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Considerações sobre o filme Tropa de Elite 2

Sob novas circunstâncias, certamente mais complexas, o segundo


filme da série Tropa de Elite reapresenta os meandros de diálogo
entre justiça, legalidade e moralidade. Sem dúvida, é rica fonte de
dinâmica para o enredo o conjunto de detalhes que permeiam a
“solução institucional” para o problema da violência: para coibir o uso
da força por parte dos agentes privados, o ordenamento estatal
reserva a si próprio a aplicação exclusiva do próprio mal que visa
combater, a coação, elevada então à condição de remédio público,
preferencialmente preventivo.
Esse tipo de mecanismo pelo qual uma comunidade garante sua
própria segurança, há muito consolidado, apresenta ares de
consistência até que se preste atenção a um detalhe decisivo: seres
morais (portanto, livres) subsistem a qualquer sistema. O fenômeno
das milícias, o abuso do poder policial, o banditismo concretizam
exatamente um absurdo próprio do exercício de uma liberdade
inalienável, que revela o quão tênue é o equilíbrio sobre o quanto é
possível reproduzir a paz social. A trajetória do tenente-coronel
Roberto Nascimento sinaliza que inclusive a “figura de exceção” da
narrativa, a personagem pretensamente harmonizadora do caos, teve
de experimentar os limites da sua ação interventora: “o sistema dá a
mão para não perder o braço”, se renova e se recompõe.
Num cenário destituído de uma alternativa imediata e radical de
mudança, à prática desmedida de repressão policial é contraposta a
necessidade de respeito aos direitos humanos; se o combate da força
pela força não fosse, por sua natureza, uma situação-limite, um
desafio à humanidade de cada agente diretamente envolvido, não se
configuraria um dilema persuasivo ao longo da película. Durante
certos momentos do filme, os conselhos maquiavélicos parecem ter
sido acatados de modo exemplar: numa perspectiva político-
governamental, a redução da violência aparece resumida a um
problema de indicadores estatísticos, ações televisivas e aprovação
popular, ou seja, um fator a mais na movimentação da máquina
eleitoral. Nesse caso, a observação de Maquiavel é bastante
conhecida: para o vulgo, qualquer meio de ação pública receberá
elogios em caso de êxito, dado que a massa se concentra sobre o
aparente e os resultados imediatos. É sintomática, nesse sentido, a
cena na qual o tenente-coronel Nascimento recebe aplausos após sua
ação em Bangu I, questionável do ponto de vista procedimental e dos
“incômodos” direitos humanos.
De todo modo, esse é um tipo de saída, de postura cínica muito
próxima a todos nós; num mundo moderno que nega suas próprias
raízes cristãs - como expõe a professora Marta Cartabia na
Assembléia Internacional dos Responsáveis de Comunhão e
Libertação, em La Thuille - é uma inclinação recorrente lidar com
todas as questões de modo muito abstrato, isto é, nem sempre
estamos dispostos a sacrificar nossos esquemas para enxergar o
outro como um ser humano. Quando se trata do tema violência, é
ainda mais fácil desumanizar o policial, muitas vezes pai de família, e
o bandido, merecedor das punições jurídicas, mas também digno de
um tratamento honesto. Mas quem pode, afinal, valorizar todos os
elementos em jogo e conferir tratamento adequado a eles? Caso se
assuma a própria precariedade diante dessa exigência, é difícil que
não nasça um pedido, o de levar adiante, com a ajuda de Cristo, a
luta contra a lógica do poder que se instaura no nosso íntimo e se
reflete no processo de mortificação da nossa humanidade.
A única possibilidade de fugir do cinismo e do niilismo, que é a
grande tentação numa situação dessas, é olhar profundamente e se
medo para o próprio coração, como nos fala o padre Carrón no texto
“Feridos, voltamos para Cristo”:
“Tudo isso serviu para colocar diante de nossos olhos a
natureza da nossa exigência de justiça. É sem confins. Sem fundo.
Tanto quanto o é também a profundidade da ferida. Incapaz de ser
esgotada tão infinita é.” Os policiais e o governo se encontram diante
de um desafio semelhante ao das vítimas, e até mesmo dos bandidos.
Como nos fala ainda Carrón, no mesmo juízo sobre a pedofilia que
pode ser aplicado também a situação descrita no filme:
“Nada é suficiente para reparar o mal feito. Isto não quer dizer
tirar deles a responsabilidade, muito menos a condenação que a
justiça poderá lhes impor. Não bastará nem mesmo cumprir toda a
pena. Se esta é a situação, a questão ardente – que ninguém pode
evitar – é tão simples quanto inexorável: “Quid animo satis?”. O que
pode saciar a nossa sede de justiça? Esse ponto chegamos a tocar
com a mão toda a nossa incapacidade, genialmente expressa no
Brand de Ibsen: “Responde-me, ó Deus, na hora em que a morte me
assalta: não é, pois, suficiente toda a vontade de um homem para
conseguir uma só parte da salvação?”. Ou, dito com outras palavras:
pode toda a vontade do homem conseguir realizar a justiça pela qual
ansiamos? Por isso, mesmo aqueles mais exigentes, mais ávidos na
pretensão da justiça, não serão leais até o fundo de si mesmos com a
sua exigência de justiça, se não enfrentam esta sua incapacidade,
que é a de todos. Se isso não acontecesse, sucumbiríamos a uma
injustiça ainda mais grave, a um verdadeiro “assassinato” do
humano, porque para poder continuar a gritar justiça segundo a
nossa medida devemos fazer calar a voz do nosso coração.
É daqui que pode nascer a reconstrução do humano. A única
possibilidade de salvar a nossa exigência de justiça é o
reconhecimento da sua infinitude, do fato de só poder ser realizada
aceitando um “além”, pondo a nossa esperança não na construção de
sistemas tão perfeitos no qual ninguém precise ser bom, mas
aceitando um fato que é a vinda ao nosso encontro daquele que é o
feitor e a medida do nosso coração. Como diz Dom Giussani: “A
exigência de justiça é uma pergunta que se identifica com o homem,
com a pessoa. Sem a perspectiva de um outro, de uma resposta que
está para além das modalidades existenciais experimentáveis, a
justiça é impossível... Se fosse eliminada a hipótese de um 'além',
aquela exigência seria sufocada artificialmente”. Cristo é o único que
pode salvar nossa existência de justiça porque torna presente o além
no aquém. Como diz o Papa: “Ele mesmo vítima de injustiça e do
pecado”. E encerra Carrón: “Apelar a Cristo, portanto, não é buscar
um subterfúgio para escapar diante da exigência da justiça, mas é o
único modo para realizá-la plenamente”.

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