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29-1-2016
Os eventos que tiveram lugar na Alemanha entre 1933 e 1945 são incontornáveis: eles
se tornaram um “padrão pelo qual grandezas históricas são medidas e os ultrajes são
registrados” (p. 18). Isso é ainda mais certo quando se estuda algum aspecto da História da
Alemanha: nesse caso, é inevitável lidar com a sombra do nazismo, que tende a ser visto como
o ponto para onde as coisas convergem ou de onde elas derivam. Eley informa que esta obra,
quando publicada na Alemanha em 1980, teve uma repercussão enorme e inesperada: havia
demanda para análises alternativas sobre a história recente daquele país. Os autores
procuraram combater a ideia de que a história da Alemanha tinha seguido por um caminho
especial, singular, estranho ao que ocorria no restante da Europa (Sonderweg).
Essa ideia floresceu especialmente após 1945, satisfazendo uma necessidade de
afastamento natural após a derrota do Terceiro Reich [notar que o mesmo ocorre em relação à
cultura: a questão da arte degenerada passa a ser tratada como uma anomalia típica da
Alemanha]. Mas a ideia de um Sonderweg na história da Alemanha é mais antiga: data pelo
menos do começo do século XIX, segundo Eley (p. 19). E isso tinha inicialmente um valor
positivo: na primeira metade do século XIX, o movimento nacionalista alemão via o seu ideal
como diferente e superior em relação ao da Revolução Francesa. Após a unificação, as classes
educadas (Bildungsbürgertum) continuaram entendendo a Alemanha como um modelo
diferente (e superior ao das “democracias parlamentares ocidentais”) de desenvolvimento
moderno, um que combinava “monarquia e sucesso industrial, universidade e exército” (ELEY,
1984, p. 19). [Como já havia demonstrado Norbert Elias] essas classes médias letradas, que
confundiam seus valores com os da nação como um todo, viam-se como um grupo superior
por elevar-se acima de valores materialistas e estarem mais umbilicalmente ligadas ao que era
“espiritual”. Essa visão de uma diferença positiva ganhou força com a Primeira Guerra e esteve
sempre presente ao longo de Weimar.
Os autores desejam ir além disso: querem ver na Alemanha do século XIX uma outra
corrente de pensamento que valoriza a vida material acima de tudo e que sente atração pelo
modelo inglês e ocidental de desenvolvimento: sem negarem a autorrepresentação de
diferença positiva, querem encontrar aquilo que a Alemanha tem de semelhante aos outros
países da Europa. Quando propuseram isso encontraram, surpreendentemente, reações de
acadêmicos alemães que ainda sustentavam, no final do século XX, a mesma
autorrepresentação positiva do século XIX: afirmavam ser verdade que o sistema imperial-
industrial-militar da Alemanha fora superior ao das nações parlamentares do oeste.
Após a guerra, historiadores mantiveram a ideia de um Sonderweg, apenas invertendo
a polaridade: negativizaram-no. A aberrante trajetória alemã foi empregada para explicar a
catástrofe: encontraram as raízes do Terceiro Reich naquela Alemanha imperial-industrial-
militar. 1933-45 foi colocado como culminância da estranha história moderna da Alemanha.
Mesmo considerando todas as variantes políticas e metodológicas dos historiadores, Eley acha
possível encontrar um ponto invariável: todos compartilham uma “inquietação com padrão da
peculiaridade alemã” (p. 20). Alguns consideravam a peculiaridade germânica um fruto da
geografia (sua posição intermediária entre oriente e ocidente); outros, viram no militarismo
em geral e no exército prussiano em particular a força que moldou a diferença; a corrente mais
forte, composta por muitos historiadores emigrados, colocava na cultura a responsabilidade
pela diferença: a “peculiar mentalidade alemã”, marcada por “[...] irracionalismo, glorificação
de valores marciais, a obediência abjeta do ‘súdito’ 1, inclinação para a vida interior e desprezo
por valores ocidentais supostamente mecânicos” (p. 20-21). Essas características típicas do
pensamento alemão, pregava tal corrente de análise, era responsável por afastá-los do
pensamento iluminista ocidental.
Uma influente e densa explicação para a diferença, segundo Eley, é aquela que
enxerga uma modernização incompleta na Alemanha: a modernização da economia não teria
sido seguida, como na Inglaterra, França e EUA, por uma modernização dos valores sociais e
das instituições políticas [essa é a tese central de Jeffrey Herf em “Modernismo Reacionário”].
E explica isso: não se modernizou a sociedade e a política porque a) a burguesia alemã ganhou
o que tinha de baixo para cima, como concessão do poder, e não lutando contra ele; b) porque
os industriais nunca conseguiram vencer os proprietários de terra, e houve então uma
associação via casamento; em suma, porque a burguesia – classe vista como responsável pelas
transformações sociais e políticas no Ocidente, seria fraca na Alemanha: teria ocorrido uma
“feudalização da burguesia” (p. 22). Mantendo intocado seu poder político ao longo do século
XIX, a elite tradicional pré-industrial se manteria intacta durante Weimar e seria responsável
por elevar Hitler ao poder: somente em 1945, finalmente, a Alemanha entraria no rol dos
países burgueses ocidentais. Eley considera louvável esse esforço de autocompreensão feito
após 1945, superior ao que havia sido feito até então, e também o considera sofisticado em
seus métodos, servindo-se da ciência política e da sociologia. Para Eloy, trata-se de uma etapa
1
Essa característica dos alemães era encontrada por Hake já em 1895.
no processo de trocas entre os pensadores da Alemanha com os dos EUA e Inglaterra: essa
visão sobre a história da Alemanha representa a “devolução”, por parte dos americanos e
ingleses, das teorias de Max Weber.
Diz que não pretende demolir esta vertente explicativa, sob a qual diz ter se formado,
nos anos 1960, mas explorar alguns pontos em que ela não tem conseguido oferecer
compreensão suficiente.
