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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO
CAMPUS XIII – ITABERABA
COLEGIADO DE PEDAGOGIA

CANDOMBLÉ: PERCEPÇÕES E VIVÊNCIAS DOS MENINOS DO AXÉ

Autor: Danilo Reis de Matos Oliveira1

Orientadora: Maria das Graças Rabelo2

Artigo apresentado ao Departamento de Educação,


Campus XIII, Itaberaba, da Universidade do Estado da
Bahia, como parte das exigências para a obtenção do título
de Licenciado em Pedagogia.

ITABERABA-BA
2014

1
Graduando do curso de Licenciatura Plena em Pedagogia: docência e gestão de processos educativos, pela
Universidade do Estado da Bahia – UNEB – Campus XIII. Professor de filosofia e sociologia na rede municipal de
ensino de Itaberaba.
2
Professora Assistente da UNEB, Campus XXIII – Itaberaba – Ba.

1
Candomblé: percepções e vivências dos Meninos do Axé

Danilo Reis de Matos Oliveira3

RESUMO:
O presente artigo apresenta os resultados da investigação sobre as percepções e vivências dos
Meninos do Axé sobre o Candomblé, no município de Itaberaba- BA. O estudo teve como referencial
teórico os autores Pierre Bourdieu, Janaína Azevedo, Kabengele Mununga, Vivaldo Costa Lima para
levar ao entendimento da trajetória dos negros no Brasil, a tentativa de desculturação e a
demonização da religiosidade africana por meio da difusão de estereótipos em relação aos negros, os
quais, não ficaram restritos às ruas, adentrando também o espaço escolar. Os documentos oficiais
elaborados pelo Ministério da Educação, que legislam sobre as questões étnico-raciais contribuíram
para elucidar os princípios norteadores sobre o tema, e ainda, os conteúdos sobre religiões, no
currículo escolar, do Município, revelaram alguns elementos pra refletir sobre o lugar da religião de
matriz africana na escola. Esse trabalho buscou a compreensão dos Meninos do Axé, alunos
praticantes do candomblé, diante da discriminação dentro e fora da escola, bem como as suas
percepções acerca da sua religião. O estudo concluiu que os Meninos do Axé percebem o candomblé
como lugar de diversão, aprendizado, resistência e, valorização da cultura.

PALAVRAS-CHAVE:

Candomblé – Escola - Preconceito.

INTRODUÇÃO:

Desde criança, cresci em uma família cristã-católica, seguidora dos seus


ensinamentos. Sempre ouvia falar dos candomblés como sendo locais onde
imperava a maldade. Era comum ouvir: “é coisa do diabo”. E assim cresci achando
que o que diziam era verdade.

Em 2008 um amigo iniciado4 em um terreiro de umbanda convidou-me para


participar de uma festa num terreiro de um pai de santo amigo seu. Hesitei, mas, por

3
Graduando do curso de Licenciatura Plena em Pedagogia: docência e gestão de processos
educativos, pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB – Campus XIII. Professor de filosofia e
sociologia do município de Itaberaba.
4
Pessoa que passou pelos rituais introdutórios na religião. Na Umbanda a iniciação se dá por meio
de “batizados” e outras obrigações, no candomblé Ketu, Angola e Jêje, a iniciação começa com o
ritual do Borí (oferenda ao ori - cabeça) e se necessário far-se-á a feitura de santo por meio da
raspagem e catulagem, que por serem fundamentos religiosos não serão aqui explicados.

2
curiosidade, resolvi ir. Chegando lá, era uma festa de Exu Pomba-gira Cigana5. Para
mim foi um susto: sempre ouvi dizer que pomba-gira era um espírito das trevas que,
perseguia, matava e cometia diversas atrocidades contra inocentes, mas, não tinha
mais como voltar atrás e lá fiquei, percebendo o ritual religioso construindo outro
olhar.

Iniciei-me em um terreiro de umbanda e posteriormente, em terreiro de


Candomblé de nação Angola. Sentia-me bem até começar o preconceito,
principalmente na escola. Na época, eu era estudante do curso de magistério, no
ensino médio. Vi professores que outrora eram meus amigos se virarem contra mim
ao saberem que tinham um aluno “macumbeiro”. Os que não me rejeitaram, sempre
que conversavam comigo era pra me aconselharem a sair dessa religião, por eles
incompreendida. Foi difícil estudar percebendo os olhares desconfiados de alguns
colegas e professores.

Formei-me professor e comecei a lecionar em uma escola da prefeitura do


Município de Itaberaba. Em maio de 2010 fui requisitado para lecionar em uma
escola da periferia de Itaberaba. No terceiro dia de aula, quarta-feira, fui para a sala
usando um fio de contas vermelho e no dia seguinte, quinta-feira, fui utilizando um
fio verde, já que pela tradição negra cada dia da semana é dedicado a um orixá 6.

Ao chegar, antes mesmo que começasse a aula, um aluno dirigiu-se a mim e


perguntou: “Professor! Por que seu colar de hoje é diferente do de ontem?”.

Fui pego de surpresa, mas respondi a ele que era porque eu tinha como
costume usar fios de contas diferentes para cada dia. Entretanto, não sabia que
aquela criança fizera esta pergunta, mas sabia de todo fundamento que aquele
acessório religioso tem, afinal, em conversa com o aluno, descobri que tanto ele
quanto a sua mãe eram iniciados em um terreiro de candomblé.

