Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
Introdução
Literatura no ensino do Português. Por fim, dar-se-ão três exemplos concretos de itens
gramaticais cujo estudo beneficia se se atentar no modo como alguns textos literários os
exploram criativamente.
1
Universidade do Porto, Centro de Linguística da Universidade do Porto. Faculdade de
Letras. Departamento de Estudos Portugueses e Estudos Românicos, Secção de
Linguística. Via Panorâmica, s/n, 4150-564, Porto, Portugal iduarte@letras.up.pt
89
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
existentes na língua, isto é, ao afirmar que as marcas de literariedade não são um desvio
à norma mas antes um explorar de forma exímia possibilidades que o sistema da língua
prevê, Coseriu (1977) abriu as portas a uma fecunda problematização das ligações entre
Aguiar e Silva (2008) num interessante texto recente, foi posto em causa por Saussure,
literários, isto apesar de o melhor conhecimento recente das ideias de Saussure revelar
que ele “não contestava a relevância da linguagem literária para a linguística.” (AGUIAR
E SILVA, 2008, p. 24). Esse afastamento extremado das duas áreas de investigação e
docência deveria ser ultrapassado, tendo Aguiar e Silva identificado quatro zonas em
que a “cooperação interdisciplinar entre o campo dos estudos literários e o campo dos
entre poética e linguística cognitiva. Aliás, já num texto anterior, Aguiar e Silva (2005)
que Saussurre enterrou, mas uma nova Filologia “que congraça a gramática e a retórica,
2005, p. 92).
90
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
campo universitário vem sendo feita, do lado da linguística, por Fernanda Irene
Tordesilhas» que consigna qual a «parte» do domínio comum que uma e outra devem
– e esse facto, longe de ser atentatório da sua especificidade relativa, é dela a melhor
dos estudos linguísticos, com enfoque principal na gramática, ou dos estudos literários,
como centro das preocupações didácticas desloca, a nosso ver, a necessária discussão
polémica jornalística2, privilegiada nos últimos anos em Portugal, onde ela não deveria
2
Carlos Reis (2008: 239) partilha da mesma visão sobre a necessidade de uma nova
interdisicplinaridade, quando escreve: “Questão agudamente debatida nos últimos
tempos, não raro com mais paixão do que serenidade, é a das relações entre ensino da
literatura e ensino da língua ou, mais propriamente, a questão do papel dos textos
91
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
polémicas3, para ensinar bem Português, o docente terá de possuir uma formação segura
Fernanda Irene Fonseca (2002) e deverá ser capaz de articular os saberes teóricos
vindos das duas zonas disciplinares, de modo a desenvolver nos alunos as competências
quer literária quer linguística, indissociáveis, porque só se gosta da língua pela leitura
dos bons textos e estes só podem ser devidamente amados por quem compreenda bem a
língua, isto é, por quem seja capaz de fruir esteticamente a exploração criativa das
virtualidades que ela contém. É pois fulcral conhecer as regras do sistema e saber
(porque o falante processa estruturas regulares, mas é ele que faz as escolhas que levam
92
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
aturado da gramática na escola. Mas o falante, todo o falante faz escolhas de que
resultam consequências para o sentido. No caso do discurso literário, essas opções são,
Não há pois ensino da língua que possa alhear-se quer do treino gramatical (em
sentido amplo, e não apenas naquele restrito de morfossintaxe), quer do convívio com
os chamados “bons autores”. O que deve ensinar-se é a língua e a sua aprendizagem não
pode ser desligada nem das regras que regem o seu funcionamento, nem dos textos em
funcionamento dos itens da língua até à unidade frase, mas tenha também em conta o
ensino da Língua Portuguesa, daremos exemplos de três itens de gramática que são
relato de discurso, nas suas versões mais canónicas ou mais discretas e subtis; (2) a
93
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
discurso directo para o indirecto, como se aquele fosse o discurso original e fiel que,
equivalente em discurso indirecto (cf. Duarte, 2003). Sabemos hoje que nenhum desses
discursos é anterior ao outro, bem como nenhum deles é “fiel”: são apenas os dois
muitas outras formas de relato, mais difusas, mais híbridas, procurando, por vezes,
das formas de relatar discurso e o que nessa operação se joga devem ser objecto de
permite captá-las em vários matizes, sobretudo nas obras narrativas mais recentes, onde
e eu
– A azinheira?
sem destrinçar qual das duas falava, um tronco tão antigo, a pele da casca, os ossos, era
4
Antunes, A. Lobo (2006). Ontem não te vi em Babilónia. Lisboa: Dom Quixote, pp.
