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MOBILIDADE ATIVA E A LUTA POR DIREITOS: DISCUSSÕES SOBRE

ANTROPOLOGIA DA COLABORAÇÃO, ATIVISMO E HORIZONTALIDADE


EM UMA ASSOCIAÇÃO DE CICLISTAS DE RECIFE/PE.

Vanessa Rodrigues Santana


Universidade Federal de Pernambuco
Resumo Estendido

INTRODUÇÃO
Se tratando de uma cidade na qual a taxa de motorização na Região
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Metropolitana dobrou na última década , Recife possui 82% de automóveis particulares
em números totais, contra apenas 3,3% de bicicletas ​– ​utilizadas com maior frequência
em trajetos que se dirigem aos centros de Recife, Olinda e Jaboatão. Além disso, apenas
5,7% da frota de ônibus rodam em toda a Região Metropolitana. O prefeito do Recife,
Geraldo Júlio (PSB​), adiou até o penúltimo ano de seu mandato (2018) as discussões
referentes à implantação de ciclofaixas, moradia, acessibilidade, entre outros; abrindo
para consulta da população geral pouco tempo antes do prazo final.
Mesmo a bicicleta sendo o segundo meio de transporte de preferência em
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diferentes ​níveis de renda (perde apenas para o metrô​), não há uma consciência por
parte dos cidadãos ​– em especial aqueles de classes mais baixas ​– de que a bicicleta,
enquanto meio de transporte, não é uma questão de privilégio e sim um direito, ainda
que para estes a bicicleta seja o único modal de transporte disponível.
Em vias de fornecer um uso mais democrático e seguro da bicicleta na capital
pernambucana, hoje, a Ameciclo ​– Associação Metropolitana de Ciclistas do Recife,
atua ​por meio de atividades educacionais, culturais, políticas e de pesquisas em que a
prioridade é a conscientização do caráter público do espaço urbano e a necessidade de
humanizá-lo mediante à convivência pacífica entre as diferentes modalidades de
transporte. ​É certo que iniciativas promovidas por grupos de ativismo, como o
Cicloação Recife, aproximam a população de questões importantes relativas à
mobilidade urbana, como a falta de faixas de pedestres, as ciclovias incompletas e a
ausência de semáforos. Contudo, essas iniciativas permanecem como objeto de um
ativismo político cujos frutos são pouco aproveitados pela população civil concernida.
Às vezes, esta última nem chega a colaborar de forma participativa nessas empreitadas

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Como andam Natal e Recife / organizadoras Maria do Livramento M. Clementino, Maria Ângela de
Almeida Souza. - Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Metrópoles, 2009.
2
Dados coletados da dissertação de mestrado de Jéssica Helena de Lima, estudante de Engenharia Civil
da Universidade Federal de Pernambuco.
que, originalmente, são idealizadas para uma melhor e maior exploração de sua
cidadania e direitos.
Em relação à mobilidade por meio da bicicleta, especificamente, ainda nos
parece complicado realizar esse contato direto com o público pelas ações promovidas
pela Ameciclo, visto que estas estão inseridas dentro de uma “bolha” de
ação/comunicação semelhante àquilo que Magnani (2002) chama de “circuito”; e mal
atravessa as fronteiras das redes de sociabilidades nas quais já circula. Embora seja um
espaço de reivindicação que se propõe político, na prática as pautas políticas não são
tratadas de maneira direta.
A partir de uma análise etnográfica da atuação ciclista no Recife, observada em
relação às estratégias específicas propostas nas Reuniões Ordinárias da Ameciclo, é de
interesse deste trabalho analisar as estratégias de colaboração pensadas para promover o
uso da bicicleta em Recife/PE, mediante à investigação da relação entre colaboração e
ativismo, e como ela acontece nesses processos, de forma a caracterizar a participação
dos ciclistas em tais empreitadas democráticas e participativas, e como encontram
estratégias de inserção da bicicleta como via de emancipação cidadã. Além disso,
interessa saber como se dá sua organização política tipificada pela horizontalidade e
questionar a dimensão da realidade das gestões horizontais nos chamados “Novíssimos”
Movimentos Sociais (NVMS) (DAY, 2004; ALEGRIA, BULGARELLI &
PINHEIRO-MACHADO, 2020).

