Você está na página 1de 9

Sesmarias e terras devolutas

Roberto Moreira de Almeida

Sumário
1. Introdução. 2. As sesmarias. 2.1. Concei-
to. 2.2. Origem do vocábulo. 2.3. Antecedentes
históricos. 2.4. Etapas da implantação sesmaria-
lista no Brasil. 2.5. Críticas às sesmarias brasi-
leiras. 3. Terras devolutas. 3.1. Conceito. 3.2.
As terras devolutas consideradas como bens
públicos. 3.3. A propriedade das terras devolu-
tas na Constituição Federal de 1988. 3.4. As ter-
ras devolutas e a usucapião. 3.5. Destinação das
terras devolutas no Estatuto da Terra. 4. Do
processo discriminatório. 4.1. Conceito. 4.2.
Previsão legal. 4.3. Processos. 5. Conclusões.

1. Introdução
O tema sesmarias e terras devolutas, embo-
ra vetusto, ainda gera uma série de contro-
vérsias e questionamentos no meio jurídico
brasileiro.
De fato, temos observado publicações as
mais variadas discorrendo sobre o assunto.
Estudiosos de Direito Agrário (jus-agraris-
tas) têm abordado a matéria em artigos, li-
vros e outras publicações científicas es-
pecializadas sob os mais variados enfoques.
Ademais, processualistas civis pátrios e
alienígenas tentam elucidar o processo es-
pecial destinado a discriminar as terras de-
volutas na atualidade, ou seja, a analisar e
perscrutar os processos judicial e adminis-
trativo discriminatórios das terras devolu-
Roberto Moreira de Almeida é Procurador tas da União e dos estados-membros.
da República no Estado da Paraíba, Professor e Em face disso, resolvemos elaborar um
Mestre em Direito. estudo com o afã de contribuir com o debate
Brasília a. 40 n. 158 abr./jun. 2003 309
e tentar absorver e carrear ao mundo jurídi- ta parte de alguma coisa, tal como o foro das
co nossa opinião acerca dos sobreditos ins- terras férteis dadas a requerente por ficarem
titutos agrários, bem como, de forma sintéti- elas em abandono, representando em geral
ca, discorrer sobre as etapas para se efetivar a sexta parte dos frutos”. Em arremate, as-
a discriminação e demarcação das terras severa o insigne mestre, “o verbo sesmar ex-
públicas devolutas. primia a concessão de terras sujeitas a tal
Esse estudo está dividido em três partes pagamento de foro, daí surgindo a palavra
principais. sesmaria” (1994, p. 108).
A primeira destinada será às sesmarias. No mesmo pensar, Manuel MADRUGA
Nela abordaremos o conceito, a origem do assevera que em Portugal ocorreu a “con-
vocábulo, os antecedentes históricos, as eta- cessão de terras sob o pagamento de uma
pas de implantação no Brasil, bem como renda barata, fixada na sexta parte dos fru-
uma análise crítica ao instituto implantado tos – a sesma – de onde se originou a deno-
em solo pátrio e sua correlação com o regi- minação sesmaria” (1928, p. 11).
me instituído em Portugal. Embora não se tenha uma conclusão in-
Não descuramos, por outro ângulo, do dubitável acerca da origem vocabular, en-
estudo sobre as terras devolutas no que con- tendemos que as opiniões de Pinto Ferreira
cerne ao seu enquadramento legal de bem e de Manuel Madruga são as mais corretas.
dominical, de sua finalidade pública e de Com efeito, a sesmaria, no sentido segundo
ser insuscetível de aquisição por usucapião. o qual a conhecemos no Brasil, consistindo
Noutra ocasião, tratamos do processo na concessão de uma dada gleba de terra
discriminatório como instrumento adminis- abandonada ou não cultivada a uma pes-
trativo ou judicial hábil a discriminar as ter- soa (sesmeiro), tendo esta por obrigação ocu-
ras devolutas e separá-las das terras públi- pá-la e fazê-la produzir, originou-se da pa-
cas não-devolutas e particulares. lavra sesma.
2.3. Antecedentes históricos
2. As sesmarias
Não é de Portugal o nascedouro do ins-
2.1. Conceito tituto agrário da sesmaria.
Menciona-se, no meio histórico-doutri-
Sesmarias, sinteticamente, consistem
nário, a presença sesmarial no antigo Impé-
nos lotes de terras abandonadas ou in-
rio Romano, quando, com o afã de estimu-
cultas cedidos pelos reis lusitanos a de-
lar e melhor aproveitar o uso do solo, os reis
terminadas pessoas que resolvessem cul-
promoviam sua divisão em pequenos lotes
tivá-las. Esses cultivadores passaram a
e os distribuíam, gratuitamente ou median-
ser conhecidos e tratados por sesmeiros,
te o pagamento de simbólica remuneração,
ou seja, os beneficiários das sesmarias
aos guerreiros ou a quem resolvesse culti-
(FERREIRA, 1994, p. 107).
vá-los (MADRUGA, 1928, p. 11).
2.2. Origem do vocábulo A implantação do regime em Portugal
deveu-se ao Rei D. Fernando I. Ele aprovou
Questão movediça concerne à origem da a lei de 26 de junho de 1375 (Lei das Sesma-
palavra sesmaria. rias), instrumento legislativo destinado a
Para LOBÃO (1861, p. 182-183), sesma- promover uma verdadeira reforma agrária
ria é originária de caesimare, que significa e distribuir aos súditos lusitanos pequenas
cortar ou arar a terra abandonada. glebas de terra. Teve Sua Majestade o esco-
A sobredita opinião é refutada por Pinto po de realizar um maior desenvolvimento
FERREIRA. Para o jurisconsulto pernambu- agrícola e melhor utilização do solo. O ses-
cano, sesmaria deriva de sesma, isto é, “a sex- meiro, em contrapartida, ficava incumbido

