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ELEFANTE BRANCO

Novembro de 2016.
1ª parte

CENA 1
Os da repartição em uma estranha ocupação.
ABIGAIL: Protocolo 4.2/206.754?
SÂNIA: Indeferido!
ABIGAIL: Indeferido?
SÂNIA: Ausência da documentação exigida no item 3.4 do edital 0097/2007.
EFRAIM: Dobro a aposta.
ONOFRE: Tá ficando bom!
EFRAIM: Qual documento faltava?
SÂNIA: É... (esforça-se para lembrar) Inventário da arrecadação tributária do ano
anterior?
EFRAIM: (endossando) Inventário da arrecadação tributária do ano anterior!
ABIGAIL: Protocolo 15 076/0001.73B, ano de mil novecentos/
SÂNIA: Não precisa falar o ano: deferido!
ABIGAIL: Deferido?
SÂNIA: Com ressalva?
ABIGAIL: Você é quem sabe!
SÂNIA: Deferido com ressalva. Tem um parecer anexado ao processo...
ABIGAIL: Parecer?
SÂNIA: Claro! Tem um parecer anexado!
ABIGAIL: Pago seis rosquinhas se você me disser o que ele diz.
ONOFRE: Pago nove rosquinhas!
EFRAIM: Doze!
SÂNIA: É alguma coisa de adequação da planilha de custos?
ABIGAIL: Adequação da planilha de custos...
SÂNIA: Redução dos itens C, D e G e exclusão dos itens M, A, F!
EFRAIM: Ela não falha.
ONOFRE: Não esquece uma vírgula.
ABIGAIL: Memorando zero-zero-quatro-cinco-barra-dois-zero-zero-um?
SÂNIA: É um parecer técnico das instalações reparadas desta instituição conforme a
norma...
ABIGAIL: Norma?
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SÂNIA: NBR 443Y, da ABNT!


EFRAIM: Da ABNT!
ONOFRE: Planilha de custos 0017?
SÂNIA: Indeferida!
ABIGAIL: Processo número 12/09-85?
SÂNIA: O Ano?
ABIGAIL: 1968.
SÂNIA: Censurado!
ONOFRE: E este aqui?
EFRAIM: Dossiê protocolado em sete do quatro de mil novecentos/
SÂNIA: Espera!
EFRAIM: Que foi?
SÂNIA: Rosquinhas na mesa! Repete...
EFRAIM: Dossiê protocolado em sete do quatro de mil/
SÂNIA: Dossiê?
EFRAIM: Dossiê de prestação de contas/
SÂNIA: Protocolado/
EFRAIM: Protocolado em sete do quatro/
SÂNIA: De mil novecentos/
EFRAIM: Mil novecentos/
SÂNIA: Cilada!
EFRAIM: Cilada?
SÂNIA: Armadilha! O primeiro documento deste dossiê data de vinte seis do quatro de
mil novecentos/
ONOFRE: Argh, Sânia!
ABIGAIL: É uma máquina!
ONOFRE: Melhor do que máquina!
EFRAIM: Mágica!
ABIGAIL: Prática!
ONOFRE: Que memória de elefante!
SÂNIA: Técnica!
ONOFRE: Pra acabar: licitação de recurso não reembolsável/
SÂNIA: Publicada em?
ONOFRE: Doze do nove de mil novecentos/
SÂNIA: Diário oficial?
ONOFRE: Diário oficial.
SÂNIA: Hum...
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ONOFRE: Licitação de recurso não reembolsável, conforme decreto nº 44341/2006?


SÂNIA: Estou em dúvida... Foi naquela época do/
ONOFRE: Teve copa do mundo.
SÂNIA: Teve copa...
ONOFRE: O crápula do Percival foi promovido!

Os colegas reagem retalhando a fala do Onofre.


ONOFRE: Vocês estão ajudando a Sânia escapar.
SÂNIA: Repete!
ONOFRE: Licitação de recurso não reembolsável, conforme decreto/
SÂNIA: Não conseguimos!
EFRAIM: Por quê?
SÂNIA: Inadequação da prestação de contas do edital 046/1900 e...
ONOFRE: Culpa do Efraim!
EFRAIM: Culpa minha?
ONOFRE: É, esqueceu?
SÂNIA: Foi naquela época que eu pedi para você redigir um recurso...
ONOFRE: E o que o está protocolado?
SÂNIA: “Antes de ser uma obra, é uma vontade/ que brota, jorra/ atravessa/”...
EFRAIM: “Transmuta, reverbera/ deságua em mar corpos que enxovalham a vida com
arte/ e vai além de contas não arredondadas/ porque não pode a arte/ transbordar
viva em uma planilha dura, fria e exata.”
EFRAIM: O parecerista elogiou minha subjetividade!
ONOFRE: Ele disse que você deveria continuar praticando, Efraim.
SÂNIA: Mas que ainda não estava bom!
ONOFRE: E reprovou a prestação de contas.
SÂNIA: Bom saber que você deixou essa coisa de ser poeta de lado!
ONOFRE: Agora, o negócio do Efraim são os truques de mágica.
SÂNIA: A poesia agradece.
ONOFRE: Os pareceristas também.
SÂNIA: Se está registrado na minha ata, não tem jeito!
ONOFRE: É para sempre!
EFRAIM: Nada é para sempre!
ONOFRE: As atas da Sânia são.
ABIGAIL: A gente, aqui, também é!

