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Embora tenha sido abordado no clássico ensaio metapsicológico “Luto e

melancolia” (1917[1915]) e também em alguns outros ilustres trabalhos da obra


freudiana, tal como “Totem e tabu” (1913), o assunto do luto – ao contrário da afecção
melancólica, assunto amplamente revisitado pelos psicanalistas – não parece ter sido
suficientemente explorado pela comunidade psicanalítica. Mesmo no primeiro ensaio
aqui mencionado, Freud abordou essa condição apenas como um modelo, com a
finalidade de compará-lo ao quadro clínico da melancolia e utilizar o que já se sabe
sobre ele na investigação da última.

Podemos definir o luto, fazendo empréstimo das palavras do próprio Freud,


como a “[...] reação à perda de uma pessoa amada ou de uma abstração que ocupa seu
lugar, como pátria, liberdade, um ideal etc.” (1917 [1915], p. 172). Trata-se do trabalho
psíquico que o sujeito deve ser realizar após a perda de um objeto que lhe era
significativo e de grande estima, de modo que aquele possa, assim, elaborar essa perda e
voltar novamente seu interesse para o mundo externo. Durante o curso desse trabalho, o
Eu sofreria uma significativa inibição e restrição em função do grande gasto energético
demandado por essa tarefa psíquica, levando o enlutado a perder o interesse por tudo o
que não guarde alguma relação com o objeto perdido e, consequentemente, a perder
também sua capacidade para amar outros objetos. É como se, aos olhos do enlutado, o
mundo houvesse perdido sua graça e se esvaziado de sentido. Todas essas
características que estão presentes no estado de ânimo do luto, porém, são temporárias,
e desaparecem naturalmente ao término deste, não sendo, pois, necessária nenhuma
intervenção médica.

Freud descreve o desenvolvimento do trabalho do luto da seguinte forma: tudo


teria início a partir do que ele cunhou de “teste da realidade”, fator que colocaria em
evidência o fato de o objeto – ou a relação com esse objeto, como no caso de um
rompimento amoroso, por exemplo – não mais estar presente na vida do sujeito,
obrigando-o então a “desapegar-se” desse objeto – para usar um verbo bastante em voga
na atualidade –, isto é, retirar os investimentos libidinais da representação deste. A
princípio, o sujeito relutaria em fazer tal concessão, pois, como observa Freud,
renunciar a uma posição libidinal é, em geral, algo bastante penoso, mesmo na
iminência de possíveis substitutos; segundo Freud, tal relutância, se levada ao seu
extremo, poderia até mesmo desencadear um estado nomeado por ele de “psicose de
desejo alucinatória”, no qual haveria a recusa em reconhecer a factualidade da perda
levaria o sujeito também à recusa da realidade. Mas, mesmo nos casos em que o
reconhecimento da perda ocorre dentro dos parâmetros da normalidade, o trabalho de
desinvestimento não começa de pronto, sendo precedido por um longo e paulatino
processo em que se pode dizer que há um maior apego ao objeto, uma intensificação no
investimento em tudo o que a ele se relaciona no psiquismo, isto é, nos termos em que
descreve Freud, “cada uma das lembranças e expectativas em que a libido se achava
ligada ao objeto é enfocada e superinvestida, e em cada uma sucede o desligamento da
libido” (1917 [1915], p. 174). Kehl (2009) enfatiza a não linearidade do processo de
luto ao afirmar que nesse ínterim o enlutado pode alternar entre “momentos de relativo
alívio em relação à perda” (p. 204) e momentos de
maior aferro a esse mesmo objeto perdido. Por fim, pode-se então chegar à conclusão do
trabalho de luto, momento em que a libido, após ser retirada de toda sorte de
representações relacionadas à perda e ser recuada temporariamente para o seio do Eu,
fica novamente disponível para ser investida em novos objetos. Nasio (1996) nomeia
essas três etapas descritas por Freud de, respectivamente, superinvestimento,
desinvestimento e identificação.