310 Revista de Informação Legislativa


de efetivar o pagamento de um percentual gação de ocupar, povoar e explorar a capi-
sobre os frutos colhidos (a sesma). tania, estavam incumbidos de conceder tais
Antes mesmo do descobrimento do Bra- títulos de ocupação do solo.
sil, diversos tratados já disciplinavam a Em ocasião seguinte, a outorga sesmari-
partilha do território americano entre Por- alista deixou de pertencer aos capitães he-
tugal e Espanha. A propósito, a título de reditários e passou para a incumbência dos
exemplos, pode-se citar o Tratado de Alcáço- governadores-gerais.
vas, de 1479; a Bula Papal “Inter Coetera”, Numa fase posterior, em decorrência das
de 1492; e o Tratado de Tordesilhas, de 1494. falhas vislumbradas nos sistemas anterio-
Em 21 de abril de 1500, com a chegada res, porquanto bastante ineficientes, a Co-
da esquadra lusitana comandada por Pe- roa portuguesa reservou para si a respon-
dro Álvares Cabral, oficializou-se a ocupa- sabilidade de escolher os sesmeiros e outor-
ção portuguesa, fenômeno que passou a se gar as respectivas cartas.
denominar descobrimento do Brasil.
Toda a terra, antes ocupada pelos silví- 2.5. Críticas às sesmarias brasileiras
colas, por direito de ocupação (descobrimen- A instituição sesmarialista no Brasil não
to), passou a pertencer à Coroa portuguesa. é aceita como tendo sido positiva.
Portugal, entrementes, somente resolveu De fato, propugnam os jus-agraristas que
ocupar a nova terra e explorá-la a partir de ela foi bem sucedida em Portugal e nas colô-
1530, com o malogro do comércio das espe- nias portuguesas de Açores e Cabo Verde,
ciarias indianas. devido às suas reduzidas áreas geográficas.
O marco inicial se deu com a divisão do No Brasil, a contrario sensu, um país de di-
solo tupiniquim em quinze lotes, denomi- mensão continental, já era previsto que o
nados capitanias hereditárias. sistema não poderia funcionar, como efeti-
Essas capitanias foram concedidas a vamente não funcionou, a contento.
doze donatários. Diziam-se particulares e Ela trouxe seqüelas insanáveis ao regi-
hereditárias essas capitanias pelo fato de me agrário pátrio, por ter dado início à for-
pertencerem aos donatários e serem trans- mação dos grandes latifúndios em nosso
missíveis aos seus descendentes causa mor- país, que ainda hoje perduram nas cinco
tis (FERREIRA, 1994, p. 109). regiões brasileiras, diferentemente do que
Nesse regime das capitanias heredi- ocorreu em Portugal, de dimensão territorial
tárias, os capitães-mores eram os verdadei- reduzida, onde o sistema provocou o nasce-
ros plenipotenciários, eis que incumbidos douro da pequena propriedade agrícola bem
estavam de exercer a quase totalidade das mais eficiente e justa social e economicamen-
funções, entre as quais a de conceder cartas te do que a grande propriedade brasileira,
de sesmaria, que foi o primeiro instrumento na maioria das vezes improdutiva.
de divisão e legitimação da ocupação da pro- Ademais, a implantação do sistema ses-
priedade territorial no Brasil. marialista no Brasil foi calcado em critérios
pessoais e econômicos. Apenas as pessoas
2.4. Etapas da implantação privilegiadas político-economicamente fo-
sesmarialista no Brasil ram beneficiadas. O grande contingente ru-
O professor e magistrado federal João ral-trabalhador ficou desamparado e não
Bosco Medeiros de SOUSA (1994, p. 17) tra- teve outra alternativa senão trabalhar em
ça três fases de implantação do regime ses- regime de servidão ou de quase-escravidão
marialista no Brasil, a saber: para os sesmeiros.
A primeira seria aquela em que as cartas No plano estritamente jurídico, também
ou dadas de sesmarias podiam ser outorga- não se pode dizer que se implantou o regi-
das pelos capitães-mores, que, além da obri- me sesmarialista no Brasil, pois não havia

