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Aedos no 12 vol.

5 - Jan/Jul 2013

ESG e campo cultural no Brasil – Apontamentos para o estudo da relação


entre os Militares e o Estado Brasileiro (1930-1964)

Luiz Felipe Cezar Mundim*

RESUMO: : A ESG no momento de sua criação, no final da década de 1940, deu início à atividade de
produção ideológica inserida em um campo cultural específico, permeado de tensões e de disputas sim-
bólicas. Os projetos teóricos dos autores nesse campo cultural representavam modelos teóricos de expli-
cação do mundo e de história do Brasil enquanto projetos de nação. O artigo aponta para o fato de que a at-
uação de determinada facção das Forças Armadas Brasileiras entre 1930 e 1964 destaca mais a relação
dos militares com o Estado e com o que entendiam como nação do que a sua própria jornada corporativa.

Palavras-chave: ESG; Campo Cultural; Estado.

ABSTRACT: The ESG at the time of its creation in the late 1940s initiated the activity of ideological produc-
tion inserted into a specific field of cultural production, riddled with tensions and symbolics disputes. The theo-
retical projects of the authors represented in this field of cultural production represented theoretical models of
world’s explanation and of the Brazil’s history as nation projects. The article points to the fact that the perfor-
mance of a particular faction of the Brazilian’s Army between 1930 and 1964 highlights further the relation-
ship of the military with the state and with what they understood as a nation than its own corporate journey.

Keywords: ESG; The Field of Cultural Production; State.

O interesse deste artigo está em contribuir com a compreensão da relação en-


tre os militares e o Estado brasileiro contemporâneo. A partir desse interesse, pretendo lan-
çar algumas questões que dizem respeito ao contexto de um período da revolução capi-
talista brasileira, compreendido entre 1930 e 1964. Procuro observar, nesse recorte, de
que forma o projeto teórico-político dos militares brasileiros – com destaque para ele-
mentos das obras literárias dos intelectuais militares Juarez Távora e Golbery do Cou-
to e Silva – buscava estabelecer diretrizes políticas para o Estado, tendo a Escola Supe-
rior de Guerra (ESG) como o meio institucional catalisador da viabilização desse projeto.
Com o termo revolução capitalista, entendo todo o processo de ajustes e rede-
finições do sistema no Brasil durante o século XX. Este processo atinge seu maior grau de
complexidade (de plena amplificação do Estado nas diversas agências; com a passagem
gradual do processo de exploração da mais valia absoluta para a relativa) apenas com o fi-
nal do ciclo de golpes político-militares, o que ocorreu após o regime civil-militar de 1964.
O estudo que deu origem a este artigo foi elaborado por meio da análise das obras
de Távora e Golbery, em conformidade com seus percursos políticos. Esses autores tam-
bém são entendidos, no estudo, enquanto intelectuais numa perspectiva sociológica. A
abordagem e a metodologia buscaram apontar, no meio interinstitucional a que se vin-
cularam ao longo de suas carreiras pública e militar, a construção e a consolidação de
uma visão de mundo para a organização do Estado brasileiro. O objeto de estudo, des-
sa forma, acabou por se constituir na relação desses intelectuais com a ESG, principal ins-

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tituição que possibilitou a formação de uma intelligentsia civil-militar nesse período.


Com o conceito intelligentsia, Karl Mannheim buscou atribuir certa autonomia rela-
tiva ao estrato dos intelectuais, como meio de passar de uma visão particular de ideologia
para uma concepção valorativa de ideologia, ou seja, enfatizar na figura do intelectual o su-
jeito responsável pela produção de valores. O que destaco do conceito de intelligentsia, ain-
da que a ênfase de Mannheim esteja no caráter autonomista atribuído aos intelectuais, é a
definição de que são eles os sujeitos que universalizam uma visão de mundo política, sen-
do que suas práticas diferem-se do intelectual-funcionário (em sentido gramsciano), que
quase sempre é gestor (um engenheiro, um advogado, etc.). A intelligentsia é a fração que
produz teoria, os modelos explicativos, as bases das visões de mundo das classes sociais. O
potencial operatório do conceito de intelligentsia, no que diz respeito à compreensão dos in-
telectuais brasileiros no período em que tratei, está na caracterização da organização desse
estrato, percebido como camada ‘intersticial’ diante dos interesses das classes em conflito.1
Juarez Távora e Golbery foram os intelectuais escolhidos por serem entendidos nes-
sa pesquisa como os ideólogos mais representativos na construção e na representação des-
sa intelligentsia civil-militar. Como se verá adiante, a opção pela análise dos dois tinha em
vista as possibilidades de estabelecer relações históricas ao observar a ESG a partir de seus
membros proeminentes, a começar pelo papel que Juarez Távora desempenhou na aber-
tura e no comando dessa instituição, contribuindo com a estruturação e com a elaboração
de esboços dos conceitos e noções gerais norteadores da doutrina assumida pela Escola.
É possível observar, na Doutrina de Segurança Nacional (DSN), elementos históricos es-
truturais do combatente nas fileiras rebeldes do tenentismo, da década de 1920, e do vencedor em
plena “caminhada no altiplano”2 a partir da “Revolução” de 1930. Da mesma forma e homologa-
mente, é possível observar, no contexto da evolução das Forças Armadas na primeira metade do
século XX no Brasil, a construção e a consolidação de uma ideologia militar para a organização
do Brasil, perceptível mesmo na trajetória política e na evolução dos textos de Juarez Távora. A
afirmação de tal evolução pode ser apontada, institucionalmente, na criação da ESG, em 1948.
Em Golbery, esses elementos ideológicos e doutrinários são ampliados e aprofundados no
campo da teoria. O seu papel, mediante a ESG, é mais rico do que a simples descrição de um intelec-
tual militar que contribuiu com algumas ideias e com a conspiração para o golpe de 1964. Golbery
é, sobretudo, o ideólogo de um projeto político-ideológico que envolveu militares e setores da
classe dominante voltado a aplicar determinado modelo de organização para o Estado brasileiro.
Ao falar de setores da classe dominante lembro em especial a definição de fração de
classe de Bourdieu. O sociólogo atenta ao fato de que dentro da classe dominante existem diver-
sas frações dominantes, que “lutam pela legitimidade de sua dominação quer por meio de sua
própria produção simbólica, quer por intermédio dos ideólogos conservadores” (BOURDIEU,
2004, p. 12). Mesmo no contexto da produção acadêmica recente, de problematização do cará-
ter generalista de uma interpretação nesse sentido, ainda me parece pertinente insistir com essa
terminologia. Determinados aspectos do Brasil de 1930 a 1964 ainda não foram suficientemen-

