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VOZES DA PRISÂO
Janaina de Fátima Silva Abdalla
Resumo
Analisando a produção textual dos adolescentes em conflito com a lei em medida
socieducativa de privação de liberdade- internação, do Centro de Atendimento
Intensivo de Belford Roxo – Rio de Janeiro e a sua relação com os meios de
comunicação, este artigo procura mostrar que para cada estratégia de poder
elaborada nas instituições totais, correspondem novas modulações de resistência ou
táticas difusas, que se ritualizam em atos de comunicação. Para isso foram
analisadas falas e imagens registradas nos corpos, textualidades produzidas pelos
adolescentes em conflito com a lei. Realizamos mais de uma centena de entrevistas
com esses jovens e, ao mesmo tempo, nos valemos dos registros administrativos
dessa unidade de internação e de diversos outros documentos, para compor o
cenário da expressão comunicativa desses adolescentes.
Introdução
Na sociedade brasileira, as crianças e os adolescentes representam à
parcela mais exposta a violações de direitos, apesar de estarem definidos e
defendidos na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Os maus tratos, a exploração do trabalho infantil, o abuso e a exploração
sexual, a fome, o extermínio, a tortura, as prisões arbitrárias, o desaparecimento e o
tráfico de crianças fazem parte do quotidiano brasileiro e mapeiam, de forma
contundente, o cenário nacional no que diz respeito ao descaso em relação a esta
parcela que só encontra amparo em leis que na prática não se materializam.
Um grupo cada vez mais expressivo da população tem se mobilizado para
mudar esse quadro. Mas em relação aos adolescentes em conflito com a lei, a
situação é bem diferente. Seus direitos não mobilizam nem a opinião pública de
maneira geral, nem a parcela que tradicionalmente se preocupa com os direitos da
infância e da adolescência. Reconhecer no “infrator” um sujeito com direitos, ou seja,
um cidadão parece ser um exercício extremamente difícil.
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Formulário Único – Estatística da DEGASE junho de 2006
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Como anexo apresentamos dois quadros referentes aos dados mostrados a seguir. São eles: Lugar de moradia
dos adolescentes e Ato Infracional.
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apresenta diante do outro. Por isso a necessidade de manter esses objetos que o
ligam ao mundo exterior e à formação da própria identidade. São espécies de
“estojos de identidade” (1999: 28-29).
A perda da identidade faz parte também da lógica disciplinar. Ao deixar do
lado de fora dos muros os nomes e ao assumirem um número, deixam de ser
sujeitos individuais, para se tornarem sujeitos de uma nova sujeição. Numerados e
desnomeados são agrupados. Por força da disciplina, perdem a individualidade e
passam a receber, em grupo, o epíteto pelo qual são conhecidos na sociedade:
menores infratores.
"Isto aqui é o maior massacre. Eu queria ver a minha mãe de cabeça
erguida. Peço perdão pela humilhação que a senhora tem de passar pra
me vê, por tudo que eu tenho feito a senhora passar. Peço mais uma
oportunidade, eu quero a minha liberdade. Aqui a gente não é gente. Eu
não agüento mais ser chamado pelo numero". 3 (Grifo da Autora. B., 18
anos – Carta endereçada à mãe.)
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Optou-se por reproduzir literalmente a fala/escrita dos adolescentes, conservando gírias, incorreções
gramaticais e outras imperfeições em relação à norma culta da língua. Esses modos de falar serão também
analisados.
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“Tem menor que faz lembrança pra mãe de sabonete. Tem alojamento
no capricho: a gente descasca a tinta da parede e junta com tinta das
roupas, água e sabão e faz desenho no alojamento, quando consegue
caneta e folhas dos abargados, desenha e escreve. Ás vezes a gente
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Comarca : camas de alvenaria; Boi : privada em forma de cavidade na superfície do piso.; meando de lutinha :
brincando de lutar ; Seu : abreviação de senhor – agente de disciplina; abargados: adolescentes com privilégios-
apadrinhados; sucata : biscoitos e refrigerantes que as famílias trazem durante as visitas.