Essa pergunta representou uma tentativa de aproximação deste aluno, ao


mesmo tempo em que ele reconheceu em mim o acessório religioso, percebi que ele

5
Representação feminina do Orixá Exu que, na cultura africana representa os caminhos e é o Orixá
mais próximo dos seres humanos.
6
A quarta-feira é dedicada a Iansã; A quinta-feira, a Oxóssi. Por isso as cores dos fios de conta eram
diferentes: a conta vermelha para Iansã e a verde para Oxóssi.

3
não usava nada que o identificasse como sendo praticante de religião de base
africana na escola, supostamente por medo do preconceito.

A discriminação em relação ao negro e a sua religião é um problema ainda


presente na sociedade brasileira, muito embora, seja a cultura africana uma das
matrizes formadoras do seu povo. Tal fato evidencia-se tanto por consequência da
colonização europeia, no Brasil, quanto na pós-abolição, na qual o povo negro não
se viu livre dos preconceitos entranhados por anos de colonização.

Durante muitos anos os africanos foram marginalizados no Brasil. Sua cultura


e, sobretudo, sua religiosidade foram deturpadas e mal entendidas por aqueles que,
pela força, os dominavam. Para os africanos a religião é indissociável da vivência e
consequentemente, esta é responsável por fornecer os valores, regras que regem a
educação e sociedade.

O preconceito em relação às religiões de matriz africana inicia-se com a


demonização7 de sua religiosidade por parte dos conquistadores portugueses que
temiam a sua prática e difundiam o culto aos diabos. Esta ideia de que as religiões
de base africanas prestam culto satânico foi difundida, principalmente, em função da
catequização dos brasileiros pela igreja católica, que coibia todo culto de base
africana.

Nesse sentido, é muito difícil assumir-se negro em uma sociedade, que o


estereotipou das formas mais pejorativas possíveis. A escola, por sua vez, funciona
como um aparelho de reprodução ideológica da sociedade, transmitindo por vezes
os falsos conceitos vigentes e validando estereótipos preconceituosos em relação ao
negro e sua religiosidade.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB de nº 9394/96) garante a todos


os cidadãos brasileiros, igualdade no acesso a educação pública, bem como
assegura os meios de sua permanência na comunidade escolar, em seu artigo
terceiro. Contudo, historicamente, o povo negro sempre esteve à margem da
sociedade, e como a escola tem um modelo eurocêntrico, acaba não favorecendo a
permanência do negro, que se sente excluído e fora do padrão por ela estabelecido.

7
Ato de demonizar. Aludir à religião dos negros a cultos satânicos.

4
Todavia, a escola também é instrumento de mudanças, cabendo a ela
propiciar o contato com diferentes culturas, ideias e reflexões de modo a refazer os
conceitos preconceituosos em relação ao negro. Para Cunha Junior (2009; p.97) “a
educação pluralista deve garantir os conhecimentos sobre as diversas culturas e
religiões da humanidade”.

O caminho metodológico utilizado para realização deste estudo foi a pesquisa


qualitativa, que se caracteriza pela análise de fatos, sociais, e a estes são atribuídos
significados pelos sujeitos da pesquisa. Essa modalidade de pesquisa tem sua
aplicação nos campos de diferentes estudos, entre eles a antropologia, a sociologia,
a educação. (CHIZZOTTI, 2003).
Através de um grupo focal8 foram entrevistados três meninos e duas meninas
praticantes da religião africana, candomblé, com idades de 10 e 15 anos, estudantes
de 5ª e 8ª séries do ensino fundamental II, oriundos de uma escola da rede
municipal de ensino de Itaberaba, todos residentes neste município. Aqui neste
trabalho os chamarei de “Meninos do axé”. O termo “menino” fora utilizado para
referir-se tanto aos meninos quanto às meninas, não apenas por uma questão de
regra de gramatical, pois sabe-se que ao se referir à pessoas de gêneros diferentes
prevalece o masculino; mas, seu uso se deu por uma questão cultural, tendo em
vista que nos candomblés é comum usar o termo “menino” para referir-se a qualquer
criança que participe das cerimônias religiosas, especialmente nos “carurus de sete
meninos”.
Os entrevistados, além de estudar trabalham. Os três meninos vendem e
entregam cestas básicas e o outro como ajudante em uma padaria. As meninas não
trabalham. Os sujeitos desta pesquisa serão identificados neste trabalho com seus
nomes fictícios a fim de preservar as suas identidades. Usar-se-ão os nomes Ana,
Maria, João, José e Antônio para identificá-los.
Diante desta experiência surgiu a inquietude em entender como os alunos e
alunas, praticantes do candomblé percebem sua religião: seus rituais, o culto aos
orixás, suas regras, princípios e valores, bem como se sentem ao ter que omitir,
muitas vezes, a identidade religiosa no convívio com amigos e colegas na escola e,
conviver com o preconceito dentro dos muros escolares.

8
Técnica de coleta de dados que se dá por meio de entrevista coletiva, cujo objetivo é obter muitos
dados rapidamente, o que não seria possível com entrevistas semiestruturadas.

5
Para que se compreenda essa discussão, o presente trabalho foi dividido em
tópicos. O primeiro tópico tratará da história da religião africana no Brasil. O
segundo, que se divide em dois subitens, abordará a percepção da religião pelos
meninos no terreiro, na rua e na escola, buscando compreender como estes
espaços atuam na formação destes alunos e alunas de candomblé.

