Você está na página 1de 11

1

Legitimação de Valores Feministas e Femininos na Prática da


Ciência

Legitimation of Feminist and Feminine Values in the Scientific


Practice

Maria do Carmo Moreira Jacon1

Resumo

As ideias arroladas neste ensaio são fruto de reflexões sobre a afirmação de Evelyn Fox Keller de que há
algumas maneiras em que o movimento feminista da segunda onda mudou a ciência, não da maneira como
imaginado, a inserção de mulheres na prática científica foi um movimento mais político do que acadêmico e
que as mulheres não trouxeram uma nova legitimação de valores tradicionalmente femininos para a prática.
Discordando da autora, a teoria é que o crescimento de mulheres na ciência foi, antes, reflexo do contexto
sociocultural e econômico dos EUA no pós-guerra e que as mulheres legitimaram valores femininos na prática
da ciência. A proposição e discussão das teorias têm a contribuição da sociologia da ciência e tecnologia, do
feminismo contextual e pós-estruturalista.

Palavras-chave: Prática da ciência. Feminismo. Valores femininos. Feminismo da segunda onda.

Abstract
The ideas outlined in this essay result from reflections on Evelyn Fox Keller's claim that there are some ways
in which the second wave feminist movement has changed science, not in the way imagined; the insertion of
women into scientific practice was a more political than academic movement, and that women have not brought
about a new legitimacy of traditionally feminine values to the practice. This essay questions Keller's claim with
the thesis that the growth of women in science was rather the reflection of the post-war socio-cultural and
economic context in the US and that women legitimized female values in the practice of science. The
proposition and discussion of theories derive from contributions of the sociology of science and technology, as
well as contextual and post-structuralist feminism.

Keywords: Scientific practice. Feminism. Feminine values. Feminism of the second wave.

Introdução
Papeis estereotipados sobre gênero, construídos nos séculos passados, reproduzidos social e
culturalmente, traduzidos em padrões e comportamentos da sociedade, determinaram por muito tempo
a força de trabalho masculina e feminina, justificada pelas diferenças biológicas de força e fragilidade.
É histórica a figura do homem provedor, pois é o indivíduo que possui a força para “dominar” no
campo das dominadas, possui a razão em oposição à emoção feminina, tem a cabeça pensante em
contraponto ao corpo feminino pulsante de afazeres domésticos e subjugação sexista.

1
Aluno especial do Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/Gênero em C&T – ano de 2016.
Professora do Centro Paula Souza
2

Os contextos históricos e socioculturais mudaram e com eles perpetuaram-se as construções


ideológicas não só de gênero, mas também raça e etnia, todas permeadas por clichês, preconceito e
iniquidade. No campo simbólico e cultural de representação e dominação masculina, as mulheres
quiseram mais, lutaram por direitos de igualdade de poder político, econômico e sexual, movimentos
denominados de feministas.
O primeiro movimento feminista teve início no século XIX, nomeado de primeira onda, com
destaque à reivindicação ao direito de sufrágio por parte das mulheres. A segunda onda, compreendida
entre os anos 60 e 80, representa o período de início de fecundas teorias feministas, as quais
contribuíram para a discussão e entendimento das relações entre gênero, ciência e tecnologia; as
análises desenvolvidas foram além dos indicadores da participação da mulher nas práticas científicas,
se direcionaram, principalmente, para contextos e áreas de produção do conhecimento.
Os estudos produzidos sob a perspectiva feminina são classificados pela literatura de
epistemologia feminista pós-estruturalista, feminismo perspectivista e feminismo contextual. É neste
último, representado por Evelyn Fox Keller, que se buscaram as bases teóricas para discussão,
reflexão e argumentação propostas neste ensaio.
A análise de Keller (2006) sobre o impacto do feminismo da segunda onda na ciência inicia
com a “[...] afirmação provocadora de que há algumas maneiras em que mudamos a ciência, mesmo
que, uma vez mais, não exatamente da maneira ampla que algumas de nós imagináramos.” (KELLER,
2006, p. 13)
Para a autora, o crescimento da participação da mulher na ciência foi antes e, sobretudo, um
movimento social e político, que tinha como objetivo mudar as condições das mulheres, sendo que o
movimento intelectual surgiu paralelamente, uma minoria acadêmica vinculada a associações
profissionais, reforçando o eco da maioria na luta por igualdade de direitos e participação política.
Assim sendo, o movimento das feministas acadêmicas “pegou carona” com o maquinário de mudança
cultural à disposição para percepção de valores, inversão de papeis e transformação de possibilidades
de atuação de toda uma geração. Entretanto, é necessário não subestimar, em termos de
representatividade, a importância e contribuição do movimento de acadêmicas feministas da segunda
onda, o contexto histórico e cultural dos Estados Unidos da América (EUA) é marcado por lutas
ideológicas e segregação racial, onde somente a minoria de mulheres brancas tinha acesso à
universidade.
Retomando a assertiva colocada pela autora agora em forma de questões: as mulheres
conseguiram operar mudanças no campo simbólico de dominação masculina? Para Keller (2016) sim,
não só pelo fato das mulheres serem agentes de mudanças a partir do desempenho em estudos
precursores, como, também, pelo crescimento, ainda que não de igualdade plena, de 8% de doutorados
nas ciências naturais outorgados a mulheres em 1970 para 35% no ano em curso do estudo.
3