Instante. Até que Sânia e Onofre voltam a rir do recurso do Efraim.


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ABIGAIL: Efraim: por que você não mostra pra gente um dos números de mágica que
você tem treinado/
ONOFRE: Não é treinado, Abigail! É “ensaiado”! Não é assim que se diz, Efraim?
EFRAIM: Pra vocês, eu não passo de uma grande piada, não é?

Constrangimento dos da repartição.


ABIGAIL: Ih! O sistema caiu!

Abigail se dirige ao público presente, com aquela voz falsamente doce de aeromoça.
ABIGAIL: Senhoras e senhores, por gentileza, um instante da sua atenção: estamos
passando por alguns problemas técnicos no nosso sistema. Este momento requer
união, dedicação e empenho de todos nós, para que em breve esta inconveniência
esteja solucionada e assim possamos dar prosseguimento ao nosso trabalho e, vocês,
aos seus outros afazeres vida afora. Reiteramos nossos pedidos de desculpas por essa
situação.

Os outros cantam:
“o sistema caiu/ vamos solucionar/ pedimos sua paciência/ até ele voltar...”

O sistema, repentinamente, volta. Abigail, Onofre, Efraim e Sânia não sabem o que
fazer. Sânia se dirige ao público solicitando a próxima senha. No entanto, o sistema
volta a cair. Cada um retoma sua função no procedimento.
ABIGAIL: Apesar das nossas inúmeras tentativas de criar alternativas ao sistema, em
prol da satisfação de cada um aqui presente, nós continuamos muito dependentes
dele. Sem o sistema, nosso trabalho aqui fica praticamente inviabilizado. Sendo assim,
não nos resta muito mais do que contar com a compreensão, a paciência e, se não for
pedir demais, um sorriso no rosto de cada um de vocês. Pela atenção, obrigada.

Algum tempo depois.


ONOFRE: (desconversando) E esse sistema, hem, Efraim?
EFRAIM: Caído.
ONOFRE: E a gente não vai fazer nada?
EFRAIM: Atribuição do departamento de reparos.
ONOFRE: E o departamento de reparos?
SÂNIA: Olha o Onofre fazendo o papel de quem chegou aqui ontem. (ao Onofre) O que
tem ele?
ONOFRE: O departamento de reparos já foi notificado?
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SÂNIA: O departamento de reparos precisa ser notificado.


ONOFRE: Alguém poderia notificar o departamento de reparos?
ABIGAIL: Toda vez que eu ligo pra lá, meu número de registro é dado como inexistente.
ONOFRE: Efraim?
EFRAIM: Eu vou fazer um café.
SÂNIA: Qual café?
EFRAIM: Café! Café, ué!
ONOFRE: Foi cortado.
SÂNIA: Circular número 243!
EFRAIM: Vou tomar uma água então/
SÂNIA: ...que também determina a interrupção imediata do fornecimento de água
para esta repartição.
ONOFRE: Corte de gastos!
SÂNIA: Eu, que não sou boba, tenho estocado desde que soltaram a circular.
EFRAIM: Primeiro cortaram o pão do cafezinho!
ABIGAIL: Depois cortaram as rosquinhas!
EFRAIM: E aí a manteiga!

O Efraim reflete.
EFRAIM: Eu fico pensando... Não há qualquer critério nesta política de cortes! Qual o
sentido deles terem continuado fornecendo manteiga depois de terem cortado o pão?
Por acaso alguém aqui come manteiga pura e bebe café? Como eles decidem o que é e
o que não é prioridade? O que há por trás desta política?

CENA 2
Entra o Percival.
PERCIVAL: Ora, ora, ora: está nascendo um novo líder! (contempla a cena) Muito boa
cena!
EFRAIM: Que cena?
PERCIVAL: Esta. (imita) “O que há por trás desta política”?
EFRAIM: Isso não é uma cena.
PERCIVAL: Como não é uma cena? Só por que tem este tom um pouco mais
panfletário? Vocês deveriam investir...
EFRAIM: Não tem ninguém aqui fazendo cena.
PERCIVAL: Não?

Um instante.
PERCIVAL: Então...
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Percival encara cada um.


