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ARTIGO

A RESISTÊNCIA NA FIGURAÇÃO
NARRATIVA DE ANTONIO BERNI
E ANTONIO SEGUÍ
Simone da Rocha Abreu

Antonio Seguí. Con nervios, 1983, óleo e papel jornal sobre tela, 73 X 92 cm.
Arte e Cultura da América Latina
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Resumo
Este artigo propõe uma aproximação sensível à obra de
dois artistas latino-americanos figurativos, Antonio Berni
(1905-1981) e Antonio Seguí (1934), no intento de
enfatizar o caráter narrativo dessas produções e, também,
enfatiza as posturas de resistência adotadas pelos autores
ao se posicionarem em relação a questões contemporâne-
as em suas obras.
Palavras-chave: resistência, articulação, fusão, perso-
nagem e cidade.

Abstract
This paper offers a sensitive approach to the art made by
two figurative Latin American artists, which are Antonio
Berni (1905-1981) and Antonio Seguí (1934). This
approach emphasizes the narrative characteristic of their
productions, and the attitude of resistance adopted by the
authors when they take a position in relation to contem-
porary issues in their artworks.
Keywords: resistence, coordination, fusion, character and
city.

Simone da Rocha Abreu


Professora universitária e
pesquisadora em arte,
especialista em História da
Arte e Cultura Contemporâ-
nea pela UNESP, é mestre
em Integração da América
Latina pelo PROLAM (USP)
e doutoranda pelo mesmo
programa.
A resistência na figuração narrativa de Antonio Berni e Antonio Seguí
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Antonio Berni criou em sua obra plástica diversos personagens, os mais


evidentes são Juanito Laguna e Ramona Montiel, excluídos da sociedade
moderna que crescia de maneira desenfreada na época da produção dessas
obras. Este artista foi um observador atento dos subúrbios de Buenos Aires e
de outras províncias argentinas. Registrou em desenhos e em fotografias
trabalhadores e seus filhos e, nesse caminhar, podemos dizer que muitos
foram os seus personagens. Porém, para Ramona Montiel e Juanito Laguna, o
artista dedicou-se a criar duas séries de obras, podendo-se seguir as
peripécias desses personagens em tempos distintos, como em um relato
narrativo pictórico.
Por se inspirar na realidade, muito se disse que Berni foi um realista, mas o
que isso realmente agrega a uma apreensão sensível de sua obra? Com o
objetivo de avançar nessa incursão pela figuração narrativa de Berni,
proponho ater-nos em algumas obras da série Juanito Laguna.
A partir de 1956, Antonio Berni inicia a série Juanito, uma criança magra que
aparece nas obras, dividida entre tarefas que refletem necessidades
cotidianas, como levar comida ao pai na fábrica, e brincadeiras infantis,
como pião ou pipa. Nas obras, quase sempre, Juanito está sozinho e alheio à
sujeira do lugar, repleto das embalagens de diversos produtos, restos
descartados pela sociedade de consumo que o exclui.
Juanito é claramente socialmente marginalizado, está fora da cidade, pertence
ao lugar dos restos e das sujeiras. Mas o que isso, realmente, diz sobre
Juanito? Também cabe o questionamento sobre os demais aspectos da
personalidade da personagem: será Juanito um menino triste? Será que os
demais componentes da obra podem acrescentar outras camadas de leitura?
Vamos ver o que mais existe à margem nessas obras?
A ideia de marginalização pressupõe um centro e uma periferia, uma
situação melhor e uma situação pior, supostamente, vividas na periferia.
Estar à margem não implica completa exterioridade do centro. Marginalizados
habitam fronteiras que separam, mas que, também, articulam dois mundos,
duas posições diferentes cultural e socialmente, articulando incluídos e
excluídos.
Juanito é uma criança absolutamente incluída no universo infantil quando
aparece brincando e também excluída deste universo, quando deixa a
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brincadeira infantil para cumprir tarefas alheias a sua idade, como ir à


fábrica, levar comida para o pai e mais tarde, trabalhar. Juanito é, portanto,
incluído e excluído, vive na fronteira, articulando dois mundos. Ele é criança
em um mundo de fábricas, portanto, novamente está à margem de uma
idade conceituada como a “camada produtiva da população”. Na obra
Juanito Laguna lleva la comida a su papá peón metalúrgico, a inadequação de
Juanito está clara na proporção entre este e as enormes, quase monstruosas
fábricas.

BERNI, JUANITO LAGUNA LLEVA LA COMIDA A SU


PAPÁ PEÓN METALÚRGICO, 1961. COLECCIÓN MUSEO
DE ARTE MODERNO DE BUENOS AIRES.