Cabe enfatizar que a realização desse trabalho não é desacompanhada de um


afeto predominantemente marcado pela dor, aspecto para o qual Freud inicialmente não
encontra nenhuma explicação em termos de economia libidinal: “Mas por que esse
desprendimento da libido de seus objetos deve ser um processo tão doloroso, isso não
compreendemos, e não conseguimos explicar por nenhuma hipótese até o momento”
(1916, p. 250). Em 1926, contudo, nas últimas páginas de “Inibição, sintoma e
angústia”, por analogia aos mecanismos da sensação de dor física, ele parece encontrar
uma resposta para o “grande enigma” da dor psíquica no luto: essa seria causada pelo
intenso nível de investimento na ligação com o objeto, que, todavia não está mais
presente. Tendo em vista essa formulação freudiana, Nasio (1996) acrescenta ainda:

[...] A dor do luto não é dor de separação, mas dor de ligação. É esta
novidade que desejo trazer-lhes: pensar que o que dói não é separar-
se, mas apegar-se mais do que nunca ao objeto perdido. [...] Se, com
essa tese em mente, escutarem um analisando que lhes fala da dor que
o atormenta depois da perda de um ser querido, ficarão certamente
surpresos. Surpresos de sentir que a sua dor não é tanto por não ter
mais perto de si o outro amado, mas por tê-lo presente, mais presente
do que nunca. A dor não é pois dor de perder, mas de apertar
fortemente demais os laços com a representação do outro ausente (p.
166).
Tendo descrito os mecanismos psíquicos que operam na condição de luto, Freud
(1917[1915]) nos apresenta ao quadro clínico da melancolia, termo que foi trazido por
Freud da esfera do social para a do privado, como aponta Kehl (2009). As semelhanças
existentes entre essas duas condições são assinaladas: segundo Freud, podemos observar
na melancolia o mesmo ânimo predominantemente abatido, a mesma falta de interesse
pelo mundo, o mesmo recolhimento, a mesma inatividade e também, após algum tempo,
a mesma “silenciosa” dissipação que tem o estado de luto. Contudo, como não poderia
deixar de ser, tratando-se de duas condições distintas, no quadro melancólico há ainda
alguns elementos que faltam ao estado de luto: diferentemente desse último, na
melancolia não se teria consciência do que propriamente se perdeu, ainda que se saiba
quem ou o que foi perdido; apesar de situar no sistema Ics a luta travada em ambos os
quadros entre, de um lado, a necessidade de abandonar o objeto imposta pelo exame de
realidade, e de outro, a tendência da libido a se apegar ainda mais a ele, Freud sustenta
que no caso do luto não há nenhum bloqueio impedindo a passagem desse conflito até a
consciência, enquanto que o mesmo já não poderia ser dito a respeito da melancolia.
Além disso, seria possível notar que, diferentemente do enlutado, o melancólico está
frequentemente dirigindo admoestações e críticas – muitas delas sem qualquer
fundamento – a si mesmo, como se experimentasse um esvaziamento de todo
sentimento de si – contraste que é bem ilustrado por Freud (1917 [1915]) quando ele
afirma que “no luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio
Eu” (p. 176). Essas cruéis repreensões que o sujeito faz a si mesmo, no entanto, não se
referem genuinamente ao seu próprio Eu; são, na verdade, endereçadas àquele objeto
que foi perdido, que deixou o sujeito, e em última análise, elas constituem uma
evidência de que o objeto alojou-se no seio do Eu por meio de uma identificação de tipo
narcísico.

