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CONTA-ME COMO É

peças curtas
de
Jorge Palinhos

Sandra Pinheiro

Pedro Marques

O TEATRÃO
2014
Um estúdio de rádio, com várias cabines de som. Reflectida num dos vidros do estúdio, a
estreita linha vermelha do horizonte; o resto do céu é sujo e baço. Na semi-obscuridade, está
aceso o sinal luminoso «NO AR», que por sua vez também se vê reflectido nas janelas das
cabines. A sirene que alerta os bombeiros para se dirigirem ao quartel ouve-se
continuamente, durante alguns minutos, e depois vai-se espaçando até deixar de se ouvir.

Programa de discos pedidos, durante o qual se houve uma mistura de sucessos da moda,
canções de outrora e clássicos do mau gosto. O LOCUTOR normalmente recolhe três ou
quatro dedicatórias e só depois passa os temas musicais, alguns escolhidos por ele.

LOCUTOR
E para quem vai a dedicatória?

OUVINTE 1
É para dedicar ao senhor e a todos os que trabalham aí. Este programa faz muita companhia.
É por vocês que eu sei tudo o que se passa, e mesmo para saber se faz chuva ou sol, eu
primeiro ouço a rádio.

LOCUTOR
Muito obrigado. Mais uma ouvinte.

OUVINTE 2
Sim?

LOCUTOR
Muito bom dia. Como se chama?

OUVINTE 2
Está?! Não se ouve.

LOCUTOR
Estou a ouvi-la muito bem. Baixe o volume do seu rádio.
OUVINTE 2
Eu queria dedicar uma música.

LOCUTOR
Muito bem, e qual é?

OUVINTE 2
É uma à vossa escolha.

LOCUTOR
Muito bem. Já temos Volta, Emigrante, escolha do ouvinte anterior; Felicidade, pode ser? E a
quem dedica?

OUVINTE 2
Era para dedicar ao meu marido, que deus tem, às minhas filhas e filhos... (A chamada cai.)

LOCUTOR
Parece que perdemos esta ouvinte. Mas já temos outro ouvinte em linha.

OUVINTE 2
Eu liguei há pouco mas não acabei de fazer a dedicatória, eu queria dedicar a minha escolha
ao meu filho, que está na torre de vigia – eu estou sozinha aqui com a minha neta, o pai dela
está na torre de vigia, mas eu até já ouvi dizer que a torre de vigia também ardeu, mas não
deve ter ardido se não eu já sabia – o fogo não chega lá assim, à torre de vigia – o senhor sabe
se já ardeu?

LOCUTOR
Não, mas se ficar atenta ao noticiário, com certeza ficará informada.

OUVINTE 2
As pessoas foram todas embora e soltaram os animais, mas lá em cima há um cão que não
pára de ladrar, se calhar deve ter ficado preso. Deixarem os cães para trás… algumas
soltaram-nos, mas outras deixaram-nos presos e eu tenho medo de deixar a minha netinha
para ir lá soltá-los e depois... Olhe, eu queria dedicar também a toda esta gente que morava
aqui ao pé de mim e que já se foram quase todos embora, só fiquei eu mais a minha netinha,

-3-
mais o meu filho, que é guarda. Os meus vizinhos Rita e Manuel Acácio, a Ana Maria, a
Carla Videira e as suas filhas, Joana, Susana e Ana, mais o menino que nasceu agora, o Luís,
o marido dela, senhor José João, a Sara da casa do gás, o pessoal todo da fábrica, que sempre
foram muito minha amigas, Paula, Sandrinha, a dona Andreia, a Teresa… E o senhor
Cláudio, que é a paga da última que ele me dedicou. Tenho estado a ouvir e eles se calhar
ainda estão no trânsito, por isso olhem, um grande bem hajam para todos vós e espero que
cheguem depressa às praias para onde vão e outras terras.

LOCUTOR
Muito bem, vamos para o último pedido antes da síntese da meia hora. Faça favor.

OUVINTE 3 (Não responde.)

LOCUTOR
De onde nos fala?

OUVINTE 3 (Não responde.)

LOCUTOR
Qual é a canção que quer dedicar?

OUVINTE 3
Eu queria dizer que não compreendo esta confusão que os media e a rádio e os jornais e a
televisão, sobretudo, estão a lançar, que deixam as estradas cheias, com as pessoas assustadas
sem necessidade nenhuma. Eu saí de Celorico pela manhã, e não havia incêndio nenhum. Fui
a Coimbra e vim, e não havia incêndio nenhum em Coimbra. Agora chego aqui perto do IP5
e começo a ver carros por todos os lados e a ouvir falar de labaredas e eu pergunto: onde
estão as labaredas? Onde estão? Gostava que me dissessem, porque eu não vejo nenhumas.
Mal saio de Coimbra, começo a ouvir dizer que a cidade está cercada por chamas, e eu não
vejo nada. Chego à auto-estrada, carros e mais carros e gente em pânico. E o pior é que os
carros de bombeiros não podem passar, porque isto está cheio de carros. Quer dizer, mesmo
que houvesse um incêndio, os bombeiros não conseguiam lá chegar. Por isso eu queria pedir
aos media que tivessem mais cuidado antes de começar a empolar esta situação, que se calhar
não se passa nada, se calhar não passa disso mesmo, uma situação. Pronto, era só isso,
obrigado.

LOCUTOR
Não quer escolher uma música?

OUVINTE 3 (Não responde.)

LOCUTOR
Muito bem, estamos em cima do sinal horário. Ficamos com as vossas escolhas. Volto para a
semana, com mais dedicatórias... Depois das notícias, não perca a emissão especial de hoje,
dedicada ao escritor José Amado, com a presença do autor em estúdio e uma surpresa: a
adaptação para teatro radiofónico do capítulo final do best-seller História Natural da Ficção.

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PRIMEIRA CENA DE PIQUENIQUE
Várias famílias se instalam para fazer piqueniques, com as suas toalhas, cestas, taparuéres,
talheres, geleiras, garrafões, cadeiras, banquinhos, rádios que repetem o que acabámos de
ouvir, vasos de flores, até televisões. O ruído de carros passando na estrada. Acidentes. As
várias estações de rádio vão sendo sintonizadas em outras rádios.
ADEUS

Dois adolescentes, Rodrigo e Pedro [João e Nuno], entram numa sala ampla, com bom
gosto.

RODRIGO

É rápido.

PEDRO

Que seca!

RODRIGO

É só para me despedir.

PEDRO

Tens Playstation?

RODRIGO

Foi para arranjar.

AINDA FORA. Sentam-se no sofá. Pedro tira um telemóvel ou consola portátil e começa a
jogar. Rodrigo liga a televisão. Uma mulher de meia idade, Idalina [Isa], com bata, entra na
sala.

IDALINA
Olá menino Rodrigo. Olá menino... Hã… Assustaram-me. Não esperava que viessem a esta
hora.

RODRIGO

Não se preocupe connosco, Idalina.

-7-
IDALINA

O menino precisa de alguma coisa?

RODRIGO

Não se preocupe. Acabe lá o seu trabalho.

Idalina desaparece para o interior da casa. AINDA FORA. Os rapazes continuam sentados.

PEDRO

Porque é que a vão despedir?

RODRIGO

Tem de ser.

PEDRO

Há quanto tempo trabalha cá?

RODRIGO

Pelo menos desde que nasci. Por isso é que a minha mãe quer que eu me despeça.

PEDRO

Então despede-te.

RODRIGO

Chiu que ela ouve!

Idalina volta a entrar subitamente, como se estivesse mesmo à porta. Parece inquieta.

IDALINA

Já lhe arrumei o quarto, menino. Se quiserem ir para lá estão à vontade.


RODRIGO

Estamos aqui bem, não estamos, Pedro?

PEDRO

Bué.

Idalina volta a desaparecer. AINDA FORA. Os dois continuam sentados.

PEDRO

(trocista) "Já lhe arrumei o quarto, menino".

RODRIGO

O que é que queres? Chama-me assim desde puto!

PEDRO

Ah, a minha empregada trata-me sempre por "senhor"!

RODRIGO

Tu nem sequer tens empregada!

Silêncio. AINDA FORA. Rodrigo olha para a televisão. Idalina volta a aparecer
subitamente.

IDALINA

Não querem lanchar nada? Posso preparar uns pãezinhos. Leite com cacau. Se calhar a tosta
de queijo e tomate de que o menino gosta.

RODRIGO

Eu tou bem. Tu queres alguma coisa?

-9-
PEDRO

Nope!

IDALINA

Se quiserem alguma coisa é só dizer. Agora vou passar a ferro, se precisarem de mim.

Idalina volta a sair.

PEDRO

Ela já parece suficientemente velha para a reforma.

RODRIGO

Sei lá!

Silêncio.

PEDRO

Ela sabe que vai ser despedida, não sabe?

RODRIGO

Acho que não. A minha mãe liga-lhe amanhã.

PEDRO

Então como é que te vais despedir dela?

Silêncio.

PEDRO

Então?
RODRIGO

Calma! Tou a pensar!

PEDRO

Eh pá, dizes: "Muito obrigado por tudo, Idalina. Gostei muito de a conhecer."

RODRIGO

És doido! Assim ela percebe que se passa alguma coisa e começa a fazer perguntas.

PEDRO

Então dizes a verdade.

RODRIGO

Não vou ser eu a dizer-lhe que vai ser despedida! És doido?

PEDRO

Pronto, então dizes: "Dê-me um abraço, Idalina. Você foi como uma mãe para mim."

RODRIGO

Ui, é melhor não. Se não ela ainda usa isso para chantagear a mãe.

PEDRO

Ou então: "Idalina, você é uma grande mulher. Não importa o que aconteça, estará sempre
comigo."

RODRIGO

Chiça, assim até parece que ela vai bater a bota!

PEDRO

Fogo! Tu também és cá um complicado! És mesmo menino da criada.

- 11 -
RODRIGO

Eu queria era ver-te no meu lugar!

PEDRO

Pronto, se quiseres despeço-me eu! Digo: "Ó Idalina, você nem sabe o meu nome, mas eu sei
que se não fosse você, aqui o Rodrigo…"

RODRIGO

Tu não dizes é nada! Estás a ouvir! Já estou a ver que vais armar confusão.

Idalina volta a aparecer.

IDALINA

Passa-se alguma coisa? Estão a falar tão alto.

RODRIGO
Não, Idalina. Deixe-nos em paz. Não vê que temos mais que fazer!

Silêncio. Idalina, vermelha, afasta-se. Os rapazes continuam quietos no sofá. Silêncio.

PEDRO

"Não vê que temos mais que fazer!" LOL! (ri-se)

RODRIGO

Calou! Estás a deixar-me nervoso.

PEDRO

Eh, pá! Isto é muito fácil. Vamos ter com ela e tu dás-lhe um beijo, dizes: "Até breve, Idalina.
Gosto muito de si. Vemo-nos depois." E vamos embora. Agora estar aqui à espera do Godot
ou da Idalina ou do raio que o parta é que não tem jeito nenhum!
Idalina volta a entrar subitamente.

IDALINA

É só para pedir que não vão à cozinha. Acabei de passar a esfregona.

RODRIGO (quase a gaguejar)

Está bem, Idalina. Não se preocupe que nós não vamos.

Idalina volta a sair. Os dois rapazes ficam em silêncio.

PEDRO

Então?

RODRIGO

Espera! Estou a pensar no que digo. Mas só me despeço quando ela acabar o trabalho! Não
quero interromper.

PEDRO

E quanto tempo é que isso é?

RODRIGO

Deve estar quase.

Silêncio. Surge Idalina sem a bata, com roupa de rua. Vagarosa.

IDALINA

Pronto, não precisa de mais nada, menino?

RODRIGO

Não, Idalina.

- 13 -
IDALINA

Preparei-vos um lanche. Na cozinha têm chá, leite, pão torrado com manteiga e um bolo
acabado de fazer.

RODRIGO

Obrigado, Idalina.

IDALINA

Tem a certeza que não precisa de mais nada?

RODRIGO

Não, Idalina.

IDALINA

Então até amanhã, menino. Gostei muito de o ver.

Idalina avança até junto de Rodrigo. Estende-lhe o rosto para ele a beijar.

RODRIGO (sem se mexer) AINDA FORA.


Tchau, Idalina.

Ela hesita. Espera ainda o beijo.

RODRIGO (encolhido)

Tchau, Idalina.

Ela continua com o rosto pendurado. Rodrigo chega-se para trás.

RODRIGO (quase a gritar)

Tchau, Idalina!
Idalina volta a endireitar-se. Está vermelha.

IDALINA
Se não quer mais nada…

RODRIGO

Tchau.

SAI. Idalina desaparece. Pedro olha para Rodrigo com espanto.

PEDRO

"Tchau, Idalina"?!

RODRIGO (com alívio)


Cala-te! Vamos comer. Estava cá com uma fome!

ENTRAM.

- 15 -
TOUCINHO

Ouve-se tocar à campainha. Uma mulher vestida de uma forma desordenada e branca vem
abrir a porta. Ao abrir, vê-se na porta um letreiro que diz: "Vende-se ou Aluga-se". FORA.
Do outro lado, a vizinha, de preto.

VIZINHA [Inês]
Desculpe incomodar, vizinha… tem ovos que me arranje?

MÃE [Margarida]
Não… não tenho ovos.

VIZINHA

Ah, estava a fazer um bolo e… precisava de ovos.

MÃE
Pois, mas… não tenho ovos.

VIZINHA

Era só três ou quatro ovos… faltavam-me para fazer o bolo.

MÃE
Mas eu… não tenho ovos.

VIZINHA

É uma chatice não fazer um bolo por… um par de ovos.

MÃE
Pois… pois é.

VIZINHA
Vou ver se a outra vizinha tem… ovos.

MÃE
De certeza que tem… ovos toda a gente tem.

A vizinha afasta-se. A mulher fica a olhar um momento e fecha a porta. Aparece o pai, de
branco, transportando algo leve, tapado com um lençol branco, e duas filhas, vestidas de
branco, transportando volumes leves, cobertos por lençóis brancos.

PAI [Nuno]

Eram os fiscais?

MÃE
Não, era a vizinha.

PAI

O que é que a gaja queria?

MÃE
Ovos.

PAI

Deste-lhe ovos?

MÃE
Não tenho ovos.

PAI

Não tens ovos? Devias ter-lhe dado ovos.

MÃE

- 17 -
Não tenho ovos.

PAI

Davas outra coisa: açúcar, farinha, toucinho…

MÃE
Ela só me pediu ovos.

PAI

Achas mesmo que ela só queria ovos?

Ficam a olhar-se os dois em silêncio como se alguém se tivesse esquecido do texto. Voltam a
tocar à campainha. O pai volta a pegar no seu fardo, faz um gesto imperioso à mulher e foge
para os fundos com as filhas. A mãe vai abrir a porta. É outra vez a vizinha.

VIZINHA

Desculpe chatear outra vez… vizinha. Por acaso dispensava-me um bocadinho de açúcar?

MÃE
Ah… Não.

VIZINHA

Não… Não?

MÃE
Não... Não.

VIZINHA

Não tem… açúcar?

MÃE
Não sei… Quer ovos?