Brasília a. 40 n. 158 abr./jun. 2003 311


no Brasil terras abandonadas, mas áreas marias e outras concessões do Gover-
completamente inexploradas até então. Nes- no Geral ou Provincial, não incursas
se pensar, vaticinou Emílio Alberto Maya em comisso por falta de cumprimento
GISCHKOW “... que no Brasil colonial não das condições de medição, confirma-
existiam propriedades abandonadas, mas ção e cultura;
terras virgens para serem cultivadas (de § 3º As que não se acharem dadas
modo que) não tivemos sesmarias e sim datas por sesmarias ou outras concessões
e concessões da Coroa portuguesa, de que a do Governo, que, apesar de incursas
expressão sesmaria foi usada como sinôni- em comisso, forem revalidadas por
mo” (1988, p. 71-72). essa lei;
§ 4º As que não se acharem ocupa-
3. Terras devolutas das por posses que, apesar de não se
fundarem em título legal, forem legiti-
3.1. Conceito madas por essa lei”.
b) O Decreto-lei Nº 9.760/1946
3.1.1. Considerações preambulares Esse diploma normativo, no que pertine
ao conceito de terras devolutas, manteve o
Tarefa não muito fácil tem sido traçar o
critério legal adotado pela Lei de Terras,
conceito de terras devolutas.
denominando-as como sendo aquelas que,
Em face disso, além dos doutrinadores,
embora não sendo aplicadas a algum uso
alguns diplomas legais passaram a concei-
público federal, estadual ou municipal, não
tuá-las, embora saibamos não ser tarefa legi-
foram incorporadas ao patrimônio particu-
ferante a conceituação de institutos jurídicos.
lar. Assim está redigido o art. 5º, in litteris:
Em um primeiro momento, abordaremos
“Art. 5º São terras devolutas, na
os conceitos legais e, em seguida, traremos
faixa de fronteira, nos Territórios Fe-
a lume o entendimento da doutrina pátria.
derais e no Distrito Federal, as terras
3.1.2. Conceitos legais que, não sendo próprias nem aplica-
das a algum uso público federal, esta-
Basicamente, dois diplomas legais ten- dual, territorial ou municipal, não se
taram conceituar ou definir o que se deve incorporaram ao domínio privado:
entender por terras devolutas: a) a Lei Impe- a) por força da Lei nº 601, de 18 de
rial nº 601, de 18 de setembro de 1850, e b) o setembro de 1850, Decreto nº 1.318, de
Decreto-lei nº 9.760, de 5 de setembro de 30 de janeiro de 1854, e outras leis e
1946. decretos gerais, federais e estaduais;
a) A Lei Imperial Nº 601/1850 (Lei de b) em virtude de alienação, conces-
Terras) são ou reconhecimento por parte da
O critério fixado pelo legislador, ao con- União ou dos Estados;
ceituar as terras devolutas, foi o da exclu- c) em virtude de lei ou concessão
são. Seriam terras devolutas aquelas áreas emanada de governo estrangeiro e ra-
excluídas das hipóteses mencionadas nos tificada ou reconhecida, expressa ou
quatro parágrafos do art. 3º, in verbis: implicitamente, pelo Brasil, em trata-
“Art. 3º São terras devolutas: do ou convenção de limites;
§ 1º As que não se acharem aplica- d) em virtude de sentença judicial
das a algum uso público nacional, com força de coisa julgada;
provincial ou municipal; e) por se acharem em posse contí-
§ 2º As que não se acharem no do- nua e incontestada, por justo título e
mínio particular por qualquer título boa-fé, por termo superior a 20 (vinte)
legítimo, nem forem havidas por ses- anos;

