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Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Programa de Pós-Graduação em Sociologia

Disciplina: A sociologia formal de Georg Simmel

Nome: Tales Fonseca

A sociologia do conhecimento de Simmel e a questão do conflito

1.1 A natureza da compreensão histórica

Simmel (2011), no texto referente ao problema do tempo histórico, admite que a


compreensão pode ser tornada possível a partir de um conteúdo ideal, onde a no
momento em que é apreendida esse conteúdo, na realidade ou na imaginação, no
presente ou no passado, como lembra Simmel, não compreendo São Paulo por causa
de sua realidade histórica. Ocorre, por assim dizer, o inverso: só compreendo dessa
realidade os conteúdos que dela consigo abstrair idealmente (2011, p. 11). Desta
forma, para compreender os fatos conhecidos da histórica, de acordo com Simmel,
que se inscrevem em conexões causais, apenas a totalidade dos fatos permite
compreender de maneira particular cada um deles. No entanto, a compreensão é
afirmada objetivamente e de forma imanente, modificando assim a estrutura
temporal em que estão estabelecidas as unidades da compreensão.
Seneda (2018) nos lembra que o problema da compreensão em Simmel parte de uma
demarcação com o pensamento de Kant, isto é, como é possível a história? (2018. P.
2). Deste modo, Simmel apontaria que, para compreender, e para pensar com a
história é tornada possível, cabe ao espírito se orientar em meio a totalidade, sendo
capaz de unificar uma série de ações, para dar sentido ao uma série de ações. Assim,
Simmel nos apresenta este procedimento do espírito como um a priori, ou seja, as
condições de conseguirmos “valorar e reproduzir hipotéticas sequências de
representações, descritivas de um virtual estado psíquico” (2018, p. 2). Assim,
seguindo Simmel, o tempo é apenas um conteúdo da história entre si, ao passo que a
história, considerada como um todo está fora do tempo (2011, p. 13).
Por mais que Simmel parta de Kant, promovendo uma alteração da sua compreensão
acerca do a priori, Simmel observa a necessidade de fazer uma objeção sobre a
ausência de uma teoria da compreensão histórica em Kant, por mais que haja uma
teoria cosmopolita da história, na qual o telos da ação humana está associado aos
vínculos éticos, políticos e jurídicos, Simmel aponta para a necessidade de uma
teoria da compreensão histórica em que seja capaz de estabelecer um cisão entre
experiência objetiva e experiência vivida, se situando em uma espécie de crítica da
razão histórica, na qual autores como Dilthey e Rickert se situam, apesar de haver
diferenças em relação aos seus modelos teóricos.
Para posicionarmos esta questão, consideramos importante explicar, sinteticamente,
o que seria, para Simmel, um evento histórico e qual a sua relação com o tempo e a
compreensão e, consequentemente, seu estatuto psíquico. Para Simmel, um
conteúdo só pode ser considerado histórico se estiver determinado no tempo e
formar, assim uma unidade da compreensão, mas se for determinadas apenas pelo
que chama de “conteúdos objetivos intemporais” (2011, p. 14), não haveria como
dar a sua inteligibilidade. Par Simmel, este dilema se resolver quando os conteúdos
determinados já se realizaram, sendo que o conjunto só deve conceder a sua
determinação a conteúdos parciais. Desta forma, um evento (ou acontecimento) é
histórico quando, por motivos objetivos, ocupa uma posição determinada no tempo,
indiferente à sua posição no tempo. Cito Simmel:
“ [...] um conteúdo não é histórico apenas por existir no tempo ou apenas
por existir. Ele só se torna histórico quando esses dois aspectos se
encontram, quando a compreensão intemporal permite inscrevê-los no
tempo. [...] Disso decorre que a inscrição no tempo significa aqui a fixação
num ponto determinado no tempo. De um lado, de fato, lá onde esta procede
da totalidade do que se produz, cada evento só pode ter uma única posição
que ele mesmo não pode mudar; de outro, a compreensão só pode se referir
à determinação relativa no tempo e não à inscrição no tempo em geral – pois
isso seria afirmar que evento é real, algo que a compreensão não pode
garantir”. (Simmel, 2011, p. 15).