Outra questão, as mulheres conseguiram legitimar e transpor valores tradicionalmente


femininos para a prática da ciência? Não, segundo a autora, as mulheres abrem mão de valores para
provar sua legitimidade como cientistas. Dito a questão de outra forma, a prática da ciência comporta
valores tradicionalmente femininos? Sim, se não, haveria a inexistência de diferenças de gênero na
ciência, com áreas representadas em maior ou menor número, diferenças que na verdade são produtos
de percepções que as culturas da ciência estabelecem como disciplinas científicas particulares de
gênero, reforçadas e reproduzidas culturalmente com validação de toda a comunidade científica.
Este ensaio não tem a pretensão de discutir as diferenças históricas e tradicionalmente aceitas
entre homens e mulheres que contribuíram na formulação de bases epistemológicas para teorias e
práticas femininas, menos ainda, a questão de gênero e áreas de atuação e sim valores da ciência
legitimados e reproduzidos cientificamente. Pretende-se refletir sobre a natureza da construção do
conhecimento da big science, produzida por legitimadores, legitimada pelos pares e divulgada em
grandes revistas científicas.
Para tanto, é necessário retomar a questão norteadora do estudo de Keller (2006) colocada em
forma de questão: qual foi o impacto do feminismo na ciência? A resposta a essa questão comporta a
análise de um conjunto de fatores socioculturais, econômicos e ideológicos. Parte-se do pressuposto
que a construção do conhecimento de fronteira é contextual, contingencial, multidisciplinar em
grande número e menor ainda em gênero e seu contexto de produção é uma arena epistêmica de
acordos e trocas. A discussão perpassa pela análise de contextos socioculturais, com aporte de
referenciais teóricos da sociologia da ciência e tecnologia, feminismo contextual e epistemologia
feminista pós-estruturalista.

Textos e contextos
O que a história e os fatos contam? A questão inicial é colocada para análise dos contextos
socioculturais situados no espaço-temporal de profundas mudanças nos EUA, no que se refere à
implementação de políticas e redesenho do ciclo da atividade econômica. Portanto, esse resgate
histórico a partir do pós-guerra é necessário para entendimento da dinâmica da ciência e cientistas.
A produção de conhecimento e formação mão e obra altamente especializada para pesquisa
sempre foram os maiores ativos dos EUA para demarcação de seu espaço geopolítico e se estabelecer
como maior potência econômica mundial. Turchi (2014) diz que
Esta orientação não é fortuita, mas sim fruto de políticas públicas (tanto na esfera federal e
estadual) que vêm incentivando desde o final da década de 1950, a pesquisa nas universidades,
assim como a transferência do conhecimento produzido para as esferas produtivas, com o
objetivo de fortalecer o desenvolvimento tecnológico do país. (TURCHI, 2014, p.59)
4