2. A RELIGIÃO AFRICANA NO BRASIL

A palavra religião é de origem latina, vem de “religio”, que se traduz em


“prestar culto a uma divindade”, “ligar novamente” ou simplesmente “religar”.
(AZEVEDO, 2010, p.7). Sendo assim, entende-se como religião as crenças e valores
inerentes do que o ser humano vislumbra como sobrenatural, seus rituais e códigos
morais que derivam destas crenças A função da religião é ligar o homem ao
sobrenatural.

A religiosidade transcende a religião. Enquanto a religião apresenta-se como


um conjunto de regras e doutrinas a serem seguidas, ela é a maneira como o
homem se relaciona com o transcendente. Nem sempre o ser religioso tem uma
religião definida, pois a religiosidade está voltada ao que se crer e essa crença não
obrigatoriamente deve estar diretamente ligada a uma doutrina. Nesse contexto é
que nascem as religiões de matriz africana, que trazem a espiritualidade do culto
aos ancestrais, culto este também presente em outras culturas, como a ameríndia.

Ao falarmos de religião, estamos nos referindo a um conjunto de crenças


relacionadas com aquilo que a humanidade considera como sobrenatural,
divino, sagrado e transcendental, bem como o conjunto de rituais e códigos
morais que derivam dessas crenças. (...) nenhum ser humano,
especialmente no que concerne aos deuses, é detentor de qualquer
verdade universal. A verdade que nos liga ao transcendente é única e
verdadeira apenas dentro de nossas almas (AZEVEDO, 2010, p. 11).

6
A África não é um continente homogêneo, por isso muitas são as culturas e
religiões destes povos. As religiões de base africana 9 , como a umbanda e o
candomblé, se caracterizam pelos seguintes aspectos: a existência de um Ser
supremo, de elementais 10 ligados à natureza (orixás, inquices e voduns) danças
ritualísticas, o fetichismo (oferendas, remédios naturais, amuletos, incorporação de
espíritos), culto às entidades por meio do sacrifício animal e a crença na vida após a
morte.

Existe uma crítica ferrenha aos sacrifícios de animais que são realizados nos
cultos de candomblé. Mas, o sacrifício tem papel fundamental na ritualística. Mesmo
assim, os próprios praticantes da religião têm consciência que é preciso ter limites,
pois acima de qualquer coisa é preciso ter “respeito à vida que ali está sendo
imolada” (AZEVEDO, 2010, p.136). É infundada a afirmação de que os sacrifícios
podem contribuir para extinção de alguma espécie, pois os animais utilizados nos
seus rituais são domesticados e servirão de alimento, como galinhas e cabras, por
exemplo. Animais selvagens não são utilizados nos rituais por conservarem uma
energia que pode causar desequilíbrio no ritual. Azevedo (2010, p.136), contribui
para esta discussão ao afirmar que:

(...) é um grande equívoco falar de ecologia ao nos referirmos aos


sacrifícios uma vez que eles são feitos apenas com animais que servirão de
alimento (...) Muitas pessoas assumem esse ponto e fazem pressão sobre
os centros religiosos sem saber que não ocorre sacrifício em que o sangue
não seja recolhido ou derramado sobre um lugar específico, pois ele é o
liquido especial que contém a vida; não ocorre um sacrifício sério sem que
sejam retirados apenas os órgãos internos que servem de iguaria ao orixá
ou entidade, para serem cozidos de maneira bastante específica, e a
cabeça, aquilo que simboliza a consciência e a mente que nos aproxima do
transcendente; a carne é toda aproveitada, em geral dentro da própria
Casa, onde é limpa e servida como alimento aos presentes – seja no dia-a-
dia, ou seja, nas festas.

Os povos africanos viam a alimentação como um ato sagrado. Ainda Azevedo


(2010, p.135-137), contribui para a compreensão da questão ao dizer “por isso os
deuses, espíritos naturais e antepassados também comem”. O sacrifício é

9
Usa-se o termo por que estas são religiões surgidas nos territórios colonizados, tendo como base a
religiosidade africana.
10
Espíritos ligados aos elementos da natureza: terra, água, fogo e ar.

7
necessário para equilibrar o axé 11 . Para os Meninos do axé, as oferendas e
sacrifícios são necessários: “pros orixás se sentir bem, pro orixá comer e estar se
alimentando... dá comida ao santo da pessoa pra que o Orixá ajude a matéria”.

Como ápice da religião está uma divindade criadora do universo, ao contrário


do que propagam as religiões cristãs, pois as religiões de matriz africana cultuam um
único Deus. Portanto, estas são monoteístas, “com uma hierarquia organizada
abaixo do Deus único” (AZEVEDO, 2009, p. 19). O culto aos Orixás12 é secundário.

Os orixás são os espíritos ancestrais divinizados, que regem os elementos


ligados à natureza. Eles são a própria natureza. Sua função de proteger o seu filho,
estando abaixo do Deus Supremo. Já os guias, são espíritos ancestrais
desencarnados, em processo de evolução espiritual, que agem por meio da vibração
de um orixá.

