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Teresa Pires do Rio Ca\ceirz Cidade de muros Crime, segregacdo e cidacen'2 e~ S20 rel. Pe — editoraEa34 INTRODUGAO, ae aolenets € 0 medo combinam-se a processos de mudanga social nas cida- social, Nae eaneas Brando novas formas de segregagao espacial ediscriminacao social. Nas duas liltimas décadas, em cidades tao diversas como Sao Paulo, Los Angeles, Johannesburgo, Buenos Aires, Budapeste, Cidade do México e Miami, cs Fee eae classes mais altas, tém usado o medo nto novas tecnologias de exclusao social Quanto sua retitada dos bairros tradicionais dessas cidades. Em geral, grupos que se sentem ameagados com a ordem social que toma corpo nessas cidades constroem a ees Para aed , trabalho, lazer e consumo. Os discursos gitimam essa retirada e ajudam a reproduzir © medo encontram diferentes referéncias. Com freqiiéncia, dizem respeito ao cri- me e especialmente ao crime violento. Mas eles também incorporam preocupacdes raciais e étnicas, preconceitos de classe e referéncias negativas ao pobres e margi- nalizados. Invariavelmente, a circulacao desses discursos do medo e a proliferacao de praticas de segregacao sé entrelacam com outros processos de transformacio social: transigées democraticas na América Latina; pés-apartheid na Africa do Suls “pés-socialismo no leste europeu; transformacées étnicas decorrentes de intensa imigragao nos Estados Unidos. No entanto, as formas de exclusao e encerramento sob as quais as atuais transformagGes espaciais ocorrem sao tio generalizadas que se pode tratd-las como parte de uma formula qiie elites em todo o mundo vém ado, tando para reconfigurar a segregado éspacial de dias cidades. _\ TTS Este livro focaliza 0 caso de Sao Paulo e apresenta uma andlise da forma pela qual o ‘crime, o medo da violéncia e o desrespeito aos direitos da cidadania tém se combinado a transformagées urbanas para produzir um novo padrao de segrega- ¢4o espacial nas duas ultimas décadas. Esse € 0 periodo da consolidagao democr- tica. O crescimento do crime violento em Sao Paulo desde meados dos anos 80 gerou medo e uma série de novas estratégias de protecao e reagdo, dentre as quais a cons- trugdo dos muros é a mais emblematica. Tanto simbélica quanto materialmente, essas estratégias operam de forma semelhante: elas estabelecem diferencas, impdem divisdes e distncias, constroem separagées, multiplicam regras de evitagao e ex- clusio e restringem 0s movimentos. Muitas dessas operagGes sfo justificadas em conversas do dia-a-dia cujo tema é 0 que chamo de fala do crime.,As narrativas cotidianas, comentarios, conversas e até mesmo brincadeiras e piadas que tém 0 crime como tema contrapdem-se ao medo e experiéncia de ser uma vitima do crime e, ao mesmo tempo, fazem o medo proliferar. A fala do crime Promove uma reorga-_ nizagao simblica de um universo que foi perturbado tanto pelo crescimento do crime quanto por uma série de processos que vém afetando profundamente a sociedade Faves processor ineliems POF HM Tao, a doy, por outro, aH do ent nae! mnalisind, SUbstitttiGao de inns, le, te Hee egao do Estado Na ECONOMIA, G wet reves OULFOS PFOCESSOS, QUAND fe itimar ly otando: seguranga privada ie ee ntir oO. ‘olameng, ; les que sio considerados perigosor, nto dagqucle reordenagio simbélica do mundo ela. 2 pereersi de certos BFUPOS COMO Perigosse o bem e 0 mal ¢ criminaliza cory sso social dominan brasileira nag tiltimas dec ad. 2ag40 politica ey envolvime acentnad. s que pet rados por modelo de dese protecionismo ena erime ofereee HAE decadéneia social § reagao que se vern ad me ramento e distane fala do crime constre 7 preconceitos ¢ naturalizando 2, divide o mundo entre 0 be : os rias sociais. Essa criminalizagao simbéliea é um pros so soil dominant vnuido que até as proprias vitimas dos esteredtipos (08 pobres, por exempia” Pee