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PATRIARCALISMO E PAPÉIS FEMININOS NO BRASIL ESCRAVISTA

Silvia Brügger*

Resumo: Neste artigo, são discutidas algumas questões teóricas ligadas às concepções
acerca da vida familiar, no período escravista brasileiro, privilegiando o conceito de família
patriarcal. procura-se também analisar as relações entre patriarcalismo e as vivências e
papéis femininos, uma vez que aquele conceito normalmente é associado à misogenia e a uma
praticamente total submissão das mulheres em relação aos homens. é feita uma abordagem
crítica destas interpretações, tendo como fontes principais, os processos de divórcio
eclesiástico e romances da época.

Palavras-chave: Patriarcalismo; mulher e família

*
Professora de História da FUNREI, doutoranda em História Social na UFF.
1.Introdução

Muitos são os conceitos já elaborados para caracterizar a vida familiar no Brasil escravista.
Pretendo, na primeira parte deste texto, abordar criticamente algumas destas propostas, discutindo
de maneira especial a noção de patriarcalismo.
Na segunda parte, proponho-me a analisar os papéis femininos dentro do casamento.
Preocupo-me, sobretudo, com os espaços de poder ocupados por maridos e esposas dentro das
uniões matrimoniais, bem como os papéis sociais a eles atribuídos. Para isto, tomarei como base os
processos de divórcio eclesiástico referentes ao Rio de Janeiro no século XIX. Estes documentos
encontram-se no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro.
Através dos processos de divórcio, tem-se acesso às vivências conjugais que não deram
certo e, por isso, permitiram o aparecimento do desejo de separação. Primeiramente, vale ressaltar
o que vem a ser este divórcio, uma vez que o casamento católico é, por definição, indissolúvel,
exceto por ocasião do falecimento de um dos cônjuges. No entanto, em determinadas
circunstâncias, é possível se pleitear a separação quanto ao toro e mútua coabitação. Esta
separação, se concedida perpetuamente, permite a abertura de processo civil para divisão dos bens
do casal, mas não rompe o vínculo matrimonial. Os que tivessem obtido o divórcio não poderiam
voltar a se casar, uma vez que, não estando a primeira união anulada, a segunda caracterizaria uma
situação de bigamia. Além disso, era recomendado aos cônjuges separados que continuassem a
viver "castamente como casados".
As circunstâncias que, segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, em
seu Título 72, possibilitavam a solicitação de divórcio eram as seguintes:

“311- A primeira causa da separação perpétua é quando ambos, marido e mulher, de mútuo
consentimento, professam em Religião aprovada, ou a mulher somente, ordenando-se o
marido de Ordens Sacras. (...)
312- A outra causa da separação perpétua é a fornicação culpável de qualquer gênero, em a
qual algum dos casados se deixa cair ainda por uma só vez, cometendo formalmente
adultério carnal ao outro. Pelo que se a mulher cometer este adultério ao marido, ou o marido
à mulher, por esta causa se poderão apartar para sempre, quanto ao toro e mútua coabitação.
E, se o adultério for tão público e notório, que de nenhuma maneira se possa encobrir,
poderá o que padeceu, ainda por autoridade própria, separar-se, sem para isso ser necessária

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sentença; e separando-se não será obrigado a se restituir ao que cometeu, nem este se
poderá dizer esbulhado para efeito de ser restituído à posse que tinha antes, da coabitação e
uso matrimonial.
313- Não se poderão porém separar, se depois de um haver cometido adultério, o outro o
cometer semelhante, porquanto como ambos delinquem, se fica compensado para este efeito
um adultério com o outro.
(...)
315- Há outro adultério e fornicação chamada espiritual, pela qual se pode também separar o
Matrimônio quanto ao toro e mútua coabitação, e se contrai quando algum dos casados cai
em crime de heresia e apostasia de nossa Santa Fé Católica, e nele persiste contumaz. (...)
316- Além das sobreditas causas há outra temporal, pela qual os casados se podem também
separar, a saber as sevícias graves e culpáveis, que um deles comete” (Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia, Tit. LXXII).

Os processos de divórcio trazem informações sobre os casais que afirmaram ter vivenciado
uma ou mais das circunstâncias acima descritas. Não se trata, portanto, de uma fonte que permita
observar um “comportamento-padrão” dos casados. Pode-se, porém, perceber quais as
expectativas contrapostas às vivências mal sucedidas. Nestes processos, tem-se acesso aos
discursos das partes litigantes, das testemunhas, dos advogados dos dois lados e da sentença
eclesiástica. Portanto, é possível fazer-se uma leitura invertida destes, procurando perceber o que
era tido como uma vida conjugal "ideal”.
Além destes documentos, farei uso também de romances de época. Neles, as descrições
das vivências conjugais são mais detalhadas. Embora as personagens e situações tratadas sejam
"fictícias", parece-me que elas fazem parte do universo de vivências possíveis naquela sociedade.
Além do mais, o discurso dos processos, por exemplo, também podem ser vistos como "ficção",
uma vez que não se saberá nunca se os fatos descritos se deram realmente daquela forma ou se
foram construídos argumentos para viabilizar determinados interesses. O que importa não é se as
situações descritas, tanto nos romances quanto nos processos, foram efetivamente vivenciadas, mas
que poderiam ter sido.

2.A família no Brasil: um debate conceitual

Alguns conceitos já foram utilizados para se caracterizar as relações familiares no Brasil


escravista. Oliveira Vianna propôs as noções de "família senhorial" e de "clã parental". Estas duas
noções não se confundem, mas antes se sobrepõem. Para o autor,
“É a família senhorial um grupo preciso e visível nos seus contornos, limitado ao domínio e
vivendo dentro das suas raias. Já o clã parental é instituição um tanto diferente:- embora

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derivado da família senhorial, exorbita as lindes do domínio-tronco. É uma realidade, sem
dúvida; mas, só aparece e se revela em ocasiões excepcionais - e só nestas ocasiões (defesa
contra o bugre ou o quilombola; lutas de famílias; prélios eleitorais; formações partidárias) é
que se mostra uma entidade nitidamente constituída”(Vianna,1987, p.189).