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te abordados nesses termos, particularmente na relação entre militares e Estado. Ao tempo em


que havia a disputa política franca entre oligarquias agrárias paulista e mineira, a entrada neste
cenário de uma burguesia em crescimento ainda tímida politicamente, mas forte economica-
mente, e de uma tecnocracia crescente preocupada com administração de todo o território do
país – e neste último grupo os militares de tradição tenentista e de formação nas missões france-
sa e alemã – o pós-1930 oferecia a oportunidade a todos esses grupos de contribuírem ideologi-
camente com a organização do próprio Estado brasileiro, que passou a se ampliar gradualmente.
A intenção inicial da pesquisa era elaborar uma investigação que pudesse relacionar a
ESG com a produção intelectual de seus membros. O recorte documental era composto pelas
conferências dos membros da Escola proferidas nos cursos, e também por livros publicados por
eles, em especial os de Golbery. Pretendia, com isso, algo que de diferentes formas já havia sido
realizado por outros historiadores: apontar no projeto teórico da ESG uma visão de mundo e um
projeto de classe, demonstrando a sua contribuição para o desfecho do golpe de 1964 e para a
construção da doutrina que orientou as práticas do Estado durante a ditadura.3 A novidade seria
a possibilidade de adentrar a essas conferências, que estavam disponíveis abertamente na ESG
e que não haviam sido analisadas em um recorte que retomasse a abertura da própria Escola.
A problemática, nesse caso, compunha-se de questões referentes ao quadro de con-
tribuição e participação política da ESG de 1948 a 1964, ao modo com que a Escola con-
dicionava as práticas políticas dos intelectuais que a ela pertenciam, e a como essa me-
diação entre instituição e intelectual possibilitou interpretação da historicidade da visão
de mundo produzida pelos intelectuais referidos. A partir disso, a intenção era saber como
essa visão de mundo, produzida naquela Escola, teria servido a um projeto de classe.
Entretanto, durante o desenvolvimento da pesquisa, o contato com as conferências e
com os livros levaram a duas questões de fundo: a compreensão de que era necessário retro-
ceder e alargar um pouco o recorte para que não se cometesse o erro primário de deixar de
fora a relação dos militares com o Estado, uma vez que, pelo contato com as fontes o valor
heurístico desta questão era evidente; e a necessidade analítica de que a ESG fosse inserida
num contexto intelectual mais abrangente, o do campo cultural que se formava no Brasil a
partir da década de 1940. Impuseram-se, assim, novos problemas que acabaram por sobre-
por a problemática inicial. Dentre esses novos problemas, dois objetivos foram buscados dos
quais apresento os resultados parciais neste artigo: a) contribuir com a compreensão, ao menos
parcialmente, do caráter da relação dos militares com o Estado brasileiro nesse período; b)
identificar e compreender o ambiente intelectual em que a Escola se construíra e se afirmara,
ou seja, traçar o perfil do campo cultural em que estava inserida e identificar as características
iniciais e gerais da intelligentsia que estava à sua disposição nos primeiros anos da Escola.

Os Militares e o Estado Brasileiro


As transformações ocorridas no Brasil a partir da déca-
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da de 1930 são decisivas para o exame dos principais elementos históri-


cos que definem a dimensão da relação entre militares e Estado que proponho.
Por Estado, nota-se a pertinência da definição, dentre as diversas existentes, daquela dada por
Nicos Poulantzas. O autor destaca da noção de Estado, comparável com o próprio capital, a impor-
tância de considerá-lo “como uma relação, mais exatamente como a condensação material de uma
relação de forças entre classes e frações de classe” (POULANTZAS, 2000, p. 130). A partir desta
noção destaca-se o papel dos militares nas transformações da década de 1930 em diante, perceptí-
veis de um ponto de vista relacional com o Estado, mais do que meramente corporativo e estanque.
Conforme a historiadora Sônia Regina de Mendonça aponta em Estado e Economia no
Brasil, foi a partir do golpe de 1930 que se estabeleceu uma ruptura na forma de acumulação
capitalista no País. A consolidação da presença do Estado na economia, por meio dos investi-
mentos estatais na indústria de bens de produção, representou rompimento com as concepções
liberais, na medida em que as decisões econômicas foram deslocadas para o interior do Estado.
O novo Estado também permitiu ampliação do campo de tensões políticas e econômicas em
seu seio, expressas no surgimento e no fortalecimento das variadas representações de classe
(como os sindicatos e as associações) e na multiplicação dos órgãos burocráticos. Esse campo
de tensões foi onde se criou e se fortaleceu, fundamentalmente, a produção ideológica. No
Brasil pós 30 e Estado Novo, a ideologia majoritariamente formulada foi a de Estado, pro-
duzida como aparato de legitimação do “projeto de nação” (MENDONÇA, 2000, pp. 15-38).
Numa leitura complementar desse período, Luiz Werneck Vianna atenta que ape-
sar de frações da classe dominante terem ganhado espaço econômico e social, as suas
participações políticas foram controladas na medida em que seus líderes também par-
ticipavam no poder estatal, além da repressão do regime. Em meio a esse contexto, atu-
avam o movimento operário e o tenentismo. Ao tempo em que as leis trabalhistas e o
corporativismo sindical desarticulavam a oposição dos trabalhadores ao Estado, a reestru-
turação do Exército e a ideologia de Estado autoritário dividiam e assimilavam os tenen-
tes ao limitado espaço político concedido a eles no governo (VIANNA, 1999, p. 178).
A ideia de tenentismo tem a sua origem no tempo em que o movimento era ati-
vo e compunha um agente histórico formado pelos chamados “militares revolucioná-
rios” de 1930. Advém do próprio termo tenente, personagem histórico criado pelos po-
líticos do pós-1930 que se opunham a esse grupo de militares. Acusados de não serem
“revolucionários”, esses políticos também criaram sua forma de acusar os militares de não
serem exatamente “revolucionários”, tratando-os pejorativamente como “tenentes” (BOR-
GES, 1992, pp. 139-166). Não cabe aqui caracterizar o tenentismo propriamente dito, mas
apenas destacar a atuação e o sentido do movimento na apreensão dos indivíduos envolvi-
dos na criação da ESG, que viveram o movimento e carregaram a marca dessa experiência.
Em dezembro de 1931, quando o Clube 3 de Outubro apresentou o seu estatuto e o
seu manifesto de criação, os tenentes tentaram se reorganizar em torno de um esboço do que
deveriam ser, no entendimento deles, as ideias “revolucionárias” orientadoras da nova Cons-

