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Diaulas Costa Ribeiro


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Direito Médico e Biodireito

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1 O bolero do revel: crítica à proposta de reforma do


Júri: um direito ou uma imposição?
Código de Processo Penal publicada no Diário Oficial de
25/11/94
2 A reinvenção do Ministério Público: a história do futuro
Diaulas Costa Ribeiro
Promotor de Justiça
3 Código de procedimentos do Promotor de Justiça Professor Universitário
Criminal
4 DECLARAÇÃO DE BALI Discussões sobre o júri sempre começam e terminam com posições de sim ou de
5 DECLARAÇÃO DE HONG KONG não; guilt or not guilt.
6 Deuses, Monstros e a segurança pública
Nélson Hungria e Carlos Araújo Lima incorporam bem essa dialética. Os
7 Eutanásia: Viver bem não é viver muito
argumentos técnicos de Hungria e as razões apaixonadas de Araújo Lima nunca
8 Eutanásia: Viver bem não é viver muito conduziram a polêmica a uma conclusão. Na incerteza, a discussão prossegue
9 Habeas-Corpus no Brasil: casos concretos nos céus e o júri continua:
10 Homicídio durante o parto
11 Indulto necessário (ou causa mortis)
— Continua fazendo injustiças, como sempre! diz Hungria, afastado dos
problemas da terra há alguns anos, mas ainda convicto de suas opiniões antes
12 Júri: um direito ou uma imposição?
conhecidas.
13 Lei n.º 7.960, de 21 de Dezembro 1989
14 Mudança de hábito: uma beca para o Ministério — Continua fazendo justiça, fazendo justiça até quando faz injustiça! é a voz firme
Público de Araújo Lima, que entra no salão para a alegria dos seus antigos colegas.
15 Mudando o alvo das armas
16 O crime de estupro e o transexual Entre um abraço e outro, o assunto da pauta é o juízo final que se aproxima.
17 O crime de estupro e o transexual Hungria propõe que o julgamento seja jurídico; um tribunal constituído só por
juízes de tribunais supremos: ele mesmo, Abel Delgado, que presidiu o Supremo
18 O Ministério Público e o controle externo dos
procedimentos de reprodução medicamente assistida
de Portugal e um Lorde inglês, para não esticar muito a conversa. Araújo Lima e
19 Segurança cidadã e segurança do Distrito Federal
Alfredo Tranjan não abrem mão de um júri bem popular, formado inclusive por
algumas vítimas daqueles tantos que eles defenderam aqui na terra. Ou pelos
20 Sex-shop e tolerância zero: é proibido proibir!
próprios, desde que tenham feito a reabilitação. Roberto Lyra, Magarinos Torres,
21 Transexuais: a reabolição da escravatura e o Ministério Vilma Mendes e Décio Ferraz,[1] promotores para qualquer acusação,
Público
acompanham o debate com cautela, mas não escondem o desafio de enfrentar as
Becas Surradas de Araújo Lima e Alfredo Tranjan, como se fazia nos Grandes
Processos do Júri. Por enquanto, ainda não se decidiu de onde virá a justiça ou a
injustiça desse last but not least trial.

— Virá do júri! grita Araújo Lima, com a empolgação de início dos debates.

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— Der Jury nicht! arremata Hungria, como na época dos Comentários, quando só
escrevia em alemão para acabar com a má fama de que os penalistas não têm
cultura.

O doutor Pontes, a quem se atribuiu esse insulto, finge-se de morto; está mais
preocupado com os herdeiros do reino dos céus do que com essa “justicinha de
bacharéis”. Frederico Marques presidiu os trabalhos e não deu opinião. Mas que
não tem simpatias pelo júri, isso não tem.

— E nunca tive, e o senhor trate de registrar isso aí na ata, quero dizer, no artigo!
vocifera, como quem dá ordens a um escrivão.

No mundo inteiro se discute o futuro do júri como se se tratasse de um recém-


nascido. Com a origem perdida na história, a idéia de júri pode ser própria dos
ingleses, que a consideram um dos pilares do sistema judicial, no que remontam
pelo menos ao século XIII e à Magna Carta, quando foi incrementado para
substituir gradualmente as ordálias. Mas pode ainda ter sido importada pelos
invasores normandos de 1066.

Na Magna Carta, de 1215, o julgamento por um júri foi pensado como um direito
fundamental: «Nenhum homem livre será detido e/ou preso; esbulhado da sua
propriedade; exilado ou destruído de qualquer outra maneira...salvo por um
julgamento legal por seus pares conforme a lei local». Entretanto, historiadores
modernos acreditam que esta disposição refere-se à necessidade da decisão de
um juiz e não de um júri. Isso porque o papel original dos jurados era muito
diferente do que hoje se conhece. Como testemunhas que depunham sob
juramento, mas não tomavam qualquer tipo de decisão, os jurados eram oriundos
da mesma comunidade do acusado e tinham a função de determinar os fatos sob
julgamento, usando para tanto os conhecimentos de que dispunham sobre ele e as
circunstâncias locais. Por isso, não se pode deduzir da Magna Carta que a
expressão «julgamento por seus pares» seja uma referência aos jurados enquanto
juízes, se nessa época os jurados não julgavam.