A família senhorial seria composta por aqueles que viviam dentro da residência do
patriarca ou nas suas dependências, mas ligado por linha direta ou colateral àquele, pelas "crias" ou
"protegidos" do senhor ou da senhora, seus "afilhados". Já o "clã parental" incluiria diversas famílias
aparentadas, tanto por consangüinidade quanto por afinidade, extrapolando os limites do "domínio".
Esta ligação clânica se manifestaria sobretudo nos momentos de conflito, quando a solidariedade
parental se tornava necessária. O autor fundamenta esta sua caracterização da sociedade como
definida a partir de clãs (Cf. Vianna 1987, p.162) no fato de seus elementos se encontrarem
organizados em torno dos grandes proprietários de terras e sob a direção deles.(Vianna,1938,
p.178-9). No entanto, a proposta de Oliveira Vianna é questionável, na medida em que o clã, em
linguagem antropológica, pode ser definido como um grupo de descendência unilinear (Dicionário de
Ciências Sociais, 1987, p.190). e, por mais que o Brasil colônia fosse caracterizado por um domínio
senhorial, não parece que este se tenha constituído com base num padrão de unilinearidade. Linda
Lewin, ao definir a família extensa brasileira, apresenta de maneira precisa esta crítica:

“A família extensa brasileira compreendia o grupo de descendência bilateral de um


indivíduo, incluindo os ascendentes maternos e paternos e os descendentes lineares de
várias gerações. Dela faziam parte também os colaterais consangüíneos - tias e tios ou
sobrinhos e sobrinhas. Pertencia ainda à família extensa, entretanto, uma numerosa
população de parentes não consangüíneos: eram rotineiramente incorporados nos seus
limites os parentes afins, ou ingressos na família através do casamento, e os pretensos
parentes, nela incluídos através de uma relação ritual (compadrio cerimonial) ou de uma
relação de adoção (o criado na família, assim reconhecido civil ou costumeiramente). Dada
esta definição, vale a pena acentuar que a família extensa não deve ser equiparada ao "clã".
Infelizmente, tanto a literatura acadêmica como as noções populares deram credibilidade à
suposição de que a organização da família de elite no Brasil guarda uma relação de sinonímia
com a de clã patriarcal. A imagem do chefe patriarcal de uma famí lia extensa como a de um
"chefe de clã" é uma imagem tão habitual no Brasil que não necessita maior elaboração,
exceto para observar que negligencia uma série de características muito importantes
associadas à organização dos clãs. Estes organizam-se segundo a regra ou princípio da
descendência unilinear (isto é, determinável através de apenas um dos pais), caracterizando-
se pela prática de definir o grupo familiar em termos de um totem, de um nome ou de uma
residência ampliada comuns, assim como por uma organização corporativa definida sem
ambigüidades - a qual conserva o grupo ao longo das gerações, geralmente através dos
direitos coletivos de propriedade de que os reveste. Estas características não se aplicavam à
parentela brasileira. Ademais, a solidariedade imposta ao grupo pelo clã patriarcal
arquetípico alcançava um grau jamais atingido pela família de elite brasileira. Na verdade, a
propensão para a fragmentação, demonstrada abundantemente pelas famílias dominantes
brasileiras ao longo dos séculos, deveria ser tomada como mais uma confirmação da
ausência de uma organização em clãs” (Lewin,1993,p.117-8).

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A autora prefere, portanto, utilizar-se da noção de parentela como sinônimo para família
extensa, sublinhando que esta, no Brasil, não se caracterizou, preferencialmente, pela coabitação.
Observa-se, nesta visão, a influência de um outro conceito bastante difundido na caracterização da
família colonial brasileira, ou seja, o de patriarcalismo cunhado por Gilberto Freyre e,
posteriormente, utilizado por Antônio Cândido. Segundo Gilberto Freyre,
“A sociedade colonial no Brasil, principalmente em Pernambuco e no Recôncavo da Bahia,
desenvolveu-se patriarcal e aristocrática à sombra das grandes plantações de açúcar, não em
grupos a esmo e instáveis; em casas-grandes de taipa ou de pedra e cal, não em palhoças de
aventureiros”. (Freyre, s.d,p.55)

Antonio Cândido, por sua vez, afirma o patriarcalismo da família brasileira, de uma maneira
geral, mas ressalta que suas bases de observação mais direta se encontram nas partes Centro e Sul
do país (Cândido apud Smith, 1951). Desta forma, confere uma amplitude maior, do ponto de vista
das áreas caracterizadas como patriarcais, à aplicação do termo.
Essa afirmação do patriarcalismo provocou muita polêmica no meio historiográfico
brasileiro, inicialmente com a crítica interessante de Mariza Corrêa (1982), que questionou o padrão
patriarcal único para todo o Brasil. A autora, baseada na complexidade da sociedade e economia
escravistas, discutiu a pertinência de se pensar a formação familiar brasileira de uma única forma.
Estudos demográficos, como o de Eni de Mesquita Samara(1989), sobre São Paulo, têm procurado
demonstrar não ter sido a sociedade colonial brasileira eminentemente patriarcal, uma vez que os
dados quantitativos indicam a existência de unidades domésticas chefiadas por mulheres e o
predomínio de famílias que não podem ser caracterizadas como extensas. Parece-me, porém, que
Ronaldo Vainfas (1989) tem razão ao indicar a confusão que se tem estabelecido entre família
extensa e patriarcalismo. Para esse autor,

