• Ainda que todos os homens vivam na vida cotidiana e sejam absorvidos por ela (não é possível desligar-se dela totalmente), ela é a vida do homem por inteiro. Ou seja, os homens colocam em movimento, nela, todas as suas habilidades, capacidades, sentimentos, projetos, paixões, sem que, no entanto, eles vivam e absorvam inteiramente todos esses aspectos. “Por isso, não pode aguçá-los em toda sua intensidade” (HELLER, p. 18, 1989). • A vida cotidiana não está fora da história, mas no centro dos acontecimentos históricos. Os acontecimentos partem e regressam à vida cotidiana Portanto, a vida cotidiana se inscreve em uma história e se desenvolve em uma dada historicidade, sob dadas condições. • A vida cotidiana é heterogênea. Ela solicita todas as nossas forças e capacidades (do “homem por inteiro” – conforme tratado por Lukács) em diversas direções, mas sem exigir com maior intensidade e com especial destaque qualquer uma dessas forças e habilidades. Essa diversidade certamente possui uma hierarquia que estabelece as prioridades a serem enfrentadas. O processo de homogeneização, ao contrário, tende a concentrar todas as nossas forças sobre uma questão. Trata-se, então, do “homem inteiramente”, que concentra todas as suas forças e habilidades, não arbitrariamente, conscientemente e autonomamente em determinadas atividades (enquanto indivíduos e seres sociais livres). A vida cotidiana é a vida do indivíduo que é, ao mesmo tempo, particular e genérico (são seres irrepetíveis que vivem em unicidade – e esse é um fato ontológico central). Isso significa que o irrepetível se converte, cada vez mais, num complexo a partir da sociabilidade dada, mas não perde, jamais, seu momento único. (citação de Heller na página 21, 1º. parágrafo). Nota – O ser social supõe o indivíduo construído a partir de um legado histórico e que vive sob dada sociabilidade. A particularidade está na forma 2
peculiar-específica que o indivíduo processa a sociabilidade, convive e
responde frente a ela (consciente ou inconscientemente). (citação de Heller na página 21, 2º. parágrafo). • O indivíduo é: singularidade (no sentido da irrepetibilidade) na relação com sua individualidade e com seu gênero humano (como ato mais ou menos consciente). O homem, nesse processo, é relativamente livre (autônomo), mas apenas “relativamente”, pois não está livre da manipulação social e da alienação-estranhamento. Desta forma, o desenvolvimento do indivíduo depende de sua liberdade fática-real que envolve, objetivamente e simultaneamente, habilidades individuais e condições-possibilidades materiais. • O humano-genérico é o homem por inteiro. É a capacidade e possibilidade do homem viver inteiramente colocando em movimento, livremente, suas forças, suas habilidades e sua criação (tendo o trabalho como categoria ontológica central). A busca pelo humano-genérico exige iniciativas e procedimentos que tendam para além da vida cotidiana (na atual sociabilidade, para além da sociabilidade burguesa). O indivíduo contém o gênero, mas não o explica por si só (ler Heller, página 20, 2º. parágrafo). A teleologia do humano-genérico jamais se orienta pelo “eu”, mas sempre para o “nós”. A busca pelo humano-genérico é estimulada pela paixão-desejo que orienta nessa direção sustentada nas capacidades individuais e condições materiais (ambas objetivamente dadas), bem como tenciona-força para outra sociabilidade capaz de derrubar progressivamente as barreiras sociais à humanização mais radical. • Heller chama atenção para a possibilidade da particularidade (o indivíduo singular que se debruça sobre a universalidade), triunfar sobre o humano-genérico. Isso ocorre, por exemplo, quando a sociabilidade burguesa estimula o indivíduo egoísta (centrado nos seus interesses privados e estimula a propriedade privada). Nesse contexto, a ética (formada por valores mais gerais – liberdade, igualdade, fraternidade, 3
justiça, etc..) surge para submeter o particular ao genérico, como uma
