como Senhor Jesus Cristo. Em contrapartida, era uma teologia de
esperança para aqueles que estavam sendo perseguidos e discriminados por
autoridades romanas.
No entanto, a centralidade da exaltação de Jesus na teologia cristã paulina e
neotestamentária não equivale a um eclipse de Deus Pai. A seção de Fl 2,9-11
começa afirmando que foi Deus que exaltou Jesus e deu a ele a função de Senhor
sobre o cosmos. Ou seja, tudo o que Jesus é como κύριος foi dado por Deus. O
versículo 11 fecha isso mostrando que a exaltação e todo o exercício da soberania
de Jesus, incluindo o prostrar-se diante dele e confessá-lo, são para glória de Deus
Pai. Deus é identificado aqui como “Pai”, e o que deve ser entendido aqui é uma
paternidade sobre toda a criação, que se alienou de Deus por conta do pecado e da
161
rebelião das forças espirituais, mas que é reconciliada com ele exatamente pelos
efeitos soteriológicos da obra de Jesus. Esse Deus Pai que exaltou Jesus e reconcilia
mundo consigo mesmo merece e deseja ser glorificado e honrado.
Esta discussão levanta o questionamento acerca da relação entre Jesus Cristo
e Deus Pai no cristianismo primitivo. É certo que a reflexão daquele período não
enxergava essa relação nos termos da posterior doutrina da Trindade. Tampouco
desenvolveu-se um cristomonismo, no qual Jesus é enfatizado às custas de Deus.
Ainda menos razoável é equiparar a cristologia do Novo Testamento às
especulações judaicas de agentes divinos, que agem em nome de Deus e às vezes
até representam Deus. O cristianismo primitivo deu um passo teologicamente
revolucionário quando deu a Jesus dois aspectos que eram exclusividade de
YHWH: a soberania (sobre a criação e sobre a salvação) e adoração. E o mais
interessante é que isso foi feito sem abrir mão da fé e culto monoteísta. Esse é o
fenômeno denominado monoteísmo cristológico: os cristãos passaram a crer na
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divindade de Jesus e na sua soberania, sem achar que YHWH tivesse deixado de
ser divino e soberano. Eles passaram a adorá-lo como Senhor no mesmo culto em
que dirigiam orações e louvores a Deus. Fl 2,9-11 evidencia esse monoteísmo
cristológico, e assim, constitui-se texto essencial para a compreensão da fé cristã
primitiva na divindade de Jesus, como para a compreensão de como essa fé foi
articulada em termos completamente distintos da teologia eclesiástica dos séculos
posteriores.
8
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