“É certo que a maioria dos que afirmaram a importância da família patriarcal tendeu a incluir,
entre seus traços característicos o copioso número de criados, escravos, parentes pobres e
agregados submetidos à autoridade senhorial. Mas é igualmente certo, por outro lado, que
nenhum deles identificou família patriarcal e família extensa, já que a dimensão dos lares, em
si, nada lhes importava considerar, salvo como indício do poder patriarcal. É à noção de
família enquanto parentela, rede de poder e dependência que se refere Antonio Cândido
quando discrimina o núcleo e a periferia da família patriarcal, jamais a estruturas
domiciliárias. E até o próprio Freyre, a quem se atribui um particular apreço pela família
patriarcal, sequer negou a eventual ocorrência de outras formas familiares: "devemos
recordar", afirma o autor, "de que o familismo no Brasil compreendeu não só o patriarcalismo
dominante (...) como outras formas de família (...) parapatriarcais, semipatriarcais e mesmo
antipatriarcais." Nenhum exclusivismo, portanto, se conferiu à família patriarcal na Colônia;
nenhuma ênfase, repitamo -lo, foi dada ao número de moradores em cada domicílio, mas tão-
somente acentuaram-se as estruturas de poder que norteavam a vida social da Colônia,

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historicamente ligadas à escravidão, à prepotência senhorial e às tradições culturais
ibéricas".(Vainfas, 1989,p.110).

3. Patriarcalismo e papéis femininos

Um outro ponto, diretamente ligado a esta caracterização da família brasileira como


patriarcal, diz respeito ao papel da mulher nesta sociedade. Alguns autores, inclusive Gilberto
Freyre, tenderam a identificar o patriarcalismo a uma quase anulação da mulher diante do homem.
Vigiada pelo pai e, posteriormente, pelo marido, ela praticamente não teria espaço para agir
livremente. Ronaldo Vainfas identifica a presença de uma postura misógina não só no discurso de
moralistas, mas também nos costumes populares. Segundo este autor,
“Manietadas por pais e maridos, reificadas pelos homens, excluídas de várias esferas do
cotidiano social, as mulheres acabariam por construir uma sociabilidade e uma linguagem
próprias, em que muitas vezes transparecia o rancor e a insubmissão contra a ordem
patriarcal que as oprimia” (Vainfas,1989, p.135).

Este texto me faz lembrar o debate acerca da coisificação do escravo, no qual as pesquisas
mais recentes sobre escravidão apontaram para o equívoco daquela visão sobre os cativos. Parece-
me que, assim como ocorreu com o escravo, também a mulher precisa ser encarada sob uma outra
perspectiva. Afinal será possível pensar que elas só se constituíam como sujeito histórico quando se
revoltavam contra a ordem patriarcal? Não estaríamos diante de uma polarização semelhante à do
escravo-passivo X quilombola-herói? Teríamos assim a mulher submissa ao domínio masculino em
oposição àquela que se insurgia contra esta submissão. Não haveria outro espaço à sua atuação
social.
Já Antonio Cândido percebia os equívocos das interpretações que apontavam para a total
dominação da mulher pelo homem. Para esse autor,
“É provável que os escritores tenham exagerado a completa submissão da mulher, quase
eliminando-a como uma pessoa autônoma em face da prepotência do marido. (...) Talvez o
problema do status da mulher na família brasileira seja compreendido melhor se for visto
como produto de uma situação social e cultural; neste caso, a mulher surge desempenhando
um tipo específico de participação cultural e uma função social diferente da do marido e,
portanto, não comparável com a dele, a não ser com grande cautela. Elas são duas esferas
complementares, cada uma com seu caráter mais ou menos diferenciado da do outro,
freqüentemente em conflito, mas, geralmente, suportando uma a outra na manutenção de
uma considerável balança sociológica”(Cândido apud Smith, 1951).

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Esta análise de Antônio Cândido me faz lembrar de histórias descritas nos processos de
divórcio eclesiástico, referentes ao século XIX, no Rio de Janeiro. Vejamos alguns destes casos.
Em 1832, Senhorinha Rosa dos Prazeres abriu um processo, na Justiça Eclesiástica, contra
seu marido, Vitor Antonio Teixeira, solicitando o divórcio perpétuo deste. Alegava que, embora
amasse e respeitasse seu marido, tendo sempre "honesta conduta", este a tratava pior do que a
escravas, "maltratando-a com injuriosos nomes e até pancadas", mantendo relações ilícitas com
outras mulheres, inclusive cativas. O réu, por sua vez, construiu uma outra versão, afirmando que
“(...) sendo o Réu casado à face da Igreja com a Autora Senhorinha Rosa dos Prazeres, era
do dever desta ser afável, carinhosa e obediente a seu marido, tratando dele e do arranjo de
sua casa [grifo meu],porém sempre praticou pelo contrário, mostrando-se altiva, arrogante,
pouco respeitosa, nada se importando com ele, nem com o arranjo da casa e praticando
ações que bem manifestavam a nenhuma amizade que lhe tinha, e que deixava em bastante
dúvida a honestidade da sua conduta.
(...) o R., não obstante o pouco carinho da A. sua mulher, sempre a tratou com afabilidade,
procurando agradar-lhe por todas as maneiras, tratando-a com toda a decência e dando-lhe
não só o preciso e decente vestuário, mas mesmo com maior pompa do que realmente cabia
nas suas possibilidades; tendo-lhe escravos para servirem, e sendo enfim ela tão senhora de
si, que até tinha contas particulares dos seus enfeites que pagava com o dinheiro do R. (...).
(...) sem pejo e com escândalo geral, abandonou [a A.] a casa do R. seu marido, não
querendo para ela voltar, apesar das repetidas e carinhosas cartas que lhe escreveu,
admoestando-a a que cumprisse com os deveres de uma honrada consorte (...)”. (Processo
de Divórcio, Senhorinha Rosa dos Prazeres X Vitor Antonio Teixeira, 1832)

Senhorinha, em sua réplica, negou as afirmativas do marido. Corroborando os maus-tratos


que dele recebia, disse que
“(...) casando de idade de 16 anos com o R. foi sempre afável e carinhosa com o R., e
respeitadora do mesmo, e cuidadosa do arranjo da casa; tendo uma conduta honestíssima
(...).
(...) é falso que o R. correspondesse ao amo r e carinho da A., pois a tratava pior do que uma
escrava (...).
(...) a A. saiu para casa de seu pai da companhia do R., por não poder sofrer por mais tempo
a conduta escandalosa e cruel do R., faltando ele aos deveres conjugais, em que figurava
mais de senhor, em lugar de companheiro; sendo os direitos e obrigações dos cônjuges
iguais, com pequenas diferenças, e recíprocos” [grifo meu] (Processo de Divórcio,
Senhorinha Rosa dos Prazeres x Vitor Antonio Teixeira, 1832) (grifo meu).