Deste modo, Simmel, parte do princípio da compreensão, isto é, da interação entre duas
mentes como forma de apreender o indivíduo e sua relação com o psíquico, de modo a
entender como as conexões compreensíveis constituem uma maneira de acessar fatos
observáveis. Simmel, assim, se coloca na tarefa de apontar como se pode compreender a
compreensão em geral, ou seja, “como nossa produção intelectual é parcialmente
antecipada pelas formas e os processos que o espírito desenvolveu para responder as
exigências e às solicitações práticas da vida” (2011, p. 27). A história, para Simmel,
pode ser compreendida como ciência quando se liberta de determinadas funções
utilitárias e passa a ser uma forma de construir imagens da vida passada. Diz Simmel
“que somos sempre historiadores embrionários de nós mesmos” (p. 28). Como
historiadores científicos, as atitudes pré-científicas se completam para dar valor. Assim,
Simmel cria um elemento intersubjetivo, ou psíquico para delimitar a comnpreensão
histórica, ou seja, que a compreensão histórica dependa uma da outra, que um homem
passa a depender um do outro, em uma interação psíquica. Como afirma Seneda,
Simmel foca nas experiências vividas para estabelecer as ligações que formam a
compreensão histórica, pois estas ligações psíquicas fornecem os elementos que
permitem dar sentido ao relato histórico. Simmel transpõe, assim, significação do objeto
histórico para uma interiorização do ato psíquico na sua relação com o objeto histórico.
Nesse aspecto, Simmel sublinha os a priori que nos referimos acima, para formular tal
problema. A estrutura formal da compreensão histórica esta associada a estes a priori,
isto é, há o fenômeno real dado, que ainda não é compreendido e o fenômeno que é
apreendido pelo sujeito, que emana dele e consequentemente trabalhado pelo mesmo.

Caberia então para apreender a compreensão histórica para Simmel:

- Compreender as manifestações de um indivíduo tal como elas se apresentam aos cinco


sentidos. Como elas procedem de motivações psíquicas, trata-se de manejar as
manifestações sensíveis para compreender acontecimentos psíquicos. O outro é algo
cujo interior se pode compreender. (p.29).

- “Onde eu iria buscar, a não ser na minha alma, a matéria que me possibilita conhecer
e compreender outra , já que esta não se apresenta de forma legível para mim? É este
também o problema fundamental da compreensão especificamente histórica”. Ou seja,
só consigo compreender o outro atribuindo conteúdos da minha alma.

- Na medida em que a compreensão histórica, em geral, só modifica a compreensão


simultânea e atual, a transmissão de uma obra, discurso, de uma ação ou de um efeito
produzido por um personagem do passado, contém efetivamente esse personagem e o
oferece a percepção global. Tudo o que o homem manifesta de particular é
representativo na totalidade.
- O outro percebido como um ser dotado de alma. O problema do tu;

- O tu como fundamental transcendental que faz do homem um animal político; O tu


não pode ser definido como a minha representação da mesma maneira que outro objeto
qualquer: sou obrigado a emprestar-lhe um ser-para-si (um estatuto ontológico) que só
sinto em relação ao meu próprio Eu, por oposição a todos os objetos propriamente ditos.
É o que explica o que sintamos o outro, o tu, como criatura mais longíqua e
impenetrável e, ao mesmo tempo, a mais próxima e familiar. De um lado, o Tu dotado
de alma é nosso único par no cosmos, o único Ser com o qual partilhamos uma
compreensão mútua e podemos nos sentir “um” como não ocorre com mais nada.

- A segunda forma de compreensão, pela qual um ato já conhecido como fenômeno


psíquico deve ser compreendido por meio do outro que pertença ao mesmo plano
psíquico. Um caso individual é compreendido por meio de um conteúdo geral
preexistente ao sujeito. Ódio a Bismarck e a anexação da Prússia em 1866.

- A compreensão histórica só se produz manifestadamente, como tal, quando esses


momentos descontínuos, que o observador compreende de maneira descontinua em sua
intemporalidade, são atravessados por uma corrente vital continua que estabelece
vínculos entre eles, sentindo as pulsações da vida no decorrer do tempo.