Vale lembrar que início do delineamento de políticas e parceria púbico-privada para


incremento da pesquisa aconteceu no período anterior à segunda guerra mundial, com a criação de
universidades para prover conhecimento técnico voltado à exploração da agricultura. Esse período,
segundo Herren e Hillison (1996), apud Turchi (2014, p. 59), sinalizou a primeiras parcerias entre
governo federal, estadual e universidades e, na esteira do Morril Act de 1862, essa parceria deu origem
ao Grand Land Grand Universities, legislação que estabelece que cada estado da federação deve
prover suporte financeiro, em formas de doações (endowement) e manutenção de pelo menos uma
universidade voltada ao ensino agrícola e de artes industriais. A pesquisa direcionada a fins militares
era centrada no desenvolvimento de produtos e efetuada isoladamente por laboratórios de P&D ,
vinculados à indústria.
Voltando ao período da década de 50, o pós-guerra gerou ao então presidente dos EUA o alerta
sobre os destinos da ciência, engenharia e tecnologia em tempos de paz, a resposta veio através do
emblemático documento intitulado Science, the Endless Frontier, de Vannevar Bush, em que reforça
a necessidade de ampliação do financiamento público nas universidades, a meritocracia como forma
de ascensão profissional, a competição e avaliação por peer review. São elementos estruturantes do
sistema de ciência e tecnologia americano, com consequências na forma de ser e fazer ciência, na
instituição de autoridade epistêmica e cognitiva e no juízo de valores universalistas concebidos como
racionais e objetivos de cabeças pensantes (não é do que as mulheres se ocupam). Importa ressaltar
que tais premissas encontraram um terreno fértil (contexto) para fecundação e disseminação de
práticas existentes atualmente. Para uma análise mais aprofundada, é necessário situar um período e,
dados os objetivos deste ensaio, o período da segunda onda é profícuo.
O sistema de ciência e tecnologia americano se expandiu de forma vertiginosa nos 20 anos
seguintes à segunda guerra mundial, compreendendo o período da disputa política, econômica e
ideológica da guerra fria. Nesse período, houve a criação de agências governamentais como a
National Science Foundation (NSF), o National Institutes of Health (NIH), a National Aeronautics
and Space Administration e, também, programas de P&D vinculados a Departamentos de Defesa,
Energia e Comércio. Cole (2011, p. 31) aponta esse crescimento, no período de 1958- 1968, os gastos
governamentais com financiamento de P&D nas universidades cresceram em 618%, enquanto que o
crescimento do fomento à pesquisa básica nas universidades foi na ordem de 702%. Informa, ainda,
que na década de 50, havia seis universidades americanas notadamente reconhecidas
internacionalmente pela excelência em pesquisa, já em 2000 esse número subiu para cem. Interessa,
também, a análise do crescimento exponencial dos celeiros de pesquisa no período pós-guerra fria.
As bases estruturantes para o crescimento foram estabelecidas nos anos 80, lançadas através
do arcabouço legal do Bayh-Dole Act e sua Emenda para regulação do direito de propriedade de
invenções financiadas com recurso público, tal fato estimulou a diversidade, competitividade,
5

parcerias e projetos colaborativos para transformar o conhecimento produzido em inovações


aplicáveis ao mercado, em um contexto globalizado.
Desse modo, parece oportuna a colocação do pensamento de Marx sobre cientificidade, nas
palavras de Geras (1971, p. 26) de que “[...] toda ciência seria supérflua se a aparência das coisas
coexistisse diretamente com sua essência” para analogia e explicação de ciclos políticos e econômicos
que engendram a ciência. A aparência das coisas esconde a sua real essência, passível de visão através
de uma análise diacrônica e sincrônica sobre a complexidade dos fatos.
Avançando um pouco mais no tempo, o gráfico apresentado no estudo de Turchi (2014, p. 64)
é revelador nos dados coletados no período de 2000-2010, em que apresenta a evolução dos gastos
em pesquisa em universidades públicas e privadas. Em 2000, o crescimento dos investimentos em
universidades públicas foi de 13,17%, nas privadas de 5,34%. Após a crise de 2009, as universidades
privadas lideraram o crescimento do financiamento à pesquisa na ordem de 13,75% contra 9,41% das
públicas, o Massachutes Institue of Technology (MIT) se destaca na captação de recursos empresariais
para o trabalho desenvolvido no Media Lab, que sedia pesquisadores renomados nas diversas áreas
do conhecimento. Portanto, não é por acaso que o MIT, acompanhado pela Stanford University e
Berckely ficaram no topo das 25 melhores universidades dos EUA em 20122 , dentre vários critérios,
o peso de maior relevância foi a produtividade, refletida em termos de publicação e citação.
O desenvolvimento econômico é a locomotiva que movimenta a ciência, é possível
correlacionar as áreas prioritárias para investimento às necessidades políticas e econômicas do país.
As universidades americanas públicas e privadas captam recursos para investimento em C&T, através
de fontes públicas (federal, estadual e local) e parcerias com a iniciativa privada, sendo a esfera federal
a fonte de maior recurso. O levantamento de Turchi (2014, p. 64) aponta que, em 2010, os recursos
governamentais destinados à pesquisa foram de 73% nas universidades privadas, nas públicas de 61%.
Analisando a áreas de investimento por período, do pós-guerra até a última década do século XX, as
áreas prioritárias de pesquisa foram a segurança nacional, saúde, aeroespacial e energia, entre outras.
Já em 2010-2011, o mesmo levantamento aponta que as ciências médicas e engenharias foram
subáreas e áreas com maior investimento em P&D, condizentes com a necessidade de redução do
impacto de gastos com a saúde pública e expansão do setor industrial.
Retomando à questão: o que a história e fatos contam? A história e materialidade dos fatos
evidenciam que há um contraponto na “[...] afirmação provocadora de que há algumas maneiras em
que mudamos a ciência, mesmo que, uma vez mais, não exatamente da maneira ampla que algumas
de nós imagináramos.” (KELLER, 2006, p.13).