No decorrer do processo, Senhorinha apresentou diversas testemunhas que comprovaram


suas afirmações. O réu não mais se pronunciou, tendo deixado a cidade e sendo por isso
processado à revelia. O juiz eclesiástico decretou a separação perpétua do casal.
Essa história indica uma vivência conjugal conturbada. Além do adultério, Senhorinha sofria
agressões físicas por parte do marido, que desperdiçava inclusive os bens do casal, em virtude dos
gastos com suas amásias. Este tipo de argumentação é freqüente ao longo de todo o século XIX.

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Em todos os 17 processos de divórcio, por mim selecionados, em que o autor era a esposa, estes
elementos se fizeram presentes. René Meza, trabalhando com documentação semelhante relativa ao
Chile, concluiu, da freqüência dos casos de sevícias, serem as relações conjugais profundamente
violentas. Segundo o autor,
Sin lugar a dudas, se puede confirmar a luz de los testimonios vistos, que en el Chile colonial
y republicano de mediados del siglo XIX, existió un rasgo de notoria agresividad en la vida
conyugal, demonstrado en toda su gravedad en los casos que se presentaban en los pleitos
matrimoniales, y que dejan entrever un tipo de "trato marital". (...)
Cabe pensar a la luz de las fuentes y el discurso que se desprende de ellas, que el problema
de la violencia conyugal existía en el siglo XVIII y XIX, con tantos grados y formas de
agresión como hoy en Chile, y que por lo general, correspondía a una forma de trato marital
en tanto que se mantenía como una situación permanente en la relación de pareja (Meza,
1993,p.35-9).

Absurda esta argumentação! Além de anacrônica, não leva em consideração a natureza da


fonte analisada. É claro que a regularidade deste tipo de discurso se deve às possibilidades legais
para obtenção da separação. Eram estas, basicamente, as condições que viabilizavam a abertura de
processos de divórcio e, por isso, estes não se constituem na fonte adequada para a análise do grau
de violência presente nas relações conjugais.
Pode-se perceber, porém, nestes documentos, quais eram as responsabilidades atribuídas
aos maridos e quais às esposas, além do comportamento esperado de ambos. É claro que estes
discursos estavam aflorando num momento de confronto judicial e, por isso, não podem ser tidos
como um parâmetro do comportamento cotidiano. Alguns indícios, porém, podem ser analisados.
Rosa Clara de Jesus, casada com Antonio José Bitencourt, abriu processo, em 1805, contra
seu marido, desejando a separação. O casal tinha-se recebido em matrimônio há 15 meses e a
esposa, segundo seu depoimento, tinha tido para com o marido sempre o melhor comportamento,
mas, não recebendo dele o equivalente,
“(...) porque além de ser a suplicante de idade de setenta anos quando se casou, estando
estabelecida com três moradas de casas, e bem ornadas as em que moram, seus escravos, e
bem vestida e o suplicado entrar para o casal somente com o seu corpo, e achar que comer;
não é isto bastante para que deixe de a maltratar de palavras de porca, cachorrona, atrevida,
que é uma porca, faltando-lhe com o necessário sustento e vestuário, e obrigando-a a que vá
cozinhar a comida para a janta do caixeiro que tem em uma taverna, e para duas filhas do
primeiro matrimônio que o suplicante teve [grifo meu], que se acham assistindo na casa da
mesma, que as ensina a coser, deixando a suplicante solitária, vindo só à casa ao jantar e à
noite para a descompor das referidas palavras, tratando-a de menor, que é uma velha e
porca, e que tem para seus divertimentos uma ilhoa moça e formosa, e que a suplicante se
quiser ver-se livre dele que lhe faça escritura de duas moradas de casas; e é tanto que
quando veio para o consórcio, se concubinou com uma Joaquina escrava da suplicante;
gastando com esta e com a dita ilhoa todos os alugueres das casas que tem cobrado
(...)”(Processo de Divórcio de Senhorinha Rosa dos Prazeres X Vitor Antonio Teixeira,
1832).

