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David Sperling

arquitextos 134.00: Teoria e prática do


partido arquitetônico

abstracts

p
ortuguês 
O termo projetação tem sido pouco usado no
Brasil, mas é o termo que define a produção do
projeto de arquitetura como um processo

how to quote

BISELLI, Mario. Teoria e prática do partido arquite-


tônico. Arquitextos, São Paulo, 12.134, Vitruvius, jul Escola Coreana
2011 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/ Croquis de Mario Biselli

arquitextos/12.134/3974>.
Um aspecto interessante da atividade de projeto é
Muitos autores acadêmicos têm se debruçado re- justamente a quantidade de teorias, metodologias,
centemente sobre temas e termos correntes da ar- manuais de procedimentos e técnicas as mais di-
quitetura na tentativa de compreender e explicar o versas da qual foi objeto historicamente. Mais in-
processo de projetação. O aprofundamento recente teressante ainda é observar que, embora partes do
destas pesquisas e reflexões tem produzido noções processo de produção do projeto possam estar su-
sempre mais didáticas e esclarecedoras, tanto para jeitas a uma seqüência de procedimentos, o processo
estudantes e professores como para arquitetos com inteiro jamais poderá se enquadrar neste modelo,
interesses teóricos e mesmo para leigos e amantes e, portanto, as metodologias não se sustentam en-
da arquitetura. quanto sistemas universais, embora seja obrigatório
conhecê-las, pois a nenhum arquiteto é permitida
A história é rica em exemplos do interesse em resu- a ignorância sobre a experiência acumulada que
mir o projeto a um processo linear, possuidor de uma compõe a história da arquitetura.
técnica de realização passo a passo, como montar
uma máquina, como cultivar soja, primeiro isto, de- O termo projetação tem sido pouco usado no Brasil,
pois aquilo e aquilo outro, e assim por diante numa mas é o termo que define a produção do projeto
seqüência de procedimentos idêntica a tantas outras de arquitetura como um processo. Este processo
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técnicas e disciplinas inventadas pelo homem. tem um momento crítico e imponderável que foge
a qualquer metodologia, mesmo quando a projeta-
ção estava sujeita às regras da composição clássica.
Este momento crítico é o momento que envolve as
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decisões relativas ao que conhecemos por partido

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arquitetônico, termo que em outros lugares é tam- geral, tem sido tarefa de vários autores e todas elas
bém conhecido como estratégia ou conceito. contêm aspectos novos e esclarecedores. O exame
destas definições é um primeiro objeto de meu in-
teresse.

Escola Cáritas
Croquis de Mario Biselli

Bienal de Arte de SP Desde o período acadêmico até as primeiras defi-


Croquis de Mario Biselli nições modernas, o projeto de arquitetura tem sido
descrito como resultado de um raciocínio lógico. Em
Para efeito desta reflexão usarei o termo partido ar- Teoria e projeto na primeira era da máquina, Banham
quitetônico por ser o mais comum no Brasil e, creio, compara Guadet, para quem a composição era o
mais específico do campo da arquitetura do que tema perene, e Choisy, que enfatiza a construção,
estratégia ou conceito, os quais são muito comuns ambos teóricos da composição arquitetural, para
em outras áreas. Com base na experiência pode-se quem a natureza lógica da concepção constitui o
também dizer que “partido” é o termo comum à tema mais destacado:
linguagem própria dos arquitetos, o assunto central,
senão único, entre arquitetos no âmbito da produ- “a forma como conseqüência lógica da técnica –
ção, do julgamento de concursos de arquitetura, do que torna a arte da arquitetura sempre e em toda
ensino de projeto, das conversas informais. E não parte a mesma.
creio se tratar de um exagero cogitar a exclusividade
do assunto, dado que em “partido” se compreende [Para Choisy] a essência da arquitetura foi sempre
a discussão de aspectos como estratégia de implan- a construção, a função do arquiteto sempre foi esta:
tação e distribuição do programa, estrutura e re- fazer uma avaliação correta do problema com que se
lações de espaço, todas elas questões centrais para deparava, após a qual a forma do edifício seguir-se-
os arquitetos. Outros temas relativos às atividades ia logicamente dos meios técnicos a seu dispor” (1).
criativas – como composição, estilo, estética etc. –
embora tenham sido objeto de interesse da teoria da Autores modernos, como Carlos Lemos, também
arquitetura recentemente, são tratados no âmbito propõem definições fazendo uso dos termos “conse-
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da prática com pudor e desinteresse, senão como qüência” e “resultado”, nos quais uma idéia de lógica
meros epifenômenos. permanece implícita:

A definição de partido arquitetônico, portanto, e “A mencionada definição é a seguinte: Arquitetura


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as reflexões sobre seu significado, dado o interesse seria, então, toda e qualquer intervenção no meio

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ambiente criando novos espaços, quase sempre com partido”, afirma Corona-Martinez (3) –, sempre sur-
determinada intenção plástica, para atender a neces- gem novas explicações e teorias, como se sempre
sidades imediatas ou a expectativas programadas, e mais estivéssemos interessados em desvendar um
caracterizada por aquilo que chamamos de partido. mistério, perscrutar as mentes criadoras para pôr
Partido seria uma conseqüência formal derivada de às claras algo nebuloso, abrir uma “caixa preta”:
uma série de condicionantes ou de determinantes;
seria o resultado físico da intervenção sugerida. Os “Le Corbusier enfatizou ainda mais o uso da lógica
principais determinantes, ou condicionadores, do matemática de Descartes ao dizer que o início do
partido seriam: processo de criação é a definição da planta arqui-
tetônica, que por sua vez é a representação do pro-
a. a técnica construtiva, segundo os recursos locais, grama arquitetônico (função da edificação). Assim,
tanto humanos, como materiais, que inclui aquela a projeção vertical da planta resultaria, segundo
intenção plástica, às vezes, subordinada aos estilos ele, nas paredes que por sua vez se tornariam vo-
arquitetônicos. lumes: linhas que se transformam em planos que
se transformam em volumes; é a seqüência linear
b. o clima. e crescente do raciocínio cartesiano.

c. AS condições físicas e topográficas do sítio onde Embora se saiba que Descartes ainda é apreciado
se intervém. nas escolas de arquitetura do Brasil para o ensi-
no-aprendizagem do projeto arquitetônico, sabe-se
d. o programa das necessidades, segundo os usos, também que em algum momento do processo de
costumes populares ou conveniências do em- criação surge algo estranho que parece não caber
preendedor. na lógica cartesiana: é a caixa preta; um conceito
usualmente utilizado pelos arquitetos para significar
e. as condições financeiras do empreendedor dentro o momento em que a subjetividade psicológica do
do quadro econômico da sociedade. arquiteto define, por meio de um rabisco (croqui)
o partido do projeto. Apesar dos arquitetos conhe-
f. a legislação regulamentadora e/ou as normas so- cerem esse processo, ninguém até hoje explicou o
ciais e/ou as regras da funcionalidade” (2). que acontece dentro dessa caixa preta, dizem que
é inexplicável” (4).
É certo que todo arquiteto defende seu projeto
como um produto da aplicação da lógica face aos Duas publicações recentes abordam estes temas,
dados fornecidos para sua elaboração. Mas, em ar- suas reflexões são a base para uma compreensão
quitetura parece que temos uma lógica para cada e críticas contemporâneas desta problemática. São
projetista, pois se dependêssemos meramente da elas Adoção do partido em arquitetura, de Laert
lógica, o processo seria universal e já não caberia Pedreira Neves e Composição, partido e programa
qualquer preocupação sobre o assunto. Talvez, neste – uma revisão de conceitos em mutação, de Anna
caso, a ação de projetar e construir já teriam sido Paula Canez e Cairo Albuquerque da Silva, este úl-
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integralmente resolvidos pela indústria, através de timo se tratando de uma coletânea de ensaios de
seus computadores e máquinas. vários autores.