1º - testar a ideia aceita de maneira apriorística de Sonderweg. Se a trajetória alemã é
aberrante, qual é a norma da qual ela desvia? Descobre que, de maneira explícita ou implícita,
o modelo tomado como normal era o do “desenvolvimento ocidental, e mais particularmente
Anglo-americano e Francês” (p. 23). Na verdade, uma “imagem idealizada do que seria
realmente este padrão ‘ocidental’” (p. 24), quase mítica. É o que Eley chama a busca pelos
“pecados de omissão de uma história nacional quando medida em relação a outras histórias
nacionais idealizadas” (p. 24). “América”, “França”, “Inglaterra” são tipos ideais, cuja existência
se torna inútil quando rotinizados e tomados como auto-evidentes. Só são bem-vindos quando
ainda servem para iluminar um assunto, quando funcionam.
Acredita que o caminho é procurar enxergar o que realmente ocorreu na Alemanha,
no lugar de tomar como ponto de partida aceitar que ela se diferenciou da normalidade.
Acredita que se deva comparar a história nacional da Alemanha com a de outros países, além
dos que se tradicionalmente observa: Escandinávia, Itália, Leste Europeu etc.
2º - testar a ideia aceita de maneira apriorística de que a burguesia alemã “moveu-se
desastrosamente através da história moderna na direção oposta”, ou que “vendeu seus
próprios direitos de nascença”, escolhendo dedicar-se a fazer dinheiro e “um mundo privado
de sensibilidade”, em suma, a ideia de que a burguesia alemã era “fraca e imatura” (p. 25). De
novo, o caminho passa pela inquirição do padrão: se a burguesia alemã é um desvio da norma,
qual é a norma da qual ela se desvia? Como deveria ser, e onde existiu, essa burguesia ideal?
Concluíram que a burguesia alemã não esteve ausente do “palco da história”; que era
necessário reconsiderar a ideia de uma revolução burguesa. O caminho é observar o
desenvolvimento da burguesia na Alemanha do século XIX, através de uma análise
concentrada em elementos ligados a ela: “direitos de propriedade e ideias de competição, a
regulamentação da lei, o surgimento de associações voluntárias e opinião pública, e novos
padrões de gosto, patronagem e filantropia” (p. 26). A aproximação desse grupo com a antiga
elite ocorreu, mas em que outro país isso não ocorreu também?
Há vestígios de feudalismo na forma das relações entre patrões capitalistas e seus
empregados? Qual a distância entre as novas associações voluntárias e as mais institucionais,
semi-estatais Verbande (“ligas”)? De todo modo, questões desse tipo só podem ser abordadas
corretamente, e vêm sendo, segundo Eley, através da Alltagsgeschichte.
3º - e mais importante: como essa trajetória da burguesia na Alemanha se articula com
a vida política? A ausência de parlamentarismo, liberalismo e democracia parece traduzir o
fracasso da burguesia alemã. Mas onde ela foi vitoriosa? Em que país a burguesia tomou o
poder e reconstituiu o estado a sua imagem e semelhança? Há de fato essa ligação necessária
entre burguesia como classe e um determinado modelo de estado? Para ele, na América, na
Inglaterra e na França a burguesia se tornou a classe dominante (e não classe governante) não
por meio de ações heroicas ou intervenção política direta, mas por reorganizar a vida miúda,
as relações de produção, trabalhistas, associacionistas, legais. Uma revolução silenciosa e
pulverizada. Um alargamento do conceito de revolução burguesa.
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Não advoga a imagem de uma burguesia apolítica: apenas uma noção bipartida da
história política da burguesia: de um lado, essa atuação silenciosa e pulverizada que instituiu
mudanças na sociedade e na economia; por outro, o drama político, a política feita como ação
dramática, em palco público, com falas e enredos, tramas e intrigas; nesse segundo aspecto,
ao contrário do anterior, a burguesia fracassou, não conseguiu atingir uma unidade de
interesses e, dessa forma, não conseguiu reformar o sistema político e constitucional no
período entre a unificação e a Primeira Guerra. Isso resulta numa “falta de sincronização entre
as realizações burguesas nos diferentes níveis” (p. 28). O que se advoga é: apareceu no século
XIX na Alemanha uma burguesia, entendida como um grupo que “possuía e controlava o
capital e os esteios administrativos, profissionais e gerenciais” e que desenvolvia
concomitantemente uma consciência comum que valorizava “o direito à propriedade, o papel
fundamental da legislação”, formas próprias de associação, filantropia e novas relações
patronais. Essa burguesia tinha consciência de si, especialmente porque apareceu de maneira
tardia e o efeito contrastante dela foi explícito. Essa burguesia se tornou hegemônica na
Alemanha, mas quando se tratou de converter-se em força política do tipo tradicional, falhou
em superar as diversas cisões internas e por isso não obteve a liderança no jogo do poder
institucional.
Um postulado: o constitucionalismo liberal europeu somente se cristalizou em
democracia quando confrontado com pressões fortes das classes subordinadas. Em cenários
marcados pela ausência de agitação popular, o liberalismo tendeu a se cristalizar em um
parlamentarismo que, apesar de se dizer defensor do “interesse geral”, se torna permeável
apenas às classes proprietárias – a burguesia entre elas. Ele vê isso acontecer na Alemanha:
quando a burguesia conseguia acesso ao poder, tendia a lutar por parlamentarização, mas não
por democracia. Ele lembra que o antidemocrático estado prussiano se constituiu em parte
graças aos esforços de aplicados membros da burguesia.
As análises anteriores criaram a ideia de um “bonapartismo alemão”, da manipulação,
por parte da elite, dos sentimentos da massa, transformando um descontentamento que em
outros lugares se traduziria em revoluções e sedições a se transformar em atividade partidária.
Nesse esquema, a velha elite sorrateiramente converteria o descontentamento em apoio,
atraindo para si as massas agitadas. Os autores concordam em parte com isso. Apenas
acreditam que a manipulação foi menos maquiavélica do que se costuma narrar nas histórias
da Alemanha: a forma pela qual se deu o processo de transformação da sociedade alemã –
crescimento industrial vertiginoso ocorrendo junto com a consolidação da sociedade sob
hegemonia burguesa – fez com que o descontentamento das classes subordinadas se dirigisse
“naturalmente” para o teatro da política tradicional. O que se conclui dessa argumentação é
que há consenso entre os historiadores de que na Alemanha a atividade política das classes
subordinadas – diferente do que ocorrera em outros países - se dirigiu diretamente para a
atividade partidária.
