Você está na página 1de 13

IMACULADA CONCEIÇÃO DE MARIA NA FÉ DA IGREJA E NA

VIDA DO POVO
Edson Cassiano Lopes1

RESUMO
O presente artigo busca resgatar o percurso eclesial da devoção à Imaculada Conceição de
Maria, a fim de esclarecer o contexto de sua definição dogmática no século XIX. A
comemoração popular e litúrgica de Nossa Senhora da Conceição remonta ao início do
cristianismo e está profundamente arraigada na experiência religiosa do povo de Deus,
especialmente no Brasil. Não obstante a sensibilidade dos fiéis, responsável em grande parte
pelo êxito do reconhecimento oficial por parte da Igreja, uma concepção teológica estreita
desse dogma mariano pode revelar-se uma barreira para sua comunicação, limitando seu
alcance em nosso tempo e dificultando sua atualização pastoral. O cristão católico
contemporâneo está desafiado a entender essa verdade de sua fé e a expressá-la de maneira
pertinente para as questões relevantes da humanidade hoje. Este trabalho de pesquisa
bibliográfica, através de uma abordagem histórico-teológica e em perspectiva crítica,
procurou realizar tal aproximação dogmática e suas consequências existenciais, iluminado
pelos horizontes de compreensão que a Mariologia mais recente tem procurado dilatar em
suas reflexões.
PALAVRAS-CHAVE: Imaculada Conceição, Maria, Dogma

THE IMMACULATE CONCEPTION OF MARY IN THE FAITH OF


CHURCH AND IN THE LIFE OF THE FAITHFUL
ABSTRACT
The present article aims to rescue the ecclesiastic course of the devotion to the Immaculate
Conception of Mary with the purpose of clarifying its dogmatic definition in the XIX century.
The popular and liturgical celebration of Our Lady of the Immaculate Conception goes back
to the beginning of Christianity and is deeply rooted in the religious experience of the people
of God, especially in Brazil. Notwithstanding the sensitivity of the faithful, largely
responsible for the success in the official recognition by the Catholic Church, a narrow
theological conception of this Marian Dogma may prove to be a barrier to its communication,
limiting its scope to the present time and making difficult its pastoral modernization. The
contemporary catholic christian is challenged to understand this truth of his Faith and to
express it properly to the relevant issues of humanity today. This work of bibliographic
research, through a historical-theological approach in a critical perspective, tried to
accomplish such an approach and its existential consequences, enlightened by the horizons of
understanding that the most recent Mariology has tried do dilate upon in its reflections.
KEY WORDS: Immaculate Conception, Mary, Dogma

1
Bacharelando em Teologia na Faculdade Católica de Pouso Alegre. Licenciado em Filosofia pelo Instituto de
Ciências Sociais e Humanas do Centro de Ensino Superior do Brasil.
INTRODUÇÃO

Primeiro foi em Maria o ser Santa, que o ser mulher.


Começou Deos na Virgem Santíssima, por onde acaba
nos outros Santos, e acabou por onde começa. Lá
começa pela Natureza e acaba pela Graça: cá começou
pela Graça e acabou pela Natureza: manifestando as
delicadezas de sua sabedoria nestes trocados de sua
Omnipotencia [sic] (VIEIRA, 1945, p. 3).

A invocação da Virgem Maria sob o título da Imaculada Conceição é uma das mais
famosas expressões de fé e piedade do catolicismo, no Ocidente. Ao seu patrocínio foram
confiadas pessoas e ordens religiosas, igrejas e universidades, paróquias e dioceses. Cidades,
estados e nações inteiras a têm como padroeira. No Brasil, por influência dos portugueses, a
devoção a Senhora da Conceição chegou junto com a primeira imagem, presente numa das
naus de Pedro Álvares Cabral, e marca a religiosidade brasileira desde os primeiros anos da
colonização (MACIEL, 1999, p. 9).
Por outro lado, a compreensão do dogma da Imaculada Conceição nem sempre é
aprofundada pelos fiéis que a veneram, de modo que, embora sintam a proximidade da
Virgem Maria em sua vida, experimentam grande dificuldade de apropriar-se do conteúdo da
fé da Igreja acerca dessa doutrina para o próprio itinerário cristão.
O Documento de Aparecida ensina que a religiosidade popular tem seu legítimo valor
na medida em que auxilia na amadurecimento da consciência dos fiéis de sua dignidade como
filhos de Deus, penetrando a existência pessoal de cada fiel nos diversos momentos de sua
luta cotidiana. Disso decorre que a piedade mariana seja um impulso para o amadurecimento
da fé e torne ainda mais fecunda a vida de cada cristão devoto (MURAD, 2011, p. 19).
É preciso, pois, operar a passagem de uma mera repetição do conteúdo da fé da Igreja
contida no dogma para a meditação profunda do seu significado. Para tanto, é preciso
investigar o dogma da Imaculada Conceição sob seus diversos aspectos, a fim de
compreender melhor suas características essenciais e discernir suas implicações para nós hoje.