Atualmente, os membros do júri (na Inglaterra são 12) são convocados para
proferir um veredicto imparcial, sem ter prévio conhecimento do acusado, numa
relação de anonimato que é conseqüência do desaparecimento das sociedades
medievais fechadas e do crescimento das cidades. Assim, faltando amparo
histórico, a idéia de julgamento por pares é irreal, além de saudosista, na medida
em que repete um tradição milenar. Nada obstante, ressalte-se que ela sustenta a
existência de júri no Brasil.

Mas não é só. Muitos juízes e historiadores têm descrito o júri como uma
salvaguarda da liberdade individual, usando frases típicas dos debates entre
promotores e advogados: «o júri é a luz que mantém viva a liberdade dos
ingleses» ou «o júri é o baluarte das nossas liberdades, a glória do Direito Inglês».
Todo esse romantismo tem servido de principal argumento dos defensores da
liberdade civil, dos profissionais do direito e dos parlamentares, para derrotar,

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desde 1970, as repetidas tentativas de se reduzir o direito de acesso a ele. A


última foi apresentada em 27/02/97 e teve origem nos trabalhos da Comissão Real
de Justiça Criminal, instituída quatro anos antes. Propondo aí retirar do júri o
julgamento de uma série de infrações, incluindo furto, furto em residência, roubo,
roubo com lesão corporal e algumas acusações de obscenidades, esta foi a mais
controversa das 352 recomendações feitas pela comissão, não merecendo
aprovação. Os juízes deram boas vindas às propostas que visavam reduzir a
demora nos julgamentos, mas disseram que em vez de restringir o direito de optar
pelo júri, reclassificariam algumas infrações, de forma que elas só pudessem ser
julgadas por juízes togados.

Jack Straw, à época o The Shadow Home Secretary, hoje no poder como Ministro
do Interior e às voltas com o caso Pinochet, disse que os trabalhistas davam boas
vindas a muitas das recomendações daquela Comissão Real, particularmente
àquela que reduzia de 18 para 17 anos de idade o limite exigido para o julgamento
por um tribunal de adultos, em vez de uma corte juvenil. Mas qualquer restrição ao
direito de ser julgado pelo júri constituiria um erro: «Se um policial ou um
parlamentar ou ainda um Ministro de Estado for acusado de uma infração penal,
será que ele não desejaria ser julgado pelo júri? Como é óbvia a resposta, por que
negar aos outros o direito a essa opção?»

Retomo agora a idéia do título: — O júri é um direito ou uma imposição


constitucional?

Professores e alunos de Processo Penal dirão que ao júri compete julgar os crimes
dolosos contra a vida, por determinação constitucional. E de tal resposta conclui-
se que a pergunta não foi compreendida.

— O acusado de crime doloso contra a vida tem a alternativa de ser julgado por
um juiz togado, em vez de jurados?

A resposta, pela prática atual, só pode ser não. O júri, na leitura feita pela doutrina
e pela jurisprudência atualizadas, é obrigatório e se restringe ao julgamento dos
crimes dolosos contra a vida.

Esta resposta não é fiel ao texto constitucional. Em primeiro lugar, o júri, na


Constituição Federal, é direito e garantia do indivíduo; não é órgão do Poder
Judiciário; está inserido no artigo 5.º e não no artigo 92. A propósito, em
praticamente todas as Constituições estaduais, o júri foi inserido no título do Poder
Judiciário, como órgão deste Poder. Mantiveram na íntegra os textos anteriores à
Constituição Federal de 1988, sem perceber a reforma da lei, sem alterar seu
texto. Não notaram que uma idéia velha passou a exigir espírito novo.

Ainda para ilustrar, a Constituição portuguesa, uma das mais bem concebidas
constituições deste século, graças, principalmente, aos esforços de Jorge Miranda,
Canotilho e Vital Moreira, trata do júri no título dos Tribunais (Art. 210), que
equivale ao nosso Poder Judiciário. Não é direito individual.

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Se o júri no Brasil é um direito garantido, se é um direito individual por


classificação constitucional, não pode ser impositivo; não pode ser obrigatório. A
nova doutrina dos direitos e garantias individuais contempla a renúncia a eles. A
vida é um direito fácil de se escrever em qualquer lei. Mas há um direito à morte,
tão importante quanto aquele, e que já inspira tratados, revendo opiniões
incompatíveis com o atual estágio do Estado Democrático de Direito. O domicílio é
um direito individual, como é direito individual abrir mão da privacidade pessoal, e
assim por diante.

No Reino Unido, há cerca de 100 anos existe o direito de opção pelo júri, como
uma alternativa aos tribunais de juízes togados, à exceção da Escócia, onde
apenas o Ministério Público tem essa alternativa. Em Portugal e nos Estados
Unidos, a acusação e a defesa também podem exercer essa escolha.