O estado alemão era de fato autoritário e apenas semi-constitucional: o Kaiser tinha de
fato grande poder sobre o funcionamento do mecanismo político, e o sistema de
representação funcionava a meia-força, obstado por permanências pré-liberais. O autor quer
demonstrar que isso, ao contrário do que costumam dizer as análises tradicionais, não se deu
somente por força de manipulações, mas pela própria incapacidade de unificação da
burguesia, fragmentada e enfraquecida durante todo esse período imperial, e pelos problemas
que os partidos burgueses enfrentaram na lida com o eleitorado popular.
De todo modo, tanto a forma demagógica com que o sentimento popular foi tratado,
quanto o fracasso em realizar uma reforma de fato, acabariam tendo peso na história da
Alemanha após a primeira guerra.
Hitler não foi um “acidente” histórico, um surgimento inesperado e excrescente
totalmente estranho ao que ocorreu no século XIX; mas também, argumenta o autor, não se
pode olhar o século XIX como “antessala do Nazismo” (p. 32): a questão não é confirmar ou
negar a continuidade do século XIX no advento de Terceiro Reich, mas em explicar como se
deu essa continuidade, que tipo de continuidade é essa. A ligação do cenário político do século
XIX com a República de Weimar, para Eley, é evidente: a fragmentação da burguesia, a
hostilidade dos partidos burgueses para com a esquerda, o caráter confessional das secções
impediu a consecução do projeto reformador. Para o autor, o fim da política Guilhermina,
“velha e confortável”, abriu as portas para novas formas de participação política que puserem
lenha na fogueira nazista: “[...] a emergência de um novo nacionalismo radical legitimado pela
referência ao ‘povo’ no lugar do imperador, a revolta dos camponeses contra a autoridade
urbana, o advento de uma pequena burguesia autoconsciente” (p. 32).
O sucesso do nazismo, como de outros fascismos, está ligado fortemente a uma
“retórica pública”: tanto quanto a sua função, sua aparência.
A historiografia tradicional procura colocar a ascensão do nazismo como uma
continuidade da política autoritária do século XIX: uma elite temerosa em perder o poder de
controle sobre uma massa cada vez mais imprevisível decide apostar suas fichas no único
elemento que parece ser capaz de evitar a revolução de esquerda. Os autores procuram
demonstrar que não era mais a “velha elite pré-industrial” (p. 33) e seus mesmos instrumentos
que estavam em ação entre 1930-33, mas um novo grupo, com novos objetivos. Propõe que se
veja “a demagogia pré – e pós- guerra como um processo cada vez mais arriscado de tentativa
de contenção política, e não como uma bem-sucedida manipulação política por uma pequena
elite em particular” (p. 34).
Capitalismo e nazismo: a República de Weimar era vista como ligada “não só a
revolução, inflação e Versailles” (p. 35) mas também, aos olhos dos capitalistas, era sinônimo
de apoio aos sindicatos e a uma política de bem-estar social: o SPD, partido que comandava a
República, tinha compromisso com essas plataformas e, se voltasse atrás, veria sua base de
apoio entre os trabalhadores migrar ainda mais rápido para o KPD. Os interesses do capital
estavam ameaçados.
1- Peculiaridades germânicas
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que, por outro lado, era interessante para essa burguesia contar com um “estado
poderoso ‘acima’ da sociedade” (p. 133); e que este mesmo estado foi uma instância útil para
o tratamento de uma série de dificuldades, mais eficiente que o mercado ou os tribunais.
Finaliza a introdução dizendo esperar ter contribuído para que se fale menos sobre o
desastre alemão como resultado de uma entrada atravessada na modernidade. Argumentos
desse tipo, afirma, “podem obscurecer verdades importantes sobre a modernidade ocidental
tanto quanto o fazem a respeito da peculiaridade alemã” (p. 133).
2
Notar que Antoine Prost demonstra que as cátedras de História, no início do século XIX em Paris, eram
eventos políticos, reunindo não só estudantes, mas um amplo público sequioso pela oportunidade de
ouvir ideias e temas que não tinham outros canais de publicação; nestes “recintos preservados” os
historiadores encontravam espaço para participar do debate num cenário em que as liberdades de
expressão ainda estavam se formando; Guizot acabou sendo proibido de falar em 1822 (PROST, 2014, p.
23). Ver também que talvez GALVES localizou nas primeiras décadas do século XIX, no Maranhão,
justamente com a fundação da primeira tipografia do estado, a formação de um espaço público de
debates.
altura. O esforço dispendido nesse processo revela a importância central da lei para a parcela
burguesa da sociedade: era na lei que os burgueses viam um dos seus esteios. A infiltração
tranquila e naturalizada dos interesses da burguesia nos códigos legais (e possivelmente um
concomitante crescimento da importância da lei escrita como pilar do funcionamento da
sociedade) foi mais uma etapa daquela revolução silenciosa 3.
Numa sociedade que demandava funções mais especializadas e complexas, criando
novas profissões que surgiam ao mesmo tempo em que se desmantelava a sociedade
corporativa, os novos profissionais até então “atados à corte, à igreja ou às guildas” (p. 152),
identificavam-se desde o início como burguesia. Estes homens determinavam as diretrizes de
suas próprias atividades e, ao mesmo tempo, projetavam-nas à toda a sociedade circundante:
cientistas e médicos, por exemplo, dotaram suas práticas com um tom de otimismo e com a
crença no progresso.