PERCIVAL: O que é que vocês têm feito aqui?
SÂNIA: Era só o que me faltava: você vir aqui, a essa altura do campeonato, para fazer
auditoria relâmpago!
PERCIVAL: Não é nada disso: tenho é um importante comunicado para fazer.
ONOFRE: E por que não mandou uma circular? Cortaram o gasto com o papel
também?
PERCIVAL: Achei melhor fazer isso pessoalmente. Em nome da nossa velha parceria.
Fora a saudade que eu sinto daqui...
ONOFRE: Saudade daqui?
EFRAIM: Renuncia o seu cargo e volta pra cá.
ONOFRE: E abandonar o... Como ele chama mesmo?
EFRAIM: Lugar ao sol/
PERCIVAL: Porém climatizado.
ONOFRE: E abandonar o “lugar ao sol, porém climatizado” dele?
PERCIVAL: Alguém tinha que carregar este fardo. Não fosse eu, seria outro. É ou não é
Onofre?
SÂNIA: Quem diria: Percival, o inspetor.
PERCIVAL: Já disse: não vim aqui pra isso.
SÂNIA: Mas eu sou muito organizada, precavida.
PERCIVAL: Alguém para a Sânia, por favor.
SÂNIA: Se tem uma coisa que eu me orgulho nessa vida/
PERCIVAL: Sânia!
SÂNIA: É de nunca ter sido pega com as calças curtas/

Instante.
PERCIVAL: Aproveitei e trouxe isso: pra vocês (entrega uma lata de rosquinhas para o
Efraim).
ONOFRE: O que há por trás desta política?
PERCIVAL: Esforços, meus companheiros.
ONOFRE: Uma lambança catastrófica.
PERCIVAL: Por trás desta política há um sem fim de esforços.
ONOFRE: Nossos. Porque é daqui de baixo que tudo tem sido cortado.
EFRAIM: A água, o café, as rosquinhas...
PERCIVAL: Vocês viviam reclamando das rosquinhas.
ABIGAIL: Reclamando ou não, as rosquinhas eram um direito conquistado!
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PERCIVAL: Quem é esta senhora?


ABIGAIL: O que?
SÂNIA: (interrompendo a quase explicação do Percival.) Pronto! Os relatórios
detalhados das atividades desta repartição nos últimos/
PERCIVAL: Pra que isso?
SÂNIA: Posso despachá-los no próximo malote/
PERCIVAL: Eu preciso da atenção de todos.
SÂNIA: Eu tenho só que preencher o formulário/
PERCIVAL: Deixa isso de lado e presta atenção no meu comunicado /
SÂNIA: Não posso, o malote sai daqui às/
PERCIVAL: Respira!
SÂNIA: Hoje são?
PERCIVAL: Que isso agora Sânia?
SÂNIA: Vou escrever uma ata?!
PERCIVAL: Que ata?
SÂNIA: A ata deste... Desta... Como eu chamo isso que estamos vivendo?
PERCIVAL: Pra que isso agora?
SÂNIA: É o procedimento padrão.
PERCIVAL: Esquece esse raio de procedimento padrão!
SÂNIA: Há uma série de procedimentos que impedem que eu esqueça o procedimento
padrão.
PERCIVAL: Chega!Chega! Meu Deus! Você está me escutando?
SÂNIA: Eu estou apenas fazendo o meu trabalho.
PERCIVAL: Isso aqui não é o seu trabalho!
SÂNIA: (explodindo) Quem você pensa que é pra vir até aqui me ensinar fazer o meu
trabalho?
PERCIVAL: Isso aqui: relatório detalhado das atividades/ O sistema tem caído
constantemente/ as rosquinhas foram cortadas/ O funcionário um nove zero continua
treinando seus números de mágica/
EFRAIM: (para Sânia) Já cansei de dizer que não é treinando: se diz ensaiando! Puxa
vida!
PERCIVAL: Então aquela coisa com a mágica engatou?
EFRAIM: Eu ainda estou nas primeiras lições daquele curso por correspondência.
PERCIVAL: Eu, que fui seu primeiro apoiador, fico feliz pelo seu progresso!
ONOFRE: Deixa de ser demagogo, Percival.
EFRAIM: Mágico, mágico eu não sei se eu sou ainda.
PERCIVAL: Claro que é! O Onofre que não consegue ver isso. Ainda!
EFRAIM: Não recebi o segundo fascículo.
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PERCIVAL: Mas o importante é acreditar. Eu acredito em você! Sempre acreditei.


EFRAIM: Você faz falta aqui.
PERCIVAL: Bom saber, Efraim!
EFRAIM: Posso mostrar um número novo?!
ONOFRE: Você acha que o Percival realmente está interessado em mágica sua?
PERCIVAL: Ora, e por que não?
ONOFRE: Ora, porque você certamente está aqui para anunciar mais uma lambança
deste sistema!
PERCIVAL: (ignorando o Onofre) A arte sempre será mais importante do que qualquer
comunicado: vamos à mágica!

