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Editorial

Com este terceiro volume, e contando com um crescente reconhecimento por parte da comunidade
científica nacional, PER MUSI enfrenta de forma efetiva o desafio lançado por seu criador e
primeiro Editor-Chefe, o Prof. Dr. Fausto Borém, estabelecendo-se, assim, de forma definitiva
como referência nacional na área de pesquisa em performance musical.

Dando continuidade à iniciativa principiada no volume anterior, o presente volume reúne alguns
trabalhos que foram apresentados no I Seminário de Pesquisa em Performance Musical e
que se voltam, principalmente, às músicas e músicos brasileiros. Em um rigoroso estudo de
musicologia histórica, Paulo Castagna nos revela que as claves altas, freqüentemente utilizadas
na música religiosa paulista e mineira dos séculos XVIII e XIX, devem ser interpretadas como um
sistema transpositor. Luiz Guilherme Duro Goldberg discute a relação partitura/obra musical
ao apresentar os critérios adotados para uma edição crítica das Valsas Humorísticas de Alberto
Nepomuceno. Eliane Tokeshi discorre sobre a trajetória composicional de Ernst Mahle através
da análise estilística de suas Sonatas e Sonatinas para violino e piano. Rafael Santos sugere
critérios bem fundamentados para a performance dos choros para piano Canhôto e
Manhosamente de Radamés Gnattali, obras caracterizadas pela coexistência sui generis de
elementos musicais das culturas populares brasileira e norte-americana. A partir da teoria
semiótica de Charles Sanders Peirce, Cecília Nazaré de Lima propõe um olhar novo e sugestivo
sobre De Umbris, peça para dois fagotes e piano do compositor mineiro Oiliam Lanna.
Agradecemos a Oiliam Lanna por permitir a publicação integral do manuscrito inédito de De
Umbris. O americano Anthony Scelba realiza uma ampla reflexão sobre a importância das
transcrições e arranjos musicais, tanto na história da música quanto para a formação dos músicos
de hoje, e aponta argutamente o forte preconceito vigente contra este tipo de prática.

A Comissão Editorial de PER MUSI espera receber, com mais este volume, sugestões para o
aprimoramento da revista e uma participação crescente em nível nacional e internacional para os
próximos volumes.

André Cavazotti
Editor-Chefe de PER MUSI (permusi@musica.ufmg.br)
PER MUSI - Revista de Performance Musical é um espaço democrático para a reflexão intelectual na área de música,
onde a diversidade e o debate são bem-vindos. As idéias aqui expressas não refletem a opinião da Comissão Editorial ou
do Conselho Consultivo.

Comissão Editorial
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Prof. Dr. Fausto Borém (UFMG)
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Profa. Dra. Cecília Cavalieri França (UFMG)
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Arte-Final (Cedecom/UFMG)
Capa e projeto gráfico: Jussara Ubirajara
Fotos: Foca Lisboa
Scanner: Samuel Tou

PER MUSI: Revista de Performance Musical - v.3, 2001 -


Belo Horizonte: Escola de Música da UFMG, 2001 -

v.: il.; 21x29,7cm.


Semestral
ISSN: 1517-7599

Música - Periódicos. 2. Performance Musical - Periódicos.


3. Interpretação Musical - Periódicos
I. Escola de Música da UFMG
SUMÁRIO
Análise e considerações sobre a
execução dos choros para piano solo
Canhôto e Manhosamente de Radamés Gnattali ....................................... 5
Analysis of and considerations about the performance of the choros for solo piano
Canhôto and Manhosamente by Radamés Gnattali
Rafael dos Santos

In defense of arrangement........................................................................... 17
Em defesa dos arranjos musicais
Anthony Scelba

As claves altas na prática musical religiosa


paulista e mineira dos séculos XVIII e XIX ................................................ 27
High clefs in the practice of religious music in São Paulo and Minas Gerais in
the 18th and 19th centuries
Paulo Castagna

As Sonatas e Sonatinas para violino e piano de Ernst Mahle:


uma abordagem dos aspectos estilísticos ............................................... 43
Sonatas and Sonatinas for violin and piano by Ernst Mahle: a stylistic approach
Eliane Tokeshi

Uma possível interpretação da


referência musical em De Umbris de Oiliam Lanna ................................ 57
A possible interpretation of the musical reference in De Umbris by Oiliam Lanna
Cecília Nazaré de Lima

Partitura completa de De Umbris ............................................................... 70


Complete score of De Umbris
Oiliam Lanna

As Valsas Humorísticas de Alberto Nepomuceno:


uma edição crítica ......................................................................................... 78
Alberto Nepomuceno’s Valsas Humorísticas: a critical edition
Luiz Guilherme Duro Goldberg
SANTOS, Rafael dos. Análise e considerações sobre a execução dos choros... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 5-16

Análise e considerações sobre


a execução dos choros para piano solo
Canhôto e Manhosamente de Radamés Gnattali

Rafael dos Santos (UNICAMP)


e-mail: rdsantos@obelix.unicamp.br

Resumo: Os choros para piano solo Canhôto e Manhosamente de Radamés Gnattali (1906-1988) contêm a maioria
dos elementos estruturais característicos do gênero (ornamentação melódica, elaboração e funções da linha do
baixo, harmonia e ritmo). Tais elementos são aliados a uma sonoridade jazzística e a técnicas associadas ao estilo
“stride”, que os tornam modernos e sofisticados sem descaracterizá-los. A partir da análise desses elementos, são
sugeridos alguns critérios para sua execução, tendo em vista o ritmo, a articulação e a forma de frasear característicos
da música popular.
Palavras-chave: música popular brasileira, choro, piano, performance musical, Radamés Gnattali.

Analysis of and considerations about


the performance of the choros for solo piano
Canhôto and Manhosamente by Radamés Gnattali
Abstract: The choros for solo piano Canhôto e Manhosamente by Radamés Gnattali (1906-1988) have most of the
characteristic structural elements of the genre (melodic ornamentation, elaboration and functions of the bass line,
harmony and rhythm). The incorporation of jazz sonorities and techniques associated to stride piano style make
them modern and sophisticated without losing their characteristics. This article suggests some criteria for their
performance through the analysis of these elements, based on rhythm, articulation and phrasing.
Keywords: Brazilian Popular Music, choro, piano, musical performance, Radamés Gnattali.

O choro tradicional é originalmente composto para pequenos conjuntos, que incluem flauta,
clarineta, bandolim, cavaquinho, violões e percussão, entre outros. De acordo com o cavaquinista
Henrique CAZES (1998, p.19), ele começou a ser considerado um gênero com características
definidas a partir da década de 1910, através do trabalho de Alfredo da Rocha Viana Filho, o
“Pixinguinha”. Os elementos musicais característicos do choro são, no seu aspecto estrutural, de
natureza melódica, harmônica e rítmica, sendo que, num conjunto típico de choros, eles estão
distribuídos entre os seus diferentes instrumentos. Tais elementos estruturais, entretanto, não são
originais nem exclusivos do choro, e sua simples ocorrência não é suficiente para
defini-lo como tal. Existe ainda um outro aspecto importante, que é a maneira como ele deve ser
executado, e que está relacionada com práticas interpretativas específicas da música popular,
tais como uma sonoridade leve que permita manter a textura transparente, realização do ritmo de
forma relaxada em relação ao pulso, uma articulação que enfatize a síncopa, e forma de frasear,
geralmente sem exageros de dinâmica.

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SANTOS, Rafael dos. Análise e considerações sobre a execução dos choros... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 5-16

Desta forma, a parte de piano solo de um choro funciona como uma redução orquestral,
apresentando vários desafios para o compositor que deseja preservar tais elementos, e resultando
em obras de dificuldade técnica considerável, muitas vezes em andamentos rápidos, que exigem
do executante clareza de toque, independência entre as mãos e grande domínio no uso do pedal,
entre outros.

Nos choros Canhôto e Manhosamente, ambos compostos entre 1950 e 1955


(MARCONDES,1998, p.330) e publicados pela Editora Musical Brasileira em 1958 (dedilhado e
pedal de Francisco Mignone), Radamés Gnattali (1906-1988), além de resolver habilmente tais
desafios, acrescenta progressões harmônicas e sonoridades jazzísticas ao texto musical, ao
incluir algumas técnicas associadas aos pianistas do estilo stride1 norte-americano, criando uma
fusão que, sem descaracterizá-los como choros, tanto em sua estrutura como na forma de
executá-los, os torna mais modernos ao incorporar tensões2 até então pouco usadas nos choros
tradicionais.

O objetivo desse trabalho é analisar os choros Canhôto e Manhosamente, procurando detectar


características do choro tradicional e do choro moderno no estilo de Gnattali, estabelecendo, a
partir dos resultados, alguns critérios para sua execução, tendo em vista a sonoridade, realização
do ritmo, articulação, e forma de frasear característicos da música popular. Este estudo está
dividido em três etapas; primeiro, serão estabelecidas e identificadas as sonoridades e
características estruturais específicas do choro, usando-se como referencial a classificação feita
pelo pianista Alexandre Zamith ALMEIDA (1999) em sua pesquisa sobre o choro no piano
brasileiro; segundo, o mesmo processo será utilizado para o jazz, numa adaptação dessa teoria.
Finalmente, serão feitas, com base nas análises, considerações sobre a aplicação de práticas
interpretativas da música popular nas duas obras.

1 - Características do choro
Após fazer um levantamento exaustivo em dezenas de choros de diferentes autores, Alexandre
Zamith Almeida organiza seus elementos estruturais em quatro categorias distintas: Melodia,
Baixos, Harmonia e Ritmo, e as descreve minuciosamente (ALMEIDA, 1999, p.105-131). Quase
todos esses elementos são encontrados nos dois choros, conforme mostram os exemplos
seguintes:

1.1 - Melodia: No choro, é enriquecida com:

1. Apojaturas e bordaduras ornamentais e melódicas.


2. Cromatismo.

1
O stride, também chamado de Harlem Piano School, é um estilo de tocar piano associado ao ragtime e desenvolvido
na costa leste dos Estados Unidos, tendo se originado por volta da Primeira Guerra Mundial. Seus principais
expoentes foram Willie “The Lion” Smith, James P. Johnson e Art Tatum (GRIDLEY, 1988, p. 61).
2
O termo “tensões” (extensions - extensões na harmonia do jazz) é equivalente a “dissonâncias” na harmonia
tradicional, referindo-se aos intervalos de sétima, nona, décima-primeira e décima-terceira. Na música popular e
no jazz moderno, a assimilação das sonoridades obtidas através da inclusão destes intervalos aos acordes
tornou a distinção entre “consonância “ e “dissonância” quase irrelevante (FREITAS, 1997, p. 17 e STRUNK,
1995, p. 486).

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SANTOS, Rafael dos. Análise e considerações sobre a execução dos choros... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 5-16

3. Ocorrência do arpejo maior descendente com 6a.


4. Frases longas.
5. Utilização da escala menor harmônica descendente sobre a dominante.
6. Valorização melódica do contratempo.

• Apojaturas e bordaduras ornamentais e melódicas: Com exceção de apojaturas


ornamentais, foram encontrados vários exemplos nos dois choros:

Ex. 1a – Canhôto, c. 18 Ex. 1b – Manhosamente, c. 4

apojaturas

Ex. 1c - Manhosamente, c. 58-59

• Cromatismo: também foram encontrados exemplos de cromatismo nas duas composições.

Ex. 2a – Canhôto, c. 10 Ex. 2b – Manhosamente, c. 50,51

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SANTOS, Rafael dos. Análise e considerações sobre a execução dos choros... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 5-16

• Ocorrência do arpejo maior descendente com 6a:

Ex. 3a - Canhôto, c. 19 Ex. 2b – Manhosamente, c. 50,51


arpejo descendente de ré maior com 6a

• Frases longas: de acordo com Zamith, são típicas de gêneros mais líricos e andamentos
mais lentos, não ocorrendo nas obras analisadas.

• Utilização da escala menor harmônica descendente sobre a dominante: não é explorada


pelo compositor nos dois choros.

• Valorização melódica do contratempo: ocorre quando as notas referentes aos contratempos


são as mais graves ou mais agudas de um grupo melódico, sendo que, quanto maior o salto
melódico, maior será a sua intensidade. Os dois choros contém numerosos exemplos.

Ex. 4a - Canhôto, c. 23, 24 Ex. 4b – Manhosamente, c. 11

1.2. Baixos: as linhas de baixo são realizadas pelo violão de sete cordas nos grupos de choro,
tendo se originado dos encadeamentos de acordes invertidos e se desenvolvendo até apresentar
contornos melódicos, podendo se estender até a região médio-aguda do instrumento e
apresentando diversos elementos característicos das melodias de choro. Zamith as subdivide
em três categorias:

1. Baixo Condutor Harmônico


2. Baixo Melódico
3. Baixo Pedal

• Baixo Condutor Harmônico: responsável pela condução das harmonias invertidas, acumula
em si a realização da linha do baixo, da harmonia e do ritmo. Os dois choros contém passagens
que utilizam este tipo de baixo.

Ex. 5a - Canhôto, c. 28, 29 Ex. 5b – Manhosamente, c. 25, 26

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SANTOS, Rafael dos. Análise e considerações sobre a execução dos choros... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 5-16

• Baixo Melódico: mais movimentado e ousado, definindo idéias melódicas, podendo aparecer
em contraponto com a melodia ou dialogando com esta. Também é encontrado nas duas obras,
aparecendo com mais freqüência em Canhoto.

Ex. 6a - Canhôto, c. 8-11 – Ex. 6b – Manhosamente, c. 19, 20 –


baixo condutor melódico baixo condutor melódico

• Baixo Pedal: utilizado geralmente em seções com função de introdução ou transição. É utilizado
brevemente nos c. 46 e 47 de Canhôto.

Ex. 7- Canhôto, c. 46, 47

1.3 - Harmonia
Os choros de Radamés Gnattali possuem recursos harmônicos bastante elaborados, incluindo
procedimentos e sonoridades associados ao jazz norte-americano, que serão analisados
posteriormente. Tais características, que se incorporaram ao chamado choro moderno, começaram
a surgir na década de 1930, tendo Pixinguinha como um de seus expoentes. Ainda assim, eles
preservam algumas características harmônicas do choro tradicional. São elas:

• Utilização do acorde de Sexta Napolitana e da dominante substituta (subV7), acorde


construído meio tom acima do tom em que resolve, muito utilizado na música popular, em finais
de frases ou seções.

Ex. 8a - Canhôto, c. 16 acorde de Ex. 8b – Manhosamente, c. 62


dominante substituta (bII7, V7, i) “Acorde Napolitano”.

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SANTOS, Rafael dos. Análise e considerações sobre a execução dos choros... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 5-16

• Uso intensivo de acordes invertidos. Acontece com bastante freqüência em Manhosamente.

Ex. 9 – Manhosamente, c. 25, 26

1.4 - Ritmo: é caracterizado por:

1. Ocorrência da síncopa
2. Alusão à síncopa
3. Quiálteras

• Ocorrência da síncopa: acontece com freqüência nos dois choros.

Ex. 10a - Canhôto, c. 14, 15 Ex. 10b – Manhosamente, c. 29, 30

• Alusão à síncopa: está relacionada com a valorização do contratempo, conforme já


exemplificado anteriormente.

• Quiálteras: aparecem nos dois choros, ainda que raramente.

Ex. 11b – Manhosamente, c. 26

Ex. 11a - Canhôto, c. 54, 55

A Tab. 1 sintetiza o grau de incidência dos elementos discutidos acima em cada uma das obras,
de acordo com o seguinte código:

XXX : grande incidência


XX : média incidência
X : pouca incidência
__ : nenhuma incidência

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SANTOS, Rafael dos. Análise e considerações sobre a execução dos choros... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 5-16

Como pode ser observado na Tab. 1, Canhôto e Manhosamente possuem a maioria dos
elementos estruturais característicos encontrados no choro tradicional. Em geral, a ocorrência
desses elementos é semelhante, mas pode-se notar que a incidência do baixo melódico em
Canhôto é bem maior que em Manhosamente, o qual, por sua vez, além de ter mais cromatismos
melódicos, utiliza muito mais acordes invertidos que o primeiro.

Tab. 1 – Grau de incidência dos elementos estruturais

Elementos estruturais Canhôto Manhosamente


Apojaturas e bordaduras XXX XXX
Cromatismo melódico XX XXX
Arpejo maior descendente X X
Frases longas __ __
Escala menor harmônica descendente __ __
Valorização melódica do contratempo XXX XXX
Baixo condutor harmônico X XX
Baixo melódico XXX X
Baixo pedal X __
“Acorde de Sexta Napolitana” e da X X
dominante substituta
Acordes invertidos X XXX
Síncopa XXX XXX
Alusão à síncopa XXX XXX
Quiálteras X X

2 - Características do jazz
A influência do jazz está presente nos dois choros de Radamés Gnattali através da sonoridade
das tensões e alterações incorporadas aos acordes, bem como em algumas progressões típicas
daquele gênero. Diferentemente do choro tradicional, os acordes utilizados no jazz aparecem em
sua maioria na posição fundamental, para que as tensões existentes soem como tal. A Tab. 2
contém um resumo dos tipos de tétrades mais usadas na harmonia do jazz, bem como as tensões,
com as respectivas cifras.

Tab. 2 – Tétrades e tensões mais utilizados no jazz

1 - Tétrades:

1 2 3 4 5 6
1) Maior com sétima maior; 2) Um acorde maior com a sétima menor é sempre chamado de
acorde de Dominante, não importando em que grau da escala ele é construído ou de sua
função no contexto; 3) Menor com sétima; 4) “Meio diminuto”; 5) Diminuto; 6) Uma estrutura
de acorde de dominante com a quarta suspensa é chamada de dominante sus4

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SANTOS, Rafael dos. Análise e considerações sobre a execução dos choros... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 5-16

2 - Tensões:
Um acorde com tensões é produzido quando são superpostas terças além da sétima nas
tétrades, por exemplo, a nona, a décima primeira e a décima terceira, etc.
Quando houver mais de uma tensão, ela aparecerá na cifra entre parênteses.

Nona Décima primeira Décima terceira


A nona maior – pode ser alterada para aumentada ou menor
A décima primeira justa pode ser alterada para aumentada
A décima terceira maior pode ser alterada para menor

Em Canhôto e Manhosamente, as tétrades aparecem na maioria das vezes em posição aberta,


nas duas formas abaixo, da nota mais grave para a mais aguda:

FORMA A - Fundamental, quinta, sétima e terça


FORMA B - Fundamental, quinta, terça e sétima

Quando ocorre o acréscimo das tensões, a quinta do acorde às vezes é omitida (principalmente
com o aparecimento da décima primeira e da décima terceira). As tensões alteradas aparecem
com mais freqüência nos acordes de dominante. O Ex. 12 mostra as posições mais usadas nas
duas obras, usando como modelo o acorde de Dó.

FORMA A FORMA B

Ex. 12 - Tétrades em posição aberta, nas formas A e B


(as tensões estão sem alterações e aparecem em notas pretas)

Seguem alguns exemplos das duas formas, extraídas de Canhôto e Manhosamente.

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SANTOS, Rafael dos. Análise e considerações sobre a execução dos choros... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 5-16

Canhôto, c. 53 Canhôto, c. 50
(a quinta foi omitida nos dois acordes)

Manhosamente, c. 2 Manhosamente, c. 17
(a quinta foi omitida nos dois acordes)

Outro procedimento característico do jazz é a utilização da progressão harmônica ii V que pode


ou não ser resolvida no I grau, e que também é utilizada para estender dominantes secundárias.
Esta progressão é usada com bastante freqüência em Canhôto.

Ex. 14 – Canhôto, c. 28-30 - progressão II V I

Radamés Gnattali também utiliza a técnica de acordes em bloco típica dos arranjos para big
band e orquestras de música popular. Eles aparecem nos c. 20-21 de Canhôto e c. 43-46 de
Manhosamente.

3 - Técnicas associadas ao stride


O stride é um estilo que requer técnica bastante virtuosística, combinando figuras percussivas
que geralmente alternam, com grandes saltos, notas na região grave (primeiro e terceiro tempos)

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SANTOS, Rafael dos. Análise e considerações sobre a execução dos choros... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 5-16

com acordes na região média do instrumento (segundo e quarto tempos) na mão esquerda, com
uma atividade rítmica bastante intensa na mão direita (GRIDLEY, 1988, p.61). Uma de suas
características principais é a substituição do baixo em oitavas do ragtime por tríades (e no caso
de Art Tatum, tétrades) em posição aberta formando intervalos de décima entre as vozes extremas.
O Ex. 15 mostra um baixo típico do estilo.

Ex. 15 – baixo típico do stride

Um recurso bastante utilizado pelos pianistas do estilo stride é a utilização de arpejos ascendentes
ou descendentes com característica pentatônica, que terminam com um pequeno cromatismo,
como mostra o Ex. 16.

Ex. 16 – Arpejo típico do estilo stride, extraído de um arranjo de Art TATUM (197?, p. 40)
para a composição Don’t Get Around Much Anymore, de Duke Ellington e Bob Russel.

As sonoridades típicas do estilo stride estão presentes em Canhôto e principalmente em


Manhosamente, que é constituído em grande parte por acordes abertos. O Ex. 17 mostra trechos
extraídos dos dois choros, onde esse tipo de arpejo é utilizado.

Canhôto, c. 30,31

Manhosamente, c. 9-11
Ex. 17

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SANTOS, Rafael dos. Análise e considerações sobre a execução dos choros... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 5-16

Nota-se portanto que o jazz está presente nas duas obras, principalmente através da sonoridade
das tétrades em posição aberta, das tensões, dos acordes alterados e da utilização de arpejos
típicos do estilo stride.

4 - Considerações sobre a execução das obras


Canhoto e Manhosamente são bastante diferentes quanto à textura e ao plano harmônico.
Enquanto a primeira obra tem uma tonalidade bem definida e é predominantemente horizontal, a
segunda tem o plano tonal bastante dissimulado e é predominantemente vertical. Apesar disso,
as duas obras têm a maioria dos elementos estruturais que permitem caracterizá-las como
autênticos choros. As sonoridades do jazz, a instabilidade harmônica e a ambigüidade não os
descaracterizam; pelo contrário, os tornam choros modernos e sofisticados. A partir dessa
conclusão, é possível tomar-se algumas decisões a respeito da sua performance, sempre de
acordo com a linguagem musical do choro, que se caracteriza por ser muito rítmica, com uma
sonoridade leve e textura transparente. Alguns aspectos que devem ser observados são:

• Toque “non legato” em passagens rítmicas, principalmente na linha do baixo, para fazer soar
com clareza as linhas melódicas e os padrões rítmicos, além de simular o efeito do som
destacado do violão de sete cordas.
• Acentos no início das frases que começam em tempos fracos; esta é uma prática comum na
performance da música popular, que valoriza as síncopas e torna o fraseado mais fluente.
• Uso bastante moderado do pedal, para manter a transparência da textura.
• No caso de acompanhamento sincopado, a melodia deve ser acentuada de acordo com as
síncopas para se manter a fluência.
• Nos trechos onde houver uma única linha melódica, a acentuação deverá enfatizar as síncopas,
sugerindo assim o padrão rítmico do acompanhamento.

As partituras trazem indicações claras a respeito do andamento e da articulação, e algumas


acentuações também são indicadas. Em Canhôto, as indicações de andamento são: À vontade,
para a introdução, onde a melodia, mesmo tocada com tempo livre conforme a indicação, deve
ser acentuada de forma a enfatizar a síncopa, e A tempo (não depressa) para o resto da obra,
sugerindo um pulso regular, mesmo nas passagens onde a textura é reduzida a uma única linha
melódica.

O andamento marcado para Manhosamente é Allegretto con spirito, e a partitura traz logo no
início a indicação de articulação mezzo sttacc. Certas passagens trazem indicações de dinâmica que
ajudam a ressaltar as diferentes funções rítmicas das vozes, contribuindo para sua leveza e
transparência. Tecnicamente, é necessário para sua execução o uso freqüente de extensão das mãos
devido aos acordes abertos que, no caso de mãos pequenas, devem ser arpejados.

Em Canhôto e Manhosamente, a textura pianística funciona como uma redução das partes
individuais de um grupo de choro, sendo que a maioria dos elementos estruturais característicos
do gênero (ornamentação melódica, elaboração e funções da linha do baixo, harmonia e ritmo),
estão presentes, constituindo-se em autênticos choros para o piano e, conseqüentemente, devendo
ser executados de acordo com a linguagem musical do gênero. A sua modernidade é acentuada
através do acréscimo da sonoridade jazzística, das técnicas associadas ao stride, da instabilidade
harmônica e da ambigüidade tonal, feito de forma a não descaracterizá-los. Canhôto e

15
SANTOS, Rafael dos. Análise e considerações sobre a execução dos choros... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 5-16

Manhosamente oferecem um mundo sonoro fascinante, moderno, equilibrado, onde as muitas


qualidades da música popular brasileira e da música popular em geral são trabalhadas e
amalgamadas com o bom gosto e genialidade característicos da obra de Radamés Gnattali.

5 - Bibliografia
ALMEIDA, Alexandre Zamith. Verde e amarelo em preto e branco: as impressões do Choro no piano brasileiro.
Dissertação de mestrado – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes. Campinas, SP: 1999.
BARBOSA, Valdinha; DEVOS, Anne Marie. Radamés Gnattali, o eterno experimentador. Rio de Janeiro: FUNARTE/
Instituto Nacional de Música/Divisão de Música Popular, 1984
CAZES, Henrique. Choro: do quintal ao Municipal. São Paulo: Editora 34 Ltda., 1998
FREITAS, Sérgio Paulo Ribeiro de. Teoria da harmonia na Música Popular: uma definição das relações da combinação
entre os acordes na harmonia tonal. Dissertação de mestrado -Universidade Estadual Paulista, Instituto de
Artes. São Paulo, 1995.
GNATTALI, Radamés. Canhôto. Rio de Janeiro: Editora Musical Brasileira, 1958.
_________. Manhosamente. Rio de Janeiro: Editora Musical Brasileira, 1958.
GRIDLEY, Mark. Jazz Styles – History and Analysis. 4ª Edição. New Jersey: Englewood Cliffs, 1988.
LEVINE, Mark. The Jazz Theory Book. Petaluma, CA: Sher Music Co., 1995.
MARCONDES, Marcos Antônio. Enciclopédia da música brasileira: popular, erudita e folclórica. São Paulo: Art
Editora, 1998.
SÈVE, Mário. Vocabulário do Choro. Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 1999
STRUNK, Steven. Harmony. In: THE NEW GROVE DICTIONARY OF JAZZ. Edited by Barry Kernfeld. London:
Macmillan, 1995. New York: St. Martin’s Press, 1995.
TATUM, Art. The Genius of Art Tatum - Piano Solos. Miami, Fl: Belwin Inc., 197?.

Rafael dos Santos é Doutor em Música/Piano pela Universidade de Iowa - EUA, sob a orientação do Prof. Daniel
Shapiro. É Professor do Departamento de Música, Instituto de Artes da UNICAMP, onde exerce atualmente o cargo
de Chefe de Departamento.

16
SCELBA, Anthony. In defense of arrangement. Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 17-26

In defense of arrangement
Anthony Scelba (Kean University)
e-mail: ascelba@turbo.kean.edu

Abstract: This article discusses and calls for a change in attitude regarding musical arrangements, particularly those
of chamber music, which are needed to provide the double bass and some other neglected instruments with a
significant literature for both pedagogical and performance purposes. This article finally aims at elevating transcriptions
again to standard repertory status.
Keywords: music arrangement, transcription, double bass, chamber music, language, translation, post-modernism.

Em defesa dos arranjos musicais


Resumo: Este artigo discute e sugere uma mudança de atitude em relação aos arranjos musicais, especialmente
do repertório de música de câmara, os quais são imprescindíveis para prover o contrabaixo e alguns outros instrumentos
com uma literatura significativa tanto do ponto de vista pedagógico quanto da performance. Finalmente, este artigo
visa resgatar o status de repertório padrão outrora vivido pelas trasncrições.
Palavras-chave: arranjo musical, transcrições, contrabaixo, música de câmara, linguagem, tradução,
pós-modernismo.

I would like to thank Professors Robert Cirasa, Chairman of the Department of English; Alan
Robbins, Department of Design; and Matthew Halper, Department of Music at Kean University for
their generous interest in my work and for their suggestions of research materials for this paper.

That a double bassist would rise in defense of arrangements and transcriptions would not surprise
anyone who thinks for a moment about the dearth of original repertoire available to him. Young
musicians studying the double bass (also the trombone, tuba, saxophone or guitar for that matter)
begin to encounter complaints about the poor quality of the music written for their instruments long
before they can play very much of it. Thereafter, the want for fine literature haunts them all their
musical lives.

In his New York Times review of Eugene Levinson’s double-bass recital performed last December
in Weill Recital Hall, Allan Kozinn (KOZINN, 1999) wrote that the Sonata No.1 Op.5 in A by Adolph
Misek – one of the best works from the late-Romantic style period written for my instrument – was
a “not particularly memorable work but composed specifically for the double bass.” I found interesting
that Mr. Kozinn did not criticize Levinson for performing transcriptions, but I couldn’t help but wonder
how much the lack of original repertoire for the double bass led to his demeaning of the instrument
in recital.

Transcriptions of sonatas and similar works originally for violin and cello performed on a double
bass recital provoke less scorn than other types of arrangements; they are tolerated better than
arrangements programmed in other fora. A recital is thought of by many as a demonstration of skill

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and accomplishment. Recital repertoire (except that for piano, violin, voice, and to a lesser extent,
cello) is considered by most as less than profound. Arrangements programmed by symphony
orchestras and other ensembles are routinely criticized as gauche or tolerated as curiosities;
arranged literature forming the mainstay of a serious chamber-music ensemble would be, in today’s
climate, at the very least, remarkable.

