Você está na página 1de 2

A Morte Bate à Porta

Três batidas na porta. E o silêncio. Três novas batidas, agora mais pausadas e fortes. Curiosa, ela
foi atender. Pelo “olho mágico”, não viu ninguém. Ficou aborrecida. Praguejou alto. Deveria ser
trote da criançada desocupada do prédio. Mas, imediatamente novas batidas soaram. Rápido, olhou
mais uma vez. Nada do outro lado. E, com um misto de curiosidade e assombro, abriu a porta.
Então, viu na sua frente um esqueleto alto em pé. A mão ossuda segurando uma enorme foice. Ela
soltou um berro de puro medo e bateu a porte.
- Socorro, Jesus!
Com o coração saltando pela boca, olhou em seguida pelo olho mágico. Nada do lado de fora. Se
benzeu cinco vezes. Iria à igreja, naquela mesma noite. Pediria uma oração que lhe livrasse de
qualquer encosto. Mas, só depois que seu marido chegasse. E pudesse, junto com ele, abrir aquela
porta e sair de casa. Ao virar rosto, notou a caveira sentada no sofá.
- Valha-me, Deus! – berrou novamente.
A caveira tranquilamente, falou – Obrigado, por me deixar entrar.
Sem saber de onde tirou coragem, ela respondeu - Eu não lhe deixei entrar!
- Você abriu a porte, não foi?
- Mas eu logo fechei!
- Isso foi já o suficiente. Para mim, basta abrir a porta, Solange.
Ela deu de ombros – Solange?! Não me chamo Solange.
A caveira olhou para a mulher, desconfiada. – O seu nome não é... peraí – fazendo um gesto
com a mão, para ela esperar. Olhou para atentamente para o cabo da foice, procurando algo. – Ah,
aqui, está! – exclamou ao ver um papelzinho amarrado – Pronto, vamos ver. – Abriu aquele
papelzinho – Seu nome não é... Solange Aguiar Sampaio?
- O meu nome é Maria José Silva!
- Hum... Vamos ver. Aqui diz que você mora no apartamento 14, viajou para a Europa mês passado.
E é amante do vizinho casado que mora no mesmo andar, porta com porta.
Perplexa, ela balbuciou – Essa Solange mora aí no apartamento da frente!
A caveira ficou surpresa – Não, me diga!
Maria mostrou uma conta de água, que estava sobre a mesa.
A caveira examinou com atenção – Esse daqui, o Ernesto Silva Barreto...
- Sim, esse safado é o meu marido.
A caveira, embaraçada, lhe falou amigavelmente – Olha só. Me desculpe o equívoco. Aliás, com
toda essa confusão, eu nem me apresentei – Estendeu a mão – Prazer, sou a Morte.

Estranhamente, ela não sentia mais medo. Apertou aquela mão gelada e disse – Maria.

A Morte então desabafou – Ultimamente, é tanto trabalho, que a gente acaba deixando a checagem
dos “clientes” para os estagiários.
– Tudo bem - falou Maria - Esse mundo é engraçado mesmo. Às vezes é preciso dar de cara com
Morte para enxergar aquilo que estava na nossa cara o tempo inteiro!... Um grande par de chifres!
Agora me responde uma coisa.
A Morte olhou para ela, com atenção. E Maria prosseguiu:
- Do que essa piranha vai morrer mesmo?
- Desculpa. Mas isso é confidencial.
- Olha só. Tu me aparece aqui assim, de supetão. Quase me mata de susto. E ainda me fez descobrir
que sou corna. Eu mereço, pelo menos, um desconto, não? Me responde, só para matar a minha
curiosidade.
A Morte deu de ombros - Tudo bem. Não vai fazer diferença mesmo. Solange vai morrer de... – a
Morte deu uma olhada no papelzinho -.. um chupão.
- Do quê?!
- Aqui diz que de um chupão violento dado por Ernes...
- Certo, nem precisa terminar. Já sei quem foi o dito cujo.- e fecha o punho indignada – Então, é por
isso que aquela vagabunda não sai do apartamento há três dias! E espalhou para todo mundo que
está gripada com febre e de cama.
A morte ficou preocupada – Então, ela não sai de casa nem abre a porta para ninguém?
Maria deu um risinho malicioso - Não se preocupe. A porta, pelo menos, ela vai abrir.
A Morte olhou para um relógio invisível em seu osso do braço – Bem, agora tenho que voltar
para o serviço.
- Boa sorte! – Desejou sinceramente Maria.
A Morte agradeceu e se desfez como névoa. Em seguida, ouviram-se três batidas na porta da
frente. Maria correu para o celular e ligou.
- Alô, Solange? Bom dia, amiga. Olha só, eu preparei um chazinho para você melhorar dessa gripe.
Não, não precisa agradecer. Abre a porta, querida.

Rutinaldo Miranda

Você também pode gostar