2
The top american research universities. Annual Report, p. 9, 2012.
6

Parece coerente a colocação de que “há poucas maneiras em que o feminismo da segunda onda
(inclui-se aqui acadêmicas e outras) mudou a ciência”. O movimento feminista foi importante pela
mobilização e consciência coletiva sobre a percepção de que haveria outros espaços para atuação das
mulheres. No caso das acadêmicas femininas, possibilitou maior acesso à ciência que até então eram
representadas minoritariamente por pesquisadoras precursoras de estudos da biologia do
desenvolvimento. Entretanto, isoladamente, este movimento não encontraria espaço se o contexto
político e econômico dos EUA não fosse propício a isso.
Os investimentos em pesquisa no pós-guerra e a ampliação de universidades nos anos
seguintes balizaram caminhos para as janelas de oportunidades que se abriram para o ingresso na
carreira acadêmica e formação de mão de obra altamente qualificada. Na verdade, o movimento
feminista foi oportuno politicamente aos EUA, na medida em que era necessário dar resposta ao eco
de vozes de uma geração que reivindicava, entre outros, a atuação nos campos de trabalho
tradicionalmente masculinos, campos acadêmicos que demandavam crescimento da força de trabalho
na pesquisa, independente de gênero.
Reestruturando a questão colocada por Keller (2006, p. 31): na prática da ciência, as mulheres
legitimaram valores tradicionalmente femininos? Discordando da autora, sim! Os padrões
construídos culturalmente e reproduzidos socialmente na ciência delegam aos homens o título de
autoridade epistêmica e cognitiva e às mulheres, pode se inferir que sob a ótica da teoria da
perspectiva parcial, são coautoras nesse processo de legitimação.
O referencial masculino de fazer ciência é marcado pela objetividade e racionalidade, são
detentores e legitimadores de teorias canônicas do conhecimento, teorias universalistas e totalizadores
de saberes codificados e validados pela comunidade científica. Estudos comprovam o fato: homens
lideram equipes de pesquisas, possuem maior produtividade, captam maiores recursos para pesquisa,
são professores titulares na maioria das áreas do conhecimento, prestam consultoria em empresas, são
os que possuem maiores salários e carreiras ascendentes. As poucas mulheres, à margem deles na
ciência, contribuem para a construção da dominação no campo da representação de autoridade
cognitiva e a teoria feminina dos saberes localizados de Haraway (1995) representa campo fértil para
essa interpretação.
Para autora, a objetividade masculina, de referenciais positivistas, com resultados
universalistas são linguagens retóricas, textualizadas e codificadas da realidade socialmente
construída, é a visão pós-moderna que distancia o sujeito cognoscente de todos os ditos mortais. A
racionalidade transcendente atribuída na visão do objeto de ângulo acima são versões relativistas e
totalizadoras das alegações de autoridade científica. A visão única, não é decodificada, muito pelo
contrário, é estreita e obscura e seu poder está na capacidade de permitir a negação do núcleo crítico
e interpretativo do conhecimento produzido.
7