1 PERCURSO HISTÓRICO DO DESENVOLVIMENTO DOGMÁTICO

O senso dos fiéis é a principal fonte para a definição do dogma da Imaculada, pois foi
a fé popular quem primeiro compreendeu que a mãe de Jesus, desde sempre, era toda pura e
sem mancha. O povo foi intuindo a santidade especial da Virgem Maria, rejeitando até mesmo
que se colocasse em discussão sobre o pecado naquela que trouxe ao mundo o Salvador
(BOFF, 2010, p. 35).
No Oriente, a festa da “Conceição de Santa Ana” é celebrada na Liturgia desde o
século VIII, no dia 09 de dezembro, e sua origem é o mais antigo relato acerca da geração
extraordinária de Maria: o apócrifo Protoevangelho de Tiago, do século II, que narra a
concepção virginal de Ana. Essa devoção passa para o Ocidente no século seguinte, a partir da
Itália bizantina, difundindo-se sob a denominação de “Conceição da Santíssima Virgem
Maria” na transição do primeiro para o segundo milênio, sobretudo na Inglaterra, mas também
na Itália ocidental, na região da França e na Península Ibérica (MURAD, 2012, p. 163).
Porém, em razão dos conflitos teológicos acerca da doutrina da concepção imaculada
de Maria, muitos calendários litúrgicos cancelam tal festa. Nos séculos XII e XIII a
comemoração se estabelece como “Conceição Imaculada”, celebrada a 08 de dezembro, com
novo impulso, pelos franciscanos, desde 1263. Em 1477 ela é inscrita no calendário romano
por Sisto IV, tornando-se festa de preceito em 1708, por ordem de Clemente XI. A partir da
proclamação do dogma da Imaculada Conceição da Virgem Maria, em 8 de dezembro de
1854, a celebração ganha ainda mais vigor, tornando-se Solenidade intimamente ligada ao
tempo do Advento. A atual composição litúrgica recolhe toda a riqueza celebrativa precedente
e a atualiza através das Constituições sobre a Igreja e sobre a Liturgia, do Concílio Vaticano II
(FIORES, 1995, p. 616).

1.1 SAGRADAS ESCRITURAS E TRADIÇÃO

As Sagradas Escrituras não falam da origem de Maria, a mãe de Jesus, e nenhum dos
142 versículos do Novo Testamento relativos à ela mencionam claramente sua concepção
imaculada. Como vimos, existe uma antiquíssima tradição apócrifa, mas que não trata
explicitamente da ausência de pecado em Maria. Esse dado, no entanto, indica que desde o
início do cristianismo já havia uma intuição, e até mesmo uma tentativa de teologizar sobre a
santidade especial da mãe de Jesus (FIORES, 1995, p. 600).
Os Santos Padres sempre exaltaram Maria como a Toda Santa (Pan-ágia), e
meditando a partir das Escrituras, contrastavam “a virgem desobediente (Eva) que leva a
humanidade ao mal e a virgem obediente (Maria), que abre caminho para o bem” (MURAD,
2012, p. 163). Segundo Clodovis Boff (2010, p. 37), nesse período foram exploradas várias
figuras veterotestamentárias, nas quais a Patrística percebia a prefiguração da Imaculada
Conceição: o livro dos Cânticos traz a imagem da esposa sem mancha, jardim fechado e fonte
selada, bela como a lua, brilhante como o sol, temível como uma exército em ordem de
batalha; há também a imagem da tenda do encontro com Deus, a sarça ardente e a arca da
aliança, do livro do Êxodo; o templo da glória (1Rs 8), a escada de Jacó (Gn 28), a Sabedoria
(Sb 8).
No Novo Testamento, os trechos do Evangelho de Lucas são os que mais se destacam:
“Cheia de graça” (Lc 1, 28) e “Bendita entre as mulheres” (Lc 1, 42). Com efeito, os padres e
escritores eclesiásticos, comentando tais passagens, manifestam a convicção na plena
excelência da Virgem Maria, na qual “fez maravilhas aquele que é poderoso” (Lc 1, 49)
(FIORES, 1995, p. 606).
Orígenes deduz a santidade de Maria do princípio da economia da salvação, qual seja,
da plenitude do Espírito Santo que lhe comunica o Verbo, mas sem considerá-la imune a todo
o pecado, a fim de salvaguardar a universalidade da salvação de todo o gênero humano pela
cruz de Cristo, consoante a teologia paulina da redenção2 (SESBOÜÉ, 2005, p. 492).