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A descrição acima procura demonstrar que Antonio se teria casado por interesse nos bens
de Rosa Clara, o que de certa forma devia ser do conhecimento desta, uma vez que o noivo entrou
para o casamento "apenas com o seu corpo". O que Rosa não admitia é que este interesse se
transformasse em maus-tratos e desperdício com outras mulheres. É provável que o adultério, se
não acompanhado de sevícias e dilapidação dos bens do casal, fosse tolerado, especialmente até
meados do século XIX, e não se chegasse às vias do divórcio. Mas, o homem, que era visto como o
responsável pela manutenção da unidade familiar, não se poderia dar ao luxo de desperdiçar com
mulheres, jogos e bebidas. Nunca é demais lembrar que o casamento era visto como um "negócio" e
como tal deveria dar "lucro" e não "prejuízo". Gastar com as amásias o que não se dava às esposas
era o que basicamente se cobrava dos maridos, nos processos de divórcio.
As mulheres, por sua vez, procuravam demonstrar as condições de esposas "zelosas,
honradas e respeitosas". Não raro se mostravam subservientes aos desejos dos maridos, acatando,
no mais das vezes, as suas vontades. Mas, nas entrelinhas, pode-se perceber uma postura ativa e
questionadora desta submissão. Embora respeitando as vontades de seus esposos, não eram
obrigadas a se subordinar inteiramente a elas. Eram esposas, não escravas. Deviam ocupar-se dos
cuidados da casa, mas não serem tratadas como cativas. Rosa Clara reclama do fato de o marido
obrigá-la a cozinhar para um caixeiro. Sebastiana Rosa de Oliveira, que, em 1805, solicitava a
separação de seu marido, Luiz Antonio Martins, deixa isto bastante explícito, ao afirmar que:
“(...) sempre viveu com muita honra, honestidade, e bom procedimento, amando e estimando
ao suplicado [seu marido], e obedecendo-o em tudo, como é público e notório, sem dar
ocasião a ser levemente ofendida pelo suplicado, que devendo observar o mesmo com a
suplicante, tem praticado o contrário, porque além de a tratar como sua escrava, fazendo
todo o serviço da casa e de um botequim que tem de bebidas, a faz ir à praia comprar
carvões, comprar peixe, ao açougue comprar carne fresca, e aos armazéns comprar carne
seca, tendo escravos que podem servir neste ministério, e quando lhe não agrada a compra
furiosamente entra a espancar a suplicante com bofetadas de mão aberta nas faces, dando-
lhe bordoadas com paus, e fazendo-a prostar por terra, chamando-a de puta, surrão e
bacamartão, de forma que já a quis matar com um machado (...)”(Processo de Divórcio de
Sebastiana Rosa de Oliveira X Luiz Antonio Martins, 1805) (grifos meu).

O que desagradava a Sebastiana era o fato de ser obrigada a fazer determinadas tarefas
que, ao seu ver, deveriam ser dadas aos escravos. Isto não significa que as mulheres não fizessem
este tipo de atividade. Fariam-na as que não tinham escravos. Num determinado grupo social,
porém, estas eram atribuições dos cativos. Além disso, mais do que contra o trabalho em si,
Sebastiana se revoltava contra a atitude do marido. O que a assemelhava à condição de "cativa" era

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o fato de não ter liberdade de ação e ser castigada fisicamente, quando seu marido não se
contentava com as compras. As palavras de Senhorinha Rosa dos Prazeres se adequam
perfeitamente. Seu marido faltava aos deveres conjugais, uma vez que
“figurava mais de senhor, em lugar de companheiro; sendo os direitos e obrigações dos
cônjuges iguais, com pequenas diferenças, e recíprocos” (Processo de Divórcio, Senhorinha
Rosa dos Prazeres x Vitor Antonio Teixeira, 1832).

Esta frase deixaria qualquer feminista de nossos dias de queixo caído. Mas, seria Senhorinha
uma feminista em 1832? Não. Assim como Sebastiana e Rosa Clara, Senhorinha queria ser tratada
como esposa e não como escrava. Os cativos, estes sim, deveriam, ao menos teoricamente,
subordinar-se aos desejos de seus senhores. As mulheres, não. Eram iguais aos maridos, embora
pudessem desempenhar funções ligeiramente diferentes na unidade familiar. Eram iguais porque
contribuíam da mesma forma ou até mais do que o homem para o estabelecimento da unidade
doméstica, uma vez que, em geral, traziam dotes para o casamento. Eram meeiras de seus maridos.
Arriscaria mesmo a dizer que as mulheres detinham mais poder do que os esposos, nas relações
conjugais. Em 85% dos processos de divórcio por mim analisados, são as mulheres as autoras das
ações. Os únicos três processos propostos por homens localizam-se na década de 80 do século
passado. Será isto uma simples coincidência?
Estes dados poderiam ser lidos de maneira linear, afirmando-se que, por ser a mulher mais
fraca e submissa, estaria predisposta a maiores abusos por parte de seus cônjuges. O predomínio
das ações, por elas propostas, seria decorrente da sua maior sujeição ao poder masculino.
Uma outra leitura, porém, me parece mais convincente. Por ser a mulher portadora de maior
poder nas relações conjugais, diante de situações conflituosas ela tomava tomava iniciativa da
separação. A prática do dote feminino, sem dúvida, em muito contribuiu para isto. Aluísio Azevedo
explicita, em O Cortiço, como a dependência do marido em relação ao dote trazido pela mulher o
impedia, muitas vezes, de solicitar a separação legal. Este era o caso dos personagens Dona Estela e
Miranda:
“(...) Dona Estela era uma mulherzinha levada da breca: achava-se casada havia treze anos e
durante este tempo dera ao marido toda sorte de desgostos. Ainda antes de terminar o
segundo ano de matrimônio, o Miranda pilhou-a em flagrante delito de adultério, ficou
furioso e seu primeiro impulso foi mandá-la para o diabo junto com o cúmplice; mas a sua
casa comercial garantia-se com o dote que ela trouxera [grifo meu], uns oitenta contos em
prédios e ações da dívida pública, de que se utilizava o desgraçado tanto quanto lhe
permitia o regime dotal. Além do que um rompimento brusco seria obra para escândalo, e,
segundo sua opinião, qualquer escândalo doméstico ficava muito mal a um comerciante de
certa ordem. Prezava, acima de tudo, a sua posição social e tremia só com a idéia de ver-se
novamente pobre, sem recursos e sem coragem para recomeçar a vida, depois de se haver

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habituado a umas tantas regalias e afeito à hombridade de português rico que já não tem
pátria na Europa”(Azevedo, s.d) .