Mas foram as associações, na opinião de Blackbourn, os instrumentos pelos quais a
burguesia universalizou sua cultura e tomou a condução da vida coletiva na Alemanha. Elas
existiam já desde o final do século XVIII, um espaço entre a família e o estado, uma esfera
pública; mas foi no século XIX, especialmente após 1850, que elas se multiplicaram “como
cogumelos”. Tinham objetivos diversos: esportivos, culturais, filantrópicos, religiosos ou
educacionais. Havia sociedades locais com fins extremamente específicos, como estimular o
abandono do consumo de bebidas espirituosas, estimular a frequência escolar entre crianças
pobres, estimular o cultivo de batatas por indigentes, arregimentar fundos para a construção
de hospitais e escolas etc. As associações voluntárias se tornaram o “elixir universal” (p. 153).
As associações tomaram o lugar deixado vazio pelo recuo do estado, da Igreja e das guildas na
formação de “opiniões” e como canais de expressão dessas ideias. Foi por meio dessas
associações que os diversos indivíduos dotados de interesses divergentes acabaram
encontrando um ponto de ligação e identificação: elas deram um sentido de classe a esses
indivíduos (àqueles que tinham dinheiro disponível, acesso a locais de reunião e educação
suficiente para a redação de estatutos e manifestos). E eram locais privilegiados para que essa
burguesia exercesse liderança dentro da sociedade: dali veiculavam mensagens para a
sociedade como um todo, ali se faziam visíveis. Emitiam a mensagem de que seus padrões
morais e costumes eram os ideais a serem atingidos por todos: eram os modelos a serem
perseguidos.
3
Essa observação sugere uma abordagem nova dos códigos de leis, especialmente os elaborados ao
longo do século XIX: o processo de criação das leis, as discussões que precedem sua promulgação, cada
um dos novos códigos que vão surgindo, nas instâncias municipais e provinciais, são oportunidades de
observar e testar essa hipótese de que a burguesia (ou qualquer novo grupo que esteja em ascensão no
lugar onde a lei é criada) vai inserindo seus interesses lentamente nos códigos de leis.
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E onde estavam os membros da família Klabin nas fotografias do álbum de família? Em parques
(“Jardim da Aclimação”), em hotéis, em zoológicos na Europa, em balneários públicos, em museus e
galerias, em salas de concerto, financiando atividades artísticas e literárias: os Klabin eram os mais
acabados exemplos de burguesia, circulando pelos espaços típicos dessa classe. Examinar aquele álbum
depois de ler estes parágrafos de Blackbourn muda a compreensão sobre a família e sobre os lugares em
que ela circulava, estabelecendo a relação entre um certo “estilo de vida” e os cenários das fotografias,
evidenciado pelas atividades preferidas e lugares de circulação preferencial.
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... eram também novos espaços da esfera pública, e como tal reconhecidos por seus
contemporâneos. Prova disso é seu contínuo emprego como “palanque” pelos que desejavam
promover causas públicas. Se a companhia pública mobilizava capital, o lugar público
mobilizava opinião.
“Instruir, iluminar e educar” eram os objetivos da burguesia, era a justificativa para a
existência de uma esfera pública, era o motor por trás de seus empreendimentos culturais.
Instruir deve ser entendido como instilar a aceitação dos seus valores como os corretos e
modelares, “um tributo à autoconfiança da burguesia: símbolos do poder da ciência e
testemunhos de como o Progresso poderia edificar o homem enquanto dominava a ordem
natural” (p. 156). Os zoológicos, a substituírem as antigas coleções de animais exóticos da
nobreza, trocavam, nas palavras de um burguês, um espaço onde se exercitava uma pompa
em estilo asiático por locais de estudo e aprendizado de fisiologia, história natural e economia.
A atitude dos visitantes era “quase pia”, reverencial, Sokolovsky notou, algo que era desejado
e estimulado pelos mantenedores.
As atitudes durante espetáculos públicos se modificaram: começou-se a erigir uma
ideia do que fosse a atitude correta e respeitável durante espetáculos. Cessaram as
interrupções com as costumeiras exigências de repetições de determinados trechos; as palmas
passaram a ser direcionadas para o final das peças, e falas durante os procedimentos passaram
a ser censuradas. A diminuição da luminosidade durante a função acentuava a necessidade
dessa atitude contida (p. 157). Essa nova atitude do público se tornou cada vez mais comum a
partir de 1850; Wagner exigia isso em Bayeruth.
Gosto, moda e vestuário passaram a ser contidos nessa nova sensibilidade. No antigo
estado estamental, normas específicas regulavam o vestuário de acordo com a pertença do
indivíduo (Kleiderordnungen). Isso, que nunca teve poder de lei, começou a ser corroído após
1750. Aparece uma nova ordem de vestuário, e os burgueses adotam padrões distintivos, mas
sem regulamentações restritivas: a respeitabilidade burguesa, como tudo o mais, estava
formalmente à disposição de todos 5. O padrão de vestuário se estandardiza, o que favorece o
5
Assim como todos têm direito à “busca da felicidade”, todos poderiam formalmente se vestir
apropriadamente, frequentar as exposições de arte, ir a restaurantes e hotéis, etc. Era uma promessa
mais que uma realidade: quando se percebeu que essa promessa não passaria disso, acaba a utopia
moderna; o fenômeno que David Harvey atribui ao século XXI – a cidade que oferece tudo apenas aos
que têm como pagar, ou que oferece níveis distintos de acesso às conquistas humanas de acordo com
padrões censitários, o direito desigual à cidade – parece ser mais antigo, parece ser característica de
nascença da modernidade; talvez a diferença é que lá, no nascimento, essa promessa substituía a
negação completa: era um avanço; hoje a promessa se esvaziou pela experiência de 200 anos. Joris-Karl
Huysmans em “A Rebours” (1884), faz o protagonista introduzir um rapaz pobre nesse círculo de
mercado (capaz de produzir itens similares) e faz declinar, em contrapartida, a produção
doméstica. A “moda camponesa” tradicional, assim como os produtos camponeses em geral,
feitos à maneira antiga, passaram a ser valorizados pelos saudosistas, folcloristas e congêneres
ao mesmo tempo em que desapareciam, diante de novas formas de vestir e de produzir. O
folclorismo transformou em produto as antigas tradições: assim surgem, por exemplo, as
Trachtvereins, sociedades que celebram as tradições em festivais anuais, vestidos com as
roupas dos antigos camponeses: “vinho novo em garrafa velha”, segundo Blackbourn, ou “o
antimaterialismo levando água ao moinho do mercado” (p. 158).