Efraim inicia a preparação.


ABIGAIL: (sentida, um pouco rancorosa) Efraim, por um acaso este é aquele número
que eu te pedi e você não quis mostrar?
PERCIVAL: Olha! A senhora ainda está aí.
ABIGAIL: E por que eu não estaria? Eu trabalho aqui.
PERCIVAL: Desde quando?
ABIGAIL: Ora! Desde sempre.
SÂNIA: Ai, que brincadeira mais fora de hora.
PERCIVAL: (aos outros, excluindo a Abigail) Eu deveria é fazer vocês assinarem uma
advertência!
SÂNIA: (preocupadíssima) Advertência?
PERCIVAL: Vocês estão violando a norma institucional que só permite a presença de
funcionários deste setor aqui (mostrando a área de cena).
EFRAIM: Mas é a Abigail!
PERCIVAL: Quem é Abigail?
EFRAIM: Ela.
ABIGAIL: Qual seu problema comigo, hem, Percival?
PERCIVAL: A senhora tem uma senha?
ABIGAIL: Eu não preciso de senha nenhuma.
PERCIVAL: Eu e meus colegas aqui só podemos atendê-la caso a senhora tenha uma
senha.
ABIGAIL: Esta história já foi longe demais.
EFRAIM: Ela trabalha aqui com a gente!
PERCIVAL: Qual o número de registro dela?
ABIGAIL: Pra que você quer o meu número de registro?
PERCIVAL: Simples conferência.
ABIGAIL: Eu estou tendo um probleminha com o meu número/
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PERCIVAL: Qual probleminha?


EFRAIM: O número de registro dela sempre é dado como inexistente.
ABIGAIL: Efraim! (ao Percival) Isso não quer dizer nada.
PERCIVAL: Não?! (para a Sânia) Sânia, valendo duas rosquinhas: o que é necessário
para uma pessoa existir?
SÂNIA: Registro no sistema.
PERCIVAL: Se o registro no sistema não existe, significa/
ABIGAIL: É claro que eu existo.
PERCIVAL: Basta você provar.
ABIGAIL: Eu não preciso provar nada.
PERCIVAL: Não precisa ou não pode?
ABIGAIL: Quer prova mais contundente do que eu estar aqui?
PERCIVAL: Mas aí é a sua palavra contra todo um sistema.
ABIGAIL: Não é só a minha palavra: sou eu aqui com meu corpo, minha voz e toda
minha história com vocês.
SÂNIA: Eu não sei o que pensar.
ABIGAIL: Não tem nada pra pensar: é só um erro.
SÂNIA: (perplexa) Mas o sistema nunca erra.
ABIGAIL: O sistema nem funciona!
SÂNIA: Isso é um absurdo!
ABIGAIL: É claro que é!
SÂNIA: Como eu pude me deixar enganar?
ONOFRE: Eu também pensei que existia uma Abigail entre nós.
SÂNIA: Agora, cá estou eu, a um triz de uma advertência.
EFRAIM: Fomos induzidos ao erro.
ABIGAIL: Por que vocês estão fazendo isso comigo?
SÂNIA: Não é justo sermos advertidos.
PERCIVAL: Ninguém será advertido.
ONOFRE: O que nos fez pensar que aqui trabalhou uma Abigail?
SÂNIA: Será que foi um erro na ata de fundação?
EFRAIM: Pega a ata, Sânia.
ABIGAIL: Já que a minha palavra não vale nada, vamos ver se as da Sânia registradas
em ata valem alguma coisa.
EFRAIM: Não há menção de Abigail em nenhum trecho.
ABIGAIL: Deixa eu ver!
EFRAIM: Senhora: se você não tiver uma senha, peço que providencie uma e aguarde
no local indicado.
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SÂNIA: Somente funcionários desta repartição podem ter acesso ao conteúdo da


documentação arquivada.

Instante.
PERCIVAL: Pronto? Podemos retornar ao trabalho?
SÂNIA: Eu não entendo como eu pude estabelecer vínculos com alguém sem senha e
sem número de registro.
ONOFRE: Este calor tem mexido com os nossos humores.
SÂNIA: E com os nossos juízos.
EFRAIM: É melhor não nos envolvermos mais.
ONOFRE: O pior é ter um erro esfregado na nossa cara por este aí!
ABIGAIL: Eu não sou um erro! E vocês não farão nada?
SÂNIA: Quem somos nós para irmos contra o sistema?
ABIGAIL: Você é a minha melhor amiga.

Abigail chora.
ABIGAIL: Por que vocês estão fazendo isso comigo? Por que vocês estão me
submetendo a esta cena?