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Tem nós na fita: imagens das facções criminosas do trafico de entorpecentes ; tem os donos: criminosos que
chefiam as facções; parangolé : assunto, entrave; na de maior: na prisão de adultos; tela:tv; abargados :
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protegidos com privilégios ; pros seus: para os agentes de disciplina; mandam apagar: mandam desligar a tv;
paradas da pista : assuntos ou noticias de fora da prisão.
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impedir, para colocar em destaque uma outra visão, onde aquela realidade não
existiria.
Mas não adianta apagar, não adianta retirar. Outro aparelho de ligação
com o mundo exterior é imediatamente acionado: “... eles mandam apagar, até
recolhe. E a gente liga os walkmans e fica sabendo das paradas da pista "
O poder do saber poderia, deste modo, ser definido pela criação de um
lugar próprio, autônomo em relação ao tempo (e às ações e aos acontecimentos
reais ocorridos), de onde se vê e se controla, tornando legível e previsível a
realidade, viabilizando o "trabalho científico". Por outro lado, este saber tem um
poder que permite e comanda suas características e que, portanto, lhe é preliminar.
Em relação às táticas, Certeau as define como ações calculadas e
determinadas pela ausência de um próprio. Afirma que a tática é movimento dentro
do espaço de ação do inimigo e por ele controlado. Ela não tem, portanto, a
possibilidade de dar a si mesma um projeto global, nem de totalizar o adversário
num espaço distinto, visível e objetivável. Ela opera golpe por golpe, lance por lance.
Aproveita as ocasiões e delas depende, sem base para estocar benefícios,
aumentar a propriedade e prever saídas. Retomamos o relato de G : E a gente liga
os "walkmans" e fica sabendo das paradas da pista. São saídas momentâneas.
O que as táticas ganham não se conserva. Este não-lugar lhe permite,
sem dúvida, mobilidade, mas numa docilidade aos azares do tempo, para captar no
vôo as possibilidades oferecidas por um instante. Tem que utilizar, vigilante, as
falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder
proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém espera.
É astúcia. (CERTEAU, 2000: 100-101)
CONCLUSÃO
O propósito principal deste estudo foi apreender os processos
comunicativos dos adolescentes em conflito com a lei em instituição de privação
de liberdade, produzidos situacionalmente e que se constituem em manifestações
singulares em um lugar/espaço – o CAI Belford Roxo. Ao mesmo tempo em que
procuramos desvelar essas práticas discursivas e o panorama sócio-cultural que as
constituem, tentamos compreender os sentidos produzidos por essas narrativas.
Ao registrar as relações e ações comunicativas dentro da instituição,
materializadas em práticas cotidianas, ora disciplinares, ora de resistências,
estratégias e astúcias em que essas marcas de identificação espaço-temporal se
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revelam, pretendemos fazer destes relatos um espelho onde o leitor possa mirar-se
e refletir sobre a construção da história da violência, do estigma, dos processos de
segregação dos jovens hoje encarcerados nas unidades de internação.
Tomando como base às ações comunicativas dos adolescentes como
processos de troca, ação partilhada, práticas concretas, estabelecidas no
quotidiano do CAI Belford Roxo e além muro da instituição, procuramos visualizar
esses adolescentes enquanto interlocutores, sujeitos sociais desempenhando
papeis, envolvidos em processos de produção e interpretação de sentidos, mais do
que simples emissores e receptores. Pautados, portanto, numa visão que considera
as relações dialógicas, foi possível desvelar os múltiplos caminhos e sentidos da
polifonia dessa realidade específica. Assim, foram sendo reveladas camadas de
semiotização, levando a interpretações que nos permitiram apontar para outro tipo
de visibilidade do contexto das instituições de internação dos adolescentes em
conflito com a lei.
BIBLIOGRAFIA E FONTES
1. Fontes primárias
1.1 Depoimentos:
Entrevistas realizadas com 143 internos do CAI Belford Roxo
Entrevistas realizadas com 78 familiares de internos do CAI Belford Roxo
Entrevistas realizadas com 16 Agentes de Disciplina e Agentes Educacionais
Entrevistas realizadas com 10 profissionais da Equipe Técnica do CAI Belford
Roxo