Blackbourn encerra o capítulo com uma conclusão sobre tudo o que foi dito: a força da
burguesia não está em sua capacidade de se comportar como herói social, tomando o
processo em suas mãos de maneira súbita e violenta, às claras. Pelo contrário, sua força é
maior, e maior sua capacidade de conformar toda a sociedade, quanto menor for sua
visibilidade. Dessa forma, ao longo do século XIX, pareceu cada vez mais natural uma
sociedade igualitária, e cada vez menos aceitáveis as antigas interdições que determinavam as
formas de socializar, trabalhar, consumir e edificar-se. A ideia essencial da sociedade burguesa,
o liberalismo formalmente nivelador e universalizante, disseminou-se como nova ordem
natural. Dessa forma, “a identidade sociológica do ator social era menos importante que seu
status na ação”: fosse camponês, artesão ou burguês, todos passaram a se comunicar pelas
normas do mercado, e não mais por meio de regulações corporativas; aristocratas passaram a
ingressar em associações voluntárias, e o príncipe, a sustentar os artistas não mais pelas velhas
formas de patronato, mas adquirindo suas obras por meio de seu livreiro preferido. “Artesãos
e aristocratas, camponeses e príncipes estava imaginariamente ligados pelas mesmas regras
básicas de uma única e anônima sociedade burguesa” (p. 159), sob as forças anônimas e
naturalizadas do mercado e da lei.
O contrário é verdadeiro: onde a burguesia tornou-se visível demais, onde celebrava
suas conquistas ruidosamente, ela se tornou mais vulnerável, configurando-se num alvo fácil.
riquezas somente formalmente aberto a todos, com a finalidade de torná-lo dependente do luxo e, em
consequência, um criminoso disposto a tudo para obter os meios de se manter nele.
atuação daquele grupo reside na sua ambiguidade. E isso, ele adianta, é característica da
burguesia da Europa como um todo, e não somente a alemã.
Ele chama essas ambiguidades de “lados sombrios”, porque são contrapartidas
negativas de coisas que, olhadas por outro prisma, são positivas. Primeiro, a economia: o
capitalismo de fato trouxe benefícios, extinguindo gradualmente a carência crônica em que
vivia a sociedade sob a economia antiga, instituindo eficácia e equidade, fazendo aumentar o
nível de vida. Isso se pôde observar no seu ápice nas décadas de 1850 e 1860, em que o
otimismo atingiu o ponto mais alto. Depois disso, no entanto, crises cíclicas passaram a assolar
a nova economia, “novas instabilidades e ansiedades” (p. 163) corroendo a confiança. Há o
que se chama Grande Depressão, entre 1873 e 1896, período que contém três grandes crises.
Essa turbulência fez estragos nos níveis de emprego, produção, investimento, lucros e
dividendos. Abalando a confiança, essa crise trouxe ainda outra consequência desastrosa: a
formação de enormes cartéis, a concentração brutal do controle sobre a economia e as
atividades econômicas em algumas poucas mãos, o que destruiu a visão de uma sociedade
igualitária, formada por prósperos cidadãos “médios”. A auto-regulamentação “natural” da
economia capitalista, que havia permitido a edificação de tantas esperanças de ascensão
social, mostrou-se uma quimera, beneficiando uns poucos. Parecia cada vez mais claro que os
caminhos para a ascensão social, que a modernidade capitalista gabava ter livrado das amarras
tradicionais, estavam agora amarrados por novas teias. As corporações agiam como
bucaneiras.
Logo começam a se erguer vozes que proclamam que as leis naturais do capitalismo
não são assim tão naturais. Algumas dessas vozes se expressavam numa linguagem
emprestada dos tempos pré-capitalistas, falando em “preço justo” e “direito à subsistência” (p.
163); outras forjam uma nova linguagem para expressar esse repúdio a algo novo. De todo
modo, Blackbourn ressalta que é também a visibilidade uma inimiga da economia moderna:
ela se faz em público, e está à vista de todos, aberta, assim, às críticas. Por isso, muda a forma
como a burguesia lida com suas “conquistas”: das loas abertas das décadas de 1850 e 60 ao
potencial progressista do vapor e das ferrovias, eles se encerram às quietas conversas de
bastidores, às maquinações secretas feitas nos altos escalões das corporações (os homens de
negócio retiram-se da vida pública).
Outro ponto: a crise e o recolhimento público dos grandes cartéis ocorrem ao mesmo
tempo em que o estado e a grande indústria se tornam cada vez mais inseparáveis, formando
na Alemanha aquilo que os historiadores chamam de “capitalismo estatal monopolizador” (p.
164). Interpreta-se que essa associação ocorre porque o estado desejava regulamentar uma
economia instável e assegurar alguns padrões mínimos para determinados grupos, de maneira
a minorar os danos e viabilizar a continuidade da vida econômica e a tranquilidade social. Essa
ingerência estatal torna-se aceitável porque já não se acredita mais na ideia de que a
economia capitalista seja perfeitamente autorregulatória. “Assim que o homem de negócios
desaparece dos parlamentos, ele reaparece nas comissões governamentais” (p. 164). Tudo isso
é fruto da ansiedade social frente às dificuldades da nova ordem.
A própria nova ordem gera novas ansiedades, que se manifestam num recuo da
burguesia, estreitando seus horizontes (abdicando de desejos, utopias e crenças) e
abandonando o otimismo anterior. Isso se corporifica num clima rotulado de “desespero
cultural”.