- A história não é o passado, o qual, a rigor, só nos é dado imediatamente no formato de


fragmentos descontínuos; ela é uma forma ou uma soma de formas pelas quais o
espírito, por meio da observação e da síntese, domina a matéria e percebe seu sentido.

- O fenômeno da compreensão realiza-se na sequência da vida em seu movimento


ininterrupto, em um movimento integral.

- Compreensão de conteúdo e a compreensão de um objeto intelectual.

- Compreendemos bem o movimento psíquico que a consciência realiza porque o


conteúdo objetivo é verdadeiro. Por isso elas são intemporais, mesmo que consigamos
representá-las no tempo.

- Página 48 e 49 sobre Kant


1.2. Simmel e a questão do conflito

- À primeira vista, parece tratar-se de uma mera questão retórica. Se toda ação
recíproca entre os homens é uma sociação, o conflito, uma das ações recíprocas mais
características, a ponto de ser logicamente impossível limitá-la a um indivíduo só,
constitui necessariamente uma sociação. De fato, os elementos propriamente
dissociadores são as causas do conflito: o ódio e a inveja, a miséria e a cobiça.

- Uma vez que essas motivações deflagram o conflito, ele é um remédio contra o
dualismo dissociador, uma via para chegar de alguma maneira à unidade, nem que
seja pelo aniquilamento de uma das partes – um pouco como os sintomas mais
violentos de uma doença representam os esforços do organismo para livrar-se das
perturbações e dores que lhe afligem.

- O conflito, em si mesmo, é a resolução das tensões entre as forças


adversárias. O fato de desembocar na paz não é mais do que uma evidência – entre
muitas outras – de que o conflito é uma síntese de elementos, uma contraposição que
integra, com a transação, um único conceito superior. Tal conceito se define pela
oposição comum a duas formas de relação contra a simples indiferença mútua dos
elementos. Rejeitar ou suprimir a sociação são também negações, mas é
precisamente diferenciando-se delas que o conflito significa o momento positivo que
tece com seu caráter de negação uma unidade impossível de desfazer na prática,
ainda que possa sê-lo conceitualmente.

- o conflito significa, ao contrário, a negação da unidade.

- Assim como o cosmos necessita “de amor e de ódio” para ter uma forma, de
forças de atração e de repulsão, a sociedade precisa de uma relação quantitativa de
harmonia e discordância, de associação e competição, de simpatia e antipatia para
chegar a uma determinada forma. Tais fatores de desunião, entretanto, não são
simples passivos sociológicos, espécie de soma de saldos credores ou instâncias
negativas do social. Não se pode dizer que a sociedade definitiva e real se produza
apenas graças às outras forças sociais positivas, e dependa de que as forças
dissociadoras o permitam. Essa corriqueira maneira de ver as coisas é completamente
superficial: na realidade, a sociedade é o resultado de ambas as categorias e,
consequentemente, as duas têm valor.
- Existem aqui, entre os casos mais complexos, dois tipos opostos. Em primeiro
lugar, temos os pequenos grupos que envolvem, porém, como o casal, um número
ilimitado de relações vitais entre seus membros. Em segundo lugar, a função
absolutamente positiva e integradora do antagonismo se manifesta em casos de
estrutura social caracterizada pela precisão e clareza cuidadosamente conservadas
das divisões e hierarquias sociais. A aversão e má-vontade não só impedem que as
diferenças dentro do grupo se apaguem aos poucos – podem ser provocadas
deliberadamente para manter as disposições discriminatórias –, mas por acréscimo
elas são sociologicamente frutíferas, pois amiúde é graças a elas que se atribuem às
classes e às pessoas sua posição recíproca, que talvez não tivesse sido conferida a
umas e outras (ou que elas teriam ganhado de outro modo) se, por exemplo, as
causas objetivas dessa hostilidade, ainda estando presentes e ativas, houvessem
agido sem o sentimento e as manifestações de inimizade.

- Assim, por exemplo, a oposição de um elemento a outro ao qual está


vinculado pela sociação não é um fator social meramente negativo, quanto mais não
seja porque muitas vezes é o único meio que torna possível a convivência com
pessoas verdadeiramente insuportáveis.