It is my hope to offer in this paper a reasoned defense of arrangements - in particular, arrangements


of chamber music. Arrangements of chamber music masterpieces form the core of the repertoire
for the Yardarm Trio, an ensemble of piano, violin, and double bass that I founded and with which I
perform. Why I formed the Yardarm Trio, and how I came to arrange chamber music for it demonstrate
the need for my defense.

Although I had always been attracted to chamber music, I found myself as a student playing very
little of it. This is not surprising. Although the double bass is used in some of our most popular
works of chamber music – the Trout Quintet, the Beethoven Septet, the Schubert Octet – it plays a
relatively subordinate or orchestral role in these works, and, with some notable exceptions, it plays
no role at all in the rest of the chamber music repertoire from the common-practice period. That is
to say, the double bass is not a chamber-music instrument in the historical sense, and this is
indeed unfortunate.

Occasional lament is heard about our instrument’s absence from the world of chamber music.
College teachers often confront this loss with embarrassment: When the strings are scheduled for
chamber-music class, what does one do with the double bassists? Ensemble classes performing
bass duets, trios, and the like, and involving sectional rehearsals of orchestral literature are good
classes, but poor substitutes for the experience of playing great chamber music.

Some pedagogical problems result from our lack of chamber music experiences. Music performed
one to a part and without conductor demands special skills in performance. These skills involve
myriad techniques that the best musicians carry with them into all ensemble performances,
including orchestral performance. The development of these skills through the study and performance
of chamber music is a vital part of the training for all string players except for double bassists. As a
consequence, the classical ensemble technique of most double bassists is woefully underdeveloped.
Only the best of them acquire it to the degree that most fine violinist, violists, and cellists do; but
bassists must acquire it willy-nilly.

It is vital that a chamber-music repertoire for the double bass be developed if this unfortunate
circumstance in our training is to be corrected. But the pedagogical reason is only one cause to
bemoan the dearth of double-bass chamber music. An even more compelling reason is that playing
great chamber music well is – I contend – the highest artistic experience a performer can have,
and double bassists are, by and large, denied this experience.

In a quest to improve double-bass chamber-music repertoire, pioneers - chief among them Bertram
Turetzky of the University of California at San Diego – have encouraged, inspired and commissioned
hundreds of chamber works from many of our leading composers in the second half of the 20th
century. Such efforts of double bassists are of central importance in the development of our

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instrumental repertoire, but, for all its benefits, it does not mitigate our need for music from the
common-practice period.

Chamber music written by contemporaries is, of course, only in styles now current. Also, as of
today, we have no standard chamber-music ensembles that contain the double bass: we have no
equivalent to the string quartet, the piano trio, or the woodwind quintet. Concerts of double bass
chamber music require a motley assemblage.

With standardized ensembles established, the performance of double-bass chamber music would
cease to be such an ad hoc affair. It is only when we have significant numbers of good works in like
genres that we shall be able to consider the bass as an established chamber music instrument.

The development of standardized ensembles containing double bass is a subject worthy of a


moment’s reflection. I would suggest the following five or six instrumental groupings as the most
practical and therefore as giving us the best chance for success at standardization: (1) the String
Quintet: 2 violins, viola, cello, and double bass. This ensemble has an obvious advantage: the
bass can be added easily to a preexisting string quartet, and the Dvorák and Onslow Quintets can
anchor this repertoire. What I have called the Faculty String Quartet – one of each stringed instrument –
is a possible spin off of the quintet. This ensemble of four is practical (its members being available
on the faculty of most universities), but is acoustically quite bottom heavy; (2) the Piano Trio: piano,
violin, and double bass – like the standard Piano Trio but with a bass replacing the cello. This is the
instrumentation of the Yardarm Trio and the Brazil’s Trio Novart; (3) the Piano Quintet: piano, violin,
viola, cello, double bass, the company for the Trout quintet. The Schubert masterpiece, a work by
Ferdinand Ries, one by Hummel, three by Onslow, and a few other pieces give this genre a head
start; (4) Duets: double bass paired with any other instrument or with voice. The great advantage
here is that a bassist can be added to the recital program of another performer. A viola and double
bass duet gives a viola recital a welcome variety, as just one example; (5) the Octet: clarinet,
bassoon, horn, 2 violins, viola, cello, and double bass – the instrumentation of the Schubert Octet.
Having this work and the Beethoven Septet, which requires one violin instead of two, in the repertoire
is reason enough to make the octet with the double bass a standard ensemble. A very interesting
octet by Max Bruch and other works from the past give us a good beginning here.1

If we are to have standardized ensembles, the question of how the double bass is tuned in them
should be established. For the String Quintet, Piano Quintet, and Octet, I would advocate the use of
the standard orchestral tuning for the bass. For Piano Trios and for Duets, I propose the use of the
2
alternate “solo” tuning a-e-B-F# . I recommended these tunings simply because of the nature of
these ensembles, i.e., the string quintet with double bass corresponds in nature to the standard

1
For a account of some of the best double-bass chamber music from the common-practice period, see David
Walter’s article “Chamber Made” in Double Bassist, Spring/Summer, 1996, 51. London: Orpheus Publications.
Although the score was long available, the first recording of the Octet (1920) by Max Bruch was published by the
Bronx Arts Ensemble in 1995 on the Premier Recordings label.
2
When in “solo tuning,” the double bass becomes a transposing instrument. The transposition is the same as that
for the Horn in D. The octave designations for the written pitches of the open strings are shown in the system
preferred by Randel (see “Pitch”, New Harvard Dictionary of Music).

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string quartet and the piano trio with bass corresponds to the traditional piano trio. The more soloistic
use of instruments in a piano trio or in a duet justifies the brighter and more penetrating solo tuning
for these ensembles.

At any rate, while we are waiting for new chamber-music masterpieces to be written, and to balance
the 20th-century music that we program, I believe that double bassists should perform arrangements
of chamber music, and we should perform them unabashedly.

How did the arrangement develop the lowly status it is now accorded? It is hardly necessary to
recount the important position that arrangements have played in the repertoire throughout the
centuries. For Bach and Handel, for Liszt and Ravel, arrangements were a tie-beam, and today
their arrangements are given a valued place in the repertoire. How did arrangements come to be
looked down upon in recent years?

Since the late 1960s, the trends in music toward the “authentic” – period instruments, original
versions, etc. – coincided with the viewing of arrangement as anathema. Was this change influenced
by the change in critical literary perspective that followed DERRIDA (1978) and displaced
3
Structuralism with Poststructuralism?

In reviewing David Harvey’s Condition of Postmodernity, whose third chapter entitled


“Postmodernism” is remarkably illuminating and eschews the passion and politics found in most
literary discussions about the subject, I came upon Ihab Hassan’s schematic differences between
Modernism and Postmodernism. Although excitement about what I thought might be a clue to many
of our current ideas about “musical authenticity” quickly waned, Hassan does make other points
related to arrangements. With his schema before me, I am able to argue that a positive view toward
arranging music is in accord with Modern critical perspectives just as it is in accord with Postmodern
ones. If Modernism is concerned with “root” and “depth,” and Postmodernism with “rhizome” and
“surface”; Modernism with “paradigm” and Postmodernism with “syntagm”; Modernism with “master
code” and Postmodernism with “idiolect”; it would seem that Modernism is the more friendly to
arrangement. Nonetheless, where Modernism views art as “object” and “finished work” or
emphasizes “centring,” and Postmodernism stresses “process, performance, and happening” and
encourages “dispersal,” we have a reading that puts Postmodernism in support of arrangement
(HASSAN, 1985; quoted by HARVEY, 1990, p.39-65).

I defend the performance of arranged and transcribed chamber music from the common-practice
period for practical reasons. As justification I should like to offer not a historical defense, but what
I believe to be a strong intellectual defense that has not been made hitherto. I equate arranging
music to translating literature, a parallel that I believe holds up intellectually and that should inform
our thinking on the subject of arranging.

3
Jacques Derrida’s paper on “Structure, Sign and Play in the Discourse of the Human Sciences” (delivered in 1966
at Johns Hopkins and included in the author’s Writing and Difference, 1978), is credited by M. H. Abrams
(A Glossary of Literary Terms, Harcourt Brace) and others as being the “conspicuous announcement” of
Postmodernism to North American scholars.

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How is a musical arrangement like a literary translation? Translation makes the world’s literature
available to everyone; arrangement makes great music available for performance by musicians
who do not play the original instrument. Arrangement through transcription gives a double bassist
access to masterpieces written for other instruments, just like translation gives us access in English
to literature in other languages.

Both translation and arrangement produce derivatives. But derivative is not a pejorative. After all,
every performance produces a derivative: something that transforms the original and injects the
personality of the performing musician. Every performance, like every arrangement, like every
translation, is an interpretation.

The result of arrangement is a palimpsest: two works, one on top of the other, an original and an
interpretation. But unlike the true palimpsest (which is a new writing on parchment after the old has been
scraped away) – the original is not destroyed in making a translation or an arrangement. Both recreations
merely make the original newly available (Cf. WECHSLER, 1998).

In another sense, the arrangement complements the original by causing its musical essence to
glow brighter. Here reference to the Platonistic metaphor of essences is useful. To grasp the
Platonistic justification for an arrangement one must recognize that performance itself is a remaking
of a musical blueprint. Both the performance of the composition and the performance of the
arrangement are an afterlife of an original conception – a term that I would not use if I were not
alluding to a transformation and a renewal of something living (Cf. BENJAMIN, 1968, p.72-73).

The arranger’s task (like the translator’s) is a noble one: It is performed not with hopes of fame or
fortune, but rather out of love for art, out of a sense of sharing what one loves and loving what one does.

Pushkin called the translator “a courier of the human spirit,” and Goethe called literary translation
“one of the most important and dignified enterprises in the general commerce of the world.” Borges
wrote, “Perhaps…the translator’s work is more subtle, more civilized than that of the writer: the
translator clearly comes after the writer. Translation is a more advanced stage of civilization”
(WECHSLER, 1998).

Of course, Pushkin, Goethe, and Borges never wrote what I just quoted to you. Instead, their words
first had to be translated into English. Without the translation, I could not present to you their thoughts
(Cf. WECHSLER, 1998). When I perform a neglected masterpiece, like a Piano Trio by Haydn,
most in my audience hear the music for the first time.

Translators have for centuries described their work using the metaphor of pouring wine from one
bottle into another. A musical transcription does just that. But the American translator from Spanish,
Margaret Sayers Peden, has constructed a complex metaphor on translation that, to me, accurately
describes the art of musical arrangement. She wrote: “I like to think of the original work as an ice
cube. During the process of translation the cube is melted. While in its liquid state, every molecule
changes place; none remains in its original relationship to the others. Then begins the process of
forming the work in a second language. Molecules escape, new molecules are poured in to fill the
spaces, but the lines of molding and mending are virtually invisible. The work exists in the second
language as a new ice cube – different, but to all appearances the same.” (WECHSLER, 1998).

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SCELBA, Anthony. In defense of arrangement. Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 17-26

Common wisdom holds that important works of literature should be translated and retranslated at
least once every generation. The greater the original literary work, the more diverse translations it
can bear – witness the continuous flood of new versions of Homer, Dante, and the books of the
Bible.

But common wisdom today holds that great works of music should not be transcribed. The greater
the original, the less it can seem to bear tampering – witness the great derision of late heaped on
transcriptions and performances of transcriptions by some musicians and writers. This purist view
flies in the face of history and stands opposed to the aesthetics of great musicians past.

One of the earlier complaints about arrangements comes from BEETHOVEN (1961, p.59) in a
letter of July 13, 1802 to Breitkopf & Härtel, Leipzig, answering requests to produce, as he did with
Op. 14 No. 1, string quartet versions of his piano sonatas: “The unnatural mania, now so prevalent,
for transferring even pianoforte compositions to stringed instruments, instruments which in all
respects are so utterly different from one another, should really be checked”. But this is not an
objection to arrangements per se, only string versions of piano sonatas. The “purist view” now
current, that arrangements are aesthetically offensive, came about relatively recently.

Would those who criticize bassists for borrowing literature criticize Bach for having transcribed
Vivaldi? Today, Mussorgsky’s 1869 and 1872 versions of Boris Godunov are sometimes performed
(albeit with corrections applied), but should we criticize Rimsky-Korsakov for having adapted the
work and for providing an arrangement that kept the opera in the repertory for 75 years? Does
anyone criticize Ravel for having arranged Pictures at an Exhibition?

Lesser arrangements, like Ebenezer Prout’s Messiah, tend to fall from grace over time because
the arrangement of a masterpiece is a provisional version of it that is limited and defined by the
arranger’s talents and by the aesthetic currents of his or her own times, and because arrangers
seldom match the original composer for genius. But great arrangers have produced great
arrangements – some that have attained classic status. Sometimes arrangements can even surpass
their originals for authority and influence – witness Bach’s Vivaldi, or Stravinsky’s Pergolesi. So it is
not the act of arranging that we should criticize, only the quality of it (Cf. SCAMMELL, 1998, p.75).

A great musical work captures the zeitgeist; an arrangement marries the temper (and aesthetics)
of two times. While the composer’s work will endure as an embodiment of his age, the arranger’s,
as an overlay, is bound more to the time of its own making. Arrangers, unlike composers, cannot
presume permanence for their work, but this does not mean that great arrangements cannot endure.

The arrangement is dealing with the “musical spirit” of a work, the process of arranging can be
thought to raise the composition into a higher and purer musical air, as it were – revealing its
Platonic quintessence. The music does not live there permanently, to be sure, and it certainly does
not reach it in its entirety because an arrangement also uses instrumental idiom to transmit its
essence (BENJAMIN, 1968, p.75). But in working on an arrangement and by virtue of the existence
of both a composition and its offspring, the musical essence shines brighter.

Some musical arrangements are scrupulously faithful to the original. Others purposefully inject
something new and original. Is the arranger a creator or a craftsman? This must be answered on a

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case to case basis. Only an evaluation of an individual arrangement can say if it is a work of
originality. Some arrangements can be criticized as too clever, misinterpreting, a violation of style,
etc., but a good arrangement (with or without purposeful originality, made by a creator or a craftsman)
is good music. Why not enjoy it for what it is?

I believe what Fritz Kramer, an old music-history teacher of mine, once said: “If you don’t believe in
transcriptions, you shouldn’t be a musician!” What he expressed in that statement was based on
both historical and aesthetic considerations. Great musicians have always arranged music, and
the essence of most great music transcends its instrumental medium.

When selecting a work to arrange, I find it safest to pick good music that is less well-known, and is
not highly idiomatic in its composition. For those who accept the idea of transcription or arrangement
on a limited basis, the thought of adapting a neglected piece or an obscure one is generally easier
on the sensibilities. And I largely agree with this position, provided that we recognize works like the
Haydn Piano Trios, for example, to be among the neglected.

But I must admit that I have gone against my own advice given here on occasion. In seeking the
neglected or obscure, one would not descry Schubert’s great Quintet in C. One would not offer it
as a proper object of arrangement in this context, but I have had great success with an arrangement
of it that has a double bass part arranged from the second cello part.

Another of my arrangements that has met with success is the Mozart horn quintet. In it, I transcribe
the solo horn part for the double bass. Anton Hoffmeister wrote a number of quartets for strings in
which a double bass is the erste Geige. I have joked that my Mozart arrangement sounds a bit like
“the greatest Hoffmeister piece that Hoffmeister never wrote.”

What I aim for in arrangements like these is a musical verisimilitude – the same quality of authenticity
that is required of a good cadenza. Verisimilitude in arranging is achieved by making a well-chosen
pattern of decisions, not just an accumulation of them. An important component is, of course, fidelity
to the harmonic language of the composer. But, it should be emphasized that transcription and
arrangement should never be mechanical solutions. Instead they should be participations in the
creative process of composition.

Discussions about transcribing music or evaluations of individual transcriptions often teeter between
two poles: fidelity and license – fidelity to the presumed original sound and the license or freedom
allowed to capture an original intent. Thinking about transcriptions with reference to these antipodes
is limiting, however, to someone who looks for things in an arrangement other than masked
reproduction. A good transcription need not be identical to the original, but merely a cognate.
Furthermore, one can use the techniques of arrangement to create something new, and idiomatic
for the new medium.

But even when it is the arranger’s intention to produce the same musical effect in another voice, a
certain amount of leeway is in order. An analogy by BENJAMIN (1968) in “The Task of the Translator”
from his book entitled Illuminations is thought provoking. I borrow it to inform our thinking about
transcriptions as arrangements. Fragments of a vessel that are to be glued together must match
one another in the smallest details, although they need not be like one another. In the same way, a

23
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transcription as an arrangement, instead of attempting to recreate the sound of the original


composition, can thoughtfully incorporate the original’s pure musical substance, thus making both
the original and the arrangement fragmental conveyors of musical meaning – just as the
above-mentioned fragments are part of a vessel (BENJAMIN, 1968, p.78).

As I practice the crafts of transcription and arrangement, I take existing music as a starting point
and freely alter it – not breaking with tradition, but joining its powerful current – to make a new
creation: a work including double bass as if written by the original composer possessing full
4
knowledge of the modern instrument.

In making transcriptions, I try to avoid merely substituting the bass for the cello, that is, in simply
rendering the cello part an octave higher. If the use of the double bass does not add something
new, why bother to use it? I am particularly sensitive to the criticism: Why not just play it on
the cello?

In many of my arrangements, I aim for something as authentic sounding as possible; nevertheless,


at the same time, I may also build purposeful originality into the piece. Since the idea of arrangement
includes both the transference of a composition from one medium to another and the elaboration
of a piece however that elaboration is effected, the latitude I allow myself is quite broad.
Compositional procedures that create in an arrangement something quite new from the original
help make the arrangement per se of greater musical interest. Contrafactum, the parody mass,
and the pasticcio all give us a firm historical base on which to stand. Some degree of recomposition
is usually involved. Arrangements, therefore, can vary from a straightforward, almost literal,
transcription to a paraphrase that is more the work of the arranger than the original composer.

The unique 20th-century approach to musical parody that has come to be called quotation music
has met with considerable success - witness Joan Tower’s Petroushskates, a chamber work for
5
flute, clarinet, violin, cello, and piano based on Stravinsky’s Petrushka, or more recent works in
6
the genre by Libby Larsen and others. While I have not written in this genre, I have – as in my Celtic
Folk Song arrangements – freely combined music by Haydn with folk elements and strophic
variations of my own. In my arrangement of one of the songs, I interpolated music from Haydn’s
Piano Sonata Hob. XVI: 41, which I converted into a trio. Using the opening of the sonata as an
introduction to the song and interspersing sections of the sonata between its strophes, I created a
form in which the introduction develops into a rondo element and the strophes of the song function
as digressions. The form is novel and was not created by Haydn but is reminiscent of his formal
inventiveness.

4
For parallel arguments see Daniel Mendelsohn’s review of the Stanley Lombardo translation of the Iliad, Book
Review, New York Times, Sunday, July 20, 1997.
5
Petroushskates was written in 1980 on commission from the Da Capo Players and the New York State Council on
the Arts.
6
Larsen’s Symphony: Water Music (1985) was commissioned by the Minnesota Orchestra and occasioned by the
300th anniversary of Handel’s birth.

24
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Mention of some points of originality in other arrangements of mine will help to make the point. My
arrangements of Piano Trios by Joseph Haydn and of Ragtime Piano Solos by Scott Joplin
represent two types of arrangement with different degrees of change from the original compositions.
The Haydn Piano Trio in E Hob. XV:28 welcomes a marvelous change of medium in the slow
movement. Haydn’s spellbinding second movement begins with a very long piano solo in two voices
widely spread. These become in the arrangement a violin melody supported by double bass
pizzicato. The result of the arrangement is that the movement is more balanced in the distribution
of materials among the three instruments.

In my arrangement of the Haydn Trio in C Hob. XV:27 I took a passage featuring imitation and
redistributed the figure among the strings and in various registers of the piano more generously
than in the original. The result elicited a comment from John SICHEL (1999, p.21-23) who in his
review of a recent performance said “these pieces work very well with double bass. There are
several moments in this work where Haydn takes a two- or three-note motive and fires it from
register to register like a musical pinball. The extra low notes of the bass only make this effect more
delightful than it is in the original”

My three-movement trio constructed from the music of Scott Joplin is a parody piece. Entitled
Three Rags for Three Wags, it was created the same way in which Renaissance composers
created the Parody Mass. The composition is, in a sense, collaboration between Joplin and me. In
this piece, I have taken original works for piano solo by Scott Joplin and arranged and subsumed
them into a larger composition for violin, double bass, and piano. Some newly composed music
was added, including much of the double bass part, making a kind of double-bass obbligato. The
resulting composition turns three independent piano solos into a piece of chamber music in the
style of Joplin’s ragtime.

STURM (2000, p.56) reviewed the work in a journal aimed at double bassists:

Not content to merely give the violin the melody, the piano a chordal accompaniment and the bass,
well, the stride bass part, Dr. Scelba has added counter lines and harmonies to transform the solo
piano work into a more intricate, successful chamber work. The bass line is just as fluent as the
violin part, frequently playing the running sixteenth notes typical [of] Joplin’s rags in unison, harmony,
or contrary motion. ‘Three Rags’ is a collection of well-conceived light works, stylish and musical,
7
and make a wonderful addition to the light chamber music repertoire.

What the review does not mention are the formal revisions that were made part of the arrangement.
Joplin typically followed a primary rag with another, a trio as it were, in a related key. There he
ended the composition without tonal closure. He seemed content to create a two-tiered tonal
structure and apparently felt no need to return to the original tonic. These compositions impress
me as having a structural weakness. In works from 3 to 5 minutes long, so forcefully tonal, the
two-tiered tonal layout turns what could be a more formally satisfying piece into a mere “medley”.

7
Three Rags for Three Wags reviewed in Bass World, XXIII, 3, Winter 2000, p. 56. Production of this and all other
of my arrangements mentioned above were supported in part by a Released Time for Creative Work Award from
Kean University; the Yardarm Trio arrangements are published by Ludwin Music Publications, Los Angeles.

25
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In my arrangements, I round off the work with a modified return to the primary rag in the tonic,
creating a classic compound-ternary. The result is, for me, a bigger, more integrated, more structurally
satisfying musical work.

After reading of experiments by COOK (1987, p.197-206) and others on tonal closure, I am willing
to concede that my rounding may musically satisfy me less because I return to the tonic, and more
because I return to opening textures and thematic materials; nevertheless, since the return is
organized around a tonal plan it serves to project a structural closure in a directly perceptible way,
and this, for me, is musically satisfying.

To conclude, I believe that an arranger must in some works let himself go, so as to give voice to the
intentio of the original not as reproduction, but as musical complement. A good arrangement is
transparent; it does not cover the original or block its light, but allows the pure music, as though
reinforced by its new medium, to shine all the more fully (BENJAMIN, 1968, p.79). But an arrangement
is also a product of its own time and a reflection of the aesthetic judgments of its maker. What was
a composition by one becomes one by two.

Arrangements of chamber music are demanded by our need for literature for new combinations of
instruments. Just as in the original composition, musical meaning and musical medium should be
one without any tension, so the arrangement is one with the original in the essential musical moment
in which literalness and freedom, original and counterpart, creation and derivation are united.

Bibliographic references:
BEETHOVEN, Ludwig van. The Letters of Beethoven. Collec., trans. and ed. by Emily Anderson. v.1. New York: St.
Martin’s Press, 1961.
BENJAMIN, Walter. Illuminations. Ed. by Hannah Arendt, trans. by Harry Zohn. New York: Harcourt, Brace & World,
1968.
COOK, Nicholas. The Perception of Large-Scale Tonal Closure. Music Perception, Winter 1987, v.5, n.2.
DERRIDA, Jacques. Structure, Sign and Play in the Discourse of the Human Sciences. Writing and Difference.
Chicago, University of Chicago Press, 1978.
HARVEY, David . The Condition of Postmodernity: An Enquiry into the Origins of Cultural Change. Oxford: Basil
Blackwell, 1980. Reprint. Cambridge, Massachusetts: Blackwell, 1990.
HASSAN, Ihab. The Culture of Postmodernism. Theory, Culture, and Society, 1985, v. 2, p.123-124.
KOZINN, Allan. A Bassist Recital Attracts Not Only Bassists’ Spouses. New York Times, Saturday, December 25,
1999.
MENDELSOHN, Daniel. Stanley Lombardo translation of the Iliad. New York Times, Sunday, July 20, 1997.
SCAMMELL, Michael. The Don Flows Again. New York Times, Sunday, January 25, 1998.
SICHEL, John. So close and yet so far. Classical New Jersey, 1999, v.4, n.6.
STURM, Hans. Bass World, v.23, n.3, winter, 2000.
WECHSLER, Robert Performing without a Stage: The Art of Literary Translation. N. Haven: Catbird Press, 1998.

Anthony Scelba is Associate Professor in the Music Department of Kean University, New Jersey, USA. He holds
three degrees from the Manhattan School of Music in New York and was the first person to be awarded a doctorate in
double bass from the Juilliard School. For 10 years he was Principal Double Bassist of the New Jersey Symphony; he
continues to perform widely as soloist, chamber and orchestral musician. He is the founder of the Yardarm Trio.
Dr. Scelba was a 1983-84 winner of the Fulbright Performing Artist Award for Seoul, Korea, and subsequently gave
masterclasses in Beijing and Shanghai, China. In 1998 he was named “Musician of the Year” by the Musicians Guild
of Essex and Morris Counties. A published writer and composer, Dr. Scelba is the founder and Director of the Affiliate
Artist Program at Kean which sponsors many of his chamber music performances.

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CASTAGNA, Paulo. As claves altas na prática musical religiosa... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 27-42

As claves altas na prática musical religiosa


paulista e mineira dos séculos XVIII e XIX

Paulo Castagna (UNESP)


e-mail: brsp@uol.com.br

Resumo: Na música religiosa encontrada em manuscritos musicais brasileiros dos séculos XVIII e XIX, observa-se
a utilização de três sistemas de claves: as claves altas, as claves baixas e as claves modernas, com nítida
predominância do segundo sistema. Claves altas foram comuns em períodos anteriores à segunda metade do
século XVIII, mas foram preservadas em manuscritos de períodos subseqüentes, pela cópia de composições mais
antigas. Descritas pela primeira vez em A Plaine and Easie Introduction to Practicall Musicke (1597) de Thomas
Morley, as claves altas possuem significado diverso das claves baixas e das claves modernas, representando um
sistema transpositor específico da música vocal renascentista e da música em estilo antigo, e cujo conhecimento
possui implicações tanto na edição quanto na interpretação desse repertório.
Palavras-chave: Brasil; Música religiosa; Manuscritos musicais; Séculos XVIII e XIX; Claves altas.

High clefs in the practice of religious music in São Paulo and


Minas Gerais in the 18th and 19th centuries
Abstract: Three types of clefs were employed in the religious music preserved in Brazilian 18th- and 19th-century
manuscripts: high, low, and modern, the second type being the predominant. High clefs were common before the
second half of the 18th century and were maintained in later copies of these works. First described by Thomas
Morley in A Plaine and Easie Introduction to Practicall Musicke (1597), the high clefs stand in contrast to the low
and modern types. High clefs represent a system of transposition specific to the vocal music of the Renaissance
and the stile antico, and are relevant to both edition and musical interpretation.
Keywords: Brazil; Religious Music; Musical Manuscripts, 18th and 19th Centuries; High clefs.

1 - Sistemas de claves
Em manuscritos musicais de acervos brasileiros, observa-se a utilização de três sistemas de
claves, hoje conhecidos como claves altas, claves baixas e claves modernas. No sistema de
claves altas, as vozes de Soprano, Alto, Tenor e Baixo possuem, respectivamente, as claves de
Sol na segunda linha, Dó na segunda linha, Dó na terceira linha e Dó na quarta linha, enquanto em
claves baixas essas vozes recebem as claves de Dó na primeira linha, Dó na terceira linha, Dó
na quarta linha e Fá na quarta linha. No sistema de claves modernas, por sua vez, a seqüência de
claves é: Sol na segunda linha, Sol na segunda linha, Sol oitava abaixo na segunda linha e Fá na
quarta linha.

Esses três sistemas de claves, específicos da música vocal, vigoraram em períodos diferentes e
possuíram significados diversos: as claves baixas foram predominantemente utilizadas do século
XVI a inícios do século XX, enquanto as claves modernas surgiram em meados do século XIX,
com a finalidade de simplificar a leitura musical. As claves altas foram amplamente utilizadas no

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CASTAGNA, Paulo. As claves altas na prática musical religiosa... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 27-42

século XVI, mas, a partir de então, passaram a ser condicionadas à música em estilo antigo,
entrando em declínio na transição do século XVII para o XVIII.

Embora tenham sido verificados outros sistemas, de acordo com Siegfried HEMMERLINK (1980),
as claves altas e baixas foram empregadas em cerca de 90% da música vocal renascentista.
Thomas Morley foi o primeiro autor que se referiu a esse sistema, em A Plaine and Easie
Introduction to Practicall Musicke (1597), com os termos high key e low key, mas posteriormente
surgiram, na Itália, as designações chiavette e chiavi naturali, ainda utilizadas em textos sobre
teoria e história da música (exemplo 1).

Exemplo 1. Sistemas de claves utilizados na música vocal, do século XVI ao século XX: a) claves altas (high key,
chiavette); b) claves baixas (low key, chiavi naturali); c) claves modernas.

Alguns tratados teórico-musicais portugueses apresentam os sistemas de clave em uso, mas


não informam seus nomes. Manuel Nunes da SILVA, na Arte minima de 1685 (Regra XIII, p.42),
obra reimpressa em 1704 e 1725, indica duas combinações que correspondem às claves altas
e uma que corresponde às claves baixas, mas cita uma terceira combinação, diferente das
anteriores (as informações referidas por esse autor foram apresentadas de forma simplificada
no quadro 1):

“Quando o Tenor tem clave de Csolfaut na terceira, o Baixo tem clave de Csolfaut na quarta ou de
Ffaut na terceira, etc. A clave do Alto corresponde ao Baixo por oitava, como o Tiple corresponde ao
Tenor [...] pelo que se o Tiple tiver clave de Csolfaut na terceira, o Alto a terá na quarta, e se o Tiple
tiver clave de Csolfaut na segunda ou primeira, o Alto a terá na terceira, e se o Tiple tiver clave de
Gsolreut na segunda, o Alto terá de Csolfaut na segunda, etc.”