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tituição. Quando da sua fundação, O Clube 3 de Outubro tinha à sua frente Pedro Ernesto
como presidente e, na diretoria, o general Góes Monteiro, o comandante Hercolino Cascardo
e o Ministro Osvaldo Aranha, respectivamente 1º, 2º e 3º vice-presidentes.4 Durante os pri-
meiros momentos de existência do Clube, Juarez Távora encontrava-se convalescente e não
pôde participar. Entretanto, sua participação no Clube, principalmente na redação das teses
principais apresentadas no Congresso Nacional Revolucionário, foi incisiva até assumir o Mi-
nistério da Agricultura, em dezembro de 1932. Entusiasta das ideias proferidas no Clube, Tá-
vora as defendia e as representava nos congressos e, após a sua extinção, passa a articular
a criação de outros “partidos revolucionários”, inspirado no ideário do Clube 3 de Outubro.
Juarez Távora é o melhor exemplo da definição do tenentismo nos termos em
que o Clube representava. Tal visão já se fixava claramente em suas cartas trocadas com
Prestes, quando da adesão deste ao comunismo; nelas, prevalece o discurso da autori-
dade e da neutralidade do Estado e da administração pública, que deveria ser orienta-
da por uma vocação que fosse “própria e natural ao Brasil”. Prevalece, também, a refe-
rência constante a Alberto Torres, a quem o Clube 3 de Outubro sempre reverenciava.5
O Clube apoiava incondicionalmente Getúlio Vargas, mas polemizava e especializou-se
em gerar crises no ambiente governamental. Até 1934, todos os membros da primeira diretoria já
estavam fora do Clube que, não bastasse ter perdido os seus participantes mais ilustres, também
sofreu ressalvas severas de Osvaldo Aranha e Góes Monteiro (CARVALHO, 2005, pp. 72-73).
Com a derrota do Clube, alvo da oposição de todos os partidos políticos, dos socialistas
aos liberais, e da indiferença do governo, dissolvia-se o que restava do ideário original do tenen-
tismo. Frustraram-se, também, as tentativas de criar uma ideologia para o Estado baseada em seu
programa de caráter pequeno-burguês e que, apesar de distante dos “extremos elitistas” agrários
ou burgueses e da ameaça dos proletários, preconizava o direito à greve, à instituição do traba-
lho coletivo, à nacionalização das riquezas naturais e afirmava a função social da propriedade.
Por outro lado, a ideia sempre presente da racionalização profunda do Estado
e da administração pública, assim como a da centralização autoritária e antiliberal, ga-
nhou respaldo no governo. O Estado brasileiro arregimentava os seus intelectuais e dava
forma à sua ideologia autoritária e conservadora, ainda que buscasse empreender mu-
danças de caráter progressista na organização da economia e do aparelho burocrático.
Os militares ocuparam, então, parte expressiva nessa reforma dentro da ordem. Compu-
nham a organização mais especializada em termos técnicos e de planejamento – fatores curriculares
recorrentes nas disciplinas responsáveis pela formação dos Colégios e Escolas militares, que se re-
estruturavam desde o início da década de 1920, com as visitas das missões francesa e alemã, quando
foram fixadas noções mais firmes de hierarquia, planejamento estratégico e formação dos oficiais.
O Exército tomava a sua forma mais moderna e organizada, tendo no General Góes Mon-
teiro a sua principal liderança intelectual e política.6 Uma visão da evolução do ideário político
dos militares está disponível, por exemplo, na noção de Partido Fardado presente nas análises de
diversos autores, principalmente em Oliveiros S. Ferreira, que a usa para entender o que chama

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de fração das Forças Armadas com características de uma facção política, em formação desde o
final do século XIX, e que se afirmou vitoriosa em 1964. Ferreira destaca as noções de hierar-
quia, honra, patriotismo, disciplina e ordem, como expoentes de uma ideia de unidade orgânica
nas Forças Armadas que formaria o principal elemento da composição do Partido Fardado.
Entretanto, ao mesmo tempo em que Góes Monteiro representava o Exército e, jun-
tas, as Forças Armadas e algumas das principais ideias do tenentismo, ao assumir o comando
militar da revolução, e o ministério da Guerra até 1935, era ele o militar diretamente com-
prometido com a ordem e a direção do Estado. Retirava, então, a ação dos tenentes da cena
política, preocupado em evitar “radicalismos”, e até 1945 serviria ao Estado Novo e a Getúlio
Vargas convencido de que carregava com em si a ideia mais correta de um Exército nacional:

Ele (Góes Monteiro) tinha a clara consciência da disjuntiva que se colocava


para o Exército, e teve a socorrê-lo na solução do problema – que só poderia ser incor-
porar o espírito dos tenentes e retirá-los da cena política – a Revolução de 32 que colo-
cou em xeque o governo revolucionário. (...) Promovido a general em 1931, na eferves-
cência do tenentismo vitorioso, Góes será o intelectual do Partido Fardado, o general
que incorporará o desprezo pelos civis (...). Ao mesmo tempo em que tem uma ideia
muito clara de qual é o interesse do Estado, ele faz do Brasil uma imagem sem retoques
e sabe, por isso mesmo, que o Exército deve ocupar e servir o País. Não apenas isso o
qualificaria, porém, a ser o “Intelectual do Partido”; ele o é porque foi o primeiro – e o
único general – a dar ao Exército uma missão política que acabava redundando numa
concepção do Estado. Em outras palavras, construiu uma doutrina para o Partido e
pretendeu que ela fosse a doutrina política para o Exército (FERREIRA, 2000, p. 93).

A tese de Oliveiros S. Ferreira é a de que o percurso do Partido Fardado, desde a Questão


Militar com o Floriano, foi o de facção política em composição e, a partir de Góes Monteiro, em
afirmação dentro das Forças Armadas, quando conseguiu incorporar a noção de hierarquia militar
em todas as armas em razão da influência decisiva na criação do Estado Maior das Forças Armadas.
O Partido passava da concepção contestatória à concepção de doutrina política para o Estado. Esse
aspecto da evolução no pensamento militar pode ser elucidado na própria fala de Góes Monteiro,
na ocasião da reunião dos generais em dezembro de 1935, realizada logo após o levante comunista:

O mal é institucional. O reconhecimento desse mal foi que me induziu a che-


fiar militarmente o movimento de 1930, pois antes já o assinalara com indizível ansie-
dade. Depois da vitória da Revolução de Outubro, em todas as posições que ocupei,
até a de Ministro da Guerra, em todas as atividades e comissões que exerci, inclusive
como membro da Subcomissão de Constituição; no Exército e fora do Exército, todas
as minhas preocupações e trabalhos se orientaram no sentido invariável de livrar a mi-
nha Pátria dos flagelos que a ameaçam. (...) Reconhecemos a priori que a atual Consti-
tuição ou se torna inexequível e violável, ou nos arrastará à perda definitiva. Sem mudá-
-la ou reformá-la, impossível será garantir o Estado brasileiro e manter em bom ponto
as condições da segurança nacional. (...) As forças armadas têm o dever de garantir e
nunca de tutelar os poderes públicos. Mas o dilema é evidente: com a atual Constitui-
ção, o passado se repetirá, o mal se agravará, sucumbiremos proximamente. O Gover-
no deve então, substancialmente, cuidar de não nos deixar perecer. Nenhuma solução
de mezzo termino satisfará. Somente uma solução definitiva, que nos leve gradual-
mente ao objetivo final, que é o equilíbrio social (MONTEIRO, 1956, pp. 308-310).

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Depois de lido o voto escrito, por Góes, o general Dutra teria optado pela proposi-
ção do golpe de Estado. A medida seria levada a cabo em dois anos, após um veículo inten-
so de propaganda, violências diversas e terror policial, tal qual se preparam os golpes fascis-
tas, para criar as condições indispensáveis à instauração da ditadura, como foi descrito por
Sodré.7 Góes Monteiro e Eurico Gaspar Dutra formavam a liderança da cúpula militar. De-
finiam, para o Estado e para as Forças Armadas, a ideia do papel dos militares no Brasil, ao
mesmo tempo em que estabeleciam as bases da noção de Estado brasileiro para os militares.
São essas noções, de restabelecimento da hierarquia e da disciplina, do poder central capaz
de orientar a nação e da república como espaço de política, em que não deveriam ser permiti-
dos jogos pessoais de poder, que os afastariam, mais tarde, definitivamente de Getúlio Vargas.
A relação dos militares com Getúlio Vargas é fundamental para a compreensão da pró-
pria relação entre os militares e o Estado brasileiro contemporâneo. A evolução dessa relação,
caracterizada pela construção da aliança – de 1930, com o fortalecimento do papel político dos
militares, até 1937; passando pelo forte vínculo com Vargas e com o Estado, até 1945, quando
gradativamente se dá o início do afastamento; e, por fim, a oposição e o conflito definitivo na
primeira metade da década de 1950, foi o que marcou o desenvolvimento e o amadurecimen-
to nas Forças Armadas do pensamento militar (intrínseco a seu papel político) para o Brasil.8
A ideia de Partido é interessante por dar unidade ao processo de politização e atuação
da ala dos militares envolvida com o poder e com os golpes de Estado. A ênfase no caráter
partidário do grupo de militares, que a partir de 1948 fixaram a sua representação na ESG,
entretanto, pode atribuir o excessivo isolamento e autonomia do objeto de análise, tal qual a
proposição conceitual feita por Edmundo Campos Coelho no livro Em Busca de Identidade,
de 1976, no qual insiste na necessidade de entender as Forças Armadas como organizações.
Trata-se de definição dos militares por suas características, na condição de grupo coeso, com
autonomia e interesses próprios, como um partido, porém fechado em torno deles mesmos e
em franca disputa com as demais organizações na sociedade civil (COELHO, 2000, p. 18).
A ênfase na motivação corporativa para a ação dos militares brasileiros nesse período é
bastante difundida, e é apresentada aqui apenas para rápida localização do tema no debate histo-
riográfico. Outro exemplo, além de Campos Coelho e Oliveiros Ferreira, é o texto clássico de Ítalo
Tronca de 1986, O Exército e a industrialização: entre as armas e Volta Redonda, sobre a relação dos
militares com a construção da Usina Siderúrgica de Volta Redonda, considerada e bem defendida
pelo autor como ação de interesse quase meramente corporativo dos militares em adquirir mate-
rial bélico (TRONCA, 1986). Nesse caso, a análise é talvez uma das mais bem sustentadas entre
os estudos sobre os militares brasileiros, porém, tem a marca do estudo de natureza conjuntural.
Num sentido diverso, outro estudo relevante sobre os militares no Brasil, ainda incontor-
nável para qualquer pesquisa na área por reunir dados e fontes até então inéditos, é o do brasilia-
nista Alfred Stepan. Stepan diz em seu Os militares na política que as intervenções militares na
política brasileira do século XX se explicam pelo “padrão moderador” que os militares exerciam
na organização do Estado. Esse “padrão” corresponderia à relação entre os militares e os civis na

