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VIDA DO POVO
Edson Cassiano Lopes1
RESUMO
O presente artigo busca resgatar o percurso eclesial da devoção à Imaculada Conceição de
Maria, a fim de esclarecer o contexto de sua definição dogmática no século XIX. A
comemoração popular e litúrgica de Nossa Senhora da Conceição remonta ao início do
cristianismo e está profundamente arraigada na experiência religiosa do povo de Deus,
especialmente no Brasil. Não obstante a sensibilidade dos fiéis, responsável em grande parte
pelo êxito do reconhecimento oficial por parte da Igreja, uma concepção teológica estreita
desse dogma mariano pode revelar-se uma barreira para sua comunicação, limitando seu
alcance em nosso tempo e dificultando sua atualização pastoral. O cristão católico
contemporâneo está desafiado a entender essa verdade de sua fé e a expressá-la de maneira
pertinente para as questões relevantes da humanidade hoje. Este trabalho de pesquisa
bibliográfica, através de uma abordagem histórico-teológica e em perspectiva crítica,
procurou realizar tal aproximação dogmática e suas consequências existenciais, iluminado
pelos horizontes de compreensão que a Mariologia mais recente tem procurado dilatar em
suas reflexões.
PALAVRAS-CHAVE: Imaculada Conceição, Maria, Dogma
1
Bacharelando em Teologia na Faculdade Católica de Pouso Alegre. Licenciado em Filosofia pelo Instituto de
Ciências Sociais e Humanas do Centro de Ensino Superior do Brasil.
INTRODUÇÃO
A invocação da Virgem Maria sob o título da Imaculada Conceição é uma das mais
famosas expressões de fé e piedade do catolicismo, no Ocidente. Ao seu patrocínio foram
confiadas pessoas e ordens religiosas, igrejas e universidades, paróquias e dioceses. Cidades,
estados e nações inteiras a têm como padroeira. No Brasil, por influência dos portugueses, a
devoção a Senhora da Conceição chegou junto com a primeira imagem, presente numa das
naus de Pedro Álvares Cabral, e marca a religiosidade brasileira desde os primeiros anos da
colonização (MACIEL, 1999, p. 9).
Por outro lado, a compreensão do dogma da Imaculada Conceição nem sempre é
aprofundada pelos fiéis que a veneram, de modo que, embora sintam a proximidade da
Virgem Maria em sua vida, experimentam grande dificuldade de apropriar-se do conteúdo da
fé da Igreja acerca dessa doutrina para o próprio itinerário cristão.
O Documento de Aparecida ensina que a religiosidade popular tem seu legítimo valor
na medida em que auxilia na amadurecimento da consciência dos fiéis de sua dignidade como
filhos de Deus, penetrando a existência pessoal de cada fiel nos diversos momentos de sua
luta cotidiana. Disso decorre que a piedade mariana seja um impulso para o amadurecimento
da fé e torne ainda mais fecunda a vida de cada cristão devoto (MURAD, 2011, p. 19).
É preciso, pois, operar a passagem de uma mera repetição do conteúdo da fé da Igreja
contida no dogma para a meditação profunda do seu significado. Para tanto, é preciso
investigar o dogma da Imaculada Conceição sob seus diversos aspectos, a fim de
compreender melhor suas características essenciais e discernir suas implicações para nós hoje.
O senso dos fiéis é a principal fonte para a definição do dogma da Imaculada, pois foi
a fé popular quem primeiro compreendeu que a mãe de Jesus, desde sempre, era toda pura e
sem mancha. O povo foi intuindo a santidade especial da Virgem Maria, rejeitando até mesmo
que se colocasse em discussão sobre o pecado naquela que trouxe ao mundo o Salvador
(BOFF, 2010, p. 35).
No Oriente, a festa da “Conceição de Santa Ana” é celebrada na Liturgia desde o
século VIII, no dia 09 de dezembro, e sua origem é o mais antigo relato acerca da geração
extraordinária de Maria: o apócrifo Protoevangelho de Tiago, do século II, que narra a
concepção virginal de Ana. Essa devoção passa para o Ocidente no século seguinte, a partir da
Itália bizantina, difundindo-se sob a denominação de “Conceição da Santíssima Virgem
Maria” na transição do primeiro para o segundo milênio, sobretudo na Inglaterra, mas também
na Itália ocidental, na região da França e na Península Ibérica (MURAD, 2012, p. 163).