Mas a expressão à margem também pode ter como referência o centro da


composição plástica. Precisamos, então, ver o que temos à margem na
organização espacial da obra de Berni. Para tanto, vamos enfocar a obra
Juanito en la Playa, realizada em 1973, como exemplo de organização pictórica
desta série. Quase exatamente no centro do espaço pictórico está Juanito,
personagem-título da obra e, à margem, estão objetos secundários que,
aparentemente, estão ali somente para criar ambiente. Esses objetos são
restos da sociedade de consumo e adicionam complexidade à obra, uma vez
que as embalagens industriais esvaziadas estão cautelosamente prensadas,
dispostas de maneira que possam ser reconhecidas em suas marcas e em
outros atributos. Esses itens são tão nítidos na obra de Berni que passo a
perguntar se chamá-los de secundários é ou não apropriado? Será que esses
restos da sociedade de consumo são o centro temático da obra? Para discutir,
voltemos à obra Juanito en la Playa.
A resistência na figuração narrativa de Antonio Berni e Antonio Seguí
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BERNI, JUANITO EN LA PLAYA, 1973.

Nesta obra o artista não detalha o rosto de Juanito. O menino está quieto, em
posição estática, enfatizando a situação de contraste de um menino que
leva a vida e sua infância entre restos de uma sociedade, à qual não pertence
e, provavelmente, não pertencerá. Ele se mantém alheio a esses objetos
descartados que não o atrapalham. O detalhamento que falta ao rosto da
personagem-título do trabalho é farto em referência às embalagens vazias
e amassadas que aparecem nitidamente, garantindo a singularidade de cada
uma. O artista, portanto, volta a turvar as fronteiras entre o que é centro e
margem, entre o tema-título da obra e os itens secundários, entre o que é
principal e marginalizado.
Berni caminhou em sua poética, borrando fronteiras da marginalidade. Deu
complexidade à noção do que é classificado como marginal e como central,
do que é pior e melhor e, desse modo, com isso, o artista transformou em
arte a sua percepção sensível, frente aos problemas sociais de sua geração.
Tudo isso para resistir a uma leitura única e predominante dos valores da
sociedade de consumo.
Termino essa aproximação à obra de Berni, destacando trecho de uma
entrevista com o artista, uma frase repleta de significados e que ajuda-nos
a caminhar por sua obra:
Lo importante, por más graves que sean los problemas de cada
generación, es hacer cosas; si uno no hace cosas, no resiste.1

1. Antonio Berni, em entrevista publicada pouco antes de sua morte. “Reportaje”. In:
Revista Cultural nº 2. Córdoba, set., 1981.
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Outro artista, que se dedica à pintura de um mesmo personagem em várias


obras é Antonio Seguí. A cidade é o ambiente deste artista e o homem que a
habita é o seu tema por predileção. Na série chamada Parques Nocturnos,
Seguí exibiu personagens em um parque no período da noite.
Desta série destacamos Miradas Profundas, obra realizada em 1979, onde
habitantes de uma cidade buscam a obscuridade da noite para atuarem.
Aparecem três homens e uma mulher nua, todos calados, fechados em si,
solitários. Por que Seguí pinta esses personagens à noite? Esse ambiente,
somado ao fato da mulher estar nua, leva-nos a pensar em personagens
marginais. Tratam-se de prostitutas, de assassinos? Pessoas que somente
podem ver e serem vistas no período noturno. Em Miradas Profundas todos
olham para a mulher nua, direta ou indiretamente. O artista materializa o
olhar dos personagens através do traço de sua trajetória. Somente o caminho
do olhar e do desejo une esses personagens solitários. Olhares que, ao revelar
desejos, humanizam estes personagens.

ANTONIO SEGUÍ. MIRADAS PROFUNDAS,


1979. CARVÃO E PASTEL SOBRE TELA,
200 X 200 CM.

Em algumas obras, Seguí pinta sonhos. Dentre elas, destaca-se Los sueños de
Aniseto (1985), onde a parte superior da tela comporta o sonho pleno em
ações, em completa oposição ao plano inferior da tela, onde somente aparece
o acanhado personagem que sonha mergulhado no vazio. Aniseto tem as
mãos contidas, talvez nos bolsos do terno. É uma figura comportada dentro
dos padrões convencionados pela sociedade, mas seu sonho revela outro
comportamento, nada ordenado, onde ele encontraria seus iguais. O
personagem está distante da multidão, mas sonha com ela. O que o impede
de se unir à multidão? Seguí revela o sonho e assim humaniza o constrangido
Aniseto.
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ANTONIO SEGUÍ. LOS SUEÑOS DE ANISETO,


1985. ÓLEO E ACRÍLICO SOBRE TELA,
200 X 200 CM.

