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ELEFANTE BRANCO
Novembro de 2016.
1ª parte
CENA 1
Os da repartição em uma estranha ocupação.
ABIGAIL: Protocolo 4.2/206.754?
SÂNIA: Indeferido!
ABIGAIL: Indeferido?
SÂNIA: Ausência da documentação exigida no item 3.4 do edital 0097/2007.
EFRAIM: Dobro a aposta.
ONOFRE: Tá ficando bom!
EFRAIM: Qual documento faltava?
SÂNIA: É... (esforça-se para lembrar) Inventário da arrecadação tributária do ano
anterior?
EFRAIM: (endossando) Inventário da arrecadação tributária do ano anterior!
ABIGAIL: Protocolo 15 076/0001.73B, ano de mil novecentos/
SÂNIA: Não precisa falar o ano: deferido!
ABIGAIL: Deferido?
SÂNIA: Com ressalva?
ABIGAIL: Você é quem sabe!
SÂNIA: Deferido com ressalva. Tem um parecer anexado ao processo...
ABIGAIL: Parecer?
SÂNIA: Claro! Tem um parecer anexado!
ABIGAIL: Pago seis rosquinhas se você me disser o que ele diz.
ONOFRE: Pago nove rosquinhas!
EFRAIM: Doze!
SÂNIA: É alguma coisa de adequação da planilha de custos?
ABIGAIL: Adequação da planilha de custos...
SÂNIA: Redução dos itens C, D e G e exclusão dos itens M, A, F!
EFRAIM: Ela não falha.
ONOFRE: Não esquece uma vírgula.
ABIGAIL: Memorando zero-zero-quatro-cinco-barra-dois-zero-zero-um?
SÂNIA: É um parecer técnico das instalações reparadas desta instituição conforme a
norma...
ABIGAIL: Norma?
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ABIGAIL: Efraim: por que você não mostra pra gente um dos números de mágica que
você tem treinado/
ONOFRE: Não é treinado, Abigail! É “ensaiado”! Não é assim que se diz, Efraim?
EFRAIM: Pra vocês, eu não passo de uma grande piada, não é?
Abigail se dirige ao público presente, com aquela voz falsamente doce de aeromoça.
ABIGAIL: Senhoras e senhores, por gentileza, um instante da sua atenção: estamos
passando por alguns problemas técnicos no nosso sistema. Este momento requer
união, dedicação e empenho de todos nós, para que em breve esta inconveniência
esteja solucionada e assim possamos dar prosseguimento ao nosso trabalho e, vocês,
aos seus outros afazeres vida afora. Reiteramos nossos pedidos de desculpas por essa
situação.
Os outros cantam:
“o sistema caiu/ vamos solucionar/ pedimos sua paciência/ até ele voltar...”
O sistema, repentinamente, volta. Abigail, Onofre, Efraim e Sânia não sabem o que
fazer. Sânia se dirige ao público solicitando a próxima senha. No entanto, o sistema
volta a cair. Cada um retoma sua função no procedimento.
ABIGAIL: Apesar das nossas inúmeras tentativas de criar alternativas ao sistema, em
prol da satisfação de cada um aqui presente, nós continuamos muito dependentes
dele. Sem o sistema, nosso trabalho aqui fica praticamente inviabilizado. Sendo assim,
não nos resta muito mais do que contar com a compreensão, a paciência e, se não for
pedir demais, um sorriso no rosto de cada um de vocês. Pela atenção, obrigada.
O Efraim reflete.
EFRAIM: Eu fico pensando... Não há qualquer critério nesta política de cortes! Qual o
sentido deles terem continuado fornecendo manteiga depois de terem cortado o pão?
Por acaso alguém aqui come manteiga pura e bebe café? Como eles decidem o que é e
o que não é prioridade? O que há por trás desta política?
CENA 2
Entra o Percival.
PERCIVAL: Ora, ora, ora: está nascendo um novo líder! (contempla a cena) Muito boa
cena!
EFRAIM: Que cena?
PERCIVAL: Esta. (imita) “O que há por trás desta política”?
EFRAIM: Isso não é uma cena.
PERCIVAL: Como não é uma cena? Só por que tem este tom um pouco mais
panfletário? Vocês deveriam investir...
EFRAIM: Não tem ninguém aqui fazendo cena.
PERCIVAL: Não?
Um instante.
PERCIVAL: Então...
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Instante.
PERCIVAL: Aproveitei e trouxe isso: pra vocês (entrega uma lata de rosquinhas para o
Efraim).
ONOFRE: O que há por trás desta política?
PERCIVAL: Esforços, meus companheiros.
ONOFRE: Uma lambança catastrófica.
PERCIVAL: Por trás desta política há um sem fim de esforços.
ONOFRE: Nossos. Porque é daqui de baixo que tudo tem sido cortado.