Acovardado defronte destes raciocínios, contentou-se com uma simples separação de leitos,
e os dois passaram a dormir em quartos separados. Não comiam juntos, e mal trocavam entre si
uma ou outra palavra constrangida, quando qualquer acaso os reunia a contragosto ( Azevedo, s.d.,
p.14).
Não existem trabalhos específicos sobre a prática do dote no Rio de Janeiro
(Nazzari,1991). Não acredito, porém, que, até meados do século passado, tenha declinado de
importância, pelo menos entre os mais bem aquinhoados, uma vez que os românticos se
empenhavam bastante em criticá-la. Não teria sentido fazê-lo, se já se encontrasse em desuso.
Talvez o declínio desta prática se manifeste principalmente a partir de fins da década de 70 e início
da de 80 do século passado. A iniciativa masculina nos processos de divórcio da década de 1880
corresponderia assim a um aumento do poder do marido no casamento, em função da diminuição da
prática do dote. O homem passaria a arcar então com os maiores encargos da nova unidade
doméstica, não recebendo da mulher uma contribuição equivalente.
Vale somar a isto a imagem de mulher, difundida pelos românticos, que primava pela
submissão e fragilidade. Parece-me claro que a tão alegada fraqueza do sexo feminino é uma
criação romântica, sendo, portanto, a partir de meados do século passado que as mulheres,
sobretudo as de grupos sociais privilegiados, passaram a se colocar numa postura inferiorizada em
relação a seus esposos.
As mulheres que de alguma forma exerciam um domínio sobre seus maridos chegavam a ser
ridicularizadas pelos românticos. Em O Moço Loiro, de Joaquim Manoel de Macedo ( 1987), por
exemplo, os personagens Tomásia e Venâncio são as caricaturas vivas de um casamento infeliz.
Todos os papéis são "invertidos": é a mulher quem manda na casa, nos filhos e no marido; ela detém
a força moral e física, chegando inclusive a bater no esposo. A infelicidade da vida conjugal que
levavam fica patente na frase de Venâncio a sua mulher: "- Casar-me?... oh, Senhora Tomásia,
falando sério se eu tivesse a felicidade de ficar viúvo não me casava nem com uma santa!..."
(Macedo,1987, p.148). A força de Tomásia vinha do dote que levara para o casamento. Ela,
porém, não se enquadrava no ideal romântico de submissão feminina, por isso é construída,
enquanto personagem, de forma a que não se constitua num modelo a ser imitado.

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Não encontrei nenhum posicionamento semelhante ao de Senhorinha, Sebastiana e Rosa
Clara, nos processos de divórcio relativos à segunda metade do século. Aluísio Azevedo (s.d),
porém, retrata, em O Cortiço, a continuidade de algumas práticas que indicariam a força feminina
em relação aos homens. Sem deixar de mencionar o poder econômico conferido pelo dote, quando
se refere ao casal Miranda e Dona Estela, analisa também o "domínio" que pode ser caracterizado
como afetivo ou sexual da mulher sobre os homens. É na reflexão de Pombinha que estas idéias se
manifestam de maneira explícita:
“Que estranho poder era esse, que a mulher exercia sobre eles [os homens], a tal ponto que
os infelizes, carregados de desonra e de ludíbrio, ainda vinham covardes e suplicantes
mendigar-lhe o perdão pelo mal que ela lhe fizera?... (...) E continuou a sorrir, desvanecida na
sua superioridade sobre esse outro sexo, vaidoso e fanfarrão, que se julgava senhor e que,
no entanto, fora posto no mundo simplesmente para servir ao feminino; escravo ridículo
que, para gozar um pouco, precisava tirar da sua mesma ilusão a substância do seu gozo; ao
passo que a mulher, a senhora, a dona dele, ia tranqüilamente desfrutando o seu império,
endeusada e querida prodigalizando martírios, que os miseráveis aceitavam contritos, a
beijar os pés que os deprimiam e as implacáveis mãos que os estrangulavam. (...) E sentiu
diante dos olhos aquela massa informe de machos e fêmeas, a comichar, a fremir
concupiscente, sufocando-se uns aos outros. E viu o Firmo e o Jerônimo atassalharem-se,
como dois cães que disputam uma cadela da rua; e viu o Miranda lá defronte, subalterno ao
lado da esposa infiel, que se divertia a fazê-lo dançar a seus pés seguro pelos chifres; e viu
Domingos, que fora da venda, furtando horas ao sono, depois de um trabalho de burro, e
perdendo seu emprego e as economias ajuntadas com sacrifício, só para ter um instante de
luxúria entre as pernas de uma desgraçadinha irresponsável e tola; e tornou a ver Bruno a
soluçar pela mulher (...)”(Azevedo, s.d, 96-7).

Parece que Aluísio pretendia ridicularizar a visão que os românticos haviam construído com
relação à fragilidade feminina. Fosse pela força do dote ou da atração sexual, a mulher se impunha
ao homem, tanto no casamento quanto fora dele. É claro que há exagero na descrição do autor,
pois como contrapartida, no próprio O Cortiço, pode-se observar a fraqueza de Piedade,
abandonada por Jerônimo, ou de Bertoleza, repudiada por João Romão, quando este atingiu a
prosperidade econômica e aspirou a entrar em outro grupo social. Mas fica claro que o poder
masculino não era absoluto. Existia um poder que lhe fazia frente, podendo mesmo superá-lo - o da
mulher.
Por outro lado, o poder da mulher na relação conjugal estava muito relacionado à
proximidade e ao apoio de sua família. Em geral, era para a casa paterna que elas retornavam,
quando se viam em conflito com seus maridos. Algumas vezes, era o próprio pai que lhes servia de
procurador nos processos de divórcio. Este foi o caso, por exemplo, de Tereza Luíza de Araújo
que, em 1840, procurava separar-se de seu marido, o Doutor João Alves de Castro Roso. O pai de
Tereza foi seu procurador, no início do processo, mas faleceu antes de sua conclusão. Doutor João

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Alves procurou então fazer uso das palavras do sogro, em seu testamento, para contestar as
acusações que lhe eram feitas de adultério e sevícias. Os pais de Tereza eram também separados,
embora vivessem numa mesma casa, o que talvez explique a afirmativa de seu pai no testamento:
“(...) Declaro que a dita minha filha Tereza é casada com o Doutor João Alves de Castro
Roso, porém também se acha separada dele, por influências e maus conselhos de sua mãe,
que tanta pressa teve em a casar contra a minha vontade, como em a separar, o mesmo que
praticou consigo própria (...)”(Processo de Divórcio de Tereza Luíza de Araújo x Dr. João
Alves de Castro Rosa, 1840).