(...) vemos o culto aos orixás como manifestação divina. Cada Orixá
controla e se confunde com um elemento da natureza, do planeta ou da
própria personalidade humana, em suas necessidades e construções de
vida e sobrevivência. O culto também ocorre nas Casas de raiz indígena,
que o fazem valendo-se dos deuses daquele panteão. (AZEVEDO, 2009,
p.19).

As religiões de matriz africana têm como crenças comuns: a imortalidade da


alma, a reencarnação e as leis carmicas13. Acredita-se que, o espírito imortal recebe
a oportunidade de retornar à vida (reencarnar) e alguns reencarnam com o dom da
mediunidade, que é a capacidade que o indivíduo tem de se comunicar com o plano
espiritual. Para Orphanake (1995, p. 16), a mediunidade manifesta-se
independentemente de religião.

Levando em consideração toda história vivida pelo povo negro no novo


mundo, viu-se na religião uma forma de resistir à escravidão física e, sobretudo a
escravidão da identidade, que é a tentativa de impor, por meio da segregação, uma
cultura diferente, tida como superior, às populações negras numa tentativa de

11
Força vital do Orixá. Equivalente ao “amém” cristão.
12
Utilizar-se-á a denominação para generalizar os elementos destes cultos.
13
Lei do retorno.

8
afastar os negros de sua cultura e religiosidade, ou seja, uma política de
desculturação.

Para os africanos não há vida dissociada da religião. Tudo gira em torno dela.
Ela funcionou como uma forma de manter viva toda a cultura e valores trazidos da
África. Assim, num período de segregação, o negro encontrou na religiosidade o
meio de manter viva e reafirmar a cultura e sua identidade africana (SILVA, 1989).

As religiões de Matriz africana encontradas em Itaberaba são em maior


número os Centros de Umbanda e algumas casas de Candomblé de nação Angola.
Contudo, algumas casas de umbanda usam elementos do candomblé de nação14.

A casa de matriz africana mais antiga de que se tem registro escrito no


município de Itaberaba, é o Centro de giro Boiadeiro, terreiro de umbanda com
alvará datado de 17 de maio de 1966. Além deste, registram-se os presididos pelos
zeladores Gerson de Oxossi e de Mirian de Nanã, ambos fundados no ano de 1982,
terreiros de umbanda com forte influência do candomblé de Angola (CERQUEIRA,
2003. 104-108). Existem outros terreiros de que não se tem o registro escrito,
apenas o oral.

Recentemente alguns zeladores de umbanda iniciaram-se no candomblé


Angola, dando início a este seguimento em Itaberaba. O candomblé de nação
angola foi trazido pelos negros Bantos, quando escravizados. A este grupo
pertenciam os negros vindos do reino de Angola e Congo que cultuavam os Nkisis
(inquices) que, em contato com outras nações de candomblé, como keto e Jeje
foram sincretizados com os nomes dos orixás iorubá. Dessa forma, ao dizer que esta
cultuando Oxum, a divindade sincretizada seria Dandalunda ou Kisibi.

(...) o termo “nação” era utilizado, naquele período, pelos traficantes de


escravos, missionários e oficiais da Costa da Mina, para designar os
diversos grupos populacionais autóctones (...) a identidade de grupo
decorria dos vínculos de parentesco das corporações familiares que
reconheciam uma ancestralidade em comum. Nesse nível, a atividade
religiosa relacionada com o culto de determinados ancestrais ou de outras
entidades espirituais era o vínculo por excelência da identidade étnica ou
comunitária (...) os povos incluídos sob uma mesma denominação de nação
são definidos a partir de vários fatores intimamente relacionados, a saber: a
zona ou portos onde os escravos eram comprados ou embarcados, uma

14
Candomblé Keto, Angola ou Jeje.

9
área geográfica relativamente comum e estável de moradia e uma
semelhança de componentes linguístico-culturais (...) (PARÉS, 2007, p. 23-
26).

A umbanda surgiu na cidade do Rio de Janeiro, tendo sua fundação atribuída


Zélio Fernandino de Morais. Ela é uma religião sincrética, mas sua principal matriz
são as religiões africanas, conhecidas como animistas15. É uma religião brasileira
que, incorporou à sua ritualística elementos de diversos seguimentos religiosos,
16 17
principalmente do: candomblé, kardecismo , xamanismo ou pajelança e
cristianismo (AZEVEDO, 2010, p. 14-24).

Ao buscar informações sobre o terreiro de origem dos Meninos do Axé e,


autorização da mãe-de-santo para realização da pesquisa de campo, recebi o
convite para participar da festa de seu Erê18. O culto aos orixás gêmeos é originário
da África, desde muito antes da colonização europeia. Ele não é homogêneo em
todo o continente e varia conforme a cultura, mas se faz presente em muitas delas.
Na cultura dos Bantos, é comum se ouvir falar nos “mabaças”, que se traduz em “os
gêmeos da casa” (COSTA LIMA, 2005, p. 11).

No Brasil, os Ibeji, assim chamados na cultura iorubana foram sincretizados


com os santos católicos Cosme e Damião, que viveram na Arábia e foram
martirizados por ordem do imperador Diocleciano, no século II. Segundo a
historiografia dos santos eles eram médicos e exerciam a medicina sem cobrar nada
em troca. Não se sabe ao certo se eles eram gêmeos ou irmão de idade muito
próxima (COSTA LIMA, 2005, p. 12-13).