ae a manda que ambiguamente. Na verdade, 0 universo de Pam Por repro, is acusagoes de mau comportamente) oferece UM cory otsrilno cual os esterestipos eireulam ea cisriminagio social € moldada apenas em Sio Paulo, mas em qualquer lugar. Obviamente, esse universe doce nf €o dinico a gerar discriminagio nas sociedades contemporiineas, Neyo sua investigagao & especialmente importante porque ele fomenta 0 desenvoln to de dois novos modos de discriminagao: a privatizagao da seguranga ea ral de alguns grupos sociais em enclaves fortificados. Esses dois processos ewe dando as nogdes de pablico e de espago paiblico que até bem recemtemente minavam em sociedades ocidentais. A privatizaso da seguranca desafia 0 monopélio do uso legitimo da for Estado, que tem sido considerado uma caracteristica definidora do Esta, moderno (ef. Weber 1968: 54-6, ¢ também Tilly 1975 e Elias 1994 [1939] <, ilkimas décadas, a seguranca tormou-se um servigo que pode ser comprade dido no mercado, alimentando uma indiistria altamente lucrativa, En meals, de pole inero de vigilantes empregados em seguranca privada ultrapars., modo simy Gra-Bretanha e no Canada (United States House 1993: 97, 135; Bayley e Shering a ns sobretudo porque, mesmo sob um" . mente age fora dos limites da lei, cometen-? tem optado por Servicos de Nee um niimero crescente de moradores de $40 past explicitamente ilegais) ¢ chegene Privada (freqiientemente irregulares o¥ ** aus . 3a Ma o Panes r j es ou CCIFOS, Sea por acdes policiare exresth aE Por justica privada (seja por meio i! * contrariam, ou até Ra tolam, os direitos dos cidaddios, No entante eee ACS Pela populagio, que em viirias ocasioes considera aljuns di r dadania 1 a alguns direitos de ci- > importantes ¢ até mesino censuuriveis, como fea each do ataque aos direitos humanos que analics nos capitulos subseqiientes. Essa ampla violagio dos diteitos de cidadania indica os hina de eon lid gio demoeritica e do estado de diteito no Brasil. O universe dena consol la um desrespeito generalizado por direitos ¢ vid logitima a cidadania, Esse destespy ta 0 principal de te na questao, rime nao s6 reve: nas também diretamente des- . to pelos direitos individuaise pela justiga represen: > afio & expansaio da democracia brasileira para al politico, onde ela foi consolid: m do sistema . liltimas décadas. Mas a Privatizagao da segu- nga também apresenta um desafio para democracias tradicionais ¢ consolidadas, como a dos Estados Unidos, na medida em que seus cidadaos cada vez mais usam seguranga privada ¢ enclaves privados ¢ estruturam suas vidas cotidianas de for, mas que excluem a presenga de servigos e autoridades piiblicas, deslegitimando-os. O novo padrao de segregagio urbana baseado na cri Gio de enclaves fortifi- cados representa o lado complementar da privatizagao da seguranga e transforma: s40 das concepgdes do piiblico. Embora a ségregacio tenha sido sempre uma ca- racteristica das cidades, os instrumentos ¢ regras que a produzem mudaram consi deravelmente ao longo do tempo. Obviamente, eles também mudam de cidade para ~ cidade, conferindo a cada uma sua identidade particular. No entanto, & possivel identificar padrdes de organizagio e segregagao espacial e seus instrumentos, Esses padrées constituem repertérios dos quais as mais diversas cidades tomam elemen- tos para moldar seus espagos. Ha muitos exemplos desses modelos amplamente di- fundidos e que servem como a estrutura basica sobre a qual diferentes cidades de- pois desenvolvem seus espacos: a Lei das Indias, as ruas-corredores, os bulevares de Haussmann, as cidades-jardins e a cidade modernista dos CIAM.! Os enclaves fortificados que estao transformando cidades contemporaneas como Sio Paulo exemplificam a emergéncia de um novo padrio.de organizacio das diferengas so: “Giais no espago urbano. E um modelo que vem sendo