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CASTAGNA, Paulo. As claves altas na prática musical religiosa... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 27-42

Quadro 1. Sistemas de claves descritos por Manuel Nunes da Silva, na Arte minima (1685, reimpressa em 1704 e
1724).1

Sistema Tiple Alto Tenor Baixo


[claves altas] - - Dó-3 Dó-4 ou Fá-3
- Dó-3 Dó-4 - -
[claves baixas] Dó-1 ou Dó-2 Dó-3 - -
[claves altas] Sol-2 Dó-2 - -

O significado do sistema de claves altas é o mais complexo dentre os anteriormente mencionados.


Thomas MORLEY, em A Plaine and Easie Introduction to Practicall Musicke (1597), informa que
“as canções escritas em claves altas são mais vivas, enquanto aquelas escritas em claves baixas
possuem maior gravidade e seriedade.”2 Embora não possa ser descartada a possibilidade de
que o sistema de claves utilizado determinasse o caráter na interpretação da obra, estudos
comparativos citados por Siegfried HEMMERLINK (1980) e as observações realizadas no
presente trabalho indicam que as claves altas seriam essencialmente claves transpositoras, ou
seja, cujas notas sob seu efeito deveriam soar em alturas diferentes daquelas escritas nos
pentagramas, característica não observada na música em claves baixas.

De acordo com HEMMERLINK, as claves altas, já no século XVI, indicariam preferencialmente


uma transposição para intervalos de quarta e quinta justa abaixo das alturas escritas (com a
conseqüente alteração da armadura de clave), embora a transposição para outros intervalos
também fosse possível:

“[...] em tablaturas ou em partes de órgão destinadas ao acompanhamento de música coral, peças


[vocais] em chiavette foram copiadas uma quarta [justa] ou quinta [justa] abaixo [das partes vocais
em chiavette], enquanto outras em chiavi naturalli encontram-se em suas alturas ‘próprias’. Tais
fontes não apresentam, contudo, informações precisas sobre a diferenciação de alturas, devido à
própria variação das alturas encontradas em partes de acompanhamento instrumental. [...]”3

A necessidade desse tipo de transposição pode ser explicada como uma maneira de se evitar o
uso de linhas suplementares nos pentagramas e, principalmente, a aplicação de um ou mais
acidentes (bemóis e sustenidos) nas armaduras de clave (PENA & ANGLÉS, 1954, v.1: 654-655),
mas não pode ser descartada a possibilidade de que a associação das partes vocais com
determinados instrumentos musicais pudesse exigir algum tipo de transposição. Como a
inexistência de sistemas temperados de afinação na música européia, até o final do século XVII,
tornava complexo o uso de várias armaduras de clave, a solução para a obtenção de diferentes
transposições foi a utilização das claves altas. Armaduras com três ou mais alterações, nesse
século, eram sistematicamente evitadas na música modal e quase somente empregadas em

1
Para facilitar a composição desses quadros, foi utilizada a abreviatura Dó-1, Dó-3, Dó-4, etc., com o significado
de clave de Dó na primeira linha, clave de Dó na terceira linha, clave de Dó na quarta linha, etc.
2
“Those songs, which are made for the high key, be made for more life, the others in the low key for more gravity
and stadenesse.”
3
“[...] in tablatures or scores for organ accompaniments to choral music, pieces in chiavette are found written a 4th or a
5th lower, while those in chiavi naturalli are at the ‘proper’ pitch. These sources do not, however, yield precise information
about vocal pitch differentiation, because of the variation in the pitch of the individual accompanying instruments. [...]”

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música tonal, escrita já no estilo moderno. Por essa razão, todos os exemplos musicais em
claves altas até agora encontrados em acervos brasileiros são modais e representantes do estilo
antigo, e a grande maioria não possui acidentes na armadura de clave (CASTAGNA, 2000).

2 - Claves utilizadas em manuscritos de acervos paulistas e mineiros


O exame de manuscritos musicais de acervos paulistas e mineiros demonstra que composições
religiosas registradas em claves altas foram copiadas também em claves baixas em outros
manuscritos, com a transposição ora para uma quarta justa, ora para uma quinta justa abaixo das
alturas escritas em claves altas. O Jesum Nazarenum (Turbas da Paixão de Sexta-feira Santa),
que representa um desses casos, aparece em claves altas e sem acidentes na armadura em um
grupo de cópias (exemplo 2), em claves baixas com Si bemol na armadura em outro grupo (exemplo
3) e em claves baixas com Fá sustenido na armadura em um terceiro grupo (exemplo 4). Para
todas as referências a manuscritos musicais, neste trabalho, considerar os seguintes códigos:
Acervos
MIOP/CP-CCL: Museu da Inconfidência / Casa do Pilar - Coleção Curt Lange (Ouro Preto - MG)
MMM: Museu da Música (Mariana - MG)
9ª SR/SP-IPHAN [GMC]: 9ª Superintendência Regional / São Paulo do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional [Grupo de Mogi das Cruzes] (São Paulo - SP)
SMEI: Sociedade Musical Euterpe Itabirana (Itabira - MG)
TA-AAC [MSP]: Terezinha Aniceto - Arquivo Aniceto da Cruz [Manuscrito de Piranga] (Piranga - MG)

Conjuntos de cópias
C-Un: Conjunto único
C-1: Conjunto 1
C-2: Conjunto 2 (etc.)

Posição da composição no manuscrito


(A): primeira composição
(B): segunda composição (etc.)

Exemplo 2. ANÔNIMO. Jesum Nazarenum (Turbas da Paixão de Sexta-feira Santa), em ACMSP P 101 (C) C-1 e 9ª
SR/SP-IPHAN [GMC 4 (C) C-4], copiado em claves altas e sem acidentes na armadura de clave. Primeira seção,
c.1-6.

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Exemplo 3. ANÔNIMO. Jesum Nazarenum (Turbas da Paixão de Sexta-feira Santa), em MHPPIL, sem cód. (C)
[C-Un], [9ª SR/SP-IPHAN [GMC 1 (B) C-2/3/4] e em MMM MA SS-16 [M-1 (B) C-Un], copiado em claves baixas e
com Si bemol na armadura de clave. Primeira seção, c.1-6.

Exemplo 4. ANÔNIMO. Jesum Nazarenum (Turbas da Paixão de Sexta-feira Santa), em [065] MMM LA SS-04
[M-2 C-Un], copiada em claves baixas e com Fá sustenido na armadura de clave. Primeira seção, c.1-6.

O estudo desses casos permitiu o estabelecimento de uma relação entre os três sistemas de
claves, válida ao menos para os casos brasileiros, e que pode ser visualizada no exemplo 5: uma
composição copiada em claves altas, sem a utilização de acidentes na armadura de clave e
iniciada por um acorde de Dó maior (a) – como no Jesum Nazarenum do Ex. 2 – poderia ser

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transposta em claves baixas com a utilização do Fá sustenido na armadura e conversão do


acorde para Sol maior (b) ou mesmo com a utilização do Si bemol na armadura e conversão do
acorde para Fá maior (d), enquanto na transposição para claves modernas (c, e) seriam mantidas
as armaduras de clave e os acordes resultantes das transposições em claves baixas.4

Exemplo 5. Claves e transposições modais: a) claves altas em transposição Si bequadro; b) claves baixas em
transposição Fá sustenido ; c) claves modernas em transposição Fá sustenido; d) claves altas em transposição Si
bemol; e) claves modernas em transposição Si bemol.

Afora os exemplos nos quais todas as vozes foram copiadas em claves altas, surgiram casos
em que o Baixo vocal e/ou instrumental da mesma composição e da mesma cópia aparecem em
claves baixas, enquanto as vozes de S, A e T em claves altas, estas necessitando transposição
de quarta ou quinta abaixo, para se ajustarem às demais. Essa particularidade pode ser
relacionada à identidade melódica do Baixo vocal e do Baixo instrumental na música em estilo
antigo e o uso incomum de claves altas em partes instrumentais.
Nos manuscritos consultados existem exceções às normas acima descritas para os sistemas de
claves, decorrentes de outras convenções assimiladas no Brasil ou mesmo de confusões na
tentativa de conversão da música em claves altas para claves baixas. No Passio... Matthæum
(Proêmio da Paixão de Domingo de Ramos) a três vozes de MMM MA SS-05 [M-2 (A) C-Un], por
exemplo, foi aplicada clave baixa em B e claves altas em A e T, mas com a utilização, em T, da
clave que seria própria de S (exemplo 6), fato observado em cinco outras composições, a maioria
Paixões da Semana Santa (quadro 2).
Para a conversão dessas claves em claves modernas é necessário, portanto, transpor A uma
quarta justa abaixo e T uma quarta e uma oitava justa abaixo, com a aplicação do Fá sustenido na
armadura (exemplo 7). Sem esse tipo de procedimento, ocorreria uma incoerência não admitida
no sistema modal.

4
A utilização do sistema modal no estilo antigo não permite o emprego do termo tonalidades, mas sim de
transposições para as novas armaduras de clave e os novos acordes obtidos na conversão da música em claves
altas para os sistemas de claves baixas ou claves modernas.

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Quadro 2. Unidades musicais permutáveis copiadas em claves altas, mas com clave de Sol na segunda linha para
o Tenor.

Conjuntos Função litúrgica


MMM BC SS-01 [M-1 (I) C-2] Turbas da Paixão de Domingo de Ramos
MMM BC SS-06 [M-1 (C/D) C-Un] Proêmio e Turbas da Paixão de Domingo de Ramos
MMM BL SS-10 [M-1 (A) C-1] Proêmio da Paixão de Sexta-feira Santa
MMM MA SS-05 [M-2 (A) C-Un] Proêmio da Paixão de Domingo de Ramos
MMM MA SS-16 [M-2 V-1 (B/C) C-1] Proêmio e Turbas da Paixão de Sexta-feira Santa
MMM MA SS-21 [(B) C-1] 4º Tracto, na Bênção da Fonte Batismal do Sábado Santo

Exemplo 6. ANÔNIMO. Passio... Matthæum (Proêmio da Paixão de Domingo de Ramos), de MMM MA SS-05 [M-2
(A) C-Un], c.1-10. Transcrição paleográfica.

Exemplo 7. ANÔNIMO. Passio... Matthæum (Proêmio da Paixão de Domingo de Ramos), de MMM MA SS-05 [M-2
(A) C-Un], c.1-10. Transcrição em notação e claves modernas, com utilização da transposição Fá sustenido (que já
aparece na voz do Baixo).

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Caso excepcional foi a utilização de claves altas nas partes vocais e clave baixa no Baixo
instrumental, mas com o emprego da clave de Dó na primeira linha em T, nas Lições da Vigília
Pascal de Sábado Santo de MMM MA SS-21 [(B) C-2]. Também excepcional foi o uso de claves
baixas nas partes vocais, com o emprego da clave de Dó na primeira linha em T, nas Lições e na
Procissão da Água Batismal da Vigília Pascal do Sábado Santo de MIOP/CP-CCL 159 (B) [C-
Un]. As variações mais freqüentes no sistema de claves altas detectadas em manuscritos de
acervos paulistas e mineiros, em relação ao sistema descrito por Thomas Morley em 1597, podem
ser observadas no exemplo 8.

Exemplo 8. Principais variantes no sistema de claves altas: a) sistema descrito por Thomas Morley, em A Plaine and
Easie Introduction to Practicall Musicke (1597); b) utilização da clave de Fá na quarta linha em B; c) utilização da
clave de Sol na segunda linha em T.

As variantes nos sistemas de claves altas e baixas e as imprecisões em sua aplicação foram, de
fato, mais freqüentes nas Paixões da Semana Santa. Esse fenômeno sugere que, em São Paulo
e Minas Gerais, circulou boa quantidade de manuscritos nos quais foram empregadas as claves
altas e que, em virtude de seu progressivo desuso, os copistas empenharam-se como puderam
para sua conversão em claves baixas ou claves modernas, nem sempre obtendo resultados
totalmente coerentes.

Pode-se deduzir, portanto, que os manuscritos de acervos paulistas e mineiros, nos quais são
observadas uma ou mais claves altas, resultaram de cópias de obras (especialmente Paixões)
que remontam a um período no qual esse sistema ainda era usual (possivelmente anterior ao
século XVIII). À exceção das Paixões, que adiante serão estudadas, as treze composições até o
momento localizadas e as respectivas cópias nas quais aparecem as claves altas nos acervos
consultados estão abaixo indicadas:

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1. ANÔNIMO. Pueri Hebræorum [Antífona da Distribuição dos Ramos no Domingo de Ramos]

TA-AAC [MSP (B) C-Un] - “P.ª o destribuir. dos Ramos.” Sem indicação de copista, sem local,
[final do século XVII ou início do século XVIII]: partes de SAT, Bx

2. ANÔNIMO. Improperium exspectavit [Ofertório da Missa de Domingo de Ramos]

MMM BC SS-06 [M-2 (B) C-Un] - “Gradual, e Offertorio / P.ª / Domingo de Ramos / Para o uzo
de / Leonardo de Mello”. Cópia de Leonardo de Mello, sem local, [início do século XIX]:
partes de T, Bx [somente T em clave alta]

3. ANÔNIMO. Incipit Lamentatio Jeremiæ Prophetæ [Primeira Lição das Matinas de


Quinta-feira Santa]

9ª SR/SP-IPHAN [GMC 2 (B) C-Un - f.7-8] - “Altus a4”. Sem indicação de copista, sem local,
[primeira metade do século XVIII]: parte de A

4. ANÔNIMO. In Monte Oliveti [Responsórios (9) das Matinas de Quinta-feira Santa]

9ª SR/SP-IPHAN [GMC 2 (C) C-Un - f.7-8] - Idem supra

5. [MANUEL CARDOSO]. Ex tractatu Sancti Augustini... Exaudi, Deus [Quarta Lição das
Matinas de Quinta-feira Santa]

9ª SR/SP-IPHAN [GMC 3 C-Un - f.9-12] - “Ex tratactu Sancti Augustini / De / Angelo Prado xavier”
[ou “Ang. do Prado xavier”]. Cópia de Ângelo Xavier do Prado, sem local, [primeira metade
do século XVIII]: partes de SATB

6. ANÔNIMO. Domine, audivi... / Eripe me, Domine... [Primeiro e segundo Tractos da Missa
de Sexta-feira Santa]

9ª SR/SP-IPHAN [GMC 4 (A) C-1 - f.13] - “Tiple a4. Profecias de Sexta fr.ª dapaixam 1.ª Profecia”.
Cópia de [Faustino Xavier do Prado?, Mogi das Cruzes?, primeira metade do século XVIII]:
parte de S
9ª SR/SP-IPHAN [GMC 4 (A) C-2 - f.14] - “Altus a 4. Para as Profecias de Sexta fr.ª da Paixam
1.ª profecia”. Cópia de [Faustino Xavier do Prado?, Mogi das Cruzes?, primeira metade do
século XVIII]: parte de A
9ª SR/SP-IPHAN [GMC 4 (A) C-3 - f.15-16] - “Tractos para as profecias de Sexta fr.ª da Payxam.
/ De Faust.º do Prado x.e[r]”. Cópia: Faustino Xavier do Prado, [Mogi das Cruzes?, primeira
metade do século XVIII]: partes de TB
9ª SR/SP-IPHAN [GMC 4 (A) C-4 - f.17-21] - “Tractos para Sesta Fr.ª Santa a 4 / Douzo / De /
Thimoteo Leme / Ant Ant / Tractos para sexta Fr.ª santa a 4 / do uzo / Thenotio L[...]”. Cópia
de Timóteo Leme [do Prado], sem local, [primeira metade do século XVIII]: partes de TB

7. ANÔNIMO. Heu! Heu! Domine! [Estribilho da primeira parte da Procissão do Enterro de


Sexta-feira Santa]

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9ª SR/SP-IPHAN [GMC 4 (D) C-4 - f.17-21] - Idem supra

8. ANÔNIMO. Pupilli facti sumus [Versículos da primeira parte da Procissão do Enterro de


Sexta-feira Santa]

9ª SR/SP-IPHAN [GMC 4 (E) C-4 - f.17-21] - Idem supra


9. [GINÉS DE MORATA]. [Æstimatus sum] cum descendentibus [Segunda parte da Procissão
do Enterro de Sexta-feira Santa]

MIOP/CP-CCL 298 (D) [C-Un] - “Populemeus a Quatro vozes e- / cum descendentibus


in- / Lacum / Para Sesta feira da Paixaõ. / Fran.co Gomes da Rocha”. Cópia de Francisco
Gomes da Rocha [?], sem local, [final do século XVIII]: partes de S1S2AT

10. ANÔNIMO. Cantemus Domino... / Vinea facta... / Attende cælum... [Primeiro, segundo e
terceiro Tractos, nas Lições da Vigília Pascal do Sábado Santo]

TA-AAC [MSP (V) C-Un] - “Tratus. p.ª Sabb.do Sancto.” Sem indicação de copista, sem local,
[final do século XVII ou início do século XVIII]: partes de SAT, Bx

11. ANÔNIMO. Alleluia [Próprio da Missa da Vigília Pascal e seções corais das Vésperas do
Sábado Santo]

TA-AAC [MSP (W) C-Un] - Sem indicação de copista, sem local, [final do século XVII ou início do
século XVIII]: partes de SAT, Bx

12. ANÔNIMO. Sicut cervus desiderat [Quarto Tracto, na Bênção da Fonte Batismal da Vigília
Pascal do Sábado Santo]

MIOP/CP-CCL 159 (B) [C-Un] - Cópia de Miguel Eugênio Monteiro de Barros, sem local,
25/03/1853: partes de SAT
MMM MA SS-21 [(B) C-1] - “Suprano / Tractus, e Missa p.ª Sabbado S.to / Passos Frr.ª ”. Cópia
de [João dos] Passos Ferreira, [Sabará?], [final do séc.XVIII]: SB
MMM MA SS-21 [(B) C-2] - “Tratos de Sabado Santo a4. / Leonardo de Mello”. Cópia de Leonardo
de Mello [Pimentel], [Sabará?, final do século XVIII ou início do século XIX]: partes de
SATB, Bx
SMEI 050 (B) [C-Un] - “Tiple. Sabbado Santo.” Sem indicação de copista, sem local, [início do
século XX]: partes de SATB

13. ANÔNIMO. Regina Cæli lætare [Antífona de Nossa Senhora do Tempo Pascal]

9ª SR/SP-IPHAN [GMC 6 C-Un - f.23-24] - “Tiple a4”. Sem indicação de copista, sem local,
[primeira metade do século XVIII]: partes de ST

3 - Claves utilizadas em música para as Paixões da Semana Santa


Em relação às Paixões da Semana Santa, sobretudo naquelas do tipo Proêmio e Turbas, existe
maior variedade na utilização das claves e uma certa diferença entre o Proêmio e as Turbas,

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CASTAGNA, Paulo. As claves altas na prática musical religiosa... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 27-42

quanto às claves utilizadas. Dentre as cópias paulistas e mineiras de Paixões, foram estudados
seis Proêmios (Passio Domini nostri...) e dez Turbas (Non in die festo no Domingo de Ramos e
Jesum Nazarenum na Sexta-feira Santa), quase todos sem indicação de autoria (CASTAGNA,
2000, v.2:446-498). Estão envolvidos no emprego das claves altas os seguintes manuscritos:

9ª SR/SP-IPHAN [GMC 4 (B/C) C-4 - f.17-21] - “Tractos para Sesta Fr.ª Santa a 4 / Douzo / De /
Thimoteo Leme / Ant Ant / Tractos para sexta Fr.ª santa a 4 / do uzo / Thenotio L[...]”. Cópia
de Timóteo Leme [do Prado], sem local, [primeira metade do século XVIII]: partes de TB.
Contém Proêmio n.1 e Turbas n.4.
MMM BC SS-01 [M-1 (H/I) C-2] - “Baýxa, para o Domingo de / Ramos. &”. Cópia de Manoel Florentino
[?], [início do século XIX]: partes de TB, Bx. Contém Proêmio n.1 e Turbas n.1.
MMM BC SS-01 [M-2 (G/H) C-Un] - “Suprano Bruno / Domingo de Ramos”. Cópia de Bruno Pereira
dos Santos, Catas Altas (MG), 30/01/1842: partes de SB. Contém Proêmio n.2 e Turbas n.1.
MMM BC SS-06 [M 1 (C/D) C-Un] - “Oficio de Ramos / Com / Introito, e Bradados / Para o uzo de /
Leonardo de Mello”. Cópia de Leonardo de Melo [Pimentel] [ou José Gonçalves Chaves, ou a
mando de um deles, sem local, final do século XVIII]: partes de SATB, [Bx]. Contém Proêmio
n.4 e Turbas n.2.
MMM BL SS-10 [M-1 (A/B) C-1] - “Bassus. / Feria 6.ª in Parasceve / Pertencente ao Sanctissimo
Sacramento da / Matriz de Saõ Joze da Barra Longa”. Sem indicação de copista, [Barra
Longa, segunda metade do século XIX]: partes de SATB, Bx. Contém Proêmio n.2 e
Turbas n.5.
MMM BL SS-10 [M-1 (A/B) C-2] - “Feira 6.ª «...”Bradados # Tiple”...»”. Cópia de J. S., Barra Longa,
11-12/03/1942: partes de SAB. Contém Proêmio n.2 e Turbas n.5.
MMM MA SS-05 [M-2 (A/B) C-Un] - “p.ª Domingo de Ramos a 4 Vozes ou da paixão. / Pertence a
Joaquim do Monte”. Cópia de [Bruno Pereira dos Santos ou Joaquim do Monte, Catas Altas,
meados do século XIX]: partes de ATB, Bx. Contém Proêmio n.2 e Turbas n.1.
MMM MA SS-16 [M-1 (A/B) C-Un] - “Bradados para Sexta feira = Tiple =”. Cópia de J. G. L.,
Urucânia, 06/03/1927: partes de SATB, Bx. Contém Proêmio n.1 e Turbas n.4.
MMM MA SS-16 [M-2 V-1 (B/C) C-1] - “Sexta Fr.ª Suprano”. Sem indicação de copista, sem local,
[final do século XVIII]: partes de SAT. Contém Proêmio n.4 e Turbas n.7.
MMM MA SS-16 [M-2 V-1 (B/C) C-2] - “Sexta fr.ª Suprano”. Sem indicação de copista, sem local,
[primeira metade do século XIX]: parte de S. Contém Proêmio n.4 e Turbas n.7.

Entre os casos mais notórios, nessas Paixões, está o de 9ª SR/SP-IPHAN [GMC 4 C-4], copiado
em notação proporcional e com a utilização de claves altas, contendo o Proêmio n.1 em B e os
Ditos de Cristo e Turbas em C, cujas Turbas correspondem às Turbas n.4 (quadro 3).

Quadro 3. Claves utilizadas em 9ª SR/SP-IPHAN [GMC 4 C-4] (Sexta-feira Santa).

B - Proêmio n.1 C - Ditos de Cristo e Turbas [n.4]


Parte Clave Armadura Tônica Clave Armadura Tônica
T alta (Dó-3) natural Dó alta (Dó-3) natural Dó
B alta (Dó-4) natural Dó alta (Dó-4) natural Dó

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CASTAGNA, Paulo. As claves altas na prática musical religiosa... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 27-42

A grande maioria dos Proêmios e Turbas aqui consultados encontra-se em cópias nas quais foi
utilizada a notação moderna, com barras de compasso e ligaduras de valor, mas com a preservação
de claves altas em algumas delas. Em MMM BC SS-06 [M 1 C-Un] e em MMM MA SS-16 [M-2 V-
1 C-1/2], as partes vocais do Proêmio encontram-se em claves altas, enquanto as das Turbas
em claves baixas, como podemos observar nos quadros 4, 5 e 6.

Quadro 4. Claves utilizadas em MMM BC SS-06 [M-1 C-Un] (Domingo de Ramos).

C - Proêmio n.4 D - Turbas n.2


Parte Clave Armadura Tônica Clave Armadura Tônica
S alta (Sol-2) natural Dó baixa (Dó-1) Fá sustenido Sol
A alta (Dó-2) natural Dó baixa (Dó-3) Fá sustenido Sol
T alta (Sol-2) natural Dó baixa (Dó-4) Fá sustenido Sol
B alta (Dó-4) natural Dó baixa (Fá-4) Fá sustenido Sol
[Bx] baixa (Fá-4) Fá sustenido Sol baixa (Fá-4) Fá sustenido Sol

Quadro 5. Claves utilizadas em MMM MA SS-16 [M-2 V-1 C-1] (Sexta-feira Santa).

B - Proêmio n.4 C - Turbas n.7


Parte Clave Armadura Tônica Clave Armadura Tônica
S alta (Sol-2) natural Dó baixa (Dó-1) Fá sustenido Sol
A alta (Dó-2) natural Dó baixa (Dó-3) Fá sustenido Sol
T alta (Sol-2) natural Dó baixa (Dó-4) Fá sustenido Sol

Quadro 6. Claves utilizadas em MMM MA SS-16 [M-2 V-1 C-2] (Sexta-feira Santa).

B - Proêmio n.4 C - Turbas n.7


Parte Clave Armadura Tônica Clave Armadura Tônica
S alta (Sol-2) natural Dó baixa (Dó-1) Fá sustenido Sol

O emprego de duas categorias diferentes de claves e, conseqüentemente, de transposições


diferentes em MMM BC SS-06 [M 1 C-Un] e em MMM MA SS-16 [M-2 V-1 C-1/2], é um dos
indícios da existência de uma certa independência musical entre o Proêmio e as Turbas, com a
livre associação dessas unidades musicais permutáveis em fontes diversas, nas quais foram
empregados diferentes tipos de claves: copistas dos séculos XVIII e XIX, ao converterem as
obras para a notação moderna, acabaram preservando algumas das características da notação
antiga, entre elas as claves altas.

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CASTAGNA, Paulo. As claves altas na prática musical religiosa... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 27-42

A uniformidade na utilização de claves altas ou baixas foi encontrada somente nas cópias mais
antigas: claves altas no Proêmio e nas Turbas em 9ª SR/SP-IPHAN [GMC 4 C-4] e claves altas
no Proêmio e baixas nas Turbas em MMM BC SS-06 [M 1 C-Un] e em MMM MA SS-16 [M-2 V-
1 C-1/2]. Em cópias dos séculos XIX e XX, as claves altas aparecem de forma mais desordenada,
provavelmente devido à intensa permuta de unidades pelos copistas ou até a tentativas de atualizar
ou “corrigir” as claves não usuais na notação moderna. Em MMM BL SS-10 [M-1 C-1/2] as Turbas
estão em claves baixas, mas as partes de Baixo (vocal e instrumental) do Proêmio estão em
claves baixas e as demais vozes em claves altas, como se pode observar nos quadros 7 e 8:

Quadro 7. Claves utilizadas em MMM BL SS-10 [M-1 C-1] (Sexta-feira Santa).

A - Proêmio n.2 B - Turbas n.5


Parte Clave Armadura Tônica Clave Armadura Tônica
S - - - baixa (Dó-1) Si bemol Fá
A alta (Dó-2) natural Dó baixa (Dó-3) Si bemol Fá
T alta (Sol-2) natural Dó baixa (Dó-4) Si bemol Fá
B baixa (Fá-4) Si bemol Fá baixa (Fá-4) Si bemol Fá
Bx baixa (Fá-4) Si bemol Fá baixa (Fá-4) Si bemol Fá

Quadro 8. Claves utilizadas em MMM BL SS-10 [M-1 C-2] (Sexta-feira Santa).

A - Proêmio n.2 B - Turbas n.5


Parte Clave Armadura Tônica Clave Armadura Tônica
S - - - baixa (Dó-1) Si bemol Fá
A alta (Dó-2) natural Dó baixa (Dó-3) Si bemol Fá
- - - - - - -
B baixa (Fá-4) Si bemol Fá baixa (Fá-4) Si bemol Fá
Bx baixa (Fá-4) Si bemol Fá baixa (Fá-4) Si bemol Fá

Em MMM BC SS-01 [M-1 C-2] e em MMM BC SS-01 [M-2 C-Un], o Proêmio está em claves
baixas, como se observa nos quadros 9 e 10, mas ocorre uma associação de tipos de claves e
transposições nas Turbas, explicável somente pela confusão gerada após o desuso da notação
antiga. O manuscrito MMM BC SS-01 [M-1 C-2] possui música para a Aspersão, para as
cerimônias dos Ramos e para toda Missa de Domingo de Ramos (Ordinário e Próprio), mas
essa mistura ocorre somente no Proêmio e nas Turbas da Paixão, provavelmente devido à maior
proliferação de espécimes em estilo antigo dessas unidades.

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CASTAGNA, Paulo. As claves altas na prática musical religiosa... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 27-42

Quadro 9. Claves utilizadas em MMM BC SS-01 [M-1 C-2] (Domingo de Ramos).

H - Proêmio n.1 I - Turbas n.1


Parte Clave Armadura Tônica Clave Armadura Tônica
T baixa (Dó-4) Si bemol Fá alta (Sol-2) natural Dó
B baixa (Fá-4) Si bemol Fá baixa (Fá-4) Si bemol Fá
[Bx] - - - baixa (Fá-4) Fá sustenido Sol

Quadro 10. Claves utilizadas em MMM BC SS-01 [M-2 C-Un] (Domingo de Ramos).