VIZINHA

Mas disse antes… não tinha ovos?

MÃE
Pois… não tenho ovos.

VIZINHA

E açúcar… também não?

MÃE
Não sei. Mas se vier depois… Eu vejo se tenho ovos.

VIZINHA

Ovos, a outra vizinha arranjou… Mas açúcar?

MÃE
Pronto… Se não quer ovos...

A mulher fecha lentamente a porta, com um sorriso constrangido, enquanto a vizinha fica à
porta a olhá-la de forma estranha. Volta o marido e as filhas, que parecem transportar
volumes maiores, igualmente cobertos de tecido branco.

MARIDO

Eram os fiscais?

MÃE
Não, era a vizinha.

MARIDO

- 19 -
O que é que a vaca queria?

MULHER

Açúcar.

MARIDO

Deste?

MULHER

Dei ovos.

MARIDO

Não tens ovos.

MULHER

Disseste para dar ovos.

MARIDO

Outra coisa! Farinha, Toucinho! Ela não quer ovos!

A mulher olha-o como se ele falasse uma língua estrangeira. Voltam a tocar à campainha. O
marido e as filhas voltam a afastar-se à pressa, a mulher abre a porta. É outra vez a vizinha.

VIZINHA

Desculpe incomodar outra vez, mas isto de fazer bolos, hoje… Não tem um pouco de
farinha?

A mulher fica calada.

VIZINHA

Tem… Farinha?
MULHER
Tenho… o quê?

VIZINHA

Se tem farinha… que me dispense?

MULHER

Não… Quer toucinho?

VIZINHA

Toucinho… Toucinho?

MULHER

Sim… toucinho.

VIZINHA

Ah… Sim.

MULHER

Ah… Quer toucinho?

Ficam ambas caladas a olhar desconfortavelmente uma para a outra.

MULHER (furiosa e algo desesperada)

Não tenho toucinho! Não tenho! Não tenho! Não tenho!

Um curto silêncio. A vizinha olha a mulher, que olha para o lado.

VIZINHA

E presunto?

- 21 -
MULHER

Não.

VIZINHA

Batatas?

MULHER

Não.

VIZINHA

Rabanetes?

MULHER

Não.

VIZINHA

Alcachofras?

MULHER

Não.

VIZINHA

Cavala?

MULHER

Não.

VIZINHA
Chantilly?

MULHER

Não.

VIZINHA

Maizena?

MULHER

Não.

VIZINHA

Cogumelos?

MULHER

Não.

VIZINHA

Mortadela?

MULHER

Não.

VIZINHA

Papas?

MULHER

Não.

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VIZINHA

Bananas?

MULHER

Não.

VIZINHA

Pronto… Muito agradecida!

A vizinha vira costas e vai-se embora. A mulher fica quieta, calada, diante da porta aberta.
Volta a aparecer o marido e as filhas, carregando volumes enormes e pesadíssimos, envoltos
em lençóis brancos.

MARIDO

Eram os fiscais?

MÃE
Não, era a vizinha.

MARIDO

O que é que a puta queria?

MULHER

Queria farinha.

MARIDO

Deste-lha?

MULHER

Não… ofereci toucinho.


MARIDO

Ah, assim está bem!

Uma das filhas sucumbe ao peso, deixando cair o volume que transportava. O pai dá um
estalo à outra filha.

SAEM.

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PROPRIEDADE DO BANCO

Interior de um apartamento T3, de classe média, completamente mobilado. Um casal jovem,


Martim e Beatriz e uma mulher de meia idade, Joana.

JOANA [Isa]

Aqui é a sala de estar. Aquele parque era do meu filho mais novo, de quando era bebé. Como
eles crescem! E esta era a cadeira do meu sogro, que faleceu há muitos anos. Era tão boa
pessoa. Melhor do que o filho que… Ah, e esta é a cadeira que o meu ex-marido comprou
para ver televisão. Agora sou eu que a uso. Gosto de estar sentada nela a fazer tricot e a olhar
para a janela. Não sou muito de televisão, mas o meu irmão deu-me esta. Achou que era uma
boa companhia para as noites em que o meu ex-marido trabalhava fora. Estes quadros foram-
nos dados por um amigo que pintava. Coitado. Morreu num acidente de carro, mas era uma
joia de pessoa. Ajudou-me muito durante o divórcio. Estas manchas, não se preocupem, são
só leite. O meu Gustavo tem mãos de aranha e deixa cair tudo. Aqui é a cozinha. Eu e os
meus filhos costumamos tomar aqui o pequeno almoço. O jantar é na sala que é mais
espaçosa e parece que dá mais encanto à comida. O almoço de fim-de-semana também, mas
já se sabe que à semana não dá.

BEATRIZ [Inês] AINDA FORA.


É um pouco pequena, não?

JOANA

Para nós serve. Mesmo quando estava cá o meu ex-marido dava bem. Esta mesa veio da casa
dos meus avós. O meu ex-marido não queria, mas eu teimei que havia de ficar com uma
recordação deles e trouxemos esta mesa que recuperamos e temos usado desde essa altura. Na
marquise tenho uma máquina de lavar e uma máquina de secar, além de algumas ferramentas
do meu ex-marido que ficaram para mim.

MARTIM [Nuno] AINDA FORA.


Desculpe, mas o recheio também é propriedade do banco, não é?

Silêncio. Joana vira-se ligeiramente, de modo a ninguém conseguir ver-lhe o rosto.


MARTIM

Quer dizer… está incluída na venda da casa, não está?

JOANA

Faz parte, sim.

MARTIM

Desculpe. Estava a ficar um bocadinho baralhado. Continuamos?

BEATRIZ

Desculpe… Nós percebemos a sua situação, mas… Uma pessoa tem de aproveitar as
oportunidades, não é? A senhora, se estivesse na nossa posição…

MARTIM

Claro, a vida custa a todos. E não é nada de pessoal.

BEATRIZ

É só temporário. Claro que as coisas melhoram.

MARTIM

Vai ver que isto até é um novo começo.

BEATRIZ

Uma oportunidade. A vida é feita de oportunidades.

MARTIM

Toda a gente precisa de uma folha em branco. Não ter amarras.

BEATRIZ

- 27 -
E hoje em dia é preciso ser flexível. Estar sempre pronto a mudar.

MARTIM

A polivalência é o requisito mais pedido pelos empregadores.

Joana revela-se de novo. Está impassível. Beatriz e Martim sorriem, constrangidos.

MARTIM
Continuamos?

ENTRAM. Beatriz e Martim avançam. SAI. Joana segue-os, olhando o chão, enquanto o
casal jovem olha em redor com interesse. Desaparecem para outra divisão.
Sinal horário.

LOCUTOR

10h, menos uma hora nas ilhas atlânticas.

Publicidade.

O JORNALISTA regressa trazendo o AUTOR, que está praticamente cego. Enquanto o


AUTOR é trazido e acomodado, ouve-se o noticiário.

LOCUTOR
Um bombeiro morreu em consequência de um despiste da viatura de intervenção rápida onde
seguia a caminho de um incêndio na serra, este domingo à tarde. A reportagem do nosso
enviado.

REPÓRTER 1
São cada vez mais comuns os casos de incêndios que têm início em áreas pouco favoráveis à
combustão espontânea, com vários focos distantes entre si. As suspeitas de fogo posto são
recorrentes, embora não cheguem para assustar as pessoas, mas apenas como pretexto para o
pânico. Em Celorico, as pessoas deixaram para trás gado e animais domésticos, as habitações,
com todos os pertences, e nalguns casos os próprios automóveis, tendo fugido em camionetas
postas à disposição pela Câmara. O comandante dos bombeiros explica:

VÍTIMA 1
As pessoas não se alarmam porque o primeiro cheiro é o dos eucaliptos, adocicado e
mentolado. Mas isto só pode ser mão criminosa. Estes incêndios começaram em pontos
distintos e se você for a ver bem, se estiver num helicóptero, formam um triângulo. Parecem
ser acção concertada. Os incendiários deviam ser enviados para a primeira linha de combate
ao fogo!

REPÓRTER 1
A pena para incendiários pode ir até doze anos. Desde Janeiro foram detidas vinte e quatro
pessoas acusadas deste crime; metade era reincidente.

- 29 -
Jingle.

LOCUTOR
Vamos já espreitar a informação de trânsito. António, como é que estão as estradas?

REPÓRTER 2
António, a situação parece ter estabilizado um pouco com o chegar da noite, que esperemos
venha a ajudar os bombeiros, mas continua tudo na mesma nos acessos às praias, e uma
situação particularmente gravosa com um camião-cisterna dos próprios bombeiros que se
despistou ao quilómetro 105 da A50, no sentido Sul-Norte. Mais uma vez recomendamos às
pessoas que obedeçam às instruções da Protecção Civil.

LOCUTOR
E já sabem, a informação de trânsito disponível em 808 202 123. Já de seguida, o Fórum
Aberto, hoje com a presença do convidado José Amado, autor de História Natural da Ficção e
do recém-lançado Línguas de Fogo.

Escuro e sirene dos bombeiros, esvaindo-se ao longe.


SEGUNDA CENA DE PIQUENIQUE

- 31 -
Better Life Index

Parte I
Uma [tela de] projeção [na parede], duas cadeiras voltadas ligeiramente para a tela (como
se esta fosse a televisão de casa), uma mesa entre as cadeiras, onde está pousado um
computador portátil. Um casal, por volta dos 30 anos, sentados nas cadeiras. Ambos lêem
revistas. Falam como se estivessem a planear as férias. A mulher está grávida mas quase
não se nota. Estão rodeados de tecnologia.

Mulher

… Então e a Noruega?

Homem

É frio, preferia um sítio mais quente.

Mulher

Na Europa?

Homem

Não precisa de ser Europa.

Mulher

Eu prefiro na Europa. Sabes que não quero ficar longe.

Homem

Para ir para Espanha, ou para Itália, mais vale ficarmos cá. Já falámos sobre isso.

Mulher

E a Finlândia?

Homem
Helsínquia?

Mulher

Sim, ou uma terra perto. Uma terra bonita.

Homem

Um fim de semana?

Mulher

Uma semana? Acho que nos dá mais tempo.

Homem

Uma semana? E o meu trabalho?

Mulher

Falas com o teu pai, ele resolve-te isso. Já lhe disseste?

Homem

O quê? Os nossos planos? A mãe achou o máximo a ideia de o bebé nascer no estrageiro.

Mulher

É típico da Zélinha. E o teu pai?

Homem

Não disse nada.

Mulher

Disseste-lhe alguma coisa? Prometeste que não passava desta semana.

Homem

- 33 -
Encontrei uma coisa que nos pode ajudar a decidir. É o índice da OCDE para a qualidade de
vida: Better life index. Os países com melhor qualidade de vida são a Austrália, o Canadá, a
Noruega, a Suécia. Os Estados Unidos... porque é que não vamos para os Estados Unidos. Já
que vou tirar uma semana, davamos um salto a Nova Iorque. Já não vamos lá há séculos.
Sempre disseste que gostarías de morar lá.

Mulher

Não falaste com o teu pai, portanto.

Homem

Iamos ver como é que as coisas estão, e depois logo decidíamos. Eu acho que Estados Unidos
são a melhor opção.

Mulher

Então continuamos na mesma. Não falaste com o teu pai, significa que não vamos a lado
nenhum. Vamos continuar a ver países e cidades, para nada. Parece que andamos a fazer
turismo. No meu estado... não quero continuar nisto. Temos de nos decidir.

Homem

Queres ir às cegas? Não! Temos de ir ver como é, ve se temos as condições que precisamos.
Queres ver este site? Diz lá quais são os critérios: work life balance. Queres ver como é nos
Estados Unidos?

Mulher

Se falasses com o teu pai, ele arranjava-te um emprego em Paris, ou em Bruxelas.

Homem

Não quero falar com o meu pai sobre isto. Não quero saber dos planos dele. Quero sair por
mim. Quando falo disto ele vem logo com a conversa de que temos de fazer alguma coisa
pelo país... e eu não estou para andar de feira em feita a beijão velhas nojentas com bigodes.

Mulher
Só te custava uma vez. Não vamos sair nunca deste buraco. Tu não és capaz de pensar em
mim? Em nós? (Pausa) Queres que ele nasça português?

- 35 -
À espera I

10 horas. FORA.

Um banco de pedra numa aldeia de interior. Dois homens velhos na casa dos 80 anos
sentados, vestidos com roupas demasiado quentes para a situação. Todos os gestos devem
ser feitos muito lentamente, a cena deverá demorar cerca de 10 minutos.

Homem 1 tem um chapéu e uma bengala e olha para o horizonte.

Homem 2, treme das mãos e tem um lenço que vai dobrando e desdobrando muito
lentamente e com o qual, de vez em quando, limpa o suor da testa.

Ouve-se o vento e vê-se o pó levantar.

Ao longe um cão ladra.

Homem 1 estica uma perna e apoia-a na bengala.

Ouve-se o vento.

Ouve-se uma mosca que vem importunar o Homem 2, que tem dificuldade em enxotá-la. O
Homem 1 olha sério para a frente enquanto isto acontece.

Ouve-se vento.

O Homem 1 recolhe a perna e muda de posição no banco a custo. Ajeita o chapéu.

Ouve-se outro cão.

Ouve-se o vento.
O sino da igreja toca a música Avé Maria e de seguida as 10 horas.

O Homem 2 assoa-se.

Silêncio.

O Homem 1 olha o relógio para ver as horas.

Ouve-se a mosca que regressa para importunar os dois homens. Sacodem a mosca sem
interagirem um com o outro.

Silêncio.

Ouve-se o vento.

Um gato aparece e fica por ali até que lhe apeteça.

Homem 1 tira o chapéu, abana-se um pouco com ele e depois coloca-o sobre os olhos.

Ouve-se o vento.

Homem 2 limpa-se com o lenço e fica a olhar o horizonte.

Ouve-se vento e ao longe o cão a ganir.

- 37 -
Better Life Index

Parte II. FORA.


No terminal de autocarros, um casal despede-se. A mulher está grávida. A gravidez nota-se
bastante mais do que a da cena anterior.

Homem

Está na hora. Temos de ir. Não chores.

Mulher
Não estou a chorar.

Homem

É pouco tempo. Eu mando-te uma mensagem de cada vez que passar uma fronteira.

Mulher (Sorri)
E eu de cada vez que ele der um pontapé.

Homem

Ui... vamos ficar pobres, assim. Eu volto quando ele nascer. Prometo. E falamos todos os
dias. Nem vais dar pela minha falta.

Mulher

Vou tentar aguentar o máximo que conseguir.

Homem

Vê se consegues ao menos mais 3 meses. Com esse dinheiro já nos safávamos durante os
primeiros tempos.

Mulher

Vou tentar. Não vai ser fácil. Fico tão preocupada, contigo a viver naquele contentor.
Homem

Eu estou bem. Vou ter saudades.

Mulher

Nós também. Não te esqueças de ver se encontras alguma coisa para mim.

Homem

Eu vejo. Adeus meu amor.

Mulher

Adeus.

Ficam os dois abraçados durante muito tempo.

- 39 -
À espera III

13 horas. FORA.