Porém, em razão dos conflitos teológicos acerca da doutrina da concepção imaculada
de Maria, muitos calendários litúrgicos cancelam tal festa. Nos séculos XII e XIII a
comemoração se estabelece como “Conceição Imaculada”, celebrada a 08 de dezembro, com
novo impulso, pelos franciscanos, desde 1263. Em 1477 ela é inscrita no calendário romano
por Sisto IV, tornando-se festa de preceito em 1708, por ordem de Clemente XI. A partir da
proclamação do dogma da Imaculada Conceição da Virgem Maria, em 8 de dezembro de
1854, a celebração ganha ainda mais vigor, tornando-se Solenidade intimamente ligada ao
tempo do Advento. A atual composição litúrgica recolhe toda a riqueza celebrativa precedente
e a atualiza através das Constituições sobre a Igreja e sobre a Liturgia, do Concílio Vaticano II
(FIORES, 1995, p. 616).
As Sagradas Escrituras não falam da origem de Maria, a mãe de Jesus, e nenhum dos
142 versículos do Novo Testamento relativos à ela mencionam claramente sua concepção
imaculada. Como vimos, existe uma antiquíssima tradição apócrifa, mas que não trata
explicitamente da ausência de pecado em Maria. Esse dado, no entanto, indica que desde o
início do cristianismo já havia uma intuição, e até mesmo uma tentativa de teologizar sobre a
santidade especial da mãe de Jesus (FIORES, 1995, p. 600).
Os Santos Padres sempre exaltaram Maria como a Toda Santa (Pan-ágia), e
meditando a partir das Escrituras, contrastavam “a virgem desobediente (Eva) que leva a
humanidade ao mal e a virgem obediente (Maria), que abre caminho para o bem” (MURAD,
2012, p. 163). Segundo Clodovis Boff (2010, p. 37), nesse período foram exploradas várias
figuras veterotestamentárias, nas quais a Patrística percebia a prefiguração da Imaculada
Conceição: o livro dos Cânticos traz a imagem da esposa sem mancha, jardim fechado e fonte
selada, bela como a lua, brilhante como o sol, temível como uma exército em ordem de
batalha; há também a imagem da tenda do encontro com Deus, a sarça ardente e a arca da
aliança, do livro do Êxodo; o templo da glória (1Rs 8), a escada de Jacó (Gn 28), a Sabedoria
(Sb 8).
No Novo Testamento, os trechos do Evangelho de Lucas são os que mais se destacam:
“Cheia de graça” (Lc 1, 28) e “Bendita entre as mulheres” (Lc 1, 42). Com efeito, os padres e
escritores eclesiásticos, comentando tais passagens, manifestam a convicção na plena
excelência da Virgem Maria, na qual “fez maravilhas aquele que é poderoso” (Lc 1, 49)
(FIORES, 1995, p. 606).
Orígenes deduz a santidade de Maria do princípio da economia da salvação, qual seja,
da plenitude do Espírito Santo que lhe comunica o Verbo, mas sem considerá-la imune a todo
o pecado, a fim de salvaguardar a universalidade da salvação de todo o gênero humano pela
cruz de Cristo, consoante a teologia paulina da redenção2 (SESBOÜÉ, 2005, p. 492).
2
“Todos pecaram e estão privados da glória de Deus” (Rm 3,23).
Os rumos dessa questão se desenvolveram de modo distinto no Oriente e no Ocidente.
A posição de Agostinho se impõe na Igreja latina e impede o avanço de uma doutrina da
Imaculada Conceição no Ocidente, dificuldade que não se encontra na Igreja Oriental. Ali vai
amadurecendo, ainda que com hesitações, tanto a teologia quanto o culto em torno da
concepção da Virgem Maria. No século VIII a questão ganha nova luz com André de Creta (+
740), que compara o nascimento de Maria a uma nova criação: é a nova Eva, antes do pecado
original, na qual se realizam as primícias da salvação. Em Maria, a afirmação da santidade
inicial salta, então, para a santidade original (SESBOÜÉ, 2005, p. 494).
Vários escritores medievais supunham que Maria teria sido purificada do Pecado
Original em vista da concepção de Jesus. Mas quando? À medida que cresce a
devoção mariana, avança o movimento retroativo que identifica em qual momento
Maria teria recebido essa graça especial: na anunciação – imediatamente antes da
anunciação – depois do nascimento – durante a gestação – no primeiro instante de
sua concepção. (MURAD, 2012, p. 164).
A Imaculada Conceição é ainda hoje, sem dúvida, uma das mais famosas invocações
marianas, sendo amplamente celebrada pelos fiéis. Mas como esse mistério é captado e
entendido? Não seria duvidoso cogitar que alguns menos avisados sequer cheguem a fazer a
conexão entre o termo “Conceição” com o fato da concepção da Virgem Maria. Outros a
estabelecem de maneira equivocada, confundindo-a com a concepção virginal ou com o
próprio dogma da Virgindade de Maria. Por outro lado, muitas pessoas compreendem que a
mãe de Jesus, por ter sido concebida sem pecado, não passou por nenhuma das vicissitudes
humanas, permanecendo alheia aos dramas quotidianos a que estamos sujeitos. Os mais
críticos chegam até mesmo a questionar o mérito da existência de Maria, uma vez que ela foi
agraciada com privilégios divinos.