A teologia patrística preparou o terreno para esboçar a ideia da imaculada conceição,


elaborando a figura moral de Maria com traços de grande santidade e com isenção
de pecado. Apesar de algumas hesitações (por exemplo: Tertuliano, Orígenes,
Basílio), os padres e os escritores antigos partem da vocação de mãe de Deus para
concluírem por uma conveniente preparação moral de Maria (FIORES, 1995, p.
602).

Até o século IV, porém, trata-se da integridade, inocência e santidade de Maria em


referência à isenção dos pecados pessoais. Houve, porém, um salto, de modo que chegou-se a
problemática acerca da isenção do pecado original. O contexto dessa discussão é a heresia
pelagiana, segundo a qual o ser humano é capaz de salvar-se com os próprios esforços,
prescindindo, assim, da pessoa de Jesus como Salvador, de tal forma que o Filho de Deus
seria apenas um modelo. Agostinho combaterá os seguidores de Pelágio afirmando, a partir de
São Paulo, que toda a humanidade está marcada pelo “pecado original” de Adão, e que, por
isso, necessita da graça de Deus para ser salva. Segundo o bispo de Hipona, é através relação
sexual que se dá, através das gerações, a transmissão do pecado original, da qual Jesus foi
poupado por sua concepção virginal. Agostinha, afirma, pois, que em Maria não havia sombra
de pecados atuais, mas que ela não fora poupada do Pecado Original (MURAD, 2012, p. 163).

O mérito de haver aplicado o caso de Maria a “analogia fidei” é atribuído a s.


Agostinho que, ao mesmo tempo que acha que Maria deve ser mantida longe de
qualquer questão de pecado, reconduz essa sua santidade ao leito da condição
humana prejudicada pela culpa original e necessitada da redenção em Cristo. Maria
teria sido submetida ao pecado de origem somente para dele ser libertada com a
graça da regeneração (FIORE 602).

2
“Todos pecaram e estão privados da glória de Deus” (Rm 3,23).
Os rumos dessa questão se desenvolveram de modo distinto no Oriente e no Ocidente.
A posição de Agostinho se impõe na Igreja latina e impede o avanço de uma doutrina da
Imaculada Conceição no Ocidente, dificuldade que não se encontra na Igreja Oriental. Ali vai
amadurecendo, ainda que com hesitações, tanto a teologia quanto o culto em torno da
concepção da Virgem Maria. No século VIII a questão ganha nova luz com André de Creta (+
740), que compara o nascimento de Maria a uma nova criação: é a nova Eva, antes do pecado
original, na qual se realizam as primícias da salvação. Em Maria, a afirmação da santidade
inicial salta, então, para a santidade original (SESBOÜÉ, 2005, p. 494).

2 O DEBATE TEOLÓGICO SOBRE A IMACULADA CONCEIÇÃO

No Ocidente, a compreensão acerca da concepção imaculada de Maria encontra-se


diante das questões acerca da universalidade da salvação e da convicção de que a transmissão
do pecado original se daria pelo ato sexual. Esses pressupostos desafiaram muitos teólogos,
entre os quais Anselmo de Cantuária e Bernardo de Claraval, no século XII, e Alexandre de
Hales, Alberto Magno, Tomás de Aquino e Boaventura, no século XIII. Anselmo, por
exemplo, ao defender que a graça de Cristo pode se estender a todos, em diferentes tempo e
lugares, deixa aberta a possibilidade da remissão de Maria antes de seu nascimento,
inaugurando, por assim dizer, o conceito de redenção antecipada (FIORES, 1995, p. 602).

Vários escritores medievais supunham que Maria teria sido purificada do Pecado
Original em vista da concepção de Jesus. Mas quando? À medida que cresce a
devoção mariana, avança o movimento retroativo que identifica em qual momento
Maria teria recebido essa graça especial: na anunciação – imediatamente antes da
anunciação – depois do nascimento – durante a gestação – no primeiro instante de
sua concepção. (MURAD, 2012, p. 164).