Tudo se passaria então da seguinte forma: na melancolia, a libido teria tomado


um rumo diverso do luto normal, pois, após haver se desprendido das representações do
objeto perdido, em vez de dirigir-se a novos objetos, o montante libidinal regressaria ao
Eu promovendo uma identificação com esse objeto, de modo que “a sombra do objeto”
cai sobre o Eu, para não deixar de citar a célebre expressão freudiana. Dessa forma, com
o objeto instalado no Eu, a relação com aquele não precisa ser abandonada. O preço a se
pagar por isso, entretanto, não é baixo, pois de toda forma, o que se tem é uma perda no
seio do próprio Eu: “o complexo da melancolia se comporta como uma ferida aberta, de
todos os lados atrai energias de investimento [...] e esvazia o Eu até o completo
empobrecimento [...]” (p. 186). Ademais, nessa dinâmica, outra parte do Eu, a sua
instância crítica – que posteriormente seria mais bem delineada e batizada como
“supereu” – assume um caráter de extrema ferocidade e volta-se contra a parte
identificada com o objeto, subjugando-a. Dessa forma, alimentado por uma relação de
forte ambivalência afetiva, o conflito entre o Eu e o objeto amado que foi perdido dá
lugar à cisão entre a porção do Eu identificada a esse objeto e a instância crítica. Daí a
origem de todas as autocensuras e do automartírio que tanto atormentam o melancólico,
ao mesmo tempo em que lhe servem de fonte de deleite devido à “[...] satisfação de
tendências sádicas e de ódio relativas a um objeto, que por essa via voltaram contra a
própria pessoa” (FREUD, 1917 [1915], p. 184). Isso, entretanto, não é tudo; ainda resta
entender, ressalta Freud, por que frequentemente se observa em alguns casos de
melancolia a recorrência de períodos alternados de um estado de humor maníaco,
embora as características destes sejam radicalmente o oposto do estado melancólico.
Diante desse impasse, Freud (1917[1915]) não encontra outro caminho que não o de
abordar a mania pela mesma via de entendimento das afecções melancólicas:

Na mania, o Eu tem de haver superado a perda do objeto (ou o luto


devido à perda, ou talvez o próprio objeto), e fica então disponível
todo o montante de contrainvestimento que o doloroso sofrimento da
melancolia havia atraído do Eu e vinculado. Ao lançar-se como um
faminto em busca de novos investimentos de objeto, o maníaco
também mostra inequivocamente sua libertação do objeto com o qual
sofreu (p. 188).

O estado maníaco na melancolia diz respeito, portanto, a uma vitória temporária


do Eu em seu combate contra o objeto identificado a ele e que vinha o dominando
durante toda a fase melancólica. Apesar de indubitavelmente constituir uma questão
intrigante, Freud não leva muito adiante a investigação sobre a mania em sua obra.
Tampouco conseguiu precisar o motivo pelo qual não se nota a mesma “virada
maníaca” nos processos de luto, mesmo havendo nestes as mesmas condições
econômicas para tal.

As temáticas do luto e da melancolia foram revisitadas por alguns autores pós-


freudianos que as enriqueceram com novas contribuições e reformulações, algumas das
quais mencionaremos aqui. Nasio (1996) revê as distinções traçadas por Freud entre o
estado normal do luto e o quadro melancólico e as julga não suficientemente
consistentes para caracterizá-los, em vista que, segundo o autor, também em alguns
processos de luto seria possível observar no enlutado as mesmas autorrecriminações dos
melancólicos. Ademais, o autor sustenta que mesmo no luto normal não é possível
haver um discernimento completo a respeito do que foi perdido, e destaca também a
possibilidade de conflito de ambivalência também participar do luto, o que ficaria
evidenciado no sentimento de culpa em relação à perda que atormenta o sujeito
enlutado. Outro ponto da teoria que foi revisitado é o destino da libido ao término do
trabalho de luto: em “Luto e melancolia” (1917[1915]), Freud aponta que o regresso da
libido ao Eu é o que se passa no quadro melancólico, ao passo que, no que diz respeito
ao luto, ele não deixa claro qual seria o caminho tomado pela libido no espaço de tempo
entre o momento em que é desligada do objeto perdido e depois investida em outros
objetos. No entendimento de alguns autores, no luto normal a libido também retornaria
em direção ao Eu, com a diferença de que esse recuo, bem como a introjeção do objeto,
seria temporário e mais rápido – ao contrário da fixação da libido e do objeto no Eu que
se observa no caso da melancolia (ABRAHAM, 1927; NASIO, 1996; KEHL, 2009;
MENDLOWICZ, 2000). Mendlowicz (2000) sinaliza ainda a possibilidade de outros
destinos para a perda de objeto que não as clássicas vias do luto ou da melancolia, tais
como neuroses transitórias ou a psicose alucinatória. Por fim, destacamos ainda que
Freud pouco disse sobre o luto em sua faceta patológica, deixando a impressão de que
essa seria tão somente o equivalente à melancolia. Outros autores, por sua vez, se
interessaram em abordar a noção de lutos cronificados sem necessariamente entendê-los
como um quadro de melancolia.