G - Proêmio n.2 H - Turbas n.1


Parte Clave Armadura Tônica Clave Armadura Tônica
S - - - alta (Sol-2) natural Dó
B baixa (Fá-4) Fá sustenido Sol baixa (Fá-4) Si bemol Fá

Uma interessante tentativa de “corrigir” as claves altas pode ser encontrada em MMM MA SS-05
[M-2 (A) C-Un]: o copista registrou a música do Proêmio no Altus na transposição Dó, a qual,
teoricamente, deveria ser precedida pela clave de Dó na segunda linha. A incompatibilidade
dessa transposição com a do Baixo (vocal e instrumental) fez com que o copista tentasse modificar
a clave, para que esta fosse cantada em concordância com a transposição Sol. Confundindo-se
na tentativa de correção, o copista aplicou duas claves no início do pentagrama - Dó na primeira
linha e Dó na terceira linha - ambas incorretas, quer para a transposição Dó, quer para a
transposição Sol.

A confusão foi maior ainda no Altus das Turbas de MMM MA SS-05 [M-2 (B) C-Un]: a música foi
copiada em Dó, à qual corresponderia, teoricamente, a clave de Dó na segunda linha. O copista,
entretanto, utilizou a clave de Dó na terceira linha e, não obtendo concordância entre as vozes,
aplicou um sustenido no quarto espaço do pentagrama - que, em clave de Dó na terceira linha
corresponderia a Fá sustenido - para tentar converter a transposição para Sol. Finalmente, no Tenor
(tanto no Proêmio quanto nas Turbas), a música está em Dó e a clave correta seria Sol na segunda
linha, mas o copista utilizou a clave de Dó na quarta linha, como podemos observar no quadro 11:

Quadro 11. Claves utilizadas em MMM MA SS-05 [M-2 C-Un] (Domingo de Ramos).

A - Proêmio n.2 B - Turbas n.1


Parte Clave Armadura Tônica Clave Armadura Tônica
A alta [Dó-2] natural Dó alta [Dó-2] natural Dó
T alta [Sol-2] natural Dó alta [Sol-2] natural Dó
B baixa (Fá-4) Fá sustenido Sol baixa (Fá-4) Fá sustenido Sol
[Bx] - - - baixa (Fá-4) Fá sustenido Sol

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CASTAGNA, Paulo. As claves altas na prática musical religiosa... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 27-42

Em MMM MA SS-16 [M-1 C-Un], o copista tentou resolver o problema das claves altas convertendo
todas as claves da composição para claves modernas, mas gerando uma incoerência musical, ao
manter o Baixo (vocal e instrumental) em Fá e as demais vozes em Dó, como se vê no quadro 12.

Quadro 12. Claves utilizadas em MMM MA SS-16 [M-1 C-Un] (Sexta-feira Santa).

A - Proêmio n.1 B - Turbas n.4


Parte Clave Armadura Tônica Clave Armadura Tônica
S - - - moderna (Sol-2) natural Dó
A moderna (Sol-2) natural Dó moderna (Sol-2) natural Dó
T moderna (Sol-2) natural Dó moderna (Sol-2) natural Dó
B moderna (Fá-4) Si bemol Fá moderna (Fá-4) Si bemol Fá
Bx - - - moderna (Fá-4) Si bemol Fá

4 - Conclusões
A documentação estudada comprova a utilização do sistema de claves altas no Brasil durante os
séculos XVIII e XIX, porém já como um arcaísmo. Muitas vezes, os copistas dessa fase tentaram
preservar as claves altas em seus manuscritos, porém a falta de um conhecimento pleno desse
sistema ocasionou um número muito grande de confusões, tornando necessários, para a edição
e execução coerente desse repertório, a análise e o ajuste das claves e transposições, e não
apenas a transcrição prática, como se tem observado até o presente.

Por outro lado, a compreensão do sistema de claves altas é importante não apenas para a
edição e execução de música religiosa, mas também para a associação de seus manuscritos a
fenômenos mais amplos ligados à cópia e à circulação de música nos séculos XVIII e XIX, inclusive
entre Portugal e Brasil: o fato de estar predominantemente ligada ao repertório em estilo antigo
faz com que a presença das claves altas (assim como de outros arcaísmos, como a notação
proporcional) seja forte indício da permanência de obras compostas em época bem anterior
àquela na qual foram copiadas.

5 – Referências bibliográficas
CASTAGNA, Paulo. O estilo antigo na prática musical religiosa paulista e mineira dos séculos XVIII e XIX. Tese
(Doutoramento). USP: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, 2000. 3v.
HEMMERLINK, Siegfried. Chiavette. In: SADIE, Stanley (ed.). The New Grove dictionary of music and musicians.
London, Macmillan Publ Lim.; Washington, Grove’s Dictionaries of Music; Hong Kong, Peninsula Publ. Lim.,
1980. v.4, p.221-223.
MORLEY, Thomas. A Plaine and Easie Introduction to Practicall Musicke. Apud: HEMMERLINK, Siegfried. Chiavette.
In: SADIE, Stanley (ed.). The New Grove dictionary of music and musicians. London: Macmillan, 1980.
PENA, Joaquín & ANGLÉS, Higino. Diccionario de la Música Labor: iniciado por Joaquín Pena; continuado por Higino
Anglés; con la colaboración de Miguel Querol y otros distinguidos musicólogos españoles e estranjeros.
Barcelona, Madrid, Buenos Aires, Rio de Janeiro, México, Montevideo, Editorial Labor, S. A., 1954. 2v.
SILVA, Manuel Nunes da. ARTE MINIMA Que Com Semibreve Prolaçam tratta em tempo breve, os modos da
Maxima, & Longa sciencia da Musica [...]. Lisboa: Officina de Miguel Manescal, 1704. 6f. não num., 44, 52,
136p.

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CASTAGNA, Paulo. As claves altas na prática musical religiosa... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 27-42

Paulo Castagna. Depois de graduar-se no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (1982), graduou-
se (1987) e apresentou dissertação de mestrado (1992) na Escola de Comunicações e Artes da USP e defendeu
tese de doutorado (2000) na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da mesma universidade (este artigo
corresponde, apesar de algumas modificações, a dois ítens dessa tese. Foi bolsista do CNPq (1985), da FUNARTE
(1988-1989), da FAPESP (1986-1987 e 1989-1991) e obteve bolsa da VITAE para o período maio/2001 a abril/2002,
produzindo trabalhos na área de musicologia histórica, cursos, conferências, programas de rádio e televisão e
coordenando a pesquisa musicológica para a gravação de CDs. É professor e pesquisador do Instituto de Artes da
UNESP desde 1994, tendo coordenado a Equipe de Organização e Catalogação da Seção de Música do Arquivo da
Cúria Metropolitana de São Paulo (1987-1999). Coordena o projeto de reorganização do Museu da Música de Mariana
(MG), patrocinado pela PETROBRÁS. Participou de encontros de musicologia na América Latina, Europa e Estados
Unidos, tendo coordenado a seção brasileira do Ier Symposium Mondial des Chemins du Baroque au Couvent de
Saint-Ulrich (Sarrebourg, França, 8-12 de junho de 2000), o Encontro de Músicos e Musicólogos do Instituto Itaú
Cultural (São Paulo, 11-13 de julho de 2000), o IV Encontro de Musicologia Histórica do Centro Cultural Pró-Música
(Juiz de Fora, 21-23 de julho de 2000) e, com Elisabeth Seraphim Prosser e Lutero Rodrigues, as cinco edições do
Simpósio Latino-Americano de Musicologia da Fundação Cultural de Curitiba (Curitiba, 1997-2001), trabalhando
também, com Víctor Rondón, na organização do IV Encuentro de Musicólogos de Santa Cruz de la Sierra
(Bolívia, 2002).

42
TOKESHI, Eliane. As Sonatas e Sonatinas para violino e piano... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 43-56

As Sonatas e Sonatinas para violino e piano de Ernst Mahle:


uma abordagem dos aspectos estilísticos

Eliane Tokeshi (UNESP)


e-mail: elianet@excite.com

Resumo: As seis Sonatas e Sonatinas para violino e piano de Ernst Mahle foram escritas num período de 25 anos,
durante os quais o autor manteve constante sua preferência por estruturas neoclássicas, contrastando com um
idioma moderno. Mostrou, também, uma evolução das técnicas de composição e um aumento na incorporação de
elementos rítmicos e melódicos da música folclórica e popular brasileira. Verificou-se que tais características retratam
o desenvolvimento de seu próprio idioma, fato conseqüente de uma procura contínua do compositor por sonoridades
diferentes, estas resultantes de um estudo de tipos de escalas variadas, juntamente com a influência da música do
Brasil e da obra de Béla Bartók.
Palavras-chave: Ernst Mahle, sonatas, sonatinas, violino e piano, estilo musical, música brasileira.

Sonatas and Sonatinas for violin and piano by Ernst Mahle:


a stylistic approach

Abstract: The six Sonatas and Sonatinas for violin and piano by Ernst Mahle were written over a period of 25 years,
during which the composer clearly showed his preference for neoclassic structures in contrast with a modern idiom.
It was detected a compositional development and increased use of rhythmic and melodic elements of Brazilian folk
music. Such characteristics reflect the development of Mahle’s idiom, a result of his own search for different sonorities,
obtained through the study of various types of scales, the influence of Brazil’s music and the work of Béla Bartók.
Keywords: Ernst Mahle, sonatas, sonatinas, violin and piano, musical style, Brazilian music.

“Meu estilo de composição é baseado no modalismo, no folclore e no aleatório controlado”


(MAHLE, 1995). Nessa afirmação, o compositor alemão de nascimento Ernst Mahle (1929 - )
descreve seu idioma com características encontradas nas obras mais recentes do seu repertório,
que têm sido incorporadas gradualmente em sua linguagem. Esse processo indicativo de uma
evolução é produto de sua procura constante por sonoridades e expressões diferentes. O resultado
tem sido obtido através de um estudo contínuo de diferentes tipos de escalas, juntamente com a
influência de obras de Bartók e da música folclórica e popular do Brasil.

O desenvolvimento do estilo de Ernst Mahle poderá ser notado na análise das seis Sonatas e
Sonatinas para violino e piano (Tab. 1). Essas obras foram escritas num período de vinte e cinco
anos (1955-80), abrangendo desde o início de seus experimentos com composição até uma fase
de maior maturação técnico-estilística. As composições em questão demonstram uma crescente
assimilação do modalismo e da música folclórica e popular brasileira, enquanto que o elemento
aleatório não é encontrado, pois o compositor o integrou posteriormente. Do mesmo modo que
este estudo das obras apontou as mudanças ocorridas, indicou também as características
estilísticas e as técnicas composicionais que se mantiveram constantes na linguagem de Mahle.

43
TOKESHI, Eliane. As Sonatas e Sonatinas para violino e piano... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 43-56

Como um dos fundadores e professor da Escola de Música de Piracicaba, Mahle sempre


demonstrou uma preocupação pedagógica, que aparece refletida em sua produção musical.
Inicialmente, suas composições foram escritas para preencher uma lacuna que ele acreditou
existir no repertório brasileiro para estudantes de música; contudo, a composição logo se tornou
sua principal ocupação. Obras como For Children e Mikrokosmos de Béla Bartók foram fontes
de inspiração, pois cumpriam uma função didática mesclando o folclore a um idioma moderno,
ainda que dentro de um nível de dificuldade técnica limitado e compreensível aos alunos. Mahle
se deixou influenciar pelo que chama de “técnica de pimenta e sal de Bartók,” (MAHLE, Entrevista,
1998). o que se refere ao uso e manipulação de modos, segundas aumentadas e outras escalas
exóticas.

Como o próprio compositor descreve, seu repertório “é para ser tocado e entendido pelo ouvinte,”
(ibid.) revelando seu posicionamento estético contra o artificialismo e a “modernidade a qualquer
custo”(FERREIRA in MAHLE, 1998, p. 4). Deste modo, suas obras tendem a usar recursos que o
compositor acredita tornarem seu idioma mais acessível tanto ao público quanto ao intérprete.
As Sonatas e Sonatinas para violino e piano, portanto, além de apresentarem uma escrita
idiomática para os instrumentos, também incluem estruturas neoclássicas hoje já bastante
assimiladas. Algumas mostram influência do folclore brasileiro, que naturalmente se deve à vivência
do compositor no país. Todavia, um dos motivos para Mahle iniciar a utilização do material folclórico
foi acreditar que as pessoas se identificam com obras que apresentam elementos conhecidos.

Tab. 1. Sonatas e Sonatinas para violino e piano de Ernst Mahle

Sonatina Sonatina Sonata Sonatina Sonatina Sonata


(1955) (1956) (1968) (1974) (1975) (1980)
Edição Ricordi Não publicada Tonos Não publicada Não publicada Não publicada
Dedicatória Valeska e Lola Benda Celisa Amaral Claudio Mahle
Paulo Affonso Frias
Allegro / Moderato / Allegro Allegro / Allegro / Allegro /
Movimento, moderato / Mi / moderato / Mi / Si / Sol /
tonalidade e Sol / Prelúdio Ré / Forma sonata Forma sonata Forma sonata
forma Forma sonata Forma sonata
Presto / Lá / Andante / Sol / Andante / Lá / Andante / Si /
ABA’ ABA’ Forma binária Forma sonata
Vivace / Moderato / Mi / Vivo / Sol /
Lá / Fugato Tema e Forma sonata
variações

Como pode-se observar na Tab. 1, os movimentos dessas Sonatas e Sonatinas utilizam estruturas
neoclássicas, como a forma sonata, rondó, ternária, binária e tema com variações. Esses
movimentos dentro da estrutura total da obra também têm a tendência de preservar o padrão
tradicional de ordem: rápido-lento-rápido. A mesma orientação neoclássica é notada no estilo do
compositor quando ele opta por construção de frases simétricas como na Sonatina (1955), onde
as estruturas seguem o padrão de agrupamento 2 + 2 compassos (Ex. 1); ou como no Moderato
da Sonatina (1974), no qual as frases são organizadas com antecedente seguidas do conseqüente
(Ex. 10).

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TOKESHI, Eliane. As Sonatas e Sonatinas para violino e piano... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 43-56

É comum se encontrar nessas obras outros procedimentos tradicionais, como passagens onde
aparecem texturas de melodia com acompanhamento, escrita polifônica e seções de transição
utilizando pedal no baixo e seqüências. Típicos da forma sonata, os planos tonais apresentam
caráter contrastante com o material temático, diferindo de enérgico e/ou alegre para lírico e
melodioso. Essas são algumas das características comuns encontradas nas obras em questão;
todavia, Mahle manipula esses procedimentos de modo que sua obra torna-se singular.

violino

Ex. 1

Em muitos instantes, é comum Mahle optar por trabalhar com material temático restrito dentro de
cada obra, o que o leva a buscar um desenvolvimento motívico como pode ser verificado na
Sonatina (1955). O primeiro tema na Sonatina (1955), por exemplo, é construído por uma frase
com dois motivos, a e b (Ex. 1), que “combinam intervalos de terças menores e sétimas maiores”
(MAHLE, Obras, 1996, p. 7). Concluindo a primeira área tonal, há uma seção de transição onde
o motivo a aparece como figura de acompanhamento (Ex. 2). A segunda área tonal se relaciona
com a anterior, mesmo que apresentando um outro caráter e um tema com intervalos diferentes.
Mahle descreveu esse segundo plano enfatizando a modulação para Dó# e o uso do mesmo
intervalo de sétima maior do primeiro tema, porém juntamente com outros de segunda e quarta.
Pode ser verificado no Ex. 2 que esses intervalos foram introduzidos previamente, como na última
apresentação do motivo b (c. 11-12) e no motivo c (c. 13-14) do novo tema. Manipulações rítmicas
acontecem com os motivos a e c, que são deslocados metricamente de modo que a semínima
passa a ser usada como uma anacruze e a mínima torna-se uma suspensão (c. 17-18). Parte da
qualidade enérgica do primeiro tema deve-se também à direção ascendente dos motivos a e b,
o que difere do contorno em arco da frase do segundo plano tonal, que adquire um caráter mais
lírico. Nota-se como o compositor usou temas com muitas características em comum, contudo
esses contrastam em caráter devido a diferenças em articulação, dinâmica, contorno e tonalidade.

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TOKESHI, Eliane. As Sonatas e Sonatinas para violino e piano... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 43-56

Ex. 2

A Sonatina (1956) é formada por Moderato e Presto, o que primeiramente chama a atenção
devido a adição de mais um movimento, se comparada com a sonatina escrita anteriormente
(ver Sonatina 1955 em Tab. 1).

Como foi citado anteriormente, Mahle admirou e estudou as obras de Bartók, o que sugere a
escolha da estrutura de dois movimentos dessa obra. Peças como a Rapsódia N 0 1 e Sonata
N 02 para violino e piano de Bartók usaram essa estrutura e assemelham-se à música verbunkos
em forma e estilo. Esse antigo gênero instrumental húngaro consiste de duas partes, lassu e
friss, que são respectivamente caracterizados por um movimento lento em estilo parlando com
ornamentação evocando uma improvisação; e um tempo giusto, normalmente uma sucessão de
danças rústicas. A associação da Sonatina (1956) com esse tipo de obra poderia ocorrer talvez
se comparado o caráter improvisatório do primeiro movimento Moderato ao lassu, porém não há
nenhuma característica de ritmo ou métrica de dança no Presto. Mahle posteriormente explicou a
estrutura da obra como um simples “Adagio e Allegro que já existia no período barroco”
(MAHLE, 1999).

O Moderato da Sonatina (1956) foi descrito pelo compositor como um “prelúdio com um ritmo
constante, onde figuram 3+4+4 colcheias. Nota-se a presença do trítono e de terças maiores
(cromáticas e paralelas), descendo e subindo em movimento contrário” (MAHLE, Obras, 1996, p. 7).

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TOKESHI, Eliane. As Sonatas e Sonatinas para violino e piano... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 43-56

Algumas das características gerais encontradas numa definição do termo prelúdio, também
presentes nesse movimento são o senso de improvisação, liberdade rítmica e um plano temático
flexível, que podem cumprir a função “de definir a tonalidade e modo do movimento
seguinte”(RANDEL, 1986, p. 653). A análise demonstrou que essas características aparecem no
Moderato, através de uma certa qualidade improvisatória, além de preparar o material temático
e o vocabulário intervalar para o Presto seguinte.

O ritmo constante mencionado pelo compositor se refere ao ostinato, que persiste por todo o
movimento alternando-se entre o violino e o piano (Ex. 3a). Apesar das notas estarem escritas
com o agrupamento de 3+4+4 e do compositor ter chamado a atenção especificamente para os
intervalos que considerou mais importantes, outros pulsos interiores como o de 2+3+3+3 podem
ser notados devido ao contorno e direção do desenho desse ostinato. Essa ambigüidade métrica
contribui para um caráter de indecisão do movimento, logo, também a sensação de improvisação.
Outro aspecto distinto da figura de acompanhamento se revela nas duas linhas paralelas
cromáticas descendentes (ver notas indicadas no Ex. 3a). Com essa seqüência de notas, é
possível compreender e sentir um pulso mais longo, de um tempo por compasso, facilitando a
sensação de continuidade na música. Esse ostinato também deixa de ser um simples
acompanhamento quando se mostra intrinsecamente relacionado com a linha melódica, já que
essa repete de forma aumentada a linha cromática (ver notas circuladas em Ex. 3b).

Ex. 3a

Ex. 3b

Como já notado anteriormente, o Moderato também se relaciona com o Presto de maneira que
os motivos principais do último contêm os intervalos de trítono e terças (Ex. 4a). Numa seção de
textura mais densa (Ex. 4b) esses intervalos, juntamente com segundas maiores, aparecem
verticalmente indicados pela seqüência de conjuntos de classe de altura (pitch-class sets)

47
TOKESHI, Eliane. As Sonatas e Sonatinas para violino e piano... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 43-56

1
4-25 (0268) e 4-21 (0246) . Nesse mesmo trecho, as terças também se encontram em movimento
ascendente, que completa o intervalo de oitava dividido em quatro partes iguais. Outro elemento
de conexão entre os movimentos se apresenta na linha cromática discutida anteriormente, que
aparece relembrando a melodia e o ostinato do movimento anterior (linha descendente na mão
direita do piano em Ex. 4b).

Ex. 4a

Ex. 4b

Seguindo a ordem cronológica, a próxima obra de Mahle, a Sonata (1968), aumenta o número de
dois movimentos (Sonatina 1956) para três (ver Tab. 1). Esta Sonata também apresenta elementos
comuns entre movimentos como temos notado nas Sonatinas anteriores. O primeiro movimento
utiliza temas similares nas diferentes áreas tonais, formando “basicamente um movimento
monotemático” (MAHLE, Obras, 1996, p. 7). Contrastes entre os planos tonais são desenvolvidos
através da manipulação dos motivos rítmicos e melódicos que os modifica invertendo, mudando
articulação e utilizando a forma aumentada e diminuída. Esse tipo de relação motívica existe não
somente dentro desse Allegro moderato, mas também com o movimento final, que utiliza os
mesmos intervalos como material para a construção dos temas.

Como pode ser notado na Tab. 1, as tonalidades dos movimentos em cada obra estão relacionadas
de maneira bastante tradicional, ou seja, em relação de dominante, subdominante e relativa maior.
Uma das “marcas registradas” do estilo de Mahle, no entanto, é obter um contraste mais acentuado

1
Para maiores informações sobre teoria dos conjuntos (set theory) consultar: Allen Forte, The Structure of Atonal
Music (New Haven: Yale University Press, 1973) e Joseph Straus, Introduction to Post-Tonal Theory (Englewood
Cliffs: Prentice-Hall, Inc., 1990).

48
TOKESHI, Eliane. As Sonatas e Sonatinas para violino e piano... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 43-56

dentro de cada movimento, fazendo uso de um distanciamento de trítono entre os planos tonais.
Desta forma, o Allegro da Sonata (1968), por exemplo, apresenta o primeiro plano em Ré e o
segundo em Sol#; e o Allegro da Sonata (1980) em Sol e Dó# respectivamente. Quando
questionado sobre as razões desse procedimento, o compositor explicou a preferência devido
ao contraste tonal resultante, descartando assim a influência nesse aspecto de Bartók, que utilizava
muito o intervalo de trítono. Mahle atribuiu a utilização desse intervalo como mais um passo no
progresso histórico-estilístico das relações de tonalidades, que vinha se desviando cada vez
mais das regras clássicas. Desta forma, Mahle buscou o intervalo mais distante possível (trítono)
para substituir as tradicionais dominante ou relativa maior. Em entrevista com o Professor Arzolla,
Mahle revelou este procedimento como uma possível influência de Debussy e a escala de tons
inteiros (ARZOLLA, 1996, p. 38). Da mesma forma, tanto esta última escala quanto as octatônicas
e a relação de pólo e antípoda são associadas a propriedades de regularidade intervalar e simetria,
que parecem ser características preferidas pelo compositor.

Mahle procurou usar as escalas mencionadas e outras como fonte para novas possibilidades
sonoras, o que o levou a calcular com um aluno de composição todas as escalas possíveis com
um número de 5 a 12 notas. Do resultado de mais de 1.200 escalas, Mahle selecionou cerca de
setenta escalas que considerou interessantes musicalmente (ARZOLLA, 1996, p. 31). Desta forma,
o compositor combinou o que aparenta ser uma busca meramente cerebral com o instinto musical,
criando assim uma linguagem própria.

A escala octatônica aparece manipulada de várias maneiras nas Sonatas e Sonatinas em questão,
tornando-se parte de seu idioma. Na Sonatina (1955) a escala completa é utilizada como
conclusão da exposição (Ex. 5a) e também na seção de transição para a recapitulação, juntamente
com terças menores descendentes e um pedal na nota Sib no piano (Ex. 5b). As sonoridades
freqüentes resultantes da escala octatônica, como terças maiores e menores, as combinações
destas, sétimas e trítonos aparecem presentes nesse movimento. Isso facilita ou explica, portanto,
a maior integração dessa escala dentro do vocabulário intervalar do movimento.

Ex. 5a

Ex. 5b

Mahle descreveu o primeiro tema da Sonatina (1975) com um “caráter modal onde o dórico,
frígio, lídio e mixolídio se misturam ao cromatismo da falsa relação” (MAHLE, Obras, 1996, p. 8).
O resultado final produz, no entanto, a escala octatônica Si-Dó-Ré-Mib(Ré#)-Mi#(Fá)-Fá#-
Sol#(Láb)-Lá, que é o único material utilizado na obra, com uma exceção somente no último

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TOKESHI, Eliane. As Sonatas e Sonatinas para violino e piano... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 43-56

acorde, que acrescenta notas estranhas à escala. A qualidade sonora modal é notada,
especialmente a do modo frígio devido a sua similaridade com esse tipo de escala octatônica,
visto que ambas apresentam o segundo e sétimo graus abaixados. O modo octatônico foi
escolhido, segundo Mahle, porque possui várias possibilidades sonoras ainda que com um número
limitado de notas e pode produzir as qualidades modais mencionadas, assim como harmonias
maiores e menores (MAHLE, 1999).
No Ex. 6, nota-se que o primeiro tema apresenta com freqüência muitos intervalos de terças,
resultando em conjuntos de classe de altura (pitch-class sets) como 3-11 (037) e 3-3 (014), que
formam tríades e terças maiores e menores respectivamente. Como já foi citado, outro intervalo
comum com o uso da escala octatônica é o do trítono, o qual aparece diversas vezes formando
3-8 (026) e 3-10 (036), enquanto o acorde de sétima diminuta 4-27 (0258), um complemento da
escala octatônica, está presente na figura ostinato inicial e posteriormente no tema.

Ex. 6

Outra característica importante do modo octatônico é a possível presença de conflito no centro


tonal, que se deve à capacidade dessa escala de formar tríades maiores e menores
simultaneamente no primeiro, terceiro, quinto e sétimo graus (STRAUS,1990, p. 100). Esta
condição é encontrada no início desse movimento, onde se utiliza tríades de Ré e Si

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TOKESHI, Eliane. As Sonatas e Sonatinas para violino e piano... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 43-56

simultaneamente, provocando uma ambigüidade no centro tonal, que se resolve somente no fim
dessa seção, quando o Si é estabelecido como tonalidade central.

Na Sonata (1980) a escala octatônica também é usada, aparecendo no fim da exposição na


parte do piano enquanto o violino permanece estático com a díade Réb/Mib seguida por Sol/Lá
(Ex. 7) onde, a harmonia se mantém estática.

Ex. 7

Através dos comentários escritos por Mahle no encarte da gravação em CD, foi possível se verificar
as considerações importantes para o compositor a respeito das Sonatas e Sonatinas para violino
e piano. Pode-se notar que na sua descrição, a construção dos motivos nas suas primeiras
obras foi bastante baseada em manipulação de intervalos. Foi somente a partir da Sonata (1968)
que o compositor menciona a introdução de combinação de elementos modais frígio, lídio e
mixolídio (Andante). Mahle, de certa maneira, não deixa de manipular os intervalos, porém esses
a partir de então, são buscados pela sonoridade e pela identificação com cada modo. Essa
mistura de modos resulta numa escala que pode ser observada no tema em Sol (Ex. 8). Os
modos frígio, lídio e mixolídio podem ser facilmente reconhecidos pela presença do segundo
grau abaixado, do quarto aumentado e do sétimo abaixado, que aparecem no tema como Láb,
Dó# e Fá, respectivamente. A sonoridade exótica resultante é similar à escala cigana ou modo
húngaro (Dó-Ré-Mib-Fá#-Sol-Láb-Si; SADIE, 1980, p. 870), que também apresenta a terça menor
e a quarta aumentada, gerando o intervalo de segunda aumentada entre os terceiro e quarto
graus da escala. Neste Andante, o compositor pela primeira vez descreveu o uso de modos nas
obras de violino estudadas nessa pesquisa; no entanto, Mahle havia utilizado elementos modais
em uma peça anterior para violino solo (Rapsódia, escrita em 1956; MAHLE, 1956).
Posteriormente, Mahle incorporou os modos em seu idioma, o que pode ser considerado uma de
suas características mais marcantes.

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TOKESHI, Eliane. As Sonatas e Sonatinas para violino e piano... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 43-56

Ex. 8

Na Sonatina (1974) Mahle faz uso extensivo de um vocabulário modal. O primeiro movimento Allegro
manipula somente elementos do lídio e mixolídio, enquanto o Andante utiliza mais explicitamente o
idioma modal. O material apresentado através de todo esse movimento lento é o modo composto
frígio-dórico em Lá. Este é formado pelo primeiro pentacorde e segundo tetracorde de cada modo
respectivamente, o que constrói, portanto, Lá-Sib-Dó-Ré / Mi-Fá#-Sol-Lá (Ex. 9). Nesse instante,
pode-se detectar a influência da técnica de “sal e pimenta” de Bartók que Mahle anteriormente
reconheceu admirar.

Ex. 9

Durante a primeira parte do movimento, o violino e o piano expõem o material temático sozinhos
e alternadamente; mas, na reprise, todos os temas aparecem acompanhados pelo outro
instrumento com a harmonização. É interessante notar que através desse procedimento, Mahle
utiliza construções triádicas formadas com as notas da escala original, desta forma preservando
e enfatizando a qualidade sonora modal.

O finale Moderato é um movimento de tema e variações com muitas das características tradicionais
equivalentes a obras do repertório clássico, como, por exemplo, frases equilibradas que formam
uma estrutura de 4+4/4+4 (Ex. 10). Enquanto a estrutura dos períodos continua a mesma, o material
temático aparece variado durante o movimento. O modo dórico em Mi do tema é extremamente
modificado, mostrando a técnica de variação do compositor, que inclui modificações que
introduzem modos como o lídio, frígio e mixolídio. Parte das variações mantém o tema reconhecível,
apesar de Mahle ter utilizado tipos diferentes de acompanhamento, alterado a textura e caráter
através do uso de progressões harmônicas com arpejos e acordes, e introduzido figuras rítmicas.

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TOKESHI, Eliane. As Sonatas e Sonatinas para violino e piano... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 43-56

Ex. 10

Na Sonata (1980), o compositor utilizou uma escala pentatônica (Sol-Lá-Si-Ré-Mi) como material
inicial (Ex. 11) e introduziu gradativamente os “elementos dos modos lídio, mixolídio, frígio, etc…”
(MAHLE, Obras, 1996, p. 8). O compositor, portanto, trabalha o material temático de modo que
possa estender frases através de inserções e combinações modais como o Dó# (lídio), Láb e
Sib (frígio) e Fá (mixolídio). Desta forma, Mahle obtém, durante o movimento Allegro, instantes
cromáticos complexos devido a mistura de modos que, de maneira contrastante, se alternam
com o caráter sonoro aberto da escala pentatônica.

