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Em "AfterDeath" o Inferno é a própria

Criação

“AfterDeath” (2015) é uma grata surpresa dentro da onda “recente” (já

dura quase três décadas) de representações da existência pós-morte

no cinema. Inspirado na peça teatral “Entre Quatro Paredes” (1944) do

filósofo existencialista Jean-Paul Sartre, “AfterDeath” consegue derivar

do existencialismo (“o Inferno são os outros”, frase que encerra a peça

sartriana) para o Gnosticismo (o Inferno é a própria Criação). Cinco

jovens despertam em uma praia desolada trazidos pela maré. Só existe

um farol e uma cabana, além de uma entidade ameaçadora, uma

fumaça negra. Lá descobrirão que estão mortos e num lugar que é

mais do que uma antessala para o Céu ou Inferno. Um filme sobre

como a culpa e pecado podem fazer parte de um jogo perverso criado

por alguém que não nos ama. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe

Resende.

Já foi o tempo no qual as representações da vida após a morte no

cinema se limitavam a locais definidos: ou o céu, ou o inferno. Hoje, a

representação fílmica mais comum é a do protagonista perdido em

variações do limbo entre a vida e a morte, ou desorientado em


alucinações e pesadelos como uma espécie de inferno psíquico ou

preso em um perverso sistema de pecado e punições.

Já discutido em uma postagem antiga do Cinegnose sobre o tema, a

pesquisadora Amanda Shapiro em sua tese de doutorado “You Only

Live Twice: The Representationof the After life, da Miami University

aponta que na atualidade vivemos o segundo pico de produções

cinematográficas sobre o pós-morte – clique aqui

(http://cinegnose.blogspot.com.br/2013/03/quem-voce-vai-

encontrar-depois-de-morrer.html).

O primeiro pico foi a década de 1940: Beyond Christmas (1940), A Guy

Named Joe (1943), A Matter of Life and Death (Stairway to Heaven,

1946) Here Comes Mr. Jordan (1941), Heaven Can Wait (1943), Cabin in

the Sky (1943), Angel on My Shoulder (1946), The Ghost and Mrs. Muir

(1947), Sunset Boulevard (1949) etc. Para Shapiro, a principal causa

seria o impacto na cultura das mortes de milhões de pessoas na

Segunda Guerra Mundial.

Com o fim da guerra e a expansão econômica com a sociedade de

consumo, rock e a pornografia, o tema passou a ser tratado de forma

esparsa pelo Cinema.


Desde os finais dos anos 1990 vivemos uma segunda e longa onda de

filmes sobre o pós-morte: Amor Além da Vida (1998), After Life (1998,

Japão), O Sexto Sentido (1999), American Beauty (1999), What Lies

Beneath (2000), Dogma (1999), Gladiator (2000), Final Destination

(2000), Um Olhar do Paraíso (2009), After Life (refilmagem, 2009, EUA),

A Nightmare on Elm Street (remake, 2010), Charlie St. Cloud (2010),

Enter the Void (2009), Devil (2010), e Hereafter (2010).

O pós-morte é plástico e solipsista

AfterDeath (2015) é mais um filme dessa longa segunda onda. Uma

produção interessante porque sintetiza a maioria das características

recorrentes dessas produções sobre as visões do outro lado da vida.

Desde o filme Amor Além da Vida, as representações das existências

pós-morte se tornaram mais “plásticas” e solipsistas: lugares criados

por projeções psicológicas como medo, culpa etc. ou por desejos e

sonhos.

Esses mundos no outro lado podem ser armadilhas solipsistas contra o

protagonista ou perversos sistemas que manipulam culpa, remorso e

arrependimento do que foi feito em vida.

A narrativa de AfterDeath é uma curiosa combinação de solipsismo no

melhor estilo A Passagem (Stay, 2005 - um jovem preso em um mundo

límbico criado pela culpa e remorso após um fatal acidente

automobilístico) com visões de protagonistas presos em um perverso

sistema cósmico: alguma coisa entre Enter The Void e Matrix.


Mais ainda, o roteiro da produção é inspirada na peça teatral do filósofo

existencialista Jean-Paul Sartre “Entre Quatro Paredes” (Huis Clos,

1944), conhecida pela famosa frase “o inferno são os outros” – três

personagens morrem e chegam ao Inferno. Porém, não há Diabo ou

fornalhas. Apenas um quarto fechado onde os três são obrigados a

conviver uns com os outros.

O Filme

Uma jovem chamada Robin (Miranda Rayson) acorda numa praia,

trazida pela maré. É noite e tudo que vê é um farol distantes numa

paisagem desolada, lembrando o visual da série River World - clique

aqui (http://cinegnose.blogspot.com.br/2010/08/morte-e-ressurreicao-

em-riverworld.html). Uma estranha e ameaçadora fumaça negra (ecos

também da série Lost?), soltados pavorosos grunhidos, está por perto.

Mais adiante, Robin vê uma cabana por algum motivo familiar.