Homem 2 está sentado no banco e limpa o suor da testa.

Homem 2 olha o horizonte totalmente imóvel.

Silêncio total

Ao longe ouve-se uma girândola de foguetes rebentar. Homem 2 reage e tenta localizar os
foguetes.

Ouve-se um Ave Maria e de seguida o sino marca uma hora.

Silêncio total

Homem 2 limpa o suor da testa, e remexe-se no banco. Tira de trás de si um saco de plástico
muito amarfanhado que coloca no colo. Ouve-se o homem remexer no saco.

Homem 2 rifa um pouco de pão que come.

Homem 2 limpa algumas migalhas da cara com o lenço. Limpa o suor da cara.

Homem 2 olha o horizonte.

Homem 2 tira do casaco um canivete, abre o saco e corta a custo um pedaço de chouriça,
que espeta na ponta do canivete para levar à boca.

Homem 2 mastiga durante muito tempo a chouriça.

Aparece um cão que se senta ao pé do Homem 2 e olha para ele guloso.


Homem 2 dá pão ao cão e come pão novamente.

Homem 2 corta mais um pedaço de chouriça e mastiga a custo.

Homem 2 olha o horizonte.

Homem 2 pousa o canivete no colo, e faz movimentos com a boca. Leva a mão à boca, retira
a dentadura e com a outra mão lipa algo que o incomodava. Coloca a dentadura na boca e
ajeita os dentes.

Homem 2 corta duas rodelas de chouriça. Come uma e dá a outra ao cão. Comem os dois,
satisfeitos.

- 41 -
Better Life Index

Parte III
Em casa, um casal conversa com os pais no skype. A imagem está fixa. Só se ouve a voz. A
mulher do casal está ainda mais grávida do que a anterior.

Mãe
Estás a ver?

Filha

Não vos vejo, mas oiço.

Pai

Mas nós estamos a ver-vos.

Filha

Ouves-me bem?

Mãe
Sim, sim. E tu?

Filha

Agora estou a ouvir. Repete lá o que disseste que não percebi nada.

(Falha na imagem. Ouve-se uma coisa imperceptível.)

Filha

Mãe... mãe... nao percebi nada.

Mãe
eu estava a dizer que tens de deixar o bebé nascer, filha. De certeza que isso não é bom para a
tua saúde.
Pai

Nem para o bebé.

Genro [Filha]

Estou com um trabalho em vista. Assim que o conseguir deixamos o bebé nascer. Mas por
enquanto vamos ter de aguentar mais um tempo.

Mãe
Devias vir para cá. No prédio onde o pai trabalha há uma vaga para jardineiro. Se quiseres ele
fala com o gerente.

Filha

Mãe, o Pedro é engenheiro florestal. Não é jardineiro.

Mãe
Mas está sem trabalho há mais de 2 anos. Mais vale arranjar uma coisinha mais simples.
Assim já podiam deixar o bebé nascer. Não é saudável estares nesses estado. O bebé já devia
ter nascido há meio ano, filha.

Filha

Não vamos falar sobre isso outra vez. Isto é uma decisão nossa.

(Silêncio)

Pai (para a mãe)


Deixa-os. Eles lá sabem da vida deles.

Mãe (para o pai)


Eu deixo. Mas acho um disparate. Vinham para cá e pronto. Nós não saímos agora depois de
velhos? Saímos e estamos bem. Mas pronto. Eles lá sabem! Agora a miúda naquele estado. A
viver de vender tupperwares e fazer bolos/

- 43 -
Pai

Queres que o bebé nasça agora? Que condições é que eles têm? Mesmo que o Pedro consiga
o emprego, vai ser explorado até à última. Não vai ter tempo. E ela agora sem a bolsa. Eu
acho melhor que adiem ao máximo. Deixa lá o bebé na barriga, que lá está mais protegido.

Mãe
Pois, mas depois pode ser tarde demais.

(Pausa)

Filha

Mãe... nós estamos a ouvir.

Pai

Pronto filha. Não ligues à tua mãe. Ele só quer o melhor para vocês.

(Silêncio)

Filha

Estou cansada. Vou desligar. Falamos depois.

Mãe
Está bem filha. Cuida-te, ouviste. Precisas de dinheiro?

Filha

Não mãe, estamos bem.

Mãe
Queres que te mande algum para as despesas?

A filha e o genro fazem gestos relativos ao dinheiro. O genro faz sinal que precisam, mas a
filha diz que não com a cabeça.

Filha
Não, não é preciso. Falamos depois. Beijinhos.

Desliga. A filha começa a chorar e abraça-se ao genro.

- 45 -
À espera IV

16 horas. FORA.

Os dois homens estão sentados no banco e parecem dormir. O Homem 2 tem a cabeça
inclinada para a frente. O Homem 1 tem a cabeça inclinada para trás e o chapéu nos olhos.
Tem a perna apoiada na bengala.

Ouve-se o vento fraco.

Os homens continuam imóveis.

Homem 1 ressona.

Homem 2, inclina levemente a cabeça para o lado do Homem 1, incomodado com o facto de
estar a ressonar e com o pé dá um toque na bengala do Homem 1, que cai ao chão com
bastante som. Homem 1 desequilibra-se ligeiramente e acorda estremunhado.

Homem 2 fica na mesma posição em que estava e parece continuar a dormir.

Homem 1 olha em redor e limpa a boca à manga do casaco.

Ouve-se um trator a passar.

Homem 1 acena à pessoa do trator sem grande entusiasmo.

Homem 1 olha o relógio e abana-se com o chapéu.

Ouve-se uma buzina de carro apitar ininterruptamente durante um minuto, mas com
variação de intensidade. Primeiro mais longe, depois cada vez mais perto, até ficar quase
insuportável.
Homem 1 olha para a direção de onde vem o som.

Ouve-se um som de um carrinha a trabalhar. O som da buzina para. Da carrinha ouve-se


uma música muito animada numa rádio mal sintonizada.

Homem 1 fica a olhar para a direção da carrinha.

- 47 -
Better Life Index

Parte IV
Em casa do casal da parte I. A mulher está com mais tempo de gravidez. Pousa uns sacos.
Esfrega-se como se tivesse sarna. O Homem está entretido com um qualquer gadget
eletrónico.

Mulher

Ahhhhh. Que nojo. Estou farta deste país. Desta gente. Sabes quanto tipo tive de estar na fila
do supermercado? Para aí meia hora. Meia hora na fila prioritária.

Homem

Tanto tempo!

Mulher

É impressionante. Só grávidas. Cada barriga! A minha era a mais pequena de todas.

Homem

As mulheres estão a atrasar as gravidezes. Estão com medo. É normal. E tu, meu amor, como
é que estás?

Mulher

Estou cansada. Não volto ao supermercado. É só crise, só queixumes, só problemas. Até


parece que toda a gente tem de ter problemas. Será que tenho de sentir-me culpada por não
ter problemas? Aquelas mulheres todas a falarem comigo, como se eu fosse uma delas, a
queixar-se que estão a aguentar o máximo que podem para não deixar os filhos nascer. Que
estupidez. Nuca esperei que chegássemos a este ponto.

Homem

Eu vou trabalhar sobre isso, sabes?


Mulher

Sobre o quê?

Homem

Sobre as políticas de apoio à família.

Mulher

Já está certa a nomeação?

Homem

Já. Estás triste por não irmos para fora?

Mulher

Estou. Gostava que o nosso filho nascesse em Paris, ou em Londes... não queria que ele fosse
apenas mais um.

Homem

Ele nunca vai ser apenas mais um. Vamos garantir isso.

Mulher

Gostava que ele tivesse uma vida melhor do que a nossa, que não tivesse de enfrentar as
dificuldades por que estamos a passar. Este negativismo, esta coisa portuguesa que se
entranha na pele e parece que não sai. Parece catinga...

Homem

Pelo menos não cheira. O nosso filho vai ter uma vida melhor. Vamos garantir isso. E se nos
cansarmos vamos embora. Vou conhecer muita gente, não vão faltar convites.

Mulher

Acho que estou contente por ficarmos. Afinal temos um papel a desempenhar na sociedade.
Temos de ajudar o país.

- 49 -
Homem

Temos. Coitados. Sem nós não conseguem. Alguém tem de os ajudar a sair deste buraco.
Mais vale que seja alguém que conheça a realidade.
À espera II

FORA.

Os dois homens continuam sentados no banco. A luz é mais amarelada e indica que estamos
no final da tarde.

Ouve-se vento.

O Homem 1 tosse.

Silêncio.

O Homem 2 mexe-se desconfortável.

Ouve-se o vento.

O sino da igreja toca meio Avé Maria.

Homem 1: Que horas são? Seis ou sete?

Homem 2: (Olha para os dois lados da estrada e depois para o céu.) Sete e meia.

Homem 1: E hoje é que dia? Quarta ou quinta?

Homem 2: É quinta.

Homem 1: É quinta? Olhe que eu acho que não?

Homem 2: É quinta. Estou-lhe a dizer.

Homem 1: É quarta. Tenho a certeza.

- 51 -
Homem 2: O que é que comeu hoje? Comeu sardinhas?

Homem 1: Não. Sardinhas comi ontem.

Homem 2: Ontem é que foi quarta. Hoje é quinta.

Homem 1: (Levanta-se a custo) Então vou andando. O meu filho costuma ligar à quinta.
(Pausa) Então até amanhã, se Deus quiser.

Homem 2: Até amanhã.

O Homem 1 afasta-se devagar a arrastar uma perna.

Ouve-se o vento. O Homem 2 fica sentado a dobrar o lenço.


Farmácia

A cena passa-se num balcão de farmácia. Uma farmacêutica jovem. Um homem com cerca
de 70 anos.

Farmacêutica:
Bom dia.

Homem (FORA.):

Bom dia menina. Era para aviar esta receita por favor.

A farmacêutica pega na receita e começa a escrever no terminal do computador. Começa a


ouvir-se o barulho de caixas de cartão a deslizar por uma estrutura de caracol por detrás da
mulher, que as vai tirando uma a uma e colocando no balcão. A medida que a cena avança,
vai passando as caixas, uma a uma pelo leitor de código de barras e colocando dentro de um
grande saco de plástico.

Farmacêutica:
Sabe como tomar isto?

Homem:

...

Farmacêutica:
Sabe como tomar isto?

Homem:

Hum... sim... sim.

Farmacêutica:
Sabe mesmo como tomar isto?

- 53 -
Homem:

A minha mulher sabe. Ela é que me dá os remédios.

Farmacêutica:
Eu escrevo aqui nas caixinhas e assim o senhor já sabe.

Homem:

Ah, deixe estar, não se incomode...

Farmacêutica:
Não incomoda nada. É melhor.

Homem:

Não. Deixe isso, deixe estar. Não se incomode com isso. Eu depois lá me arranjo.

Farmacêutica:
E tem a certeza de que a sua mulher consegue saber o que é? Onde é que ela está? Eu
explico-lhe.

Homem:

Não pode. Está doente. Acamou.

Farmacêutica:
O que é que ela tem?

Homem:

Não sei. É uma coisa nas pernas, e treme muito.

Farmacêutica:
Estes remédios são para si ou para ela?
Homem:

São para os dois.

Farmacêutica:
Tem alguém que vá a sua casa, para lhe explicar como é que isto se toma? Eu vou escrever
aqui, nas caixas como é que se toma. Porque não pode misturar estes dois medicamentos,
ouviu? Se os misturar pode ser perigoso.

Homem:

Está bem, menina. Obrigado.

Farmacêutica:
Tem alguém para o ajudar? Tem filhos?

Homem:

Tenho um filho, mas não está... está longe, não tem tempo... Lá nos arranjamos.

Farmacêutica:
Se tiver duvidas venha cá, que eu explico-lhe como se toma.

Homem:

Sim, sim. Obrigado. A Micas sabe, ela sabe. Eu acho que sabe.

Farmacêutica:
Escrevi aqui o telefone da farmácia. Se tiver dúvidas telefone-me, está bem. (HOMEM
ENTRA.) É tudo, ou precisa de mais alguma coisa?

Homem:

É tudo.

Farmacêutica:

- 55 -
São 345 euros.

Homem:

Quanto?

Farmacêutica:
345 euros.

Homem:

Tanto? Eu... eu não sei se tenho. Eu não tenho esse dinheiro todo! Isso é quase a minha
reforma toda!

Farmacêutica:
...

Homem:

(Procura na carteira) A mulher não me disse que era tanto. E agora?

Farmacêutica:
Tem aí um medicamento que é novo, e é muito caro. Só esse custa quase 100 euros.

Homem:

E isso é para quê?

Farmacêutica:
É para a doença de Parkinson. É isso que a sua mulher tem?

Homem:

É... é... eu sei lá o que é que ela tem. (Pausa) E os outros que tem aí são para quê?

Farmacêutica:
Tenho para os pulmões, tenho outros para o coração e aqui estes são para os ossos. Estes
também são caros, uma caixa custa quase 50 euros.

Homem:

Tire esses, tire-me os ossos. Eu paro de andar. Fico sentado, à espera. Fico sentado. Quanto é
que isso custa?

Farmacêutica:
Tiro-lhe os ossos?

Homem:

Sim, tire. Quanto é que fica?

Farmacêutica:
Mas tem a certeza? Se lhe tirar os ossos não vai poder fazer nada.

Homem:

Eu já não faço nada menina. Tenho a certeza, tenho. Tire-me os ossos.

Farmacêutica:
Está bem. Então agora fica em 247 euros e 23 cêntimos.

Homem:

Ainda é isso tudo?

Farmacêutica:
...

Homem:

Então e se me tirar os pulmões?

- 57 -
Farmacêutica:
Não lhe posso tirar os pulmões. Se lhe tirar os pulmões, fica sem ar. Tem a certeza?

Homem:

Tenho. Quanto fica, se me tirar os pulmões?

Farmacêutica:
Deixe-me ver. Eu acho que o senhor não devia fazer isto. Não tem mesmo quem lhe possa
empresar o dinheiro. Já foi à segurança social? Ora assim, sem os pulmões fica em 177 euros
e 77 cêntimos.

Homem:

Ainda não tenho que chegue. Nós até já fomos à segurança social, sim. Mas eles não
resolveram nada. A Micas até disse que aquilo... aquilo é um bando de gente sem coração.

Farmacêutica:
...

Homem:

Olhe, é isso: faça a conta sem o coração. Deixo ficar também o coração. Quanto é que custa
sem o coração?

Silêncio. O Homem fica a olhar para a Farmacêutica, parado. Esta fica sem reação e
passados uns momentos retira de dentro do saco os medicamentos e dirige-se para a parte
interna da farmácia, onde fala com o diretor da farmácia. (OFF.)

XXXXXX

A farmacêutica regressa ao balcão e volta a colocar os medicamentos no saco.

Farmacêutica:
Eu estive a ver o que era possível fazer, fui falar com o meu chefe para ver se era possível
substituir os medicamentos por outros mais baratos, mas infelizmente não é. O senhor vai ter
de levar estes.

Homem:

Mas eu não posso. Já lhe disse que não tenho dinheiro. Oh menina. Deixe lá. Não levo os
medicamentos. Levo só os da minha mulher. Deixo os meus.

