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No ano de 1923, Sigmund Freud em seu texto, Psicologias das Massas e Análise do Eu, já havia
indicado não haver uma separação entre uma psicologia individual e outra coletiva – para o
criador da psicanálise, toda psicologia é social. Anos depois, Jacques Lacan ao propor um
retorno no sentido de Freud exigiu uma articulação maior dos psicanalistas com os mais
variados campos do conhecimento, e tomou da linguística, da Antropologia Estrutural, da
matemática e da lógica, da filosofia e da história, da teologia e até aonde fosse a experiência
do falasser em sua sujeição à linguagem os fios soltos dispostos à leitura de um psicanalista.
Para a psicanálise o sintoma é uma forma de dizer que não comunica. Diferente do médico, um
psicanalista não procura, ele acha, ao a-caso de cada caso, e na transferência, os significantes
entesourados no excesso de sentido da história do sujeito sempre articulada aos discursos
dominantes de uma época. É nas cristalizações dos excessos de sentidos produzidos e
compartilhados entre contemporâneos, nos objetos de gozo massificados e compartidos, nas
sacralizações a exigir os sacrifícios da vida de grupo no altar da polis que o mal-estar se
delineia e o falasser acredita encontrar o seu Bem, extensivo ao próximo. É ao topar com esse
engodo que um psicanalista pode, no espaço transferencial, fazer a sua alfaiataria e com sua
tesoura escandir e interpretar, cortar e colar os caquinhos semânticos dispersos por aí.
Ao arrancar da Ordem Médica o monopólio do saber sobre o gozo, Freud deu um passo lateral
e iniciou navegação litoral, margeando e desbastando o literal pela equivocação própria à
errância significante, porque “navegar é preciso, viver não é preciso” por in-dis-por o falasser
dos instrumentos de precisão. À profanação da Ordem Médica a psicanálise instituiu a
laicidade da Ordem Significante, que por não atender às regularidades biológicas introduzia a
descontinuidade errante e inquietante de uma erótica. Porque “fora da Ordem Significante
não há salvação”.
Foi na esteira dessa profanação que o psicanalista Contardo Calligaris inventou a Clínica do
Social. Fiel aos ensinamentos de Freud e Lacan e aos efeitos de sua prática e experiência
clínica, Calligaris acendeu a chama profana dos fundamentos freudo-lacanianos aqui na Bahia
nos idos dos anos 80. Que a pira tenha servido a Deus e ao Diabo na terra do sol não deveria
causar espanto, pelos efeitos aqui produzidos. À lacanalha coube erigir o lugar de crematório
dos fundamentos da psicanálise ao navegar a reboque da Ordem Médica e ao denegar a
análise leiga e o sintoma social; sempre disposta a erigir, com um sorriso sardônico, outras
sacralizações. Já o Diabo, carrega na etimologia o diábolos, o “caluniado”, que bem pode ser
aquele que, dividido, suporta e carrega na pira o fogo simbólico, lugar em que um psicanalista
coloca à prova o seu desejo, por não recuar frente à inquietante questão: Che Vuoi?
Que haja ensino e escola, mestre e aluno, nem por isso há de existir transmissão. A escrita da
história se faz com as cesuras e os apagamentos aos borbotões pelo caminho, nas ânsias da
hagiografia e das insígnias imaginárias de distinção. Que a história da psicanálise na Bahia
aponte para um sentido, só é possível ali onde se confessa a ausência de transmissão. Ante “os
muitos rostos da verdade”, e sem esquecer que ela, a verdade, tem estrutura de ficção, a
psicanálise só pode perdurar onde o desejo de análise cria as condições para a escuta do
sujeito; é na análise pessoal que se faz presente uma transmissão – acompanhada da
supervisão e do permanente confronto da experiência clínica com a teoria. A um psicanalista é
desejável que se preserve um lugar, “uma reserva de subjetividade”, para que possa renunciar
aos bens da polis e à toda pretensão de mestria – como condição de assegurar
genealogicamente a cadeia das profanações.