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vida política, que conferia ao primeiro o papel de depor um governo civil e transferir a outro tam-
bém civil. No caso do golpe de 1964, esse padrão teria mudado, e os militares teriam se organizado
o suficiente para exercer um novo papel e assumir o governo diretamente, diante da crise política
e institucional (e também hierárquico-militar) durante o governo de Goulart (STEPAN, 1975).
A análise, nos termos desses autores, sublinha a tendência autonomista das For-
ças Armadas e, ao se preocupar principalmente em dar importância ao estudo da vida
e da dinâmica interna das instituições militares, desvinculam-nas quase completamen-
te do funcionamento da dinâmica social no Brasil. O estudo das Forças Armadas, em es-
pecial o que as percebem como organizações, atribui aos militares o caráter de gru-
po essencialmente distante das contradições internas do próprio Estado, como se esse
fosse apenas um meio de realização dos objetivos de uma organização como qualquer outra.
Dessa asserção das Forças Armadas como organizações, pois, extrai-se a pro-
fícua possibilidade de perceber no Exército uma organização nacional que, a par-
tir de 1930, cumpria o papel de interação administrativa ampliada com o Estado (mais
do que disputava o poder político dele), fornecendo algumas das principais soluções
econômicas e sociais para a estruturação do aparelho estatal em termos modernos.
Luiz Werneck Vianna, no texto já mencionado, defende que o Estado constituiu-se
como o “partido da burguesia” (desacompanhado da ideologia burguesa) no Brasil pós 1930,
por meio de institucionalização corporativa que tinha em amplos setores da sociedade – como
os militares do tenentismo – a sua organização modernizante (VIANNA, 1999, pp. 123-178).
Wanderley Guilherme dos Santos em Ordem Burguesa e Liberalismo Político também diz que
o Exército no Brasil já era uma organização nacional antes de a burguesia se organizar como
classe nacional (até fins da década de 1940), e que assumiu assim o papel de organizador das es-
truturas administrativas do Estado, como a burocracia pública. O diferencial do exército era que

aberto a diversas formulações ideológicas e influências profissionais – o


positivismo, a geopolítica, o nacionalismo, as missões alemã e francesa –, o Exér-
cito brasileiro necessitou acomodar concepções divergentes quanto à natureza da
boa sociedade a ser criada e quanto ao modo de criá-la (SANTOS, 1978. p. 114).

Nesse sentido a análise da produção ideológica e das características da doutrina da ESG,


tomando como ponto de partida o estudo da obra intelectual, pontuada pela trajetória política,
de Juarez Távora e de Golbery, pode contribuir com a compreensão do período em questão. A
proposta de realizar um estudo da trajetória política e militar de militares pertencentes à ESG
também já foi realizada por Eduardo Svartman. Em sua tese de doutorado em Ciência Políti-
ca, Guardiões da Nação, de 2006, Svartman procurou realizar uma análise que apresentasse o
domínio político do regime civil-militar de 1964 a partir de seus agentes militares, dispostos
em grupo de 24 generais escolhidos pelo autor por critérios de identificação baseados na for-
mação profissional e ideológica. Juarez Távora e Golbery fazem parte desse grupo. Entretanto,
a abordagem segue principalmente a via da análise da trajetória política e militar dos generais
escolhidos. Num sentido um tanto diverso, na origem desta pesquisa a análise das obras de Ju-
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arez Távora e Golbery, à luz de suas trajetórias política e militar, procurou levantar elementos
que compõem projetos de classe como projetos de nação em um determinado campo cultural.

