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Memória é Luta!

ANARQUISMO NO MOVIMENTO ESTUDANTIL (1984-1992)


O ano de 1984 foi marcado pela saída atuavam no movimento estudantil e pelo governo aos centros e diretórios
da clandestinidade das organizações que eram identificados com o anar- acadêmicos, também únicos, e às en-
estudantis. A quismo. Entretanto, o evento anual do tidades regionais e nacionais era algo
(UNE) e a congresso da UNE funcionava como de difícil oposição.
(UBES) catalisador – formávamos a “banca- Estar à frente do coletivo de estu-
tiveram papel importante nas mani- da anarquista”, ao lado da “bancada dantes negociando com as entidades
festações históricas pós-golpe civil- independente”, como frente que se educacionais e o governo, receber
-militar e, com fundos do governo
a gradual “dis- e, principalmente, da
tensão política” confecção das “cartei-
a partir de 1978, rinhas” de estudante,
os cong ressos eram os principais atra-
a nu ai s d es sa s tivos dos militantes de
entidades foram tendências partidárias,
“tolerados” ainda que se engalfinhavam
no governo do para estar no controle
General Figueire- das entidades.
do. No congres-
so da UBES de Muitos eram os mi-
Belo Horizonte litantes de partidos
a presença foi reconheci damente
massiva e logo profissionalizados, que
vieram algumas perpetuavam-se seja
supresas para na escola secundária,
mim, que já me seja na universidade,
dizia anarquista mas ainda não tinha fazendo da militância uma atividade
base teórica alguma. Naquele evento, opunha ao aparelhamento e à pro- verdadeiramente profissional.
o que mais me surpreendeu foram os fissionalização do militante, sempre Diante disso, nossa bancada formava
grupos identificados com a resistência presente nas tendências partidárias sua própria claque: ironizávamos as
armada ou pacífica contra a ditadura que disputavam o controle da enti- claques das tendências, invertendo
exporem faixas de apoio ao governo dade. Nossa atuação resumia-se a palavras, ou criando nossas próprias.
de José Sarney, vice-presidente que fazer a denúncia da hipocrisia dos Alguns exemplos dessas eram: “Se
substituiu Tancredo Neves após grupos que lutavam pelo controle da você é PT, PT, não pode ter cuca legal,
sua morte em 1985. Essa prática de UNE. Nós defendíamos o pluralis- pois quem decide por você, é o dire-
aliança com o liberalismo por parte de mo das entidades estudantis, pois o tório nacional – se você é PC, PC, não
grupos marxistas já estava presente. modelo em estas haviam se formado pode ter cuca legal, pois quem decide
Entre 1985 a 1990, não havia uma era o mesmo do sindicalismo único, por você, é o comitê central”; “A
organização que reunisse aqueles que atrelado ao Estado. A legitimidade UNE, é minha, ganhei na porrinha”;
dada pelas entidades educacionais e
ou, quando ficava patente o uso das e fazia parte da liderança de defesa consequência prática.
regras de ordem para manipular os dos alunos inadimplentes que, na
A UNE e a UBES continuam, cada
procedimentos do congresso, cantá- época, podiam ser expulsos por falta
vez mais, milionárias entidades apa-
vamos “questão de ordem, questão de pagamento das mensalidades.
relhadas. Sua disputa pelas tendências
de ordem”; havia ainda, “Trotski foi Outros eram participantes das ativida- formadas por quadros de partidos
minha cartilha, Amazonas o meu des políticas estudantis que ocorriam, continua com a mesma truculência e
ABC, sou social-democrata babaca, sem, no entanto, estarem organizados hipocrisia, um laboratório de “gover-
sou filiado ao PT” ou “Lênin foi minha nem participarem das organizações no” e de “política” no qual pretenden-
cartilha, Prestes o meu ABC, sou estudantis na sua base. Iam ao con- tes a diretoria de partidos podem ter
social-democrata babaca, sou filiado gresso para “participar”, para entrar sua “escola”.