Essa polêmica discussão se polariza e dá origem a duas escolas de pensamento: os


maculistas e os imaculistas. Os primeiros, representados sobretudo pelos dominicanos, Maria
teria sido purificada durante a gestação. A tese imaculista, defendida pelos franciscanos,
sustentava que Maria havia sido purificada do pecado original no momento da sua concepção.
Mas é o beneditino Eadmer de Cantuária, quem dá grande contribuição à causa
imaculista. Ele escreveu, no século XII, o “Tratado sobre a Conceição da Beata Virgem
Maria, sendo por isso considerado o primeiro teólogo da Imaculada Conceição. Em sua obra
ele não apenas defende a intuição do povo a favor dessa causa, como demonstra sua
possibilidade através da distinção entre concepção ativa (no pecado) e passiva (sem pecado).
É célebre o seu exemplo sobre a castanha que sai ilesa de entre as cascas espinhosas,
aplicando-o à Maria como aquela que atravessa o pecado sem ser por ele ferida. Estabeleceu
então um argumento de conveniência, que Fiores (1995, p. 603) citando Eadmer, transcreve:
“Não podia (Deus), por ventura, conferir a um corpo humano... a possibilidade de permanecer
livre de toda picada de espinhos, mesmo que houvesse sido concebido em meio aos aguilhões
do pecado? É claro que podia e queria fazê-lo; se o quis, ele o fez.”
A partir dessas reflexões, a tese imaculista vai se fortalecendo. No século XIV, o
franciscano João Duns Scotus reapresenta a ideia da redenção preventiva, já recusada nos
séculos anteriores, mas com argumentação expressiva que salienta que a concepção imaculada
de Maria não é uma exceção à redenção operada por Cristo, mas um caso de ação salvífica
perfeita e ainda mais eficaz daquele que é o único mediador.

Cristo exerceu o grau mais perfeito possível de mediação relativamente a uma


pessoa para a qual ele era mediador. Ora, para pessoa alguma ele exerceu um grau
mais excelente do que para Maria... Isto, porém, não teria acontecido se ele não
houvesse merecido preservá-la do pecado original. (Scotus apud FIORES, 1995, p.
603).

Desse modo, valendo-se dos desenvolvimento teológicos de Anselmo e Eadmer,


Scotus estabeleceu definitivamente a doutrina da redenção preventiva. A consideração de que
até mesmo para a economia da graça divina é melhor prevenir do que remediar faz crescer
ainda mais a devoção à Imaculada Conceição, promovida pelas ordens religiosas –
eminentemente pelos franciscanos.
A partir da intervenção decisiva de Scotus a teologia católica vai progressivamente
assumindo a tese imaculista. Em 1363 a Universidade de Paris decreta que todos os alunos,
ao serem graduados, devem prestar juramento, comprometendo-se com a defesa da devoção à
Imaculada Conceição. Em 1515 o papa Leão X generalizou tal medida para todas as
universidades da Europa (MACIEL, 1999, p. 12)