Em contribuição às teorias e bases epistemológicas de estudos feministas nos anos 80, o pós-
estruturalismo de Haraway (1995) debate a objetividade com foco no estabelecimento de uma doutrina
corporificada de forma a acomodar projetos científicos feministas críticos. Para a autora, a
objetividade diz respeito à corporificação específica e particular e não à falsa visão que promete
transcendência de limites e responsabilidades.
Segundo Haraway (1995), “[...] apenas a perspectiva parcial promete visão objetiva que abre
e não fecha, a responsabilidade pelas todas práticas visuais. A perspectiva parcial pode ser
responsabilizada tanto pelas suas promessas quanto por seus monstros destrutivos”. (HARAWAY,
1995, p. 21)
O termo “visão objetiva que abre e não fecha” é muito interessante e imbui vários significados
e significantes no campo da semiótica, para este contexto de reflexão, interessa a discussão sob o
ponto da sociologia da ciência e tecnologia e para isso, o estudo seminal Knorr-Cetina (1981) é de
grande contribuição.
Partindo do pressuposto de que o pesquisador é o agente responsável pela sucessão de ligações
entre eventos criados em experimento em laboratório, Knorr-Cetina (1981, p. 3) explorou como tais
ligações são criadas, como a ciência é constituída no que diz respeito à investigação científica,
enquanto processo de seleção de um problema de pesquisa, transformação e construção, tudo sob a
ótica interna in curso do empreendimento científico, para a partir de então sugerir uma teoria empírica
do conhecimento.
A participação da autora no trabalho de investigação científica demonstrou que a linguagem
de verdade, hipóteses testadas e modelo de investigação não são estruturadas adequadamente ao
trabalho de laboratório. Revela que a natureza ou realidade não exige maior criticidade na
interpretação descritiva, pois a maioria são pré-construídas ou artificiais. Parte do texto reafirma a
assertiva da autora:
Não encontramos no laboratório a questão de verdade que é comumente descrita como
ciência. Na verdade, a linguagem dos cientistas contém inúmeras referências do que é ou não
verdade. O uso não difere, de maneira alguma, do nosso uso de termos em uma variedade de
função pragmática e retórica, que não tem a ver com o conceito epistemológico de verdade.
(KNORR-CETINA, 1981, p. 4, tradução nossa)

São achados, em tese, que serviriam para desconstruir o “terreno sagrado” de validação da
ciência, mas de pouco impacto (quase nenhum) na aceitação de uma verdade científica entre os pares.
A retórica do discurso, nas palavras da autora, é apropriada à “construção instrumental do
conhecimento” no whorkshop denominado de lab. Mais do que detentores da verdade, são os créditos
científicos via publicação que importam.
Outros fatos, além dos já relatados pela autora, refletem a ausência da tão destacada
racionalidade e objetividade da autoridade epistêmica masculina (vale lembrar que a grande maioria
8