Ainda falando da festa de Erê, à noite o culto foi iniciado com a mesa de sete
meninos, como é de comum nos carurus. O Erê dono da festa incorporou a mãe de
santo e fez festa com os presentes: distribuíram-se balas, pirulitos, sorvetes de
Maria-mole e fez a partilhas dos bolos vendendo-os por “cinquenta noventa”, como
eles diziam, já que os filhos de santo da casa também estavam manifestados com

15
Cultos em que os praticantes incorporam espíritos por meio do êxtase.
16
Espiritismo segundo a doutrina de Allan Kardec.
17
Cultos indígenas diversos.
18
Espírito infantil; Orixás crianças ou Ibeji.

10
seus erês. E as pessoas compravam os doces da “quitanda do erê”. E enquanto os
meninos comiam cantavam-se pontos19 para eles.

Assim que todos foram alimentados iniciou-se o xirê 20 do santo, onde se


cantou para todos os orixás. Em seguida, iniciou-se o candomblé de caboclo que foi
até o dia raiar. Estiveram em terra Boiadeiro, Gentileiro, Sultão das matas, Eru e
Pena verde, que fizeram a festa até amanhecer.

3. OS MENINOS E A RELIGIOSIDADE

Normal, não fala nem bem e nem mal. Se fala mal, a gente fica triste.
Outras têm preconceito, xingano de macumbeiro, num quer mais brincar
com a pessoa. Tudo é: ele vai fazer macumba! Tem que ter respeito, num
21
pode discriminar (Ana – Informante do grupo focal ).

Educar é todo ato de ensino-aprendizagem, toda ação em que há troca de


saberes. A educação acontece em todos os lugares, de forma diferenciada, nos
espaços em que há interação entre indivíduos e transmitem saberes e experiências.
Para Paulo Freire (2010, p.23) “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende
ensina ao aprender”.

Falsos conceitos e mitos que mostravam os negros sempre como inferiores


ao branco e sem sabedoria, foram difundidos e incorporados entre a população
estabelecendo construções que se naturalizaram no imaginário social do tipo: “só
podia ser negro mesmo”. Assim também, sempre que um negro mostrava bom
caráter diziam: ele é um “negro de alma branca!” (SILVA, 1989, p.60).

Essa realidade começa a mudar com a aprovação da lei 10.639, de 09 de


janeiro de 2003, que torna “obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-
Brasileira”, bem como inclui o dia 20 de novembro, ‘Dia Nacional da Consciência

19
Rezas cantadas.
20
Rezas em louvor aos orixás.
21
As falas dos meninos serão assim identificadas: informantes do grupo focal.

11
Negra’, no calendário escolar (BRASIL, 2003). Mas a criação da lei apenas não é
suficiente para reparar anos de negação da cultura afro-brasileira. Como bem

sugere Ferreira (2011, p. 11):

(...) a letra fria da lei não vem, como em um passe de mágica, fazer as
transformações educativas ansiadas e desejadas pela comunidade, mas é
um instrumento imprescindível para nortear as ações de um projeto de
nação que não desconsidere o quesito educação, peça fundamental na
construção de uma sociedade mais justa e humana.

Assim, “empreender reeducação das relações étnico-raciais não são tarefas


exclusivas da escola”, (BRASIL, 2004, p. 14), mas, é preciso que as mudanças não
estejam restritas as leis e, consequentemente, aos estabelecimentos oficiais de
ensino, mas que partam da sociedade. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)
da área de pluralidade cultural defendem que a educação pluricultural deve
proporcionar ao aluno:

(...) conhecimento e valorização das características étnicas e culturais dos


diferentes grupos sociais que convivem no território nacional, às
desigualdades socioeconômicas e à crítica às relações sociais
discriminatórias e excludentes que permeiam a sociedade brasileira,
oferecendo ao aluno a possibilidade de conhecer o Brasil como um país
complexo, multifacetado e algumas vezes paradoxal (BRASIL, 1997, p. 19).

Dessa forma, tanto os PCN’s, a lei 10.639/03, quanto às diretrizes curriculares


nacionais para a educação das relações ético-raciais e para o ensino de história e
cultura afro-brasileira, tem por objetivo a formação de uma identidade nacional
calçada na diversidade cultural que formou o povo brasileiro. Um ensino que se
desvencilhe dos estereótipos de inferioridade e da hegemonia europeia no que
concerne à cultura nacional.

3.1 Na casa, na rua, com os amigos...

12
Os Meninos do Axé demonstraram por meio de suas respostas que
participam do candomblé não apenas por influência familiar ou por ocupação, mas
porque gostam e veem no culto um lugar de “diversão”. Nota-se que, eles não estão
neste espaço obrigados pela família, mas para eles, o candomblé é lugar de prazer,
pois o terreiro deixa de ser apenas um templo, mas, um espaço de aprendizagem
religiosa e, sobretudo, cultural, como enfatizou Maria:

(...) pra mim diversão e por “caso” do samba, a dança, união, a dança e a
cultura. O axé, pra mim é o axé, a cultura, a cultura. Tem rezas, tem ebó,
tem reza. Os orixás: Iemanjá que é mãe d’água / Oxossi que é rei das
matas / Ogum rei das estradas / Exu é dono das encruzilhadas / Oxum das
águas doces/ Ah... só isso só... Ah! E Obaluaê das perebas. (Informante do
grupo focal).