E o que se vê é justamente o contrário, há um claro


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incômodo a respeito – “Esa incómoda situación del

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mas de conteúdo similar e complementar. Primei-


ramente uma argumentação genérica:

“Em suma, no projeto de arquitetura, a concepção


do partido arquitetônico pressupõe a proposição
de configurações que descobrem, ou inventam, re-
lações espaciais e programáticas a partir de uma
dispersão inicial, indeterminada, de possibilidades
projetuais. A coerência de tais construções deriva,
Escola Cáritas antes, de um progressivo fechamento interno do que
Croquis de Mario Biselli de determinação externa. O partido é, por hipótese,
uma prefiguração do objeto, que o projetista elege
Destes textos emergem duas idéias principais. Em como ponto de partida e fio condutor: cabe à in-
primeiro lugar, a de que o partido é a idéia inicial vestigação epistemológica construir contextos de
de um projeto e em segundo, que esta idéia é uma explicitação das razões que asseguram pertinência
criação autoral e inventiva, e artística na medida e validade a essas arquiteturas projetadas” (7).
em que faz uso da composição. Vemos em Neves
as definições nesta seqüência. Em primeiro lugar:

“Denomina-se Partido Arquitetônico a idéia preli-


minar do edifício projetado.

Idealizar um projeto requer, pelo menos, dois pro-


cedimentos: um em que o projetista toma a reso-
lução de escolha dentre inúmeras alternativas, de
uma idéia que deverá servir de base ao projeto do
edifício do tema proposto; e outro em que a idéia
escolhida é desenvolvida para resultar no projeto.
É do primeiro procedimento, o da escolha da idéia,
que resulta o partido, a concepção inicial do projeto
do edifício, a feitura do seu esboço” (5). Escola Cáritas
Croquis de Mario Biselli

Antes, no texto introdutório:


Ainda no mesmo texto, quando se dedica a uma
“É importante ressaltar que projetar um edifício é, comparação entre os projetos de Le Corbusier e
na essência, o ato de criação que nasce na mente Lúcio Costa para a Cidade Universitária do Rio de
do projetista. É fruto da imaginação criadora, da Janeiro em 1939:
sensibilidade do autor, de sua percepção e intuição
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próprias. É resultado do trabalho do pensamento. “Para Lúcio Costa... ao contrário, tomar partido
Sendo assim, constitui-se em algo de difícil controle, implica dar início a um percurso inventivo que se
interferência e ordenamento” (6). traça sobre um campo de relações em constante
formação e renovação, ainda que aos tateios e sujeito
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Em Composição, partido e programa – uma revisão de a inúmeros e imprevisíveis retornos e desvios. Tais
conceitos em mutação, o texto de Rogério de Castro relações simultaneamente externas e internas ao
Oliveira faz uso de uma linguagem mais complexa, objeto projetado implicam a construção de corres-

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pondências entre formas e conteúdos, organizando- frente e dos fundos e pelas aberturas das fachadas
se progressivamente em esquemas que conectam laterais, é organizada em meios níveis” (9).
partes antes separadas. Este dinamismo atribui à
construção do partido um sentido eminentemente Também empiricamente, em cada situação especí-
operativo, antecipador das configurações composi- fica baseada na prática de concursos e avaliações
tivas que conduzirão à finalização do projeto” (8). no âmbito universitário, é possível identificar a pre-
ponderância deste conceito nas discussões entre
Todas estas definições, desde as mais simples como arquitetos, professores e membros das comissões
as de Neves, às mais sofisticadas, como as de Rogério julgadoras, sendo esta a característica fundamental
de Castro Oliveira, procuram sempre mais elucidar, que acaba por se estabelecer como um invariante,
ilustrar e compreender o projeto de arquitetura e o uma estrutura de pensamento que, pode-se supor,
momento de adoção do partido arquitetônico. Nota- continua válida como aspecto central da teoria de
se que no âmbito da experiência prática no Brasil, e projeto e da projetação no Brasil, teoria tributária
em face da maneira como o tema tem sido abordado também dos princípios acadêmicos e modernos her-
tradicionalmente, que cada autor, cada arquiteto dados pelos grandes mestres modernos brasileiros
poderia igualmente descrever a projetação de ma- tanto cariocas quando paulistas, em face do seu ca-
neira muito similar, alterando a ênfase neste ou risma e de sua longevidade, para além dos fatores
naquele aspecto, simplificando ou elaborando mais conjunturais históricos, resumidos por Futagawa
e mais o texto, mantendo, contudo a sua essência. desta maneira:

Deste modo pode-se concluir, a partir destes teóricos «Durante os períodos antes e depois da Segunda
brasileiros, que o Partido Arquitetônico é a idéia Guerra Mundial, a arquitetura brasileira passou
inicial de um projeto, que a sua formulação é uma por desenvolvimento específico através das obras
criação autoral e inventiva com base na coerência criativas dos arquitetos pioneiros como Lucio Costa,
e na lógica funcional, e que, o partido, sendo uma Afonso Reidy, Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas e
prefiguração do projeto, faz da projetação um pro- Lina Bo Bardi. Os princípios do modernismo fo-
cesso que vai do todo em direção à parte. ram aplicados e adaptados às condições locais do
contexto brasileiro, como se a idéia do modernismo
simpatizasse com o clima tropical do Brasil e da
cultura das pessoas que lá vivem. Mais tarde, veio à
luz uma forma única e original de arquitetura, que
Aeroporto de Florianópolis só existe no Brasil, e que vai além do movimento
Croquis de Mario Biselli modernista original.

Este conceito de Partido Arquitetônico parece ser O regime militar instalado no Brasil em 1964 pro-
um dos traços mais característicos da herança cor- vocou vinte anos de estagnação cultural, mas, ao
busiana no Brasil: mesmo tempo, também isolou a área de arquitetura
do movimento pós-moderno que envolvia todo o
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“Le Corbusier abordava o programa de arquitetura mundo naquela época. Portanto, o Brasil se tornou
partindo de princípios de ordem geral, adaptando-os um dos raros países que conta com sucessores le-
em seguida à situação real. O projeto era definido gítimos do movimento modernista, e esse pano de
pelo partido que se organizava do geral para o par- fundo influencia fortemente a produção dos jovens
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ticular. [...] A casa Baeta projetada por Vilanova arquitetos atuais, seguindo o princípio do moder-
Artigas em 1956, segundo o conceito de partido de Le nismo entre as novas gerações» (10).
Corbusier, define-se pelas empenas das fachadas da

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Quero propor a seguir algumas reflexões sobre Considerando, portanto, o cenário contemporâneo
estes temas acima citados em busca dos novos si- de grande diversidade arquitetônica, o partido
gnificados e usos destas terminologias, bem como arquitetônico é compreendido como a idéia que
uma compreensão contemporânea a respeito destes subjaz ao projeto, aquela identificada como idéia
mesmos processos. principal ou central, quando o projeto já se apre-
senta concluído, não importando quando esta idéia
surgiu. É a idéia que o projeto é capaz de veicular
ou expressar, o conteúdo intelectual de um edifício
ou projeto enquanto manifestação, mediada por
uma linguagem. É da avaliação destas idéias que
se ocupam as comissões julgadoras em concursos,
Ginásio Barueri professores em avaliação etc.
Croquis de Mario Biselli

Em primeiro lugar, sobre o que é partido arquite-


tônico.

Quando se usa a expressão “adoção do partido”,


deve-se observar o fato de que esta afirmação pode
pressupor uma biblioteca de partidos adotáveis,
como se estivessem todas as possibilidades já da-
das e catalogadas. Convenhamos, analogamente,
que adotar um filho é muito diferente de conceber
um filho”.
Igreja Tamboré
A afirmação de que o partido é a idéia preliminar Croquis de Mario Biselli

