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Resumo
As ideias arroladas neste ensaio são fruto de reflexões sobre a afirmação de Evelyn Fox Keller de que há
algumas maneiras em que o movimento feminista da segunda onda mudou a ciência, não da maneira como
imaginado, a inserção de mulheres na prática científica foi um movimento mais político do que acadêmico e
que as mulheres não trouxeram uma nova legitimação de valores tradicionalmente femininos para a prática.
Discordando da autora, a teoria é que o crescimento de mulheres na ciência foi, antes, reflexo do contexto
sociocultural e econômico dos EUA no pós-guerra e que as mulheres legitimaram valores femininos na prática
da ciência. A proposição e discussão das teorias têm a contribuição da sociologia da ciência e tecnologia, do
feminismo contextual e pós-estruturalista.
Abstract
The ideas outlined in this essay result from reflections on Evelyn Fox Keller's claim that there are some ways
in which the second wave feminist movement has changed science, not in the way imagined; the insertion of
women into scientific practice was a more political than academic movement, and that women have not brought
about a new legitimacy of traditionally feminine values to the practice. This essay questions Keller's claim with
the thesis that the growth of women in science was rather the reflection of the post-war socio-cultural and
economic context in the US and that women legitimized female values in the practice of science. The
proposition and discussion of theories derive from contributions of the sociology of science and technology, as
well as contextual and post-structuralist feminism.
Keywords: Scientific practice. Feminism. Feminine values. Feminism of the second wave.
Introdução
Papeis estereotipados sobre gênero, construídos nos séculos passados, reproduzidos social e
culturalmente, traduzidos em padrões e comportamentos da sociedade, determinaram por muito tempo
a força de trabalho masculina e feminina, justificada pelas diferenças biológicas de força e fragilidade.
É histórica a figura do homem provedor, pois é o indivíduo que possui a força para “dominar” no
campo das dominadas, possui a razão em oposição à emoção feminina, tem a cabeça pensante em
contraponto ao corpo feminino pulsante de afazeres domésticos e subjugação sexista.
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Aluno especial do Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/Gênero em C&T – ano de 2016.
Professora do Centro Paula Souza
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Textos e contextos
O que a história e os fatos contam? A questão inicial é colocada para análise dos contextos
socioculturais situados no espaço-temporal de profundas mudanças nos EUA, no que se refere à
implementação de políticas e redesenho do ciclo da atividade econômica. Portanto, esse resgate
histórico a partir do pós-guerra é necessário para entendimento da dinâmica da ciência e cientistas.
A produção de conhecimento e formação mão e obra altamente especializada para pesquisa
sempre foram os maiores ativos dos EUA para demarcação de seu espaço geopolítico e se estabelecer
como maior potência econômica mundial. Turchi (2014) diz que
Esta orientação não é fortuita, mas sim fruto de políticas públicas (tanto na esfera federal e
estadual) que vêm incentivando desde o final da década de 1950, a pesquisa nas universidades,
assim como a transferência do conhecimento produzido para as esferas produtivas, com o
objetivo de fortalecer o desenvolvimento tecnológico do país. (TURCHI, 2014, p.59)
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The top american research universities. Annual Report, p. 9, 2012.
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Parece coerente a colocação de que “há poucas maneiras em que o feminismo da segunda onda
(inclui-se aqui acadêmicas e outras) mudou a ciência”. O movimento feminista foi importante pela
mobilização e consciência coletiva sobre a percepção de que haveria outros espaços para atuação das
mulheres. No caso das acadêmicas femininas, possibilitou maior acesso à ciência que até então eram
representadas minoritariamente por pesquisadoras precursoras de estudos da biologia do
desenvolvimento. Entretanto, isoladamente, este movimento não encontraria espaço se o contexto
político e econômico dos EUA não fosse propício a isso.