dos entrevistados é do sexo masculino). A seletividade do problema de pesquisa tem uma função
linear de traduções que servem a objetivos vários, nesse sentido, produtos científicos são internamente
construídos pelas traduções incorporadas nessas seleções, resultando em vários níveis de seletividade,
com novos problemas que predispõem soluções. Assim sendo, a seletividade aparece como pré-
condição para acumulação dos resultados de pesquisa.
Além da seletividade, a natureza contextual e contingencial, também, aparece no processo de
construção do conhecimento no estudo, de difícil replicação de processos. A necessidade da
diversidade de instrumentos e improviso, devido a eventos ocorridos durante a operação em muitas
vezes alteram os rumos da pesquisa ou então a validação é percorrida por um caminho da não
experimentação. Knorr-Cetina (1981, p. 35) transcreve a fala de um dos entrevistados, que diz que a
maioria dos equipamentos serve a vários projetos e frequentemente são convertidos a servir a outro
objetivo ou mal utilizados. Um exemplo dado é a falta de precisão em alguns processos, o mesmo
pesquisador relata que um dispositivo de mensurar a densidade estava quebrado, certo cientista
centrifugou o material a ser mensurado e calculou uma densidade aproximada em medidas da
diferença de volume, antes e depois da centrifugação.
Assim, fica evidente que a forma como opera a dinâmica da produção do conhecimento é
questionável no ponto da sua validação. A esse respeito, Knorr-Cetina (1981, p. 7) lembra que o
laboratório é o contexto de justificação, portanto a validação de métodos e abordagens é efetuada por
produtores e clientes que dependem um do outro, mas que na realidade são antagonistas e
competidores na luta por crédito e autoridade científica.
Nesse contexto, importa a retomada do termo “visão objetiva que abre e não fecha” de
Haraway (1995, p. 21) para discussão de alguns elementos e Longino (2005) contribui com o
entendimento. Ao rejeitar uma ciência feminista, a autora afirma que são propostas que merecem
reflexão, pois as premissas encerram particular visão de mundo e que não se trata de discutir se há
uma ciência masculina ou feminina, existe apenas a boa e a má ciência. Para a autora, a marca de uma
ciência feminista
[...] é a expressão e valorização da sensibilidade feminina ou temperamento cognitivo. São
atribuídos, também, certos traços às mulheres (são atentas a detalhes, interagem mais e
possuem controle de comportamento e atitudes sociais), são capazes de entender o verdadeiro
caráter do processo natural (que são complexos e interativos). (LONGINO, 2005, p. 2,
tradução nossa)

São atributos femininos que se encaixam na perspectiva parcial dicotômica de Haraway (1995)
para a teoria feminina dos saberes localizados e a dicotomia se revela na proposição da prática de uma
ciência feminista de características femininas. O que se pretende argumentar é que não se trata da
discussão da polarização de saberes localizados versus saberes universais e muito menos da
9

supremacia da racionalidade e objetividade masculina em contraponto à feminina e sim a dinâmica


de produção de conhecimento subjetivada de valores, atitudes e interesses.
Uma visão objetiva que abre e não fecha sob a perspectiva parcial é de utilidade excepcional
na prática da big science, a visão complexa feminina, ainda que parcial do objeto de pesquisa, é muito
propícia e adequada aos processos descritos acima de um lab, isso caso as mulheres, na corrida
acirrada, alcancem o posto da bancada; sabe-se da dificuldade de ascensão da carreira feminina,
quanto maior é a elevação do nível de pesquisador, menor é a presença das mulheres na ciência.
Se alcançarem a bancada de um lab, o feminismo contextual de Longino (2005, p. 2) é de
grande contribuição para mulheres que desejam praticar uma ciência feminina e/ou feminista. De
acordo com a autora, a ciência é constituída de valores internos intrínsecos à ciência (métodos e
práticas científicas) e valores contextuais (pessoais, sociais e culturais), sendo que esse último possui
papel preponderante na interpretação de dados de uma pesquisa. Portanto, uma abordagem sexista não
funciona e sim a ampliação da interpretação para detectar limitações para construção de estrutura mais
adequada, habilidade que pode ser usada para mudar o rumo da pesquisa, direcionando o
conhecimento para temas de projeção ou a favor do programa de pesquisa. Vale lembrar que valores
e pressupostos do cientista serão expressos em seu percurso, são escolhas que per se contribuem (para
o bem ou mal) à sobrevivência de qualquer pesquisador, uma vez que há impossibilidade de mudar o
contexto social e político em que a ciência é feita.
Na facticidade da impossibilidade de tal mudança, a autora sugere que as mulheres devem ter
foco na ciência mais como prática do que conteúdo, como processo mais que produto, não fazer uma
ciência feminista, mas fazer ciência como uma feminista. A sugestão de fazer uma ciência como
feminista com foco na prática, assim como no processo, são extremante importantes ao produto final
que é a o estabelecimento da propriedade intelectual, divulgada em canais de publicaçã o de
visibilidade internacional. Nesse aspecto, a prática masculina supera a feminina.
Em resumo, as mulheres conseguiram legitimar e transpor valores tradicionalmente
femininos para a prática da ciência? Sim, o campo de pesquisa do conhecimento de fronteira é uma
arena epistêmica, de lutas simbólicas, competições, negociações e troca de favores. Na luta pela
sobrevivência na prática, há a negação de valores tradicionalmente femininos, paradoxalmente é essa
a lógica que sustenta a argumentação de que ao negar valores, as mulheres reforçam padrões culturais
aceitos para ampliação do campo de representação de dominação masculina.