do edifício a ser construído, ou uma prefiguração do


objeto, que o projetista elege como ponto de partida De fato, a idéia central de um projeto pode nascer no
e fio condutor, não abrange a totalidade dos modos início do processo ou durante o processo - tal como
de projetar, portanto não é universal, como também descrito nos textos anteriormente citados – ou pode
não o é o movimento do todo em direção à parte. Um mesmo anteceder ao processo, como é o caso dos
claro exemplo disto são os projetos que envolvem arquitetos teóricos, cujas reflexões oportunamente
tecnologias de pré fabricação de componentes para se aplicarão na prática. Analisemos alguns exem-
aplicação em série, invertendo, portanto, o raciocí- plos de definições enunciadas por arquitetos que
nio, a parte precede o todo (projetos de James Stir- questionaram a teoria do projeto, revisando as tradi-
ling, tais como para o Andrew Melville Hall, 1968, e cionais concepções da coerência e lógica, funcional
University of St. Andrews Student Residence, 1967). e construtiva, do modernismo. É possível observar
também que em seus projetos há sempre uma idéia
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Proponho aqui pensar sob o pressuposto de que o central, não obstante a diferença de abordagem.
modo como cada arquiteto projeta é menos rele-
vante do que o resultado final do seu trabalho. A Robert Venturi propõe o abrigo decorado, um caixa
sua metodologia, que é sempre particular, tem um funcional inexpressiva acrescida de uma fachada bi-
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interesse menor neste momento. dimensional ornamentada e comunicativa segundo


a natureza do edifício.

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«Venturi prefere os abrigos decorados, porque ele


afirma que a sua comunicação é mais eficaz, em-
bora os arquitetos modernos tenham se dedicado
durante muito tempo a projetar ‘patos’. O pato é,
em termos semióticos, um signo icônico, porque o
significante (forma) tem certos aspectos em comum
com o significado (conteúdo). O abrigo decorado
depende de outros significados – a escrita ou a de-
coração – que são signos simbólicos» (11).

Aldo Rossi propõe: a forma fica, a função muda.


Por que então a função deve determinar a forma?
A forma deve ser determinada pelo ‘lugar’.
Igreja Tamboré
“A primeira grande crítica de Rossi foi ao que de- Croquis de Mario Biselli

nominou de funcionalismo ingênuo do movimento


moderno, que ao priorizar a explicação da cidade Mais recentemente Herzog e de Meuron adotam
apenas pela função, deixava de entendê-la pelo que modelos de exploração e geração de forma, carac-
tinha mais significativo: o conhecimento da arqui- terizado como um processo contínuo com auxílio
tetura pelo mundo de suas formas. A função era de do computador e sem final determinado, como no
uma circunstância que fazia uso da forma como um projeto para o Pavilhão Jinhua Structure II – Vertical
ato social. Ela nunca ia além de seu tempo, enquanto Basilea (ver AV Proyectos 007 2005, p. 40).
a forma permanecia” (12).
E numa postura contemporânea mais radical, no
Peter Eisenman sobrepõe à realidade do projeto – sentido de uma autonomia da forma, sobrepujando
função, programa, lugar, topografia – disciplinas ou tudo o mais, destaca-se os projetos de Frank Owen
conceitos sobre os quais explorar ou deconstruir a Gehry (Guggenheim Bilbao, 1997, e Walt Disney
forma, tal como assim se define: Concert Hall, 2003) e Zaha Hadid (tais como Contem-
porary Arts Center, 2003, em Cincinatti e MAXXI
“Os conceitos, nos quatro projetos, transitam, se Museo, 2010, em Roma).
justapõe, interagem em ato. Malhas, escalas, ras-
tros e dobras são freqüentemente concomitantes. A idéia central (ou Partido) pode ser identificada
Na exposição foram pensados como detonadores mesmo em situações onde a configuração funcional
de pensamento, como balizas para a percepção e é um dado, uma condicionante ou determinante, fato
inteligibilidade da obra de Peter Eisenman. Mas a comum quando em projetos para estádios, ginásios
concomitância entre inteligibilidade e percepção, esportivos, teatros e em alguns casos, aeroportos.
este movimento duplo parece ser recorrente e in- Via de regra configurações funcionais rígidas por
dissociável na reflexão e produção da arte” (13). tradição ou quando o próprio cliente é a autoridade
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no que tange às funções, muito comum no ramo das


indústrias. Em todos esses casos, a despeito dos li-
mites, o arquiteto encontrará espaço para introduzir
uma idéia, ora migrando da forma para a matéria
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(Herzog & de Meuron, Estádio Allianz Arena, 2005,


na Alemanha, e Estádio Nacional «Ninho do Pás-
saro», 2008, na China), ora enfocando radicalmente

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o design (como em Massimiliano Fuksas, no projeto fazer transposições entre estas (transtextualidade)
do Aeroporto Internacional Shenzhen na China, são os mecanismos do intelecto típicos da arte e da
ver AV proyectos 026 2008, p. 46) ou a tecnologia arquitetura. Compreendida em maior ou menor
construtiva (Renzo Piano, Estadio de Bari, 1990, na grau como linguagem, a arquitetura é uma atividade
Itália, e Richard Rogers, Aeroporto de Barajas, 2006, desta mesma natureza de mediação e manifestação
Espanha), etc. da idéia (14).