50-51
94
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
a queimar o feno acolá, chamo-me Alice meu Deus, não permitais que as labaredas do
- Alice
Quem fala aqui? Avó e neta? O avô, a azinheira, o tio? Quem de si próprio diz
“eu”? A primeira ocorrência do deíctico terá já como referente Alice, o locutor que,
quase no final, se dirige a Deus? Como até o verbo dicendi se suprime (“era a minha
avó quem”), podemos garantir que as personagens realmente falam? Não será
Saramago.
Não. Ega metia-o apenas naquilo em que o Vilaça, como procurador, logicamente e
O outro protestou, tão perturbado que gaguejava. Que diabo! Não era esquivar-se
aos seus deveres! Mas é que ele não sabia nada! Que podia dizer ao Sr. Carlos da
5
Saramago, José (1982). Memorial do Convento. Lisboa: Editorial Caminho, pp. 128-
129.
95
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
Maia? «O amigo Ega veio-me contar isto, que lhe contou um tal Guimarães ontem à
Que foi que viste na hóstia, afinal não o iludira a ele, como seria possível se dormem
juntos e todas as noites se procuram e encontram, quer dizer, não serão todas, é certo
que há seis anos que vivem como marido e mulher, Vi uma nuvem fechada, respondeu
ela. [...] Não penses mais no que viste, Penso, como não hei-de pensar, se o que está
dentro da hóstia é o que está dentro do homem, que é a religião, afinal, falta-nos aqui o
padre Bartolomeu Lourenço, talvez ele soubesse explicar-nos este mistério, Talvez não
soubesse, talvez nem tudo possa ser explicado, quem sabe, e, mal foram estas palavras
Vilaça, responde uma em discurso indirecto livre com a intervenção de Ega. Segue-se
nova resposta em discurso indirecto livre, no interior da qual, entre aspas, há palavras
em discurso directo que Vilaça imagina, com relutância, poder ter de vir a dizer a Carlos
Vilaça), assim se provando que o discurso directo não relata, de forma exacta, palavras
já ditas, porque estas de Vilaça são apenas uma hipótese, de concretização, aliás,
altamente improvável.
que se identifiquem os respectivos locutores e sem que se balize, com segurança, o final
de cada uma.
96
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
ficcionadas em discurso directo num romance do século XIX como os de Júlio Dinis,
que serve ainda de exemplo para as composições dos alunos portugueses sempre que
têm de integrar nelas “diálogos”, não é nenhum modelo que espelhe a realidade das
trocas reais orais entre falantes, mas uma convenção, uma ficcionalização depurada,
– É verdade, ó Daniel, então você tem casamento contratado, e não dá parte à gente?
eles a miscisgenação das formas tradicionais e das mais inovadoras de relatar palavras
de outros locutores.
acederem aos sentidos dos textos que lêem ou ouvem. A pobreza lexical condiciona a
6
Dinis, J. (2008) [1867]. As pupilas do senhor reitor. Matosinhos: Quidnovi, pp. 190-
191.
97
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
produção (quer escrita quer oral) mas também, obviamente, a compreensão do que os
lexicais dos alunos de modo a que possam ultrapassar o “círculo de 500 palavras” onde
acervo lexical se consegue sobretudo fazendo dos alunos leitores, não dispensa, antes
do nome próprio, um afixo (–ar), sufixo aliás muito produtivo em português, que altera
interveio nesta operação chamamos verbalização denominal. Tal verbo, nas palavras de
Ega endereçadas a Carlos, significa ir a casa dos Gouvarinhos para um convívio leve e
98
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
sonhava pássaros”7, seleccionámos alguns exemplos de verbos que têm por base
suave e repetida, o que a terminação -icar parece sugerir, imitando um sufixo de aspecto
deadjectival). Há, dentro ainda da consideração das várias vertentes da neologia neste
quando seria de esperar um outro: “desautenticar” é estranho, uma vez que o antónimo
“sonhadora”, podemos ler, na p. 64, que Tiago era uma “criança sonhadeira”. Mais
vendedor, que “assim [...] adiantava o mundo de outras compreensões” (p. 66). Mia
Couto poderia ter usado o adjectivo “insubmisso”, mas ao seleccionar o prefixo “sobre”,
7
in Couto, M. (1990). Todo o homem é uma raça. Lisboa: Editorial Caminho, pp. 57-
68.
