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Crônica: 'Viagem de

Sabará'
Leia o texto de Carlos Drummond de Andrade, publicado em um
jornal carioca em 1929 e depois incluído na coletânea 'Confissões de
Minas', de 1944
https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2014/09/21/interna_gerais,571152/cronica-
viagem-de-sabara.shtml

CD Carlos Drummond de Andrade

postado em 21/09/2014 07:00 / atualizado em 21/09/2014 07:25

''Sabará vale assim como uma introdução ao passado mineiro. Aos que quiserem dar um
mergulho nesse rio de superfície tranquila e de camadas inferiores agitadíssimas, aconselho
que visitem e estudem primeiro Sabará. É a menos "violenta" de nossas cidades
tradicionais''(foto: Beto Novaes/EM)

Já fiz duas vezes a viagem de Sabará. Para quem vive em Belo Horizonte (a menos interessante
das cidades mineiras; menos interessante do que qualquer estaçãozinha de estrada de ferro,
perdida no mato, onde o trem não para) esta viagem é uma revelação. Revelação de coisas
que os livros não trazem, porque o próprio dos livros é desviar a curiosidade das coisas
realmente dignas de serem reparadas; uma sensação de queda no abismo, talvez o abismo dos
séculos, quem sabe?, em todo caso um abismo e a sensação brusca de queda. A mudança
inesperada de planos produz isso. A nostalgia das origens, inconsciente mas ativa, faz o resto.
A 24 quilômetros, da incaracterística e fácil capital de Minas, a velha cidade do Borba nos
espreita como uma cilada colonial.

O passado dói fisicamente quando nos aproximamos dele com os olhos cheios de presente. As
linhas, cores e volumes de outrora, tão brutalmente distintos dos de hoje, ofendem,
machucam a nossa sensibilidade. Sair de uma avenida perfeitamente arborizada, areada,
iluminada, policiada e de repente plaft! cair de chofre na ladeira do Kakende... (Estes dois Ks
não são já duas pedras pontudas?) Enfim, depois de algum tempo o espanto, o susto, a dor
(falo das sensibilidades alertas, é claro) se confundem e misturam num sentimento vasto e
bom, numa euforia demorada, envolvente, cândida; beatitude do corpo em paz com a alma,
da alma que se espreguiça sorrindo dentro do corpo; e o espírito da gente se dissolve do
passado.

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Por duas vezes Sabará me deu esta sensação de dor feliz acabando em dissolução. Duas vezes
operou em mim o sortilégio das cidades mortas de Minas, que são as cidades mais vivas de
Minas, em que pese a Juiz de Fora, Belo Horizonte, Uberaba, Ponte Nova, Cataguases. E
mergulhando na sua paz profunda de ladeiras, igrejas, cemitérios, eu meditava que coisa
terrível como encantamento deve ser Ouro Preto. E são João del-Rei. E Mariana. E Diamantina.
Pois se ali que era o passado, ao alcance da mão, o passado acessível, superficial, "de aluvião"
com duas ou três figuras de primeiro planos somente, e uma chusma vaga de bandeirantes,
emboabas e liberais revolucionários agitando-se sobre o pano de fundo; se ali o prodígio era
tão agudo, como seria, meu Deus!, em Diamantina, em São João del-Rei, cidades humanas e
ilustres como impérios?

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Sabará vale assim como uma introdução ao passado mineiro. Aos que quiserem dar um
mergulho nesse rio de superfície tranquila e de camadas inferiores agitadíssimas, aconselho
que visitem e estudem primeiro Sabará. É a menos "violenta" de nossas cidades tradicionais.
Aquela em que a perspectiva histórica, embora mais acentuada que a perspectiva artística,
cede talvez mais facilmente lugar a esta última. Em Vila Rica e nas outras cidades "extintas" de
Minas é impossível esquecer elemento histórico, que se insinua traiçoeiramente em toda
conversa, leitura, miranda, até mesmo nos momentos de gozo estético mais desabalado. Aqui
houve tocaias e combates; aqui Tiradentes fez isso, Marília fez aquilo; aqui dançou (como
Josephine Baker) Chica da Silva; aqui Felisberto Caldeira Brant virou-se para jesuíta e disse;
aqui outrora retumbante hinos. Os hinos retumbam ainda, e muitas vezes nos proíbem de
ouvir os segredos que as imagens do Aleijadinho queriam contar; a arte é curta e a história é
longa; há painéis do Ataíde mas há também os cavalos que arrastaram Felipe dos Santos;
quantos cavalos? Um, dois, quatro? Problema cuja discussão nos impede de admirar como
desejávamos a graça retorcida deste ornato; ou o colorido franco e ingênuo desta figura que
deve ser a Arca da Aliança; este púlpito que dois hércules suportam; o chafariz; a lanterna que
não alumia mais; a platibanda.