Kehl (2009) propõe três fatores para a compreensão do apego extremado ao


objeto perdido, o que para ela configura um processo de luto patológico. Um deles
refere-se ao caos pulsional que toma conta do corpo do enlutado por conta de as pulsões
eróticas não encontrarem mais o objeto que antes as satisfazia. Na mesma linha, Nasio
(1996) também sugere tal desorganização pulsional e, mais ainda, propõe a hipótese de
que a dor no luto ocuparia o lugar do objeto perdido no circuito pulsional, servindo
como um objeto transitório para a pulsão nesse momento a fim de evitar que haja uma
estagnação de toda a atividade pulsional do enlutado. Outro fator mencionado pela
autora é a resistência em deixar de amar o objeto perdido, a qual pode ser acentuada
mediante a presença de um sentimento inconsciente de culpa em relação à perda. Nesses
casos, à semelhança do que se passaria na dita resistência de alguns pacientes no setting
analítico, a culpa pode atuar na contramão do trabalho do luto fazendo com que todo o
sofrimento experimentado nesse processo fosse revertido em uma forma de o enlutado
para castigar a si próprio. Estaria aí então o motivo pelo qual o enlutado insistiria em
prolongar, num sofrimento infindável, o seu enlutamento. Há ainda um terceiro ponto a
ser considerado nos casos de luto interminável. Segundo Kehl (2009), pode haver uma
dificuldade de, da posição de total passividade, passar à posição ativa em relação à
perda, isto é, sair do lugar de abandonado pelo objeto para assumir o lugar de sujeito
que também é capaz de deixar ir embora esse objeto.

De toda forma, algo fica bastante claro: Freud não deixou dúvidas quanto ao fato
de o luto, enquanto um trabalho psíquico, ser um importante processo de elaboração que
permite ao sujeito se recompor diante da perda e retomar seus investimentos libidinais
no mundo. Na mesma linha, Kehl (2012), enfatiza que o luto é um trabalho da ordem da
saúde psíquica. Não à toa, por várias vezes Freud ressaltou em seus textos a
normalidade da natureza do luto e recomendou que esse processo não fosse perturbado,
advertindo que alguma intervenção poderia até mesmo trazer algum tipo de prejuízo.
Não obstante, na contemporaneidade, o luto nos parece estar sendo inserido na esteira
do movimento de patologização generalizada da vida subjetiva: no DSM-V, o estado de
luto passa a poder ser considerado um transtorno de humor se perdurar por um período
de tempo maior do que duas semanas. Tal critério nos parece ser bastante questionável,
uma vez que não é possível estabelecer um prazo de tempo definido para a elaboração
do luto, pois esse costuma ser variável entre as pessoas. Ademais, como já mencionado
aqui, o luto não é um processo linear: sua temporalidade implica a “[...] reconstrução de
um novo ritmo compatível com modalidades de ausência e presença do objeto e de sua
representação” (KEHL, 2009, p. 206).