ESG: ideologia e campo cultural


A partir da década de 1940, principalmente, a produção ideológica brasileira passou
a se afirmar na intermediação da prática institucional. As instituições de altos estudos, como
a ESG, o Instituto Superior de Estudos do Brasil (Iseb) e o Instituto Joaquim Nabuco de Pes-
quisas Sociais (IJNPS), assim como algumas instituições partidárias, como o PCB, e mesmo
o fortalecimento dos centros universitários, como a USP, serviram aos intelectuais brasilei-
ros meios práticos para os seus projetos teóricos. Nesse período, tivessem os intelectuais pen-
samentos que se identificassem na direita ou na esquerda política, a ligação que seus traba-
lhos tinham com formato de projeto para ação futura é talvez o ponto mais importante a ser
observado; e em instituições como as mencionadas, estava o meio possível de fecundação
e circulação de suas ideias. Da mesma forma, a partir do momento em que a prática polí-
tica dos intelectuais, produtores desses projetos, firma-se na mediação institucional própria
do campo cultural, tornam-se, pois, expressões de visão de mundo e de projetos de classe.9
Para a caracterização desse campo cultural de disputa ideológi-
ca pode ser dado o exemplo da relação entre a ESG e o Iseb no período.
A forma ideológica nacional-desenvolvimentista do Iseb, na divisão proposta por Pé-
caut, representa apenas o primeiro momento da evolução da instituição, tendo Hélio Jaguaribe
à sua frente nesse momento (de criação do instituto, em 1955, até 1958). Hélio Jaguaribe, soci-
ólogo e economista de formação, e marcadamente de orientação desenvolvimentista, publicou
dentro do Iseb o livro O nacionalismo na atualidade brasileira, tratando sobre os perigos de
um “nacionalismo mal interpretado”, que poderia dificultar a consecução da política nacional
que fosse ‘racional e eficaz’, ou seja, que aceitasse investimentos estrangeiros. A publicação
acabou por resultar em seu pedido de demissão da instituição, após Roland Corbisier assumir
a direção. A segunda fase, com Roland Corbisier à frente, definiu-se pelo nacional-populismo,
até 1960, quando Álvaro Vieira Pinto assumiu, e intelectuais como Nelson Werneck Sodré e
Wanderley Guilherme dos Santos passam a se destacar na instituição, marcando a fase nacio-
nal-marxista. Militar de carreira, Sodré seria um dos principais representantes desse terceiro
momento do Iseb, diferenciando-se dos demais intelectuais isebianos em sua atuação, que se
caracterizou mais como a de intelectual de ação do que intelectual mannheimiano, tendo em
vista os projetos que desenvolveu pelo Iseb, como o História Nova, que envolvia o movimento
estudantil. Esse terceiro momento foi o que mais estimulou os ataques da imprensa e da ESG
ao Iseb, até que foi finalmente fechado com o golpe de 1964 (PÉCAUT, 1990, pp. 107-114).
Se por um lado a efervescente produção ideológica e intelectual no Brasil, na dé-
cada de 1950, possuía a sua forma nacional-desenvolvimentista em síntese no Iseb,
por outro, tinha a sua forma nacional-conservadora e autoritária representada na ESG.
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A polaridade ideológica existente entre essas duas instituições (mais evidente na tercei-
ra fase do Iseb, sob a liderança de Nelson Werneck Sodré) reproduzia-se não apenas no campo
teórico – como nas diferenças dos conceitos que ambos tinham de segurança e desenvolvimento
–, mas, também, materializava-se em artigos jornalísticos com acusações entre ambos os institu-
tos, além da elaboração de documentos sigilosos, como a Exposição de Motivos n. 003-B, de 10
de dezembro de 1959, documento secreto encaminhado ao presidente Juscelino Kubitschek pelo
general Edgar do Amaral (que cursara a ESG, e era então Chefe do Estado Maior das Forças Ar-
madas), no qual as práticas do Iseb eram enquadradas como “infiltração” (PINTO, 2006, P. 87).
Da mesma forma, os isebianos viam a ESG com reserva; muito embora as Es-
colas não estivessem em franco conflito antes da saída de Hélio Jaguaribe. A re-
lação entre os dois institutos, desde a criação do Iseb, era conflituosa, como o pró-
prio Hélio Jaguaribe assumiria posteriormente em entrevista. Para ele, os militares
da ESG “tinham uma perspectiva muito ingênua, dicionarizada” (MATTOS, 1988).
Mais interessante era a relação do IJNPS, representado pela figura de Gilberto Freyre, com a
ESG. Gilberto Freyre, ao lado de Oliveira Vianna, era considerado pela ESG um dos grandes soció-
logos brasileiros, no qual os estudos sobre o Brasil e a formulação da doutrina deveriam se espelhar.
Freyre, invariavelmente, era convidado a palestrar para os militares e, na época da
criação da ESG, proferiu palestra na Escola de Estado-Maior (EEM) do Exército que ficaria
famosa e mais tarde seria publicada pela Editora José Olympio, com o título Nação e Exérci-
to. A palestra carregava forte noção de equilíbrio de antagonismos, onde se atribui papel do
Exército o de “coordenador de contrários para garantir a Saúde da nação” (FREYRE, 1949).
Freyre e o Instituto caracterizavam-se pela aproximação com as atividades associadas à
Aliança Para o Progresso, ao mesmo tempo em que mantinham significativa aproximação com
o general Humberto Castelo Branco. Os cursos que o IJNPS oferecia atingiam público diverso,
versavam geralmente sobre questões ambientais para estudantes universitários da região; cursos
em parceria com as EEM da Aeronaútica e também do Exército; cursos de verão – Seminário de
Verão para estudantes e professores norte-americanos, em parceria com a Comissão Fulbright.
Nesse ambiente intelectual, Freyre operacionalizou o conceito de rurbanismo, ex-
pressado na curiosa formulação de uma “valorização de valores rurais dentro de progressos
urbanos”, em que o homem rurbanita seria aquele que vive sob essa experiência. Tal mo-
delo seria a expressão da práxis do “equilíbrio de antagonismos” (PINTO, 2006, p. 218).
É necessário considerar que esse campo cultural apresentado até aqui, ao ser confron-
tado com as formulações de Bourdieu, representa instituições que compunham ambiente de
produção ideológica que não identificava estruturas internas de funcionamento essencialmente
estruturadas, ou que sinalizassem para estruturas de produção fechadas em torno delas mesmas.
O grau de autonomia das instituições era pouco complexo. Não há, nesses termos sociológi-
cos, possibilidade de aferir relações de interferências entre campo intelectual supostamente isola-
do e autônomo (ainda que relativamente) e campo político no Brasil nesse período. Os intelectuais,
desde 1930, vincularam-se diretamente ao Estado. Faziam de sua produção ideológica a sua própria

