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23/08/2020 Meneghetti, o gato dos telhados - Revista Opera

Meneghetti, o gato dos telhados


por Bruno Ribeiro | Revista Opera
Por Bruno Ribeiro - julho 16, 2020

(Foto: Domínio Público)

U m dos personagens mais fascinantes da história de São Paulo é Gino


Amleto Meneghetti, um italiano nascido em Pisa, em 1878, que se
mudou para o Brasil ainda moço, fugindo da justiça (começou a
roubar aos 14 anos). Foi preso incontáveis vezes ao longo da vida, tendo
passado a maior parte dela na prisão ou escondido da polícia. Dedicava-se a
roubar basicamente joias e relógios, que considerava bens supér uos que só
serviam para “alimentar a vaidade dos ricos”.

Não se considerava ladrão e citava o lósofo anarquista Pierre-Joseph


Proudhon para justi car suas incursões ao patrimônio alheio: “Toda
propriedade é um roubo”, repetiu várias vezes diante de delegados e juízes.
Abominava a violência física e, embora andasse armado, não consta que tenha
dado um único tiro em alguém.

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Os ferros de Meneghetti. (Foto: Polícia do Estado de São Paulo / Wikipedia Commons)

Em meados da década de 1920, Meneghetti já era conhecido em toda a capital


paulista por seus roubos cinematográ cos e suas fugas impossíveis. Pulando
feito gato sobre os telhados ou rastejando feito cobra pelas tubulações de
esgoto, sempre dava um jeito de escapar ao cerco policial. Gentil com as
mulheres e bem trajado (terno, gravata e chapéu), circulava em qualquer
ambiente sem levantar suspeitas. Ousado, deixava um cartão de visita com
seu nome em lugar visível, na residência ou comércio de sua vítima, para que
não houvesse dúvida de que ele era o autor da “expropriação”.

Agia sempre sozinho, nunca em parceria, por achar que ninguém, além dele,
suportaria a tortura sem abrir o bico. Tinha um código de ética próprio: jamais
coagia a sua vítima, preferindo usar a inteligência para subtrair o que queria, e
sob nenhuma hipótese roubava de um pobre ou de um operário. Seus alvos
eram sempre joalherias, casas de câmbio ou mansões. Dilapidou quase todas.

Meneghetti foi preso algumas vezes no início da década de 1920, mas


conseguiu fugir de todos os presídios pelos quais passou. Sua primeira fuga
foi uma das mais mirabolantes: depois de ser pego tentando cavar um túnel
com os companheiros de cela, foi posto em isolamento dentro de um poço
estreito e profundo coberto com uma grade de ferro.

Durante a madrugada, aproveitando um vacilo da guarda, Meneghetti escalou


as paredes do poço com a destreza de um artista de circo e arrancou as grades
na unha. Arrastou-se pela escuridão do pátio, sem ser visto pelo sentinela,

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livrou-se das roupas e mergulhou no rio Tamanduateí de uma altura que faria
qualquer mortal voltar de joelhos à cela.

Nadou até a margem e subiu no telhado da primeira casa que encontrou pelo
caminho. Completamente nu, saltando de telhado em telhado, chegou até a
residência de seu tio, onde tomou cachaça para esquentar (estava congelando
de frio), vestiu roupa nova e pegou um revólver emprestado. Só quando
amanheceu descobriram que Meneghetti havia fugido.

Durante anos a polícia esteve à sua procura. E durante anos ele burlou os
investigadores, chegando ao ponto de comparecer, sem o bigode que lhe
de nia o rosto, numa entrevista coletiva que o chefe de polícia (na época o
cargo era equivalente ao de secretário de segurança pública) concedeu à
imprensa. Na ocasião, a rmou aos jornalistas que iria prender Meneghetti em
48 horas. Mas assim que a entrevista chegou ao m, Meneghetti entregou um
bilhete para um repórter na entrada da delegacia: “Então por que não me
prendeu agora? Eu era aquele rapaz de chapéu e roupa clara, sentado à sua
esquerda”.

No dia seguinte, os jornais publicaram que Meneghetti esteve presente o


tempo todo na coletiva, sentado quase ao lado do chefe de polícia – que saiu
do episódio completamente desmoralizado, tornando-se alvo de chacota nas
ruas.