Os investimentos em pesquisa no pós-guerra e a ampliação de universidades nos anos
seguintes balizaram caminhos para as janelas de oportunidades que se abriram para o ingresso na
carreira acadêmica e formação de mão de obra altamente qualificada. Na verdade, o movimento
feminista foi oportuno politicamente aos EUA, na medida em que era necessário dar resposta ao eco
de vozes de uma geração que reivindicava, entre outros, a atuação nos campos de trabalho
tradicionalmente masculinos, campos acadêmicos que demandavam crescimento da força de trabalho
na pesquisa, independente de gênero.
Reestruturando a questão colocada por Keller (2006, p. 31): na prática da ciência, as mulheres
legitimaram valores tradicionalmente femininos? Discordando da autora, sim! Os padrões
construídos culturalmente e reproduzidos socialmente na ciência delegam aos homens o título de
autoridade epistêmica e cognitiva e às mulheres, pode se inferir que sob a ótica da teoria da
perspectiva parcial, são coautoras nesse processo de legitimação.
O referencial masculino de fazer ciência é marcado pela objetividade e racionalidade, são
detentores e legitimadores de teorias canônicas do conhecimento, teorias universalistas e totalizadores
de saberes codificados e validados pela comunidade científica. Estudos comprovam o fato: homens
lideram equipes de pesquisas, possuem maior produtividade, captam maiores recursos para pesquisa,
são professores titulares na maioria das áreas do conhecimento, prestam consultoria em empresas, são
os que possuem maiores salários e carreiras ascendentes. As poucas mulheres, à margem deles na
ciência, contribuem para a construção da dominação no campo da representação de autoridade
cognitiva e a teoria feminina dos saberes localizados de Haraway (1995) representa campo fértil para
essa interpretação.
Para autora, a objetividade masculina, de referenciais positivistas, com resultados
universalistas são linguagens retóricas, textualizadas e codificadas da realidade socialmente
construída, é a visão pós-moderna que distancia o sujeito cognoscente de todos os ditos mortais. A
racionalidade transcendente atribuída na visão do objeto de ângulo acima são versões relativistas e
totalizadoras das alegações de autoridade científica. A visão única, não é decodificada, muito pelo
contrário, é estreita e obscura e seu poder está na capacidade de permitir a negação do núcleo crítico
e interpretativo do conhecimento produzido.
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Em contribuição às teorias e bases epistemológicas de estudos feministas nos anos 80, o pós-
estruturalismo de Haraway (1995) debate a objetividade com foco no estabelecimento de uma doutrina
corporificada de forma a acomodar projetos científicos feministas críticos. Para a autora, a
objetividade diz respeito à corporificação específica e particular e não à falsa visão que promete
transcendência de limites e responsabilidades.
Segundo Haraway (1995), “[...] apenas a perspectiva parcial promete visão objetiva que abre
e não fecha, a responsabilidade pelas todas práticas visuais. A perspectiva parcial pode ser
responsabilizada tanto pelas suas promessas quanto por seus monstros destrutivos”. (HARAWAY,
1995, p. 21)
O termo “visão objetiva que abre e não fecha” é muito interessante e imbui vários significados
e significantes no campo da semiótica, para este contexto de reflexão, interessa a discussão sob o
ponto da sociologia da ciência e tecnologia e para isso, o estudo seminal Knorr-Cetina (1981) é de
grande contribuição.
Partindo do pressuposto de que o pesquisador é o agente responsável pela sucessão de ligações
entre eventos criados em experimento em laboratório, Knorr-Cetina (1981, p. 3) explorou como tais
ligações são criadas, como a ciência é constituída no que diz respeito à investigação científica,
enquanto processo de seleção de um problema de pesquisa, transformação e construção, tudo sob a
ótica interna in curso do empreendimento científico, para a partir de então sugerir uma teoria empírica
do conhecimento.