empregado pelas lasses mé- ~ dias é altas nos mais diversos paises, gerando um outro tipo de espago pitblico e de interagées dos cidadaos em puiblico. Esse novo modelo nao usa instrumentos total- mente novos nem em termos de projeto nem de localizagao. Diversas caracterist cas de projeto sio modernistas, e os enclaves normalmente localizam-se nos subtir- bios, onde as classes médias j4 vém se isolando ha um bom tempo em virias partes do mundo. Porém, o novo modelo de segregagio separa grupos sociais de uma for- ma téo explicita que transforma a qualidade do espago puiblico. ve ific: 5 tizados, fechados e monitorados, Os enclaves fortificados so espagos privat : eee destinados a residéncia, lazer, trabalho e consumo. Podem ser shopping Sy da Espanha para estabelecer regeas 1 A Lei das Indias foi proclamada em 1573 por Filipe IT Ver capitulo uniformes para o planejamento de cidades a serem criadas nas col6nias espan holas. nif jament des a s jadas nas colénias es} 8 sobre o modelo das cidades-jardins, CIAM refere-se aos Congrés Internationa! x d’Architecti lelo das cidades-jardins. fi Moderne, que criaram a referéncia para 0 planejamento de cidades modernistas. Brasilia foi ins: joderne, ia pirada nesse modelo (ver Holston 1989). ou condominios resideneias, acm 4 : os comer i irbanos mai: fo Mlle ee heterogeneidade social dos bairros t MAIS ANtipos « bes lauc rermenaletecoe “margins”, 08 SeM-1E0. Por sereny | ra os pobres, os “ | rem abandoni-los para 0s 1 ivadamente, ainda que tenhar fechados cujo acesso é controlado Beis oe mae Benes down vo ¢ semipublico, cles transformam profundame mente os ideas *” Public, Na verdade, criam um espago que contradiz diretai o1eAIS de beter, Na verda a ar tanto 0 ¢. is ec empresariais, Dreg M Use ¢ i j a organi ot neidade, acessibilidade ¢ igualdade que ae [ sani ar tanto oe blico moderno quanto as modernas democracias. Privatizagao, Teamentos ciamento de fronteiras e técnicas de distanciamento criam um outro tipo dee. ptiblico: fragmentado, articulado em termos de separagdes ae las e Seguranc fisticada, e no qual a desigualdade é um valor estruturante. No novo tipo dee : 0 piiblico, as diferengas nao devem ser postas de lado, tomadas como itrelevanr. negligenciadas, Nem devem também ser disfargadas Para sustentar ideologia, & igualdade universal ou de pluralismo cultural. O novo meio urbano reforca e yz riza desigualdades e separagées e é, portanto, um espaco.publico nao-democritic, € ndo-moderno. O fato de esse tipo de organizagao do espaco publico se espalh pelo mundo inteiro no momento em que muitas sociedades que o adotam pass: Por transformagées como democratizacio politica, fim de regimes racistas e cre: heterogeneizacao resultante de fluxos migratérios, indica a complexidade das | es entre formas urbanas e formas politicas. Além disso, indica que 0 espago u:- bano pode ser a arena na qual a deiiiottatizacao, a equalizagao social e a expar dos direitos da cidadania vém sendo contestados nas sociedades contemporain Dessa forma, este livro analisa o modo pelo qual a desigualdade social é reproduz em cidades contempordneas e como essa reproducado contradiz processos que, ¢ teoria, deveriam eliminar disc riminagaoé autoritarismo. O fato dé que encla : = nn ~enn i tificados e privados sao uma caracteristica tanto de Los Angeles como de Sao Pat tica apenas de sociedades P6s-coloniais. O novo modelo que eles representam p* Tece ter se disseminado amplamente, Os desafios que ele apresenta para a dem Cracia € a cidadania nao se restringem as Sociedades democratizadas recentem® F é amici ‘ago também um breve Tesumo das transformacdes politicas, sociais e econdm"” no Brasil dos anos 80 ¢ 90. O capi efi ang atl * O capitulo 2 trai cificos a culados pela fala do crime a ta de alguns dos temas espe

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