Ao entrar, dá de cara com duas jovens (Lyvia – Lorna Brown – e Patricia

– Elarica Johnson) e um rapaz chamado Seb (Sam Keely) fazendo sexo,

enquanto o aparelho toca uma música em alto volume e ao lado uma

caixa repleta de garrafas de vodka. E no outro quarto, uma garota

chamada Onie (Daniella Kertesz) tenta se matar cortando os pulsos.

Mas sem sucesso porque, afinal, já está morta!


E ainda há aquela estranha fumaça negra entrando e saindo pelo teto,

agora atacando a todos. O impressionante design de som de Doug

Johnson é poderoso e assustador, tornando a atmosfera sombria e

imprevisível.

A princípio não se lembram como foram parar ali. Mas aos poucos,

juntando os pedaços de lembranças de cada um, descobrem o motivo

de estarem reunidos naquela cabana: todos estavam em uma casa

noturna lotada na qual ocorreu uma tragédia – o teto veio abaixo,

matando a maioria dos clientes.

Mas por que aquela cabana? Também começam a perceber que cada

cômodo é familiar – resquícios de memórias de quando eram vivos:

quartos onde moraram, a casa da infância etc. O que torna a cabana

uma espécie de colcha de retalhos da memória afetiva de cada um.

Além da ameaça da fumaça negra (alguma espécie de entidade

diabólica que parece se nutrir dos impulsos daquele grupo como sexo,

violência, culpa etc.) há o enigmático farol à beira do mar. Ele varre com

um facho de luz a paisagem desolada. Quando luz ilumina a casa,

produz um doloroso efeito em todos – caem no chão com  dores

terríveis, enquanto na mente passam flashes de fragmentos de

memórias da vida deixada na Terra.


À medida que o filme progride, revela uma trama bem desenvolvida que

à primeira vista pode parecer clichê: a ideia de que todos nós somos

julgados antes de ascender aos céus ou descer ao Inferno não é nova.

Nada que não tenha sido explorada antes em filmes como Um Olhar do

Paraíso (Lovely Bones, 2009), por exemplo.

Mas AfterDeath oferece uma nova perspectiva, superando inclusive o

existencialista desfecho da peça de Sartre: afinal, todos nós já estamos

no Inferno, obrigados a conviver com o outro.

É nesse momento que o filme combina a perspectiva PsicoGnóstica (os

personagens estão aprisionados em um mundo plasticamente

moldado segundo seus psiquismos) com a CosmoGnóstica – há

alguém que não os ama que os detém ali em um sistema perverso de

punição e culpa.

A mensagem CosmoGnóstica – alerta de spoilers à frente!

Eles estão correndo contra o tempo. Na verdade, aquele mundo pré-

purgatorial é apenas uma bolha entre milhares de outros pequenos

mundos de recém-egressos à pós-morte. E essas bolhas se

comprimem até explodirem. Eles precisam expiar seus pecados para

poderem sair daquele mundo-bolha, supostamente em direção aos

céus.
Como o leitor perceberá, a chave está naquela entidade negra que

vagueia pela cabana, nutrindo-se dos pecados. Através da entidade

descobrirão um perverso sistema que não permite perdão, redenção e

ascensão, como tradicionalmente descrevem as religiões.

A vida pura e livre de qualquer pecado é impossível: “Se roubo um lugar

no estacionamento, já é pecado! Se o bebê chora e exige calor, já é

egoísmo! Já está fodido, vai para o Inferno”, conclui perplexa Robin.

Assim é o sistema: aquilo que os personagens chamarão de “o seguro

da eternidade”.

O céu está vazio por que é impossível para um humano não pecar ou

agir de forma unidirecional. Certamente a bolha explodirá e todos

morrerão pela segunda vez: reencarnando para continuar o ciclo

vicioso infernal.

A mensagem CosmoGnóstica do filme lembra o monólogo final de Al

Pacino no filme O Advogado do Diabo (1999) quando a certa altura fala:


Deus gosta de observar. É um brincalhão. Ele dá aos homens os

instintos mais incontroláveis e dá esse dom extraordinário e depois o

que faz? Para seu prazer pessoal, numa cósmica e pessoal sessão de

risadas ele estabelece regras de contraste... veja, mas não toque...

toque, mas não prove... prove, mas não engula... Enquanto Deus rola de

rir! Um sujeito gozador! Um síndico desleixado!

Em AfterDeath, o inferno é muito mais do que o outro. Por isso o filme

deriva do Existencialismo do texto original de Sartre para o

Gnosticismo.

O Inferno é a própria Criação de um Demiurgo que mantém uma ordem

cósmica imutável, graças ao dispositivo do “seguro da eternidade”.

Ficha Técnica
Título: AfterDeath

Diretor: Gez Medinger, Robin Schmidt

Roteiro:  Andrew Ellard,

Elenco:  Miranda Raison, Sam Keeley, Daniela Kertesz, Elarica Johnson,

Lorna Brown

Produção: Acheron Films

Distribuição: Uncork Entertainment

Ano: 2015

País: Reino Unido

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