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Em Sabará, não. Aqui, o tenente-general Manuel de Borba Gato, com todo romanesco de sua
existência que está pedindo urgentemente um biógrafo esperto, não consegue afastar o nosso
olhar das maravilhosas combinações de planos em que desenvolver a cidade. Contemplando
os sobrados decrépitos, que pareciam estar esperando a visita do desenhista Manoel Bandeira
para depois cair aos pedaços, eu pensava menos nos guerreiros e nos exploradores barbudos
que os habitaram, do que na composição sóbria das fachadas, no gosto do severo que presidiu
à construção dessas moradias, verdadeiras máquinas de habitar¹ como duzentos anos depois
havia de querer um aquiteto maluco; máquinas primitivas, em que escadarias imensas faziam
o papel de rodas supérfluas, porém máquinas e satisfazendo perfeitamente o fim a que se
destinavam.

E d. Rodrigo de Castel-Branco, "que era, à parte os pequenos defeitos, um homem fino e


amável"; Matias Cardoso de Almeira, "sertanista abalizado"; Artur de Sá e Meneses, "quem
aqui instalou o princípio de autoridade"; d. Maria Pimenta, que com seu marido Jacinto de Sá
Benevides, "troncos de ilustre geração", povoou a infinita solidão de Sabarabuçu; Manuel
Nunes Viana, "o primeiro ditador que se erigiu na América", espécie de Mussolini maneiroso
saído dos armazéns de gêneros; frei Francisco de Meneses, "frade incomparável", batalhador,
sanhudo, flor de uma geração de sacerdotes "libertinos e dissolutos, simoníacos e apóstatas"
nenhuma destas sombras ilustres, de que os livros nos relatam as boas e as malas-artes, os
heroísmos e os crimes, é bastante imprudente para nos assaltar numa esquina da cidade
modorrenta como tenho a impressão que fariam os espectros consagrados dos outros burgos
tradicionais, e:

-Tenha a bondade de parar um pouquinho e examinar estes papéis. Não me acha de fato um
vulto digno de figurar na história mineira?

Há, é certo, os lugares históricos e os pseudo-históricos, que a memória vaidosa do povo indica
ao viajante boquiaberto (todo viajante é boquiaberto por definição). Mas não são eles em
Sabará que nos despertam a melhor emoção; a melhor emoção, a mais cheia de pudor e mais
profunda, é para certas formas de beleza que o homem e o tempo criaram e vão destruindo de
parceria; certas igrejas que envelheceram caladas e orgulhosas no seu incomparável silêncio;
certos becos: certas ruas tristes e tortas por onde ninguém passa, nem a saudade deste
chafariz, com uma cruz e uma data, como um túmulo; a sucessão dos Passos; muros em ruína
mesmo, sem literatura, inteiramente acabados; tudo o que no passado não é nem epopeia
nem romance nem anedota; o que é arte.
Fui, como todo mundo, visitar a igreja do Carmo. Em frente do frontispício famoso, em que o
Aleijadinho pôs to-dos os recursos de uma técnica extremamente apurada, mais fruto de
intuição que de estudo (era um monstro divinatório, não há dúvida), está o cemitério; estão as
catacumbas com os nomes dos mortos inscritos no muro alto. E entre o templo e as
catacumbas (uma nesga de terra), está o silêncio de um largo de igreja antiga, o inesgotável
silêncio e as mil coisas misteriosas que nele se agitam.

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Meu amor me ensinou a ser simples


como um largo de igreja
onde não há nem um sino
nem um lápis
nem uma sensualidade.

Poema lindo mas falso, este de Oswald de Andrade... Não creio que haja coisa mais complicada
e perturbadora do que um largo de igreja dos bons, dos legítimos. Como esse do Carmo, em
Sabará, em que na exiguidade de alguns metros de terra cabem todas as melancolias, todas as
deliquescências, tudo o que não chegou a realizar-se e também uma grande calma e
resignação cristãs. Na sombra tênue os pensamentos amadurecem como frutas, sem que a
gente sinta necessidade de exprimi-los; o contagioso silêncio; saber que tudo está vivo e
calado ao redor de nós; ou antes, não saber coisa ne-nhuma, estender-se no chão e olhar a
cruz entre duas torres, o relógio inútil, sem corda, não marcando nenhuma hora, e a outra
igreja, no fundo, sem nome, que importa o nome.