312 Revista de Informação Legislativa


f) por se acharem em posse pacífi- Tomás PARÁ FILHO, por seu turno, en-
ca e ininterrupta, por 30 (trinta) anos, tende que as terras devolutas são bens pa-
independentemente de justo título e trimoniais da União, Estados-membros, Dis-
boa-fé; trito Federal ou municípios (bens do Esta-
g) por força de sentença declarató- do), “afetados por destinação social ‘sui
ria proferida nos termos do art. 148 generis’, i. e., bens imóveis que passam, ob-
da Constituição Federal, de 10 de no- servados os requisitos legais, para o patri-
vembro de 1937. mônio privado, em razão de pressupostas
Parágrafo único - A posse a que a vantagens disso advindas para a economia
União condiciona a sua liberalidade social, com a efetiva colonização do solo, o
não pode constituir latifúndio e de- povoamento dos sertões e a cultura de gle-
pende do efetivo aproveitamento e bas produtivas, utilizando, ao máximo, as
morada do possuidor ou do seu pre- riquezas fundiárias potenciais” (1977-1982,
posto, integralmente satisfeitas por p. 55).
estes, no caso de posse de terras situa- Pinto FERREIRA vaticina que “terras
das na faixa da fronteira, as condições devolutas são aquelas terras que, embora
especiais impostas na lei”. antes doadas ou ocupadas, não se encon-
tram cultivadas e aplicadas para nenhum
3.1.3. Conceitos doutrinários uso público, sendo assim devolvidas ao
No pensar de Altair de Souza MAIA: domínio do Estado” (1994, p. 281).
“Terras devolutas, espécie do gê- Clóvis Beviláqua, Teixeira de Freitas e
nero de terras públicas, são aquelas Epitácio Pessoa trazem um conceito simpli-
terras que, tendo sido dadas em ses- ficado. Para eles, as terras devolutas seriam
marias, foram, posteriormente, em vir- as áreas desocupadas, não possuídas e sem
tude de haverem caído em comisso, dono.
devolvidas à Coroa. Pelo menos, foi Data venia, não aceitamos o entendimen-
esse, originariamente, o conceito que to de que as terras devolutas sejam desocu-
as nominava, evoluindo, ao depois, padas e sem dono. Com efeito, as terras de-
para a definição contemplada no De- volutas não são objetos sem dono ou deso-
creto-lei nº 9.760/46, art. 5º, i. e., são cupados. São bens públicos em sentido am-
devolutas as terras que não se acharem plo, o que será apreciado mais adiante.
aplicadas a algum uso público federal, Em suma, podemos conceituar terras
estadual ou municipal, ou que não ha- devolutas como sendo aquelas glebas ou
jam, legitimamente, sido incorporadas porções de terras não incorporadas ao pa-
ao domínio privado”(19- -?, p. 3-12). trimônio do particular e que não se encon-
Paulo GARCIA (1958, p. 12), estudioso e tram destinadas a um uso específico pelo
profundo conhecedor do assunto, estabele- poder público.
ce um critério tricotômico para identificar
as terras devolutas. Para ele, tais terras são 3.2. As terras devolutas consideradas
aquelas que: como bens públicos
a) não se encontram utilizadas pela Os bens públicos, segundo o art. 65 do
União, Estados, Distrito Federal ou municí- diploma civil pátrio de 1916, são aqueles
pios; integrantes do domínio da União, Estados
b) não estiveram em posse de algum par- ou dos Municípios. Todos os demais bens
ticular em 1850, seja por título ou sem título seriam particulares, qualquer que seja o seu
imobiliário e titular.
c) não estejam no domínio de um parti- Na realidade, o entendimento legislati-
cular, em decorrência de um título legítimo. vo supra merece reparos.