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atuação política, como se fossem os protagonistas e os principais atores do projeto de nação brasileira.
Assumo parcialmente, aqui, a tese de Pécaut de que no Brasil os intelectuais sem-
pre se afirmaram como genuína intelligentsia desvinculada das classes quando lhes con-
vinham, e que estavam acima de qualquer suspeita e a postos para orientar a nação em
direção à unidade e ao desenvolvimento. Essa auto-sacralização confere à atuação dos in-
telectuais brasileiros uma constante “vocação para elite dirigente”, conferida no envolvi-
mento que sempre tiveram com o Estado e com o poder (PÉCAUT, 1990, 7-12). Esse en-
volvimento, a meu ver, e concordando com Pécaut, não se revelou historicamente como
vontade de subserviência e empreguismo, como seria o caso de certa fração da burocracia
de Estado. Nesse caso, o envolvimento sempre se voltou para o controle e para a interfe-
rência direta no campo político, que por sua vez se ligava diretamente ao campo produtivo.
O Estado, nesse sentido, era o ator relativamente autônomo que organizava as for-
ças sociais, por intermédio de intelectuais e ideólogos, engendrando um corpo tecno-
crático indispensável à nova organização socioeconômica do capitalismo no Brasil.
O corporativismo criado no Estado Novo, devidamente aplicado à intelectualidade,
traduzia-se como profissionalização e oficialização estatutária do trabalho intelectual. O últi-
mo mandato de Vargas marcou o rompimento dos intelectuais autoritários brasileiros (inclu-
ídos militares e civis) com o presidente, mas não o rompimento deles com a missão sempre
política de salvação nacional e de envolvimento com o Estado. Pelo contrário: após o rom-
pimento, formariam uma intelligenstia autoritária baseada na missão de salvação nacional.
A tradução corporativa para o trabalho intelectual cristalizou-se e perpetuou-se após o
último mandato, quando a produção ideológica foi transplantada às instituições intelectuais – o
esforço de criação dos institutos de altos estudos foi significativo nesse sentido: a ESG, subordi-
nada ao Ministério da Defesa, e o IJNPS e Iseb, subordinados ao Ministério da Educação e Cultura.
Esse meio interinstitucional, visto como campo cultural marcado por relações
de forças entre frações da classe dominante, condensadas materialmente no seio do Es-
tado, imporia a necessidade de uma análise atenta aos meandros de seu funcionamen-
to, numa perspectiva total. Entretanto, a tarefa está além do alcance deste artigo, que
busca apenas ressaltar as características de uma das pontas dessa relação de forças.

Távora, Golbery: ESG


A ESG surgiu como resultado de estudos desenvolvidos por um grupo de militares
que se dizia consternado com as consequências da recém-terminada Segunda Guerra Mun-
dial. Nesse momento já se verificava sensação de ameaça nacional entre os militares com
vocação intervencionista (o Partido, na acepção de Oliveiros Ferreira), que se identifica-
vam principalmente pela ligação que tinham com a FEB (Força Expedicionária Brasileira).
Esses militares referiam-se, constantemente, à possibilidade de interven-
ção efetiva, quando fosse necessário, das Forças Armadas nos destinos do País, com
o intuito de proteger a nação contra o “perigo comunista” ou qualquer outra ame-
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aça à “democracia” brasileira. Assim o fizeram em 1945, quando depuseram Var-


gas; e assim o fizeram em 1948, quando deram o passo inicial para a criação da ESG.
O que se torna perceptível, desde a criação da ESG, é que existia uma evolução con-
ceitual e, portanto, desenvolvimento fecundo da doutrina ideológica militar para a formulação
do poder a ser adotado pelo Estado. Essa evolução conceitual correspondia às heranças pro-
venientes do tenentismo e suas características perpetuadas e atualizadas em Juarez Távora, e
do papel da ideologia militar, inicialmente desempenhado por Góes Monteiro e potencializa-
do pela própria produção intelectual da intelligentsia da Escola nas décadas de 1950 e 1960.
Juarez Távora e Golbery frequentaram a ESG ambos no mesmo período, quando tam-
bém sistematizaram e escreveram os seus textos e as suas conferências, depois publicados como
livros – Juarez, de 1951 a 1952 como aluno, e de 1952 a 1954, como comandante; e Gol-
bery, de março de 1952 a novembro de 1955, como membro do corpo permanente da Escola.
Em Juarez Távora, a presença marcante da memória do tenentismo – em que a luta his-
tórica se dava pela reestruturação política da República, que deveria se voltar para um sentido
mais centralizador e moderno; e em que a motivação idealista se caracterizava pelo ímpeto po-
sitivista, matéria-prima do caráter peremptório do sentido racionalista e tecnoburocrático a ser
impresso na administração pública – compõe um dos dois principais pontos ideológicos da dou-
trina da ESG, e elemento de maior esforço conceitual de sua parte, pela Escola: o entendimento
da centralização e do controle total da sociedade pelo aparelho estatal (salvo a atuação da bur-
guesia industrial e do capital estrangeiro), como única forma de garantir o que define como Se-
gurança e Desenvolvimento Nacional, conceituações tomadas como naturais à nação brasileira.
Távora escreve como se fizesse relatórios temáticos e manuais técnicos, não há qualquer
tentativa mais apurada de interpretação histórica e filosófica do Brasil, a não ser esparsamente
em algumas das suas palestras. Em contrapartida, no conjunto dos seus escritos, que formam
material textual relativamente extenso, é possível tornar visível o projeto de organização para o
Brasil e, nele, a reunião de alguns dos principais traços da visão de mundo desenvolvida na ESG.
Dentre os principais livros publicados por Távora, que correspondem aos elementos
levantados acima, estão: À guisa de Depoimento sobre a Revolução Brasileira de 1924, seu
primeiro livro, onde o autor já apresenta suas ideias para centralização e racionalização do Es-
tado, frente a um diagnóstico que levaria adiante em todas as obras: o de incorrigível realidade
de desorganização do Brasil. O livro que publicou após À guisa de depoimento surgiu do seu
trabalho como ministro da Agricultura do governo provisório de Getúlio Vargas. Publicado
em 1934, O Ministro da Agricultura perante a Assembleia Nacional Constituinte definiu os
traços dos elementos centrais no seu pensamento, e que reapareceriam no restante dos seus
livros: a racionalização administrativa, a produção, o sindicalismo-cooperativista e o cristianis-
mo social. Produção para o Brasil de 1957 e Organização para o Brasil, de 1959, e seu último
livro, Uma Política de Desenvolvimento para o Brasil, de 1962 expressam esses três elementos.
O caso de Golbery é emblemático. Só se fala em Golbery remetendo-se diretamente à ESG
e, por conseguinte, ao Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) e ao Instituto Brasileiro de