Ex. 11

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TOKESHI, Eliane. As Sonatas e Sonatinas para violino e piano... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 43-56

Naturalizado brasileiro, Mahle tem orgulho de ser considerado como um “compositor mais
brasileiro que muitos brasileiros” (LACERDA in MAHLE, 2000, p. 4). Residindo no Brasil desde
1951, o compositor deixou-se influenciar pela música folclórica e popular do país, mostrando aparente
essa assimilação nas obras mais recentes entre as Sonatas e Sonatinas para violino e piano.
A Sonatina (1974) foi descrita pelo compositor como a primeira manifestação da influência da
música folclórica e popular brasileira dentro das obras de violino estudadas. O Allegro apresenta
ritmos pontuados e sincopados típicos, que são utilizados nas melodias e também em forma de
acompanhamento em ostinato quase percussivo, lembrando o tipo de textura e sonoridade usada
na capoeira (SILVA, 1998, p. 155). O último movimento Moderato termina com a indicação em
português “mancando” substituindo o mais comum ritenuto ou rallentando. O termo foi explicado
pelo compositor através de uma associação desse movimento ao cotidiano do trabalhador do
nordeste brasileiro. Esse “homem” foi fonte de inspiração ao compositor que o imaginou lidando
com diversos problemas todos os dias (representados pelo aumento da velocidade de cada
variação) e finalmente cansa-se e se “arrasta” mancando para casa. Apesar de Mahle admitir
que só se familiarizou com os modos típicos do folclore nordestino após tê-los usado, as
sonoridades modais dessa Sonatina (1974) contribuem a essa associação imediata.
As chamadas terças caipiras aparecem no Allegro da Sonatina (1974) de maneira discreta; no
entanto, é no Vivace da Sonata (1968) que Mahle fez uso de melodias inteiras com duas vozes
paralelas em intervalos de terças e sextas, procedimento presente na música brasileira (Ex. 12).
O material temático em questão tem seu caráter nacional mais acentuado, pois apresenta ritmos
pontuados e sincopados. Apesar dos elementos nacionalistas presentes nesse movimento, foi a
Sonatina (1974) que recebeu a descrição do compositor como representativo de um “ambiente
tipicamente brasileiro”. Isso provavelmente se deve ao fato de que esse movimento usa
procedimentos de uma fuga, um idioma não associado a música folclórica ou popular nacional.
O Vivace se inicia com todas as indicações de uma fuga tradicional apresentando o sujeito sozinho,
seguido da resposta tonal e de contra-sujeitos (ver Tab. 2). Este movimento, todavia, apresenta
qualidades interessantes, pois nota-se que este sujeito utiliza os mesmos intervalos do tema
inicial do primeiro movimento, além de interagir com uma melodia em terças caipiras. O
movimento, portanto, é construído por essas melodias com vozes paralelas, que se alternam ou
aparecem simultaneamente com o idioma polifônico nos trechos do fugato (Ex. 12 mostra o tema
“caipira” em conjunto com o sujeito) como mostra o diagrama abaixo (área A/B da Tab. 3).

Ex. 12

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TOKESHI, Eliane. As Sonatas e Sonatinas para violino e piano... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 43-56

Tab. 2. Exposição do fugato da Sonata (1968) – Vivace


(S=Sujeito; R=Resposta; C=Contra-sujeito)

Violino R C2 C1 S C2
Piano S C1 C3 R C2 C2-3
Piano S C1 C3 S

Tab. 3. Diagrama da Sonata (1968) – Vivace

Área A B A B A/B coda


transição stretto transição
Estilo fugato folclórico fugato folclórico ambos

A Sonata (1980), por sua vez, apresenta ritmos pontuados de samba e outras danças, mas também
uma outra célula sincopada até então não utilizada nas Sonatas e Sonatinas para violino e piano.
Pode-se notar no Ex. 11, na mão esquerda do piano, um motivo que enfatiza a primeira, quarta e
sétima colcheias do compasso, formando grupos de 3+3+2, que coincidem com uma figura rítmica
de acompanhamento típica nas danças populares brasileiras. No Vivo dessa Sonata o compositor
fez uso de motivos em sextas paralelas, no entanto estas não chegam a formar melodias completas
como as do material popular nacional. Pode-se dizer que os materiais da música folclórica e
popular brasileira aparecem mesclados dentro da Sonata (1980) o que, portanto, a diferencia da
Sonatina (1974), na qual o elemento do folclore é mais explícito. Desta forma, o caráter nacional
percebido na Sonata (1980) é aquele que foi transmitido pelo compositor após tê-lo assimilado
e traduzido para sua própria linguagem.

Através dessa breve análise, pode-se concluir sobre alguns dos aspectos particulares do estilo
de Ernst Mahle aparentes nas Sonatas e Sonatinas para violino e piano. Parte desse estilo é
resultado de suas manipulações dos modos eclesiásticos e outras escalas, como a octatônica e
pentatônica. Contudo, esses elementos de um idioma moderno não deixam de coexistir com o
estilo neoclássico de Mahle. Em conjunto com essa orientação tradicional, ocorrem influências
do ambiente brasileiro e, como resultado, a incorporação de elementos da música folclórica e
popular nacional no tratamento melódico, figuras rítmicas e sonoridades percussivas no seu estilo
de composição. Essa assimilação aparece, conseqüentemente, de maneira natural e gradativa,
pois a música neoclássica e a tradicional brasileira em muitos aspectos coincidem.

Cronologicamente, o número de movimentos dentro das obras para violino e piano aumentaram,
com a única exceção da Sonatina (1975), que possui somente um movimento (esta obra, porém
foi originalmente escrita para piano e, posteriormente, transcrita para violino pelo compositor). A
expansão das obras se deve provavelmente a uma crescente desenvoltura do compositor com o
gênero e com suas próprias técnicas de composição. Deve-se notar também que, em 1955 (ano
da primeira destas obras), Mahle encontrava-se no início da sua carreira, quando ainda considerava
as atividades pedagógicas sua prioridade profissional. Foi apenas em 1968 que Mahle começou
a se ver como compositor, quando notou o valor de suas obras escritas naquele ano.

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TOKESHI, Eliane. As Sonatas e Sonatinas para violino e piano... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 43-56

Posteriormente, Mahle veio a perceber que sua produção anterior também já era merecedora de
reconhecimento.
Cada uma dessas obras também apresenta um aumento no uso de novas texturas, recursos técnicos
e qualidades sonoras, explorando o violino como um instrumento lírico a percussivo, sempre de
maneira idiomática, porém aumentando as dificuldades técnicas. O aprendizado dessas Sonatas
e Sonatinas traz para o violinista obras de níveis variados de dificuldade, que utilizam as diversas
possibilidades técnicas do instrumento, e um leque variado de cores. A pesquisa através da análise
é capaz de discernir as sonoridades da música folclórica e popular brasileira, mescladas com as
técnicas e a linguagem moderna, levando à compreensão e execução coerente das obras e
facilitando o trabalho do intérprete de trazer à tona as qualidades da obra de Mahle.

Referências bibliográficas
ARZOLLA, Antonio Roberto Roccia Dal Pozzo. “Uma Abordagem Analítico-Interpretativa do Concerto 1990 para
Contrabaixo e Orquestra de Ernst Mahle”. Diss. Mestrado, Universidade do Rio de Janeiro, 1996.
RANDEL, Don, ed. The New Harvard Dictionary of Music, 3a ed. Cambridge: Harvard University Press, 1986.
SADIE, Stanley. Gypsy Music. In: THE NEW GROVE dictionary of music and musicians. London: Macmillan Press,
1980. v.7, p.870.
SILVA, André Cavazotti. “The Sonatas for Violin and Piano of M. Camargo Guarnieri: Perspectives on the Style of a
Brazilian Nationalist Composer”. Diss. DMA, Boston University, 1998.
STRAUS, Joseph N. Introduction to Post-Tonal Theory. New Jersey: Prentice-Hall, 1990.

Partituras, entrevistas e catálogos


MAHLE, Ernst. Sonatina (1955). São Paulo: Ricordi Brasileira, 1972.
____. “Sonatina (1956)”. Cópia de manuscrito, 1956.
____. Sonata (1968). Darmstadt: Edition Tonos, 1973.
____. “Sonatina (1974)”. Cópia de manuscrito, 1974.
____. “Sonatina (1975)”. Cópia de manuscrito, 1975.
____. “Sonata (1980)”. Cópia de manuscrito, 1980.
____. Ernst Mahle: Catálogo de Obras. Piracicaba, SP: Escola de Música de Piracicaba e Prefeitura de Piracicaba,
1998.
____. Ernst Mahle: Catálogo de Obras. Piracicaba, SP: Escola de Música de Piracicaba e Instituto Educacional
Piracicabano, 2000.
____. Obras para Violino e Piano. Gravado por Celisa Amaral Frias, violino e Bernardete Sampaio, piano. Comentários
de Ernst Mahle. Sonopress-Rimo, 1996.
____. Análise. Cópia de manuscrito , D33. Escola de Música de Piracicaba.
____. Modos, Escalas e Séries. Cópia de manuscrito, D30. Escola de Música de Piracicaba.
____. Entrevista de Josete Feres em novembro, 1995 (manuscrito).
____. Cópias de entrevistas de Antonio R. Arzolla em novembro, 1996; José de Feres em novembro, 1995; Johnson
Joanesburg Anchieta Machado em maio, 1993; Maria Constanza Almeida Prado, n.d.; Luciana Montenegro
Carnevale, n.d.
____. Entrevistas de Eliane Tokeshi em agosto, 1998 (manuscrito); maio, 1999 (E-mail); Junho, 1999 (conversa por
telefone).

Eliane Tokeshi é natural de Piracicaba onde iniciou seus estudos. Foi vencedora de importantes concursos e
solista frente a orquestra como Sinfônica do Estado de São Paulo, da USP, da Unesp, Sinfonia Cultura, Sinfônica de
North Shore e da Universidade da Northwestern entre outras. Obteve o Bacharelado em violino no Instituto de Artes
da Unesp, onde foi aluna do Prof. Ayrton Pinto. Premiada com uma bolsa pela CAPES, deu continuidade aos
estudos nos EUA, onde completou o Mestrado na Boston University e o curso de Doutorado em violino na Northwestern
University em Chicago. Atualmente é violinista convidada da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, vem
apresentando solos e recitais além de exercer atividades pedagógicas.

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LIMA, Cecília Nazaré de. Uma possível interpretação da referência musical em De Umbris de Oiliam Lanna. Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 57-69

Uma possível interpretação da


referência musical em De Umbris de Oiliam Lanna

Cecília Nazaré de Lima (UFMG)


e-mail: cecilian@hotmail.com

Resumo: Este estudo propõe indagar, com base na teoria semiótica de Charles Sanders Peirce (1839-1914), sobre
possíveis significados que podem ser extraídos da peça De Umbris, para dois fagotes e piano, composta em 1992,
por Oiliam Lanna. O campo de abrangência dessa ciência é muito vasto, suas indagações atingem diversas áreas
(psicanálise, anatomia, literatura, música etc.). A referência musical, um dos focos de sua teoria, foi a opção de
análise de De Umbris. Referência musical diz respeito à maneira como o signo se relaciona com seu objeto, à
semântica. As impressões iniciais sobre a peça foram associadas aos conceitos de Peirce no que se refere a ícone,
índice e símbolo e esse enfoque resultou em novas interpretações de seu discurso. Espera-se que essa tentativa de
aplicação da teoria semiótica na análise musical traga resultados positivos e desperte em outros intérpretes o
interesse por novas abordagens do discurso musical.
Palavras-chave: semiótica, referência musical, significado musical, música contemporânea brasileira, música de
câmara brasileira, De Umbris

A possible interpretation of the


musical reference in De Umbris by Oiliam Lanna

Abstract: The present study is an inquiry, based on the semiotic theory of Charles Sanders Peirce (1839-1914),
about the possible meanings that can be extracted from the piece De Umbris, for two bassoons and piano, composed
in 1992 by Oiliam Lanna. The horizon of this science is very broad, touching different areas of human knowledge
(psychoanalysis, literature, music, etc.). The musical reference, one of the foci of the theory, was the one chosen for
the analysis of De Umbris. Musical reference refers to the way in which the sign relates to its respective object, its
semantics. The initial impressions about the piece were associated with the concepts of Peirce regarding icon,
index and symbol and this approach resulted in new interpretations of the discourse. It is hoped that this attempt at
applying the semiotic theory in musical analysis will yield good fruits and provoke the interest of other performers in
finding new approaches of the musical discourse.
Keywords: semiotics, musical reference, musical meaning, Brazilian contemporary music, Brazilian chamber
music, De Umbris

I - Introdução
O que será exposto a seguir resulta das reflexões acerca dos fenômenos envolvidos no processo
criativo da peça De Umbris, para dois fagotes e piano, composta em 1992, por Oiliam Lanna.
(Oilliam Lanna formou-se em Composição pela Escola de Música da UFMG, onde hoje é professor,
e obteve o título de mestre em composição musical na Faculdade de Música da Universidade de
Montreal.) O principal objetivo desse estudo é investigar os possíveis significados que podem
ser extraídos de seu discurso com base na teoria semiótica de Charles Sanders Peirce
(1839-1914). As referências a Peirce foram selecionadas para os propósitos deste estudo e
extraídas de textos elaborados por autores que, interessados no estudo da Semiótica, traduziram
e interpretaram as idéias desse autor. Portanto, este trabalho de pesquisa não pretende, nem
poderia pretender, se apresentar como um guia desta ciência, mas sim como uma tentativa de

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LIMA, Cecília Nazaré de. Uma possível interpretação da referência musical em De Umbris de Oiliam Lanna. Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 57-69

aplicação de alguns de seus conceitos na Análise Musical. Provavelmente, a peça escolhida não
é conhecida por muitos leitores desse artigo e, por este motivo, serão acrescentadas informações
complementares a seu respeito e partitura publicada ao final do artigo.

Desde o início da história da humanidade, o homem estabeleceu maneiras de se comunicar.


Através de sons, desenhos, pinturas, escrita, fala e outras linguagens, ele procura gerar mensagens
através de signos. Mas foi no século XX que se deu o crescimento das ciências que se
interessavam na investigação desses signos, dentre elas a Semiótica com a proposta de seu
estudo em toda e qualquer linguagem. O campo de abrangência dessa ciência é muito vasto e
suas indagações atingem diversas áreas: psicanálise, anatomia, literatura, música, etc. O que se
busca descrever e analisar nos fenômenos é sua constituição como linguagem, sua ação de
signo. Em música, estudiosos têm se dedicado a vários aspectos envolvidos na significação
musical. Sua relação com o corpóreo, com o emocional, com fatores intrínsecos e extrínsecos a
ela, são alguns dos temas investigados.

As reflexões e opiniões, às vezes e em certos aspectos contraditórias, que se manifestam a


respeito do significado da música parecem convergir para a constatação de que música é
linguagem, e que, portanto, é também utilizada pelo homem para exprimir suas idéias e
sentimentos. Música poderia estar incluída nas palavras de J. F. dos Santos a respeito de
linguagens: “palavra, desenho, escrita, pintura, foto, imagem em movimento, são linguagens para
a comunicação feitas com signos em códigos que gerando mensagens, representam a
realidade para o homem” (SANTOS, 1986). Se música é linguagem, então, de acordo com
conceitos da teoria semiótica de Charles Sanders Peirce (1839-1914), ela é signo.

Várias definições para signo podem ser encontradas mas, talvez, a mais conhecida seja a de
que signo é alguma coisa que representa algo para alguém, ou ainda, “é tudo o que substitui algo,
sob certos aspectos e em certa medida” (PIGNATARI, 1979).

Lúcia Santaella selecionou dos escritos de Peirce uma outra definição que incluo aqui:

“Um signo intenta representar, em parte pelo menos, um objeto que é, portanto, num certo sentido,
a causa ou determinante do signo, mesmo se o signo representar seu objeto falsamente. Mas dizer
que ele representa seu objeto implica que ele afete uma mente, de tal modo que de certa maneira,
determine naquela mente algo que é mediatamente devido ao objeto. Essa determinação da qual a
causa imediata ou determinante é o signo, e da qual a causa mediata é o objeto, pode ser chamada
de interpretante” (SANTAELLA, 1993).

Para que um signo se efetive como tal, é necessário que ele represente o objeto, a que ele se
refere, para alguém. Quando essa relação triádica se efetiva, ocorre o processo da semeiosis.
Os elementos que a compõem, representame (signo), o objeto (referente), e o interpretante
(processo que permite ao intérprete transformar signo em signo) se associam e, a partir de suas
relações, passam a significar, ou seja, representar idéias. Essa relação não é estática, o processo
de referência do signo é infinito ou ainda, semeiosis é infinita em todas as direções.

Jean Jacques Nattiez comenta que, “apesar de não estar explícito em Peirce, somos levados a
concluir que o objeto do signo é realmente um objeto virtual que não existe exceto pela

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LIMA, Cecília Nazaré de. Uma possível interpretação da referência musical em De Umbris de Oiliam Lanna. Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 57-69

multiplicidade de interpretantes, pelo significado que a pessoa atribui ao signo para aludir o
objeto.” (NATTIEZ, 1990)

Décio Pignatari, sobre as idéias de Peirce, considera “particularmente importante – que o nível
sintático de um signo, sendo o nível de suas relações formais, é um primeiro; que o nível semântico,
que é o nível de suas relações com o objeto, é um segundo; e que o nível pragmático, que é o nível
de suas relações com o interpretante, é um terceiro” (PIGNATARI, 1979: 27).

A significação musical pode derivar desses três campos:

Gramática: semiose musical intrínseca; como a música se organiza; sintaxe.

Crítica: referência musical ou estudo das condições em que o signo se refere ao objeto; semântica.

Metodêutica: interpretação musical ou estudo das condições da Semiose na sua efetividade, na


maneira como ela acontece; pragmático.

Considerando o vasto campo de abrangência da Semiótica de Peirce, este estudo pretende


focalizar um pequeno universo dessa teoria no que diz respeito à semântica, mais especificamente
à referência musical, ou seja, como o signo se refere ao seu objeto dinâmico,1 ou ainda, o que a
música pode significar. Aspectos da peça De Umbris serão associados aos conceitos de ícone,
índice e símbolo em música, com a intenção de extrapolar uma análise musical descritiva e propor
outras possíveis interpretações de seus signos. O contato com a Semiótica de Peirce motivou a
investigação de novas abordagens para a peça. De Umbris, como qualquer fenômeno, está
repleta de significados e quando tencionamos interpretá-los estamos, na verdade, traduzindo
uma forma de pensamento em outra. E essa relação, que é suscitada pelo signo, é ininterrupta, e
quando mergulhados nela, sobretudo em música, devemos ter em mente que “significado musical
pode ser designado por uma translação verbal mas não limitado por ela” (NATTIEZ, 1990) e
ainda “o significante musical refere a um significado que não tem um significante verbal exato. O
significado musical, tão logo que explicado em palavras, perde-se no significado verbal tão preciso,
tão literal: ele o trai” (idem).

Contudo, antes de enfocar a peça nesta perspectiva semiótica, foi necessário conhecer sua
estrutura. O procedimento utilizado, a análise, se baseia no modelo tripartido da teoria semiológica
de Molino2 e Jean Jacques Nattiez, a partir do qual as diferentes famílias de análise musical são
classificadas em seis categorias. Na análise de De Umbris, a metodologia, embora pessoal, se
encaixa na terceira categoria exposta no artigo e trata de induzir da observação da peça o processo
composicional que lhe deu nascimento.3

1
Peirce destaca dois tipos de objeto: dinâmico, aquilo que o signo substitui, e o objeto imediato, aquele que diz
respeito ao modo como o objeto dinâmico se apresenta no próprio signo.
2
Nattiez, em seu artigo Semiologia Musical e Pedagogia da Análise, se refere à obra de Jean Molino, Fait musical
et semiologie de la musique. (Musique en jeu n 17, p. 37- 62, 1975)
3
Constituem referências nesse modelo o Fundamentals of Musical Composition de Schoenberg e a análise motívica
e temática de R. Réti.

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LIMA, Cecília Nazaré de. Uma possível interpretação da referência musical em De Umbris de Oiliam Lanna. Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 57-69

II - Análise da peça
De Umbris associa a simbologia das notações tradicional e contemporânea. Os símbolos da
escrita tradicional, como figuras e pausas, são mantidos, porém livres do domínio métrico dos
compassos. Sobre o aspecto temporal, a peça flui com a liberdade lírica de suas frases melódicas
intercaladas de respirações expressivas. Além dos sinais de agógica convencionais, alguns
símbolos da notação contemporânea reforçam esta qualidade, pela própria indefinição temporal
que eles sugerem.

No aspecto formal, a obra pode ser dividida em seis seções com graus diferenciados de
articulação e organizadas da seguinte maneira:

II.1 - Primeira seção


O fagote I apresenta sozinho a idéia melódica principal. Esta idéia introduz os modelos melódicos
e rítmicos que serão explorados na peça. São eles, principalmente: cromatismo, quartas justas,
trítono, gestos ascendentes de notas rápidas, vários tipos de cesuras e appoggiaturas.

II.2 - Segunda seção


O retorno da nota sib no fagote I dá a entrada para os outros instrumentos. Piano e fagote II
surgem, criando uma ambientação sonora derivada da harmonia por quartas, quintas, trítonos e
cores timbrísticas. O piano explora a ressonância de harmônicos, registros expandidos, ataque
marcato no registro agudo, enquanto o fagote II utiliza a surdina, sons de afinação variada e
multifônicos. Os motivos antecipados pelo fagote I estão aqui presentes.

No campo das alturas, o piano arpeja três notas que serão tocadas como um acorde appoggiatura
logo em seguida. De maneira semelhante, o primeiro acorde do piano será reproduzido no
compasso seguinte na forma de arpejo de notas rápidas e ascendentes. As quatro notas que o
autor acrescenta a este arpejo demarcam a formação sonora do próximo compasso. Nova
atmosfera é criada pelo ataque marcato do acorde no registro agudo do piano junto com o timbre
do fagote com surdina na nota do# como pedal. É a primeira interferência desta nota na peça. Os
números, colocados abaixo dela, indicam a posição que o fagotista deve tocá-la a fim de provocar
ligeiras modificações em sua afinação.

O fagote I reaparece, repetindo de forma semelhante o gesto do arpejo rápido do piano agora
descendente. É importante observar que as notas emitidas pelo fagote são as do primeiro
compasso do piano com a modificação de duas delas. Em seguida, o gesto inicial do piano é
retomado e a frase é repetida com algumas modificações. O fagote II reaparece, emitindo um
som multifônico no grave.

Enquanto o piano finaliza esta seção com as notas extremas dos registros por ele explorados, o
fagote I, por superposição, introduz a nova seção. A nota sib mais uma vez é valorizada articulando
a terceira seção.

II.3 - Terceira seção


Esta seção se caracteriza, sobretudo, pelo retorno da melodia introdutória do fagote I, agora
sobre a ambientação sonora gerada pela exploração timbrística e harmônica dos dois outros
instrumentos. O resultado deste acompanhamento reforça o cromatismo, quartas, quintas e trítonos

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LIMA, Cecília Nazaré de. Uma possível interpretação da referência musical em De Umbris de Oiliam Lanna. Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 57-69

da melodia. O piano cria as sombras em seus próprios acordes e, mais adiante, reflete estruturas
melódicas do fagote I. O fagote II, depois de interferir com sons multifônicos, também reproduz de
forma parecida, e em outra altura, a última estrutura do fagote I. Os dois instrumentos, piano e
fagote II, finalizam esta seção com um acorde fechado, no registro médio, resultante das notas ré-
mib-lá escolhidas para ficarem soando. Em superposição a esta sonoridade, o fagote I articula a
nova seção a partir da nota fá em crescendo e imediatamente o piano executa as notas graves
que compõem esta seção seguinte.

II.4 - Quarta seção


Após a nota fá em crescendo, o jogo de sucessão das entradas dos instrumentos caracteriza o
início desta seção. O movimento rápido, crescente e descendente do fagote I, termina bruscamente
e é seguido pela interrupção do multifônico do fagote II, ficando somente o piano. Os movimentos
rápidos, vigorosos e a dinâmica ff se destacam nesta seção.

É interessante observar o jogo entre o piano e o fagote I, a partir deste momento. Enquanto o
piano tende para a aproximação de seus sons arpejados transformando-os em acordes, o fagote
I procura expandir os seus arpejos, acrescendo-os de notas. Em sua última presença nesta seção,
este instrumento atinge a sua nota mais aguda em toda a peça, fazendo-a durar até a articulação
para a próxima seção. Sob este ré# 4, o piano arpeja retrogradamente os seus acordes anteriores
e, como sombra do fagote I, busca o registro agudo. Antes de terminar a seção, o piano antecipa
o motivo característico da próxima seção.

II.5 - Quinta seção


Após a expressiva fermata, inicia-se a quinta seção que, em contraste com a anterior, introduz o
movimento menos denso, tranqüilo, descendente e em dinâmica decrescente. O motivo antecipado
pelo piano na quarta seção é explorado por este instrumento até o final da peça. Caracterizado
pelo movimento descendente em graus conjuntos, este motivo utiliza harmonicamente a sonoridade
das quartas e trítonos e, melodicamente, segundas e terças também presentes na melodia inicial.
Intercalando com o piano, o fagote I intervém com estruturas melódicas que rememoram o início
da peça. No terceiro sistema da quinta página da partitura, o piano atinge o ponto culminante
inferior que demarca o início da última seção.

II.6 - Sexta seção


Na seqüência do ponto culminante inferior, o piano faz soar duas vezes um acorde cuja formação
faz lembrar a sonoridade de sino e que retornará algumas vezes, com sutis modificações em seu
ataque, até o final da peça. Neste momento, o fagote II emite a nota dó#3 - primeira nota que ele
emitiu na peça e novamente com modificações na afinação - que também irá perdurar até o final.

Em seguida, o fagote I emite o cromatismo inicial da peça e, a partir deste momento, traz de volta
a melodia inicial acompanhada pelo movimento descendente e grave do piano.

Neste clima e cada vez mais piano, a música vai se afastando de nossos ouvidos permitindo,
mais uma vez, a presença do silêncio tratado até aqui de forma bastante expressiva.

II.7 - Conclusão
Apesar de estar articulada em seis seções, a peça flui integralmente. Esta unidade decorre

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LIMA, Cecília Nazaré de. Uma possível interpretação da referência musical em De Umbris de Oiliam Lanna. Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 57-69

principalmente dos tipos diferenciados de articulação, da repetição de motivos em seções distintas


e da presença quase constante da melodia no fagote I.

Pelo grau de articulação, algumas seções poderiam se agrupar em outros níveis ficando
organizadas da seguinte maneira:

Tab. I - Agrupamento das seções em De Umbris

Seção I Seção II + Seção III Seção IV Seção V + Seção VI


Introdução e Piano e fagote II, Seção central, Relaxamento e
apresentação ambientação e contraste, tensão e conclusão
do fagote I retorno do fagote I ponto culminante

E ainda, uma macro-estrutura pode ser observada, derivada do crescendo e decrescendo geral
da peça em densidade, tensão e dinâmica. Esta macro-estrutura poderia estar assim
representada:

Fig. 1 - Gráfico da macro-estrutura em De Umbris

Seção I + Seção II + Seção III Seção IV Seção V + Seção VI

ppp FFF ppp

III - Referência musical: ícone, índice e símbolo em De Umbris


A maioria das interpretações que serão expostas sobre a referência musical em De Umbris,
ocorreram antes mesmo de qualquer conversa com Oiliam Lanna a esse respeito. No entanto,
quando informado sobre elas, o compositor considerou-as perfeitamente pertinentes e em acordo
com muitas idéias que influenciaram o processo de composição da peça. Essas interpretações
decorreram de um estudo acadêmico sobre processo criativo para o qual foi feita a análise
descritiva da peça. Na oportunidade de retomar esse estudo, pretendeu-se associar as impressões
iniciais aos conceitos de Peirce sobre como o signo se relaciona com seu objeto. Novos signos
foram percebidos e interpretados e o resultado desse estudo será demonstrado a seguir.

Para Peirce, qualquer signo é (em relação ao seu objeto), ao mesmo tempo, e em graus diversos,
ícone, índice e símbolo donde se conclui que, se música é signo, ela é ao mesmo tempo, ícone,
índice e símbolo.

III.1- Ícone
(analogia, equivalência, primeiridade, qualidade, sintaxe, qualissigno, possibilidade, hipótese,
sugestão.)

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LIMA, Cecília Nazaré de. Uma possível interpretação da referência musical em De Umbris de Oiliam Lanna. Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 57-69

O signo icônico, na sua relação com o objeto, aparece como simples qualidade “operando pela
semelhança de fato entre significante e significado.” (SEKEFF, 1996)

A música como ícone dela mesma se classifica como ícone puro, ou genuíno e, a esse respeito,
Maria de Lourdes Sekeff acrescenta:
“Signo da arte, o objeto do ícone (do grego ikone = imagem), música, enquanto significante puro, é
mera possibilidade, com a qualidade mantendo uma relação de analogia com o objeto que, no caso
da música, é a música mesma. E tornado o signo palpável, a música estabelece manifestações que
a privilegiam enquanto primeiridade. É desse modo que ela se caracteriza como polissêmica, não
se esgotando nunca, alimentando-se sempre de uma grande margem de ambigüidade e indefinição,
favorecendo diferentes tipos de leitura, esse aliás o seu poder. Fortemente engendrada de si mesma,
a música, tonal ou não, só se mostra, e nesse se mostrar ela acaba desautomatizando a nossa
sensibilidade, induzindo o prazer do ‘novo’, o prazer do estranhamento. Essa a sua força.”
(SEKEFF, 1996).