Brasília a. 40 n. 158 abr./jun. 2003 313


De fato, esqueceu-se dos bens do Distri- II – as terras devolutas indispensáveis
to Federal, que também são públicos. à defesa das fronteiras, das fortificações e
Por outro lado, existem hoje as empresas construções militares, das vias federais de
públicas e as sociedades de economia mis- comunicação e à preservação ambiental,
ta, integrantes da administração pública fe- definidas em lei...” [grifo nosso].
deral, estadual, distrital ou municipal indi- “Art. 26. Incluem-se entre os bens
reta. Os bens dessas entidades não são con- dos Estados:
siderados públicos no sentido estrito, pois I – (...)
somente em um sentido amplo assim pode- IV – as terras devolutas não compre-
riam ser conceituados. endidas entre as da União...” [grifo nos-
É digno de registro enfatizar que o Códi- so].
go Civil Beviláqua estabelece uma classifi- Compulsando os dois dispositivos da
cação dos bens públicos em três categorias: Constituição Federal supratranscritos, vis-
a) bens de uso comum do povo, tais como os lumbra-se que todas as terras devolutas bra-
mares, rios, estradas, ruas e praças; b) os de sileiras pertencem à União ou aos Estados.
uso especial, tais como os edifícios ou terre- Conclui-se que não há terra devoluta muni-
nos aplicados a serviço ou estabelecimento cipal.
federal, estadual ou municipal; e c) os do- Em síntese, não há mais terras devolu-
minicais, isto é, os que constituem o patri- tas municipais. São de propriedade da
mônio da União, dos Estados, ou dos Muni- União apenas aquelas indispensáveis à de-
cípios, como objeto de direito pessoal ou real fesa das fronteiras brasileiras, das fortifica-
de cada uma dessas entidades (art. 66, CC). ções e construções militares, das vias fede-
Surge, destarte, a pergunta: as terras de- rais de comunicação e à preservação ambi-
volutas são bens públicos ou privados? Se ental, nos termos definidos em lei. Todas as
públicos, seriam de uso comum do povo, de demais pertencem aos estados-membros, de
uso especial ou dominicais? acordo com a sua localização.
Não temos dúvidas de que as terras de-
volutas são integrantes do patrimônio pú- 3.4. As terras devolutas e a usucapião
blico disponível. Estão, portanto, relaciona- Questão que por muito tempo encetou
das na categoria dos bens dominicais ou discussões no meio jurídico brasileiro foi a
dominiais. possibilidade ou não de se adquirir o domí-
nio das terras devolutas por meio da usuca-
3.3. A propriedade das terras devolutas na pião.
Constituição Federal de 1988 Em um primeiro estágio, quando se acei-
Como já salientado acima, as terras de- tava que as terras devolutas seriam aquelas
volutas são bens públicos dominiais. Você, sem titular, sem dono e sem utilização, po-
caro leitor, pode indagar: a quem pertencem der-se-ia ventilar a hipótese de que a pes-
tais terras: à União, aos estados-membros, Dis- soa, ao dela se apossar, por um determina-
trito Federal ou aos municípios? do período, sem oposição, poderia adqui-
A propriedade dos bens públicos está rir-lhe a propriedade.
traçada, preambularmente, na Constituição. A questão foi levada à apreciação do
Vejamos, a propósito, o que disciplina a Lei Poder Judiciário.
Ápice vigente sobre o domínio das terras Após várias decisões discrepantes, umas
devolutas: concedendo o domínio e outras o negando,
“Art. 20. São bens da União: a matéria foi submetida à apreciação do
I – os que atualmente lhe perten- Colendo Supremo Tribunal Federal, que, ao
cem e os que lhe vierem a ser atribuí- pacificar o entendimento jurisprudencial,
dos; editou o verbete de Súmula nº 340, assim