A teologia da graça e do pecado original que emoldura o desenvolvimento da doutrina
da Imaculada Conceição passou por revisões e reformulações, bem como o contexto da
proclamação dogmática não é mais o mesmo que o homem hodierno experimenta. Como
alerta Murad (2012, p. 167), “para entender hoje o dogma da Imaculada Conceição, não basta
coletar frases da Tradição eclesial e repeti-las fora de seu contexto, pois algumas delas não
fazem parte do núcleo vinculante de fé nem são compreensíveis na cultura contemporânea”.
A visão tradicional do catolicismo ocidental, maturada na Idade Média, desenvolve
mais uma visão negativa do pecado de Adão e Eva do que a dimensão positiva da criação em
Cristo. Se o relato mitológico do Gênesis não é tomado como uma reflexão poética e
simbólica sobre o drama humano nesse mundo à luz da fé, dificilmente se conseguirá diálogo
com a mentalidade moderna, muito mais propensa a considerar o lento e complexo processo
de amadurecimento da consciência ética no ser humano ao longo do tempo do que a aceitar a
ideia de um casal originário que, por uma falta, transmite a toda a humanidade a consequência
de seu pecado (MURAD, 2012, p. 167).
A chave hermenêutica para o dogma da Imaculada Conceição precisa levar em conta a
reflexão contemporânea sobre a antropologia teológica, ajudando a responder a questão
acerca de quem é o ser humano à luz da revelação divina, alinhando mariologia à antropologia
teológica, à teologia da Graça e à reflexão sobre a salvação. Impõe-se, assim, a exigência de
situar a devoção a Imaculada Conceição de Maria no conjunto da visão cristã sobre o homem,
sobre o mundo e sobre Deus.
O Concílio Vaticano II apresenta, sinteticamente, uma perspectiva atualizada sobre o
tema, confirmando a doutrina do pecado original proposto pelo Concílio de Trento,
superando, porém, sua compreensão literal. Não trata de Adão como um personagem
histórico, mas reconhece a fragilidade do ser humano e a necessidade de sua redenção em
Cristo. Em resumo, pode-se dizer que, no horizonte bíblico, a narrativa do pecado original
está subordinada à mensagem libertadora da salvação. Nesse sentido, o pecado é mostrado
como aquilo que contrasta com a luz da graça, que manifestou-se plenamente em Jesus Cristo.
Além do mais, toda a humanidade é pecadora, e por isso mesma, solidária no pecado,
produzindo uma corrente que acaba por influenciar a decisão individual, ou na linguagem de
João, é o “pecado do mundo” (MURAD, 2012, p. 168).
Daí que os cristãos, chamados pela iniciativa do amor divino à santidade, se
empenham em acolher a manifestação de Deus e a edificar o Reino a partir dos valores que
superam o mal e o pecado, propostos por Jesus Cristo como caminho para a vida plena.
A beleza do ser humano, muitas vezes esquecida, é de que sua criação, como a de
todas as criaturas, está radicada em Cristo, pela Palavra (Jo 1, 1-2). O diferencial dos homens
e mulheres, imagem e semelhança de Deus, está na consciência de si, na linguagem e na
liberdade, que projetam o ser humano à existência de uma forma especial, na medida em que
podem se abrir ao seu sentido original. Mais do que acentuar os aspectos negativos do pecado,
é preciso recuperar a força da graça original, como ensina Paulo: “Em Jesus, Deus nos
escolheu, antes da fundação do mundo, para sermos santos e íntegros diante dele” (Ef 1, 4).
Deus nos cria para a felicidade. O que vivemos nos prepara para a comunhão plena com Deus,
na vida eterna (MURAD, 2012, p. 169).
Nesse processo de aprender com a vida até os erros têm lugar, como oportunidade
de superação e crescimento. Portanto, a finitude constitui algo essencial ao ser
humano, pois ele é criatura e não um Deus. Ser finito, limitado pelo tempo e pelo
espaço, sujeito ao ciclo de vida e de morte, estar condicionado pela sua cultura não
diz respeito ao pecado, mas ao fato de ser criatura (MURAD, 2012, p. 170).