ao PC”. A que eu mais gostava era em contato com outros anarquistas
“Terra, Marte, espaço sideral, a classe A experiência desses anos nos mostra
de todo o país. Havia um terceiro
operária, é interplanetária”. como só a crítica negativa, embora
tipo de participante anarquista que
possa marcar a memória e a presença
Evidentemente, os militantes das di- era aquele do estudante que não
anarquista, embora seja instrumento
versas tendências do PT e os dos PCs fazia muita coisa, mas não faltava no
de agregação e de estabelecimento
(PCB e PCdoB) ficavam furiosos. A congresso, afinal, a bagunça era muito
de contatos com simpatizantes e in-
cada ano, nossa bancada crescia em divertida.
teressados, pouco constrói.
número, ao ponto de começarmos Para aqueles de nós que estudavam
a, de fato, cada vez mais perturbar A participação e a atuação nas enti-
em universidades públicas, as greves
os procedimentos do congresso. dades de base do movimento parece
de funcionários e professores eram
Muitos militantes de base que iam ter sido a única atuação anarquista
anuais, às vezes, semestrais. A par-
ao congresso sem articulação com com frutos profícuos. Em vez de
ticipação estudantil tornou-se algo a
as tendências partidárias acabavam concentrar energias na denúncia do
reboque dos movimentos sindicais. A
identificando-se com nossa bancada e aparelhamento das entidades, embora
base dos estudantes não se identifi-
juntando-se a nós. Houve alguns mo- isso nunca possa deixar de ser feito,
cava com o discurso ou a prática dos
mentos de conflito em razão de nossa parece mais promissor a busca das
militantes de partidos que utilizavam
crescente participação denunciatória demandas e necessidades da base dos
os acontecimentos de luta sindical
e questionadora. estudantes e da formação de coletivos
para fazer o seu tipo de propaganda.
com lutas voltadas a essas demandas
O evento era uma oportunidade de Entretanto, embora fizéssemos a de-
e necessidades.
espalhar pequenos panfletos e perió- núncia desse tipo de prática, poucos
dicos em que, além das ideias gerais foram os anarquistas que propunham É evidente que nunca deixaremos de
do anarquismo, defendiam a organi- algo positivo, com exceções. nos deliciar com claques irônicas, com
zação pela base, a decisão direta por o prazer de ver a cara de raiva dos
Por volta de 1992, a bancada anar-
assembleia de alunos, o pluralismo de militantes de quadro dos partidos ao
quista e sua claque tornou-se, literal-
entidades sem atrelamento ao Estado. cantarmos, sorrindo, a denúncia de
mente, ensurdecedora. No congresso
sua verdadeira face.
Houve, no período, diversos centros de São José dos Campos, arrumamos
e diretórios acadêmicos universitários uns latões de lixo vazio que serviram Carlos Puig
cuja chapa vencedora declarava a de instrumento de percussão – os dis-
autogestão e a ausência de diretoria. cursos do congresso foram, de fato,
Evidentemente, essas ocorrências inviabilizados. Nos vimos cercados
se deparavam com a pressão da por um número muito maior que o
entidade educacional que requeria nosso de militantes de partidos e
um “representante legalizado” para a tendências que deixaram claro que,
participação nas reuniões de depar- se não parássemos, haveria violência
tamento etc. – não havia como enfrentar, devido à
Havia três tipos de militantes anar- diferença numérica e, claro, à falta de
quistas que iam a esses congressos propósito que tal briga teria. Já tor-
engrossar a bancada de anarquistas: nada folclórica, a bancada de claques
alguns de nós éramos militantes de anarquistas fazia parte da cena do
centros acadêmicos com trabalho congresso. Mas a simples denúncia,
importante de base. Foi o caso de sem propostas nem atuação positi-
Pedro Kroupa, que era do diretório vas, teve poucos desenvolvimentos,
acadêmico de sua faculdade particular pouca continuidade, quase nenhuma

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