Em segundo lugar, cabe indagar, o que é a “caixa Assim procedem os artistas, um poeta descreve uma
preta”? paisagem (transposição do ícone para o texto), um
escritor descreve um personagem (ícone para texto),
O que ainda pode ser dito sobre a adoção/ invenção/ um desenhista produzindo um retrato falado (ícone
formulação do Partido Arquitetônico, o momento para texto e de novo para ícone), e tantas outras ati-
crítico imponderável, a caixa preta? vidades do homem, um artista pintando um retrato
(ícone para ícone), um ator em cena (texto para texto
mais imagem), sempre pressupondo interpretação
de um conteúdo numa linguagem seguido de uma
expressão em outra.

O partido arquitetônico, neste contexto, se dá no


momento em que o texto, compreendido como arti-
culação semântica – pensamento e idéia - expressa
na linguagem verbal, se transforma em ícone, trans-
posição da linguagem verbal para a linguagem não
verbal, ou de maneira mais precisa, a operação que
faz o arquiteto é de texto e ícone para ícone, pois o
Igreja Tamboré programa é texto e o lugar é ícone.
Croquis de Mario Biselli

Vamos admitir que os arquitetos fazem projetos e


isto é um fato; portanto, em algum momento um
determinado conjunto de informações se torna
uma idéia para um edifício. O campo das idéias
em arquitetura implica em um vasto campo de es-
tudo da teoria e da história, mas este não é o espaço
para desenvolver esse tipo de exercício intelectual e
acadêmico. Vamos apenas considerar, de maneira
mais simples, que este fato se relaciona com um
fenômeno humano de grande interesse das ciências
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humanas, por um lado, e da filosofia, passando no


século XX pelo estruturalismo, semiologia e semió- Casa LPVM, Guaecá
tica: o fenômeno da linguagem, compreendida como Croquis de Mario Biselli

manifestação e processo intrínsecos às diversas me-


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diações sígnicas. A capacidade humana de inventar As transposições entre linguagens podem inicial-
linguagens, a possibilidade de inventar distintas mente sugerir a idéia de tradução, mas as tentativas
linguagens – verbais e não verbais – e transitar e empreendidas no sentido de estudar a arquitetura

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- tanto como história como prática projetual - a partir sistema, que é inventado a partir de um sistema de
das estruturas da língua de forma automática – como convenções” (15).
tradução literal - apenas exacerbaram as diferenças
estruturais entre estas linguagens, diferenças que
implicam, para a arquitetura, num grau superior
de liberdade no nível da expressão, dada a ausência
de vínculos com as regras e convenções a que está
sujeita a linguagem fala/texto:

“O que se deve evitar nessa análise é a aplicação


mecânica do modelo da linguagem à arquitetura,
como fizeram diversos estudos semióticos. A apli-
cação mecânica de um modelo especificamente de-
senvolvido para a linguagem em outros sistemas
semióticos, como a arquitetura, apenas permite Teatro de Natal
reconhecer o que é semelhante à linguagem no Croquis de Mario Biselli