Mediante essa questão, cumpre interrogarmos sobre quais seriam as razões que
estão em jogo nos crescentes movimentos de patologização e – consequentemente –
medicalização da vida. Em uma crítica a esses processos, Kehl (2009) adverte que

“Aos que sofreram o abalo de uma morte importante, de uma doença,


de um acidente grave, a medicalização da tristeza ou do luto rouba ao
sujeito o tempo necessário para superar o abalo e construir novas
referencias, e até mesmo outras normas de vida, mais compatíveis
com a perda ou com a eventual capacitação” (p. 31).
Nessa perspectiva, fica patente o fato de quaisquer manifestações de dor ou
tristeza não poderem ser toleradas em nossa sociedade atual; nesta, não parece haver
lugar para experimentar – e sobretudo expressar – estados de ânimo senão os de euforia,
de júbilo, de êxtase, de modo que qualificar como “maníaca” a cultura do momento em
que estamos vivendo não nos soa exagerado. Silvestre (1999 apud EDLER, 2008)
aponta para o fato de que ser feliz passou de um direito a uma obrigação em nossa
cultura, mudança que, segundo a autora, abre margens para que toda tristeza seja
facilmente patologizada e transformada em motivo de vergonha. Por outro lado, esse
modo de descrever as coisas não deixa de ser contraditório, tendo em vista a explosão
de diagnósticos de quadros depressivos à qual assistimos na contemporaneidade. Na
tentativa de esclarecer essa aparente contradição, evocamos a observação de Edler
(2008) de que em nossa cultura o [...] sujeito oscila entre a dimensão da onipotência, a
condição de júbilo, de triunfo narcísico na qual a falta é negada, e seu oposto, a
impotência, na qual ele está completamente referido a essa falta (p. 96). Contudo, nessa
oscilação de caráter maníaco entre esses dois polos, somente aquele que diz respeito à
posição triunfante e jubilosa é acolhido de bom grado em nosso meio cultural, ficando o
outro relegado ao abafamento. Assim, conforme nota Kehl (2009), formas de
inquietação, de luto, de tristeza, entre outras, são tomados como possíveis indícios de
um transtorno depressivo que, portanto, devem ser tratados via intervenção
medicamentosa. Com tudo isso dito, já não nos provoca grande surpresa notar no
mundo contemporâneo – ou, melhor dizendo, ao menos no que diz respeito ao mundo
ocidental ocidente – uma certa aversão ao enlutamento.

Somado a esse “mandado da felicidade”, ainda temos a questão da velocidade


em que se dão as condições de vida em nosso tempo. Em um breve texto intitulado “A
transitoriedade” (1916), Freud reflete sobre a necessidade de se aceitar a natureza
efêmera das coisas, julgando ser a revolta contra a dor do luto a razão pela qual os seres
humanos em geral são avessos à ideia de finitude. Trazendo essa reflexão para os dias
atuais, logo esbarramos em alguns contrastes, dado que o indivíduo contemporâneo não
parece ser mais aquele disposto a se manter eternamente preso aos seus “preciosos”
objetos. Pelo contrário: em nosso cenário contemporâneo, a norma vigente é
desprender-se o mais cedo possível de todos e quaisquer objetos tão logo eles deixem de
ser úteis ou despontem no horizonte do indivíduo objetos mais atraentes. Na sociedade
pós-moderna líquida em que estamos vivendo, as relações humanas, igualadas a trocas
comerciais de mercadorias, tornam-se facilmente descartáveis, como o sociólogo
polonês Zygmunt Bauman bem se empenhou em apontar. A lógica da “obsolescência
programada” que hoje impera no universo do consumo parece ter adentrado também a
esfera dos relacionamentos humanos, de modo que estes também se tornam bens a
serem consumidos dentro de um prazo de validade. Assim, se no referido texto Freud
(1916) destacara a importância de aceitar a perda e se desvincular libidinalmente de um
objeto que já foi perdido a fim de poder estabelecer novos vínculos, hoje parecemos
assistir a uma radicalização desse processo, na qual a urgência em “seguir em frente” é
tão grande que talvez não deixe espaço nem tempo para que o trabalho psíquico do luto
– que implica algum dispêndio de energia e certo recolhimento – possa acontecer na
ritmicidade que lhe seria própria. O imperativo agora é o de logo “partir para outra”,
sem grandes delongas. Ditos populares do senso comum como “A fila anda, a catraca
gira”, “Quem vive de passado é museu”, “Segue o baile” parecem refletir tão bem como
nunca os valores de nossa sociedade, ao passo que talvez a antiga máxima “O tempo é o
melhor remédio” esteja sendo cada vez mais posta de lado. Nessa direção, Edler (2008)
observa que “a tristeza, o luto e a dor, antes legitimados pela cultura, perderam hoje, sob
o mandado do time is money, essa legitimidade e, consequentemente, o tempo
necessário à sua elaboração” (p. 98), de modo que esse tempo passa a ser, ainda nas
palavras da autora, “[...] fortemente combatido na contemporaneidade” (p. 110). Enfim,
não restam dúvidas ao menos de que há um desencontro entre a aceleração imposta pela
e o tempo próprio ao trabalho de luto, o qual, na concepção freudiana, caracteriza-se
justamente pela lentidão e desaceleramento.