Nos anos intermediários do século XIX, a igualdade perante a lei e a garantia de
inviolabilidade da propriedade privada eram celebradas como conquistas da modernidade;
comparando-se com a situação anterior, descrita como sendo uma de arbitrariedades e
monopólios insuportáveis, parecia que se havia feito avanços indiscutíveis. Os dois princípios,
no entanto, abrigavam uma contradição potencial que se tornou aguda e patente quanto mais
se aproximava o fim do século. Conceitualmente harmônicos numa sociedade composta por
riquezas médias e equivalentes, a conciliação entre igualdade jurídica e direito de propriedade
se tornou impossível num cenário de concentração cada vez maior de renda. Por conta da
sectarização da sociedade, o ambiente legal ameaçava se tornar palco de disputas entre os
diversos interesses; a elaboração do Código Civil foi momento em que essas disputas se
tornaram visíveis.
Procurando evitar isso, houve recuo no campo jurídico, ocorrendo o que Blackbourn
chama de “formalização” da lei; passa a haver uma concepção tecnocrática da justiça, um
“positivismo legal” em que as preocupações mais gerais da sociedade são afastadas dos
estudos e das práticas jurídicas, que se tornam assim presumidamente “imparciais”, técnicas,
etc. Todo o fundo humanista do direito foi abolido. Blindava-se a lei, evitando assim que os
conflitos sociais invadissem o campo do direito. Um “fatalismo evolucionista” que defendia
que o estado atual das leis fora atingido por força de desenvolvimentos naturais e que nada
legitimava a interferência nele: o que era, era porque deveria ser, e nada se podia – nem devia
- ser feito quanto a isso. De uma situação em que a lei significava reforma, libertação,
progresso ou renovação, passou-se a um estado em que lei era sinônimo de ordem. De
ferramenta para desobstrução, para eliminação de privilégios e restrições, passou a ser
ferramenta para manutenção do status quo.
Blackbourn defende que ocorreu fenômeno paralelo com o envolvimento cívico e vida
associativa. Nesse ponto, a burguesia alemã é acusada de “quietismo civil”, ou seja, de ter
falhado em assumir um papel ativo na vida pública. Blackbourn discorda, por dois motivos: a)
porque em comparação às suas congêneres, ela nada tem de muito diferente em termos de
grau de atividade (em outros países, a burguesia não foi mais ativa que na Alemanha); e b) o
que houve não foi um quietismo, mas uma nova forma de se comportar, a assunção de uma
nova forma de conduta, uma “forma diferente assumida pelo ativismo cívico ao longo do
século” (p. 173). Em princípio, as associações eram universais em 2 sentidos: abertas ao
público em geral e voltadas para questões gerais da sociedade como um todo, objetivos
expressos em termos imprecisos como “bem comum” ou “bem-estar público” (p. 173). Na
prática, eram de acesso restrito (as práticas de associação incluíam recomendações pessoais e
votações), estabelecendo tacitamente limites mínimos de educação e renda para a aceitação;
muitas se tornaram corpos fechados e rigidamente hierarquizados (a diferença das associações
para os antigos agrupamentos que elas substituíam - aristocracia, corte, religião - era que o
acesso não se dava mais por nascimento, mas por educação e/ou riqueza). Eram, afinal, a
forma da burguesia se unir e exercer a liderança social, algo que foi sendo corroído na segunda
metade do século XIX, quando os “excluídos” formaram suas próprias associações: nobres e
religiosos de um lado, trabalhadores de outro.
Assim, as associações que se propagandeavam caminhos para a universalização das
cisões sociais e religiosas se tornaram justamente uma reprodução dessas cisões; as
declarações de que se trabalhava pelo “bem comum” ficaram seriamente desacreditadas. Se
tornaram estritamente especializadas, simulando as formas anteriores de estratificação; seus
objetivos se tornaram específicos, muitas se convertendo em “grupos de pressão”. Sua
atuação se fechou, cada vez mais, aos olhos do público: o caráter público deu espaço à ação
velada em prol dos interesses específicos de cada associação. Diminui a “ambição pública”,
cessa a “ampla missão sociocultural” (p. 174).
E aqui o autor pode reafirmar sua tese, unificando mais essa conta ao seu rosário: o
estreitamento da ação e do conceito das associações é uma manifestação localizada de um
fenômeno geral: “[...] o recolhimento dos homens de negócio em cartéis e grupos de interesse,
de advogados em um positivismo jurídico estreito, das profissões em geral em um apertado
espartilho de ethos profissional”; e mais, “a transformação da ‘cultura’ em algo estático e de
propriedade exclusiva dos iniciados”, traduzida, por exemplo, nas novas formas de fruição de
espetáculos exigida como sinal de respeitabilidade, o vestuário se tornando (novamente) um
sinal distintivo, uma barreira contra a dissolução na multidão disforme, o acesso privilegiado
agora controlado pela riqueza.
É nesse cenário que deve ser analisada a “feudalização” da sociedade burguesa alemã.
Assim vem sendo chamado o processo através do qual ela procurou adquirir os símbolos
nobres antigos: as propriedades rurais, os títulos de nobreza, os hábitos e até os nomes,
através de casamentos. Blackbourn não nega a existência deste processo, mas pede que se
observe que isso ocorre de maneira similar na Inglaterra e na França – “o dinheiro
envergonha-se terrivelmente de si mesmo”, e assim que possível, os burgueses tentam
remover “o estigma do comércio” (p. 177). Ou seja, Blackbourn retorna a seu argumento
favorito: nada há de diferente na Alemanha que permita a acusação unilateral de sua
burguesia. E avança a argumentação: não se pode falar em “feudalização” da burguesia, mas
na formação de uma nova classe dominante que é um amálgama simbiótico das partes antigas
e novas da elite. A tomada burguesa dos símbolos nobres é corriqueira em toda a parte:
“classes em ascensão tendem naturalmente a ver símbolos de poder e riqueza nos termos em
foram estabelecidos pelos seus antigos grupos superiores como padrões de luxo e pompa”
(Hobsbawm, p. 177).