EFRAIM: A água, o café, as rosquinhas...
PERCIVAL: Vocês viviam reclamando das rosquinhas.
ABIGAIL: Reclamando ou não, as rosquinhas eram um direito conquistado!
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Instante.
PERCIVAL: Pronto? Podemos retornar ao trabalho?
SÂNIA: Eu não entendo como eu pude estabelecer vínculos com alguém sem senha e
sem número de registro.
ONOFRE: Este calor tem mexido com os nossos humores.
SÂNIA: E com os nossos juízos.
EFRAIM: É melhor não nos envolvermos mais.
ONOFRE: O pior é ter um erro esfregado na nossa cara por este aí!
ABIGAIL: Eu não sou um erro! E vocês não farão nada?
SÂNIA: Quem somos nós para irmos contra o sistema?
ABIGAIL: Você é a minha melhor amiga.
Abigail chora.
ABIGAIL: Por que vocês estão fazendo isso comigo? Por que vocês estão me
submetendo a esta cena?
Abigail soluça.
ABIGAIL: Eu abri mão da minha vida para estar aqui com vocês construindo esta
história! Dia após dia.
SÂNIA: Se não está registrada no sistema é porque ela nunca existiu.
ABIGAIL: (explosiva) Que se exploda este sistema! Como vocês podem ser tão
bitolados?
EFRAIM: Já disse para não nos envolvermos, Sânia! Você insiste. Isso não é mais
problema nosso.
ONOFRE: Temos é que repensar a distribuição das funções.
SÂNIA: (empolgadíssima) Posso me encarregar do procedimento 436/0015 (enquanto
coloca o microfone) Eu não via a hora do meu momento chegar. (imitando a Abigail)
“senhoras e senhores um instante da sua atenção, estamos passando por alguns
problemas técnicos do nosso sistema...”
ABIGAIL: Olha aqui! Eu já relevei muita coisa durante todos estes anos nesta
repartição! Relevei todos os amigos ocultos que eu fui esquecida, todos os meus
aniversários sem nenhum cartão, sem nenhuma felicitação, sem nenhum abraço! Eu
sempre relevei porque eu pensava: não, Abigail, não é nada pessoal. Isso é só o jeito
de ser deles. O jeito que eles lidam com as coisas. Mas pelo visto não: eu não tenho
realmente nada aqui! Nem rastro, nem vínculo, nem amigos, nem nada. Então: para
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que continuar no meio desta cena? Eu é que não faço questão! Que vocês passem
muito bem com este sistema que vai muito mal.
SÂNIA: (para Abigail) Aqui está a sua senha e a documentação que você precisa ter em
mãos para darmos abertura a um processo/
Instante.
PERCIVAL: Já enfrentamos e continuaremos enfrentando adversidades maiores. O
melhor é vocês irem se convencendo de que não há o que se fazer diante de certas
situações em que o sistema é implacável...
ONOFRE: Este sistema que vive caído?
PERCIVAL: Medidas drásticas estão sendo tomadas para tirar este peso do sistema na
tentativa de que ele se reerga. O que eu vim comunicar a vocês/
EFRAIM: Ei, ei, ei! Ainda tem meu número!
Instante.
PERCIVAL: Como eu ia dizendo, estamos atravessando tempos difíceis e as medidas
drásticas infelizmente têm sido/
EFRAIM: Como não foi sete de paus?
SÂNIA: Efraim!
EFRAIM: Eu tinha certeza que sua carta era sete de paus.
ONOFRE: Só ensaiar mais.
PERCIVAL: É.
EFRAIM: Qual era sua carta, Percival?
ONOFRE: Por favor, vamos superar isso aí!
PERCIVAL: Valete de espadas!
EFRAIM: Valete de espadas?
PERCIVAL: Valete de espadas!
EFRAIM: Eu não disse para você trocar de carta?
PERCIVAL: Ora, mas o valete de espadas não tinha deixado de ser uma opção!
EFRAIM: Claro que sim.
PERCIVAL: Claro que não.
EFRAIM: A partir do momento que eu digo “troque”, eu suponho que você escolherá
outra.
PERCIVAL: Mas essa ideia estava só na sua cabeça: não era um combinado.
EFRAIM: Eu confiei em você.
PERCIVAL: Eu só queria que você tivesse, sei lá, uma dificuldade a mais!
EFRAIM: Você armou pra mim. Foi desonesto!
PERCIVAL: Eu não fui desonesto.
EFRAIM: Você não percebe que isso já é outro estágio de aprendizado? Que eu estou
ainda estou no primeiro fascículo de um curso de mágica por correspondência?
PERCIVAL: Foi para o seu próprio bem!
EFRAIM: Foi para me humilhar! Foi para me provar mais uma vez que eu vou sempre
fracassar. Sempre! Não importa o quanto eu me empenhe, me dedique, ame o que eu
esteja propondo: eu sempre fracassarei. Nas coisas mais ordinárias e também nas mais
complexas: em tudo! Eu sou um nada.