Considerações Finais
O movimento feminista da segunda onda foi um movimento social importante na história, de
grande repercussão em diversos países, culturas e camadas sociais pela instauração da discussão
10

política e social sobre a equidade de gênero na sociedade. No caso da ciência, atribui-se ao movimento
a abertura, nas décadas seguintes, de novos espaços para mulheres na ciência.
A argumentação desenvolvida neste ensaio, os fatos apontam isso, é que com a expansão,
pelos EUA, de universidades e altos investimentos da esfera pública e privada em pesquisa criaram-
se janelas de oportunidades, ainda que não de forma igualitária, mas suficiente para a formação de
mão de obra altamente especializada para atuação na ciência e em áreas de reduto masculino como a
engenharia e medicina. Desse modo, pode-se afirmar que o desenvolvimento socioeconômico é a roda
que movimenta a ciência e determina, no entrelaçamento do contexto político e econômico, as áreas
prioritárias para pesquisa, quer seja para demarcação de espaço geopolítico, quer seja para o
estabelecimento de hegemonia econômica.
No período do pós-guerra e guerra fria, os investimentos foram direcionados a projetos
vinculados a pesquisas aeroespaciais, militares e energia. Já no período de globalização dos anos 90,
o alargamento das fronteiras possibilitou projetos de cooperação entre países, de alto investimento
pela iniciativa privada e cooperação do governo. Foram criadas equipes multidisciplinares, altamente
qualificadas, para estudo em laboratório do mapeamento genético humano e pesquisas ligadas à
farmacologia. Nos anos que se seguiram, verificam-se investimentos em áreas ligadas a ciências da
saúde, principalmente na medicina, o que se explica pelo aumento de doenças e pandemias e também
que justifica, em tese, a necessidades do aumento de pesquisadores, abrindo espaço às mulheres na
titularidade de disciplinas acadêmicas.
Surgiram outras áreas prioritárias para o avanço da ciência, o Media Lab desenvolve grandes
projetos de pesquisa na inteligência artificial, biomedicina, desenho de instrumentos médicos,
aparelhos para pessoas com necessidades especiais e projetos urbanos, entre outros. Em suma, a
prioridade de pesquisa em ciência é estruturada, de forma contingencial e contextual, a partir de uma
sucessão de fatos e eventos sociais e contornos políticos e econômicos.
Os aspectos contingenciais e contextuais da pesquisa também são verificados no “sobre-
espaço” da ciência, denominação apropriada para laboratório. Conforme descrito no estudo de Knorr-
Cetina (1981), é um local de troca, negociações, seletividade de pesquisa, improviso e processos de
difícil replicação. É também um espaço para poucos mortais, incluem-se nessa categoria as mulheres
que, para ascensão e permanência na ciência, devem praticar, negando os valores femininos
tradicionalmente aceitos. Sim, reforçam o campo da representação masculina e, paradoxalmente, a
legitimação está na negação, ironia, seria pensar o contrário.

Referências

COLE, J. R. The great american university. Bulletin of the American Academy. Disponível em: <
http://www.amacad.org/publications/bulletin/spring2011/great.pdf >. Acesso em: 02 jan. 2017.
11

GERAS, N. Essência e aparência: aspectos da análise da mercadoria em Marx. In: COEN, G. (Org.)
Sociologia para ler os clássicos. Rio de Janeiro: LTC, 1977, p. 259-282.

HARAWY, D. Saberes localizados. Disponível em:


<http://www.clam.org.br/bibliotecadigital/uploads/publicacoes/1065_926_HARAWAY.pdf>.
Acesso em: 19 dez. 2016.

KELLER, E. F. Qual foi o impacto do feminismo na ciência? Cadernos Pagu, n. 27, 2006, p. 13-34.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cpa/n27/32137.pdf>. Acesso em: 03 dez. 2016.

KNORR-CETINA, K. D. The manufacture of knowledge. Oxford: Pergamon, 1981, 181p.

LONGINO, H. E. Can there be a feminist science? Disponível em:


<http://www.studiagender.umk.pl/pliki/teksty_longino_can_there_be_a_feminist_science.pdf>.
Acesso em: 02 dez. 2016.

Você também pode gostar