Nota segunda: Pai, não vês que estou queimando?
A introdução do significante Pai na cultura foi o trabalho de uma mulher. Que Freud tenha
considerado o patriarcado um avanço civilizatório por passarmos da primazia da evidência da
geração biológica às vicissitudes e dúvidas próprias do significante e do simbólico não diminui
o real que o patriarcado recalcou: o poder é feminino. Daí toda reivindicação política de
“empoderamento feminino” se prestar a uma tautologia ou, paradoxalmente, a uma tentativa
de eternizar esse recalcamento.
À questão sobre “o que é um Pai? ”, vem se colocar a interrogante sobre “o que quer uma
mulher? ”. Ao identificar no homem a causa do fruto do seu ventre, e ao dar ao sexual o valor
do engendramento, o significante “Pai” recobriu o sexual com o efeito descontínuo próprio da
fisiologia do significante, remetendo à questão desse gozo Outro, sempre objetável por não
apresentar os despojos de nenhuma evidência, pervertendo a sexualidade do falasser ao furo
próprio do traumatismo provocado pela incidência da linguagem.
Expulsos do Paraíso da Ordem zoológica e do reino dos instintos, banhado no tesouro dos
significantes nos desfiladeiros da linguagem, o humano foi condenado à errância, própria da
pulsão, a qual não pode ser qualificada como trágica por faltar a última palavra a etiquetar o
falasser. O mesmo verbo que se fez carne e nos habitou com os seus nós encontra no Nome-
do-Pai a possibilidade de fazer laço a bascular da tragédia para o drama as possibilidades da
abertura, de uma vereda, a se constituir como saída – não da Ordem linguageira, mas ao
reconhecimento do desejo como assunção de uma escolha possível.
O avanço civilizatório identificado por Freud com a introdução do significante “Pai” na cultura
foi recoberto pela ficção do patriarcado. A sacralização da fertilidade e das potencias do
engendramento da vida passaram a ser tributárias da benevolência de Deus-Pai Todo
Poderoso. A dimensão demiúrgica do Criador aspirou para si toda inflação imaginária que as
religiões monoteístas ofereceram como abrigo e base das grandes narrativas a forjar a nossa
realidade psíquica como realidade narrativa, há mais de dois milênios. A oferta não era uma
oferenda e exigiu em contrapartida uma quota de sacrifício de gozo.
O mal-estar na cultura apontado por Freud era produto do recalque a incidir sobre a
sexualidade ante as exigências da civilização. O inchaço imaginário da Imago paterna recobria
em certa medida os avatares dessa economia psíquica tributária dessa libra de carne cedida
por todo falasser para adentrar o mundo das representações. Falicamente marcados, e sempre
prontos para atribuir ao Outro o plus de sacrifício supostamente exigido, o neurótico lançado
na sarça ardente da psicanálise podia se fazer escutar, na velha economia psíquica, pela
interpelação: Pai, não vês que estou queimando?
Se na “velha economia psíquica” o sujeito tinha a quem apelar no calor do seu mal-estar
aquecido pelos efeitos do recalque, Charles Melman abre o Terceiro Milênio com a hipótese
acerca de uma suspensão do recalque em seu famoso livro “O homem Sem Gravidade” – ou
seria uma Lei sem gravidade? Ao conjecturar a existência de “uma nova economia psíquica”,
Melman aponta para uma mudança na clínica no início do século XXI em relação ao que foi a
experiência freudiana e suas articulações teóricas a lançar os fundamentos da psicanálise.