Mas há outro poeta que diz:

Em todas as velhas cidades de Minas


há sempre um velho do tempo das bandeiras
que conta histórias e mostra as igrejas...

Nem sempre; às vezes é um menino que nos conduz e naturalmente ignora tudo, inclusive o
nome de batismo do Aleijadinho; o velho, que se presume mais informado, tem memória
fraca, pernas trôpegas; resta o sacristão, indivíduo de idade neutra, triste e vago, que desejaria
mostrar-nos os livros da irmandade, mas as chaves da sacristia nunca estão em seu poder.

Conheci os três tipos na cidade; o mais interessante, vê-se logo, é o menino, que embora não
saiba positivamente de nada, ou por isso mesmo, é bastante inteligente para tirar partido da
curiosidade que o forasteiro mostre pelos templos. Um desses guias mirins me transmitiu a
ideia que fazia do Aleijadinho e não era propriamente falsa, posto que exagera-da; Aleijadinho,
confiou-me ele degustando metodicamente um pé de moleque, era um homem sem braços
nem pernas, tronco só, que fez todas essas igrejas que o senhor está ven-do aí e depois foi
para Ouro Preto fazer as de lá. Percebi que a "definição" fora arranjada mais para distração do
que para informação do ouvinte, mas, como não se distanciasse muito da realidade, gratifiquei
devidamente o autor.

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Aliás, o garoto exprimia a média da opinião corrente so-bre o Aleijadinho, personagem mítico,
de contornos indefi-nidos, autor de uma porção de obras que nunca fez e possui-dor de uma
série de característicos que jamais o distinguiram. O silêncio dos arquivos, de onde nada ou
quase nada saiu até agora para iluminar a personalidade do artista, aumenta e jus-tifica essa
confusão. ²

Sabe-se apenas que em Congonhas do Campo existem re-cibos firmados pelo cinzelador dos
profetas. Em Sabará ouvi falar de documentos semelhantes, e mesmo um certo Zido-rinho -
aqui fica o seu nome como indicação para futuros e mais afortunados pesquisadores -
prometeu fornecê-los com rapidez, mediante certa quantia que o jornalista representante
de O Jornal não teve dúvida em desembolsar previamente, na doce expectativa de ver brotar
do fundo do passado revela-ções sensacionais sobre o mais notável arquiteto e escultor
brasileiro. Zidorinho, porém, até hoje se conserva em discre-to e pundonoroso silêncio, o que
me induz a suspeitar, sem malícia, da improficuidade de suas buscas nos velhos armá-rios de
jacarandá.

Antônio Francisco Lisboa continua assim à mercê da in-ventiva popular, que lhe atribui feitos
improváveis e obras de duvidosa autenticidade. As nossas cidades tradicionais se dis-putam a
glória de possuir maior número de recordações do formidável talhador, e nesse empenho
comum entram em boa dose o sentimento bairrista, o cálculo e a boa-fé. Embora seja por
muitos títulos um artista difícil, como se diz, o Aleijadinho tem uma clientela cada dia mais
numerosa. Seus trabalhos são coisas que podemos mostrar sem susto, como a colcha de da-
masco, a toalha de renda, o castiçal de prata. Envaidecem. E de-pois dão lucro; necessidade de
fomentar o turismo, indústria incipiente e de grandes possibilidades; o dinheiro que circula e
tilinta nos bolsos; atividades que se intensificam; seria até o caso de posturas municipais.
Finalmente, sendo agradável e lu-crativo, é também honesto, e quem sabe se até verdadeiro;
aqui a boa-fé introduz-se no raciocínio e faz com que o espertalhão fique dupe [ingenuamente
confiante] da própria esperteza, como o hipnotizador que, para causar maior impressão ao
público, começasse por hipnotizar-se a si próprio.

Não digo tais coisas com o pensamento detido em Sabará. Noto apenas um estado de espírito
mais ou menos genera-lizado e que afinal, bem pesadas as coisas, serve mais é para
demonstrar a grandeza do Aleijadinho.