- A oposição passa então a formar parte da própria relação e adquire os


mesmos direitos que as outras razões que a preservam. Não é unicamente um meio
para conservar a relação total, mas também uma das funções concretas do
antagonismo. Quando as relações são puramente exteriores e não têm atualização
prática, a forma latente do conflito cumpre esse papel. Falamos da aversão, do
sentimento das pessoas implicadas na relação de serem ambas reciprocamente
estranhas e repulsivas, atitude mental que se traduziria em ódio e briga reais se, por
qualquer causa, se produzisse um contato imediato. A antipatia produz as distâncias e
afastamentos sem os quais seria impossível esse gênero de vida. A natureza e
alcance dos elementos que compõem a antipatia, o ritmo de sua aparição ou
desaparição e as formas com que nosso comportamento expressa essa aversão
constituem (junto com os elementos unificadores em sentido estrito) um todo
inseparável do modo de vida nas grandes cidades. Pois o que nessa vida aparece
imediatamente como uma dissociação não é, em realidade, mais do que uma das
formas elementares de sociação.

- o conflito constituindo a unidade vital de um grupo;

- Seguramente, muitas das coisas que devemos nos representar como um


sentimento contraditório, como uma justaposição de instintos vários, como um
conjunto de impressões contraditórias são em si mesmas uma perfeita unidade. Mas o
entendimento observador carece do esquema necessário para perceber esta unidade
e se vê obrigado a reconstruí-la como a resultante de múltiplos elementos. Quando
somos simultaneamente atraídos e repelidos por certas coisas, quando em uma
mesma ação parecem misturar-se a nobreza e a mesquinhez, quando o sentimento
que uma pessoa nos inspira se compõe de respeito e amizade, de impulsos paternais
(ou maternais) e eróticos ou de juízos de valor éticos e estéticos, todos esses
fenômenos da alma são amiúde indubitavelmente unitários. Contudo, como não
podemos defini-los diretamente nos vemos obrigados a recorrer a toda sorte de
analogias, de motivos precedentes ou de consequências exteriores ulteriores para
convertê-los em um conjunto de variados elementos anímicos.

- Se o antagonismo não constitui uma sociação por si só, isso não significa que
esteja ausente – salvo nesses casos limite – como elemento dos processos de
sociação.

- Outro caso extremo parece ocorrer quando o conflito se origina


exclusivamente no desejo de lutar. Se o conflito se deflagra por alguma motivação
(ambição de riqueza ou de poder, cólera ou vingança), o objeto ou situação que se
deseja alcançar não só submete a confrontação a normas comuns ou restrições
recíprocas, mas, por representar uma finalidade alheia ao conflito em si, confere ao
antagonismo uma natureza ou caráter peculiar proveniente do fato de que esses fins
podem, em princípio, conseguir-se por outros meios, distintos do desfecho da luta.

- A observação de numerosas antipatias, polêmicas, intrigas e conflitos abertos


nos poderia levar, certamente, à crença de que a hostilidade figura entre as energias
humanas primárias que não se desencadeiam pela realidade exterior de seus objetos,
mas que os objetos são criados pelas próprias energias.

- Todas as relações de um homem com os demais se diferenciam umas das outras em


seu mais profundo fundamento segundo a resposta que se dê à seguinte pergunta
(mesmo se há inumeráveis nuances entre o sim e o não): sua base espiritual é um
instinto que, como tal, se desenvolve ainda sem estímulo externo e busca por sua parte
um objeto adequado – seja que ele o encontre já adequado, seja que ele o transforme em
sua imaginação de acordo a suas necessidades até que se converta em objeto adequado?
Naturalmente, é preciso também que nossa alma tenha as possibilidades para isso, pois,
caso contrário, ficariam latentes e incapazes por si sós de configurar-se como instinto.
As relações entre os homens – relações intelectuais e estéticas, de simpatia e
antipatia – se constituem a partir desta distinção, e é desse fundamento que derivam
suas formas de evolução, sua intensidade e sua história ulterior.

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