Sem disfarce e com disfarce. (Foto: Wikimedia Commons)

Prender Meneghetti passou a ser, mais do que nunca, questão de honra para
Roberto Moreira (este era o nome do chefe de polícia). Em 1926, numa manhã
de inverno rigoroso, após semanas de campana em frente à residência onde
morava Concetta, mulher de Meneghetti, a polícia deu voz de prisão assim que

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este apareceu para visitá-la. Como o larápio conseguiu entrar e trancar a


porta, teve início um cerco policial que durou dez horas e mobilizou um
aparato militar de mais de 200 homens.

O gatuno resistiu o quanto pode: saiu pelos fundos e atravessou o bairro


pulando os telhados. Escalou paredões de quatro metros de altura, escondeu-
se em uma latrina, escapou por becos e vielas desviando das balas que a
polícia atirava em seu encalço, passou horas imóvel num sótão escuro a
poucos metros de um policial, despencou do forro em cima da mesa de jantar
no momento em que uma família estava reunida, quase foi estraçalhado por
um cão de guarda, en ou-se em arbustos cheios de espinhos e tornou a voltar
para sua casa numa tentativa desesperada de despistar seus perseguidores.
Por m, foi obrigado a se entregar, mas não sem antes se despedir de Concetta
com um abraço e um beijo.

Uma multidão acompanhou a operação do lado de fora. Quando esgotaram-se


todas as possibilidades de fuga, Meneghetti jogou a arma no chão e saiu com
as mãos levantadas. Covardemente, a polícia começou a espancá-lo ali
mesmo. Muitos não acreditavam que Meneghetti fosse real. Até aquele
momento havia quem dissesse que o “gato dos telhados” era uma lenda
urbana inventada pela imaginação fértil do povo.

Os jornais da época relatam que a polícia evitou que Meneghetti fosse


linchado pela população. A versão de Meneghetti, porém, é um pouco
diferente: segundo ele, a massa estava enfurecida era com a polícia, que
precisou sair às pressas do local para impedir que o ladrão fosse resgatado
pelos populares.

Meneghetti chegou à delegacia com o rosto des gurado pelas coronhadas que
tomou dentro da viatura. Para piorar sua situação, o delegado Waldemar Dória
morreu durante o cerco, atingido por dois tiros nas costas. Embora o calibre
das balas retiradas do corpo fosse o mesmo usado pela polícia, Roberto
Moreira atribuiu a autoria dos disparos a Meneghetti, que passou por
inúmeras sessões de tortura, inclusive com pau-de-arara e choque elétrico,
para confessar um crime que não havia cometido. Como suportou de modo
estoico o suplício, sem ceder aos verdugos, jogaram-no numa solitária, onde
cou incomunicável e sem banho de sol por longos 15 anos.

Durante esse tempo, Concetta morreu sem que o marido pudesse se despedir.
Isolado, Meneghetti desenvolveu algumas manias, como usar a água da latrina
para lavar a comida que lhe serviam na cadeia, com medo de que estivesse
envenenada. Por não reconhecer no sistema o poder legítimo para privar-lhe

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de liberdade, enchia a boca com as próprias fezes e cuspia em direção a


qualquer autoridade que se aproximava de sua minúscula cela. Passava o dia
gritando: “Io sono un uomo!” (“Eu sou um homem!”).

Cumprida a pena, saiu da prisão em 1944. Livre, arriscou a sorte no Sul do


Brasil, praticando roubos a joalherias e casas de câmbio em cidades como
Curitiba, Ponta Grossa, Porto Alegre e Florianópolis. Retornou a São Paulo
após a temporada sulista e tentou trabalhar honestamente no comércio ou
fazendo pequenos bicos. No entanto, o que ganhava era muito pouco, mal
dava à própria subsistência.

Inconformado com a condição precária imposta pelo trabalho, voltou a


roubar. Gostava da vida boa e toda a fortuna que angariava com o roubo de
joias era aplicada nos cassinos (seu vício era o bacará) e em restaurantes
caros, onde gostava de jantar acompanhado de belas damas. O que sobrava ele
dava aos pobres. Alternava períodos de grande fartura com outros de dura
carestia. Ele se via e aos pobres como vítimas de um sistema de exploração no
qual somente os “verdadeiros ladrões” podiam gozar dos prazeres terrenos.