2.1 O MAGISTÉRIO DA IGREJA

Na história da Igreja, nenhum dos papas se manifestou contrariamente à imaculada


conceição de Maria. Em relação a esse ponto específico da fé, o magistério sempre buscou
exercer um papel moderador e promocional. A partir de Sisto IV, no século XV, inicia-se uma
série de intervenções magisteriais favoráveis a tese imaculista. O próprio Sisto IV, embora
não tenha tomado qualquer decisão dogmática, proibiu que maculistas e imaculistas
acusassem-se mutuamente de heresia, além de ter adotado a festa de Nossa Senhora da
Conceição para o calendário romano, cujo formulário trazia expressamente tal privilégio
mariano (FIORES, 1995, p. 603).
No século XVI, com a Reforma Protestante, Martinho Lutero rejeita a visão medieval
da remissão dos pecados, e salienta tão somente a justificação pela fé em Cristo. A doutrina
da justificação, ponto central da Reforma, vê o ser humano como totalmente tomado pelo mal
e incapaz de cooperar de qualquer modo para a própria salvação. Isso suscita a reação
católica, patente nas sessões de 1547 do Concílio de Trento, em que se reafirmam as teses do
pecado original e da concupiscência humana, que fragilizam o ser humano e o levam a pecar.
Por uma questão de unidade interna face a ameaça do protestantismo, Trento não se deteve
sobre a questão da Imaculada Conceição de Maria, limitando-se a não incluí-la no pecado
original (MURAD, 2012, p. 164)
Nos séculos seguintes, Alexandre VIII (1661) declara-se a favor da Imaculada
Conceição e proíbe que essa doutrina seja atacada, enquanto Clemente XI (1708) estende a
festa da Imaculada Conceição à Igreja universal. Na esteira da Contrarreforma e da reação à
modernidade nascente, o ambiente católico é cada vez mais marcado por uma grande euforia
mariana e enaltece cada vez mais os privilégios da Virgem Maria (FIORES, 1995, p. 603).
No século XIX cresce cada vez mais a devoção à Maria como um distintivo do
catolicismo. Em 1830 se dá a aparição da Virgem Maria a Catarina Labouré, e na medalha
milagrosa que a Virgem ordena cunhar está inscrito: “Ó Maria concebida sem pecado
original, rogai por nós.” Em 1848, o Papa Pio IX encarrega uma comissão de teólogos de
examinar a questão. Por meio de uma consulta aos bispos do mundo inteiro, é aprovada a
proposta da proclamação dogmática. Em 1852, o Papa constitui ainda uma outra comissão
para definir os critérios para uma definição dogmática. Enfim, com base nesses trabalhos, no
dia 8 de dezembro de 1854 é proclamado o dogma da Imaculada Conceição com a bula
Inefabilis Deus (MURAD, 2012, p. 165).
A bula passou por oito redações, e nesse processo deslocou a tônica de uma
demonstração histórico-teológica para a fé atual e para a tradição viva da Igreja docente e
discente. Assim decreta o texto final:

A doutrina que sustenta que a beatíssima Virgem Maria, no primeiro instante


da sua Conceição, por singular graça e privilégio de Deus onipotente, em
vista dos méritos de Jesus Cristo, salvador do gênero humano, foi preservada
imune de toda a mancha de pecado original, essa doutrina foi revelada por
Deus, e por isto deve ser crida firme e inviolavelmente por todos os fiéis.
(PIO IX, 1953, p. 20).
O desenvolvimento do dogma da Imaculada Conceição de Maria evidencia o caráter
dinâmico da tradição cristã, de modo que não se pode falar em uma definição simplista e
ingênua. Não se trata apenas de uma formulação subjetiva de fé, mas também da sua
compreensão objetiva. O aspecto histórico não obscurece o percurso dogmático enquanto um
processo sobrenatural, guiado pelo próprio Deus, no caminho do entendimento humano em
relação à verdade de fé revelada, que a teologia ajudou o magistério a explicitar (AIELLO,
1995, p. 418).
Não se trata apenas da especulação de teólogos, mas de um evento de ordem eclesial,
no qual tomaram parte todo o povo, os teólogos, o magistério, dando cada qual sua
contribuição segundo o próprio carisma. Como salienta Fiores (1995, p. 604), aqui não vale
apenas a via da história ou a via da lógica, mas o caminho percorrido pelo senso do fiéis, ou
seja, da faculdade de perceber e desenvolver, no espírito, o que está contido potencialmente
na revelação divina. A fé da Igreja, expressa no que ela vive, crê e celebra, foi elemento
válido e suficiente para a proclamação dogmática.