314 Revista de Informação Legislativa


redigido: “Desde a vigência do Código Ci- agrícola e com o plano nacional de reforma
vil, os bens dominicais, como os demais bens agrária”.
públicos, não podem ser adquiridos por Ante o exposto, em regra, o poder públi-
usucapião”. co deve destinar as terras devolutas exis-
Destarte, não se admite usucapião de tentes para fins de colonização e reforma
terras devolutas porque são consideradas agrária.
bens públicos em sentido estrito.
3.5. Destinação das terras devolutas no 4. Do processo discriminatório
Estatuto da Terra 4.1. Conceito
Discute-se acerca de qual fim deveria o
O processo discriminatório é aquele des-
poder público dar às terras devolutas. Des-
tinado a assegurar a discriminação e deli-
tinar-se-iam para fins públicos em geral ou
mitação das terras devolutas da União e dos
para fins especiais?
estados-membros, além de separá-las das
O Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/64)
terras particulares e de outras terras públi-
especifica, entre as possibilidades de utili-
cas.
zação, a sua destinação para fins de refor-
ma agrária. 4.2. Previsão legal
De fato, prescrevem os arts. 9º e 10 do
A discriminação das terras devolutas da
citado estatuto, in verbis:
União está prevista na Lei nº 6.383, de 7 de
“Art. 9º Dentre as terras públicas,
dezembro de 1976.
terão prioridade, subordinando-se aos
fins previstos nesta lei (colonização e 4.3. Processos
reforma agrária), as seguintes:
Existem duas modalidades de processos
I – as de propriedade da União que
discriminatórios: a efetivada administrati-
não tenham outra destinação especí-
vamente e por meio judicial.
fica;
(...) 4.3.1. Processo administrativo
III – as devolutas...”[grifo nosso].
“Art. 10. O Poder Público poderá É aquele efetivado pela própria Admi-
explorar, direta ou indiretamente, nistração. Está elencado nos arts. 2º usque
qualquer imóvel rural de sua proprie- 17 da Lei nº 6.383/76.
dade, unicamente para fins de pesqui- Pode ser dividido em três fases:
sa, experimentação, demonstração e I – Instauração
fomento visando ao desenvolvimento O presidente do Instituto Nacional de
da agricultura, a programas de colo- Colonização e Reforma Agrária (INCRA)
nização ou fins educativos de assis- está encarregado de criar as Comissões Es-
tência técnica e de readaptação. peciais, com circunscrição e sede estabele-
(...) cidas no ato de criação.
§ 3º Os imóveis rurais pertencen- Essas Comissões Especiais, integradas
tes à União, cuja utilização não se en- por um advogado do serviço jurídico do
quadre nos termos deste artigo, pode- INCRA (presidente), um engenheiro agrô-
rão ser transferidos ao Instituto Brasi- nomo (membro) e um funcionário (secretá-
leiro de Reforma Agrária...”. rio), ficarão incumbidas de instaurar o pro-
No mesmo diapasão, estabelece o art. cesso administrativo discriminatório.
188 da Constituição Federal de 1988, a sa- II – Instrução
ber: “A destinação de terras públicas e de- Após instaurada, a Comissão instruirá
volutas será compatibilizada com a política o processo do seguinte modo:

Brasília a. 40 n. 158 abr./jun. 2003 315


a) elaboração do memorial descritivo da administrativo for dispensado ou interrom-
área; pido por absoluta ineficácia; ii) contra aque-
b) convocação, por edital, com prazo de les que não atenderem ao edital de convoca-
60 (sessenta) dias, dos interessados para ção ou notificação; e iii) quando ocorrer al-
apresentarem seus títulos dominiais ou ale- teração de divisas, ou transferências de ben-
garem aquilo do seu interesse. Esse edital feitorias a qualquer título, sem assentimen-
deverá ser afixado em lugar público na sede to da União (atentado) (art. 19, LAC);
dos municípios e distritos onde se situar a c) Competência: sendo parte autora uma
área nele indicada, bem como, por duas ve- autarquia federal (o INCRA), a competên-
zes, no Diário Oficial da União, do Estado e cia para processar e julgar processo discri-
na imprensa local, onde houver, com interva- minatório de terras devolutas da União é da
lo mínimo de 8 (oito) e máximo de 15 (quinze) Justiça Federal.
dias entre a primeira e a segunda publicação; d) Procedimento: o rito do processo dis-
c) autuação da documentação recebida criminatório judicial será o comum sumá-
de cada interessado e tomadas por termo as rio e não o sumaríssimo, como previsto no
declarações dos interessados e depoimen- art. 20 da lei de regência. Está elencado na
tos das testemunhas se houverem previa- hipótese material genérica do art. 275, II, g,
mente sido arroladas; do Código de Processo Civil brasileiro.
d) vistoria para identificação do imóvel; e) Regras específicas: i) petição inicial: deve
e) pronunciamento sobre as alegações, ser instruída com o memorial descritivo da
títulos de domínio, documentos dos interes- área a ser discriminada; ii) citação: não será
sados e boa-fé das ocupações; efetivada pelo correio, mas sim por edital;
f) levantamento geodésico e topográfico iii) sentença: caberá apelação recebida sem-
das terras objeto de discriminação bem como pre no efeito devolutivo, possibilitando a
sua demarcação. Excluídas, nessa demarca- sua execução provisória; iv) prioridade: a ação
ção, estarão as áreas particulares devidamente discriminatória terá prioridade em relação às
comprovadas pelos legítimos proprietários. outras ações em andamento relativas a domí-
III – Conclusão nio ou posse de imóveis, situados, no todo ou
Encerrada a demarcação, será lavrado em parte, na área a ser discriminada.
termo de encerramento da discriminação
administrativa e levado a registro, pelo IN- 5. Conclusões
CRA, em nome da União, no Registro Civil
de Imóveis. Ao fim e ao cabo do presente estudo, po-
demos extrair as seguintes conclusões:
4.3.2. Processo judicial 1) Embora vetusto, o tema sesmarias e ter-
O processo discriminatório judicial, ras devolutas ainda enseja discussões as mais
como é cediço, é aquele que se efetiva por acirradas no meio jurídico brasileiro.
intermédio do Poder Judiciário. 2) As sesmarias eram os lotes de terras
Disciplinada está a discriminação das abandonados ou incultivados e cedidos,
terras da União nos arts.18 a 23 da Lei nº originariamente, a determinadas pessoas
6383/76. que pretendessem cultivá-los.
Extraímos os seguintes pontos impor- 3) A origem do vocábulo “sesmaria” não
tantes dos dispositivos legais em epígrafe: é pacífica. Predomina o entendimento de
a) Autoria: é da incumbência do INCRA que provém de “sesma”, ou seja, a renda
promover a ação discriminatória da União exigida sobre os frutos colhidos nas terras
(art. 18, LAC); férteis dadas ao beneficiário. Este passou a
b) Cabimento: promove-se o processo ju- ser conhecido por sesmeiro e o instituto, por
dicial discriminatório: i) quando o processo sesmaria.