Foi preso de novo algumas vezes e fugiu sempre (seria preciso um almanaque
para descrever todas as suas fugas, cada uma mais extraordinária do que a
outra). Por m, caiu numa penitenciária de onde não havia como escapar.
Dada a sua fama, Meneghetti passava a maior parte do tempo com os pés, os
punhos e o pescoço atados a correntes num antigo tronco de escravos. Pela
primeira vez um presídio de segurança máxima o vencera. 

Voltou às ruas somente em 1959, graças aos esforços do advogado Paulo José
da Costa Jr., um dos poucos amigos de sua con ança e o único que não
desistira dele. Envelhecido e sem a agilidade de antes, recolheu-se até que seu
nome não passasse de uma velha lembrança perdida na noite dos tempos.
Todos julgavam que Meneghetti estava morto ou havia voltado para a Itália.

Em 1970, porém, aos 92 anos de idade, foi preso pela última vez tentando
arrombar a porta de um palacete na rua Fradique Coutinho, na Vila Madalena.
Trazia nas mãos o velho pé de cabra, el companheiro de trabalho, que já não
operava como antes. Morreu em 1976, pobre e solitário como sempre foi.

Atendendo ao seu último desejo, seu amigo e advogado tratou de cuidar da


cremação de seu corpo e suas cinzas foram atiradas ao vento, numa rua
qualquer de São Paulo. Uma de suas últimas linhas escritas foi justamente
sobre a própria morte: “Não tenho nenhuma razão plausível para estar cá

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nesta terra que me causa nojo. Que o vento espalhe meu pó e que ele se dilua
no ar.”

(Foto: do filme Dov’e Meneghetti)

De suas várias entrevistas para a imprensa, incluindo a melhor delas para o


Pasquim, extraí essa coletânea de frases que ajudam a compor um retrato de
sua personalidade instigante:

“Havia dentro de mim uma revolta como a de Spartacus. Eu era um escravo do


rio Arno. Eu e todos os meus.”

“O suplício do pau-de-arara existente aqui neste gloriosa capital paulista avilta


o povo brasileiro e é digno de uma Gestapo.”

“O comerciante é um ladrão que tem paciência.”

“Mantive minha saúde no cárcere por gentileza de meus admiradores que me


levavam frutas, remédios e outras coisas. Creio que devo minha popularidade
ao fato de nunca ter assassinado ninguém, não ter cometido crimes sexuais e
ter ajudado os pobres.”

“A vida sem sensação é demasiado estúpida.”

“Não me arrependo de nada porque não z nada de errado. Roubei de quem


tinha demais e posso garantir que roubei ladrões muito maiores do que eu.”

“Roubando os ricos satisfaço a minha índole de revoltado contra o egoísmo e o


desequilíbrio social.”
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“Sou livre. Nasci livre e nunca serei um escravo por convicção.”

PS: Há bons livros para quem quiser saber mais sobre a história de
Meneghetti. São eles: Meneghetti — O Gato dos Telhados, de Mouzar Benedito
(Boitempo) e O Incrível Meneghetti, de Paulo José da Costa Jr. (Jurídica
Brasileira). O Grande Ladrão, de Renato Modernell (Sulina) é um livro infanto-
juvenil e, portanto, romanceado. O melhor de todos é Memórias — Vida de
Meneghetti, de 1960. Trata-se de um livro autobiográ co que parte de extenso
depoimento dado pelo “gato dos telhados” ao autor, M. A. Camacho. Este
exemplar é raríssimo (o único disponível neste momento na Estante Virtual
custa R$ 1.250,00). Por incrível que pareça, a vida de Meneghetti nunca foi
contada no cinema, à exceção dos curta-metragens Dov’e Meneghetti, feito por
Beto Brant (1989) e de Réquiem Meneghetti (2016).

Bruno Ribeiro
É colunista de Cultura da Revista Opera. Foi repórter e crítico de música no jornal Correio
Popular e Secretário Municipal de Cultura na cidade de Campinas (SP). É também letrista e
escritor de vários livros publicados, entre eles A Suprema Elegância do Samba (Pontes, 2005)
e Helenira Resende e a Guerrilha do Araguaia (Expressão Popular, 2007).

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