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Ação Democrática (Ibad). A observação da particularidade do lugar em que Golbery produziu o


seu projeto teórico para o Brasil torna possível fornecer os elementos necessários para apontar,
na relação instituição-intelectual, a composição de um sistema simbólico que se pretendia hege-
mônico, na medida em que levava adiante a autoconsciência de uma missão de salvação nacional.
Esse aspecto é mais claro em Golbery que, em sua atividade intelectual pela ESG, em seus tex-
tos e palestras, precisa melhor a tarefa do que chamou de “verdadeira elite” brasileira. Formada
tanto por militares quanto por civis, tecnoburocratas e especialistas da organização da produção
no País, essa “verdadeira elite” seria a única capaz de salvar a nação da desordem social e do
atraso econômico, características de um momento de anomia que o Brasil vivia em sua história,
podendo assim livrar a nação da “ameaça do comunismo”. Esses são alguns dos principais traços
de sua teoria geopolítica, presentes em sua obra mais conhecida, a Geopolítica do Brasil (2003).
A ESG, no sentido da análise apresentada, pode ser vista como o ponto de convergência
da linha de ideias que se desenvolveu nas Forças Armadas – desde Góes Monteiro, Eurico Gaspar
Dutra, Cordeiro de Farias e Juarez Távora, a se realizar plenamente com Golbery. Enquanto cam-
po intelectual próprio a ESG, mais do que esse ponto de convergência e de síntese de ideias, com-
põe também um campo de práticas teórico-políticas; não é possível compreendê-la apenas como
o meio institucional que sofistica a ideologia militar para o Brasil, é necessário compreendê-la,
também, como instituição inserida em disputas ideológicas com outras instituições (como o Iseb).
Essas disputas expressam manifestações dos próprios conflitos entre frações de classe, cujos porta-
-vozes eram os intelectuais pertencentes a essas instituições pelo trabalho teórico que realizavam.
A intelligentsia criada na ESG, tendo como agente um campo intelectual em gesta-
ção desde a década de 1930, definiu os traços ideológicos para a dominação e a conquista
do poder do grupo formado não apenas pela burguesia industrial vinculada ao capital es-
trangeiro, mas também, e fundamentalmente, pela burocracia civil e pelos militares (o “pes-
soal do Estado”, na acepção de Poulantzas, que ainda define o grupo como tecnoburo-
cracia), por tecno-empresários e ideólogos do controle empresarial ligados diretamente
ao processo produtivo no Brasil contemporâneo do pós-1964 – processo produtivo em
que os próprios militares se vincularam diretamente, intercalando as suas carreiras mili-
tares com a de tecno-empresários, ou mesmo empresários. Neste ponto, Svartman mapeou
bem essas trajetórias no trabalho mencionado anteriormente, Guardiões da Nação, de 2007.

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Notas

*
Doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

1
Ver Karl MANNHEIM, Ideologia e Utopia, 1972, cap. III, pp. 135-215 e também “O problema da ‘Intelligent-
sia’. Um estudo de seu papel no passado e no presente” In.: Sociologia da Cultura, 2004, pp. 69 – 139.

2
O termo é do próprio Juarez Távora, em suas Memórias, no 2º volume, A caminhada no altiplano, 1974-1976.

3
Estudos bastante completos sobre a ESG não só nesse sentido, mas também sobre o funcionamento da Escola,
incluindo análise dos quadros formados foram realizados, por exemplo, por Vanda Maria Costa, na tese A Escola
Superior de Guerra: um estudo de currículos e programas, de 1978 e pelo Francisco C. A Ferraz, em À sombra

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dos carvalhos: militares e civis na formação e consolidação da Escola Superior de Guerra, de 1994.

4
Ver Juarez TÁVORA, Memórias, 2º Vol., 1974-1976. p. 59.

5
Ver Juarez TÁVORA, Memórias, 1º Vol., 1974, p. 353.

6
A obra em que Ferreira lança essa tese é Vida e morte do partido fardado, de 2000.

7
Ver Nelson Werneck SODRÉ, História Militar do Brasil, 1979, p. 257

8
Para uma síntese dos elementos dessa relação com Vargas, por exemplo, ver José Murilo de CARVALHO, For-
ças Armadas e Política no Brasil, 2005, p. 102-117.

9
Ver a respeito da caracterização das obras dos intelectuais do Iseb, IJNPS e USP nos termos de modelos teóri-
cos enquanto projetos de nação a tese de João Alberto da Costa PINTO: Os Impasses da Intelligentsia diante
da Revolução Capitalista no Brasil (1930 - 1964): História e Política em Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e
Nelson Werneck Sodré, 2006. O autor estabelece interessante relação entre três outros intelectuais representantes
desse campo cultural (Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e Nelson Werneck Sodré) para sustentar a tese de que
duas das visões de mundo em disputa nesse campo, no caso as representadas por Freire e Prado Júnior, teriam sido
vitoriosas na disputa pela liderança da revolução capitalista no Brasil contemporâneo.

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