A Constituição Federal autoriza, como regra geral, o julgamento dos acusados


pelo Poder Judiciário. A garantia individual é o direito de opção pelo julgamento
popular. O constituinte estabeleceu uma garantia mínima, mas não restringiu as
possibilidades de julgamento por jurados. Ainda que se tenha aprendido e repetido
o contrário, não há proibição constitucional que impeça o legislador de abrir a
prerrogativa do júri a todos os crimes previstos no Código Penal e nas leis
especiais. Nem para questões cíveis. O que o legislador ordinário não pode é
excluir da competência do júri os crimes dolosos contra a vida. Mas pode incluir
outros. E caso se troque o verbo assegurar por garantir, o texto ficará ainda mais
evidente. Garante-se o júri para julgar os crimes dolosos contra a vida, em relação
a qualquer lei infraconstitucional.

A conseqüência dessa garantia é bastante clara: se o júri é uma instituição


reconhecida como garantia individual, o acusado tem o direito de não optar por
ele, sob pena de isto constituir uma obrigação ao invés de assegurar um direito.

Outro argumento muito utilizado, principalmente por promotores de justiça em


busca de simpatia dos jurados, é o de que o júri é o tribunal do povo, o tribunal da
sociedade, como se a participação desta sociedade no julgamento fosse uma
garantia a ela assegurada, enquanto vítima. Isto é um sofisma sem amparo
constitucional. O júri não é garantia da sociedade vitimada; é garantia do acusado.
Na Escócia, a garantia é da sociedade, tanto que só Ministério Público pode optar
pelo júri. Na Constituição espanhola de 1978, o júri foi instituído expressamente
como garantia da sociedade. No Brasil, a legislação não poderá conceder ao
Ministério Público o direito de opção pelo júri, sob pena de inviabilizá-lo como
garantia individual.

Muitos dirão que essa leitura constitucional é ingênua e simples. É óbvio que o
acusado irá optar pelo júri, através do qual tem maiores chances de absolvição.
Logo, a obrigação e a alternativa única são uma coisa só.

Essa conclusão feita no Brasil não tem base fática. É dedução, é achismo.

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Ninguém perguntou ao acusado se ele quer ou não ser julgado pelo júri. E isso
deveria ocorrer no interrogatório, sem direito a retratação, como em Portugal. No
estrangeiro, a experiência é outra. Na Inglaterra, por exemplo, um acusado opta
pelo júri a cada 200 casos. E dos processos a ele submetidos, apenas um em
cada quatro foi escolha da defesa; os outros três foram da acusação. Pesquisas
feitas pela mencionada Comissão Real de Justiça Criminal concluíram que 27%
dos que escolheram o júri tinham a intenção, no início do processo, de confessar.
Próximo do dia do julgamento, 83% tinham confessado algumas ou todas as
acusações. Metade dos que optaram pelo júri acreditou que receberia penas mais
leves e enganou-se.

Em Portugal, em mais de 20 anos de júri, os julgamentos pouco passam de duas


dúzias, a maioria por opção do Ministério Público.

O costume de ser julgado por pares tem entre nós a forte tradição do foro por
prerrogativa de função dos membros dos tribunais e outros cargos a eles
assemelhados. Os iguais julgam os iguais. É por isso que um Ministro do Supremo
tem o direito de ser julgado nos crimes comuns por seus pares. No Judiciário, eles
não têm outros iguais e por isso julgam-se. Este primado não foi inventado aqui.
Como visto, foi inspirado na Magna Carta. Portanto, se os iguais julgam os iguais
no Supremo, não havendo distinção entre um homicídio e uma lesão corporal
culposa para a fixação da competência, os iguais devem julgar os iguais nos
demais escalões sociais. Como já houve casos de juízes e promotores
renunciarem ao foro privilegiado, à prerrogativa constitucional de ser julgado pelos
iguais, qualquer acusado de crime doloso contra a vida pode, no atual sistema
constitucional, abdicar do julgamento pelo júri e ser julgado por um juiz togado. Se
será bom ou ruim, não cabe discutir; trata-se aqui tão-somente de um direito a ser
exercido pelo seu titular.

Concluindo, todos os condenados pela prática de crime doloso contra a vida, após
5 de Outubro de 1988, têm o direito a essa opção retroativa, o que implicará novo
julgamento por um juiz togado. Se isto trará chances de melhorar sua situação é
problema que cada um avaliará, sem direito a alegar ne reformatio in pejus.

É óbvio que os tribunais não têm interesse nisso pelas dificuldades na


implementação destas conclusões. Mas isto não minimiza a importância do
assunto: é garantia de um direito individual, num Estado Democrático de Direito.
Mais cedo ou mais tarde, isso irá acontecer. A menos que se mude a Constituição.

Esta foi minha última conversa com Carlos Araújo Lima. Ele, empolgadíssimo com
a idéia, gostou do que ouviu. E expressou-se como resumia seu modo de vida: —
Se a coisa é boa, digo que é boa. Se é ruim, digo que é boa. Portanto...

Copyright © 1998

[1] Promotores do MPDFT, já falecidos.

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