DOS OBJETIVOS
O objetivo geral deste projeto é uma contribuição à metodologia da pesquisa
colaborativa em Antropologia e à informação das comunidades em situação de pesquisa
colaborativa sobre esse método. Esse esforço de sistematização do conhecimento
colaborativo visa a supressão da separação entre teoria e prática antropológica, e a
inserção de saberes inter-epistêmicos surgidos das relações entre os colaboradores nos
seus processos metodológicos. Portanto, interessa também a este projeto a apreensão
crítica da natureza política e novas formas de subjetividades políticas conceituadas e
realizadas nesses trabalhos colaborativos, com atenção particular aos efeitos
institucionais e econômicos em todas as fases de sua execução.
A Reflexão crítica sobre as formas de engajamento dos colaboradores e a
inserção institucional dos projetos da Ameciclo, se deu como forma de inserção à
campo. Foram realizados trabalhos de crítica comparativa entre as metodologias
idealizadas e efetuadas nos projetos colaborativos dos Grupos de Trabalho (GTs) da
Ameciclo e à luz de três eixos particulares: (i) a “realidade” da dimensão colaborativa:
mutualismo, reciprocidade, consentimento; (ii) a natureza política das ações conjuntas:
atenção a des-solidarização entre o político e a política, aos populismos metodológicos e
ideológicos, e aos movimentos contra-democráticos; e (iii) a sustentabilidade da
dimensão colaborativa desses projetos e das metodologias desenvolvidas pelas
comunidades.
Os resultados desses processos se deu na elaboração colaborativa, recíproca e
mútua de uma metodologia colaborativa/participativa entre a Ameciclo, eu e a
comunidade ciclista do Recife, para a promoção do uso e desenvolvimento de bicicletas
na cidade. Aqui, ressalto a relação entre o meu lugar enquanto pesquisadora e
cicloativista. O “estar lá”, “estar aqui” (GEERTZ, [1988] 2005) era uma constante, uma
vez que minha prática cicloativista era também minha pesquisa acadêmica e vice versa.
Esse contato, por vezes confuso à medida em que ia sendo afetada (FRAVET-SAADA,
1990), possibilitou uma análise mais rica e uma visão mais completa das complexidades
do meu trabalho enquanto pesquisadora.
Os projetos propostos a serem elaborados, portanto, foram realizados
continuamente desde agosto de 2019 ​– data da minha inserção à campo ​–​, e foram
aumentando progressivamente ao passo que me inseria cada vez mais no ecossistema da
Ameciclo. Inicialmente, me foi oferecida a coordenação de um projeto de integração
comunitária, no qual trabalharia para estabelecer um sistema de bicicletas
compartilhadas, gratuito, para uma comunidade que faz parte da Região Metropolitana
do Recife. Depois, esses trabalhos tornaram-se mais frequentes em outros GTs, nos
quais foram desenvolvidas atividades como: contar ciclistas, participar do GT de
gênero, construir relatórios, realizar trabalhos administrativos, etc. Até que, por fim,
houve a criação de um GT de Pesquisa específico, do qual eu faço parte, e o convite
para assumir uma das vagas de coordenação da associação.
DISCUSSÃO E CONCLUSÃO
A Associação Metropolitana de Ciclistas do Recife, fundada em 2013, atua para
transformar as cidades em ambientes mais humanos, sustentáveis e democráticos
através da bicicleta. Para tanto, realiza atividades de incidência institucional, pesquisas,
comunicação/sensibilização, intervenções diretas, processos judiciais, incidência
legislativa, etc.
A Ameciclo tem cerca de 1000 pessoas associadas3, sendo 3 funcionários
contratados e remunerados, 5 coordenadores e 3 conselheiros fiscais não remunerados.
As decisões são tomadas horizontalmente em reuniões ordinárias que ocorrem todo
segundo sábado do mês vigente.
No que concerne à primeira parte da pesquisa, optei por analisar três eixos,
sendo: (i) quanto ao tipo de organização democrática, (ii) quanto ao tipo de ativismo
através da chamada Antropologia dos Experts e (iii) quanto às questões burocráticas.
Acerca do primeiro eixo, a Ameciclo pode ser caracterizada como um híbrido
anarquista-democrático, a depender do papel do associado em questão e qual a atividade
por ele exercida dentro do ecossistema da Associação. Há um forte desejo por uma
instituição horizontal, preferencialmente anárquica; ora, segundo Rancière (2014), a
própria democracia é uma anarquia ​–​ na teoria.
Na prática, entretanto, o que se estabelece é um modelo político não
convencional que, por meio dos seus percursos burocráticos, sempre volta aos
princípios de ​riqueza e ​berço​. Ainda que essas questões no caso da Ameciclo não se
dêem necessariamente por razões econômicas e de herança, há uma forte centralização
do poder ​– ou, pelo menos, da tomada de decisão ​– na figura de uma pessoa que detém
as questões do ​berço, ​isto é, faz parte da Associação desde o seu surgimento. E também
da ​riqueza,​ pois embora as decisões financeiras sejam tomadas em coletivo, existe
sempre uma questão burocrática envolvida com o recebimento e o direcionamento desse
dinheiro pertencente àqueles que “se mostram proativos para participar da Associação”.
Se por um lado a busca pelo diálogo constante e por uma utópica
horizontalidade esbarra em processos burocráticos longos, cansativos e pouco
proveitosos, por outro, há uma constante abertura ao diálogo que permite lentamente a
quebra desses processos que são aparentemente invisíveis aos membros da associação.
Há, na Ameciclo, um discurso sobre “como fazemos as coisas na Ameciclo” ou “como a