Farmacêutica:
Não posso deixá-lo ir sem os medicamentos. Não consigo. O senhor sem eles pode morrer,
sabe disso?

Homem:

Algum dia vai ter de ser.

Farmacêutica:
Mas o senhor ainda é novo. Olhe, vou-lhe por aqui os medicamentos todos e mais estas
vitaminas. Tome todos os dias. São para o senhor e para a sua mulher. Pus aqui duas caixas,
isto dá-vos para duas semanas. Depois tem de vir buscar mais.

Homem:

Oh menina. Não insista. Já lhe disse. Deixe os meus remédios. Levo só os da minha mulher.

Farmacêutica:
Acha que está a pensar na sua mulher?

Homem:

É só nela que eu penso. Ela é que é importante.

Farmacêutica:
Precisamente. Quem é que vai tomar conta da sua mulher se o senhor morrer? Ou pior, se o
senhor ficar acamado, como vai ser? Como é que acha que ela se vai sentir? Tem de se
manter saudável para tomar conta dela. Olhe, por isso, coloquei-lhe aqui mais estas pastilhas.
São para tomar uma ao jantar. São estas amarelas, está a ver?

- 59 -
Homem:

Mas eu já lhe disse que não tenho dinheiro. Como é que quer que leve isso?

Farmacêutica:
Quando é que o senhor recebe a reforma?

Homem:

Vou agora aos Correios levantá-la.

Farmacêutica:
Não precisa. Dê-me o cheque que eu pago daqui os medicamentos. Só precisa de assinar.

Homem:

Mas... se eu fizer isso depois não tenho dinheiro para a comida.

Farmacêutica:
Não faz mal. Estas vitaminas que lhe pus aqui substituem os alimentos. Basta-lhe uma
sopinha por dia. Vai sentir-se logo muito melhor, vai ver.

Muito rapidamente a Farmacêutica fecha o saco determinada e olha para o homem. Pede o
cheque. O homem hesita, olha para o saco, depois para a porta e novamente para o saco.

Farmacêutica:
Não se esqueça da sua mulher...

O homem tira o cheque e coloca-o em cima do balcão. A farmacêutica olha o cheque,


confirma o valor e entrega uma caneta ao homem. O homem hesita. A Farmacêutica vai á
caixa registadora e retira 33 euros, que coloca em frente ao homem.

Farmacêutica:
Está aqui o seu troco. Já assinou?
O homem assina. Depois pega no saco e finalmente no troco. A farmacêutica pega no
cheque.

Farmacêutica:
Muito obrigada. Vai desejar contribuinte na fatura?

O homem volta-lhe costas e sai meio desnorteado. Ouve-se o apito da porta a indicar que o
homem saiu.

- 61 -
A entrevista

Uma sala com 1,5 metros, por 1,5, pintada a cinzento. Lá dentro uma mesa que ocupa quase
a totalidade do espaço. Ao fundo uma porta.

FORA. João, um homem com pouco mais de 30 anos, vestido de fato. Olha em redor e senta-
se numa das cadeiras. Espera. Olha o relógio. Espera. Tira umas folhas de dentro de uma
pasta e começa a lê-las. Ajusta a gravata, ajusta as mangas da camisa. Guarda as folhas.
Olha o relógio. Muda de cadeira e fica de frente para a porta a olhar para ela. Sente-se
desconfortável e muda novamente para a terceira cadeira disponível. Alarga o nó da
gravata. Tira o casaco. Está a suar profusamente e repara que se nota a camisa molhada.
Volta a vestir o casaco. Levanta-se, olha em redor para ver se encontra algum aparelho de
ar condicionado. Passa bastante tempo. (ENTRA.)

Enquanto isto, Rosário e António observam-no como se fosse uma presa. Ele um antigo
apresentador de televisão, na casa dos 50 anos, ela uma jovem, com cerca de 25 anos,
técnica de recursos humanos. Vestem fatos.

XXXXX

QUANDO JOÃO ENTRA, A porta abre-se, entram António e Rosário. Trazem pastas com o
CV de João. Sentam-se um de cada lado, muito próximo de João.

Rosário: (Para João)


Bom dia. Como está? Gostou da nossa estação? Obrigada por vir à entrevista de seleção.

João:
De nada. Eu é que agradeço terem-me chamado.

António:
Vamos a que interessa. Quer mesmo trabalhar connosco?

João:
Sim, claro.

Rosário:
Sabe que este processo é nacional e vamos recrutar apenas 10 pessoas, não sabe?

João:
Si/

António:
O João esta muito bem colocado. Posso dizer-lhe que de todos os candidatos que tivemos, o
João foi o que teve a melhor classificação.

João:
Obri/

Rosário:
Agora, o que nós queremos saber, é se está realmente motivado para trabalhar connosco.

João:
Claro que si/

António:
É verdade. Mas temos de ver a questão financeira. Essa questão é muito importante.

João:
Claro. Tenho 30 anos. Começo a pensar em/

Rosário:
As empresas estão todas com muitos problemas... O João acompanha a economia, sabe disso.

(Entre cada uma das falas seguintes João tenta começar a falar, mas não consegue. Os

- 63 -
outros dois são muito rápidos.)

António:
Mesmo nós estamos a debater-nos com grandes dificuldades. O investimento publicitário
caiu. Tivemos de arranjar soluções alternativas.

Rosário:
É uma questão muito delicada, esta.

António:
O seu perfil é mesmo aquele que queremos, mas não temos a certeza de que aceita as nossas
condições, dada a sua situação atual.

Rosário:
Vou ser muito direta. Acha que tem condições financeiras para se aguentar?

João:
Depende do valor. Só vendo aquilo que oferecem...

Rosário:
Desculpe. Aquilo que oferecemos?

João:
O salário.

Rosário:
Salário? (para António) Está a falar de quê.

António:
...

João:
O vosso anúncio refere uma compensação financeira compatível com a experiência
demonstrada.

António: (Para Rosário)


Eu avisei que as pessoas ainda não iam entender.

Rosário:
Exatamente. O nosso anúncio refere isso. Mas não refere quem é que deverá pagar essa
compensação. E, neste caso, aquilo que estamos a propor é que sejam os nossos integrantes a
fazê-lo.

(João que está a beber água engasga-se)

Rosário:
Algumas pessoas acham estranho, mas é uma prática de recrutamento muito comum em
muitos países. As grandes multinacionais estão já a praticá-lo em larga medida, como aliás
deve saber.

António:
Encare isto como um investimento. Já pensou de que forma é que trabalhar connosco pode
enriquecer o seu currículo? Isso vale muito mais do que qualquer curso. Experiência, prática,
meter as mãos na massa e ter todas as condições e meios técnicos e humanos para fazer a
notícia acontecer. Estar ali, a relatar a história no momento em que ela acontece, ao vivo, em
direto e a cores para todos os pontos do país e para o mundo através do online. Comunicar
com milhões, biliões de pessoas... Nenhuma universidade lhe oferece isso.

Rosário:
Já para não falar no prestígio.

João:
Desculpem, mas eu estou... Não sei o que dizer. Vocês pedem jornalistas especializados e
com experiência. Estou completamente surpreendido com a vossa oferta.

António:

- 65 -
Ora, não fique assim tão surpreendido. Então acha que um profissional com o seu currículo
conseguia um emprego pago na nossa estação, nos tempos que correm?

João:
Sim, eu sou um bom jornalista, tenho 10 anos de experiência.

António:
Tem 10 anos de estágios. É o que você tem. Nós estamos a oferecer-lhe um contrato de
trabalho.

João:
Em que eu é que pago?

Rosário:
Em que é o integrante que retribui o investimento que a empresa está a fazer nele. Já
contabilizou o que vamos investir em recursos para o formarmos e lhe darmos as
competências certas? A empresa tem de ser ressarcida desse valor. E essa é a nossa nova
estratégia. ROIR : Return On Investment Recruitment. O integrante investe durante um ano
para retribuir o investimento que a empresa está a fazer nele. É uma troca muito justa, não lhe
parece? Ao fim desse tempo, se a empresa considerar que o integrante está a ser rentável,
então passa a pagar-lhe um salário.

João:
Percebo. E já agora esse salário será de quanto?

Rosário:
Como estará em início de carreira terá direito a 500,00€, mais subsídio de alimentação. Em
contrapartida, o investimento que terá de fazer no nosso PDP anual – Programa de
Desenvolvimento de Profissionais é de 6500,00€.

João:
6.500,00€?

Rosário:
Sim, sim. Nós sabemos que é escandalosamente baixo, face a todos os meios e condições que
colocamos à disposição do desenvolvimento das pessoas. Mas pronto. Temos uma função
social a cumprir, não verdade? Como vê a empresa suporta uma grande parte dos custos para
que o integrante tenha de pagar apenas uma pequena quantia, digamos, simbólica, do
investimento, que como deve calcular é muito superior a este valor. Achámos que era um
valor razoável. Aliás, temos já várias pessoas em lista de espera e que estão a oferecer mais
do que aquilo que pedimos para poderem vir aprender connosco.

João:
6.500,00€?

António: (Levantando-se e dando palmadinhas nas costas de João)


Eu percebo que esteja surpreendido. Mas pense bem. Todos nós gostámos muito do seu
percurso no processo de seleção. Um jovem com o seu talento pode ir muito longe numa
empresa como a nossa. O que é mais um ano a investir no seu futuro, quando pode estar
perante uma carreira brilhante e cheia de sucesso?

Rosário: (Levantando-se e dando palmadinhas nas costas de João)


Aqui tem uma verdadeira oportunidade. Olhe que não encontra uma proposta melhor do que
a nossa.

XXXXXX

As luzes iluminam toda a cena. Rosário e António sentam-se ainda mais perto de João.

António:
Então? Pensou na nossa proposta? Fez as contas? Falou com alguém?

Rosário:
Quer um café? Uma água? Há alguma coisa que possamos fazer para o ajudar a decidir?

(Silêncio)

- 67 -
João:
O que é que vocês ganham com isto?

Rosário:
Como?

João:
O que é que vocês ganham com isto?

Rosário:
Não percebi!

João:
O que é que vocês ganham com isto? É uma pergunta muito simples.

(Silêncio)

Rosário:
Isto é a estratégia de Recursos Humanos da companhia.

João:
Uma estratégia comercial, portanto. Qual é a vossa comissão?

António:
Comissão? Que disparate.

João:
Não têm vergonha? Venderem trabalho a tipos que quase nem têm dinheiro para comer?

António: (Levanta-se ofendido e dirige-se para a porta para sair. Volta-se para João,
ofendido. Abre a porta)
Saia.

Rosário reage e tenta impedir António. João fica surpreendido.

António:
Não lhe admito essas palavras, ouviu. Nós estamos a dar-lhe uma oportunidade. Se quiser
aproveitá-la, muito bem. Se não quiser, saia. Está a fazer-me perder o meu tempo, e o meu
tempo é precioso demais para o gastar com um pseudo-estagiário que nunca assinou um
contrato na vida. Eu não trabalho com esquemas. Por isso saia. Não estamos assim tão
interessados no seu perfil.

João fica indeciso. Não se quer ir embora, mas também não quer ficar. Rosário fica
visivelmente atrapalhada e não quer deixar sair João.

Rosário:
João. Tenha calma. Não se precipite. O António está muito reativo, é muito sensível quanto
ao trabalho e à carreira. Sabe o que ele significa para a empresa. Diria mais, para o país. Mas
isto é uma questão entre os Recursos Humanos e você. E eu, enquanto representante dos
recursos humanos, gostei muito da sua prestação e quero assegurar-lhe que o interesse da
estação em si é legítimo e transparente e não existe, de todo, nenhum interesse financeiro da
nossa parte. Mas a nossa política é esta: Partilha RRRRR! Risco partilhado; Responsabilidade
partilhada; Rigor partilhado; Recursos partilhados; Resultados partilhados. Acha que uma
pessoa com a carreira do António, com o prestígio do António, estaria aqui se não fosse esse
o caso?

João hesita. Olha para António que está muito ofendido, mas que visivelmente é teatro.

Rosário:
Nós compreendemos que é muita informação para processar. Trata-se de uma mudança de
vida. Mas, nós precisamos de/

João:
Que garantias é que eu tenho de que depois do período de... como é que lhe hei-de chamar?
Estágio?

Rosário:

- 69 -
Piii

João:
Como?
Rosário:
Piii: Programa Inicial de Integração de Integrantes.

João:
OK, o que for. Que garantias é que eu tenho de ficar depois do Piii?

António:
Você é dos bons? Dos realmente bons? Ficar só depende de si. É claro que só vamos ficar
com os bons; os realmente bons. Sempre foi assim nesta casa.

João:
É muito dinheiro. Eu preciso pensar. Eu quero muito trabalhar, mas... não tenho esse
dinheiro, não tenho. Quando é que posso dar uma resposta?

Rosário:
Daqui por 5 minutos. Temos muita gente interessada nesta vaga. Não podemos ficar
eternamente à espera.

João:
...

Rosário:
Bem, existe uma forma. Considere isto uma exceção porque o António (apesar das suas
insinuações) gostou mesmo de si. Tenho aqui este contrato de crédito, com pagamento
fracionado em 12 vezes, o que dá um total de 543,00 euros mensais.

António:
Mais juros. Não se esqueça dos juros.
Rosário:
Sim, 543 euros mais 25% de juros. Já tenho aqui o contrato de trabalho e o de financiamento.

João:
Não sei. Eu preciso de/

António:
A decisão é sua. Mas... o que é mais um ano a investir no seu futuro?

Rosário passa os dois contratos a João para que este os assine. António vai tirando uma
caneta e à medida que vão falando, vai-a colocando na mão de João para o pressionar a
assinar.

Rosário:
Um futuro brilhante, pode ser editor.

António:
Fazer grande reportagem...

Rosário:
Ou ser correspondente no estrangeiro...

António:
Ou repórter de guerra...

Rosário:
Ou coordenador...

António:
Pivô...

- 71 -
Rosário:
Diretor de informação...

António:
Diretor do canal...

João suspira e assina. António e Rosário entreolham-se vitoriosos. DESAPARECEM.

António:
Bem vindo ao nosso canal. Agora é cada um por si.
Jingle.

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LOCUTOR
No Fórum Aberto queremos ouvir a sua opinião. O que é preciso fazer para que o combate
aos incêndios seja mais eficaz? Este é um combate que passa por todos nós? Em estúdio, o
escritor José Amado, para comentar o tema connosco. Para participar pode inscrever-se
através do número 808 202 123. Já temos um primeiro ouvinte. Faça favor.

OUVINTE 4
Eu tenho estado a ouvir o programa, porque sou um admirador de longa data do José Amado,
o meu nome é Manuel Acácio. Há uma passagem do livro do José Amado, de quem eu sou
um leitor há muito tempo, com muito gosto/

AUTOR
Muito obrigado.