3 UMA APROXIMAÇÃO EXISTENCIAL DO DOGMA

A Imaculada Conceição é ainda hoje, sem dúvida, uma das mais famosas invocações
marianas, sendo amplamente celebrada pelos fiéis. Mas como esse mistério é captado e
entendido? Não seria duvidoso cogitar que alguns menos avisados sequer cheguem a fazer a
conexão entre o termo “Conceição” com o fato da concepção da Virgem Maria. Outros a
estabelecem de maneira equivocada, confundindo-a com a concepção virginal ou com o
próprio dogma da Virgindade de Maria. Por outro lado, muitas pessoas compreendem que a
mãe de Jesus, por ter sido concebida sem pecado, não passou por nenhuma das vicissitudes
humanas, permanecendo alheia aos dramas quotidianos a que estamos sujeitos. Os mais
críticos chegam até mesmo a questionar o mérito da existência de Maria, uma vez que ela foi
agraciada com privilégios divinos.
A teologia da graça e do pecado original que emoldura o desenvolvimento da doutrina
da Imaculada Conceição passou por revisões e reformulações, bem como o contexto da
proclamação dogmática não é mais o mesmo que o homem hodierno experimenta. Como
alerta Murad (2012, p. 167), “para entender hoje o dogma da Imaculada Conceição, não basta
coletar frases da Tradição eclesial e repeti-las fora de seu contexto, pois algumas delas não
fazem parte do núcleo vinculante de fé nem são compreensíveis na cultura contemporânea”.
A visão tradicional do catolicismo ocidental, maturada na Idade Média, desenvolve
mais uma visão negativa do pecado de Adão e Eva do que a dimensão positiva da criação em
Cristo. Se o relato mitológico do Gênesis não é tomado como uma reflexão poética e
simbólica sobre o drama humano nesse mundo à luz da fé, dificilmente se conseguirá diálogo
com a mentalidade moderna, muito mais propensa a considerar o lento e complexo processo
de amadurecimento da consciência ética no ser humano ao longo do tempo do que a aceitar a
ideia de um casal originário que, por uma falta, transmite a toda a humanidade a consequência
de seu pecado (MURAD, 2012, p. 167).
A chave hermenêutica para o dogma da Imaculada Conceição precisa levar em conta a
reflexão contemporânea sobre a antropologia teológica, ajudando a responder a questão
acerca de quem é o ser humano à luz da revelação divina, alinhando mariologia à antropologia
teológica, à teologia da Graça e à reflexão sobre a salvação. Impõe-se, assim, a exigência de
situar a devoção a Imaculada Conceição de Maria no conjunto da visão cristã sobre o homem,
sobre o mundo e sobre Deus.
O Concílio Vaticano II apresenta, sinteticamente, uma perspectiva atualizada sobre o
tema, confirmando a doutrina do pecado original proposto pelo Concílio de Trento,
superando, porém, sua compreensão literal. Não trata de Adão como um personagem
histórico, mas reconhece a fragilidade do ser humano e a necessidade de sua redenção em
Cristo. Em resumo, pode-se dizer que, no horizonte bíblico, a narrativa do pecado original
está subordinada à mensagem libertadora da salvação. Nesse sentido, o pecado é mostrado
como aquilo que contrasta com a luz da graça, que manifestou-se plenamente em Jesus Cristo.
Além do mais, toda a humanidade é pecadora, e por isso mesma, solidária no pecado,
produzindo uma corrente que acaba por influenciar a decisão individual, ou na linguagem de
João, é o “pecado do mundo” (MURAD, 2012, p. 168).
Daí que os cristãos, chamados pela iniciativa do amor divino à santidade, se
empenham em acolher a manifestação de Deus e a edificar o Reino a partir dos valores que
superam o mal e o pecado, propostos por Jesus Cristo como caminho para a vida plena.
A beleza do ser humano, muitas vezes esquecida, é de que sua criação, como a de
todas as criaturas, está radicada em Cristo, pela Palavra (Jo 1, 1-2). O diferencial dos homens
e mulheres, imagem e semelhança de Deus, está na consciência de si, na linguagem e na
liberdade, que projetam o ser humano à existência de uma forma especial, na medida em que
podem se abrir ao seu sentido original. Mais do que acentuar os aspectos negativos do pecado,
é preciso recuperar a força da graça original, como ensina Paulo: “Em Jesus, Deus nos
escolheu, antes da fundação do mundo, para sermos santos e íntegros diante dele” (Ef 1, 4).
Deus nos cria para a felicidade. O que vivemos nos prepara para a comunhão plena com Deus,
na vida eterna (MURAD, 2012, p. 169).

Nesse processo de aprender com a vida até os erros têm lugar, como oportunidade
de superação e crescimento. Portanto, a finitude constitui algo essencial ao ser
humano, pois ele é criatura e não um Deus. Ser finito, limitado pelo tempo e pelo
espaço, sujeito ao ciclo de vida e de morte, estar condicionado pela sua cultura não
diz respeito ao pecado, mas ao fato de ser criatura (MURAD, 2012, p. 170).