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Dado de 18/08/2020.
Ameciclo deveria ser” que fogem ao esforço de promover práticas colaborativas. No
intuito de diminuir esses atritos, criou-se um empenho em levar questionamentos sobre
classe e raça que resultaram em mudanças positivas4. No que cerne a outras questões
que ficam fora do processo horizontal, isto é, tudo àquilo que foge a norma de
funcionamento da associação, existe uma disponibilidade daqueles que estão em
posição de tomada de decisão5 em ouvir novas ideias para que a cada novo
conhecimento agregado a associação esteja um passo mais próximo da horizontalidade.
O ativismo praticado na Ameciclo é um cicloativismo que exclui ciclistas. Há
um perfil muito explícito nos associados Ameciclo: homens brancos, de classe média
alta, com alto grau de ​expertise técnica e que são ou já foram cicloativistas. A medida
que corpos outros se aproximam (a rotatividade de pessoas participando das atividades é
enorme) do ecossistema da associação, os conflitos, os pontos falhos e as questões
hierárquicas se tornam mais latentes. Embora o conflito seja inerente a todas relações
sociais e, em especial, ao ativismo, o conflito também ganha certo personalismo na
figura de um dos ex-coordenadores da associação.
Embora esquematizada de uma forma, no dia a dia da associação essa é a
dinâmica de relações que temos: um homem branco que articula todos os processos da
Ameciclo. Não seria um exagero dizer que a Ameciclo é ele e ele é a Ameciclo. Embora
haja um esforço massivo para que as pessoas enxerguem a Ameciclo de forma coletiva
– esforço este que parte dele ​–,​ as tomadas de decisões mais importantes ainda passam
exclusivamente pela sua figura, seja por demanda espontânea ou solicitada.
Embora condenada, essa configuração hierárquica semi-invisível é
constantemente reforçada por aquele que mais tenta destruí-la. Percebe-se uma vontade
desse coordenador que a visão ​dele seja levada em consideração com mais frequência
do que outras visões; e, pelo fato dele deter ​expertise t​ écnica e histórica sobre os
processos estruturais e estruturantes da Ameciclo, isso acaba dificultando ​– ou mesmo
impedindo ​– o processo da busca pela horizontalidade. A outra ex-coordenadora mais
presente no cotidiano da Associação, tem uma postura mais branda e costuma propor
diversas atividades que visam atenuar os corriqueiros conflitos de ideais. Afinal, são

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Criação do GT Ciclopreto, voltado exclusivamente para pessoas pretas e não brancas. Debates sobre
classicismo, precificação e outras questões econômicas também vêm à tona com mais frequência.
Anteriormente, foi criado o GT Mulheres, exclusivo para mulheres associadas discutirem questões de
gênero e propor ações voltadas diretamentamente para mulheres.
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Não acho que seja correto dizer que existe uma “posição de poder” na Ameciclo. Embora haja uma certa
hegemonia no que concerne à cor, classe e nível de conhecimento, o processo de tomada de decisão
raramente perpassa por essas questões, exceto no que condiz a questão de gênero.
diversas pessoas com ideologias similares, buscando um objetivo comum. Contudo, as
diferenças dentro da similaridade são mais gritantes do que aparentam.
A Ameciclo é, por fim, uma Associação não-horizontal, democrática com
hierarquias tradicionais, que adota práticas horizontais possibilitando a diminuição dos
conflitos de poder. No entanto, a burocracia praticada pela Ameciclo permite que seus
pares vivam não através da bicicleta em si, mas do discurso em torno do modal. Esse
discurso, contudo, é colonizador, branco, patriarcal e classicista.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DAY​, Richard. From hegemony to affinity: The political logic of the newest social
movements. Cultural Studies, v. 18, n. 5, p. 716-748, 2004.

GEERTZ​, Clifford. ​Obras e Vidas:​ o antropólogo como autor. 2 ed. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 2005.

GRAEBER​, David, 2009. Direct Action: an ethnography. Oakland: AK Press.

FAVRET-SAADA​, Jeanne. 1990. “Être Affecté”. In: Gradhiva: Revue d'Histoire et


d'Archives de l'Anthropologie, 8.

PEIRANO​, M. Sem lenço, sem documento: reflexões sobre cidadania no Brasil.


Sociedade e Espaço, vol. 1, jun. 1986.

RANCIÈRE​, Jacques. O Ódio à Democracia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.

PINHEIRO MACHADO, R., Alegria, P., & Bulgarelli, L. (2020). Movimentos


sociais contemporâneos: Um balanço da produções de teses e dissertações em
Antropologia nos últimos dez anos (2008-2018). ​Revista Brasileira de Informação
Bibliográfica em Ciências Sociais – BIB​, (93), 1-27.
https://doi.org/10.17666/bib9306/2020.

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