Sem dúvida que nesta afirmação transparece um ressentimento do pai para com a postura
da mãe. Ele tentava, de certa forma, imputar-lhe as causas da infelicidade da filha. Teria sido ela a
responsável tanto pelo seu casamento quanto pela separação. Não é possível saber até que ponto
este argumento correspodia à realidade, mas no mínimo é interessante notar que o próprio pai tinha
servido de procurador da filha no início do processo de separação. De qualquer forma, o que é
importante destacar é que de alguma maneira, fosse da parte apenas da mãe ou de ambos os pais,
Tereza recebeu apoio familiar em sua decisão de buscar a separação. Este apoio era fundamental,
principalmente, porque, até a sentença definitiva de divórcio, os bens do casal permaneciam, em
geral, sob controle do marido, uma vez que a mulher era depositada em uma "casa honesta e
segura", levando, por determinação judicial, apenas "a roupa e jóias de seu uso e uma escrava para
a servir". Depois de declarada a separação perpétua, pela justiça eclesiástica, poderia ser aberto
processo civil para a separação dos bens. Até que esta sentença fosse obtida, era fundamental o
apoio familiar para o próprio sustento da mulher que buscava a separação.
Foi por falta deste apoio que Rosa Clara de Jesus acabou desistindo da ação de divórcio,
que tinha impetrado contra seu marido. Tinha sido depositada na casa de um vizinho, uma vez que,
provavelmente, tendo em vista sua idade de 70 anos, seus pais já deviam ter morrido e talvez não
contasse com o apoio de nenhum parente, nem mesmo filhos, fundamentais também em casos como
este. Alegou ela:
“(...) porque a suplicante se acha padecendo no depósito por falta de alimentos e mais
necessários, estando como está o suplicado [seu marido] de posse de três moradas de casas
da suplicante, somando os seus rendimentos com [ilegível] filhos e a suplicante olhando
para as estrelas; quer debaixo de todo o perigo de sua vida ir para o consórcio para ter com
que se alimentar; e se o suplicado usar das mesmas tiranias e crueldades de Deus terá o
pago (...)” (Processo de Divórcio de Rosa Clara de Jesus X Antonio José Bitencourt, 1805).

A falta de apoio familiar, tanto de ascendentes quanto de colaterais e descendentes,


realmente era um problema a mais para as mulheres que pretendiam o divórcio. No outro único
caso de desistência da separação, também estava presente a condenação familiar à atitude da

186
mulher. Maria José de Meireles Craveiro solicitava, em 1870, o divórcio de seu marido, José
Ferreira Craveiro, depois de 30 anos de casados, alegando as constantes sevícias que sofria do
marido. Mas, por que não buscara a separação antes, tendo suportado tantos anos de sofrimento?
Segundo ela, sendo
“(...) então vivo ainda o tão prezado, como nunca assaz chorado pai da A. (José de Souza
Nunes Meireles), a cuja proteção se socorria ela em tão críticas circunstâncias [grifo meu];
por aceder ou antes obedecer à vontade do dito seu pai, que exigia que a A. continuasse a
viver com o R., comprometendo-se a acalmar as iras e crueldades deste, é que a A., e não por
seu livre alvítrio, prosseguiu na sua vida conjugal com o mesmo R., deixando de há mais
temp o intentar sua ação de divórcio” (Processo de Divórcio de Maria José de Meireles
Craveiro X José Ferreira Craveiro, 1870).

Fica claro, portanto, neste depoimento de Maria José, a interferência do pai na sua vida
conjugal. O casamento não era uma "questão familiar" apenas no momento de estabelecimento do
vínculo conjugal, mas também no decorrer da vida de casados. Depois da morte do pai, teriam sido
a filha e o genro de Maria José os responsáveis pela continuidade de sua união com José Ferreira
Craveiro. Era a eles que recorria, quando o réu procurava matá-la, mas, por insistência deles,
acabava retornando à vida conjugal. No termo de desistência do processo de divórcio, afirmou que
“(...) desistia da ação de divórcio que tinha proposto ao mesmo [seu marido], e isto por estar
mais bem aconselhada do passo errado que tinha dado (...)” (Processo de Divórcio de Maria
José de Meireles Craveiro X José Ferreira Craveiro, 1870)

Parece claro que os "bons conselhos" vinham de sua filha e de seu genro. Assim como o
casamento, o divórcio também era uma "questão familiar". O cumprimento dos "deveres conjugais"
era uma responsabilidade não apenas recíproca entre os esposos mas também para com a família,
em termos mais amplos, sobretudo a da mulher. Um homem que desperdiçava os bens do casal
com amásias, por exemplo, estaria trazendo prejuízos para o "investimento matrimonial", feito pela
família da noiva. Por isso, no mais das vezes, nestas circunstâncias, ela contava com apoio familiar
para a separação.
Vale ressaltar, porém, que o insucesso da vida marital não levava necessariamente a um
descrédito do matrimônio. Senhorinha Rosa dos Prazeres, que se separou, em 1832, de seu marido
Vitor Antonio Teixeira, voltou a se casar, em 1860, com o professor de música Francisco da
Paixão Lima e Silva, depois de com ele viver dez anos em concubinato. Por determinação legal, o
divórcio não dava direito a um novo matrimônio. No entanto, Senhorinha alegou que seu primeiro
marido teria morrido, quando regressava à sua pátria natal, Portugal, havia cerca de vinte anos. Ela
não apresentou, porém, nenhuma prova documental ou testemunhal de seu falecimento, alegando