Devido à idade dos informantes, a capacidade de formulação de algumas


respostas são bem lacônicas, ainda pouco elaboradas, contudo, demonstram
conhecimento sobre a religião, os seus ensinamentos e valores. Segundo Antônio,
ao ser perguntado sobre o candomblé, disse que:

É uma religião boa, ensina as rezar pra quando tiver assim tipo morreno,
ensina a gente a saber o que é errado e o que não é. Tem rezas, tem ebó.
O candomblé ensina obedecer os mais velhos, ter muito respeito com as
pessoas mais velhas, ajudar as pessoas, ajudar o santo. Cuidar do terreiro.
As pessoa que tem respeito e responsabilidade. Todas as pessoas é
importante. Pra tá no candomblé tem que acreditar. É que um dia a pessoa
pode ser recompensado por ter fé (Informante do grupo focal).

Além dos “sambas”, como eles chamam os momentos festivos, há também as


seções que acontecem semanalmente, que são momentos de aprendizagem acerca
da religião. O que difere o candomblé de outras religiões é que seu conhecimento é
transmitido por meio da oralidade, das rezas, dos conselhos, ou seja, da vivência.

Bourdieu (1996) mostra que o estabelecimento de padrões tidos por certo ou


errado são construções sociais por isso diferem de sociedade a sociedade,
conforme o tempo. A relação dos Meninos com os colegas na rua em que moram é
também marcada pela existência do preconceito construído historicamente, pois
segundo eles é comum serem discriminados por conta da religião.

13
A inferiorização da cultura negra e, sobretudo, a demonização das religiões
de matriz africana, fizeram parte de uma “ideologia de genocídio racial e cultural”
(Silva, 1989, p.58) que ficou conhecida como política ou Ideologia de
embranquecimento. Uma tentativa de eliminar quaisquer vestígios da cultura negra
da historiografia brasileira.

Essa ideologia visava à homogeneização da população brasileira, buscando a


criação de um estado único, culturalmente falando. Contudo, a cultura seguiria
padrões europeus. O instrumento utilizado para se chegar a esse objetivo fora a
“inculcação do estereótipo inferiorizante”, para que o próprio negro rejeitasse sua
cultura, tida como “o elemento nefasto da nação” (1989, p.56). Ainda segundo o
mesmo autor:

A partir daí, preconceitos e estereótipos são reafirmados no sentido de


inferiorizar o padrão estético, moral e cultural e todas as suas
manifestações, especificamente a religiosa. A religião africana
“sincretizada”, ou seja, obrigada pela violência a esconder-se sob as
manifestações da religião católica imposta ao negro, passou a ser
perseguida com maior violência que antes. Por outro lado, os inquices,
voduns e orixás são associados ao Diabo pelos cristãos. O negro é
estereotipado como feio, mau, sem razão, instintivo e sem moral, de uma
forma violenta e abrangente, pelos aparelhos de reprodução ideológica e
instituições oficiais.

O preconceito religioso com relação às religiões de matrizes africanas fora


embasado na demonização do candomblé por parte dos conquistadores
portugueses que temiam a sua prática e difundiram errôneo culto aos diabos. Sobre
o assunto, Cunha Junior (2009, p.97) diz:

Os diabos e demônios não fazem parte da cultura africana. Sendo assim, as


religiões de base africana não conhecem estas figuras e não têm nada a ver
com elas. Por racismo contra a população negra é que pessoas
desinformadas dizem que Candomblés são cultos de natureza diabólica.

Maria disse que já foi vítima de preconceito de um vizinho intolerante por ser
de outra religião e, dentre os colegas da rua também já sofreu discriminação e

14
recebeu convites para sair do candomblé, sob a justificativa de que deveria aceitar o
verdadeiro Deus. Ela foi enfática ao afirmar que, não sente vontade de mudar de
religião, pois, gosta mesmo é do candomblé.

Algumas pessoas praticava o candomblé escondido por causo dos brancos.


Hoje tá quase a mesma coisa. No dia do samba o vizinho chamou a polícia,
mas ai a polícia que vei era conhecido de pai e mãe. Ai foi e pronto,
conversou com pai e mãe e foi embora (Maria - Informante do grupo focal).

Quando perguntado se já havia negado, por algum motivo que sua religião
era o candomblé, a resposta de Antônio fora a seguinte:

Eu já. Vergonha e medo. É que tinha várias pessoas, ai fico com vergonha...
Eu falei que não era não, eu tinha vergonha dela ficar mim xingando lá;
minhas amigas já sabe que minha mãe faz caruru e perguntou o que era eu
falei que num sei. Se sentir assim, muito triste de falar, eu não posso dizer
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que sou o que sou, é ruim. O orixá se sente maltratado (Informante do
grupo focal).

A negação da religião apresenta-se como uma experiência dolorosa, pois, ao


negá-la, omitiu-se um elemento da própria identidade. Nas palavras de Antônio essa
experiência fora vergonhosa. Contudo, o sentido dado por ele a palavra “vergonha”
não é o de algo a ser escondido, mas, ele usa a palavra para falar do medo que
sente da discriminação, medo de ser desvalorizado publicamente. Mesmo assim,
nem ele, nem os demais meninos, externaram ter desejo em se afastar do
candomblé por qualquer que seja o motivo. Ao ser perguntado sobre a possibilidade
de mudança de religião a resposta de João foi segura:

Que não saio, porque cada um tem que seguir sua religião e eu sou dessa e
tem que continuar nessa. Num vô sair pra agradar os ‘zotro’. A gente
escolheu e foi escolhido... Nunca passou pela minha cabeça não. O orixá
pode nos abandonar, a gente pode morrer, a gente pode ficar sem lugar pra
morar, sem amigo, pode ficar ‘passano’ fome, várias consequências. Só
quando a gente morrer que pode (Informante do grupo focal).

