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Como escrever junto: coletivo e anônimo.

Em ocasião do lançamento do Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte,


UFMG, 2018

Quando a ideia do livro nasceu, pelo menos para mim, o livro era outro. Os
organizadores do livro, na apresentação, contam a história: reunidos em um
simpósio para discutirmos nossos trabalhos, e percebendo, na leitura deles, que
todos os artigos se intersectavam em algumas palavras que voltavam uma e outra
vez, com significados diversos, decidimos abandonar os nossos trabalhos para,
coletivamente, discutir e escrever sobre essas palavras e conceitos que
achávamos chave na discussão do contemporâneo. Não vou recontar essa
história, até porque ela está na apresentação do livro muito melhor escrita do que
eu poderia reescrevê-la, mas começo por ela porque lembro que, pelo menos para
mim, naquele momento, a ideia do livro era bem diferente do que acabou sendo.
Não pensava então nas consequências do que acabaram sendo os dois
dispositivos centrais nesse escrever junto que foi a escrita desse livro: o coletivo e
o anonimato. Na época pensava – acho que tal vez todos nós pensávamos - mais
nas palavras, nos conceitos: quais eram esses conceitos, como defini-los e
pesquisá-los, qual a bibliografia e as práticas culturais que nos permitiriam melhor
pesquisá-los. Agora, o livro acabo, e publicado, dou-me conta que para além dos
conceitos que lá estão - práticas inespecíficas, arquivo, endereçamento, o
contemporâneo, comunidade, postautonomia – para alem, então, delas, o livro
também exibe um modo de fazer diferente, sustentado no anonimato e na
coletividade que são, elas, também formas de fazer que adquirem um sentido
novo na contemporaneidade. É sobre elas, através do livro, que quero falar com
vocês.

Coletivo

Um coletivo é, como todos sabemos, uma pluralidade. Mas os coletivos, ora


políticos, ora artísticos, tem sido sobre tudo um modo de resistência ante

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determinados tipos de crise. Na Argentina, uma nova era de coletivos de todo tipo
surgiu com posterioridade à crise de 2001. Os operários da fábrica Brukman
abandonada pelos patrões se organizaram para a produção e formaram uma
cooperativa; é a época em que começa a Eloisa Cartonera, a editora que
Washington Cucurto vai organizar para editar livros com o papel dos cartoneiros, e
que serviria de inspiração para muitas cartoneiras em vários países da América do
Sul; é também a época em que artistas diversos se organizam em coletivos para
pensar e atuar em conjunto.
Mas também é a época em que surgem muitos coletivos políticos que, a
diferença de outro tipo de organizações políticas, não buscam atuar em favor ou a
partir de uma ideologia prefixada, mas lutar por demandas específicas que muitas
vezes vão se conformando e definindo no meio mesmo da atuação do coletivo (Ni
uma menos na Argentina: surge pelos femicídios, se junta à luta pela legalização
do aborto, se junta a proposta pela a separação da igreja do estado, contribui na
“apostasia coletiva”.
O modo de fazer coletivo que visibiliza o Indicionário adquire algumas
dessas características dos coletivos contemporâneos: não só porque ele foi escrito
de modo coletivo, em textos que eram discutidos de modo conjunto e que
passavam de mão em mão para acrescentar debates, polemicas, diálogos. Os
artigos, assim, não buscam uma definição dos conceitos, mas repassam uma
bibliografia que exibe o modo em que esses conceitos foram construídos por
vários pensadores. Mostram como os conceitos tem mudado de significado, sem
nunca se estabilizarem completamente. Vejam, por exemplo, essa citação da
página 69, sobre o conceito de comunidade:

“A princípio, parece haver uma disjunção entre a noção de comunidade de


que falam os filósofos (Nancy, Esposito, Agamben) e aquela de que falam
os cientistas políticos e sociais (como Negri, Hardt) e os teóricos da
comunicação (como Clay Shirky, Howard Rheingold). Um desencontro entre
a comunidade como conceito filosófico e a comunidade da vida cotidiana, a
“comunidade dos humanos”.