A participação da autora no trabalho de investigação científica demonstrou que a linguagem
de verdade, hipóteses testadas e modelo de investigação não são estruturadas adequadamente ao
trabalho de laboratório. Revela que a natureza ou realidade não exige maior criticidade na
interpretação descritiva, pois a maioria são pré-construídas ou artificiais. Parte do texto reafirma a
assertiva da autora:
Não encontramos no laboratório a questão de verdade que é comumente descrita como
ciência. Na verdade, a linguagem dos cientistas contém inúmeras referências do que é ou não
verdade. O uso não difere, de maneira alguma, do nosso uso de termos em uma variedade de
função pragmática e retórica, que não tem a ver com o conceito epistemológico de verdade.
(KNORR-CETINA, 1981, p. 4, tradução nossa)
São achados, em tese, que serviriam para desconstruir o “terreno sagrado” de validação da
ciência, mas de pouco impacto (quase nenhum) na aceitação de uma verdade científica entre os pares.
A retórica do discurso, nas palavras da autora, é apropriada à “construção instrumental do
conhecimento” no whorkshop denominado de lab. Mais do que detentores da verdade, são os créditos
científicos via publicação que importam.
Outros fatos, além dos já relatados pela autora, refletem a ausência da tão destacada
racionalidade e objetividade da autoridade epistêmica masculina (vale lembrar que a grande maioria
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dos entrevistados é do sexo masculino). A seletividade do problema de pesquisa tem uma função
linear de traduções que servem a objetivos vários, nesse sentido, produtos científicos são internamente
construídos pelas traduções incorporadas nessas seleções, resultando em vários níveis de seletividade,
com novos problemas que predispõem soluções. Assim sendo, a seletividade aparece como pré-
condição para acumulação dos resultados de pesquisa.
Além da seletividade, a natureza contextual e contingencial, também, aparece no processo de
construção do conhecimento no estudo, de difícil replicação de processos. A necessidade da
diversidade de instrumentos e improviso, devido a eventos ocorridos durante a operação em muitas
vezes alteram os rumos da pesquisa ou então a validação é percorrida por um caminho da não
experimentação. Knorr-Cetina (1981, p. 35) transcreve a fala de um dos entrevistados, que diz que a
maioria dos equipamentos serve a vários projetos e frequentemente são convertidos a servir a outro
objetivo ou mal utilizados. Um exemplo dado é a falta de precisão em alguns processos, o mesmo
pesquisador relata que um dispositivo de mensurar a densidade estava quebrado, certo cientista
centrifugou o material a ser mensurado e calculou uma densidade aproximada em medidas da
diferença de volume, antes e depois da centrifugação.
Assim, fica evidente que a forma como opera a dinâmica da produção do conhecimento é
questionável no ponto da sua validação. A esse respeito, Knorr-Cetina (1981, p. 7) lembra que o
laboratório é o contexto de justificação, portanto a validação de métodos e abordagens é efetuada por
produtores e clientes que dependem um do outro, mas que na realidade são antagonistas e
competidores na luta por crédito e autoridade científica.
Nesse contexto, importa a retomada do termo “visão objetiva que abre e não fecha” de
Haraway (1995, p. 21) para discussão de alguns elementos e Longino (2005) contribui com o
entendimento. Ao rejeitar uma ciência feminista, a autora afirma que são propostas que merecem
reflexão, pois as premissas encerram particular visão de mundo e que não se trata de discutir se há
uma ciência masculina ou feminina, existe apenas a boa e a má ciência. Para a autora, a marca de uma
ciência feminista
[...] é a expressão e valorização da sensibilidade feminina ou temperamento cognitivo. São
atribuídos, também, certos traços às mulheres (são atentas a detalhes, interagem mais e
possuem controle de comportamento e atitudes sociais), são capazes de entender o verdadeiro
caráter do processo natural (que são complexos e interativos). (LONGINO, 2005, p. 2,
tradução nossa)
São atributos femininos que se encaixam na perspectiva parcial dicotômica de Haraway (1995)
para a teoria feminina dos saberes localizados e a dicotomia se revela na proposição da prática de uma
ciência feminista de características femininas. O que se pretende argumentar é que não se trata da
discussão da polarização de saberes localizados versus saberes universais e muito menos da
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Considerações Finais
O movimento feminista da segunda onda foi um movimento social importante na história, de
grande repercussão em diversos países, culturas e camadas sociais pela instauração da discussão
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política e social sobre a equidade de gênero na sociedade. No caso da ciência, atribui-se ao movimento
a abertura, nas décadas seguintes, de novos espaços para mulheres na ciência.