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Instante.
SÂNIA: Cilada!
PERCIVAL: O que?
SÂNIA: Armadilha! Quase! Quase você me convenceu, mas ele sempre estraga tudo
com algum deslize! Você é péssimo. Os anos não te ajudam...
PERCIVAL: O que?
SÂNIA: (imita) Fiz o que pude! Mau teatro! Não convence.
PERCIVAL: Como quiserem! O decreto será publicado a qualquer momento.
SÂNIA: Diário oficial?
PERCIVAL: Diário oficial.
EFRAIM: A gente pode fazer algo para impedir. Convocar a sociedade.
ONOFRE: Que sociedade se importa com que a gente faz aqui?
PERCIVAL: Eu já me convenci de que será melhor assim. Pensem no quanto isso será
bom.
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Instante.
PERCIVAL: Na verdade...
Instante.
PERCIVAL: O sistema não caiu.
Instante.
PERCIVAL: De tão pesado, o sistema entrou em colapso!
Instante.
PERCIVAL: Em breve eles virão buscar todas estas coisas.
EFRAIM: Quando?
PERCIVAL: Depois que cortarem a luz.
EFRAIM: Como eles cortam a luz antes de buscarem as coisas? Como eles decidem o
que é e o que não é prioridade? O que há por trás desta política?
Instante.
ABIGAIL: Merda!
ONOFRE: Merda!
SÂNIA: Merda!
EFRAIM: Merda!
PERCIVAL: Merda!
TODOS: MERDA!
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2ª parte
Agora, é como se alguém tivesse aberto uma fresta no espaço e no tempo: por ela,
uma revoada invade o lugar e arrasta quase tudo consigo: formulários, procedimentos,
dossiês, rosquinhas, cadeiras, água, circulares, cigarros... No entanto eles, os três
funcionários e as duas funcionárias, permanecem, de pé, firmes, em silêncio,
compenetrados, ocupados com uma estranha forma de resistência.
O ator que até então exercia o papel de Percival é tomado por um frêmito e vai aos
poucos se transformando numa criatura meio homem, meio elefante. Em seguida, os
demais criam no seu entorno um ritual com panos e cantos. Uma história é contada.
NARRADOR: O tempo de que lhes falarei agora é outro/ imaginem/ passado distante.
Certa vez uma notícia se arrastou rápida feito um clarão de um raio/ um raio/ no topo
do mundo/ diante de muitos olhos/pariu/com um estrondo/ um elefante/ de pele
branca/ imensuroso.
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Ninguém se prontifica.
VÂNIA: Bom... Eu acho que a gente precisa começar a sistematizar esses problemas. A
gente precisa se organizar melhor. Nós não estamos aqui de brincadeira, precisamos
ser mais profissionais.
FABRÍCIO: Eu quero deixar claro que antes da mágica falhar foram cometidos inúmeros
erros muito mais graves...
VÂNIA: Por exemplo?
HELAINE: Por exemplo: de onde você tirou essa ideia de que eu não existia para o
sistema? Não era este o nosso combinado.
CHARLES: Eu só quis fazer uma brincadeira.
FABRÍCIO: Brincadeira?
CHARLES: É! Só pra descontrair. Para nos descontrair. A gente está levando tudo isso
muito a sério...
VÂNIA: O nosso trabalho aqui é sério.
CHARLES: Mas não precisa carregar tanto no drama.
RAYSNER: Lá vem ele.
HELAINE: Você armou pra mim.Você me expôs em público! Você foi desonesto.
CHARLES: Eu não fui desonesto! Eu só queria, sei lá, que você tivesse uma dificuldade a
mais.
VÂNIA: (escrevendo)Desonestidade...
RAYSNER: Se for assim, eu gostaria de registrar que faltou rosquinha...
HELAINE: E eu acho que vocês desafinaram muito na hora de cantar a música do
sistema.
VÂNIA: Os papéis estavam todos fora do lugar.
RAYSNER: Mas o pioro de tudo foi ele assumir um papel que não era dele.
CHARLES: Você precisa resolver esta questão.
FABRÍCIO: E parar de rir na hora errada.
RAYSNER: Eu ri porque vocês fizeram bem.
FABRÍCIO: A gente pode registrar os acertos também?
VÂNIA: Temos que registrar tudo o que for necessário!
RAYSNER: Aquele texto podia estar mais no final.
VÂNIA: Qual texto?
RAYSNER: No fim, é isso mesmo que iria sobrar: nós aqui, com a gente mesmo, neste
lugar vazio.
HELAINE: “A gente aqui, junto com eles, nesse lugar vazio”.
VÂNIA: Assim é melhor.
RAYSNER: Coloca também – isso não tem fim.
AD INFINITUM