Como são semelhanças, os ícones não podem afirmar nada. Eles podem apenas sugerir, pois
eles têm uma infinidade de representações.
“No entanto, porque não representam efetivamente nada, senão formas e sentimentos (visuais,
sonoros, táteis, viscerais...), os ícones têm alto poder de sugestão. Qualquer qualidade tem, por
isso, condições de ser um substituto de qualquer coisa que a ele se assemelhe. Daí que, no
universo das qualidades, as semelhanças proliferem. Daí que os ícones sejam capazes de produzir
em nossa mente as mais imponderáveis relações de comparação.” (SANTAELLA, 1983)

Os signos icônicos podem ser degenerados, os quais Peirce denomina hipoícones, e classificados
da seguinte maneira: imagem, diagrama e metáfora.

III.1.1 - Imagem
Como imagem, o ícone enuncia similaridade na aparência e propõe imitações.
“As imagens participam de qualidades simples, ou primeiras primeiridades.”(PIGNATARI, 1970: 29).

De Umbris (lat.) se traduz como “De sombras”. Jung empregou o termo sombra para a parte
inconsciente da nossa personalidade. Em O homem e seus símbolos, M.-L von Franz explica
sobre a sombra:
“não é o todo da personalidade inconsciente: representa qualidades e atributos desconhecidos ou
pouco conhecidos do ego-aspectos que pertencem sobretudo à esfera pessoal e que poderiam
também ser conscientes. Sob certos ângulos, a sombra pode, igualmente, consistir de fatores
coletivos que brotam de uma fonte situada fora da vida pessoal do indivíduo”,

e acrescenta:
“No inconsciente encontramo-nos, infortunadamente, na mesma situação de quem pisa numa
paisagem lunar: todos os seus conteúdos estão manchados, enevoados e mesclados uns com os
outros, não se sabendo nunca exatamente o que é ou onde está determinada coisa, ou onde ela
começa ou acaba (chama-se isto ‘contaminação dos conteúdos inconscientes’)” (JUNG, 1977).

Em De Umbris, de maneira geral, o compositor utiliza recursos musicais que nos remetem a esta
idéia de inconsciente. A dinâmica predominantemente piano, a própria sonoridade do fagote II,
que interfere como que sujando, ou atrapalhando, as intervenções do fagote I, associada à

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atmosfera intimista criada pelas ressonâncias do piano, às distorções de algumas notas e às


4
idéias melódicas e rítmicas que retornam (A’) , podem sugerir esse estado de indeterminação,
essa “paisagem lunar”.

Como os tímpanos representam os trovões na sexta sinfonia de Beethoven e o canto de pássaros


geralmente se associam a melodias na flauta, a sonoridade de sino (D), inserida na última seção
da peça De Umbris, pode também ser considerada ícone dessa natureza, pela similaridade
sonora com o objeto que representa. Outras representações de sinos, podem ser encontradas
no prelúdio Catedral Submersa de Debussy e em Noite de Solesmes da série Poesilúdios para
piano de Almeida Prado.

III.1. 2 - Diagrama
Em sua função diagramática, “a figuração sígnica não é operada por semelhança cabal e sim
pelo aspecto figurativo do discurso” (SEKEFF, 1996). Os diagramas “representam algo por
relações diádicas análogas em algumas de sua partes.” (PIGNATARI, 1979)

Podemos observar essa figuração icônica diagramática em La Mer de Debussy. O mar, seus
fluxos e reflexos, ou seja, suas qualidades de movimento, são representados musicalmente
principalmente pela polirritmia, hemíolas e a ondulação do tema.

Em De Umbris, a figuração de acordes refletidos em arpejos (A) e a imitação de fragmentos


melódicos e rítmicos de um instrumento para o outro (B) foram consideradas como possíveis
representações diagramáticas, por suas semelhanças em qualidades formais com sombra, esta,
em seu significado de imagem que acompanha, que persegue.

Outra iconicidade diagramática pode ser percebida no gesto, predominantemente descendente,


do piano em colcheias por graus conjuntos nas duas últimas seções da peça (C). Este gesto, por
sua qualidade de movimento, se associa à idéia de uma escada que conduz algo nessa direção
descendente.

III.1.3 - Metáforas
“Metáforas são, portanto, o resultado de um duplo processo: (1) a representação do caráter
representativo de um signo; e (2) a interação dessa primeira representação com outro signo.”
(MARTINEZ, 1997). São representações através de paralelismo, envolvem metalinguagem e se
dividem em: paráfrase, citações e referência alegórica.

Na paráfrase, o paralelismo é traçado na própria materialidade musical como por exemplo, a


imitação de um estilo de um compositor ou de um período. Reconhece-se o original em seus
traços de identidade.

Na citação, a representação se baseia em índice, ou seja, remete a um trecho de obra que existe
incluindo-o em outro discurso de maneira literal.

4
As referências à partitura estarão indicadas por letras entre parênteses.

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Na referência alegórica o caráter representativo do representame é uma organização simbólica


em que há uma substituição do original por algo que com ele estabelece elos de significado.
Musicalmente, a referência alegórica pode utilizar uma característica típica de um gênero ou forma
e força essa característica a interagir com outros signos.

Em De Umbris, a melodia inicial do fagote foi considerada como uma referência alegórica de
melodias do gregoriano. A similaridade se dá, principalmente, por meio da monodia cuja rítmica
é expressivamente guiada por uma idéia subentendida, uma reflexão. Os seccionamentos
assimétricos da linha melódica com fermatas e cesuras de durações diferenciadas auxiliam a
representação. No entanto, a distorção do modelo é evidente pois, ao contrário do gregoriano, o
sistema utilizado não é modal e a linha melódica é instrumental, portanto não se guia por um texto
mas, como já dito, por uma reflexão.

Outra possível ligação alegórica com o passado pode ser percebida. Na análise descritiva da
peça nota-se uma estruturação formal em seis partes (indicadas em algarismos romanos na
partitura). Esta divisão, em seis seções (exordium, propositio, narratio, confutatio, confirmatio e
peroratio), foi um dos recursos da retórica (originalmente associada ao discurso literário) utilizado
pelos músicos antigos, principalmente no período barroco, e pode ser encontrada em algumas
árias de Bach (por exemplo, a ária 63, para soprano, da Paixão Segundo São João). O compositor,
crítico e teórico alemão, Johann Matteson, em seu tratado de 1739, O Mestre Capela Completo,
comenta a esse respeito que, “nos bons oradores, você encontra estas partes ou alguma delas e,
mesmo que inconscientemente, estão presentes no discurso.” (MATTESON, 1991).

A função de cada uma dessas seções pode ser assim resumida:

Exordium – Introdução, geralmente melódica, cujo principal objetivo é preparar o ouvinte e


incentivá-lo para a atenção.

Propositio – Compreende o conteúdo ou o objetivo do discurso dos sons.

Narratio – É ao mesmo tempo uma notícia ou uma narração através do qual o pensamento musical
é deixado claro.

Confutatio – É a seção das modulações, dissonâncias ou contrastes.

Confirmatio – Geralmente ela aparece sob forma de repetições e resoluções mas não devem
ser entendidas como reprises comuns.

Peroratio – É o final, ou a saída, do discurso dos sons que pode ou não ter sido ouvido antes e
deve sugerir um movimento de reflexão.

Apesar do discurso musical de De Umbris se diferenciar do estilo barroco, essas seções,


sobretudo algumas delas, podem ser nitidamente percebidas.

III.2 - Índice
(Secundidade, existente, sinsigno, semântica, contigüidade, referência, ligação). O índice aponta

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para alguma coisa com a qual está factualmente ligada. Toda música é índice, porque aponta
para um contexto histórico, cultural do qual ela emana.

“Qualquer existente concreto e real é infinitamente determinado como parte do universo a que pertence.
Desse modo, uma coisa singular funciona como signo porque indica o universo do qual faz parte.
Daí que, todo existente apresenta uma conexão com o todo do conjunto de que é parte”.
(SANTAELLA, 1983)

Pela possibilidade de ter alguma qualidade comum com o objeto, o índice envolve um ícone, mas
o que o caracteriza como índice é a sua relação direta com o objeto.

Como os ícones, os índices podem ser genuínos (pelo fato de existirem em sua singularidade) e
degenerados. Os signos degenerados não são existentes e sim referências – eles representam
o índice (são legissignos) e são chamados de sub-índices ou hiposemas. São eles:

III.2.1 - Hiposemas de primeiro nível: se referem ao objeto pela relação comum de qualidade.
O uso do Fagote como instrumento predominantemente solista e explorado em sua possibilidades
timbrísticas e expressivas e de, por isso mesmo, atrair o interesse dos fagotistas, pode ser
considerado como índice de primeiro nível desse mesmo instrumento.

Acredita-se também que, através de um estudo mais profundo sobre o estilo do compositor Oiliam
Lanna, poderíamos considerar esta peça como índice de sua produção. É importante acrescentar
a opinião do compositor Eduardo Bértola5 a esse respeito. De posse de algumas obras de Oiliam
Lanna, Bértola comentou que percebia uma série de elementos musicais que o compositor vinha
trabalhando e que De Umbris, na opinião dele, era uma obra em que Oiliam tinha mergulhado de
forma mais funda e que dela poderia-se extrair coisas significativas, coisas individuais, coisas
de marca pessoal e ainda, que esta peça deveria ser considerada um marco na produção do
compositor.

III.2.2 - Hiposemas de segundo nível: representação em que se refletem todas as condições


técnicas e culturais. O uso das potencialidades timbrísticas dos instrumentos, de texturas variadas,
do tempo fluente desprendido de métricas regulares e determinadas, de alegorias com o passado,
a ausência de um sistema determinante e a liberdade de expressão foram considerados como
índice de segundo nível do amplo espectro de possibilidades musicais do século XX. De acordo
com José Ferreira dos Santos,

“em literatura, como nas demais artes, o pós-modernismo é um monte de estilos (pluralismo)
convivendo sem briga no mesmo saco. Não há mais hierarquia, este não é o melhor nem o preferível
àquele. E, claro, não há fórmula única. Por isso jóias pós-modernas pintam, bem diferentes umas
das outras, por toda parte.” (SANTOS, 1986).

III.2.3 - Hiposemas de terceiro nível: de caráter simbólico são baseados em convenções.


Nenhuma associação foi estabelecida com esses índices.

5
Eduardo Bértola (1939-1996), compositor argentino, foi professor do curso de Composição da Escola de Música
da UFMG, em Belo Horizonte, no período de 80 a 93.

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LIMA, Cecília Nazaré de. Uma possível interpretação da referência musical em De Umbris de Oiliam Lanna. Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 57-69

III.3 - Símbolo
(Convenção, lei, terceiridade, legissigno e réplica)

Peirce, ciente das várias concepções dessa palavra, preferiu utilizar o significado da etimologia
grega que pode se resumir em, “qualquer coisa usada para representar outra, especialmente
objeto material que serve para representar qualquer coisa imaterial.”6

O signo, na categoria de símbolo, se apresenta como uma lei. Ele se relaciona ao objeto, não por
similaridade ou por uma conexão de fato mas, sobretudo, por uma convenção coletiva ou hábito
que determina que ele represente esse objeto. “O processo de promover referência pela música
é uma forma de semeiose simbólica. Uma intenção musical programada quando dirigida para
intérpretes capazes, age como um símbolo” (MARTINEZ, 1997:142). E ainda, “música que, por
tradição ou concepção de um compositor, faz uso desse tipo de representação, faz isso para
representar algo e para ser interpretada como tal. O símbolo apenas existe para representar
algo, portanto a representação do signo é intrinsecamente teleológica.” (Idem, ibidem).

Da mesma forma que ícone e índice, o símbolo pode ser genuíno quando se apresenta como uma
idéia geral que representa um objeto também geral como, por exemplo, as canções de natal ou
hinos. Eles também podem ser degenerados e como tais, os ícones e índices podem ser
interpretados. São assim classificados:

III.3.1 - Símbolo singular (índices podem ser interpretados indiretamente como símbolos
singulares): representa um objeto individual existente, cuja interpretação não é geral mas sim
particular (hino de um clube de futebol, gingles etc.).

III.3.2 - Símbolo abstrato (signos icônicos podem ser interpretados indiretamente como símbolos
abstratos): quando representa um caráter, uma qualidade particular.

A presença do sino, iniciando a VI seção da peça, pode ser considerada um signo simbólico
abstrato, principalmente sabendo-se que o compositor, quando coroinha em sua infância, teve
experiências pessoais diretas com a representação do soar dos sinos associada à morte que,
por sua vez, é também um dos significados da palavra sombra. No entanto, de acordo com as
idéias expressas pelo compositor, morte aqui significa – como o inconsciente – o desconhecido,
o outro lado. Julgando apropriado, acrescento aqui as palavras de Peirce selecionadas por José
Luiz Martinez ao expor sobre símbolo: “Como palavra, os símbolos vivem na mente daqueles que
os usam, mesmo que estejam adormecidos em suas memórias.”(MARTINEZ, 1997).

Também, como símbolo universal, a representação da morte tem seu significado afirmativo (como
interpretado positivamente, por exemplo, no 13º arcano do Tarô), simbolizando a suprema
libertação, a transformação de todas as coisas, a marcha da evolução. Reforçando esta idéia,
podemos observar que o sino soa sete vezes até o final da peça.

6
Esta definição etimológica pode ser encontrada no Michaelis- Moderno Dicionário da Língua Portuguesa, 1998.

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No sistema simbolista, os números não são meras expressões quantitativas, mas sim idéias –
força com características expressivas. Dessa forma, o número sete representa a ordem completa,
período, ciclo. Tem um valor especial por ser composto da união entre o ternário e o quaternário
e é a gama essencial dos sons, das cores e das esferas planetárias.

Também interpretada como símbolo abstrato, a representação da escada provavelmente está


associada ao seu simbolismo de comunicação entre os diversos níveis de verticalidade como:
terra-céu, superior-inferior, consciente-inconsciente, sendo este último o significado mais provável
na peça. A sua direção descendente pode estar associada às investidas às zonas mais profundas
localizadas no inconsciente. Para Jung, cada um de nós, na busca do auto-conhecimento, deve
voltar para dentro de si e explorar o seu próprio inconsciente. Esta expressão, segundo este
autor, está representada na tela O filósofo com livro aberto de Rembrant (1633), na qual podemos
notar a presença da escada. Aniela Jaffé, em O homem e seus símbolos, acrescenta sobre a
forte função da consciência nesse processo, e afirma:
“A consciência não é apenas indispensável como contrapeso ao inconsciente, e não é só ela que dá
significado à vida. Tem também uma função eminentemente prática. Podemos, da mesma maneira
que vemos o mal no mundo exterior, nos nossos vizinhos, ou em outros povos, tomar consciência
dele também nos conteúdos nefastos de nossa própria psique, e este conhecimento seria o primeiro
passo para uma radical mudança de atitude para com o nosso próximo.” (JUNG, 1977).

IV - Conclusão
É importante ressaltar que a maioria dos signos listados neste estudo foram classificados como
signos icônicos, portanto se apresentam como sugestões, como similaridades com seus objetos.
E ainda:
“o objeto do ícone, portanto, é sempre uma simples possibilidade, isto é, possibilidade do efeito de
impressão que ele está apto a produzir ao excitar nosso sentido. Daí que, quanto mais alguma
coisa a nós se apresenta na proeminência de seu caráter qualitativo, mais ela tenderá a esgarçar e
roçar nossos sentidos.” (SANTAELLA, 1983).

No entanto, não hesitando em considerar a possibilidade do inconsciente ser interpretado como


o principal objeto de representação na peça, esses ícones parecem fortalecer essa representação
se revelando, alguns deles, também como signos simbólicos. As sombras, as referências
alegóricas com o passado, o sino que toca sete vezes, a escada descendente, a atmosfera, a
sonoridade expressiva do fagote I e outras potencialidades pouco exploradas neste instrumento,
parecem se associar perfeitamente ao universo obscuro e, ao mesmo tempo, aberto a novas
possibilidades dessa parte de nossa personalidade.

V- De Umbris, informações complementares


De Umbris foi composta em 1992, por Oiliam Lanna , para três instrumentistas (Fg.I, Fg.II e piano)
e dedicada a Benjamin Coelho7 . A sua estréia foi em 6 de maio do mesmo ano, no Teatro Nansen
Araújo – Sesiminas, durante o 2o Encontro Latino-americano de Compositores. Nesta

7
Ex-professor de fagote na EMUFMG, Benjamim Coelho é doutor, neste instrumento, pela Universidade de Iowa
(EUA). Atualmente, faz parte do corpo docente desta instituição.

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apresentação, o intérprete, Benjamin Coelho, executou a primeira versão para fagote e fita gravada.
A versão com os três instrumentistas, ao vivo, foi executada pela primeira vez, também em maio
do mesmo ano, na Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais – EMUFMG, em
Belo Horizonte. Em julho de 1992, esta versão foi apresentada durante o Festival de Música de
Londrina, no Paraná, interpretada por Elione Medeiros (Fg. I), Mauro Mascarenhas (Fg. II) e Oiliam
Lanna (piano). Esta peça tem sido executada nos EUA pelo próprio Benjamin Coelho e faz parte
do repertório musical para fagote da Universidade de Iowa. Foi gravada em Belo Horizonte, na
interpretação de Benjamin Coelho (Fg. I), Mauro Mascarenhas (Fg. II) e Oiliam Lanna (piano),
com vistas à inclusão em um CD com obras de compositores ligados à UFMG.

VI – Referências bibliográficas
CIRLOT, Jean-Eduardo. Dicionário de símbolos. São Paulo: Editora Moraes, 1984.
JUNG, Carl G. O homem e seus símbolos. (Edição especial brasileira). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977.
LIDOV, David . “Mind and Body in Music”, In: Semiotica ed. convidado Eero Tarasti, 1987, vol. 66, no. 1/3: 69-97.
MARTINEZ, José Luiz. Semiosis in Hinustani Music. Helsinki: Acta Semiotica Fennica V, 1997, cap.II; p. 140-147.
______ “Uma possível teoria semiótica da Música”. Cadernos de Estudos: Análise Musical 5. São Paulo: Atravez,
1993, p. 73-83.
MATTESON, Johann. (Cap. XIV) “Von der Melodien Einrichtung, Ausarbeitung und Zierde”, In: Der Vollkommene
Capellmeister. Hamburg: verlerger Christian Herold. Reprint: Kasset: Bärenreiter- Verlag Karl Vktterle GmbH &
Co-KG, 1991.
NATTIEZ, Jean-Jacques. Music and discourse: Towards a Semiology of Music, trans. by C. Abbate. Princeton University
Press, cap. I (“A theory of semiology”), 1990: 3-37.
______Semiologia Musical e pedagogia da análise. OPUS 2, Revista da Associação Nacional de Pesquisa e
Pós-graduação em Música-ANPPOM. Ano II, no 2, junho de 1990.
PIGNATARI, Décio. Semiótica e Literatura: icônico e verbal, Oriente Ocidente. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979,
cap. 2; 21-52
SANTAELLA, Lúcia. O que é Semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1983 - (Coleção Primeiros Passos).
SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 1986 – (Coleção Primeiros Passos).
SEKEFF, Maria de Lourdes. Curso e dis-curso do sistema musical (tonal). São Paulo: Annablume, 1996.

Cecília Nazaré de Lima, bacharel em Composição pela Escola de Música da Universidade Federal de Minas
Gerais, em Belo Horizonte, é Professora Auxiliar/DE do Departamento de Teoria Geral da Música/DTGM desta
instituição, ministrando as disciplinas Contraponto e Fuga, Percepção Musical e Harmonia. Atualmente, está na
fase final do curso de mestrado, no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas – IA/UNICAMP, sob a
orientação da Profa. Maria Lúcia Senna Machado Pascoal. Na linha de pesquisa Fundamentos teóricos das
Artes/Artes Musicais, desenvolve o estudo sobre a fase dodecafônica de Guerra-Peixe.

69
LANNA, Oiliam. Partitura completa de De Umbris. Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 70-77

70
LANNA, Oiliam. Partitura completa de De Umbris. Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 70-77

71
LANNA, Oiliam. Partitura completa de De Umbris. Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 70-77

72
LANNA, Oiliam. Partitura completa de De Umbris. Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 70-77

73
LANNA, Oiliam. Partitura completa de De Umbris. Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 70-77

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De Umbris

Sugestões de dedilhados do Prof. Benjamin Coelho

1 2 3

mais pressão na
4 5 embocadura 6

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As Valsas Humorísticas de Alberto Nepomuceno:


uma edição crítica

Luiz Guilherme Duro Goldberg (UFPel)


e-mail: edgberg@nutecnet.com.br

Resumo: O presente artigo é a apresentação da edição crítica das Valsas Humorísticas op.22 de Alberto Nepomuceno,
sua única obra para piano e orquestra, bem como dos critérios editoriais utilizados em sua realização. Após a
abordagem de considerações pertinentes à questão partitura-obra musical, as Valsas op.22 são situadas em seu
contexto histórico e seu vínculo com o nacionalismo musical. Segue-se a identificação das fontes localizadas, seu
estudo de autenticidade, hierarquização e apresentação dos critérios editoriais.
Palavras-chave: Alberto Nepomuceno, Valsas Humorísticas op.22, composição, performance musical, edição crítica

Alberto Nepomuceno’s Valsas Humorísticas:


a critical edition
Abstract: This study aims at presenting a critical edition of Alberto Nepomuceno’s Valsas Humorísticas op. 22 as
well as a discussion of criteria and sources used in the restoration process of his only work for piano and orchestra.
After pertinent questions such as philosophical approaches to the editing process as well as practical considerations
on matters of editorial choices, it deals with early manifestations of nationalism in Brazilian music as displayed in
the works of Nepomuceno. Finally, this paper compiles and analyzes the sources for the proposed edition regarding
their degree of reliability and hierarchy. Tables illustrating choices and editorial decisions follow each one of the six
Valsas Humorísticas.
Key words: Alberto Nepomuceno, Valsas Humorísticas op.22, composition, music performance, critical edition

1 – Introdução
Este artigo tem por objetivo apresentar os critérios editoriais utilizados na realização da edição
crítica das Valsas Humorísticas op.22 para piano e orquestra de Alberto Nepomuceno.

A necessidade de uma partitura e a avaliação de sua importância têm sido tema de muitos
estudiosos. Entre os séculos XVIII e o início do XIX, houve uma ruptura significativa na concepção
musical e conseqüente função da partitura. Enquanto de um lado a tradição da ópera italiana de
Rossini colocava a partitura a serviço da performance, onde aquela – que poderia variar conforme
as necessidades – seria uma receita para esta, logo impossibilitando uma versão definitiva da
obra, de outro, Beethoven, ao considerar a partitura como um texto musical inviolável, mudava o
enfoque: a performance deveria ser fiel ao texto, o qual deveria ser decifrado pela exegese
interpretativa (DAHLHAUS, 1989).

Com este ponto de partida, observa-se que as asserções quanto à importância do texto musical
têm sido problematizadas em função da relação deste com a obra musical propriamente dita.
Para Roman Ingarden, a obra musical não pode ser reduzida à sua partitura. Para esse autor, a
partitura é um esquema que designa um perfil ou face, ou seja, exibe um certo grau de aproximação

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com sua concretização, sendo esta um produto de convenções estabelecidas entre os membros
de uma comunidade ou praticantes dessa tradição. Também a considera “uma maneira de revelar
os desejos do compositor” (INGARDEN, 1996, p.39). Salienta, ainda, que a obra sempre
transcenderá a partitura, embora esta garanta sua identidade no decorrer da história, desde que
suas convenções sejam conhecidas e associadas ao seu período histórico.

Carl Dahlhaus, seguindo na mesma linha de Ingarden, acrescenta que “como um texto, a obra
não pode existir independentemente do processo hermenêutico pelo qual tentamos entender seu
significado” (DAHLHAUS, 1982, p. 25-48). Jean-Jacques Nattiez considera que a partitura “é o
que torna a obra executável e reconhecida como entidade e possibilita que sobreviva através
dos séculos” representando algo mais que um mero esquema da obra, podendo ser comparada
a uma transcrição fonológica ao reverso (NATTIEZ, 1990).

É notório que a possibilidade do surgimento do texto se deu pela codificação das convenções
sociais de expressão e posterior registro para fixação mnemônica através dos séculos. Dessa
forma, o texto possui um íntimo relacionamento com a obra em si. Considerando-se o texto como
a codificação das convenções de expressão de determinada época, isto implica que muitas das
características do estilo preponderante ali se encontrem, não só convenções harmônicas, de
instrumentação, de escrita, mas também as convenções de execução e portanto de interpretação.

No entanto, por mais problemática que seja a relação obra musical-partitura, é inquestionável o
valor histórico que esta possui. Como tal, sua vinculação à tradição da música ocidental assume
um papel preponderante na própria investigação histórica e sua interpretação necessita uma
metodologia específica diversa daquela do método científico. Hans-Georg Gadamer alerta que
“o fato de sentirmos a verdade numa obra de arte é o que dá importância filosófica à arte, que se
afirma contra todo e qualquer raciocínio [científico]” (GADAMER, 1997, p.33).

A perspectiva de que todo o trabalho editorial se baseia nas fontes do objeto pesquisado e de
que estas fontes são uma espécie de testemunhas da história é fundamental. Sendo assim, a
confiabilidade das mesmas deve ser avaliada para o estabelecimento da verdade que o autor
colocou em seu texto.

Antes que as fontes sejam classificadas e avaliadas, é necessário que sejam investigadas e
identificadas, tarefas básicas para a confirmação da autoria e determinação da legitimidade das
fontes em questão. O estabelecimento do texto crítico final deve levar em consideração que todo
ato investigativo tem embutido, em si, conceitos prévios que podem ou não induzir ao erro na
avaliação das fontes.

Gadamer considera que um dos preconceitos que induzem ao erro é o de autoridade. Ao considerar
que a autoridade se fundamenta no reconhecimento e no conhecimento, estabelece que “o
reconhecimento da autoridade está sempre ligado à idéia de que o que a autoridade diz não é
uma arbitrariedade irracional, mas algo que pode ser inspecionado principalmente. É nisso que
consiste a essência da autoridade” (GADAMER, 1997, p.420).

Ao considerar que a tradição e a herança histórica são as grandes formadoras dos preconceitos de
autoridade, Gadamer também alerta que a fixação por escrito contém um momento de autoridade
determinante. “O escrito tem a palpabilidade do que é demonstrável, é como uma peça comprobatória.

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Torna-se necessário um esforço crítico especial para que nos liberemos do preconceito cultivado a
favor do escrito e distinguir entre opinião e verdade” (GADAMER, 1997, p.409-410).

Isto posto, como é possível liberar-se dos preconceitos? Gadamer tem a resposta: a formulação
de perguntas suspende os preconceitos ao manter as possibilidades abertas. Em nosso caso
editorial, como estabelecer as fontes verdadeiras ou as verdades que refletirão o texto final da
obra? Em caso de fontes que apresentem versões muito distintas, que critério será o mais
apropriado no estabelecimento de uma versão final? Como discernir entre as indicações de uma
dada execução e as originais do autor? Estas são algumas questões importantes para o
estabelecimento de critérios editoriais.

Assim, por exemplo, a observação da caligrafia poderá ser útil na identificação de seu autor; a
orquestração trará luz às possibilidades apresentadas pelos grupos orquestrais da época; a
localização das fontes auxiliará na determinação da receptividade que a obra obteve, ao identificar
possíveis apresentações públicas; a análise das estruturas musicais reforçará o conhecimento
da prática composicional de então, particularmente a de Alberto Nepomuceno.

Além da investigação histórica, o conhecimento da natureza semiótica da notação musical é


fundamental pois a qualificação das fontes também se baseia nessas convenções semióticas,
definindo aí suas funções. Nas palavras de James Grier, “a função da fonte depende de sua
habilidade de comunicar via suas convenções semióticas, as quais podem mudar com o tempo”
(GRIER, 1996, p.41).

Isto posto, vemos a importância da tarefa do editor: editar o texto musical de acordo com as
convenções de expressão da época em que foi escrito e de acordo com a intenção criativa do
autor para a interpretação de sua obra. Grier salienta que “editar, portanto, consiste de uma série
de escolhas eruditas, escolhas informadas criticamente; em resumo, o ato da interpretação. Editar,
além disso, consiste na interação entre a autoridade do compositor e a autoridade do
editor” [grifo nosso]. (GRIER, 1996, p.2).

Essa autoridade do editor reside no conhecimento e competência em realizar avaliações nos


tipos de fontes apresentadas e na determinação do que elas transmitem. Dessa forma, Grier
afirma que

“Aqui encontra-se o ponto de interação entre a autoridade do compositor, como transmitido nas
fontes, e a autoridade do editor no decorrer da avaliação e interpretação dessas fontes. Editar,
portanto, compreende um balanço entre essas duas autoridades. Além disso, o balanço exato
presente em qualquer edição particular é o produto direto do engajamento crítico do editor com a
peça editada e suas fontes.” (GRIER, 1996, p.3).

É importante frisar que essas avaliações se baseiam na contextualização das fontes existentes
com relação à situação histórica que lhes deu origem e que devem moldar as decisões editoriais.
James Grier considera como sendo quatro os princípios da natureza da edição musical:

“1) A edição é crítica por natureza; 2) Criticismo, incluindo a edição, é um questionamento histórico;
3) Editar implica a avaliação crítica do conteúdo semiótico do texto musical; essa avaliação é
também um questionamento histórico; 4) O árbitro final da avaliação crítica do texto musical é a
concepção de estilo musical do editor; essa concepção, também, é baseada no entendimento
histórico da obra.” (GRIER, 1996, p.8).

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Dessa forma, a contextualização das Valsas Humorísticas e conseqüente avaliação das fontes
existentes, tornará clara a relação do autor com seu meio social e cultural, bem como fornecerá
subsídios para o entendimento do trabalho criativo de Nepomuceno. Cremos que este trabalho
poderá contribuir para mostrar a forma pela qual o autor molda suas idéias musicais e o real valor
dessa obra no conjunto de sua produção artística.

