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Luto Na Contemporaneidade
Luto Na Contemporaneidade
[...] A dor do luto não é dor de separação, mas dor de ligação. É esta
novidade que desejo trazer-lhes: pensar que o que dói não é separar-
se, mas apegar-se mais do que nunca ao objeto perdido. [...] Se, com
essa tese em mente, escutarem um analisando que lhes fala da dor que
o atormenta depois da perda de um ser querido, ficarão certamente
surpresos. Surpresos de sentir que a sua dor não é tanto por não ter
mais perto de si o outro amado, mas por tê-lo presente, mais presente
do que nunca. A dor não é pois dor de perder, mas de apertar
fortemente demais os laços com a representação do outro ausente (p.
166).
Tendo descrito os mecanismos psíquicos que operam na condição de luto, Freud
(1917[1915]) nos apresenta ao quadro clínico da melancolia, termo que foi trazido por
Freud da esfera do social para a do privado, como aponta Kehl (2009). As semelhanças
existentes entre essas duas condições são assinaladas: segundo Freud, podemos observar
na melancolia o mesmo ânimo predominantemente abatido, a mesma falta de interesse
pelo mundo, o mesmo recolhimento, a mesma inatividade e também, após algum tempo,
a mesma “silenciosa” dissipação que tem o estado de luto. Contudo, como não poderia
deixar de ser, tratando-se de duas condições distintas, no quadro melancólico há ainda
alguns elementos que faltam ao estado de luto: diferentemente desse último, na
melancolia não se teria consciência do que propriamente se perdeu, ainda que se saiba
quem ou o que foi perdido; apesar de situar no sistema Ics a luta travada em ambos os
quadros entre, de um lado, a necessidade de abandonar o objeto imposta pelo exame de
realidade, e de outro, a tendência da libido a se apegar ainda mais a ele, Freud sustenta
que no caso do luto não há nenhum bloqueio impedindo a passagem desse conflito até a
consciência, enquanto que o mesmo já não poderia ser dito a respeito da melancolia.
Além disso, seria possível notar que, diferentemente do enlutado, o melancólico está
frequentemente dirigindo admoestações e críticas – muitas delas sem qualquer
fundamento – a si mesmo, como se experimentasse um esvaziamento de todo
sentimento de si – contraste que é bem ilustrado por Freud (1917 [1915]) quando ele
afirma que “no luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio
Eu” (p. 176). Essas cruéis repreensões que o sujeito faz a si mesmo, no entanto, não se
referem genuinamente ao seu próprio Eu; são, na verdade, endereçadas àquele objeto
que foi perdido, que deixou o sujeito, e em última análise, elas constituem uma
evidência de que o objeto alojou-se no seio do Eu por meio de uma identificação de tipo
narcísico.
De toda forma, algo fica bastante claro: Freud não deixou dúvidas quanto ao fato
de o luto, enquanto um trabalho psíquico, ser um importante processo de elaboração que
permite ao sujeito se recompor diante da perda e retomar seus investimentos libidinais
no mundo. Na mesma linha, Kehl (2012), enfatiza que o luto é um trabalho da ordem da
saúde psíquica. Não à toa, por várias vezes Freud ressaltou em seus textos a
normalidade da natureza do luto e recomendou que esse processo não fosse perturbado,
advertindo que alguma intervenção poderia até mesmo trazer algum tipo de prejuízo.
Não obstante, na contemporaneidade, o luto nos parece estar sendo inserido na esteira
do movimento de patologização generalizada da vida subjetiva: no DSM-V, o estado de
luto passa a poder ser considerado um transtorno de humor se perdurar por um período
de tempo maior do que duas semanas. Tal critério nos parece ser bastante questionável,
uma vez que não é possível estabelecer um prazo de tempo definido para a elaboração
do luto, pois esse costuma ser variável entre as pessoas. Ademais, como já mencionado
aqui, o luto não é um processo linear: sua temporalidade implica a “[...] reconstrução de
um novo ritmo compatível com modalidades de ausência e presença do objeto e de sua
representação” (KEHL, 2009, p. 206).
Mediante essa questão, cumpre interrogarmos sobre quais seriam as razões que
estão em jogo nos crescentes movimentos de patologização e – consequentemente –
medicalização da vida. Em uma crítica a esses processos, Kehl (2009) adverte que
FREUD, S. (1913) Totem e tabu. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras,
2013.
KEHL, M.R. (2009) O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo:
Boitempo, 2015.
NASIO, J-D. (1996) O livro do amor e da dor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.