8
Outros exemplos de verbalização denominal são: intercambiar, familiar-se,
continenciar-se.
99
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
pena acumular exemplos para provar a riqueza da criatividade lexical de Mia Couto.
apenas se somam sem perda de qualquer sílaba, nem dos acentos das palavras,
reino, em que as palavras se fundem pela sílaba –rei, para remeter, hiperbolicamente,
comum o segmento –voa e a ideia de voar de forma leve, mais alto do que o significado
inexplicável que se abate sobre o seu até então inviolável armário, deixa de ser um
colocações e outras expressões cujo uso torna o discurso literário mais próximo do
“falar desataviado de todos os dias”, jogando com a afinal relativa fixidez de certas
9
Darei ainda outros exemplos: “arrombista” (nominalização deverbal, pois é do verbo
“arrombar” que se forma o nome), em que existe “arrombar” + “bombista”,
“barulhosos”, característica atribuída aos colonos que, além de barulhentos, são
“conflituosos” e “ademorou”, que significa “demorou”, dentro do tronco (p. 68), ou
seja, é uma mistura de “adentrou” + “demorou”; “encantante”, em vez de “encantador”,
relaciona o encanto provocado pelo canto dos pássaros com a sua natureza canora.
100
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
unidades fazem parte do elenco do léxico dos falantes, do mesmo modo que nele estão
parte de uma mais ampla e englobante competência lexical. Mais uma vez, o que o
também neles tem particular relevância a função poética da linguagem, para retomar a
unidades fraseológicas, alterando uma parte da sua forma, de modo a obter novos
foi a modificação formal introduzida e que se deduza, de todo este jogo, qual o novo
significado da unidade alterada. Segundo Helena Sereno (2008), cuja interessante tese
provérbios modificados são característicos da utilização que o escritor deles faz nas suas
narrativas.
“Em Abril, falas mil”10 – uma fórmula que se costuma considerar fixa altera-se
transformada. O provérbio modificado adapta-se, como Helena Sereno faz notar (cf.
Estamos em Abril de 74, na contagem decrescente para a revolução dos cravos e por
10
Saramago, J. (1980). Levantado do Chão. Lisboa: Editorial Caminho, p. 330.
101
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
fiquem-se os dedos”. Se o sentido deste provérbio é que mais vale perder o que é
trabalhadores (aqui metaforicamente referidos pelo grupo nominal “os dedos”), desde
que conserve “os anéis”, a saber, metonimicamente, a riqueza material, mais importante
de D. João V à rainha que não engravidara ainda, se diz ironicamente “O cântaro está à
espera da fonte” (p.13), retoma-se, adaptando-o, o provérbio “tantas vezes vai o cântaro
à fonte que um dia lá deixa a asa”, isto é: a insistência teimosa produz habitualmente
pois ela será o recipiente onde o rei depositará a água da sua “fonte”.
Conclusão:
de neologismos observando como são formados e que o léxico é composto também por
modificações dessas e doutras unidades lexicais provocam tem que ver com a
102
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
devem ser levados a cabo em sessões “oficinais” de gramática, como tem defendido
vezes luminosa, as regras que o sujeito usa e conhece, dando-as a ver, numa operação
que se traduz, para quem lê, simultaneamente em prazer pelo reconhecimento das
inovadora e criativa dessas estruturas e regras e júbilo pela descoberta e partilha dos
ensino explícito da gramática ou o convívio íntimo com o texto literário. Como REIS
Ensino do Português,
linguístico e das suas componentes gramaticais, sem pôr em causa, como é óbvio, a
Referências bibliográficas:
103
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
104
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
105