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apenas não ter dele recebido nenhuma notícia. O Bispo do Rio de Janeiro lhe concedeu licença
especial para que pudesse celebrar seu novo casamento, na forma dos de consciência.
Senhorinha se separou, em 1832, com 17 anos de idade. Até os 35 anos, não tenho
informações sobre o tipo de vida que levou. É provável que, pelo menos durante algum tempo,
tenha continuado a viver na casa de seus pais, onde tinha sido depositada por ocasião do processo
de divórcio. Em 1850, com 35 anos, passou a viver em concubinato com Francisco da Paixão.
Talvez com ele tenha encontrado o "arranjo matrimonial" esperado e não alcançado no seu primeiro
casamento. Um concubinato de dez anos demonstra a estabilidade da relação existente entre eles.
No entanto, não era suficiente. Eles pretendiam legitimar sua união e, por isso, buscaram a
celebração de um casamento de consciência. Se a legislação eclesiástica fosse rigorosamente
observada, não teriam êxito em seu intento. Mas as brechas legais sempre dão margem a
possibilidades deste tipo.
Mais do que a questão legal, no entanto, o que me parece importante destacar é que
Senhorinha, apesar do fracasso do primeiro casamento, continuou valorizando a instituição
matrimonial. Viveu durante dez anos em concubinato, mas quis legitimar sua situação. A sua história
torna evidente que o que movia os que buscavam a separação não era um descrédito para com o
matrimônio. Valorizavam-no e, por isto, defendiam os deveres estabelecidos pelo vínculo
matrimonial. Aos homens deveria caber sobretudo a boa administração dos bens do casal e o
sustento da unidade familiar. Às mulheres atribuíam-se os cuidados da casa, do marido e dos filhos.
A verdade, porém, é que esta é uma construção ideal. Em certos grupos sociais, o trabalho feminino
era fundamental para o sustento da unidade doméstica, pelo menos em determinada etapa do ciclo
familiar. Além disso, ao menos até meados do século XIX, nada, nos discursos analisados, permite
a conclusão de que as diferentes atribuições das mulheres traduzem uma imagem de fragilidade ou
subordinação em relação aos maridos, até porque muitas vezes o homem, responsável teoricamente
por administrar os recursos familiares, contava com os bens trazidos pela esposa, em seu dote, ou
adquiridos pelo trabalho da mulher e, até mesmo, dos filhos. Não raro encontramos também
mulheres, no período colonial, assumindo funções teoricamente masculinas, como as de chefia de
unidades domésticas, de inventariantes e/ou testamenteiras de seus cônjuges falecidos, de tutoras de
seus filhos, etc (Faria,1996).

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A partir de meados do século XIX, porém, pode-se observar um processo gradativo de
demarcação de fronteiras entre as esferas pública e privada, até então praticamente inexistentes
Faria (1994) e Brügger (1995).
A diferenciação, a nível moral, destas duas esferas parece ter sido acompanhada também
por uma hierarquização entre elas. Enquanto praticamente inexistiam limites entre ambas, homens e
mulheres tinham papéis sociais diferentes dentro da unidade familiar, que eram, nas palavras de
Senhorinha Rosa dos Prazeres, "iguais com pequenas diferenças, mas recíprocos". Parece-me que
a idéia, difundida pelos românticos, da fragilidade e submissão do sexo feminino também está
diretamente relacionada a uma diminuição da importância atribuída à sua "função", inclusive
econômica, na vida conjugal. Nas palavras de Joaquim Manoel de Macedo, em O Moço Loiro:
“Na divisão dos direitos e deveres coube-lhe [à mulher] um papel, sem dúvida, respeitável e
nobre debaixo de um ponto de vista; porém em tudo mais secundário e quimérico: a mulher
chega a ser mãe de família... e mais nada.
(...)
Porque o homem tem o comércio... as armas... a política... muito mais ainda... e enfim a
mulher.
E a mulher tem unicamente - o homem” ( Macedo 1987, p.164).

À mulher sempre coube, teoricamente, o cuidado do marido, dos filhos e da casa; ao


homem, a administração dos bens familiares. A "reciprocidade" se encontrava na falta de hierarquia
valorativa entre estas atribuições. A partir de meados do século XIX, os românticos, porém,
difundiram uma visão de “inferioridade” do mundo doméstico, que se privatizava, e que era de
competência exclusiva das mulheres, em relação ao universo público - em princípio relacionado ao
universo masculino. Ao hierarquizarem os mundos masculino (público) e feminino (privado),
construíram também uma mulher fragilizada diante do marido e da sociedade.

4.Conclusão

Parece-me claro que a sociedade escravista brasileira não foi um local de poder
exclusivamente masculino. A mulher possuía, pelo menos até meados do século passado, um poder
equivalente ou até mesmo superior ao dos homens nas vivências matrimoniais.

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Talvez até a presença do discurso misógino tanto nos discursos morais quanto nos nos
costumes populares, apontada por Ronaldo Vainfas (1989), possa ser entendida como uma
resposta masculina àquele poder feminino. Mas isto é apenas uma suposição.
Fica patente também que a caracterização da família brasileira como patriarcal é pertinente,
mas que ela não se confunde com um domínio total do pater-familias. A família patriarcal seria um
elemento definidor desta sociedade por ser instância de poder político e fator de colonização. Nas
palavras de Gilberto Freyre,
“A família, não o indivíduo, nem tampouco o Estado nem nenhuma companhia de
comércio, é desde o século XVI o grande fator colonizador do Brasil, a unidade produtiva,
o capital que desbrava o solo, instala as fazendas, compra escravos, bois, ferramentas, a
força social que se desdobra em política, constituindo-se na aristocracia colonial mais
poderosa da América. Sobre ela o rei de Portugal quase que reina sem governar”. (Freyre,
s.d, p.56).

No entanto, nada impedia que o poder familiar pudesse, em determinadas situações, se


apresentar sob o controle feminino.

Referências Bibliográficas

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