Quanto ao pecado, ele precisa ser compreendido a partir do mistério do mal, que
introduz no ser humano uma profunda contradição. Cada um de nós possui desejos,
tendências e impulsos muitas vezes conflitantes. Essa divisão interna é a concupiscência. São
Paulo (Rm 8, 1-4) nos diz que, pelo pecado, ficou comprometida nossa liberdade, de modo
que é preciso integrar essas divisão interna num projeto de vida, o que certamente não é uma
tarefa fácil, tendo em vista nossa fragmentação. O pecado original não é um pecado no
sentido estrito, mas podemos compreendê-lo na perspectiva analógica, enquanto ausência da
mediação da graça de Deus que nos libertar, cura e eleva para a vida com Deus. Não obstante
as contingências humanas, continua a ser um paradoxo constatar que tantas pessoas se deixem
envolver pelo mal e neguem-se a crescer no bem (MURAD, 2012, p. 171).
Aqui o cristianismo apresenta-se fundamentalmente como a resposta para essa
contradição da humanidade, na medida em que a salvação oferecida por Cristo é a iniciativa
amorosa de Deus em relacionar-se com ser humano para livrá-lo das situações negativas,
curá-lo integralmente e prepará-lo para a comunhão plena com Santíssima Trindade. Mais do
que salvar de algo (pecado), é um salvar para algo (vida com Deus). O processo de
transformação humana tem início quando, sob a ação da mesma graça divina, acolhe a
iniciativa divina e se coloca em diálogo com Deus, respondendo ao seu chamado à uma vida
íntegra e santa. A história da Salvação, por assim dizer, já tem o seu começo na própria
criação. A humanidade experimentou os momentos fortes da manifestação de Deus, desde a
libertação do Êxodo, no Antigo Testamento, até a encarnação do Verbo, em Jesus Cristo.
Toda a vida de Jesus, em seus atos e palavras, é salvadora, e encontra seu ápice no mistério da
Cruz e da Ressurreição (MURAD, 2012, p. 172).
Desse modo, é possível olhar novamente para a Imaculada Conceição de Maria, a
partir de uma moldura ampliada, para sondar seu sentido profundo para nós hoje, como sinal
que manifesta o amor gratuito de Deus, como expressão perfeita da redenção operada em
Cristo e como a criação na graça do Espírito Santo.
3.1 IMACULADA CONCEIÇÃO DE MARIA: A HUMANIDADE REINTEGRADA

A relação entre Deus e a humanidade possui um caráter dialógico. Deus age


gratuitamente, tomando a iniciativa do amor. Essa graça de Deus, no entanto, exige a resposta
do ser humano para se realizar efetivamente. Em outras palavras, cabe a cada pessoa, em sua
existência concreta, acolher o plano salvífico de Deus (MURAD, 2012, p. 173).
É nessa perspectiva que melhor compreendemos o dogma da Imaculada Conceição,
pois Maria foi agraciada com um dom especial que lhe permitiu responder totalmente ao
projeto divino. Por ser pré-redimida pelo Verbo, ela experimentou sua graça salvadora de
modo mais intenso, e preservada do pecado original que fragmenta o ser humano, ela nasceu
mais integrada e, portanto, mais capaz de exercer sua liberdade e aderir aos desígnios de
Deus. Isso não deprecia em nada a humanidade da mãe de Jesus, pois entre a graça de Deus e
a liberdade humana não há competição. Ser Imaculada não a torna menos mulher, pois
também ela precisou crescer na fé, foi aprendiz da existência, como qualquer um de nós
(MURAD, 2012, p. 173-174).

Há momentos em que ela não entende o sentido pleno dos fatos e das palavras (Lc
2,49,50). No correr da vida, Jesus a surpreende muitas vezes ao mudar os
paradigmas familiares convencionais (Mc 2, 31-35). [...] Maria realiza sua vocação
pelo caminho da fé, em meio a crises e dificuldades. Ela também teve que fazer
correções de rota no correr da vida. Experimentou processos de mudanças, de
conversão. Não do mal para o bem, mas do bem para um bem maior (MURAD,
2012, p. 173).

Maria Imaculada é a realização da nova humanidade, do ser humano integrado que


cresce na fé, na esperança e na caridade. Em meio a sociedade de sua época, marcada por
inúmeros pecados e contradições, sua liberdade esteve sujeita às mais diversas influências,
como todo ser humano. Iluminada pela graça de Deus, ela viveu progressivamente o processo
amadurecimento desde a infância, mas sobretudo como mãe e educadora de Jesus, e depois
como sua discípula, até sua integração na comunidade cristã nascente. Desse modo, não
experimentou a salvação somente em sua concepção imaculada, mas em todas as fases da sua
vida. “A salvação oferecida por Deus se torna nela salvação acolhida e realizada no correr da
vida, pelo ‘sim’ generosamente renovado. E isso é uma lição de vida para todos os que se
comprometem a seguir a Jesus como discípulos e missionários” (MURAD, 2012, p. 174).
Destarte, fica claro que não se trata de compreender a Imaculada Conceição da mãe de
Jesus como apenas um privilégio, distante de nossa humanidade, mas como um dom
incomensurável que encontrou uma imensa correspondência na pessoa e na vida de Maria.
Também nós recebemos inúmeros dons de Deus, e se respondemos positivamente a eles,
somos progressivamente restaurados em Cristo, ainda que de a realização perfeita de nossa
integração só aconteça escatologicamente na vida eterna. Não obstante a nossa fragilidade,
somos chamados a santidade e podemos nos colocar em marcha, independente do ponto em
que nos encontremos.