OUVINTE 4
Não tem de quê, eu é que agradeço. Os seus livros, José Amado, são como se alguém tivesse
escrito a minha vida, pode crer. Esse episódio, que me traz à memória os incêndios na serra...
As chamas estavam imparáveis e acabaram por atingir uma bomba da gasolina no sopé da
serra. A partir daí foi o caos absoluto, com as pessoas a lutarem desesperadas e a terem de
desistir, saindo em fuga... As estradas ficaram cheias de carros e os bombeiros não
conseguiam passar para auxiliar os combatentes na frente de fogo e os moradores que tinham
de ser arrastados. Foi o pior dia da minha vida. E… pronto, desculpe, estou comovido. Com
licença.

LOCUTOR
Obrigado. José, reconheces-te nestes testemunho?

AUTOR
Há uma situação muito semelhante no livro, mas...

- 73 -
LOCUTOR
Vamos ouvir mais um testemunho em directo.

OUVINTE 5
Boa tarde. Eu chamo-me José João, sou neste momento adjunto de um Presidente de Câmara
que, com os militares do Regimento aqui aquartelado, montou uma operação de vigilância de
todo o território que permite a detecção precoce e o imediato alerta dos bombeiros. É verdade
que houve uma situação muito complicada, com três fogos em pontos distintos e bastante
afastados num período de quinze minutos, mas a verdade também é que o sistema ajuda a
atacar os fogos na fase emergente. E a minha sugestão é que os militares entrem em acção.
Os militares. Obrigado. Boa tarde.

LOCUTOR
Temos outro ouvinte em linha.

OUVINTE 6
Olhe, a minha opinião é que, para já, se confirmam os erros de sempre… Por exemplo, pôr os
helicópteros no litoral é um absurdo. Primeiro porque metade do raio de intervenção é no
mar, onde que eu saiba é muito raro os incêndios, segundo porque, nessa parte da costa não
haverá grandes problemas nos próximos anos, porque ardeu quase tudo nos últimos três anos.
Onde era preciso, era nas área protegidas, onde se torna é preciso extinguir os fogos
nascentes, se não acontece como nos desastres do Parque Natural e da Reserva Florestal. Sou
Carla Videira.

LOCUTOR

Está mais alguém em linha. São os dois últimos. Estamos na recta final do nosso encontro.

OUVINTE 7
Eu tenho andando aí a fotografar fogos este verão inteiro… Há pouco quando descia a serra
ouvia o som da rádio no monte deserto, no calor da tarde, serra abaixo… E eu estava a
escutar as palavras do José Amado, e olhe… se tivéssemos mais três ou quatro como ele, as
coisas seriam diferentes, é o que tenho para dizer.

AUTOR
Obrigado.
LOCUTOR
Mais um ouvinte.

OUVINTE 8
Não sei de quem é culpa mas lavra um incêndio no parque natural há mais de uma semana...
O incêndio consome uma das mais bonitas paisagens do parque e no entanto os holofotes da
imprensa pouca voz dão a esta catástrofe. Se calhar é demasiado longe das cidades... E eu
queria agradecer por haver alguém que defende as vítimas dos incêndios e denuncia a
situação, como o José Amado.

Escuro e sirene dos bombeiros.

- 75 -
TERCEIRA CENA DE PIQUENIQUE
"Tengo 'na Minchia Tanta"

FORA.
No jardim do Casino Estoril.

São cerca de dez da noite.


Luz.
Uma MULHER de cerca de trinta anos entra e diz para fora de cena "Aqui". Segue-a um
HOMEM de cerca de cinquenta anos. Ela senta-se no banco de jardim.
O HOMEM está impecavelmente vestido, como se trabalhasse num banco.

A MULHER é morena e veste-se como uma secretária. Traz consigo uma mala.

HOMEM
Nunca conheci uma pessoa como tu. (Pausa.) Passei anos à procura de uma pessoa assim,
como tu. (Pausa.) Pensava que não ias aparecer. Pensava que estava condenado. (Pausa.)
Agora vejo que não tinha razão.

MULHER

Eu também tenho um passado.

HOMEM

É como se... para mim, não és uma estranha, percebes?

MULHER

Nunca me viste.

HOMEM

Nunca te tinha visto, antes de ontem. (Sorri. ) Estás mais magra. (Sorri.)

Silêncio.

MULHER

- 77 -
Nunca ninguém me tinha dito isso.

HOMEM

O quê?

MULHER

"Nunca conheci uma pessoa como tu."

HOMEM

E?

MULHER

É isso. Nunca ninguém me tinha dito.

Silêncio.

É estranho. Estou a trabalhar há dois dias.

HOMEM

Eu sei. É estranho. E eu nem posso fazer isto. Até. Porque, bem... sabes, hoje em dia... é
esquisito. O nosso trabalho, sabes...

MULHER

Eu sei.

HOMEM

Tu sabes. / A mesma coisa. Sempre.

MULHER

/ Sim. Eu sei. A mesma coisa. Sempre.


HOMEM

E essa mesma coisa, sempre...

MULHER

Cansa.

HOMEM

Exatamente. Cansa.

MULHER

Pois é.

HOMEM

Cansa. A cabeça. E não chegamos a lado nenhum.

MULHER

Quer dizer, chegamos ao fim do mês.

HOMEM

O dinheiro, eu sei. Mas tirando isso.

MULHER

Não há mais nada.

HOMEM

Pois não.

Silêncio.

- 79 -
E depois casamos. E é que não há mesmo mais nada. (Ri-se.)

MULHER

Casamos com o trabalho...

HOMEM

Pois. Casados duas vezes. Não há tempo para mais nada. E não conhecemos muitas pessoas
diferentes... todo o dia a trabalhar, e depois sempre com a família a visitar o primo, ou a
almoçar com o tio, ou o programinha do filho, ou sei lá o quê... nunca temos oportunidade de,
quer dizer, conhecer pessoas diferentes, muito menos mulheres...

MULHER

Eu percebo.

HOMEM

E, para falar a verdade, nunca quis... quer dizer, nunca é demais, mas, muito poucas vezes eu
quis, quer dizer, em algumas ocasiões... espalhadas pelo tempo, eu conheci umas mulheres,
mas nada de conhecer, conhecer...

MULHER

Eu percebo.

HOMEM

Estou a ser sincero.

MULHER

Eu espero que sim. (Sorri-lhe.)

Ele aproxima-se dela. Ela fica onde está.


HOMEM
Não tenhas medo. Só nos conhecemos, há dois dias, praticamente.

MULHER

Eu gostava de ter uma família.

HOMEM

Não tens?

MULHER

Tenho. Claro. Mas, quero ser mãe.

HOMEM

Ah, claro.

MULHER
Todas as mulheres querem.

HOMEM

Conheço pelo menos uma que não quer. Não é a minha mulher. Claro.

MULHER

Claro.

HOMEM

Foi uma namorada que eu tive.

MULHER

- 81 -
Não queria ter filhos?

HOMEM

Não.

MULHER

Gostavas dela?

Silêncio.

MULHER
Agora já não?

HOMEM

Não consigo. E não é só por mulheres. É pelo mundo em geral. Pela natureza das pessoas.

MULHER

Não gostas da tua mulher?

HOMEM

Não. Quer dizer, gosto. Mas já não... percebes?

Silêncio. A MULHER abre a mala e tira um cigarro que acende. Descalça-se e põe os pés
em cima do banco.

MULHER

Eu quero ter filhos. Vários. Adotar um. E depois ter mais filhos.

HOMEM

Adotar?
MULHER

Sim. Adotar.

HOMEM

Trabalho comunitário?

MULHER

Porque não?

HOMEM (ri-se)
Adotar, não.

MULHER

Porquê?

HOMEM

Normalmente, as pessoas não adotam.

MULHER

Eu quero. Acho que temos um papel a desempenhar.

HOMEM

Eu não quero ser a Angelina Jolie...

MULHER
Eu tento ser.

HOMEM

Acredito.

- 83 -
MULHER

Deve ser por ter muitos irmãos. Sempre pensei mais neles do que em mim. Sou a mais velha.
Sentia-me responsável. Mas agora, com este trabalho.... Não há lugar para altruísmo nos
bancos.

Silêncio.

Não gostas de pessoas?

HOMEM

Claro que gosto.

MULHER

É bom saber.

HOMEM

Não é nada pessoal.

MULHER

Ah. Obrigada.

Silêncio.

Quantos anos têm os teus filhos?

HOMEM

8, 7 e 5. Dois rapazes, uma rapariga.

MULHER (sorri)
O tempo passa, não é? Quando eles forem da tua idade, como será o mundo?
HOMEM

Boa pergunta.

MULHER

Eu acho que vai ser pior. Deve ser por isso que ainda não tenho filhos. Embora queira. Que
mundo é que lhes vou dar? Eu não quero ter filhos para que eles não possam viver em
liberdade, com tudo aquilo a quem têm direito. Não achas? (Ele faz que sim com a cabeça,
mas não está a ouvir. Ela torna a calçar-se.) Quer dizer, tu sabes, trabalhas num banco.
Todos nós que trabalhamos nos bancos sabemos. Mas continuamos a fazer o contrário.
Porque nada interessa. O que interessa é o final do mês, porque senão não comemos. Isso é
que interessa. Não há lugar para altruísmo num banco. É por isso que nunca tive filhos.

Silêncio.

HOMEM
Nós vivemos em liberdade. Não me posso queixar.

MULHER

Porque vives perto do dinheiro.

HOMEM

Tu também. E por isso vivemos perto da felicidade.

MULHER
A felicidade não é assim.

HOMEM

Assim, como?

MULHER

- 85 -
Com dinheiro. Porque depois do dinheiro queres outra coisa. Fama, talvez. E depois
celebridade. E depois imortalidade.

HOMEM

Ninguém é imortal.

MULHER

Por isso, a felicidade não existe. (Pausa.) Sem filhos, pelo menos. Deve ser bom ter filhos,
não? Eu... quer dizer... deve ser...

Silêncio.

HOMEM
Podes engravidar.

MULHER

Não tenho vida. (Pausa.) Houve uma altura em que podia ter tido. Tinha namorado. Mas, não
aconteceu.

HOMEM

Abortaste?

MULHER (Faz que sim com a cabeça.)


É melhor não falar disso.

A MULHER apaga o cigarro. Fecha a mala.

Está na hora de irmos, não?

HOMEM

Está?
MULHER

Estou a ficar com frio. Amanhã é outro dia.

HOMEM

Se quiseres aqueço-te. (Sorri.)

MULHER (Sorri.)
Que piada. É melhor não. Vamos.

HOMEM

Espera. Tem calma. Vamos beber mais um copo.

MULHER

Não. Outro dia. (Levanta-se.) Eu vou para o carro.

HOMEM

Espera. Eu levo-te.

O HOMEM levanta-se e agarra-a por trás. Primeiro delicadamente. A MULHER encolhe-se


logo. Mas ele prossegue a acariciá-la. Ela fica imóvel por instantes, como que petrificada.

MULHER
Pára. Pára. Espera. Espera!

HOMEM

Espera. Calma. Não faças barulho.

Ela debate-se e tenta começar a gritar, mas ele tapa-lhe logo a boca com o braço. Ela
morde-o. Ele grita. Ela escapa-se por um instante do abraço dele, mas não definitivamente.
Ele agarra nela e dá-lhe duas grandes bofetadas que a deixam quase inconsciente. À

- 87 -
terceira chapada, ela perde os sentidos.
Ela fica deitada no chão. Imóvel. Ele começa a apalpá-la por todo o seu corpo inerte.
Abraça-se a ela e cheira-a, emocionado. Quase chora. Depois, sobressalta-se com a
possibilidade de alguém o estar a ver e levanta-se. Compõe cabelo e roupa. Olha para a
miúda. Vai a um dos lagos e encharca um lenço que tira do bolso e atira com ele para a cara
da MULHER.

Ela acorda. Vagamente.

HOMEM
Estás bem?

MULHER

Não te aproximes de mim.

HOMEM (ele aproxima-se)


Ouve o que eu te vou dizer. É muito importante. Se mais alguém souber do que aconteceu,
não tens hipótese, ouviste? Percebes o que te estou a dizer? Se alguém souber que nos
estivemos aqui, estás fodida, ouviste? Caíste das escadas. A luz apagou-se e tu não sabias
quantos degraus eram... percebeste? Inventa o que quiseres. Estás a ouvir?

A MULHER faz que sim com a cabeça.

HOMEM
Boa noite.

Sai.
Ela fica em silêncio por uns instantes. Começa a chorar. Senta-se no banco. Pega na mala,
abre-a e tira de lá um telemóvel. Liga.
Escuro.
Eu Limpo as Sanitas do Espírito Santo

Música de discoteca. Alta o suficiente para o público a poder sentir nas cadeiras.
Durante 20 segundos. No escuro.
Luz.

Pessoas a dançar, num espaço exíguo. Compactadas. Quase sem se mexerem. Durante um
minuto, um anão com um telemóvel na mão, passa pelo meio da multidão, claramente à
procura de alguém. Procura, procura. Mas não encontra ninguém. Vai-se embora.
Escuro. Música de discoteca durante 20 segundos.

Silêncio.

30 segundos.
Luz.

Do fundo de cena, uma mulher. De pé. Parada.


Começa a aproximar-se da boca de cena. Traz na mão um saco de plástico com nêsperas.
Está grávida de oito meses. Veste uma camisola onde se lê: NO FUTURE.

Pára em frente do público, começa a tirar as nêsperas do saco e a comê-las, calmamente.


Atira os caroços de nêspera para o chão, em frente, entre ela e o público. Não atira para o
público. Apenas na direção dele.

Quando termina de comer as nêsperas, pega no saco de plástico e põe-no no bolso.

MULHER

Não sei. Eu limpo as sanitas do espírito santo.

20 segundos.

Escuro.

5 segundos,

Luz.

O anão com o telemóvel na mão, olha de lado para o público enquanto marca um número.
Continua a ouvir-se a música de discoteca ao fundo.

ANÃO (ouve do outro lado da linha antes de falar...)

- 89 -
'Dasse, que és mesmo bronco. Tou cá. Já. Tá cá. Tudo. (Ouve.) Já disse tá tudo cá, dasse. A
gaja? A gaja foi c'o Marcus, foi, foi lá ver. A cena tava entepida no cano 'sgoto! Forão lá.
Tava tudo... tava tudo. Tá tudo under control, já disse. É. A seguir aos semá-fres, isso! Aos
semá-fres, dá-za voltá rotunda. Isso, dasse! É, ouve, o audi tá chtacionado na rua atrás,
ouviste? Agora não faças comó gajo... dasse que tu és bronco! Té já.

O Anão guarda o telemóvel no bolso. Olha para o público de lado.


Escuro.
Luz.

MULHER sentada.
Como se estivesse a ser interrogada.