Abigail soluça.
ABIGAIL: Eu abri mão da minha vida para estar aqui com vocês construindo esta
história! Dia após dia.
SÂNIA: Se não está registrada no sistema é porque ela nunca existiu.
ABIGAIL: (explosiva) Que se exploda este sistema! Como vocês podem ser tão
bitolados?
EFRAIM: Já disse para não nos envolvermos, Sânia! Você insiste. Isso não é mais
problema nosso.
ONOFRE: Temos é que repensar a distribuição das funções.
SÂNIA: (empolgadíssima) Posso me encarregar do procedimento 436/0015 (enquanto
coloca o microfone) Eu não via a hora do meu momento chegar. (imitando a Abigail)
“senhoras e senhores um instante da sua atenção, estamos passando por alguns
problemas técnicos do nosso sistema...”
ABIGAIL: Olha aqui! Eu já relevei muita coisa durante todos estes anos nesta
repartição! Relevei todos os amigos ocultos que eu fui esquecida, todos os meus
aniversários sem nenhum cartão, sem nenhuma felicitação, sem nenhum abraço! Eu
sempre relevei porque eu pensava: não, Abigail, não é nada pessoal. Isso é só o jeito
de ser deles. O jeito que eles lidam com as coisas. Mas pelo visto não: eu não tenho
realmente nada aqui! Nem rastro, nem vínculo, nem amigos, nem nada. Então: para
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que continuar no meio desta cena? Eu é que não faço questão! Que vocês passem
muito bem com este sistema que vai muito mal.
SÂNIA: (para Abigail) Aqui está a sua senha e a documentação que você precisa ter em
mãos para darmos abertura a um processo/

Abigail enxuga as lágrimas e rasga lista e senha na cara da Sânia.


ABIGAIL: Não faço questão nenhuma.

Instante.
PERCIVAL: Já enfrentamos e continuaremos enfrentando adversidades maiores. O
melhor é vocês irem se convencendo de que não há o que se fazer diante de certas
situações em que o sistema é implacável...
ONOFRE: Este sistema que vive caído?
PERCIVAL: Medidas drásticas estão sendo tomadas para tirar este peso do sistema na
tentativa de que ele se reerga. O que eu vim comunicar a vocês/
EFRAIM: Ei, ei, ei! Ainda tem meu número!

O Efraim ajeita as coisas para executar o seu número. É quase um ritual.


O Percival acende um cigarro.
ONOFRE: Continua sendo proibido fumar aqui dentro!
PERCIVAL: E a gente achando que esta coisa de mágica seria só um passatempo.
EFRAIM: Quando fui ver, estava totalmente apaixonado por essa minha nova
ocupação.
PERCIVAL: Como o caminhar da vida é surpreendente!
ONOFRE: Percival não finge que não ouviu: apaga o cigarro!
PERCIVAL: É só um enquanto o Efraim se prepara.
ONOFRE: Pelo o amor de Deus, Percival! A minha rinite alérgica.
EFRAIM: Estamos quase lá!
ONOFRE: Eu me recuso a continuar aqui dentro.
SÂNIA: Onde você está indo, Onofre?
ONOFRE: Vou sair, tomar um ar.
EFRAIM: Deixa ele ir.
ONOFRE: Como assim “deixa ele ir”? Então o errado sou eu?
PERCIVAL: Quanto drama.
ONOFRE: Eu que tenho que sair? Não ele que está fumando em um local fechado?! E
pronto para pegar fogo com a menor faísca que cair aqui?
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EFRAIM: Mas isso não vai acontecer.../


ONOFRE: Então vocês compactuam com o cigarro do Percival?
EFRAIM: É só um cigarro.
ONOFRE: Não é só um cigarro: é um ato autoritário.
PERCIVAL: Estamos tratando de algo maior.
ONOFRE: E eu estou tratando a minha rinite alérgica!
PERCIVAL: Você está sendo egoísta.
ONOFRE: Vá à merda, Percival!

Percival apaga o cigarro.


PERCIVAL: O Onofre precisa superar este problema dele... E eu não estou falando da
rinite alérgica não...
SÂNIA: Per-ci-val!
PERCIVAL: Toda vez que eu chego aqui, sou recebido com mil pedras na mão.
EFRAIM: (sacando um baralho) Percival senta aqui.
PERCIVAL: Isso porque ele acha que eu fui indicado para um cargo que devia ser dele.
ONOFRE: Do que você está falando?
EFRAIM: Você percebeu que o meu número já começou? Com licença!

Onofre se afasta da área da mágica.