nível da ideologia, mas não define as diferenças de


estrutura interna entre a linguagem e, outros siste- E mesmo o referido sistema de convenções, ou
mas semióticos. Mesmo que seja possível conceber contrato social, compreendido como base da lin-
a linguagem como um sistema complexo de regras guagem, constitui um elemento limitador para a
subjacentes, e, portanto, que seja viável compará-la expressão em arquitetura:
com os sistemas explícitos e implícitos de regras da
arquitetura, as regras arquitetônicas são definidas “Não havia nenhuma razão especial para que os
por uma determinada facção de uma determinada ingleses designassem um animal de Bull, os franceses
classe social, ao passo que a língua não é proprie- o chamassem de boeuf e os alemães de Ochs. [...] Mas
dade de ninguém, nem em geral nem em particular.. porque a relação entre significante e significado era
Os sistemas de regras arquitetônicas não exibem arbitrária, devia ser respeitada por todos. Ninguém
nenhuma das propriedades da langue – não são pode mudar isso unilateralmente; há um contrato
finitos, não tem uma organização simples nem de- social entre todas as pessoas que falam inglês de que
terminam a manifestação do sistema. Ademais, as elas devem usar a palavra bull toda a vez que quise-
regras arquitetônicas estão em constante fluxo e rem se referir a esse animal específico. Se alguém
mudam radicalmente. usar outra palavra, ou inventar uma nova palavra
para esse fim, ninguém o compreenderá; ele terá
A aplicação mecânica do modelo da língua/fala à quebrado o contrato social. Note-se de passagem
arquitetura ocidental fortalece a ideologia arquitetô- que, com poucas exceções, não existe um contrato
nica, porque nega as diferenças entre a arquitetura e social para o significado da arquitetura, e esta é
a língua e ignora o lugar da linguagem natural na ar- uma diferença fundamental entre a arquitetura e
quitetura. Além disso, o fato mais importante talvez a linguagem” (16).
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seja que essa aplicação automática nega a presença


de “algo” que define uma importante diferença entre O homem de início pensou sobre as coisas, depois
a arquitetura e a linguagem – o aspecto criativo da começou a pensar sobre o próprio pensamento,
arquitetura. Na língua, o indivíduo pode usar, mas principalmente depois de Descartes, que levou tudo
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não modificar o sistema da linguagem (langue). O para dentro do intelecto (“je pense, donc je suis” –
arquiteto, ao contrário, pode e faz modificações no Discours de la Méthode, 1637). Com os arquitetos não
haveria de ser diferente. Em meio a dificuldades de

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solução para um projeto o arquiteto freqüentemente 4


se interroga sobre seu pensamento, seu método (que AMARAL, Cláudio Silveira. Descartes e a caixa
em projetos anteriores funcionara tão bem!). preta no ensino-aprendizagem da arquitetura. Ar-
quitextos, São Paulo, n. 08.090, Vitruvius, nov. 2007
Mas o projeto de arquitetura, embora circundado <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitex-
de problemas técnicos e profundamente vinculado tos/08.090/194>.
ao uso, é por natureza um processo criativo avesso a
enquadramentos, formatações, metodologias ou fór- 5
mulas. Permanece, portanto, e como desde sempre, NEVES, Laert Pedreira. Adoção do partido na arqui-
aberto à infinita inovação, ao espírito dos tempos, tetura. Salvador, Edufba, 1998, p. 15.
à antecipação de tendências, à revisão de paradig-
mas, e, no pólo oposto, a novas visitas e itinerários 6
interpretativos pelas tradições do passado. Idem, ibidem, p. 9.

7
OLIVEIRA, Rogério Castro de. Construção, composi-
ção, proposição: o projeto como campo de investi-
gação epistemológica. In: CANEZ, Ana Paula; SILVA,
Cairo Albuquerque (org). Op. cit., p. 35.

8
Idem, ibidem, p. 16.

9
ACAYABA, Marlene Milan. Brutalismo caboclo e as
residências paulistas. Projeto, São Paulo, n. 73, 1985.

Torres Empresariais na Rua Afonso Brás 10


Croquis de Mario Biselli FUTAGAWA, Yukio. Modernism Architecture of Bra-
zil. GA Houses, Tóquio, n. 106, p. 8. No original em
notas inglês:

1 “Throughout the periods before and after the World


BANHAM, Reyner. Teoria e projeto na primeira era War II, Brazilian architecture went through some
da máquina. São Paulo, Perspectiva, 1979, p. 40. unique development conducted by the creative
works of those pioneering architects such as Lu-
2 cio Costa, Alfonso Reidy, Oscar Niemeyer, Vilanova
LEMOS, Carlos. O que é arquitetura. São Paulo, Bra- Artigas, Lina Bo Bardi. The principle of the moder-
joliprint

siliense, 2003, p. 40-41. nism was fostered and adapted to the unique, local
conditions and contexts of Brazil, as if the idea of
3 the modernism sympathized with Brazil´s tropical
Alfonso Corona Martinez. Prefacio. In: CANEZ, Ana climate and the culture of the people who reside
Printed with