Nessa perspectiva, Kehl (2009) sugere que a noção de “morte despercebida”


enunciada por Pierre Fédida é bastante pertinente para se pensar nos possíveis efeitos da
redução do tempo do luto e do recalcamento da perda, o que caracterizaria os casos
chamados pelo autor de “luto irrealizado”. Na esteira do que propôs Fédida, ela reitera a
possibilidade de os processos de luto irrealizado, nos quais podem haver tentativas de
superar de forma drástica e rápida a morte de uma pessoa amada, culminarem em um
estado depressivo, ou mesmo agir como um agravante de uma depressão já instalada.
Edler (2008) também adverte para os riscos de desenvolvimento de quadros depressivos
ou melancólicos como resultado de uma interrupção ou precipitação no trabalho de luto.
Tendo em vista as considerações dessas autoras e o cenário cultural atual, levantamos os
seguintes questionamentos: haveria alguma relação entre alguns quadros depressivos da
atualidade e processos de lutos ditos “mal elaborados” na atualidade? Se sim, qual seria
a natureza essa relação? E ainda, antes de qualquer coisa, levando em consideração que
o entendimento dos processos psíquicos subjetivos não pode ser dissociado dos
processos sociais e culturais característicos de um determinado contexto histórico: seria
lícito supor que o trabalho de luto na atualidade ocorre nos mesmos parâmetros
descritos por Freud, cujo contexto histórico era outro, com suas próprias características
e impasses específicos? Qual seria o lugar do luto na cultura contemporânea, e quais
seriam os efeitos da mesma sobre ele?
REFERÊNCIAS

ABRAHAM, K. (1927) Breve estudo do desenvolvimento da libido visto à luz das


perturbações mentais. In: Teoria psicanalítica da libido: Sobre o caráter e o
desenvolvimento da libido. Rio de Janeiro: Imago, 1970.

EDLER, S. (2008) Luto e melancolia: à sombra do espetáculo. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2018.

FREUD, S. (1913) Totem e tabu. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras,
2013.

_________. (1916) A transitoriedade. In: Obras Completas de Sigmund Freud. v. 12.


São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

_________. (1917[1915]) Luto e melancolia. In: Obras Completas de Sigmund


Freud. v. 12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

KEHL, M.R. (2009) O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo:
Boitempo, 2015.

MENDLOWICZ, E. O luto e seus destinos. Revista Ágora. Rio de Janeiro, v. 3, n. 2,


jul./dez., 2000.

NASIO, J-D. (1996) O livro do amor e da dor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

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