EFRAIM: (ao Percival) Percival: pense em uma carta.
PERCIVAL: Ás de copa!
EFRAIM: Não! Não me diga o nome dela. Só pense.
SÂNIA: Posso pensar em uma também?
EFRAIM: Não! Um de cada vez! Sou iniciante ainda.
PERCIVAL: Pensei!
EFRAIM: Ótimo! Concentrem-se todos. Percival, a carta que você pensou foi.../
PERCIVAL: Valete de espada.
EFRAIM: (irritado) Não! Não é para me dizer! Eu estava apenas fazendo uma chamada
para criar uma atmosfera de mistério. Escolhe outra...
PERCIVAL: Hurrum!
EFRAIM: Escolheu? Certo. A carta que você pensou foi... Sete de paus!
PERCIVAL: Não!
EFRAIM: Não o que?
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PERCIVAL: Não pensei na sete de paus.


EFRAIM: Não?
PERCIVAL: Não.

Instante.
PERCIVAL: Como eu ia dizendo, estamos atravessando tempos difíceis e as medidas
drásticas infelizmente têm sido/
EFRAIM: Como não foi sete de paus?
SÂNIA: Efraim!
EFRAIM: Eu tinha certeza que sua carta era sete de paus.
ONOFRE: Só ensaiar mais.
PERCIVAL: É.
EFRAIM: Qual era sua carta, Percival?
ONOFRE: Por favor, vamos superar isso aí!
PERCIVAL: Valete de espadas!
EFRAIM: Valete de espadas?
PERCIVAL: Valete de espadas!
EFRAIM: Eu não disse para você trocar de carta?
PERCIVAL: Ora, mas o valete de espadas não tinha deixado de ser uma opção!
EFRAIM: Claro que sim.
PERCIVAL: Claro que não.
EFRAIM: A partir do momento que eu digo “troque”, eu suponho que você escolherá
outra.
PERCIVAL: Mas essa ideia estava só na sua cabeça: não era um combinado.
EFRAIM: Eu confiei em você.
PERCIVAL: Eu só queria que você tivesse, sei lá, uma dificuldade a mais!
EFRAIM: Você armou pra mim. Foi desonesto!
PERCIVAL: Eu não fui desonesto.
EFRAIM: Você não percebe que isso já é outro estágio de aprendizado? Que eu estou
ainda estou no primeiro fascículo de um curso de mágica por correspondência?
PERCIVAL: Foi para o seu próprio bem!
EFRAIM: Foi para me humilhar! Foi para me provar mais uma vez que eu vou sempre
fracassar. Sempre! Não importa o quanto eu me empenhe, me dedique, ame o que eu
esteja propondo: eu sempre fracassarei. Nas coisas mais ordinárias e também nas mais
complexas: em tudo! Eu sou um nada.
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SÂNIA: A culpa não é sua...


PERCIVAL: Pelo o amor de Deus... Para de chorar!
ONOFRE: Para de dizer o que as pessoas têm ou não que fazer.
SÂNIA: A culpa é minha!
PERCIVAL: Mas meu Deus do céu: o Efraim está fazendo esta cena toda por causa de
uma bobagem!
EFRAIM: Não é uma bobagem! Você mesmo disse que não era uma bobagem.
PERCIVAL: Claro! Não é uma bobagem!
SÂNIA: Vocês precisam me ouvir.
ONOFRE: Toma aqui essa água.
EFRAIM: Não quero água nenhuma.
PERCIVAL: Toma aqui um cigarro.
ONOFRE: Ah, não...
PERCIVAL: Essa sua rinite alérgica é patética.
ONOFRE: Eu tenho um laudo médico/
PERCIVAL: O que você tem é um excesso de frescura.
SÂNIA: Já chega! Vocês precisam me ouvir! Eu fui a responsável por tudo! Eu que
pensei no sete de paus, Efraim. Sem querer, te fiz errar.
EFRAIM: Você?
SÂNIA: Foi sem querer. Foi um acesso de obsessão.
EFRAIM: Por que você fez isso?
SÂNIA: Quando você pediu para ele pensar numa carta e o Percival falou na sete de
paus a imagem dela se tornou fixa na minha cabeça.
EFRAIM: Mas eu te pedi/
SÂNIA: Eu sei, mas eu não consegui. Mesmo lutando com todas as minhas forças
contra este meu hábito não esquecer nada. Sinto que ele é maior do que eu e não
posso mais com ele, não tenho mais forças: parece que eu carrego um elefante na
cabeça. Eu estou exausta.

Percival se aproxima de Sânia, a fim de consola-la.


PERCIVAL: Com o fim desta repartição, você finalmente vai poder tirar este peso das
costas.

Um instante até que:


SÂNIA: Com o que?
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PERCIVAL: Com o fim desta repartição.