MULHER (ainda a comer nêsperas)


Eu não tenho nada a ver com essas coisas... isso não me diz respeito... nem quero saber...
dessas coisas... eu limpo as sanitas, limpo o chão, limpo os móveis todos, sacudo as carpetes,
lavo os vidros, destas coisas é que eu quero saber, tenho duas filhas para criar, isso é que eu
sei, tenho duas filhas, uma com 8, outra com 10, elas é que precisam de mim e estou grávida
(acaricia a barriga), vai-se chamar francisco, já vimos... o sexo... o rui quis ver... eu não
queria... mas ele queria... e eu não pude dizer que não... e depois, ele disse-me... ele sabia que
eu queria um menino... não aguentou... eu perdoei-lhe... afinal, é o francisco... é por eles
todos que limpo as sanitas do espírito santo. Gosto de nêsperas. A nêspera é um fruto
esquisito. Não é? Muito caroço, a pele acre e depois o doce da polpa é tão bom... gosto muito.
E traz-me muitas memórias. De quando era criança e ia com o meu irmão à chinchada...
desculpem... Há uma nespereira lá perto de minha casa. É uma casa abandonada. Mas as
nêsperas são a coisa mais doce que eu conheço. Estamos em Maio, não resisto. Trago sempre
para a sobremesa ao almoço. Lá no espírito santo. Porque eles não me dão comida. Bem, de
vez em quando, dão. Mas normalmente, não. Eu não tenho nada a ver com essas coisas. O
que me interessa é chegar a casa e ver as minhas filhas. E estar tudo em paz. Isso é que me
interessa. Meus senhores. Não insistam comigo. Isso não me interessa. Eu não tenho nada a
ver com a droga. Não sei de nada.

ANÃO (ao telefone)


Eu disse que tava cá tudo, mas não tava cá tudo. O Marcus é que disse que tinha cá tudo. Mas
a gaja depois disse que não tinha... (ouve) sei lá! O gajo é que disse e eu disse-te a ti.
(Baixinho, só ao telefone.) O gajo é maluco. E depois a gaja disse que não. Fodasse. Já não
percebo nada. Onde é que tás? Onde? Xpacha-te. O audi tá xtacinado atrás... ok... ok... olha...
a bófia foi lá... (ouve) a bófia! Não sabes o que é a bófia? Os porcos. Os palhaços. Sim. Esses
todos. Ouve, a bófia foi lá e falou... sim... não sei. Tou com cagaço, meu... e se ela...
MULHER (continuando a comer nêsperas)
Não sei. Eu limpo as sanitas do espírito santo.

- 91 -
Amor assim

Quando as luzes se acendem, vê-se uma MULHER de joelhos a fazer sexo oral a um homem
que está de pé. Ele está em tronco nu, com as calças pelos tornozelos. A t-shirt, que trazia
vestida, na mão. Ela está completamente vestida.
O movimento que ela realiza é metódico e profissional, nem uma ponta de paixão. Ele
parece não ter muito gozo, mas quando o orgasmo se aproxima, entra em convulsões que ela
tenta reprimir para poder terminar o trabalho. Ele vem-se na boca e cara dela. Ficam
imóveis durante 20s.

Ela fica deitada no chão. Exausta.

Ele puxa as calças para cima e veste a t-shirt.

ELE
Quinta-feira, podes?

Ela olha para ele.

ELA
Posso.

ELE

Até quinta.

Ele leva a mão ao bolso. Tira uma nota de 100€, pousa-a em cima da mesa. Sai.
Ela permanece mais um tempo no chão. Finalmente, levanta-se e vai para a casa de banho.
Ouvimo-la a tomar banho e a lavar os dentes ao mesmo tempo. Ela emite vários gemidos e
barulhos como se exorcizasse alguma coisa dentro de si.

Finalmente, os ruídos cessam e passados alguns instantes ela regressa em roupão.

Vai à mesa, pega no dinheiro e vai pô-lo dentro de uma caixa. Vai ver as horas (a um
telemóvel ou relógio, tanto faz).

Torna a sair.
Passado um bocado, ouve-se uma chave na porta. Vê-se TÓ com um menino de 5 anos pela
mão. TÓ traz uma guitarra a tira-colo. Olha em volta antes de entrar em casa.

MENINO
Mãe! Chegámos! (Sai a correr para o quarto.)

Tás aí?

A MULHER entra, dá-lhe um beijo. TÓ despe o casaco. Pendura-o numa cadeira. Ela sai.
Ele olha para as horas (num telemóvel ou relógio, tanto faz). Vai à caixa do dinheiro, abre-
a, olha lá para dentro. Fecha-a. Vai sentar-se.

A MULHER entra.


Já vi que ele veio.

ELA

Temos de falar.

TÓ olha para ela. Ela torna a sair de cena.

TÓ (para fora de cena)


Sabes quanto é que custa um quilo de nêsperas no supermercado? Dois euros e meio. Dois
euros. Podíamos vender as nêsperas daquela nespereira da minha mãe. Vendíamos a dois
euros. Dez quilos são vinte euros. Achas que a nespereira da minha mãe tem dez quilos de
nêsperas?

Silêncio. A MULHER regressa.

ELA
Não. Ouviste o que eu disse?

- 93 -

Ouvi.

ELA

E então?


Agora?

ELA

Sim. Agora.


Então fala.

Silêncio.

ELA
Vives bem assim? (Pausa.) Eu não. Eu não vivo. O meu filho está ali no quarto.

O teu filho?

ELA

Sim.

O nosso filho.

ELA
Eu não vivo bem assim.

A pergunta não é se eu vivo bem assim, é se eu tenho de viver assim porque preciso.

ELA

Tu?

Sim, eu. Nós.

ELA

Tu não precisas. Eu é que tenho de viver assim. Tu não.

Eu não? (Pausa. Olha para ela.) Claro. Eu não.

ELA

Sim. Tu não. Não tens de te humilhar todos os dias. Sou eu. Eu é que faço isso.

Queres que eu faça o mesmo, é?

ELA

Não. Não quero. Quero que – (Rebenta a chorar.)

Foste tu que quiseste isto. Foste tu. Lembras-te? Não fui eu. Eu não concordei. Nem
concordo. Mas. Amo-te.

ELA olha para ele.

- 95 -
ELA
Amas-me mesmo?

Amo.

ELA

Isto é amor?

Não sei. É?

Silêncio.
Ouve-se a criança a brincar no quarto.

Escuro.
Luz.
O AUTOR e o JORNALISTA estão em silêncio, preparados para iniciar o programa.

NO AR.

LOCUTOR
Bem-vindos à segunda parte da emissão especial de hoje, dedicada ao escritor José Amado,
comigo aqui no estúdio, para ouvir a apresentação da adaptação para teatro radiofónico da
'História Natural da Ficção'. Quero oferecer-te um dos objectos que usámos para os efeitos
sonoros, a roca que faz o crepitar das chamas.

O LOCUTOR reproduz os sons.

AUTOR
Muito obrigado.

LOCUTOR
O primeiro capítulo do teu livro termina com o crepitar das chamas num corpo que se imola
na praça pública. Esse crepitar alastra pelo país, nos capítulos seguintes. Aquele garrafão de
gasolina – vamos ouvir precisamente essa parte do livro daqui a pouco – vai passando de mão
em mão e a palavra de fogo espalha-se pelo país. Ainda és um revolucionário?

AUTOR
Bom, eu já vejo muito pouco, quase nada, como tu sabes, e por isso este meu livro foi ditado
mais do que escrito, ao contrário do anterior. O que é bom, porque a perda de um sentido
como o da visão traz-nos outras coisas. Os meus livros foram quase sempre decorados, mas a
revisão, o rasurar, tiveram agora de ser feitos sem a ajuda do papel e do lápis. Por isso tive de
ir memorizando e experimentando os sons das palavras, talvez mais do que antigamente. Este
livro é mais de uma outra voz, mais prática, menos teórica, que estava em mim um pouco
amordaçada pelo escrevente, digamos.

LOCUTOR

O teu mundo mudou?

AUTOR

- 97 -
Ao deixar de ver, tive de imaginar outras coisas.

LOCUTOR
És uma Cassandra dos tempos modernos? O profeta matou o homem de acção?

AUTOR
Não, o livro não tem nada de profético. O que eu escrevi... Está a acontecer há muitos anos.
Nós é que não vemos. É um livro sobre fogo posto, mas peço, por favor, a quem tiver vontade
de pegar fogo a isto, que por favor não use o exemplar do livro para atear o incêndio.

LOCUTOR
Mas os teus livros parecem destinados a influenciar a realidade. E este ano, de facto, a
chamada época de incêndios começou mais cedo do que o habitual, tal como descrito no teu
livro. Não é a única coincidência: os fogos seguem o padrão que é apresentado no livro:
incêndios em parques naturais, com o começo das chamas em lugares improváveis; vários
fogos ao mesmo tempo, em pequenas aldeias, com o corte de estradas; fumo e nuvens negras
no céu; fogos que começam à meia-noite, à beira de estradas. Em consequência, a população
começa a exigir a intervenção do exército. E tudo acaba com uma revolta popular. Ainda tens
esperança numa mudança?

AUTOR
Quando lanço um livro sobre a possibilidade de uma revolta nacional que começa com um
conjunto de incêndios ateados de um modo tão padronizado, tão desenhado que só pode ter
mão humana, eu falo alegoricamente, não me interessam as condições concretas da
revolução, mas a revolução em cada um de nós. 'História Natural da Ficção' começa quando
se descobre que uma rebelde camponesa, que foi assassinada por fazer greve, num país do sul
da Europa, não estava grávida quando morreu, ao contrário do que pretendia a propaganda da
oposição democrática. Essa mulher chama-se Catarina Eufémia. O filho não-nascido,
inexistente, inventado pelos rumores, tem a forma metafórica do fogo, o fogo das reuniões
primitivas. [Por causa da polémica em torno desta descoberta, surge um movimento anti-
ficção, uma milícia cultural, digamos assim. As pessoas deixam de tolerar a ficção e só
querem consumir factos comprovados: notícias, documentários, ensaios. Primeiro deixam de
ir ao teatro, depois deixam de ir ao cinema, depois deixam de ver televisão. Ou melhor,
deixam de ver ficção, telenovelas, filmes, essas coisas… A rádio não, a rádio continua…
Fique descansado]

LOCUTOR
[Eu fico… Mas…] As reacções foram muito violentas, com acusações de todos os lados, de
que estavas a tratar a esquerda como um movimento estéril, a que não restava mais nada se
não imolar-se em praça pública, de que estavas a fazer um apelo para voltarmos à luta
armada…

AUTOR
Eu estou mais interessado na justiça poética, ou melhor, na vingança poética, do que em fazer
justiça pelas minhas próprias mãos. Neste caso o caminho da justiça poética foi dramatizar a
morte da mulher rebelde tornando ainda mais criminoso o assassinato. Mas o importante é
que essa necessidade de dramatizar traduz uma necessidade de sinalizar a gravidade do crime.
Não foi só a camponesa que morreu ali, foi a possibilidade da justiça, foi toda a futura prole
dela. Que voltou na forma de fogo. E isso é que é maravilhoso. Foi isso que eu quis discutir.
Não há problema nenhum com os mitos da esquerda. O que é preciso é que sejam como
lentes de ler a realidade, não como a realidade em si. O que eu quis dizer com esse livro foi
que Catarina Eufémia estava grávida, sim, mas não de um filho. E o pai era o povo. Afinal, o
povo é que inventou a lenda, não foi?

LOCUTOR
Uma espécie de Imaculada Conceição, portanto.

AUTOR
As pessoas deixam de ler, com a excepção de um pequeno grupo. E é da liderança desse
pequeno grupo que sai o mártir do livro.

LOCUTOR
Mas se foi o povo que a engravidou, enfim, que inventou a lenda, como é que o povo não
consegue ler?

AUTOR
Nessa altura o povo tinha imaginação. Hoje os padrões da ficção estão dominados por coisas
que lhes são estranhas. Por isso pensei que era melhor começar do zero e banir a ficção de
uma vez por todas.

LOCUTOR
Por causa disso, precisamente, iniciou-se uma espécie de movimento dos teus fãs, com as
pessoas a deixarem de frequentar os teatros e as salas de cinema. Que ainda continua! É um
grupo terrorista, uma luta armada poética?

- 99 -
AUTOR
[Este é um país de reis. Podes ficar descalço, não te podem tirar a cultura. Mas podem
impedir-te de a praticares, tornam-na erudita, arqueológica, peça de museu, de academia. Isto
por um lado. Por outro cercam-te de lixo e propaganda, concentram, concentram, e à mesma
hora, em todo o mundo, passa a mesma mensagem. (Pausa.)] Eu fiquei muito feliz com o
aparecimento desse grupo. Mas nunca me passou pela cabeça que se criasse um movimento
como esse, pessoas comuns, normais, leitores meus que viram nessa fábula uma possibilidade
de participação mais expressiva do que aquela que podiam imaginar antes.

LOCUTOR
Farias um apelo para esse grupo parar, se suspeitasses que são eles por trás destes incêndios?
Ou acabarias por encorajá-los?

AUTOR
As pessoas podem mudar? Por causa das coisas que leem? As coisas podem mudar? Só com
muita violência. Por exemplo, a democracia ateniense. Só durou oitenta anos. Quem nos
garante que esta democracia em que vivemos não acabou já? Continuamos a ser governados
pelos mesmos que cá estavam antes do 25 de Abril, ouço às vezes as pessoas dizer, as
pessoas que me cumprimentam na rua. Acordaram democratas, de um dia para o outro,
quando tinham ido dormir fascistas. Catarina Eufémia não estava grávida. Mas estava, estava
de esperanças, estava grávida daqueles que poderiam vingar a sua morte, daqueles que
poderiam matar o soldado da GNR e o proprietário. Infelizmente, aos descendentes de
Catarina Eufémia pouco mais resta que imolarem-se na praça pública, num ato de desespero.
Senão em carne e osso, pelo menos metaforicamente.

LOCUTOR
Os incendiários também são poetas?

AUTOR
Cada incêndio é um poema proibido.

LOCUTOR

E a piromania, sendo assim, pode ser considerada uma das belas-artes?

AUTOR
A piromania, não. Isso seria como considerar os primeiros poemas que um adolescente
escreve como literatura ou poesia. O bombismo, sim… incluindo os auto-retratos, os diários,
as performances biográficas, que seriam algo como o bombismo-suicida da arte.

LOCUTOR

Mas então… qual é a obra de arte possível?

AUTOR
A última.

LOCUTOR
O suicídio?

AUTOR
O martírio...

LOCUTOR
Não te sentes responsável perante os mais jovens?

AUTOR
Sim, sou um dos autores mais lidos no nosso país. Mas qual é a diferença entre morrer agora
ou daqui a cinquenta anos? Havemos de morrer em nome de quê?

Escuro e sirene dos bombeiros.

- 101 -
QUARTA CENA DE PIQUENIQUE
1º de Maio

1º de Maio, 2012. Num supermercado da cadeira Pito Doce. Fila de clientes para pagar,
junto à caixa. Vêem-se e ouvem-se pessoas por todo o lado. Estão cinco vezes mais pessoas
do que o normal num supermercado ao domingo. Os carrinhos de compras estão todos
cheios, a abarrotar, de facto, com todo o tipo de produtos.
No meio de uma fila que não anda nem desanda, estão dois casais. BETA, com pouco menos
de trinta anos ao lado de um carrinho onde estão dois pacotes de fraldas, é casada com
BETO que ainda não está em cena e tem a mesma idade que ela. CARLA com pouco mais de
trinta anos e DIOGO com quarenta, são o outro casal.

BETO aproxima-se, vindo dos corredores, com dois pacotes de fraldas na mão.

BETA
Traz mais.