De fato, a Imaculada representa o triunfo da graça das origens. Ela mostra o estado
de vocação originária de cada pessoa humana, de toda a humanidade e mesmo de
toda a criação. É o testemunho da “predestinação” à graça, como realidade mais
radical que a situação de pecado e, portanto, que a própria redenção do pecado. O
paraíso é mais primitivo que o nosso “vale de lágrimas”. A graça original é anterior
ao pecado original (BOFF, 2006, p. 507).

No caminho da fé e da existência, não podemos desconsiderar que, por sua Imaculada


Conceição, a Virgem Maria é distinta de toda a humanidade em relação ao ponto de partida.
Não o é, contudo, no ponto de chegada. A devoção a Nossa Senhora da Conceição deve,
acima de tudo, iluminar a meta de todo cristão: “Vós portanto, sereis perfeitos, como vosso
Pai celeste é perfeito” (Mt 5, 48).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa histórica, teológica, cultural e espiritual pode oferecer um caminho


possível para a apresentação atualizada da Imaculada Conceição de Maria. A primeira parte
do artigo se debruçou sobre o percurso histórico da devoção à Imaculada Conceição, na
perspectiva do “sensus fidei”, a partir interpretação dos Santos Padres aos textos das Sagradas
Escrituras. A segunda parte se deteve no polêmico desenvolvimento teológico da doutrina da
Imaculada Conceição, e apresentou brevemente como magistério da Igreja moderou os
debates, através dos séculos, encaminhando, enfim, sua solene proclamação dogmática. A
última parte do artigo buscou compreender os limites históricos e teológicos da proclamação
dogmática, a fim de distinguir as perspectivas que se abrem no horizonte contemporâneo,
sobretudo para uma interpretação mais existencial da devoção à Imaculada Conceição.
Enfim, ao explorar o tema da Imaculada Conceição, vai se tornando ainda mais clara a
compreensão da anterioridade da graça divina a todo pecado, que longe de alienar a
experiência humana de sua responsabilidade existencial, suscita no coração das pessoas uma
resposta intensa, uma resposta que se exprime no desejo de unificação com Cristo, ou em uma
palavra, na busca da santificação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A Bíblia – Tradução Ecumênica. Trad. J. Konings (Coord.) 2. ed. São Paulo: Loyola, 1995.

AIELLO, A. G. Dogmas. In: FIORES, Stefano de; MEO, Salvatore (Org.). Dicionário de
Mariologia. Trad. Alváro A. Cunha; Honório Dalbosco; Isabel F. L. Ferreira. São Paulo:
Paulus, 1995. p. 410-422.

BOFF, C. Mariologia social: o significado da Virgem para a sociedade. São Paulo: Paulus,
2006.

_____. Dogmas marianos: síntese catequético-pastoral. São Paulo: Ave-Maria, 2010.

CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO E DO CARIBE.


Documento de Aparecida. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2008.

FIORES, S. de; SERRA, A. Imaculada. In: FIORES, Stefano de; MEO, Salvatore (Org.).
Dicionário de Mariologia. Trad. Alváro A. Cunha; Honório Dalbosco; Isabel F. L. Ferreira.
São Paulo: Paulus, 1995. p. 599-620.

MACIEL, Mauro. Imaculada Conceição de Maria Santíssima: aspectos históricos.


Aparecida: Santuário, 1999.

MURAD, Afonso. Perfil de Maria numa sociedade plural in: UNIÃO MARISTA DO
BRASIL. Maria no coração da Igreja: múltiplos olhares sobre a Mariologia. São Paulo:
Paulinas, 2011.

_____. Maria, toda de Deus e tão humana: compêndio de Mariologia. São Paulo: Paulinas,
2012.

PIO IX. Ineffabilis Deus. In: DOCUMENTOS PONTIFÍCIOS. Sobre a Imaculada


Conceição de Nossa Senhora. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1953.

SESBOÜÉ, Bernard; BOURGEOIS, Henri; TIHON, Paul. História dos dogmas: os sinais da
salvação. v. 3. Trad. Margarida Oliva. São Paulo: Loyola, 2005.

VIEIRA, Antonio. Sermões. São Paulo: Anchieta, 1945. Vol. XII.

Você também pode gostar