2 – As Valsas Humorísticas
O piano teve uma posição central na vida musical de Alberto Nepomuceno. Sua produção para
esse instrumento pode ser agrupada em Música para Piano Solo (24 obras para duas mãos e 7
para a mão esquerda), Música para Piano e Orquestra (Valsas Humorísticas) e Arranjo para
Dois Pianos (Série Brasileira e Sinfonia em sol menor).

O conjunto de seis Valsas intitulado Valsas Humorísticas foi concebido em data incerta, mas
anterior à quando de sua estréia, ocorrida a 29 de fevereiro de 1902 no Club dos Diários de
Petrópolis, tendo a pianista Walborg Bang Nepomuceno como solista e o autor como regente.
Cabe salientar que no Catálogo Geral de Alberto Nepomuceno (CORRÊA, 1996), consta que
essa obra teria sido composta em 1902 e estreada a 10 de junho de 1904 pelo pianista Ernest
Schelling no Theatro Lyrico Fluminense. Segundo a Enciclopédia da Música Brasileira
(MARCONDES, 1998), a data de composição teria sido 1903. Essas discrepâncias de informação
podem ser corrigidas conforme demonstrado em publicação jornalística de 2 de março de 1902:
“... Nepomuceno fez executar, pela primeira vez, cinco Valsas Humorísticas ...”.1

Também por intermédio de crônicas ou críticas publicadas nos jornais da época, chegamos a
referências às apresentações posteriores. Dessa forma, a segunda audição ocorreu na casa da
família Betim Paes Leme, a 17 de setembro de 1903, em uma “festa musical”, tendo a pianista
Walborg Nepomuceno sido acompanhada por orquestra regida novamente pelo autor; a terceira
audição teve lugar no Theatro Lyrico Fluminense a 10 de junho de 1904, onde o autor regeu a
orquestra acompanhando o pianista Ernest Schelling nas Valsas nos 1, 2, 4 e 6; a quarta audição
teve como palco o auditório do Instituto Nacional de Música, novamente com a pianista Walborg
Nepomuceno regida pelo autor, a 28 de agosto de 1906.

Originalmente composta para piano e pequena orquestra, (2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes,


2 fagotes, 2 trompas, tímpano e cordas), já em sua estréia há indícios de que o autor ampliaria a
orquestração. Na crônica realizada sobre esse evento, consta

“...mas sente-se que ellas teriam tudo a ganhar com uma orchestração mais completa, em que o
compositor pudesse tirar partido dos timbres de todos os instrumentos. É sem dúvida sob essa
forma que Nepomuceno tornará a fazer applaudir as suas caprichosas Valsas Humorísticas...”
(GLOSAS, 1904).

Reforçando essa idéia, no manuscrito dessa primeira versão o autor rascunha a inclusão de
tamburo, na página 82, e triângulo, nas páginas 20 e 95. O indício da ampliação da orquestração
pode ser observado em crítica de Carlos Meyer publicada a 30 de agosto de 1906: “Pena foi que
o piano mal se ajustasse com a afinação da orchestra. Quando este era abafado pela massa
orchestral,...” (MEYER, 1906).

1
Publicação obtida com Sérgio Nepomuceno A. Correa. Infelizmente o periódico não pode ser identificado.

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Dessa forma, e reforçado pela ausência de crônica ou crítica anterior que se refira a essa questão,
pode-se especular que a ampliação da orquestração com mais 2 trompas, 2 trompetes, tamburo,
prato e triângulo, tenha ocorrido entre 1902 e 1906.

Não pode ser esquecida a transcrição para dois pianos realizada pelo pianista Arthur Napoleão.
A data dessa versão é incerta, mas sua estréia ocorreu a 7 de julho de 1903 no Club dos Diários,
em Petrópolis, tendo como intérpretes Arthur Napoleão e Alfredo Bevilacqua. A única
edição existente das Valsas Humorísticas é justamente a dessa versão, publicada pela
Sampaio Araújo & Cia., provavelmente em 1910.

Numa observação atenta das partituras e confrontando-se as datas prováveis de concepção,


conclui-se que: a primeira versão, para orquestra reduzida, tem como data limite 1902; devido à
semelhança entre o material encontrado na versão com orquestração ampliada e a versão transcrita
para dois pianos e levando-se em consideração que esta teve estréia em 1903, ambas versões
podem ser situadas entre 1902 e 1903. Como a versão para dois pianos baseia-se na versão
com orquestração ampliada, evidenciado principalmente na Valsa V, também pode ser concluído
que essa é anterior àquela transcrita para dois pianos. Com base nessas evidências, parece-
nos que a situação temporal das Valsas Humorísticas está desvendada, sendo este um parâmetro
importante na classificação das fontes e ponto fundamental para uma edição crítica.

A impressão causada pelas Valsas Humorísticas na audiência está bem documentada, sendo o
caráter nacional da obra ou sua relação com o temperamento do povo brasileiro citado por quase
todos os críticos. Na crítica de sua estréia, de 1902, consta “...são todas interessantes e
extremamente caprichosas. Há nellas, certamente, passagens brilhantes, mas de vez em quando
surgem phrases repassadas de tristeza e indolência em que transparece a alma melancólica do
artista brasileiro.” (GLOSAS, 1904).

Grande repercussão teve o Concerto Bauer, Casals, Schelling e Arthur Napoleão, no Theatro
Lyrico a 10 de junho de 1904. Mais uma vez o caráter nacional é observado pelo crítico: “... e
Nepomuceno, com suas bellas Valsas Humorísticas, penetradas de uma amorosa languidez que
lhes dá um caráter tão genuinamente brasileiro” (CHRONICA MUSICAL, 1904).

No Correio da Manhã de 12 de junho de 1904, sobre o mesmo concerto, mantém-se a tônica do


caráter nacionalista: “As Valsas Humorísticas, de Nepomuceno, o compositor brasileiro que em
suas inspirações faz-nos sentir qualquer coisa de nossa nacionalidade, são merecedoras de
francos louvores. Ao lado do humour que as caracterisa, acha-se a distincção que encanta.”
(CHRONICA MUSICAL, 1904).

Digno de nota é o texto anexo à partitura compilada por Sérgio Nepomuceno Alvim Correa da
versão de orquestração ampliada: “Em algumas delas, a 2ª e a 4ª, por exemplo, aparecem
nitidamente traços de sutil brasilidade, o que não é de se estranhar levando-se em conta que
Nepomuceno foi, como bem acentuou Camargo Guarnieri, ‘o pai do nosso nacionalismo
musical’.” 2

2
Não foi possível definir a fonte dessa citação.

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Com base nessas citações, observa-se que as posições ideológica e estética estão intimamente
relacionadas. Estaria o sucesso dessas Valsas Humorísticas vinculado à posição ideológica de
seu autor? Uma análise mais apurada dessa obra deixa claro que os elementos musicais nela
contidos não são os normatizados por Mário de Andrade para o que considera características da
brasilidade, e sim utiliza uma retórica musical universalista. Poder-se-ia argumentar que, como
afirma Boris Asaf’ev, não seria a citação mas a “entonação” que constituiria o caráter nacional
em música (DAHLHAUS, 1989, p.38). Mas o que vem a ser esta entonação? Para os autores
das críticas acima citadas, esse caráter parece estar vinculado ao que é considerado característica
comportamental do povo brasileiro, isto é, a tristeza, a indolência, a alma melancólica e a amorosa
languidez. Certamente refere-se a um posicionamento político-estético.

Essa questão nos coloca frente ao problema do nacionalismo como fator estético e sua recepção.
Dahlhaus observa que a significação e o colorido nacionais de um fenômeno musical estão
diretamente vinculados à forma que o público os recebe, e isto seria um fato relevante. Para esse
autor, “... se um compositor tenciona que uma obra musical possua um caráter nacional e a
audiência acredita que a obra possui esse caráter, este é um fato estético que deve ser aceito,
mesmo que uma análise estilística falhe na produção de quaisquer evidências” (DAHLHAUS,
1980, p.86).

As audições das Valsas Humorísticas sempre causaram certa perplexidade nos críticos e público
face o ineditismo apresentado. A virtuosidade exigida na performance da obra é ressaltada por
Carlos Meyer, em 30 de agosto de 1906, ao se referir à audição dessas Valsas no Instituto Nacional
de Música:

“Essa composição, já familiar ao nosso publico, é o humorismo endiabrado de um homem sério que
perde a tramontana e amontoa quanta difficuldade lhe acode aos dedos ageis, sem cuidar si neste
mundo sublunar, há outros dedos que aguentem essas cabriolas musicaes, que põem tonto um
pobre pianista.” (MEYER, 1906).

Nepomuceno ao citar trechos de outros autores – como do Danúbio Azul de Johann Strauss e da
Valsa op.64 nº1 (do Minuto) de Frederic Chopin – fez uma paródia utilizando-se de um humor
requintado e elegante, o que ocorre pela primeira vez na música brasileira de concerto. Apesar
da prática da paródia musical ocorrer desde tempos remotos – autores como A. Gabrieli, J. S.
Bach, W. A. Mozart ou Camille Saint-Saëns já haviam utilizado esse procedimento –, as Valsas
Humorísticas de Nepomuceno estavam além das expectativas do público. Carlos Meyer, no jornal
Commercio do Brazil, de 12 de junho de 1904 relata que, apesar da execução magistral de
E. Schelling, as Valsas foram “infelizmente não comprehendidas pelo público”.

Em data posterior, a receptividade dessa obra pelo público parece ter sido mais positiva. No
Jornal do Commercio de 30 de agosto de 1906, o crítico se manifesta da seguinte maneira:

“É uma collecção de pequeninas caricaturas, em cada uma das quaes o traço leve e feliz revela um
grande artista que vai buscar, onde ninguém o suspeita ao menos, o episódio e o linho caricaturáveis
e os torna evidentes torcendo-os, exagerando-os ou tornando-os grotescos ou burlescos, como se
os desFig.sse com um piparote”. (THEATROS E MÚSICA, 1906.)

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Na mesma data, A Notícia publica: “Phrases de Valsas de Chopin, Strauss e outros autores, são
envolvidas em uma filigrana de ouro, formada por graciosos arabescos em que a graça desabrocha
no meio de rythmos originaes e perfumados com um humorismo encantador”.
Observa-se que na citação de obras muito conhecidas do público e na paródia realizada por
Nepomuceno, seu objetivo não era o deboche nem a ironia; pelo contrário, ao mesmo tempo em
que distorce a citação, presta uma homenagem graciosa àqueles autores e às Valsas.
Saliente-se, ainda, que pela primeira vez a valsa, música de salão, fora elevada ao gênero da
música de concerto na história da música brasileira.

Deve ser mencionado o Registro escrito por Oscar Guanabarino3 , inimigo declarado de
Nepomuceno, publicado no Jornal do Commercio, a 19 de outubro de 1920, por ocasião da
morte do compositor onde atesta o “valor indiscutível” das Valsas Humorísticas, colocando-as no
mesmo nível da Série Brasileira e da Sinfonia em Sol Menor.

Após a audição de 1906, as Valsas Humorísticas ficariam muito tempo esquecidas, sendo
novamente realizadas na década de 1940 pelo pianista J. Octaviano, no Teatro Municipal, em
programação da Sociedade de Concertos Sinfônicos4 . Mário de Andrade, que assistira ao
concerto, refere-se a elas como uma “novidade muito importante”, além de tecer seu comentário
crítico.

Para esse autor, que nutria “intensa simpatia” por “qualquer coisa de Nepomuceno”,

“... era tão humorada a minha espectativa por essas Valsas Humorísticas, que pelo menos pude
gosar todas as qualidades que elas têm: aquela nitidez melódica franca e sem vulgaridade,...; a
notável variedade rítmica; o aproposito de certas evocações humorísticas de temas alheios; a riqueza
de cores orquestrais. É uma peça que agrada” (ANDRADE, 1933:225).

As apresentações mais recentes das Valsas Humorísticas ocorreram a 25 de outubro de 1992,


no Auditório da Escola Nacional de Música, no Rio de Janeiro, com a Orquestra Sinfônica da
Escola Nacional de Música e em junho de 1999, em Curitiba, com a Orquestra Sinfônica do
Paraná, ambos concertos com o pianista Heitor Alimonda e regidos pelo maestro Roberto Duarte
e a 30 de novembro de 1999, em sua estréia gaúcha, pelo pianista Guilherme Goldberg, junto à
Orquestra Sinfônica de Santa Maria, regida pelo maestro Frederico Richter.

3
Oscar Guanabarino de Sousa e Silva (1851-1937) foi pianista, compositor e crítico musical. Exerceu por vinte
anos a atividade de crítico musical no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro. Publicou a coletânea de artigos O
Professor de Piano, em 1881, para a Revista Musical, também do Rio de Janeiro.
4
João Octaviano Gonçalves (1896-1962), compositor e pianista carioca, realizou um arranjo das Valsas Humorísticas
para piano e orquestra de cordas. Mário de Andrade, em seu comentário, não se refere se o concerto realizou a
versão sinfônica ou a camerística.

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Valsa I - Lá b M Introdução: 1-8


A (Tempo di Valsa): 9-46, Lá b M
B (Tempo I scherzando): 47-101, Ré b M
A (Come Prima): 102-141, Lá b M
Valsa II - Lá b M A (Lento): 1-27, Lá b M
B (Vivo): 28-65, fá m
A (Lento): 66-82, Lá b M
Valsa III - Fá m Introdução (Allegro moderato): 1-4
A (Lento): 5-22, fá m
Ba: 23-36, Ré b M
B (Vivo) Bb (Allegro con entusiasmo): 37-64, Mi M
Ba: 65-78, Ré b M
A (Come Tempo I): 79-82 (intr.)/83-100 (Lento), fá m
Valsa IV - Lá b M A (Moderato assai): 1-36, Lá b M
B (Vivo-Tempo I): 37-64, Sol M
A (Tempo I): 65-68 (intr.)/69-87, Lá b M
B (Vivo-Tempo I): 88-115, Sol M
A (Più calmo): 116-139, Lá b M
Valsa V - Mi b M Introdução: 1-15
A (Tempo giusto): 16-53, Mi b M
B: 54-96, Si b M
Transição: 97-121
A: 122-159, Mi b M
B: 160-202, Mi b M
Transição: 203-239
A (Animato): 240-284, Mi b M
Coda (Lentamente e calando): 285-288
Valsa VI - fám/Lá b M A (Allegro): 1-52, fá m
B: 53-93, Fá M
A: 94-145, fá m
Transição: 146-152
C (Tempo di valsa): 153-190, Lá b M
D (Vivo): 191-221, fá m
Coda: 222-257, Lá b M

Fig. 1 - Resumo estrutural das Valsas Humorísticas op. 22

Mesmo sendo uma obra significativa de Alberto Nepomuceno, fatores estético-ideológicos a


condenaram ao esquecimento. A edição de sua versão original para piano e orquestra ainda é
inédita, bem como um estudo mais aprofundado de sua posição no contexto produtivo do autor. É
uma obra concebida após seu período acadêmico (1889-1895), quando o autor já havia retornado
ao Brasil e assimilado tanto a tradição quanto as inovações que ocorriam no meio musical europeu.
Nepomuceno sabia até onde poderia levar sua ousadia.

Formalmente, as Valsas Humorísticas apresentam algumas diferenças com relação à estrutura


canonizada pela tradição: enquanto nesta há uma introdução, uma seqüência de Valsas e uma
coda recapitulante dos temas principais, aquelas se compõem de uma série de seis Valsas
independentes que podem ou não ser executadas no conjunto. Apesar da Valsa no 6 funcionar

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como um fechamento de ciclo, ao repetir trechos das Valsas nos 1 e 2, cada valsa possui um
caráter diferente e uma conclusão formal. Sua estrutura não é necessariamente regular, isto é,
não se detém a seções de dezesseis ou 32 compassos e cada seção melódica é intermediada
por seções cadenciais no piano (característica esta já encontrada em algumas obras para piano
solo de Nepomuceno).

3 – Identificação das fontes


Durante o levantamento das fontes, na cidade do Rio de Janeiro, em consultas a Sérgio
Nepomuceno Alvim Correa, neto do compositor, além de pesquisas na Biblioteca Alberto
Nepomuceno da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e na
Divisão de Música e Arquivo Sonoro da Biblioteca Nacional, constatou-se a existência das
seguintes fontes: F1 - autógrafo de Alberto Nepomuceno da primeira versão para piano e orquestra;
F2 - manuscrito das partes cavadas5 da segunda versão para piano e orquestra, de autoria
indefinida; F3 - manuscrito da compilação das partes cavadas, realizada pelo neto do compositor;
F4 - autógrafo de Arthur Napoleão da versão para dois pianos; F5 - edição da versão para dois
pianos; F6 - autógrafo de João Octaviano Gonçalves da versão para piano e orquestra de cordas.

3.1 – F1: Autógrafo de Alberto Nepomuceno


Localiza-se na Biblioteca Alberto Nepomuceno da Escola de Música da UFRJ.

Na primeira página desta fonte (Fig.2), encontra-se o nome da obra, o número de opus (Op. 22),
a indicação de andamento, a orquestração (2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes Si b, 2 fagotes, 2
trompas em Mi b, 2 trompetes em Mi b, tímpanos, piano solo e cordas) e a expressão “Partitura
original autógrafo do autor”. Embora essa última expressão não seja de Alberto Nepomuceno,
sua autenticidade pode ser constatada pela análise de outras características da caligrafia do
compositor.6 Os termos utilizados são apresentados em italiano. Possui 101 páginas.

Algumas particularidades são observadas em cada valsa. Na Valsa I, as páginas 13, 14 e 15


encontram-se em branco, onde somente as indicações de compasso identificam a repetição da
seção A.

A Valsa II apresenta um pequeno trecho incompleto no piano, compassos 60-64, com a observação
“escala ascendente chromatica em oitavas” para a mão direita, estando a parte da mão esquerda
escrita. Há, na página 20, compasso 28 e seguintes, a indicação “triângulo”.

Na Valsa III – da capo al fine no compasso 78 – existe uma série de lacunas e anotações
rascunhadas. Entre os compassos 5-22, apresenta sobreposto na grafia das cordas o trecho
correspondente ao “da capo”, referente aos compassos 83-100. Há a indicação de trompas e
trompetes “In Mi” entre os compassos 37-40. A parte do piano apresenta escasso material escrito.

5
Por partes cavadas entende-se as partes individuais de cada instrumento de dada orquestração.
6
Foram analisadas a forma e a semelhança entre determinadas letras, como c, a, o, t, m, n, além de peculiaridades
nas claves de sol, dó e fá, pausas de semínima, entre outras indicações. Também o tipo de tinta, sua densidade
e espessura, foram observadas. Assim foi possível constatar a autenticidade e separar termos ou indicações
acrescentadas posteriormente.

86
GOLDBERG, Luiz Guilherme Duro. As Valsas Humorísticas... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 78-102

A Valsa IV apresenta algumas indicações de inserção de compassos com caligrafia diferente da


do autor (compassos 46-47 e 65-66), além de trechos rascunhados (compassos 47-65 e última
página). A partir do compasso 95, há a indicação de “clarinete In La” e , nas trompas, a 1ª “In Mi”
e a 2ª “In Mi b”. A indicação “rubato” que aparece ao começo desta valsa não apresenta a caligrafia
do autor.

Na Valsa V, na primeira exposição da segunda seção, compasso 54 e seguintes, a parte do piano


está em branco e, nas cordas, existe uma alteração com rasuras no violino II. Entre os compassos
202-209, observa-se a inclusão de alguns compassos com caligrafia diversa da do autor.

A Valsa VI exibe vários trechos abreviados com barras de repetição. Na primeira seção, no
compasso 33, é solicitado 1ª trompa “In Fa”, sendo o par escrito na mesma pauta, onde, para a 2ª
consta, abaixo da pauta, uma pequena clave de fá. Também pode ser observado um possível
esquecimento de 4 compassos a partir do número 40. No compasso 153 segue-se a recapitulação
das Valsas I e II, concluindo por uma coda. Nesta valsa, há na página 82, nos compassos 49 e 53
respectivamente, indicação de tamburo e triângulo. Na página 95, compasso 191 e seguintes,
também existe uma indicação de triângulo. O rubato que está acrescentado não possui a caligrafia
do autor.

De maneira geral, esta partitura é apresentada com indicações minuciosas de andamento,


dinâmica e articulação, embora as lacunas e rascunhos sugiram que esta não seja a versão
definitiva. Não existe edição desta versão.

Fig. 2 – Primeira página do autógrafo de Alberto Nepomuceno (Valsa nº1)

87
GOLDBERG, Luiz Guilherme Duro. As Valsas Humorísticas... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 78-102

3.2 - F2: Manuscrito das partes cavadas (orquestração ampliada)


Encontrado na Biblioteca Alberto Nepomuceno da Escola de Música da UFRJ, possui autoria
indefinida.

Na primeira página de cada partitura encontra-se a indicação do instrumento a que se destina, o


nome do compositor e o título da obra. As orientações de clave e tonalidade são indicadas somente
ao começo de cada valsa. Observa-se que as indicações de articulação, dinâmica e andamento
não são padronizadas no seu conjunto. Também podem ser constatadas algumas indicações
posteriores, acrescentadas pelos instrumentistas que as utilizaram.

Estas partituras estão assim distribuídas: flauti (1º, 2º); oboi (1º, 2º); clarinetti si (1º, 2º); fagotti (1º, 2º);
corni fa (1º, 2º); corni fa (3º, 4º); trombe fa (1º, 2º); timpani; triangolo e piatti; tamburo; violino 1º (solo);
violino 1º (di fila); violino 2º; viola; cello (solista); cello; c basso.

3.3 - F3: Manuscrito compilado por Sérgio Nepomuceno (partitura)


Esta fonte pode ser localizada tanto na Biblioteca da Escola de Música da UFRJ quanto no Arquivo
da Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB), onde está catalogada sob o número 185. Trata-se da
compilação das partes cavadas de F2, realizada por Sérgio Nepomuceno Alvim Corrêa em 1954.
Esta fonte apresenta duas folhas de rosto onde aparecem as seguintes indicações: na primeira –
autor com datas de nascimento e óbito, nome da obra com a indicação de data de composição
(1902), instrumentação (piano e orquestra), a indicação “partitura”, uma orientação de índice das
Valsas e o carimbo do arquivo da OSB; na segunda – dedicatória à pianista Fanny Guimarães7 ,
autor com datas de nascimento e óbito, título da obra, opus 22, crédito ao pianista E. Schelling
que a teria estreado a 10 de junho de 19048 , a indicação “partitura de orquestra” e a autoria do
manuscrito.

Apresenta a seguinte orquestração: 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes em Si b, 2 fagotes, 4 trompas


em Fá, 2 trompetes em Fá, tímpanos, percussão (triângulo, prato e tamburo), piano solo e cordas.
Está escrita com uma pauta para cada instrumento, exceto para trompas I / II e III / IV onde cada
par é apresentado em uma pauta. Nas páginas seguintes os instrumentos são indicados por
abreviaturas. As exceções são tamburo e piatti sempre escritos por extenso. A instrumentação e
as indicações de andamento e dinâmica são apresentadas preferencialmente em italiano, embora
haja uma mistura com o português (página 11). Possui 159 páginas. Esta partitura possui
minuciosas indicações de andamento, dinâmica e articulação. Não existe edição desta versão.

3.4 - F4: Autógrafo de Arthur Napoleão (versão para dois pianos)


Localizado na Biblioteca Alberto Nepomuceno da Escola de Música da UFRJ, está catalogada
sob o nº 24985. Não apresenta a data de realização desta versão. Manuscrito de Arthur Napoleão,

7
Fanny Guimarães, pianista e virtuose da época de Alberto Nepomuceno, foi solista do Concerto nº4 de L. van
Beethoven, do Concerto para piano de R. Schumann e do Concerto nº1 de F. Liszt, a 12 de novembro de 1908,
regida por Nepomuceno, durante os Concertos Sinfônicos da Exposição Nacional da Praia Vermelha, comemorativa
ao Centenário da Abertura dos Portos, onde Nepomuceno fora diretor musical e principal regente.
8
Conforme mencionado neste artigo, este crédito não corresponde à realidade já que a estréia dessa obra ocorreu
a 29 de fevereiro de 1902 no Club dos Diários, em Petrópolis, tendo como solista a pianista Walborg Nepomuceno.
A audição de E. Schelling foi a terceira desde a composição dessa obra.

88
GOLDBERG, Luiz Guilherme Duro. As Valsas Humorísticas... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 78-102

na folha de rosto apresenta a dedicatória (A Monsieur Ernest Shelling), título da obra,


instrumentação, compositor e autor da versão. Possui 68 páginas com três sistemas para Piano
I e II por página. Não apresenta lacunas. As indicações de andamento, dinâmica e articulação
são minuciosas. Há também a orientação da instrumentação em alguns trechos. Algumas
alterações ou inclusão de compassos podem ser observadas nas Valsas nos IV, V e VI. É a única
versão editada.

3.5 - F5: Partitura Editada (versão para dois pianos)


Esta fonte foi encontrada na Divisão de Música e Arquivo Sonoro da Biblioteca Nacional. Na
capa consta o nome da obra, a instrumentação, o compositor, a indicação da redução para dois
pianos e seu autor, preço e nome do editor.

Embora a capa tenha os créditos em francês, a partitura apresenta quase todas as indicações
de andamento e dinâmica em italiano. Há indicação da numeração de edição no rodapé de cada
página (nº 1550). Foi publicada por Sampaio Araujo & Cia. em 1910. Possui 59 páginas.

Alberto Nepomuceno certamente conheceu essa versão e respectiva edição e possivelmente a


tenha revisado. Assim, as diferenças encontradas em relação às demais fontes podem ter sido
feitas pelo autor ou terem recebido a sua concordância. Essa versão claramente teve origem na
fonte de F2.

3.6 - F6: Autógrafo de J. Octaviano (versão para orquestra de cordas)


Também localizada na Biblioteca Alberto Nepomuceno da Escola de Música da UFRJ, catalogada
sob o no 24985, essa versão não consta do Catálogo Geral de Alberto Nepomuceno (CORRÊA,
1996). Sua data de composição é incerta, entretanto uma observação superficial revela que teve
como base a segunda versão para piano e orquestra.

Consistindo em partes cavadas para orquestra de cordas, na primeira página de cada partitura
consta, em português, o nome do compositor, o título da obra, a instrumentação original, indicação
da redução para orquestra de cordas com seu autor e o instrumento a que se destina, estando
assim distribuídas: violino I, 18 páginas; violino II, 16 páginas; viola, 14 páginas; violoncello,
16 páginas; contrabaixo, 12 páginas.

As orientações de clave e tonalidade são indicadas somente ao começo de cada valsa. Observam-
se muitas indicações de articulação, dinâmica, andamento e arcadas. Não há indícios de que o
compositor tenha conhecido estes manuscritos. Esta versão não possui edição.

F1 F2 F3 F4 F5 F6
Valsa I 140 c. 141 c. 141 c. 139 c. 141 c. 141 c.
Valsa II 82 c. 83 c. 83 c. 82 c. 83 c. 83 c.
Valsa III 100 c. 100 c. 100 c. 100 c. 100 c. 100 c.
Valsa IV 117 c. 139 c. 139 c. 139 c. 139 c. 139 c.
Valsa V 272 c. 289 c. 289 c. 286 c. 289 c. 290 c.
Valsa VI 257 c. 257 c. 257 c. 259 c. 258 c. 258 c.

Fig. 3: Quadro comparativo da extensão das Valsas, por fonte.

89
GOLDBERG, Luiz Guilherme Duro. As Valsas Humorísticas... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 78-102

4 - Critérios editoriais
O estabelecimento de critérios editoriais deve evitar conceitos prévios que induzam a erros no
processo de avaliação e hierarquização das fontes. Como ponto de partida, é necessário definir
o que se quer com esta edição crítica, qual seu objetivo, a quem se destina. Definiu-se que o
objetivo primordial desta edição é, além de resgatar com a maior fidelidade possível a intenção
do autor, prover uma partitura útil ao musicólogo, ao fornecer subsídios para futuras pesquisas, e
ao intérprete ao possibilitar a execução pública da obra.

A localização das fontes e de críticas sobre as apresentações públicas das Valsas Humorísticas
esclareceram seu posicionamento histórico. Junto a Sérgio Nepomuceno Alvim Correa,
obtiveram-se duas fontes: F1 e F3, além das críticas e crônicas da época. Na Divisão de Música
e Arquivo Sonoro da Biblioteca Nacional, localizou-se F5 e na Biblioteca Alberto Nepomuceno
da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, além das fontes já citadas,
também foi possível localizar F2, F4 e F6.

Como em nenhuma fonte havia data de concepção, uma prévia comparação entre as mesmas
aliada ao estudo das crônicas da época e ao estilo da obra, tornou possível a determinação da
seguinte ordem cronológica:

1. Primeira versão para orquestra (F1): após o período acadêmico do compositor, 1895,
mas anterior a 1902, quando da estréia da obra;
2. Segunda versão para orquestra (F2) e para dois pianos (F4): entre 1902 e 1903;
3. Versão para orquestra de cordas (F6): em data indeterminada.

Com essas constatações, foi possível traçar uma primeira seleção de prioridade para a utilização
das fontes. Inquestionável a utilização de F1; F4, por ser a única versão editada e apresentar o
piano solista sem lacunas, não pode ser descartada; F2, por não possuir identificação de autoria
ou copista, deverá ser avaliada para a determinação de sua validade. Quanto a F6, foi
imediatamente descartada por não haver indícios de que Alberto Nepomuceno a tivesse conhecido.