Lugar por onde esse homenzinho pardo e de maus bofes andou é lugar encantado. Em tudo se
nota seu rastro; ia dizer sua garra, se não me objetassem que não podia ter garras porque não
tinha dedos. Pilhéria aliás tola, porque Lisboa não nasceu aleijado, e Rodrigo Bretas, seu único
e verídico biógrafo, nos afirma que só em 1777 começaram a roê-lo as muitas mazelas que
acumulou numa vida de farras franciscanas. Antes disso, porém, já havia produzido muito, e é
claro como água que suas obras mais perfeitas são anteriores à zampari-na", ou à complicação
"humor gálico com o escorbútico". Escorbuto que também me parece suficiente para explicar
em grande parte a disparidade de "maneiras" e de técnicas ob-servada nos trabalhos do
mestre. Artista irregular, a doença repelente tornou-o mais irregular ainda, rasgando uma dife-
rença maior entre as figuras que saíram de suas mãos outrora íntegras e hoje mutiladas.

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De qualquer maneira foi desmesurado, e sozinho bastaria para colorir uma época em que se
cuidou mais de viver que de embelezar a vida. Dominando o puzzle econômico e acomo-
datício do barroco jesuítico, aparece-nos como um criador simples, forte e desabusado.

Era tão marcante a sua personalidade que em Sabará, a cidade menos fecundada pelo seu
gênio, resta coisa sua, e os ornatos das igrejas a que deu expressão exalam a nostalgia desse
demiurgo da plástica.

Desprendemo-nos a custo da fascinação que exercem o frontispício, os púlpitos e os atlantes


da igreja do Carmo, para nos perdermos entre os painéis da igreja Grande ou assuntar-mos as
chinesices simplesmente curiosas, que, como as peni-nhas da anedota, estão ali só para
atrapalhar. Nossa Senhora do Ó fica mais adiante, e não é difícil encontrar também em suas
decorações um pouco de chinesice. Que é que não se encontra numa igreja daqueles tempos,
minha Nossa Senhora do Ó?

A impressionante velhice dessa capelinha, talvez a primei-ra casa de Deus que se construiu no
país do rio das Velhas. A Matriz data de 1771, e o Carmo é sabidamente posterior; em Nossa
Senhora do Ó, como a autenticar-lhe a idade provecta, há um ex-voto comovente pela
incorreção ortográfica e pela convicção do milagre que aí se registra. Tive a pachorra de copiá-
lo igualzinho:

Mercê q fes na. sa. do o aocappam. maior lvcas ribeiro almda. regente desta va. real den sa. da
conceiçam oqval vindo defazer afest a ada. sa. deq hera ivis oacometeram temerariamte.
qvatro soldados dos dragois edepois todos os mais da compa. comd ezeio deomatarem mas
nem comasespadas nem com vários tiros q lhederam foi posivel q consegvisem o imtento por q
amai de deos dev forças ao seo devoto pa. q detudo sedefendese se m reseber omenor perigo
nem emsi nem em osescravos q oacompanh avão e emçinal deagradecimento mandov fazer
esta memoria q soss edeo em o s29 de dezenbro de 1720.

Era assim a Vila Real de Sabará, nos bons tempos de 1700 e pouco, em que todo mundo ia
beber água no chafariz do Kakende; bebia e ficava, porque a água do Kakende, afirma o povo
com absoluta certeza, prende como visgo. Tempos heroicos e barulhentos, mas também
tempos de milagre, em que um capitão-mor acometido por toda uma companhia de dragões
escapava incólume por uma das quatro ruas que "davam aos povos a franqueza de sua
comunicação"; ou antes quatro estradas: uma ao norte, uma a oeste e duas ao sul. Estas
últimas cortavam a Sabarabuçu na ponte do João Velho e na ponte pequena; a do oeste dava
para o rio das Velhas, e quem aí passasse veria da ponte grande as últimas canoas paulistas
sulcando melancólicas o Uaimi-i de que o ouro ia desertando.

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A mineração "a lume d'água" cedia lugar à mineração em terra firme, muito mais penosa mas
já praticada com êxito pelo português teimoso e absorvente. Pelos quatro caminhos circula
uma turba colorida de frades, milicianos, mascates e negros, muitos negros, 5 mil negros, que
sofrem e se multipli-cam através da comarca do rio das Velhas.

Os dias passam-se em rudes trabalhos para uns, caçadas para outros, as noites em orgias para
todos, sendo o elemento religioso o mais debochado, como em todas as Minas Gerais. A vila
turbulenta exige extremos de policiamento: dois regi-mentos de cavalaria levantam poeira do
chão, intimidando os desordeiros e ladrões; vinte companhias de ordenança, cons-tituídas de
homens brancos, onze de homens pardos e sete de homens pretos completam o ambiente
marcial; não esquecer que Sabará é excelente ponto estratégico, e ninguém melhor do que
Manuel Nunes Viana mostrou saber disso; os governa-dores que se sucedem, transmitindo-se
as dificuldades, man-têm o aparato bélico que lhes é de tanto proveito na pacificação dos
ânimos eternamente revoltados: "esta gente tão desobediente", escreve ao rei o conde de
Assumar; "estas gentes que por caminho nenhum se podem governar"; "uma canalha tão
indômita", insiste o santo inquisidor de Vila Rica, propondo a Sua Majestade, entre outras
coisas amáveis, que a todo negro fugido se corte a perna direita e se adapte uma de pau.