Os personagens de Seguí caminham em direção à cidade e parecem fundir-


se a ela. Na obra intitulada Con nervios2, a palheta é restrita, limitando as
cores da obra, o que corrobora o entendimento da fusão entre multidão e
cidade. Em um passo seguinte, na compreensão dessa fusão, Seguí pinta
homens transparentes. É o que se vê na obra Multitud de 1987. Homens que
são somente linha, que formam a estrutura da composição, como a própria
cidade. Homens que são da mesma cor, fundidos à cidade, transformados,
verdadeiramente urbanos e unos. Frente a esta obra, cabe pensar na memória
social de Córdoba, cidade de origem do artista, e, especialmente, no movimento
social conhecido como El Cordobazo, ocorrido em maio de 1969. Este
movimento reuniu muitos trabalhadores e estudantes, que inundaram a
cidade e lutaram contra a política governamental da ditatura de Juan Carlos
Onganía. El Cordobazo foi duramente reprimido, mas foi uma derrota pírrica3,
em decorrência da violenta repressão governamental, derrota que trouxe
vitórias adiadas para os argentinos, no tocante à união e à organização para
a luta. Na obra Multitud, Seguí pintou uma multidão que inundou a cidade
e se transformou em cidade. Uma leitura possível é a de que o artista estaria
evocando o lendário El Cordobazo, que inundou, e continua inundando o
imaginário dos argentinos, especialmente o dos cordobeses.

2. A obra reproduzida na abertura deste artigo é Con nervios.


3. Empresto a expressão “derrota pírrica” de Carlos Fuentes que a emprega em refe-
rência ao “Maio Francês”, no seu livro intitulado Em 68. Paris, Praga e México.
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ANTONIO SEGUÍ. MULTITUD, 1987, CARBONILA, ACRÍLICO, PASTEL E LÁPIS DE COR SOBRE TELA,
113,5 X 146,3 CM.

Charles Baudelaire afirmou em 1863 que a cidade deveria ser tomada como
paradigma para o artista moderno. Através do embate com a cidade, o artista
iria encontrar seu tema. Seguí alcançou essa fusão almejada pelo poeta
francês, ao pintar multidões, apenas definidas por linhas em que as cores
das pessoas ou da cidade são as mesmas, caso da obra Multitud, realizada
em 1987. Podemos dizer, que a obra de Seguí tendo o homem urbano como
foco, efetiva na contemporaneidade, o projeto moderno de Baudelaire
expresso no seguinte trecho:
A multidão é o seu universo, como o ar é o universo dos pássaros, como a
água é dos peixes. Sua paixão e profissão é esposar a multidão [...] para o
observador apaixonado, é um imenso júbilo, fixar residência no numeroso,
na multidão, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito
(Baudelaire,1996:20).4

4. Charles Baudelaire (1821-1867), trecho retirado do artigo intitulado “O artista,


homem do mundo, homem das multidões e criança”, sobre o artista Constantin
Guys (1805-1862), visto como exemplo do artista moderno. Este ensaio é parte do
projeto moderno de Baudelaire publicado, originalmente em três partes no jornal
Le Figaro (26, 29 de novembro e 3 de dezembro de 1863). Baudelaire, C. Sobre a
Modernidade. Coleção Leitura. São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 20.
Sobre a Modernidade. Coleção Leitura. São Paulo: Paz e Terra,
1996.
FUENTES, Carlos. Em 68: Paris, Praga e México. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.
GIUNTA, Andrea. Vanguardia, internacionalismo y política. Arte argentino en
los años sessenta. Buenos Aires: Editorial Paidós, 2001.
VIANA, Francisco. Argentina, civilização e barbárie: a história argentina vista
da Casa Rosada. São Paulo: Atual, 1990.

Catálogos de exposições
Antonio Berni – A 40 años del Premio de la XXXI Bienal de Venecia 1962 –
2002.Buenos Aires: Asoc. Amigos del Centro Cultural Recoleta, 2002.
Antonio Berni – Obra Gráfica. Porto Alegre: Museu de Arte do Rio Grande do
Sul Aldo Malagoli, 2001.
Antonio Seguí. Exposición Retrospectiva 1958-1990. Premio Instituto Torcuato di
Tella 1989. Buenos Aires: Museo Nacional de Bellas Artes.
BERNI y sus contemporaneos correlatos. Homenaje a 100 años de su nacimiento.
Buenos Aires: Fundación Eduardo F. Constantini, 2005.
BERNI: narrativas argentinas. Curador Roberto Amigo. Buenos Aires: Asoc.
Amigos del Museo de Bellas Artes, 2010.
Seguí: peintures, dessins et reliefs. Presence Contemporaine. Aix En Provence,
1985.

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