ONOFRE: Que “fim desta repartição?”
PERCIVAL: Medidas drásticas: corte de gastos. É este o meu comunicado.
ONOFRE: Comunicado de merda, só podia ser.
SÂNIA: Como isso?
EFRAIM: Que história é essa?
PERCIVAL: Eu fiz o que pude/
EFRAIM: Fez o que pode?
ONOFRE: Fez pouco então.
PERCIVAL: Eu tentei, argumentei, implorei. Mas eles foram irredutíveis.
SÂNIA: O que há por trás desta política?
EFRAIM: Uma lambança catastrófica mesmo.
PERCIVAL: São tempos difíceis.
SÂNIA: Isso é um ato autoritário.
EFRAIM:É o comunicado que tenho a fazer: corte de gastos.
ONOFRE: Eles não podem nos eliminar daqui como se fossemos nada.
SÂNIA: O que fazemos aqui é de extrema importância.
PERCIVAL: Fiz o que pude!
SÂNIA: Espera!

Instante.
SÂNIA: Cilada!
PERCIVAL: O que?
SÂNIA: Armadilha! Quase! Quase você me convenceu, mas ele sempre estraga tudo
com algum deslize! Você é péssimo. Os anos não te ajudam...
PERCIVAL: O que?
SÂNIA: (imita) Fiz o que pude! Mau teatro! Não convence.
PERCIVAL: Como quiserem! O decreto será publicado a qualquer momento.
SÂNIA: Diário oficial?
PERCIVAL: Diário oficial.
EFRAIM: A gente pode fazer algo para impedir. Convocar a sociedade.
ONOFRE: Que sociedade se importa com que a gente faz aqui?
PERCIVAL: Eu já me convenci de que será melhor assim. Pensem no quanto isso será
bom.
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EFRAIM: Pra quem?


PERCIVAL: Para nós! Voltaremos a ser o que nós éramos.
SÂNIA: Larga mão dessa demagogia porque seu “lugar ao sol, porém climatizado” está
lá. Intacto!
ONOFRE: Às nossas custas.
PERCIVAL: Não está!
ONOFRE: Como não está?
PERCIVAL: Com o fim desta repartição meu trabalho lá não faz mais sentido.

Instante.
PERCIVAL: Na verdade...

Instante.
PERCIVAL: O sistema não caiu.

Instante.
PERCIVAL: De tão pesado, o sistema entrou em colapso!

Instante.
PERCIVAL: Em breve eles virão buscar todas estas coisas.
EFRAIM: Quando?
PERCIVAL: Depois que cortarem a luz.
EFRAIM: Como eles cortam a luz antes de buscarem as coisas? Como eles decidem o
que é e o que não é prioridade? O que há por trás desta política?

A luz então é cortada.


ONOFRE: E nós?
PERCIVAL: Nós?
EFRAIM: Sim, nós!
PERCIVAL: Nós permaneceremos aqui.
SÂNIA: Aqui?
PERCIVAL: Sim.
ONOFRE: Até quando?
PERCIVAL: Para sempre.
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EFRAIM: Este tempo todo?


PERCIVAL: Nosso vínculo com este local é vitalício, nós somos efetivos, vocês se
esqueceram? Nós temos direitos. Eles não podem nos eliminar como se fossemos
nada. E já foi constado que não há nenhum outro departamento para nos alocar.
Vamos ficar aqui.
EFRAIM: (para o Percival) Você também?
PERCIVAL: Eu também.
ABIGAIL: E eu?
PERCIVAL: Você pode ir.
ABIGAIL: E se eu não quiser?
PERCIVAL: Não podemos nos responsabilizar pela senhora.
EFRAIM: E agora?
PERCIVAL: E agora?
ONOFRE: Que tempos são estes?
SÂNIA: E pensar que eu dei o meu sangue por cada formulário, cada procedimento. E
agora tudo será engolido por essa escuridão. Eu nunca pensei que isso pudesse
acontecer.
ONOFRE: Eu não tinha tanta certeza... Esse tanto de circular, esse tanto de decreto
sempre me fizeram desconfiar...
SÂNIA: Desconfiar de que?
ONOFRE: De que no fundo era só isso mesmo: nós aqui, com a gente mesmo, neste
espaço vazio.
SÂNIA: Merda!
ONOFRE: Merda!
ABIGAIL: Merda!
EFRAIM: Merda!
PERCIVAL: Merda!

Instante.
ABIGAIL: Merda!
ONOFRE: Merda!
SÂNIA: Merda!
EFRAIM: Merda!
PERCIVAL: Merda!
TODOS: MERDA!
18

2ª parte

Agora, é como se alguém tivesse aberto uma fresta no espaço e no tempo: por ela,
uma revoada invade o lugar e arrasta quase tudo consigo: formulários, procedimentos,
dossiês, rosquinhas, cadeiras, água, circulares, cigarros... No entanto eles, os três
funcionários e as duas funcionárias, permanecem, de pé, firmes, em silêncio,
compenetrados, ocupados com uma estranha forma de resistência.