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Grifos do autor

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A todo tempo eles mostram o lugar que a religião ocupa na vida deles. Para
estes Meninos, o candomblé é uma religião de escolhidos que, a qual eles não
devem abandonar, pois veem no culto e zelo dos ancestrais o equilíbrio de suas
vidas.

3.2. A religião e a escola

Uma das principais instituições de reprodução ideológica que há em uma


sociedade é a escola. Esta é capaz de reproduzir preconceitos, mas como também é
um lugar de discussão de conhecimentos e de conflitos de ideias, pode desconstruí-
los. E essa instituição ligada ao Estado, por anos apresentou a população um único
“padrão aceito, o modelo branco europeu, sua cultura e seus valores” (Silva, 1989,
p.56). Para Bourdieu (2008), a escola é produtora e reprodutora de saberes que,
pode contribuir nas relações entre grupos e classes.

(...) é objetivamente uma violência simbólica, num primeiro sentido,


enquanto que as relações de força entre os grupos ou as classes
constitutivas de uma formação social estão na base do poder arbitrário que
é a condição da instauração de uma relação de comunicação pedagógica,
isto é, da imposição e da inculcação de um arbitrário cultural segundo um
modo arbitrário de imposição e de inculcação (educação) (2008, p.27).

A partir desse pensamento é possível compreender a escola como


instrumento de reprodução ideológica do estado que se mantém por meio da força,
seja ela física ou, no caso da escola, simbólica.

Para Patrocínio (1989, p. 43) o papel da escola diante de uma conjuntura


social pluricultural, não se limitaria a consolidação e reforço dos padrões
eurocêntricos. Para ela, “a escola tal como está construída, é um reflexo da política
de desculturação”. Esse pensamento evidencia-se quando os Meninos relatam já
terem sofrido preconceito dentro dos muros escolares e os seus professores não se
posicionaram em defesa deles. Ao ser perguntado se seus professores falavam das
religiões de matriz africana nas aulas de religião, José disse que:

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A minha escola fala mais da igreja católica e outras religiões. Ano passado,
falava de candomblé, esse ano não, a professora só falava de Deus. Fala
mais da igreja do que do candomblé. Fala, fala dos africanos, meu professor
de educação física fala muito, fala da fome. Que os africanos trouxe o
candomblé pro Brasil. Já falaro que os africanos é do candomblé, também
(Informante do grupo focal).

É evidente na fala dos alunos que a escola trabalha a partir de uma


concepção generalizada do continente africano, como se todos os negros fossem do
candomblé. A escola deixa de trabalhar conteúdos de maior relevância,
evidenciando os problemas da África, como a fome, e ofuscando sua cultura e
contribuições para a formação da identidade brasileira.

Não é levado em conta o fato de que, mesmo vivendo no mesmo espaço


geográfico, o povo africano desenvolveu hábitos diferenciados e particulares a cada
etnia. Não tinha uma religião e divindades homogêneas, como pode ser percebido
na fala dos meninos ao se referirem ao candomblé como religião de negro, sem
levar em consideração as outras religiões encontradas no continente.

A própria diretriz curricular elaborada pelo município para ensino de religião é


vaga no que concerne às religiões de matriz africana, pois não traz em sua proposta
explicitamente esses conteúdos, como se pode ver abaixo:

Vida além da morte: As respostas elaboradas para vida além da morte pelas
Tradições Religiosas (ancestralidade – reencarnação – ressurreição –
nada); O sentido da vida perpassada pelo sentido da vida além-morte.
Contato com textos sagrados permitindo a sensibilização para o mistério
pelo entendimento do sobrenatural que sustenta a dimensão religiosa
(ITABERABA, 2012, p.27).

Observa-se que, quando a própria diretriz traz como conteúdo procedimental


a leitura de textos sagrados, está deixando de lado a religião de matriz africana que
não o possui. Assim, entende-se que quando se refere a ancestralidade a forma que
é colocado neste documento fica a critério do entendimento do professor, que pode
ou não levar para o viés da ancestralidade africana, o que, segundo os Meninos de
Axé, não acontece.

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A escola se restringe a apresentar a cultura negra a partir da escravidão, não
considerando a forma de vida antes dela, criando assim a ideia de folclorização da
cultura Africana, lembrada às vezes no dia 20 de novembro. Para Ferreira (2011, p.
09),

A educação brasileira ainda tem muito da escola tradicional, herança que


nos legaram os jesuítas nos tempos da colonização, quando mantinham um
ensino dogmático – baseado apenas na visão da igreja – trabalhando numa
perspectiva linear, cartesiana, tendo como referência os pressupostos de
Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Mesmo depois de o ensino não
ser exclusividade da Igreja e, por conseguinte, não estar mais sob a
orientação jesuítica, os métodos, na sua grande maioria, no Brasil de hoje,
ainda permanecem tradicionais, com currículos defasados, com uma
estrutura escolar autoritária, fechada em si mesma, legitimadora de um
processo social não igualitário.