BETO

Mais?

BETA

Sim, mais. É aproveitar.

BETO

Mais fraldas?

BETA

Mais fraldas. Mais.

BETO

Ficamos com fraldas até ele já não precisar delas...

BETA

- 103 -
Se for preciso depois vendemos...

BETO olha para ela com ar desconfiado. Ele pousa os pacotes no carrinho. Pausa.
Vá lá! Atão?

BETO

Tá bem. Tá bem. (Não se mexe.)

BETA sai, furiosa. BETO fica junto ao carrinho. Vira-se de costas para o outro casal que
está atrás na fila. Ouve-se um anúncio cantado do tipo, "Venha ao Pito Doce de Janeiro a
Janeiro..."

CARLA (para BETO) Não é todos os dias que fazem 50%.

BETO ignora-a, pensando que a mulher não está a falar para si. DIOGO distrai a atenção
de BETO, CARLA tira-lhe um dos pacotes de fraldas do carrinho e põe no seu, meio
escondido.

DIOGO
Quero ver o que é que vamos fazer com dez pacotes de iogurtes... vão ficar fora de prazo.

CARLA

Mais baratos. E os espinafres. Trouxe dois molhos. Tomates. Pepinos. Os legumes e as frutas
estão mesmo baratos. É de aproveitar.

BETA regressa sem fraldas.

BETA
Já não há.

BETO

Já não havia? Tchiii.


BETA

Que ganância.

BETO

Que loucura. As pessoas são mesmo...

BETA

Estão mesmo desesperadas...

BETO

São gananciosas.

BETA

São assim.

BETO

Gananciosas.

BETA

Não faz mal.

BETO

Ficamos só com quatro.

BETA

Achas que são baratos, é?

BETO

Eu não disse isso.

- 105 -
BETA

Nem pensas no que dizes, tu.

BETO

Tu é que disseste que não fazia mal.

BETA

Estava a falar da ganância.

BETO

Não faz mal?

BETA

Não. A ganância. É natural.

BETO

Barato era se lavássemos as fraldas à mão.

BETA olha para ele, com os olhos muito abertos.


Como a minha mãe fazia comigo.

BETA

Oh, cala-te.

BETO repara que só tem 3 pacotes de fraldas no carrinho.

BETO

Pensava que tínhamos quatro.

BETA
O quê?

BETO

Eram quatro, não eram?

BETA

Só temos três?

BETO

Só.

BETA

Primeiro trouxemos um cada um. Depois tu –

BETO

Eu trouxe dois.

BETA

Dois mais dois quatro.

CARLA e DIOGO estão de costas para eles, a ouvir a conversa. BETO vê o "seu" pacote de
fraldas no carrinho do outro casal.

BETO

Desculpe. Olhe, esse pacote de fraldas era meu.

DIOGO olha para ele com desprezo.

BETO

O senhor não tinha fraldas. Agora tem. Essas fraldas são minhas.

- 107 -
DIOGO

São suas?

CARLA

Não me parece.

DIOGO

Quanto lhe custaram?

CARLA

Não estão no seu carrinho.

BETO

O senhor não tinha fraldas.

DIOGO

Não tinha fraldas?

BETO

Não.

DIOGO

Quem é que lhe disse a si?

BETO

Eu vi que não tinha.

De repente, ouve-se uma voz a anunciar, "Por favor, pedimos aos nossos estimados clientes
que se encontram mais perto das caixas de pagamento que deixem uma abertura nas suas
filas, para as pessoas poderem passar. Muito obrigado por terem escolhido passar connosco o
vosso primeiro de maio o dia do trabalhador. Por favor, aproveitem os descontos na secção de
"Artigos Para O Seu Bebé Fraldas a desconto de 50%." Por favor, pedimos aos nossos
adorados clientes que se encontram mais perto das máquinas registadoras que deixem uma
pequena abertura nas filas de pagamento, para as outras pessoas que ainda circulam poderem,
poderem passar, muito obrigado. Por favor. Obrigado por terem escolhido passar connosco o
vosso primeiro de maio o dia do trabalhador, bom dia. Por favor, aproveitem os descontos na
secção "Artigos Para O Seu Bebé. Fraldas a desconto de 50%."

Ficaram todos quietos enquanto se ouviu o anúncio. BETO não deixou de olhar para o "seu"
pacote de fraldas.

BETO
Aquele pacote de fraldas é meu.

BETA

O senhor não tinha fraldas.

DIOGO

Você estava de costas quando eu cheguei. Não me viu.

BETA

Eu não estava cá.

BETO

Eu não vi?

DIOGO

Não, não viu. Eu vi que não viu. Era o último. Trouxe o último.

BETO e BETA olham um para o outro. Resignados. Silêncio.

CARLA

- 109 -
Realmente, há com cada pessoa... que ganância. Pensam que é tudo deles. Vêm para o
supermercado e pensam que são os reis disto tudo. Eu também tenho filhos. Também posso
precisar de fraldas, não? Você quer que eu lhe devolva as fraldas, é?

DIOGO

Carla. Não faças nenhum disparate.

CARLA
Não. Isto agora irritou-me. Irritou-me mesmo. Quer dizer que eles são os únicos a ter direito
às fraldas? Vão usar os pacotes todos hoje? Quer mais fraldas, é? Quer?

BETO

Ó, minha senhora. Eu só quero as minhas fraldas, mais nada.

CARLA

Suas? São suas. Já as comprou?

BETO

Eu cheguei primeiro!

BETA

Ouça lá, veja lá como é que fala, que ninguém foi malcriado.

CARLA

Não foste mal criada? Não foste?

BETO

Não, não fomos. E fale mais baixo que eu não sou surdo.

DIOGO

Olhe, as fraldas são nossas, estão aqui, neste carrinho, e se o senhor não olha pelas suas
coisas, o problema é seu, eu sei que este pacote de fraldas é meu, porque o tenho aqui, no
carrinho, e pronto. E é tudo quanto você precisa de saber em relação a isso. Percebe? Se não
me viu com as fraldas. Visse! Está esclarecido?

BETA

Eu tenho a certeza, Beto. Eu tenho a certeza. O pacote está rasgado de lado, eu lembro-me de
ter reparado nesse pormenor.

CARLA

Estás a dizer que nós roubámos o pacote de fraldas do carrinho?

BETO

Foi enquanto foste lá. Fiquei de costas. Não vi.

CARLA

Estás a chamar-nos ladrões?

DIOGO

Ouve lá, tu quando falas comigo baixas a bolinha, ouviste?

E quando diz isto, espeta um soco bem assente na cara de BETO.

BETA engalfinha-se com CARLA, batendo-lhe e puxando-lhe os cabelos. CARLA não pára
de gritar, "Ladrões!"
Acorrem pessoas de todos os lados, tentando separá-los. Algumas pessoas pegam em fraldas
que estão nos carrinhos deles e levam-nas.

Há sangue espirrado pelo chão.

Escuro.

Mais tarde.

Luz.

- 111 -
A luta continua. No meio do palco, DOIS POLÍCIAS agarram em CARLA e DIOGO e
arrastam-nos pelos cabelos para os separar de BETA E BETO.
Os textos que se seguem são para serem ditos ao mesmo tempo. Cada uma das personagens
pode dizê-los como quiser e não têm de os dizer ao mesmo ritmo que o(s) outro(s).

POLÍCIA 1
Venha cá. Venha cá. (Pausa.) Tenha lá calma. Há fraldas para todos. Amanhã também há
fraldas. Que ganância. Esteja lá caladinha. Esteja lá caladinha. E tu, também tás a ouvir? Tás
a ouvir, tou a falar para ti! Tou a falar contigo. Cala-te! Cala-te! Cala-te!

POLÍCIA 2
Cala-te. Cala-te. Cala-te! Tou a falar contigo. Quando eu falo para ti, tu olhas para mim,
ouviste. E tu também, ouviste? Esteja calada! E você também. Sim, você. Eu a ti trato-te por
tu, ouviste?

CARLA

As fraldas não são de ninguém. As fraldas ainda não tinham sido compradas. As fraldas são
da loja, ainda não são de ninguém, por isso as fraldas são minhas se eu as quiser! Estão a
perceber? Eu calo-me. Pronto. Mas as fraldas ainda não estavam compradas. Eu também
tenho filhos! Eu também tenho gente para criar.

DIOGO

Esse gajo é que me provocou. Ele é que me provocou. Estava-me a provocar... ele estava a
pedi-las... e leva mais... quando eu te apanhar... ai, quando eu te apanhar... sim, eu calo-me.
Já me calei. Já me calei. Mas quando eu te apanhar, meto-te as fraldas pelo cu acima! Podes
ter a certeza que te meto as fraldas... pronto, eu calo-me.

BETA

São ladrões, ladrões! Eu tinha quatro pacotes. Eu trouxe mais dois e o meu marido trouxe
outros dois. E foi quando eu fui buscar mais.... mas já não havia. Esse gajo que bateu no meu
marido. Anormal. Besta! Eu calo-me quando eu quiser! Eles roubaram-me. Roubaram-me as
fraldas do carrinho. Eu não tava cá. Mas tava o meu marido.
BETO (com o nariz ainda a sangrar)
Olha-me só para isto. (Pausa.)Eles roubam-me as fraldas e eu ainda levo por cima. Estão a
ver? Estão? Quer dizer. (Longa pausa.) As fraldas eram nossas, estavam no nosso carrinho,
eu não tenho a culpa que não... Beta, cala-te, cala-te. Cala-te!

- 113 -
EUROMILHÕES

Interior de um quiosque. Há uma bicha de gente para registar o talão do Euromilhões. A


meio da bicha, um homem e uma mulher de meia idade [Nuno e Inês] conversam.

HOMEM
Parece que a semana passada saiu no Luxemburgo.

MULHER (com um relampejo)

Olhe que até tenho família no Luxemburgo, às tantas …

HOMEM (com um risinho)

Se for, não se esqueça cá de nós.

MULHER

Ui, acha!

Riem ambos nervosamente.

HOMEM

Quando for eu, não digo a ninguém.

MULHER

Ah, claro. Com a quantidade de gananciosos que há para aí.

HOMEM

Com os gananciosos posso eu bem. O pior são aqueles "amigos" que aparecem nessas alturas.

MULHER

Ah, sim. Esses "amigos".


HOMEM

Olhe para o que lhe digo. O mundo está cheio de trafulhas.

MULHER

Ah, sim. Mas eles topam-se logo passado algum tempo. Nós, por exemplo, aos anos que nos
conhecemos, já não há perigo…

HOMEM

Ah, sim. Já nos encontramos aqui desde… Olhe, desde que eu fazia sociedade com os meus
ex-colegas. Aí uns dez anos.

MULHER

E é sempre aqui. Um dia ainda combinamos noutro sítio. Olhe, no seu café, por exemplo.

HOMEM

Com certeza, com certeza. E a senhora tem tempo livre para isso, agora.

MULHER (constrangida)

Pois… mas é uma aventura, não é? Com a sua idade, usar o subsídio para abrir um
estabelecimento.

HOMEM

Oh, amiga. A vida é feita de aventuras. Vamos ver como esta corre.

MULHER

É ali perto da escola, não é?

HOMEM

Isso queria eu. Está a ver: os miúdos a comprar bolas de berlim e pastilhas elásticas, não é?
Mas as rendas, upa upa. Ainda vi ali junto aos escritórios, mas enfim.

- 115 -
MULHER

Então onde é?

HOMEM

Está a ver ali rua a chegar à ponte? Aquela com casas desabitadas?

MULHER (constrangida)

Ah, estou a ver, estou a ver.

Os dois a conversar aproximam-se do balcão para entregar os talões. A mulher submete o


seu talão. O homem segue-a.

MULHER (indo-se embora)

Bem, até para a semana. A ver se nessa altura combinamos a ida ao seu café.

HOMEM

Até para a semana.

MULHER

E boa sorte.

HOMEM

Boa sorte também para si.

DONA (para a Mulher)

Olhe, desculpe! Posso ver outra vez o seu talão? (pega no talão que a mulher lhe dá) É que…
Os dois talões são iguais.

Silêncio.

HOMEM
Desculpe?

DONA

Os dois talões são iguais. É muito engraçado.

MULHER

Olhe que coincidência.

DONA

Nunca tinha visto tal.

MULHER

Pode ser bom sinal.

HOMEM

Sim, quem sabe.

MULHER

Ainda pode ser que partilhemos o prémio.

HOMEM

Pode ser…

Silêncio. Ficam ambos parados, a olhar-se de esguelha.

DONA

Desculpe, aqui tem o seu talão. O cavalheiro, por favor.

MULHER

- 117 -
Só um momento... Não era melhor o senhor mudar a sua chave? Não me parece bem que
fique assim.

HOMEM

Eu? Mas tenho esta chave há anos. É minha. A senhora é que devia mudar.

MULHER

Devia porquê? Foi a que me saiu e cada um é livre de ter a chave que quiser!

HOMEM (ficando sério)


Desculpe, mas a chave é minha. A senhora sabia que a chave era minha e copiou-a. Deite fora
a sua chave e arranje outra.

MULHER

Essa é boa! Desde quando é que há donos de chaves!

HOMEM

É uma questão de boa educação! Não andar a roubar as chaves dos outros.

MULHER

Desculpe lá, eu não roubei nada. Tenho um aparelhinho lá em casa, que me dá uma chave
diferente todas as semanas. Já o tenho desde do tempo do Totoloto.

HOMEM
Ora prove lá isso! Prove que não viu que eu tinha uma boa chave e que está a tentar roubá-la!

MULHER

Desculpe, mas o senhor está a acusar-me de quê! Mas o senhor acha que sabe alguma coisa
sobre mim?

HOMEM

Sei que me quer ficar com o prémio! Faça o favor de anular o talão desta senhora!
MULHER

Nem pensar nisso! Olhe que eu chamo a polícia! Olhe que eu chamo! A chave é minha. Eu
fui primeira a submeter, seu aldrabão! Quer ver o que faço à sua preciosa chave! (arranca o
talão das mãos da dona e atira-o para dentro do caixote do lixo)

HOMEM

Eu faço outro! Eu faço já outro! Quer ver, quer ver! (Pega num do molho de boletins.)

MULHER (tenta detê-lo)


Não deixe! Não deixe! Chame a polícia, por favor. Este ladrão quer roubar-me a chave do
Euromilhões!

Caem um sobre o outro. Gritam. A dona do quiosque tenta separá-los. Confusão. Os boletins
de euromilhões voam em redor deles.

- 119 -
O CORO DA FOME

A dada altura um ator fica sozinho em cena. Depois vem outro e fica à espera. Depois outro,
depois outro. Esperam. Surge um homem, de colete refletor, com um carrinho com sacos. Os
atores fazem fila, e o homem do carrinho começa a distribuir, um a um, os sacos. As pessoas
afastam-se um pouco para comer, fazendo um grupo disperso. O público é convidado a vir
buscar comida. Um homem com um megafone dá ordens.

HOMEM [Nuno]

Atenção. Não tentem passar à frente. Cada um será servido pela ordem de chegada. Não há
repetições! Cada um terá direito a um saco com sopa, uma sandes e um iogurte. Todos os
sacos são iguais. Não haverá repetições. O pessoal está atento. Um saco por pessoa. Não se
toleram repetentes!