Paula; SILVA, Cairo Albuquerque (org). Composição, there. Later on, a unique and original form of the
partido e programa – uma revisão de conceitos em architecture only found in Brazil has brought to
mutação. Porto Alegre, Ritter dos Reis, 2010, p. 35.

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vitruvius.com.br

arquitextos 134.00: Teoria e prática do partido arquitetônico

light, which goes beyond the original modernism TSCHUMI, Bernard. Arquitetura e limites I (1980).
movement. In: NESBIT, Kate (org.). Uma nova agenda para a
arquitetura. São Paulo, Cosac Naify, 2006, p. 172-177.
The military regime founded in 1964 brought a
20 years of cultural stagnancy to Brazil, but at the TSCHUMI, Bernard. Arquitetura e limites II (1981).
same time that also caused their architecture field In: NESBIT, Kate (org.). Op. cit., p. 177-182.
to be isoladed from the postmodernism movement
that had involved all over the world at that time. TSCHUMI, Bernard. Arquitetura e limites III (1981).
Consequently Brazil has become one of the rarest In: NESBIT, Kate (org.). Op. cit., p. 183-188.
countries that remain with the legitimate successors
of the modernism movement, and this background TSCHUMI, Bernard. Arquitetura e limites III (1981).
strongly affected to produce today´s young archi- In: NESBIT, Kate (org.). Op. cit., p. 183-188.
tects following the modernism priciple among new
generations” TSCHUMI, Bernard. Introdução: notas para uma
teoria da disjunção arquitetônica (1988). In: NESBIT,
11 Kate (org.). Op. cit., p. 188-191.
JENCKS, Charles. The Language of Post-modern Ar-
chitecture. Nova York, Rizzoli, 1977, p. 45. No original EISENMAN, Peter. Diagram Diaries. Londres,
em inglês: Thames & Hudson, 1999.

“Venturi would prefer more decorated sheds, be- ABASCAL, Eunice Helena S.; ABASCAL BILBAO,
cause he contends, they communicate effectively, Carlos . Arquitetura e ciência. Reflexões para a
and modern architects have for too long only desig- constituição do campo de saber arquitetônico. Ar-
ned ‘ducks’. The duck is, in semiotic terms, an iconic quitextos, São Paulo, n. 11.127, Vitruvius, dez. 2010
sign, because the signifier (form) has certain aspects <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitex-
in common with the signified (content). The deco- tos/11.127/3688>.
rated shed depends on learned meanings – writing
or decoration – which are symbolic signs.” 15
AGREST, Diana; GANDELSONAS, Mario. Semiótica e
12 arquitetura: consumo ideológico ou trabalho teórico.
SPADONI, Francisco. Rossi: figura, memória e razão. In NESBIT, Kate (org.). Op. cit., p. 137-138.
In: Informe arqlab (boletim informativo do Labo-
ratório de Arquitetura do Curso de Arquitetura e 16
Urbanismo da Faculdade de Belas Artes), São Paulo, BROADBENT, Geoffrey. Um guia pessoal descompli-
n. 1, fev. 1998, p. 3. cado da teoria dos signos na arquitetura. In NESBIT,
Kate (org.). Op. cit., p. 153.
13
SUMNER, Anne Marie. Prefácio. In: Gridings, Sca- sobre o autor
joliprint

lings, Tracings and Foldings in the work of Peter Eisen-


man. Catálogo de exposição. São Paulo, Masp, 1993. Mario Biselli é arquiteto formado pela FAU Mac-
kenzie, mestre em Arquitetura e Urbanismos pela
14 mesmo instituição. É sócio do escritório Biselli &
Printed with

Abordagens acerca do mesmo fenômeno, ver: Katchborian arquitetura e professor do Departa-


mento de Projeto da FAU Mackenzie

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