intimação que gradativamente se converte em motivação interior (por meio da moral e seus preceitos). Certamente que essa não é uma tarefa centrada nos indivíduos e na ética abstrata, pois depende da objetivação de ações concretas. Nesse sentido, a ética e os preceitos morais carecem de objetivação (para não caírem na abstração), são históricas e, portanto, vinculam-se a um determinado momento histórico concreto (uma dada historicidade). OBS - podemos considerar, por exemplo, posicionamentos ético-políticos (sustentados em princípios gerais conscientemente assumidos), que são processados e se objetivam nas individualidades por meio de atitudes morais que questionam ou endossam a sociabilidade em curso. Nesse sentido, concentramos todas as nossas forças nessa direção e formulamos um vínculo consciente e intencional a um determinado projeto bem como aceitamos as suas conseqüências. • Catarse – purificação-limpeza (consciente) adquirida por meio da vivência de situações e experiências que elucidam aspectos até então não tão claros à consciência. A arte (como “memória da humanidade”) e a ciência (como aquela que rompe com a perspectiva da pura singularidade do homem) são momentos privilegiados para que se possa ir além da vida cotidiana. Mesmo assim, a arte e a ciência não estão separadas do cotidiano e nem os artistas abandonam o cotidiano. • A vida cotidiana é espontânea como tendência para todas as suas atividades. Possui ritmo fixo, repetição e regularidade e tende estimular os sujeitos a se moverem a partir de probabilidades. O pensamento cotidiano se orienta para a orientação de atividades cotidianas, estimulando a unidade-identidade entre pensamento e ação cotidiana. A práxis somente pode existir quando há atividade humano-genérica consciente que transforma o já dado em novo. 4
• A vida cotidiana é absolutamente pragmática. Por isso, tende a exigir
que os homens contem com uma boa dose de fé e de confiança na medida em que eles, também, não são capazes de dominar a vida na sua totalidade. Tende-se, ainda, a certo tipo de identificação entre o “correto” e o “verdadeiro”, uma vez que o pensamento cotidiano é um pensamento fragmentado (imediato-parcial). O “correto” significa persistir e conviver com o cotidiano sem muito atrito (“corretamente”), sendo que o pensamento tende a pensar o como viver “corretamente” (no cotidiano e sem muitas tensões) unindo e identificando a aparência com a essência. • A vida cotidiana estimula pensamentos ultrageneralistas, manejando grosseiramente o singular. O processo de ultrageneralização se sustenta em juízos provisórios que nos orientam para que não façamos qualquer contestação. Juízos provisórios são inevitáveis assim como a vida cotidiana é, num certo sentido, insuprimível. O problema ocorre quando tais juízos se cristalizam-fossilizam (com verdade - preconceitos) e são utilizados plenamente para guiar a individualidade. Normalmente, nesse caso, tem-se uma mistura explosiva: o juízo provisório cristalizado e sustentado na confiança-fé, impedindo qualquer movimento que questione o imediatamente dado. • A vida cotidiana estimula a imitação. Certo nível de imitação é inevitável. O problema está em produzir-criar para deixar (superar) a imitação e configurar novos procedimentos e atitudes. • A vida cotidiana possui uma entonação. “Dar o o tom” (dar o ritmo da ação) é fundamental para construir a individualidade e fazer o debate com outros tons. Um tom fechado em si mesmo (não aberto ao debate) é um tom que ultrageneraliza. • A alienação-estranhamento na vida cotidiana aparece quando as características da vida se fossilizam, se cristalizam, e envolvem o ser, sua individualidade, impedindo que ele se movimente e crie para além da cotidianeidade. Certamente há certo nível de inevitabilidade, já que tais 5
características não podem ser totalmente descartadas. Desta forma, o nível
da vida cotidiana é certamente propenso à alienação-estranhamento, pois naturalmente separa-segrega o ser e a sua essência, rompe com o ponto de vista da totalidade. Entretanto, a vida cotidiana não é, em si, alienada. O problema está em compreender sob quais condições ela se desenvolve e se os seres humanos possuem algum controle sobre ela. (ler página 38, início da página e primeiro parágrafo). Em geral, existe alienação-estranhamento quando há um abismo entre o desenvolvimento humano-genérico e as possibilidades de desenvolvimento dos indivíduos humanos, ou seja, quando existem barreiras sociais – certamente impostas por dada sociabilidade - que impedem que a produção humano-genérica seja feita e apropriada conscientemente pelo indivíduo. • Apontamentos conclusivos da autora a) A condução da vida não supõe eliminar o cotidiano e a cotidianidade, mas reposicionar a coexistência entre a particularidade e a genericidade como uma relação consciente do indivíduo com o humano-genérico. Essa relação deve ordenar e organizar, livremente, as heterogêneas atividades da vida. b) Não é impossível dedicar-se à condução da vida, mesmo enquanto as condições econômico-sociais ainda favorecem a alienação- estranhamento. Essa atitude-postura é fundamental e representativa e funciona como provocação e desafio à desumanização.