316 Revista de Informação Legislativa


4) No antigo Império Romano, já havia e à preservação ambiental, nos termos
a distribuição de pequenos lotes de terras definidos em lei. Todas as demais perten-
destinadas pelo rei aos guerreiros (sesma- cem aos Estados-membros, de acordo com
rias gratuitas) como retribuição pelos ser- a sua localização.
viços prestados ao Exército; ou a quem 12) Não há mais terras devolutas muni-
quisesse cultivá-los, desde que pagasse cipais, após o advento da Constituição de
uma quantia simbólica (sesmaria remu- 1988.
nerada). 13) Em regra, o poder público deve desti-
5) Em Portugal, o instituto foi implanta- nar as terras devolutas existentes para fins
do por D. Fernando I, pela Lei das Sesmarias de colonização e reforma agrária.
(Lei de 26 de junho de 1375). Visava promo- 14) O processo existente para possibili-
ver uma verdadeira reforma agrária em ter- tar a identificação e demarcação das terras
ras lusitanas, dada a crise agrícola e de abas- devolutas denomina-se discriminatório.
tecimento que se abatera sobre o reino. 15) Está disciplinado o processo discri-
6) No Brasil, a ocupação inicial proce- minatório das terras devolutas da União
deu-se com a divisão da colônia em capita- pela Lei nº 6383/76.
nias hereditárias. Eram hereditárias porque 16) Estabelecem-se duas modalidades de
se transferiam aos sucessores dos donatários processos discriminatórios: a efetivada ad-
causa mortis. ministrativamente ou por meio judicial, sen-
7) A concessão das sesmarias no Brasil, do que a atribuição de movê-las é do IN-
na primeira fase, era da incumbência dos CRA – Instituto Nacional de Colonização e
donatários, também conhecidos como capi- Reforma Agrária.
tães-mores; em seguida, passou-se para os
governadores-gerais e, por último, para pró-
pria Coroa portuguesa.
8) Critica-se a implantação das sesmari- Bibliografia
as no Brasil porque: a) ela trouxe graves se-
BEVILÁQUA, Clóvis. Código civil brasileiro: traba-
qüelas ao regime agrário brasileiro, por ter lhos relativos à sua elaboração. Rio de Janeiro: Im-
dado início à formação de grandes latifún- prensa Nacional, 1917-1919. v. 2.
dios, ainda hoje existentes; b) foi implanta-
FERREIRA, Pinto. Curso de direito agrário. São Pau-
da com base em um critério pessoal e econô- lo: Saraiva, 1994.
mico, gerando injustiças, pois somente os
GARCIA, Paulo. Terras devolutas. Belo Horizonte:
ricos eram beneficiados e os pobres ficavam
Oscar Nikolai, 1958.
desprovidos de terra e restavam submetidos
ao trabalho escravo ou em regime de servi- GISCHKOW, Emílio Alberto Maya. Princípios de
direito agrário. São Paulo: Saraiva, 1988.
dão para o sesmeiro.
9) As terras devolutas surgiram com a LOBÃO, M. de Almeida e Souza de. Notas a Mello.
Lei Imperial nº 601 de 1850 (Lei de Terras). Lisboa: Lisboa, 1861. v. 1.
10) São conceituadas como sendo aque- MADRUGA, Manuel. Terrrenos de marinha. Rio de
las terras não incorporadas ao patrimônio Janeiro: Imprensa Nacional, 1928.
do particular às quais não se tenha destina- MAIA, Altair de Sousa. Terras devolutas. Revista
ção específica pelo poder público. de direito agrário. São Paulo: RT, v. 1, n. 1, p. 3-12,
11) São bens da União ou dos Estados- jan./jun. 1997.
membros. São de propriedade da União PARÁ FILHO, Tomás. Terras devolutas I. In: LI-
apenas aquelas terras devolutas indis- MONGI, R. (Coord.). Enciclopédia Saraiva do direito.
pensáveis à defesa das fronteiras brasi- São Paulo: Saraiva, 1977-1982. v. 72.
leiras, das fortificações e construções mi- SOUSA, J. Bosco Medeiros de. Direito agrário: lições
litares, das vias federais de comunicação básicas. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1994.

Brasília a. 40 n. 158 abr./jun. 2003 317

Você também pode gostar