Como o objetivo é realizar uma edição da versão original, para piano e orquestra, será necessário
determinar se, de fato, existiu uma segunda versão para piano e orquestra. Como proceder tal
constatação? O simples cotejamento entre F1 e F2 demonstra que houve alterações estruturais
nas Valsas nos 4 e 5. Também pode ser constatado que as mesmas alterações ocorreram em F4.
Logo, através das diferenças encontradas entre F1 e F2/F4, associado às crônicas jornalísticas,
concluiu-se que existiu, de fato, uma segunda versão para piano e orquestra, podendo F2 ser
testemunha dessa segunda versão. Assim, as fontes de orquestração resumir-se-iam a F1 e F2.

Após o estudo pormenorizado da caligrafia do autor, constatou-se que F2 não exibe traços
característicos da sua caligrafia. Dessa forma, como conferir a confiabilidade de F2? Optou-se,
primeiramente, pela feitura de uma grande partitura para orquestra, onde F1 e F2 são
apresentadas paralelamente (uma pauta para flautas de F1 seguida de outra para flautas de F2
e assim sucessivamente para os demais instrumentos). Dessa forma, as duas versões orquestrais
puderam ser cotejadas e avaliadas.

A comparação demonstrou que a maioria das alterações ocorreu no naipe de sopros, onde o
acréscimo de mais duas trompas e dois trompetes em F2 absorveu grande parte da harmonia

90
GOLDBERG, Luiz Guilherme Duro. As Valsas Humorísticas... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 78-102

dos clarinetes e trompas de F1, ou seja, procedeu-se uma redistribuição de harmonias e de


alguns trechos melódicos, persistindo muito de F1 em F2, o que já seria um indício de que esta
fonte baseara-se numa nova orquestração do compositor. Mas somente isso não seria suficiente
para a determinação do grau de confiabilidade de F2.

Um aprofundamento semiótico tornou-se necessário. Constatou-se, em F2, que quase todas as


apojaturas, importantes para o caráter humorístico da obra, haviam se transformado em pequenos
blocos dissonantes de segundas menores, o que poderia ser um erro ou uma alteração de algum
revisor. O que poderia levar o autor a proceder tal alteração? A solução a essa questão tornou-se
evidente pela análise semiótica da passagem entre os compassos 44 e 58 entre violinos e violas
na Valsa II: enquanto em F1 as violas dobravam a harmonia dos violinos, em F2 as violas procediam
por segundas menores inferiores. Como explicar tal passagem? Poderia ser um erro do copista?
Um erro de claves? Certamente não pois o erro de claves seria responsável por segundas
superiores e não inferiores. Também seria muito pouco provável que o copista cometesse um
erro por tantos compassos consecutivos e ainda o repetisse na Valsa VI, onde o mesmo trecho
aparece novamente. Além disso, existem adendos de execução nas partituras de F2, ou seja, a
obra fora executada de acordo com F2 e nenhuma correção ocorrera. Por que?

Numa observação mais minuciosa, observou-se que enquanto os violinos tocam com o arco, as
violas o fazem em pizzicato. Assim, o conteúdo musical dessa passagem, violinos em arco e
violas em pizzicato, estaria muito próximo ao das apojaturas. Seria como se as violas fossem as
apojaturas dos violinos. Dessa forma, constatou-se que as apojaturas estavam lá, se não na
grafia, na intenção e o resultado sonoro final o justificava.

No entanto, como era praxe, as alterações de orquestração também poderiam ocorrer para
eventuais concertos ou sempre que o autor achasse necessário. Que garantia existiria de que as
alterações das apojaturas não tenham ocorrido para uma execução específica? Que certeza
pode haver de que F2 seja a versão definitiva? Tecnicamente nenhuma. As alterações
apresentadas por F2 revelam um profundo conhecimento da linguagem musical por parte de seu
autor.

Outra constatação da confiabilidade de F2 foi obtida na Valsa VI, entre os compassos 33 e 44:
enquanto em F1 a flauta I dobra o piano e flauta II dobra violinos e violas, em F2 as flautas executam
oitavas. Como explicar esse aparente empobrecimento de orquestração? A resposta está no
início dessa valsa na parte do piano e possui uma função estrutural: é a reiteração dos contrastes
piano e forte da melodia do piano, encontrado em F4, agora reforçados pelo tutti.

Dessa forma, concluímos que não só existiu uma segunda versão para piano e orquestra como a
versão de F2 apresenta uma certa dose de confiabilidade. Entretanto, observou-se que F2
apresenta alguns erros evidentes, caracterizando que Nepomuceno não a tenha supervisionado
ou revisado. Assim, há indícios de que haja uma fonte desaparecida para F2. Todavia, F2 não
poderá ser descartada, além de ser a única testemunha da segunda versão para piano e orquestra,
embora deva ocorrer uma análise profunda de seu conteúdo.

Também resultante da comparação entre F2 e F4, pode-se concluir que F4 baseou-se na fonte

91
GOLDBERG, Luiz Guilherme Duro. As Valsas Humorísticas... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 78-102

de F2. As poucas modificações acrescentadas a F2 e não constantes em F4 reforçam essa


convicção e sugerem que, cronologicamente, aquela é anterior a esta.

Assim, na hierarquização das fontes, F2 será imprescindível para a orquestra da mesma forma
que F4 o será para o piano. F1 e F5 serão utilizadas para esclarecer algumas imprecisões,
dúvidas, possíveis lapsos ou erros. F3, por ser uma compilação de F2 e F6, por não haver
evidências de que Nepomuceno a tenha conhecido, não será considerada para esta edição crítica.

As observações obtidas pela análise das fontes foram apontadas em planilhas de observação,
transcritas abaixo para cada Valsa. Essas observações serviram de base para o estabelecimento
da versão final. Alerta-se que, para os instrumentos transpositores, as notas indicadas
referem-se aos sons reais. A título de esclarecimento: clarinetes em Si b soam uma 2a. maior
inferior às notas escritas, enquanto trompas e trompetes em Fá soam uma 5a. justa inferior.

4.1 - Valsa nº 1
A comparação entre F1 e F2, demonstrou que a versão F2 enriqueceu o colorido orquestral de
F1 sem maiores alterações harmônico-formais.

A primeira observação diz respeito ao caráter da Valsa:


• F1 e F3 - Tempo di valsa un poco vivo
• F2 - (nada consta)
• F4 e F5 - Allegro con spirito

Embora F3 derive de F2, é curioso observar que, mesmo nada constando em F2, F3 coincide com
F1. Como os termos apresentados não apresentam diferenças substanciais de conteúdo,
concluiu-se por utilizar “Tempo di valsa un poco vivo”, concordando com o autógrafo.

Ao final da seção A, compassos 40-41, enquanto em F1 e F3 o piano conduz um allargando


chegando ao meno mosso, em F4 e F5 existe a orientação de ritenuto (c. 41) após o allargando
(c. 40) sem a indicação meno mosso. Assim, o conteúdo cadencial que segue (c. 42-46) seria
realizado em Tempo I. Também o início da seção B é apresentado de forma diversa entre as
fontes F1-F3 e F4-F5: Tempo I naquelas e scherzando nestas.

Analisando-se o trecho compreendido entre o final da seção A e o começo da seção B (c. 40-47),
concluiu-se que seria coerente ao conteúdo musical a seguinte orientação: o piano realiza um
allargando (c. 40) até o meno mosso (c. 41), permanecendo assim durante a região cadencial,
retornando ao Tempo I com caráter scherzando na seção B (c. 47).

Outra divergência é encontrada nos compassos 137 e 141. Embora não sejam semelhantes no
conteúdo, o são na intenção: a primeira prolonga uma nota longa como uma fermata escrita por
extenso; o segundo corporifica um grande ritenuto. Esses dois compassos aparecem em F2, F3
e F5, ficando implícitos em F1 e F4. Decidiu-se por escrevê-los por extenso, tal qual F5. As
demais observações estão na tabela abaixo.

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Compasso F1 F2 F4 Critério
4-5 Tímpano no Tímpano no Manutenção da batida no 1º tempo.
1º tempo. 2º tempo. A complementação dos triângulos
reforça a decisão.
8 No oboé I, Por se tratar de trecho semelhante
min - lán ao c. 4, corrigir para min -dó
8-9 Idem compassos 4-5 para tímpanos
33-34 No par de trompas
III-IV, apresenta Acerto da harmonia:
em ambos os rén -lá b ; ré b - sol.
compassos a
harmonia réb -láb.
37 Violinos I executam Acerto para fá-lá b, de acordo com o padrão
réb -láb de Fig.ção do c. 36 e mantido
no 37. Repete no final, c. 129-130.
38 Na trompa I, mib Erro harmônico. Corrigir para fá b
38 Não constam pratos Observa-se possível lapso do prato
em F2. Por ser semelhante
ao c. 131, indica-se o prato
em notas pequenas.
38 Nas violas, consta Corrigir harmonia para
o acorde láb-dó-fáb lá b -ré b -fá b, dobrando violinos.
45 Arpejo do piano Conclusão do Utilização da versão de F4.
formado arpejo por Importante ponto de apoio
somente por 3 colcheias, para a orquestra.
fusas. além das fusas.
48 Nas violas, ré b-fá Nas violas, réb-mib Correção da harmonia para ré b -fá.
57-58 Na trompa I, Correção do fragmento melódico. Por se
há um fragmento tratar do contracanto da melodia da seção
melódico diferente do B, que possui um padrão único
padrão. toda a seção, e por produzir uma harmonia
discrepante do contexto, pode-se concluir
em erro do copista.
67 No violino I, consta Consta o acorde Apesar da passagem cromática, a
a oitava –mi b mi b-lá b para antecipação do lá b soa fora do contexto
violino I harmônico. Corrigir para mi b-lá b.
96 Violino I, toca Nos violinos I, no Correção para a nota sol de
sol no primeiro primeiro tempo acordo com a Fig.ção melódica.
tempo está lá.
104 No 2º tempo, Violoncelos tocam Por ser similar ao compasso 11 e pelo
violoncelos mi b no 3º tempo. padrão cadencial, dobrando cb., seguir F1.
tocam mi b. Certamente erro de cópia.
126 No par de trompas O padrão melódico é muito claro e
I-II, o compasso está semelhante ao compasso 33.
igual ao 127. Certamente um erro do copista.
126-127 Idem compassos 33-34 para trompas III-IV
131 Trompetes com O tutti realiza o acorde no segundo
acorde no tempo. Não há lógica em F2.
primeiro tempo.
134 Nada consta. Nada consta. Lapso da indicação Meno mosso. Por se
tratar de recapitulação literal da seção A,
aqui é usado o mesmo critério citado
acima para o final dessa seção (c. 40-41):
allargando ao Meno mosso.

Fig. 4 – Critérios Editoriais para a Valsa nº1

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GOLDBERG, Luiz Guilherme Duro. As Valsas Humorísticas... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 78-102

4.2 - Valsa nº 2
Esta Valsa é apresentada completa, sem lacunas ou omissões. Na tabela abaixo, estão
apresentados os trechos considerados importantes na determinação do texto final.

Compasso F1 F2 F4 Critério
28 Aparece clave Manutenção da Como todas as demais fontes apresentam
de sol em clave de fá na a clave de fá, mantendo o desenho
ambas as pauta de melódico a um intervalo de três oitavas,
pautas do piano registro grave concluiu-se que houve um lapso em F1.
do piano.
29, 31 No terceiro No mesmo trecho Erro harmônico em F2. Manter F1.
tempo do oboé II, do oboé II,
na apojatura, aparece fá# -soln.
aparece fán -sol b.
37 Idem compasso 29 para oboé II
44, 46 O par de clarinetes Certamente um erro. O correto é a oitava
realiza oitava de fá# de sol#, o que mantém o padrão do
(enarm. Sol b) no desenho melódico, conferindo com F4.
3º tempo.
66-80 Escrita cadencial Cadência escrita Usar F1 como principal e F4 como
livre no piano de forma métrica. ossia. Ver esclarecimentos abaixo.
74-81 A melodia do A melodia do
piano é repetida piano é repetida Escrever a repetição uma oitava acima.
na mesma oitava. uma oitava acima.
81 Aparece como Aparece dividido Coincidente Manter um único compasso. Maiores
um único em dois compassos com F1. esclarecimentos abaixo.
compasso

Fig. 5 – Critérios Editoriais para a Valsa nº2

No final desta valsa, os manuscritos utilizados, de Alberto Nepomuceno (F1) e de Arthur Napoleão
(F4), não são coincidentes na reexposição da seção A.

É interessante salientar que, enquanto F1 apresenta uma escrita cadencial livre, F4 utiliza uma
escrita métrica. Considerou-se que essa escrita métrica seria uma tentativa de escrever o rubato
da seção por extenso, o que seria útil na performance, embora corresse o risco de acentos métricos
e desvirtuamento da intenção melódica. A análise da seção confirmou que a escrita fluente de F1
estaria mais de acordo com a intenção melódica e com a idéia do autor, por mais próximo que
sua realização estivesse da escrita métrica de F4. Como a fluência melódica deve possuir apoios
condutores, o pulso deve ser mantido pelo acompanhamento no piano. Esse trecho faz com que
nos reportemos a um dos tipos de rubato de F. Chopin, tal como descrito por Wilhelm von Lenz:

“O que caracterizou a performance de Chopin era o seu rubato, no qual a totalidade do rítmo era
constantemente respeitada. Eu geralmente o ouvia dizer “A mão esquerda ... é um relógio. Faça com
a mão direita o que quiseres e puderes”. Ele dizia, “Uma obra dura 5 minutos somente porque ocupa
esse tempo na performance total; detalhes internos são outro assunto. E aqui tens o rubato”. 9
(KALLBERG, 1990, p.243)

Também ao final, há uma divergência quanto aos dois ou três últimos compassos. Enquanto que

9
Trecho traduzido pelo autor deste artigo.

94
GOLDBERG, Luiz Guilherme Duro. As Valsas Humorísticas... Per Musi. Belo Horizonte, v.3, 2002. p. 78-102

os manuscritos F1 e F4 apresentam somente dois compassos, (81-82), F2 considera três


compassos finais, (81-83), pelo desmembramento do compasso 81 em dois. Uma justificativa
para essa alteração diz respeito à regência. Por uma questão de coerência estilística, foi
considerado que deveriam compor um único compasso, estando de acordo com os manuscritos,
onde um grande ritenuto estaria implícito na escala cromática final do piano, sem que isso
caracterizasse ou justificasse o seu desmembramento.

Na comparação das fontes, pode-se observar que as indicações dos andamentos não apresentam
conflitos de informações, sendo muito precisas.

4.3 - Valsa nº 3
F1 apresenta muitas lacunas ou omissões, sugerindo que ainda fosse um rascunho, principalmente
na parte do piano. Portanto, F4 torna-se uma referência essencial.

Quanto às indicações de andamento e caráter, algumas diferenças necessitam de esclarecimento.


Na seção A, uma pequena introdução de 4 compassos e caráter pesante é seguida por um trio para
violino, violoncelo e piano de caráter dolente e expressivo. Segundo as fontes aqui utilizadas, os
andamentos desta seção estão assim indicados:
• F1 - Allegro - Lento
• F2 e F4 - (nada consta)
• F3 - Moderato - Lento
• F5 - q = 96 - (nada consta)
Por não existir uma uniformidade entre as indicações de andamento, o caráter de cada trecho é
responsável por sua definição. Na introdução, a combinação Allegro moderato com a indicação
metronômica esclarece o seu caráter. Para o trecho seguinte, manteve-se a indicação Lento do
autor, um possível lapso nas outras fontes.

A seção B apresenta um caráter virtuosístico. Apesar de indicações de andamento distintas entre


as fontes, o caráter é basicamente o mesmo: brilhante e com arrojo. Os andamentos desta seção
estão assim indicados:

Compasso 23 Compasso 37 Compasso 53-54


F1 - Vivo F1 - Allegro con entusiasmo F1 - Vivo
F2 - (nada consta) F2 - (nada consta) F2 - Presto
F3 - Vivo F3 - Allegro con entusiasmo F3 - Presto
F4 - (nada consta) F4 - Tempo F4 - Presto

Fig. 6

De acordo com essas orientações e pelo caráter da seção, concluiu-se que os andamentos a
serem utilizados são: Vivo; Allegro con entusiasmo; Presto.

A questão mais crítica desta valsa, é o solo de violoncelo da seção A (exposição e reexposição).
Não existe uniformidade entre as fontes, sendo que cada uma apresenta uma variante em algum
fragmento melódico (Fig. 7). Pela impossibilidade de concluir que uma versão é mais correta que
as demais e por uma questão de coerência de critério, elegeu-se utilizar a versão de F2, fonte
para a orquestração nesta edição.

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Fig. 7 – Diferenças do solo de violoncelo (Valsa nº 3, seção A) entre


as fontes das Valsas Humorísticas op.22 de A. Nepomuceno.

Compasso F1 F2 F4 Critério
47-48 Violino I e Na redução da Este fragmento melódico consta em todas
violoncelo tocam orquestra, existe as demais fontes. Possível lapso.
fragmento do Nada consta a indicação do Indicou-se em notas pequenas.
final da melodia final da melodia
min - solb- fá no piano II.
65 Nas violas, Nas violas, Como as violas fazem terças com violinos,
réb-lán-sib. réb-lán-dó. corrigiu-se para réb - lán -sib.
70 Violoncelos Nos violoncelos tem Em todo o trecho, F1 é semelhante à F2. O
tocam mib- mib - soln - soln soln final está fora do padrão. Possível erro.
soln- mib
77 No 2º tempo, o O acorde está Nas duas fontes, a parte das flautas é
acorde das sib-láb coincidente, exceto neste acorde, além de
flautas é ser um erro harmônico. Manter F1.
sib-soln
79 Fagote toca no Fagote I-II dividem A Fig.ção do 2º e 3º tempos parece
1º tempo harmonia também invertida por não manter o padrão. Considerar
somente no 2º e 3º tempos. fá para fagote I e dó para fagote II.
100 Violoncelo Nada consta Possível lapso em F2. Trata-se da
possui fá no resolução da cadência final. Acrescentou-se
1º tempo fá com nota pequena.

Fig. 8 – Critérios Editoriais para a Valsa nº3

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4.4 - Valsa nº 4
Esta valsa é uma das que menos divergências apresenta entre as fontes.

Compasso F1 F2 F4 Critério
74 Nas violas, fá Trecho de 14 compassos idênticos.
Correção para a nota mib.
88 Nos oboés, acorde Erro harmônico. Correção para ré-sol.
ré-lá
92 Violino I, 3o. tempo, Erro harmônico. Correção para lá-dó#
acorde sol-dó#
108 Nas violas, Nas violas, Erro em F2 ao repetir o c. 107 além
mi-sol# fá-(fá-si-ré# ). de ser erro harmônico. Para manter a
consistência de Fig.ção e tendo F1 por
base, foi feita a correção e reconstituição
do acorde: mi-(ré-sol# -sib ).

Fig. 9 – Critérios Editoriais para a Valsa nº4

4.5 - Valsa nº 5
Esta é a valsa onde se observa o maior número de modificações estruturais, notadamente na
passagem entre as seções B e A antes do Animato (c. 203-239), gerando intensificação de
tensão harmônica associada à condensação melódica e maior densidade sonora.

As indicações de andamento e caráter estão claras e não necessitam maiores observações.

Compasso F1 F2 F4 Critério
14 Clarinete tem Clarinete tem sib De acordo com a figuração do tutti, manter
sib como como colcheia semínima.
semínima
15 Nada consta Trompas I-II Erro harmônico. O correto é sib .
apresentam dó.
16-35 Somente F2 apresenta figuração para
orquestra, não referida em F4. Utilizou-se
notas pequenas para sua escrita.
39 Flautas, No par de flautas, Trata-se de uma escrita alternativa para
segundo tempo: segundo tempo: apojatura. F2 está fora do padrão do
si# (ap.) -dó# . dó# -sin. trecho. Correção para dó# -si#.
65 3o tempo das 3o tempo das violas: fá As violas executam terças inferiores em
violas: mib relação ao violino I. Correção para mib
119 A figuração da Acréscimo da indicação de 8a.. Assim é
mão direita do mantido o padrão do trecho.
piano não possui
a orientação de 8a.
122 Orquestra Orquestra possui Trata-se de uma resolução cadencial,
possui valores pausas similar aos c. 15-16 de F2. Seguir
no 1o. tempo. no 1o. tempo. padrão de F2 dos c. 15-16 com notas
pequenas.

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122-141 Idem compassos 16-35


133 Compasso único. Dividido em dois Compasso único. Este compasso possui uma escala de
compassos. passagem no piano, semelhante ao
c. 27, não sendo coerente dividi-lo.
134 Mib no 1º tempo Pausa Trata-se de um possível lapso em F2. Por
do contrabaixo. similaridade, segue-se o padrão do
c. 28 em notas pequenas.
146 Flautas, no 1º e No par de flautas, É uma escrita alternativa para apojatura,
3º tempos: 1o. e 3o. tempos: semelhante ao c. 39. F2 está fora do
mi# (ap.) - fá#. fá# - min. padrão. Correção para fá# -mi#.
147 Acréscimo de O erro está evidente. Para manter a
compasso no Fig.ção e coerência com o padrão dessa
clarinete com o mesmo escrita alternativa de apojatura, mudar
padrão do 3º tempo do para láb - sol
c. 146 (mib - ré).
164 Flauta II, no 3o. tempo: Flauta dobra oboé. Correção para sol-láb.
fá-sol Segue modelo do c. 160.
166 Oboé I, 1o. tempo: Correção para sin-dó. Forma 8a. com as
lán-sib. flautas.
178/179 Clarinete I: trinado da Trinado deslocado. Corrigir para os
nota síb compassos 180-181.
189 Trompa I, 3o. tempo: Corrigir para dó. A trompa possui a melodia
sol das flautas e oboés uma terça abaixo.
194-195 No clarinete, Nada consta Possível lapso. Manter Fig.ção de F1 em
lán (ap.) – sib notas pequenas.
211 Oboé I toca Fig.ção Para a uniformidade de Fig.ção, escrever
uma 8a. abaixo 8a. acima
243 No violino II, Apresenta láb-síb. Violino II dobra violino I, além de toda seção
possui oitava ser semelhante à F1. Corrigir para a oitava
de síb. de sib.
253 No violino II, 1o. Arpejo com as notas Pela mesma razão de 243, corrigir para F1.
tempo, tem as mib-sol
notas mib-láb
no arpejo.

Fig. 10 – Critérios Editoriais para a Valsa nº5

A passagem do piano entre os compassos 76-83 possui três versões (Fig.11): a primeira delas
encontra-se em F1; a segunda, se refere a F4 e F5; enquanto a terceira ocorre em F3, F4 e F5.
Segundo indicação de Arthur Napoleão, a versão 2 deve ser realizada quando a obra estiver
sendo tocada com orquestra (En jouant avec Orchestre), enquanto que a versão 3 se refere à
performance a dois pianos, onde o solo dos metais é atribuído a um dos pianos. Apesar da
semelhança entre as versões 1 e 2, decidiu-se que a segunda versão é a que melhor traduz o
caráter da obra.

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Versão 1

Versão 2

Versão 3

Fig. 11

4.6 - Valsa nº 6
Nesta valsa, poucas passagens necessitam maiores esclarecimentos. Uma das observações
mais importantes refere-se à definição estrutural reforçada pela indicação de dinâmica só escrita
em F4. Sua omissão em F5 não apresenta explicação plausível. A certeza da função estrutural da
dinâmica é baseada no incremento da densidade sonora da orquestra até o tutti, onde as estruturas
piano e forte estão extremamente bem definidas.

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As demais indicações, de andamento e caráter, acham-se bem definidas em todas as fontes.

Compasso F1 F2 F4 Critério
14 Contrabaixos com A intensificação de dinâmica e tensão pelo
pausa. movimento melódico ascendente, indica
um possível lapso em F2. É semelhante ao
c. 107. Acrescentar fá com nota
pequena.
35 rén no fragmento Lapso don Flautas dobram oboés, fagotes e piano, o
melódico das lapso é obvio. Manter F1.
flautas.
41 Fagote I: Fagote I: Fagote dobra melodia do piano. Correção
réb-sib-réb ré b-láb-réb de acordo com F1. Segue melodia.
68 Viola: mi-dó Viola: mi-sib Para manter o padrão de Fig.ção entre os
c. 53 e 68, deve ser escrito mi - dó
78-79 Viola: Viola: Incoerência harmônica e de escrita. Está
sol-ré-sol-sib. fá-lá-dó-fá claro que o copista copiou o violoncelo na
parte da viola. Neste trecho as violas
dobram violinos I, além de possuir F2 igual
à F1, diferindo somente nestes compassos,
manter F1.
82-83 Idem compassos 78-79
133 Idem compasso 35
139 Oboé I, 3o. tempo: mib. Erro harmônico. Corrigir para min.
170-171 Nada consta para Trata-se da repetição da seção A da Valsa I.
tamburo Pela similaridade aos c. 26-27,
observa-se provável lapso do tamburo.
Acrescentar com notas pequenas.
174 Idem compasso 170
180 Trompas I, II: Idem 170, relacionado ao c. 36 da
nada consta Valsa I.
Trompas III, IV:
nada consta
Contrabaixo:
nada consta
182 Prato: Idem 170, relacionado ao c. 38 da
nada consta Valsa I.
190 Trompetes: Idem 170, com relação ao c. 46 da
nada consta Valsa I.
192, 194 No terceiro No mesmo trecho do Trata-se da repetição da seçãoBda Valsa II,
tempo do oboé II, oboé II, aparece referindo-se aos c. 29 e 31. Erro
na apojatura, fá# -soln . harmônico em F2.
aparece
fán- solb.
200 Idem compasso 192 Idem 192, relacionado ao c. 37 da
Valsa II.
202 No 3o. tempo, no Aparece soln -láb Idem 192, relacionado ao c. 39 da
oboé II, na Valsa II. Erro harmônico em F2
apojatura, consta
sol# -lán .

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217 Fagote apresenta Nada consta Provável lapso, pois refere-se à


sol e tamburo repetição do c. 54 da Valsa II.
possuem pausas Tomou-se a decisão de indicar a nota
em tamanho pequeno.
218-221 Triângulo, pratos Idem 217 com relação aos compassos
55-58 da Valsa II. Tomou-se a decisão
de indicar as notas em tamanho pequeno.
235 O arpejo do Em F3 e F5, consta láb. Decidiu-se por
piano, no F4 pois, além de ser o manuscrito do
2º tempo, autor da versão, reforça a harmonia e seu
possui sib. caráter de dominante.
236 Compasso único Compasso único Desmembrado O desmembramento quebra a unidade
em dois e a fluidez da coda. Manter compasso
compassos único.

Fig. 12 – Critérios Editoriais para a Valsa nº6

5 - Conclusão
Após a localização e contextualização das fontes, procedeu-se à análise de confiabilidade das
mesmas, sendo possível chegar às seguintes conclusões:
1. Houve, de fato, uma segunda versão para piano e orquestra das Valsas Humorísticas;
2. Tanto o autógrafo de Alberto Nepomuceno dessa segunda versão quanto alguma cópia
revisada ou supervisionada pelo autor encontram-se desaparecidos;
3. O autógrafo de Arthur Napoleão, da versão a dois pianos, teve por substrato a segunda
versão para piano e orquestra;
4. As partes cavadas sobreviventes da segunda versão são posteriores ao autógrafo de Arthur
Napoleão e podem ter tido como fonte o mesmo substrato deste;
5. As partes cavadas sobreviventes da segunda versão não apresentam indícios de
supervisão, revisão ou correção pelo autor, embora possuam um certo grau de
confiabilidade;
6. Os erros encontrados nas partes cavadas sugerem que foram compartilhados de fonte(s)
anterior(es);
Após estas conclusões sobre as fontes, foi possível estabelecer uma hierarquia entre as fontes,
de forma a determinar o texto crítico final. Assim, as fontes F1 (autógrafo de Alberto Nepomuceno),
F2 (partes cavadas) e F4 (autógrafo de Arthur Napoleão) são as fontes primordiais, embora não
primárias. Pela análise formal, harmônica e de estilo poder-se-á chegar a uma edição das Valsas
Humorísticas muito próxima da intenção do autor.

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No contexto das obras para piano de Alberto Nepomuceno, pode-se concluir que as Valsas
Humorísticas pertençem ao seu período de maturidade, o que pode ser observado pela sua
maior liberdade formal e maior proximidade ao estilo francês de um Chabrier ou de um Fauré.

Nepomuceno não foi o primeiro, mas certamente foi um dos principais compositores da música
brasileira, sempre dependente dos avanços europeus. Nepomuceno não negou suas influências
e sempre esteve consciente disso; utilizou-as de forma particular em prol da música de seu país,
independente da fisionomia que porventura as mais diversas correntes estilísticas o quisessem.

6 – Referências bibliográficas
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DAHLHAUS, Carl. Between Romanticism and Modernism. Berkeley, Los Angeles: University of California Press,
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____. Nineteenth-Century Music. Berkeley, Los Angeles: University of California Press, 1989.
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Enciclopédia de Música Brasileira: popular, erudita e folclórica. 2ª ed. Org. MARCONDES, Marcos. São Paulo: Art
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Glosas. A Tribuna. Rio de Janeiro. 11 jun. 1904.
GRIER, James. The Critical Editing of Music – history, method, and practice. Cambridge: Cambridge University
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MEYER, Carlos. Correio dos Theatros – Música: Concerto Alberto Nepomuceno. Correio da Manhã. Rio de Janeiro.
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NATTIEZ, Jean-Jacques. Music and Discourse: Toward a Semiology of Music. New Jersey: Princeton University
Press, 1990.
THEATROS E MÚSICA. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro. 30 ago. 1906.

Luiz Guilherme Duro Goldberg é professor de piano no Conservatório de Música da Universidade Federal de
Pelotas (UFPel), RS. Especialista em Música e Indústria Cultural, pela Universidade Federal de Uberlândia, UFU, e
Mestre em Música - Práticas Interpretativas, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, têm se
dedicado à pesquisa e publicação de obras de autores brasileiros, destacando-se obras até então inéditas de Alberto
Nepomuceno, Henrique Oswald, Luiz Cosme, entre outros.

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