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Esse percurso vem acompanhado de uma expansão do uso dos conceitos
para outras áreas, onde o coletivo vai discutir outras formas de se pensar esse
conceito, muitas vezes a partir de práticas artísticas latino-americanas, o que
acarreta o saudável efeito de fazer com que sejam as próprias práticas latino-
americanas, agora, as que se voltam sobre o conceito e o transformam e
redefinem.
Por vezes, os conceitos foram definidos pelo próprio coletivo: quando vários
conceitos tentavam apresar algum acontecimento ou fenómeno das práticas
artísticas contemporâneas e o conceito ainda não tinha se cristalizado, o coletivo
discutiu e decidimos um termo entre todos que na verdade só funciona como um
termo para-chuva dentro do qual se discutem vários conceitos diferentes:
endereçamento, por exemplo, discute, na poesia contemporânea, tanto a
presença de uma segunda pessoa ou de um “arte da conversação” -como a
chamou Flora – ou o “problema da destinação” – nas palavras de Marcos Siscar.
O que me interessa ressaltar, é que tanto os conceitos mais estabilizados
quanto os que ainda estão procurando uma forma são no livro tratados eles
mesmos como uma matéria em formação, mutante, uma forma flutuante que
procura mais do que uma definição, a indicação de um percurso no pensamento
contemporâneo para descrever e discutir um tempo fora do eixo.
Ao mesmo tempo que trabalhávamos no Indicionário, cada um de nós
estava comprometido em um trabalho individual que beneficiou-se do trabalho
coletivo: o alimentou de leituras, de debates, de conceitos, e esse trabalho
individual voltou-se também sobre o trabalho do Indicionário. Agora, alguns
desses trabalhos já publicados e o Indicionário formam uma nova e expandida teia
de discussões onde novas solidariedades e polemicas se desenham como
malhas, o Indicionário reenviando a esses outros textos, esses outros textos
reenviando ao Indicionário, o Indicionário revelando, também, a natureza coletiva
desses outros textos “individuais”.

Anonimato

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O fato dos artigos não estarem assinados decorre da coletividade do livro.
Como assinar um artigo, quando ele, escrito por vários, reescrito por outros e
discutido por todos, não tem, ele mesmo, um estilo? É claro que o livro não é
completamente anônimo, porque os nomes que constituem esse coletivo
aparecem tanto na capa quanto no apartado “Sobre os autores”. Mas a escrita que
está dentro do livro, tanto nos artigos quanto na Apresentação, tem alguma coisa
do anonimato. Não só os artigos são diferentes entre si e as escritas se
diferenciam de artigo a artigo. Um mesmo artigo passa por períodos ou estilos
diferentes, por modulações que vão passando de um estilo ao outro, fazendo do
anonimato também uma forma de se escapar da indivualidade, mesmo que
coletiva, da escrita.
Mas eu diria que também a análise tem certo poder anonimizador, no
sentido que ao entrelaçar diferentes teóricos nos debates e polemicas que eles
encenam, os termos e conceitos aparecem numa certa anonimidade. O conceito
de comunidade, por exemplo: ele não é discutido como o conceito de Esposito,
por exemplo, ou de Nancy, mas como aquele conceito que, entre Esposito e
Nancy, entre Blanchot e Negri e Hardt, assinala aquilo que resta de cada um
desses teóricos para compor uma outra coisa que aquilo do qual eles são autores.
Acho também que funcionam da mesma maneira a análise de autores e obras
diversas, que em colagem rápida com outros, faz com que o artigo não se
concentre na definição de um autor ou de uma obra específica, não se concentre
na definição de uma autoridade, mas discuta uma questão em fluxo entre eles,
entre linguagens artísticas e críticas. Entre teorias e práticas, Mario Bellatin, Nuno
Ramos, Rosangela Rennó, Cesar Aira, Tamara Kamenszain, Silviano Santiago,
Josefina Ludmer, juntam-se assim em uma discussão que tem por objetivo pensar,
para além da autoridade ou da individualidade da obra, o momento
contemporâneo.
Em um livro sobre a questão do anonimato em Foucault, Eric Bordeleu
assinala quanto o anonimato foi para Foucault um modo de se desprender de sim
para pensar e perceber de uma outra maneira (L’anonymat, Bordeleu 8),
apontando para a relação íntima na obra de Foucault entre anonimato e

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resistência politica, em tanto pensar o anonimato teria sido, em tempos do
biopoder e da privatização das existências, do governo pela individualização (não
posso deixar de lembrar dos discursos dos senadores durante o golpe dando seu
voto “por minha família”), uma forma de refletir sobre a questão do comum e dos
modos de atuação coletiva (p. 72).
Entre o coletivo e o anonimato, o livro começou a ser pensado em 2011,
bem antes do recrudecimento das crises que assolam hoje nossos países. Nesse
sentido, e pensando que uma forma de fazer coletiva e anônima é uma
intervenção e uma resposta à crise, o Indicionário teria sido premonitório,
tristemente premonitório. Tomara ele, agora, com o inferno já entre nós, possa ser
uma forma, para além de nós, de resistirmos em nosso comum naufrágio, para
continuar, coletivamente, a escrever junto.

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