Quanto ao pecado, ele precisa ser compreendido a partir do mistério do mal, que
introduz no ser humano uma profunda contradição. Cada um de nós possui desejos,
tendências e impulsos muitas vezes conflitantes. Essa divisão interna é a concupiscência. São
Paulo (Rm 8, 1-4) nos diz que, pelo pecado, ficou comprometida nossa liberdade, de modo
que é preciso integrar essas divisão interna num projeto de vida, o que certamente não é uma
tarefa fácil, tendo em vista nossa fragmentação. O pecado original não é um pecado no
sentido estrito, mas podemos compreendê-lo na perspectiva analógica, enquanto ausência da
mediação da graça de Deus que nos libertar, cura e eleva para a vida com Deus. Não obstante
as contingências humanas, continua a ser um paradoxo constatar que tantas pessoas se deixem
envolver pelo mal e neguem-se a crescer no bem (MURAD, 2012, p. 171).
Aqui o cristianismo apresenta-se fundamentalmente como a resposta para essa
contradição da humanidade, na medida em que a salvação oferecida por Cristo é a iniciativa
amorosa de Deus em relacionar-se com ser humano para livrá-lo das situações negativas,
curá-lo integralmente e prepará-lo para a comunhão plena com Santíssima Trindade. Mais do
que salvar de algo (pecado), é um salvar para algo (vida com Deus). O processo de
transformação humana tem início quando, sob a ação da mesma graça divina, acolhe a
iniciativa divina e se coloca em diálogo com Deus, respondendo ao seu chamado à uma vida
íntegra e santa. A história da Salvação, por assim dizer, já tem o seu começo na própria
criação. A humanidade experimentou os momentos fortes da manifestação de Deus, desde a
libertação do Êxodo, no Antigo Testamento, até a encarnação do Verbo, em Jesus Cristo.
Toda a vida de Jesus, em seus atos e palavras, é salvadora, e encontra seu ápice no mistério da
Cruz e da Ressurreição (MURAD, 2012, p. 172).
Desse modo, é possível olhar novamente para a Imaculada Conceição de Maria, a
partir de uma moldura ampliada, para sondar seu sentido profundo para nós hoje, como sinal
que manifesta o amor gratuito de Deus, como expressão perfeita da redenção operada em
Cristo e como a criação na graça do Espírito Santo.
3.1 IMACULADA CONCEIÇÃO DE MARIA: A HUMANIDADE REINTEGRADA
Há momentos em que ela não entende o sentido pleno dos fatos e das palavras (Lc
2,49,50). No correr da vida, Jesus a surpreende muitas vezes ao mudar os
paradigmas familiares convencionais (Mc 2, 31-35). [...] Maria realiza sua vocação
pelo caminho da fé, em meio a crises e dificuldades. Ela também teve que fazer
correções de rota no correr da vida. Experimentou processos de mudanças, de
conversão. Não do mal para o bem, mas do bem para um bem maior (MURAD,
2012, p. 173).
De fato, a Imaculada representa o triunfo da graça das origens. Ela mostra o estado
de vocação originária de cada pessoa humana, de toda a humanidade e mesmo de
toda a criação. É o testemunho da “predestinação” à graça, como realidade mais
radical que a situação de pecado e, portanto, que a própria redenção do pecado. O
paraíso é mais primitivo que o nosso “vale de lágrimas”. A graça original é anterior
ao pecado original (BOFF, 2006, p. 507).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Bíblia – Tradução Ecumênica. Trad. J. Konings (Coord.) 2. ed. São Paulo: Loyola, 1995.
AIELLO, A. G. Dogmas. In: FIORES, Stefano de; MEO, Salvatore (Org.). Dicionário de
Mariologia. Trad. Alváro A. Cunha; Honório Dalbosco; Isabel F. L. Ferreira. São Paulo:
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BOFF, C. Mariologia social: o significado da Virgem para a sociedade. São Paulo: Paulus,
2006.
FIORES, S. de; SERRA, A. Imaculada. In: FIORES, Stefano de; MEO, Salvatore (Org.).
Dicionário de Mariologia. Trad. Alváro A. Cunha; Honório Dalbosco; Isabel F. L. Ferreira.
São Paulo: Paulus, 1995. p. 599-620.
MURAD, Afonso. Perfil de Maria numa sociedade plural in: UNIÃO MARISTA DO
BRASIL. Maria no coração da Igreja: múltiplos olhares sobre a Mariologia. São Paulo:
Paulinas, 2011.
_____. Maria, toda de Deus e tão humana: compêndio de Mariologia. São Paulo: Paulinas,
2012.
SESBOÜÉ, Bernard; BOURGEOIS, Henri; TIHON, Paul. História dos dogmas: os sinais da
salvação. v. 3. Trad. Margarida Oliva. São Paulo: Loyola, 2005.