... foi-se lenta a penúltima canoa; a última desce agora o rio seco, rumo de Santa Luzia ou da
história mineira (nin-guém sabe, nem o canoeiro); foram-se os portugueses, os baianos, os
paulistas, os legalistas e os rebeldes de 1842; "as pedras de Sião choram amargamente na
noite...; quem disse? Nada chora em Sabará; tudo é sério e composto, tudo é digno; uma
atitude descabelada como a do profeta Jeremias causaria escândalo aos discretos e orgulhosos
habitantes da cidade.

Aliás essa gente de passo largo (o passo dos bandeiran-tes e dos subidores de ladeira) não vive
só de recordações da idade do ouro. Vive também de certezas da idade de ferro. Depois de
nos mostrar as naves do século XVIII, o sabarense leva-nos à Siderúrgica Belgo-Mineira (20 mil
contos de ca-pital, usina para fabricação de aço e de gusa, 10 mil pés de eucalipto, 15 mil
hectares de terra cobertos de florestas, com depósitos minerais e quedas-d'água em
profusão). E esta usina é como um direto no queixo do saudosista.

Fecho os olhos para ver a cidade-presepe; dir-se-ia de-calcada nas estampas ingênuas do
Natal, em que as casas se alastram numa desordem aparente e um rio raso - dois rios rasos -
serpenteiam muito convencidos de sua função decorativa; as ruas tortas são obscuros
caminhos de Deus, e todas conduzem a igrejas, no alto dos morros; como em todo pre-sepe
que se preza, pululam anacronismos; um chalezinho catita, um Ford, um cinema, uma
joalheria; de novo as casas coloniais subindo a rua em procissão; grandes massas verdes
inscrevem-se arbitrariamente na perspectiva urbana e desor-ganizam-na; jabuticabeiras. Um
inglês declarou-me que em sua terra ouvira falar da excelência das jabuticabas de Sabará; não
podia compreender como é que não se explora indus-trialmente uma tal riqueza etc.; esse
homem positivo ignora-va que em Sabará as jabuticabeiras também são decorativas: inútil
tomar um carro em Belo Horizonte e ir com a família em busca das bolinhas pretas e lustrosas,
último ouro do rio das Velhas; quem vai com a boca doce volta com a boca seca; os
proprietários formulam evasivas, recusando qualquer dinheiro, e as bolinhas lá continuam
dependuradas, como numa árvore de brinquedos.

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- Mas o pé está carregado até o chão.


- O pé está carregadinho mas ainda não choveu, e jabuti-caba sem chuva faz mal pra saúde, o
senhor sabe.

Tirante isso, o povo é acolhedor e bom; talvez não aprecie muito o povo de Belo Horizonte,
mas são brigas de família; no fundo ambos se enternecem um pelo outro. Uma ocasião
perguntaram ao poeta Justino da Praia, que nasceu e morreu em Sabará, o que é que ele
preferia nas quatro partes do mundo; resposta:

Do Curral d'El-Rei as frutas,


Das Congonhas os Danié;
De Sabará os Paula Rocha,
De Santa Luzia as muié.

O mundo é assim. Entre jaboticabas de Sabará, o poeta Justino da Praia suspirava pelas
mangas do Curral d'El-Rei, cujos poetas, por sua vez, suspiram pelas jabuticabas de Sabará.

¹ Da mesma forma que as igrejas eram verdadeiras máquinas de rezar, até nos detalhes
burocráticos da sacristia. A pompa de algumas não indicava preo-cupação estética e sim
moral; era antes um ardil para atração dos crentes de-sidiosos e sedução dos incrédulos;
exterioridades convidativas de máquina, pois. Isto me parece psicologicamente mais razoável
do que afirmar que os anseios de fausto da época se objetivavam só na fábrica luxuosa dos
templos, desertando as residências particulares, nuas e tristes. Uma contraprova está no fato
de que, quando lhes dava na telha, os antigos também sabiam construir solares maravilhosos:
o Jacinto Dias em Sabará, por exemplo.

² Escrito em 1928

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