A escola contemporânea esquece-se que, quando os negros foram trazidos


para o Brasil “a organização política dos estados africanos já tinham atingido um
nível de aperfeiçoamento muito alto” (Munanga, 1988, p. 9). Assim, o problema não
é falar da cultura africana, mas a forma como ela é abordada, podendo trazer, ao
invés de um resultado positivo, a criação de preconceitos em relação aos negros.

Como se observa na fala de Ana, ao ser questionada sobre a atitude dos


colegas ao saberem que ela é do candomblé, contatou-se que é na escola que se
sofre grande parte dos preconceitos e, professores e diretores, nada ou quase nada
fazem para reverter essas atitudes e comportamentos. Segundo ela:

Na minha escola a maioria sabe e outras não. Porque tem uns que mora
aqui perto de casa e vê o batuque; uns vem comer cariru e depois sai
falando coisa. Tem uns que não, tem outros que nem toca no assunto; tem
uns que nem toca sabe, agora tem uns que me xinga. Eu peguei, num fiz
nada, sentei na cadeira, depois ai eu fui disse pá diretora, a diretora num
resolveu, num resolveu, cabô. Ela não me xingou mais. Eu já usei
contregum pra ir pra escola, quando eu entrei a camarinha, ai eu fiquei de
recuperação, ai tive que ir. Eu também, eu fui com ele. Coberto. Porque eu
tinha vergonha do povo ficar, me chamar de macumbeiro, de ficar, de sentar
perto de mim e ficar dizendo que vai pegar macumba nela. Fio-de-conta, já.
Já que ainda eu coloquei pra dentro da blusa. Por causa do mesmo motivo
do contregum, a mesma coisa (Informante do grupo focal).

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A dificuldade deles em se assumirem dentro da escola é justamente porque,
não há, por parte dela, a preocupação em problematizar, repensar esses conceitos.
Ao contrário do que propagam, os negros viviam num sistema tribal, muito
semelhantes aos indígenas brasileiros, que se constituíam de várias aldeias
pertencentes ao mesmo clã. Da junção entre tribos africanas surgiram grandes
reinos africanos, cada um com sua língua, costumes e religiosidade própria. O poder
político centrava-se no rei. Pode-se citar como exemplo o Egito, que diferentemente
do que se imagina era constituído por negros. Portanto, é inadmissível que se
justifique o racismo dizendo que os povos negros não eram desenvolvidos e, por
isso deveriam ser submetidos à escravidão (SCHMIDT, 2005).

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Casa, escola e rua são espaços de vivencia de toda a criança. Como espaço
alternativo da casa tem-se a rua que, também é lugar de interação, logo de
aprendizagem. A rotina diária dos Meninos alterna-se entre esses espaços. Se no
Terreiro eles aprendem os ensinamentos da religião, como o respeito a todos, na rua
e, sobretudo na escola, padecem sob o olhar preconceituoso daqueles que insistem
em chamá-los de “macumbeiro”.

O terreiro, por eles é visto como um lugar de diversão e aceitação, a escola,


de negação, onde são insultados por conta da religião e muito pouco é feito para
mudar isso. Eles elucidam a todo instante a “vergonha” que sentem em evidenciar
sua religião na escola, pois já sofreram e sofrem discriminação por essa razão.
Vergonha esta que apenas externa o medo.

Se na rua eles contam com o preconceito daqueles que desconhecem a


religião, na escola pouco se faz para mudar essa situação. Ensina-se o respeito de
forma generalizada, mas quando se fala de religião, são privilegiadas outras
religiões. A escola atua como perpetuadora desta forma de pensar o candomblé.

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Para os Meninos do Axé, o candomblé ensina. Por meio dos cantos, danças,
comidas ritualísticas, amor aos Orixás, mitos... aprende-se o respeito a todos,
independente de religião. O candomblé para eles é cultura.

A partir deste trabalho foi possível compreender o papel da escola enquanto


instrumento de reprodução ideológica. Ela configura-se num espaço de negação,
pois, pouco fala das religiões de matriz africana e quando fala, de maneira
generalizada, apenas consolida os preconceitos vigentes, pois os agentes
responsáveis pela educação acabam por tratar essa religião apenas como folclore.

Ao falar da religião africana a escola omite princípios básicos, como:


ancestralidade e respeito à natureza. Esse trabalho deve ser realizado
cuidadosamente, pois uma informação mal passada pode reforçar um preconceito,
mas um trabalho feito com seriedade e compromisso pode fazer com que os
educandos desenvolvam habilidades necessárias à boa convivência.

A fala dos Meninos pede a todo instante respeito a sua religião, assim como
eles respeitam as demais. Para eles a religião não é apenas ocupação de tempo,
mas a forma de manter viva a cultura negra e reafirmar sua negritude. Chegando ao
ponde de eles preferirem que a escola em fale, pois se não fala bem é melhor que
não fale mal.

A escola deixa de cumprir seu papel transformador. É preciso que os agentes


envolvidos no processo educativo revejam suas práticas, pois a função da escola é
garantir o conhecimento mínimo de conhecimento para que os alunos de candomblé
se sintam contemplados por ela. Assumir uma postura laica e, sobretudo, garantir
aos alunos de candomblé o respeito e reconhecimento que eles tanto almejam.

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REFERÊNCIAS:

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