A argumentação desenvolvida neste ensaio, os fatos apontam isso, é que com a expansão,
pelos EUA, de universidades e altos investimentos da esfera pública e privada em pesquisa criaram-
se janelas de oportunidades, ainda que não de forma igualitária, mas suficiente para a formação de
mão de obra altamente especializada para atuação na ciência e em áreas de reduto masculino como a
engenharia e medicina. Desse modo, pode-se afirmar que o desenvolvimento socioeconômico é a roda
que movimenta a ciência e determina, no entrelaçamento do contexto político e econômico, as áreas
prioritárias para pesquisa, quer seja para demarcação de espaço geopolítico, quer seja para o
estabelecimento de hegemonia econômica.
No período do pós-guerra e guerra fria, os investimentos foram direcionados a projetos
vinculados a pesquisas aeroespaciais, militares e energia. Já no período de globalização dos anos 90,
o alargamento das fronteiras possibilitou projetos de cooperação entre países, de alto investimento
pela iniciativa privada e cooperação do governo. Foram criadas equipes multidisciplinares, altamente
qualificadas, para estudo em laboratório do mapeamento genético humano e pesquisas ligadas à
farmacologia. Nos anos que se seguiram, verificam-se investimentos em áreas ligadas a ciências da
saúde, principalmente na medicina, o que se explica pelo aumento de doenças e pandemias e também
que justifica, em tese, a necessidades do aumento de pesquisadores, abrindo espaço às mulheres na
titularidade de disciplinas acadêmicas.
Surgiram outras áreas prioritárias para o avanço da ciência, o Media Lab desenvolve grandes
projetos de pesquisa na inteligência artificial, biomedicina, desenho de instrumentos médicos,
aparelhos para pessoas com necessidades especiais e projetos urbanos, entre outros. Em suma, a
prioridade de pesquisa em ciência é estruturada, de forma contingencial e contextual, a partir de uma
sucessão de fatos e eventos sociais e contornos políticos e econômicos.
Os aspectos contingenciais e contextuais da pesquisa também são verificados no “sobre-
espaço” da ciência, denominação apropriada para laboratório. Conforme descrito no estudo de Knorr-
Cetina (1981), é um local de troca, negociações, seletividade de pesquisa, improviso e processos de
difícil replicação. É também um espaço para poucos mortais, incluem-se nessa categoria as mulheres
que, para ascensão e permanência na ciência, devem praticar, negando os valores femininos
tradicionalmente aceitos. Sim, reforçam o campo da representação masculina e, paradoxalmente, a
legitimação está na negação, ironia, seria pensar o contrário.
Referências
COLE, J. R. The great american university. Bulletin of the American Academy. Disponível em: <
http://www.amacad.org/publications/bulletin/spring2011/great.pdf >. Acesso em: 02 jan. 2017.
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GERAS, N. Essência e aparência: aspectos da análise da mercadoria em Marx. In: COEN, G. (Org.)
Sociologia para ler os clássicos. Rio de Janeiro: LTC, 1977, p. 259-282.
KELLER, E. F. Qual foi o impacto do feminismo na ciência? Cadernos Pagu, n. 27, 2006, p. 13-34.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cpa/n27/32137.pdf>. Acesso em: 03 dez. 2016.