O ator que até então exercia o papel de Percival é tomado por um frêmito e vai aos
poucos se transformando numa criatura meio homem, meio elefante. Em seguida, os
demais criam no seu entorno um ritual com panos e cantos. Uma história é contada.

NARRADOR: O tempo de que lhes falarei agora é outro/ imaginem/ passado distante.
Certa vez uma notícia se arrastou rápida feito um clarão de um raio/ um raio/ no topo
do mundo/ diante de muitos olhos/pariu/com um estrondo/ um elefante/ de pele
branca/ imensuroso.
19

HELAINE: Chega! Chega! Chega! Já deu.


RAYSNER: Tava na cara que isso não ia dar certo.
HELAINE: Toda vez é assim.
VÂNIA: Onde é que nós estávamos com a cabeça?
CHARLES: (para Fabrício) Talvez seja o caso de você continuar ensaiando...
FABRÍCIO: Continuar ensaiando... Continuar ensaiando... Pra quê? Eu vou sempre
fracassar.
CHARLES: Eu acredito em você. Sempre acreditei...
RAYSNER: Da próxima vez você pode tentar outro truque, que tal?
FABRÍCIO: Pra vocês, eu não passo de uma grande piada, não é?
CHARLES: Vocês ficam falando dele, mas na hora de concordar em ter número de
mágica, todo mundo concordou.
RAYSNER: Todo mundo quem? Eu não concordei com nada.
HELAINE: Isso que a gente está discutindo é uma bobagem. Todo mundo aqui está
sujeito a erros.
SÂNIA: Eu não errei nada.
CHARLES: A gente tem que pensar que o que fazemos aqui depende do coletivo. O erro
de um é o erro de todos.
RAYSNER: Ah, larga mão dessa sua demagogia!
SÂNIA: Calma, calma... A gente precisa encontrar uma solução definitiva pra esse tipo
de situação, vocês não acham?
RAYSNER: Alguma sugestão?

Helaine faz que não com a cabeça.


RAYSNER: Alguém?

Ninguém se prontifica.
VÂNIA: Bom... Eu acho que a gente precisa começar a sistematizar esses problemas. A
gente precisa se organizar melhor. Nós não estamos aqui de brincadeira, precisamos
ser mais profissionais.

Vânia sai e retorna com um maço de papéis e caneta.


VÂNIA: Hoje são?
CHARLES: Que isso agora?
VÂNIA: Eu proponho que a gente registre tudo o que não está funcionando aqui
neste...nesta... Como vamos chamar esse tipo de procedimento? Ei, você! (aponta
para Raysner) Me dá uma mãozinha aqui?

Raysner vira o apoio para a Vânia escrever.


VÂNIA: (escrevendo)A mágica não foi até o fim porque o mágico em questão não
possuía a técnica necessária para a realização do referido número.
20

FABRÍCIO: Eu quero deixar claro que antes da mágica falhar foram cometidos inúmeros
erros muito mais graves...
VÂNIA: Por exemplo?
HELAINE: Por exemplo: de onde você tirou essa ideia de que eu não existia para o
sistema? Não era este o nosso combinado.
CHARLES: Eu só quis fazer uma brincadeira.
FABRÍCIO: Brincadeira?
CHARLES: É! Só pra descontrair. Para nos descontrair. A gente está levando tudo isso
muito a sério...
VÂNIA: O nosso trabalho aqui é sério.
CHARLES: Mas não precisa carregar tanto no drama.
RAYSNER: Lá vem ele.
HELAINE: Você armou pra mim.Você me expôs em público! Você foi desonesto.
CHARLES: Eu não fui desonesto! Eu só queria, sei lá, que você tivesse uma dificuldade a
mais.
VÂNIA: (escrevendo)Desonestidade...
RAYSNER: Se for assim, eu gostaria de registrar que faltou rosquinha...
HELAINE: E eu acho que vocês desafinaram muito na hora de cantar a música do
sistema.
VÂNIA: Os papéis estavam todos fora do lugar.
RAYSNER: Mas o pioro de tudo foi ele assumir um papel que não era dele.
CHARLES: Você precisa resolver esta questão.
FABRÍCIO: E parar de rir na hora errada.
RAYSNER: Eu ri porque vocês fizeram bem.
FABRÍCIO: A gente pode registrar os acertos também?
VÂNIA: Temos que registrar tudo o que for necessário!
RAYSNER: Aquele texto podia estar mais no final.
VÂNIA: Qual texto?
RAYSNER: No fim, é isso mesmo que iria sobrar: nós aqui, com a gente mesmo, neste
lugar vazio.
HELAINE: “A gente aqui, junto com eles, nesse lugar vazio”.
VÂNIA: Assim é melhor.
RAYSNER: Coloca também – isso não tem fim.

AD INFINITUM

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