Essa forma de organizar o laço social favorecia, e ainda favorece, o capitalismo em sua
expansão voraz da desmedida, do excesso, da húbris como indica Melman, ao promover o
objeto de consumo e o fetiche da mercadoria, via circulação livre e desimpedida dos bens,
junto com a ideologia neoliberal a promover a consigna de que todos são livres para escolher o
objeto mais adequado ao seu gozo. Ao contrário da economia psíquica fundada no recalque a
nos manter nos limites estreitos da satisfação com o semblante, com a representação do
objeto, sempre inadequado e insatisfatório, indicando os limites e a cifra do meu gozo, vemos
surgir, no enquadre da “nova economia psíquica” proposta por Melman, a busca pelo
autêntico, pela transparência e pelo gozo direto do objeto.
A mutação cultural a ganhar velocidade nos últimos decênios não atendia exclusivamente às
vicissitudes da economia nem muito menos da política. O discurso determina o itinerário e os
deslocamentos na ordem discursiva encontraram no extraordinário progresso científico as
possibilidades de intervenção do humano no Real até então inimagináveis. O encurtamento
das distâncias, com a eficiência nos meios de transportes, mas, sobretudo, com o advento da
internet, provocaram rupturas de tempo e espaço capazes de aproximar culturas longínquas e
relativizar costumes locais – ainda que os efeitos desses contatos interculturais mais intensos
tenham despertado “os narcisismos das pequenas diferenças” aumentando a xenofobia, o
racismo e a segregação.
Mas foi com a biologia, sobretudo, com os avanços alcançados pelo domínio das técnicas de
fecundação e reprodução que a Ciência conseguiu interferir no último bastião reservado ao
sagrado ao ser capaz de engendrar a vida. Ao profanar a Criação, com a possibilidade real da
reprodução assistida, a Ciência rompeu o limite, não apenas do poder da fertilidade atribuído à
divindade, mas ao relativizar o peso que nos constrangia a sermos tributários e submetidos às
leis da linguagem, como no liame estabelecido pelo ato de fala de uma mulher ao atar a cópula
e o nascimento de uma criança, meses depois, ao intercurso sexual com um homem,
introduzindo a sexualidade humana numa Ordem Erótica. Com a intervenção tecnológica na
reprodução humana, viabilizando o engendramento de uma criança fora do sexo, assistimos a
uma desidratação da Ordem Significante a nos lançar na fluidez de uma Lei sem gravidade.
Da Ética da Psicanálise espera-se que seja contemporânea do sintoma social, sendo ele, o
sintoma, sempre o efeito de uma rede discursiva. Em uma época onde o discurso dominante
aponta para uma transposição acelerada do impossível por conta de um suposto domínio
sobre o Real, qual o lugar da psicanálise em nossa cultura? Tomando emprestado do filósofo
italiano, Giorgio Agamben, o conceito de contemporâneo, identificando como contemporâneo
o sujeito que não adere imediatamente ao seu tempo, pensamos ser possível uma ética
psicanalítica para o nosso tempo a partir da consigna lacaniana de “não ceder em seu desejo”.
É nessa suspensão temporal que um sujeito pode relativizar as propostas de gozo massificadas
da polis e renunciar à toda pretensão de domínio sobre o Real, admitindo o seu desejo como a
colocação em ato das inquietantes questões vindas de uma Outra cena. Ao se postar diante do
desejo e articular as seguintes interrogantes: eu quero o que desejo? Eu posso o que desejo? E
eu devo o que desejo? É a complexidade própria do desejo que se encontra desacreditada
quando a Ordem Significante sofre os efeitos do discurso científico com suas promessas de
supressão do impossível.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Freud, Sigmund (1856-1939). Psicologia das Massas e Análise do Eu e outros textos (1920-
1923) / Tradução Paulo César de Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
Lacan, Jacques (1901-1981). O Seminário, livro 3: As Psicoses (1955-56). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1985.
Melman, Charles. O Homem Sem Gravidade: Gozar a Qualquer Preço / Charles Melman -
Entrevistas a Jean-Pierre Lebrun. Companhia de Freud Editora - Rio de Janeiro, 2003.