A adoção de alguns dos antigos símbolos nobres pela burguesia não deve ser vista
como uma vitória da primeira pela segunda (algo que o termo feudalização sugere); a nobreza
alemã, assegura Blackbourn, não era capaz de vitórias dessa envergadura; mesmo na vida
militar, algo extremamente ligado à antiga nobreza, o ethos Junker foi apenas tolerado (a
impaciência dos jovens oficiais com a teimosia dos velhos Junkers reaparecia sempre que a
Alemanha se encontrava numa encruzilhada em disputas militares). A adoção de padrões pré-
modernos, enfim, mostra a vitalidade da burguesia, e não significa sua capitulação.
A feudalização, afinal, é mais uma das manifestações da virada conservantista da
burguesia no final do século XIX. Mais do que se casar com a nobreza, os burgueses desejavam
se divorciar do proletariado; foi “o medo do proletariado”, afirmou Leo Kofler (citado à p. 179),
“que levou a burguesia a trair completamente seus próprios ideais e objetivos históricos”. A
frenética luta por estabelecer distância do proletariado e manter essa separação a qualquer
custo foi quase que a definição completa da vida burguesa alemã no final do século XIX (e isso
significa dizer que os olhos da burguesia estavam voltados para baixo, e não para cima, ou
seja, que seu objetivo maior não era se feudalizar, mas não se proletarizar).
E há ainda um senso de casta burguês completamente autônomo da nobreza, e
inclusive hostil a ela. Para alguns, como a burguesia católica da Alemanha imperial, o estilo de
vida nobre exercia má influência sobre os proletários: reclamavam da brutalidade dos modos
dos nobres, que pouco inspirava a “desbarbarização” dos proletários; já alguns grandes
burgueses, como Krupp, recusavam qualquer comenda distintiva que os aproximasse da
nobreza, e ridicularizavam aqueles que perseguiam símbolos da antiga elite.
Em suma, “há motivos suficientes para explicar o conservantismo da burguesia alemã
sem lançar um peso explicativo indevido no processo de ‘feudalização’” (p. 181).
IV – O estado e a política
1. Discrepâncias
184
18-2-2016
Mesmo que se conceda que a burguesia alemã fez tudo o que vem sendo dito nos
capítulos anteriores, ainda parece haver espaço para críticas: ela teria falhado em tomar o
controle sobre o processo político institucional, criar um parlamento no Reich, desalojar os
antigos grupos pré-modernos das esferas de poder. Há uma discrepância de ritmos, entre as
esferas econômica, social e política: subsistem concomitantemente estruturas novas e velhas.
Blackbourn desvenda a genealogia dessa ideia: Ernst Bloch foi um historiador alemão que
juntou conceitos românticos, weberianos e marxistas numa análise que frutificou nessa
constatação da discrepância. Blackbourn lembra que o caso alemão, longe de ser atípico, é
apenas uma versão mais amplificada de um fenômeno que ocorre em toda parte. Lembra
também que essa discrepância é central na ideia de Marx: é através desse atrito entre as
forças econômicas em desenvolvimento e a estrutura institucional que as encapsula que
emergem as mudanças.
No caso alemão, afirma Blackbourn, o surgimento tardio e eruptivo da sociedade
burguesa e sua economia eclipsaram a necessidade política. Em sua opinião, “o próprio
sucesso de uma economia capitalista dinâmica e uma ascendente sociedade burguesa na
Alemanha tornou a dominância política, em certo sentido, menos necessária”; ou ainda, a
dominância alcançada nas esferas não-políticas tornou não só desnecessária, mas indesejada,
a incursão na política institucional (p. 186). E ainda mais, seria auspicioso para essa burguesia
poder contar com um estado forte agindo como filtro, ou tampão, resolvendo pela força
problemas que não podiam ser tratados de outras formas.
Essa expressão foi cunhada por Friedrich Dahlmann para se referir à Prússia, capaz de
reformar e reprimir com a mesma força; é esta a metáfora que Blackbourn deseja empregar
para compreender inicialmente a característica do estado e a relação da burguesia alemã com
ele.
Blackbourn descreve uma situação inaugural: antes de 1840, e na esteira de 1848
através das décadas seguintes, o estado Prussiano era efetivamente arbitrário e autoritário:
altamente militarizado (chegando, em algumas regiões, a ter 1 soldado para cada 2,5
habitantes), monitorando abertamente a população, proibindo associações, censurando as
comunicações. Tratava-se de um estado burocrático autoritário ubíquo. Com a Alemanha
unificada sob a liderança da Prússia, esse modelo se ampliou; mas Blackbourn defende que
essa característica se amenizou nas últimas 3 décadas do século XIX: direitos legais começam a
obstar o poder do estado, as associações florescem, greves são legalizadas. Mais que isso,
prova a queda do poder estatal o fato de que diversas tentativas de cercear e fazer recuar os
direitos, empreendidas nas décadas finais do século XIX, foram bloqueadas e derrubadas pela
sociedade antes de entrarem em vigor. Essa suavização da força é entrecortada por eventos
autoritários, resquícios da característica anterior, que Blackbourn coleta e demonstra como
contrapontos. Católicos, judeus e social democratas eram alvos preferidos das ações
coercitivas e discricionárias do estado, sujeitos a frequentes enquadramentos repressivos nas
leis de lesa majestade, perseguições, alistamentos forçados etc.
Havia, afinal, uma burocracia estatal pairando sobre a sociedade, ameaçando
continuamente cair sobre suas cabeças. Burocratas eram tratados com preferência em relação
a comerciantes e profissionais burgueses em geral. Sobretudo o exército preservava um status
superior e separado da sociedade civil legal, recusando-se a submeter-se à lei comum.
Dispositivos constitucionais davam aos comandos militares o poder de, em casos de
“emergência” – e esse conceito era elástico – suspender todas as garantias legais, prender e
censurar.