Entra uma mulher com um ramo de cravos vermelhos nos braços.

MULHER [Inês]
Flores, belas flores. Quem quer flores! Troco dois cravos por uma sandes. Um cravo por um
iogurte. Cravos. Cravos viçosos e baratos. Um raminho de cravos por um prato de sopa.
Cravos...!

Atores e público podem escolher trocar a sua comida por cravos, ou ficar com a comida.

As caixas de papelão dão lugar a uma cidade, com nomes de ruas como PRAÇA DA
REPÚBLICA, AVENIDA DA LIBERDADE, RUA DA ALEGRIA, etc.
MUDAR DE VIDA

Uma sala. Uma mulher. Um cão.

NORMA [Bárbara]
Quem é o menino lindo da mamã, quem é, quem é, quem é?

CÃO [João]
Béu.

NORMA

Quem tem as vacininhas em dia. O pelo escovadinho. O pó anti-pulgas, a coleira com chip,
quem é, quem é, quem é?

CÃO
Béu.

NORMA

Quem se porta bem. Quem tem trela nova extensível, quem é, quem é, quem é?

CÃO
Béu!

NORMA

Quem tem um veterinário diplomado. Uma alcofa almofadada, uma bandeja com terra
especial, quem é, quem é, quem é?

CÃO
Béu.

NORMA

- 121 -
Quem é o adorado da mamã? A companhia da mamã? A paixão da mamã? O amigo da
mamã? A riqueza da mamã? O bombom da mamã? O…

A mulher começa a chorar…

NORMA

… ombro da mamã? O amor da mamã? A alegria da mamã? O sorriso da mamã? (grita)


Quem é? Quem é? Quem é?

O cão inclina a cabeça enquanto a olha em silêncio. A mulher caminha com o cachorro ao
colo e mete-o dentro da máquina de lavar a loiça. Com gestos nervosos, liga a máquina na
máxima potência de lavagem e secagem. Ouve-se a máquina gorgolejar. A mulher anda
desvairada pela cozinha, agitando as mãos, enquanto soluça descontrolada. Vai até ao rádio
e liga-o. Abre uma gaveta e tira de lá uma machadinha de carne. Senta-se de costas para a
porta da máquina de lavar e olha fixamente para a frente, sentindo as vibrações passarem-
lhe pelo corpo todo. Faz contas.

NORMA

O apito ultrassónico por cinco e noventa euros


mais a trela com amortecedores de doze euros
e a coleira antilatido por vinte e quatro e noventa euros
com vestido para cão por seis e cinquenta euros

além do mosquetão antipânico para cão cromado de dois e noventa euros

combinado com shampoo insecticida dermoprotector especial cão Arppe a quatro e noventa e
cinco euros

e máquina sem fios de tosquiar nova a dezasseis e treze euros

somando a Frontline Aplicação Cutânea de Cão tamanho M em caixa combo por dezassete e
oitenta e cinco euros

juntando o polo Big Pony Hoodie Top Pink tamanho L de 15 euros


com bónus da Coleira Ectoparasiticida para Cão Arppe por três e dez euros
e a pinça eletrónica para carraças que chega aos dez euros

mais o colar isabelino que usou depois da operação a cinco e cinquenta euros.
Sendo que tudo somado dá…
tudo somado dá…

tudo somado dá…

- 123 -
O palhaço sorri

Escuro.
Ouve-se o Hino da Alegria, na versão dos Marretas. o Hino de Portugal, manipulado,
truncado, alterado, fora de tom, desafinado, de trás para a frente.
No final, ou no meio, depende da colagem sonora, ouve-se uma voz que diz. "Senhoras e
senhores, meninos e meninas o Presidente da República Portuguesa!"

Luz.
Ao centro do palco, vê-se um mastro branco para elevar uma bandeira.
Aparece um palhaço.

Olha fixamente para o público. Diz adeus. Ri-se. Olha para fora de cena. Diz adeus. Ri-se.
Olha para fora de cena. Diz adeus. Não se ri.

Entra um militar com uma bandeira nacional imaculadamente dobrada. Estende-lha.


O militar saúda a bandeira e sai a correr como um verdadeiro militar.
O palhaço olha para o público. Ri-se. Diz adeus. Por isso, bandeira cai ao chão.

O palhaço pega na bandeira e ela desdobra-se. É uma bandeira da república portuguesa,


verde e vermelha, mas ela foi adulterada, em vez da esfera armilar poderá ter qualquer
coisa, que pode ir desde uma cara de palhaço ao logótipo de um banco.

Ele pega na bandeira e vira-a ao contrário.

Olha para o público. Diz adeus.

Dirige-se ao mastro com os fios.


Pega nos fios e tenta enfiar a bandeira nos fios de maneira a poder içá-la.
Não consegue. Enreda-se nos fios. Cai no chão.

Levanta-se envergonhado. Vira-se para o público. Sorri. Diz adeus.

Torna a tentar enfiar a bandeira nos fios de maneira a poder içá-la.

Torna a enredar-se.
Não há quaisquer sinais de que ele possa alguma vez vir a içar a bandeira. Os erros são os
mesmos sempre. Ele escorrega, cai no chão.
Finalmente, passados uns minutos, ele consegue içar a bandeira. O logótipo (ou o que for)
está virado ao contrário. Ele vê que está ao contrário, mas mesmo assim iça a bandeira.
Quando termina, fica respeitosamente de pé, virado para o público.

Escuro.
- 125 -
COREOGRAFIA DA DÍVIDA

Interior de um escritório recheado com pastas, dossiês, computadores, papéis. Uma mulher
[Margarida] aproxima-se, pega num papel e mete-o dentro da trituradora, que faz um ruído
irritante. Ouve-se o telefone tocar. A mulher aproxima-se do telefone com alguma hesitação.
Olha para o visor do telefone. Hesita. Ouve-se o sinal do atendedor telefónico.

GRAVAÇÃO (ISA)
O número para o qual ligou não está disponível. Deixe a sua mensagem após o sinal sonoro.

VOZ 1

Bom dia, estava a ligar por causa do pagamento…? Quando puder, ligue-me, por favor.

A mulher volta para junto da trituradora e volta a colocar mais um papel. Começa a ouvir-
se uma música de ballet de fundo. O telefone volta a tocar. A mulher para e fica a olhar para
o telefone, a respirar pesadamente.

GRAVAÇÃO
O número para o qual ligou não está disponível. Deixe a sua mensagem após o sinal sonoro.

VOZ 2

Bom dia, é a terceira vez que ligo esta semana. Então e o pagamento?

A mulher volta em passo de dança para junto da trituradora, e volta a introduzir papéis lá
dentro. O telefone volta a tocar. A mulher olha para o telefone sem se mexer.

GRAVAÇÃO
O número para o qual ligou não está disponível. Deixe a sua mensagem após o sinal sonoro.

VOZ 3

Já estou farta de tentar ligar! Foram todos de férias,? Afinal quando é que pagam?
A mulher deita a língua de fora e atravessa o palco a dançar alegremente, recolhendo papéis
para colocar dentro da trituradora. O telefone toca.

GRAVAÇÃO
O número para o qual ligou não está disponível. Deixe a sua mensagem após o sinal sonoro.

VOZ 4

Este é o meu último aviso. Se não pagarem até ao final da semana, vou para os tribunais.

A mulher encolhe os ombros e deita um molho de cartas de advogados ao lixo. O telefone


toca.

GRAVAÇÃO
O número para o qual ligou não está disponível. Deixe a sua mensagem após o sinal sonoro.

VOZ 5

Oiçam lá, vocês têm de me pagar? Eu andei a pedir dinheiro para fazer o trabalho… E agora
não me pagam?

A mulher deixa cair o tronco graciosamente com ar triste e começa a dançar em pontas.
Sinal de mensagem gravada.

GRAVAÇÃO
O número para o qual ligou não está disponível. Deixe a sua mensagem após o sinal sonoro.

VOZ 6

Seus cabrões! Paguem se não querem que vos parta as trombas!

A mulher dança até à trituradora, e enfia lá papel, com ar teatral. Mensagem.

GRAVAÇÃO
O número para o qual ligou não está disponível. Deixe a sua mensagem após o sinal sonoro.

- 127 -
VOZ 7

(Voz aos soluços.) Já não tenho dinheiro para comer… Já não tenho dinheiro para a renda…
Já não tenho dinheiro para os salários. Por favor paguem-me. Ao menos a mim.

A mulher abraça um vaso, com o qual dança de forma romântica, e depois deixa cair o vaso,
que se estilhaça. Mensagem.

GRAVAÇÃO
O número para o qual ligou não está disponível. Deixe a sua mensagem após o sinal sonoro.

VOZ 8

Ok. Sabemos onde moras. Sabemos onde os teus filhos estudam. Se não pagarem…

Silêncio. A mulher, imóvel, respira pesadamente. Pega nas fotografias de família que tem ao
lado do computador e, uma a uma, enfia-as dentro da trituradora. Pega nas tiras de papel
cortado, e limpa as lágrimas, como se aquelas fossem um lenço. Sinal de mensagem.

GRAVAÇÃO
O número para o qual ligou não está disponível. Deixe a sua mensagem após o sinal sonoro.

VOZ 9

Cabrões! Filhos da puta! Vigaristas! Aldrabões! Gatunos! (a voz continua com os insultos e é
abafada pela música, pelo frenesi da trituradora, pelas pastas a cair. Com delicadeza, a
mulher pega num computador portátil e começa a bater violentamente com ele na mesa até
desfazer o computador e deitar abaixo a mesa. O escritório é uma selva de destroços. Ouve-
se o sinal de mensagem

GRAVAÇÃO
O número para o qual ligou…

A mulher agarra no gravador e atira-o violentamente contra a parede. Silêncio. A mulher


respira fundo, mais sossegada. A campainha da porta toca.

- 129 -
Numa das cabines, a adaptação radiofónica de um dos mais reconhecidos livros de José
Amado, HISTÓRIA NATURAL DA FICÇÃO. Estamos no fim da obra. Os efeitos sonoros
são artesanais, feitos à vista de todos, como nas antigas sessões de teatro radiofónico.

Carros, buzinas, ambulâncias passando ao fundo e murmúrios da multidão, como se um


ouvinte imaginário fosse penetrando da orla de uma praça pública para o meio de uma
multidão reunida no centro da praça.

ROQUE
A luz da praça é branca como a cal, e cega quem se atreve a olhar para trás. A vista só
descansa nas costas dos cartazes e faixas de protesto, ou na estátua equestre, negra, do
fontanário republicano, e mesmo assim tem que fugir do repuxo e do espelho de água. É onde
se põe mais um dos oradores, todo vestido de branco, com a mão à frente dos olhos a tapar o
sol.

Palavras de ordem imperceptíveis, comentários ocasionais, reacções.

ISMAEL

Quero pedir às pessoas aqui da frente… por favor, ouçam… peço que baixem os cartazes e as
bandeiras, as pessoas aqui da frente… para que as pessoas lá atrás possam ver melhor… peço
que baixem as faixas, os cartazes, as bandeiras, por um momento, para nos ouvirmos, para
nos vermos melhor uns aos outros... Este momento é a ocasião para olhar para trás e ver o
caminho que percorremos até hoje… Hoje é um dia de vitória. Apesar do recuo das nossas
iniciativas, apesar do desespero de muita gente com o regresso das formas mais
conservadoras, agora toda a gente está alertada. Peço algum silêncio, por favor!... Não
podemos usar megafones, por isso peço também que haja quem vá repetindo as palavras às
pessoas de trás, até chegar lá ao fundo… Já estou a falar o mais alto que posso, por favor,
voluntários, estou precisamente a pedir para repetirem, se for necessário... uma vez que não já
não temos megafones nem amplificadores, que dariam algum jeito, mas… Obrigado!

As palavras de ISMAEL são repetidas por duas ou mais vozes, quase em surdina, como um
eco.
Os noticiários falsos, as operações de propaganda, as notícias mascaradas de realidade têm os
dias contados, não porque tenham terminado, mas porque hoje toda a gente está alertada, toda
a gente sabe ler nas entrelinhas. Temos muitos aliados, mesmo no meio dos canais
televisivos, das agências de publicidade, das editoras. Há muitos jornalistas, muitos autores,
muitos poetas do nosso lado. Foi preciso lutar muito, todos os dias, nos cinemas de bairro,
nos centros comerciais, nas salas de teatro, nos espaços alternativos, nas lojas de livros, em
cada quiosque e tabacaria… Hoje somos governados com o recurso a medidas
extraordinárias, que são inventadas todos os dias, com a desculpa de situações de emergência,
estados de necessidade e circunstâncias excepcionais que põem em causa o manancial de
direitos e leis da Constituição Europeia. O nosso caminho mal começou… Mas é o caminho
da verdade. Um passo em frente. É a única coisa que podemos chamar ao nosso caminho.

Silêncio, pombos esvoaçando, uma ou outra gaivota, o repuxo do fontanário.

ROQUE

O homem vestido de branco está a erguer o garrafão de gasolina o mais alto que pode, vai
rodando para que se veja bem a face do recipiente e não restem dúvidas sobre o que é.

Golfadas de gasolina.

Rega-se com uma golfada de água que ao sair do gargalo reflecte os raios de sol. Não é água,
é gasóleo. Agora, vai rodando à volta da fonte, aos poucos, para que seja visto por toda a
gente, de todos os cantos da praça, e deita mais água cabeça abaixo, repete o número uma e
outra vez. Pára em cada uma das quatro faces do fontanário, uma, duas, três, regressou ao
ponto de origem, dá um súbito trago do garrafão, um gole de gasóleo que cospe no ar e
acende, e agora pega-se fogo! Está a arder. Está a arder.

O crepitar das chamas.

O vómito de fogo distraiu-me, quase não vi a ignição do corpo, ele precipitou-se como se
quisesse apressar o passo para não pensar duas vezes. O contraste com o bronze imóvel da
estátua equestre não podia ser maior. Se não fosse a estátua negra como pano de fundo, as
chamas jamais se veriam num dia de sol lindo como este.

- 131 -
Se não fosse o cheiro da carne queimada, parecia mentira.

Gritos de «Deixem passar!» e comoção geral. A sirene da ambulância regressa em força.

ROQUE
Todos nos acusam de não ver o lado poético da vida. Mas há muitos poetas do nosso lado. A
nossa poesia é da acção, e o nosso poema é o acto.

Silêncio. Escuro e sirene dos bombeiros.

Música.

Entram no estúdio, violentamente, dois MILITARES, armados, aos gritos. Alguma


confusão, em especial devido ao AUTOR, que permanece inalterado perante os apelos do
JORNALISTA. Os MILITARES ordenam a abertura do microfone e entregam um
documento ao AUTOR, para que ele o leia em directo.

Declaração de Estado de Sítio.

AUTOR
Caros ouvintes, interrompemos a emissão para ler um comunicado oficial. (Lendo.) Aqui
posto de comando do movimento - (O ruído de estática, ao estilo fim de emissão, torna
imperceptível o comunicado.).

Silêncio e escuro.

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