Nas posições de comando da burocracia e do exército, indivíduos da antiga nobreza
eram maioria, mas essa situação, defende Blackbourn, se modificou ao longo do último terço
do século XIX. De maioria, os nobres encastelados nessas posições se tornaram exceções,
compondo enclaves na máquina estatal. Já se afirmou que o estado tolerou a economia
burguesa para usá-la como ferramenta para a manutenção da ordem feudal; Blackbourn
sugere que se veja essa afirmação pelo lado contrário: os burgueses toleraram resquícios
feudais para assegurar a manutenção de sua economia. O estado, já visto acima, foi essencial
no estabelecimento das condições para o desenvolvimento da economia capitalista na
Alemanha. Ele agiu sempre de maneira a permitir a instalação da nova ordem, removendo
obstáculos ao seu desenvolvimento. Mas Blackbourn não quer, com isso, reforçar a teoria de
que na Alemanha tenha havido o que se chama de “capitalismo monopolista de estado”, com
total aderência entre estado e capitalismo: em muitos momentos, quando jugava acertado, o
estado contrariou interesses capitalistas. Sugere que se pense numa “ampla zona de
cooperação” entre a burguesia e o estado (citando Nipperdey, p. 192).
A burguesia esperava do estado não somente a proteção de suas atividades, lucros e
dividendos, mas também a manutenção da “ordem social”, garantindo assim o objetivo
máximo, a defesa da propriedade. Blackbourn percebe um movimento ao longo do século XIX:
no período áureo, esperava-se que o estado amparasse ofensivas contra o atraso,
encampando a ideia moderna de progresso social; no final do período, a burguesa recolheu-se,
adotou uma postura mais defensiva e passou a desejar uma atuação neutralizadora por parte
do estado: segurança social, no lugar de transformação social. A atitude política da burguesia
faz parte do padrão já visto anteriormente: “o refúgio por trás da ‘lança mágica’ ocorre
paralelamente ao abrigo em cartéis, positivismo legal e ativismo cívico neutralizado” (p. 192); a
dominação social amparada pelo apoio de um estado forte, uma influência indireta nos
negócios públicos, eram convenientes para a burguesia, e tal arranjo não deve ser visto como
uma situação de impotência da burguesia.
Nem toda a burguesia alemã se contentou com esse arranjo: houve tentativas de
participar da política institucional “no palco”. Isso se deu principalmente entre aqueles que se
identificavam como liberais e que acreditavam estar destinados ao papel de levar à frente o
bastião do progresso. Em parte imitando seus congêneres ingleses e franceses (como por
exemplo, na insistência pela adoção do júri em julgamentos), em parte trazendo à baila
questões próprias, e entre estas, a da unificação como preocupação central. A fragmentação
impedia o pleno desenvolvimento de uma economia liberal, e principalmente, obstava a
formação de um espaço público nacional.
A partir de 1871 aparece uma incipiente “política de notáveis”, feita por pequenos
potentados locais, homens educados que frequentaram universidades e que dominavam
também outros ramos da vida de suas localidades: os museus ou corais municipais etc.
Blackbourn discute os limites de sua atuação: eles tinham um discurso unificado, que
sobrepunha-se aos projetos e interesses locais, graças à linha de comunicação nacional
formada por ferrovias, telégrafos e jornais. Por outro lado, diante do maciço sistema de poder
instituído com a unificação, eram quase inócuos. Blackbourn descreve o sistema político como
“falso constitucionalismo”, e explica sumariamente seu modo de funcionamento nas páginas
194-95: em suma, o poder dos delegados e deputados (e assim, dos eleitores) era bastante
diminuído frente aos poderes reservados ao poder executivo. Apesar de serem pouco
poderosos, os burgueses eram influentes.
A forma como se comportavam em suas reivindicações é denominada por Blackbourn
de “política apolítica”: adotando o mesmo posicionamento que tinham as associações civis que
pipocavam pela Alemanha (que ofereceram o modelo para a conduta política dos burgueses),
eles viam-se como elementos “acima” das disputas políticas comezinhas, e afastavam-se do
que consideravam uma política “destrutiva” (que era qualquer uma em que uma forte e
decidida oposição fosse feita). Além disso, as experiências parlamentaristas inglesa e,
especialmente, francesa, fizeram a burguesia alemã recuar da perseguição àquele modelo: os
distúrbios sociais franceses assustavam os alemães. Eles preferiam perseguir apenas a parte
que consideravam segura do exemplo ocidental.
Os liberais alemães suspeitavam do “povo”: viam-no como um elemento incapaz de
pensar independentemente, sujeito a ser aprisionado por doutrinas carismáticas, tanto de
revolucionários quanto de reacionários. Isso serve para explicar a atitude reticente da
burguesia quanto à abertura política.
p. 197
19-2-2016
Blackbourn sugere ter havido algum grau de modificação na relação de poder entre os
Parlamento e o Executivo, apesar de reiterar o fato de que este último sempre se manteve à
frente do anterior. O Parlamento ganhou importância, mas falhou em soerguer-se a uma
estatura equivalente à do Kaiser. Em parte, Blackbourn vê como causa disso a emergência de
uma nova atitude política, algo que ele chama de “ethos de administração iluminada como
substituta da política de conflito” (p. 213), e também um desprezo pelo que denominam
caráter meramente retórico da política parlamentar, sentimento bastante encontradiço entre
nacionalistas radicais. Muitos agentes políticos preferiam continuar agindo localmente, em
conselhos e prefeituras, como forma mais incisiva e direta de realizar os objetivos desejados.
A questão central desse segmento é discutir a ausência de um impulso reformista sério
e vitorioso na Alemanha, algo que é visto como anômalo pela historiografia que trata o caso
alemão como sendo aberrante. Para Blackbourn, interessa mais observar o que aconteceu, e
não o que deixou de acontecer. E ele afirma também que não é de se estranhar que num
cenário politicamente tão fragmentado, os grandes movimentos tenham deixado de se
realizar, por conta da própria falta de consenso. Não havia consenso sobre que tipo de reforma
se deveria fazer: cada grupamento preenchia a ideia de reforma com um conteúdo bastante
próprio. Além disso, quase todos os partidos estavam mais preocupados em conter uma
potencial ameaça de sublevação por parte das classes inferiores do que em obter reformas
constitucionais.
No entanto, o século XIX se fecha na Alemanha com a erupção violenta de novas vozes
demandando serem ouvidas no drama político. Essa nova força política moldaria os destinos
do país nas próximas décadas.
IV – Conclusão