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Universidade Federal do Ceará

AMOR,
LÍNGUA DE EROS

- ANAIS -

2020, V. ÚNICO
ISBN: 978-65-00-10294-9

Os textos são de inteira responsabilidade de seus


respectivos autores.

Amor, Língua de Eros


Universidade Federal do Ceará – Fortaleza – 2019
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Reunião de artigos nascidos a partir do colóquio Amor, Língua de Eros,


realizado em 2019, em Fortaleza, na Universidade Federal do Ceará,
junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras, e com a contribuição
do Programa de Pós-Graduação em História, ambos da UFC.

Amor, Língua de Eros


Universidade Federal do Ceará – Fortaleza – 2019
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COMISSÃO ORGANIZADORA DO EVENTO

Bárbara Costa Ribeiro


Edinaura Linhares Ferreira Lima
Fernângela Diniz da Silva
Francisca Yorranna da Silva
Josenildo Ferreira Teófilo da Silva
Licilange Gomes Alves
Priscila Pesce Lopes de Oliveira
Raquel Ferreira Ribeiro
Sara Síntique Cândido da Silva
Stefanie Cavalcanti de Lima Silva

Prof. Doutora Ana Rita Fonteles Duarte


Prof. Doutor Claudicélio Rodrigues da Silva
Prof. Doutor Júlio Cezar Bastoni da Silva
Prof. Doutor Marcelo Almeida Peloggio
Prof. Doutor Orlando Luiz de Araújo

Organização dos anais


Bárbara Costa Ribeiro

Capa e diagramação
Bárbara Costa Ribeiro

Amor, Língua de Eros


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Amor, Língua de Eros


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Os textos reunidos nestes anais são artigos resultantes de comunicações


apresentadas no Colóquio Amor, Língua de Eros. O evento aconteceu
em edição única, no mês de junho de 2019, na Universidade Federal do
Ceará, com o apoio do Programa de Pós-Graduação em História e do
Programa de Pós-Graduação em Letras dessa mesma instituição. A ideia
de se realizar um evento, naquele contexto, que refletisse a noção do
amor em diversos âmbitos surgiu a partir de uma disciplina ofertada no
Programa de Pós-Graduação em Letras pelo Professor Dr. Marcelo
Peloggio, no mesmo ano. A partir disso, reunindo professores e alunos
dos Programas em questão e também de outras partes do país e mesmo
de fora dele, o evento aconteceu em quatro dias, e os trabalhos
apresentados nas comunicações se dividiram entre os seguintes
simpósios:

O amor em narrativas
Políticas do amor
O amor e as imagens
Mitos do amor

Na publicação destes anais, os artigos estão agrupados de acordo com


os simpósios nos quais nasceram.

O site do evento pode ainda ser conferido:


https://linguadeeros.wixsite.com/amor.
Lá, constam a programação, a descrição de
cada simpósio, os nomes de todos os palestrantes
e outras informações.
Contatos:
alinguadeeros@gmail.com
costaribeirobarbara@gmail.com

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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO..................................................................................................................................11
O AMOR EM NARRATIVAS...........................................................................................................13
ABRAM AS CORTINAS: O AMOR EM CARLOS CÂMARA!...................................14
AMAR: PARTIR – CORPO E ENCONTRO AMOROSO NA OBRA DE
MARGUERITE DURAS.........................................................................................................................22
AMOR É ESSÊNCIA DE FLOR: A RELAÇÃO ENTRE FEMININO E EROTISMO
NO CONTO “ROUPA SUJA”, DE MARCELINO FREIRE.............................................35
AMOR E PODER NA LITERATURA DE CORDEL DE JOSÉ COSTA LEITE......46
AMORES (IM)PERFEITOS DE CRISÓSTOMO E BALTAZAR,
PROTAGONISTAS DE VALTER HUGO MÃE......................................................................57
AMOR PLATÔNICO: UMA IDEIA INESQUECÍVEL........................................................69
ENTRE O AMOR E O ÓDIO EM “O BÚFALO”, DE CLARICE LISPECTOR..81
EROS E PHILIA NO POSICIONAMENTO POP-ROCK PARA CRIANÇAS....90
EROS REGE O DISCURSO OU O DISCURSO REGE EROS? A ISOTOPIA
DO DESEJO SEXUAL EM ANGÚSTIA, DE GRACILIANO RAMOS...................101
O AMOR COMO UMA POSSÍVEL VIA PARA A SUPERAÇÃO DO
EGOÍSMO HUMANO: UM DIÁLOGO ENTRE FILOSOFIA, SOCIOLOGIA E
LITERATURA...........................................................................................................................................110
O AMOR VENCE A AMARGURA..........................................................................................119
POLÍTICAS DO AMO R...............................................................................................................127
“AINDA QUE EU FALASSE A LÍNGUA DOS ANJOS”: O AMOR CRISTÃO
NAS REVISTAS LIÇÕES BÍBLICAS..........................................................................................128
ALGO DE INTEIRAMENTE NOVO: A LINGUAGEM DISFUNCIONAL DO
AMOR NA SUPERAÇÃO DA FINITUDE..............................................................................139
AMOR E HOSPITALIDADE: A INCONDICIONALIDADE DO AMOR EM
JACQUES DERRIDA.........................................................................................................................146
CUPIDO E PSIQUÊ NAS SALAS DE AULA – O AMOR NO MAGISTÉRIO É
ROMÂNTICO......................................................................................................................................155

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GILKA MACHADO: O EROTISMO COMO INSTRUMENTO DA


LIBERTAÇÃO FEMININA...............................................................................................................165
O COCÓ NO INSTAGRAM: A CONSTRUÇÃO DA “REPORTAGEM
AFETIVA” DE DEMITRI TÚLIO.....................................................................................................171
SAI O PORTUGUÊS, ENTRA O AFRICANO: O USO DA MEMÓRIA DO
RESSENTIMENTO E DO AMOR NO PROJETO POLÍTICO DA FRELIMO
PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA NAÇÃO..................................................180
VÊNUS ESTÉRIL – CORPOS APRISIONADOS, AMORES FUGIDIOS
(FORTALEZA 1970-1990)........................................................................................................199
O AMOR E AS IMAGENS.........................................................................................................209
ANTES FERIDA NO OLHO DO QUE ENXERGAR: REFLEXÕES SOBRE
SEDUÇÃO, PAIXÃO E AMOR SIMBIÓTICO A PARTIR DE UMA
INSTALAÇÃO ARTÍSTICA.............................................................................................................210
EROS E INDÚSTRIA CULTURAL: A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DO EROS
FEMININO NO FILME A VIDA SECRETA DE ZOE......................................................219
O AMOR É CEGO: ELOS DE EROS ENTRE O ROMANCE E A
FOTOGRAFIA DE TÉRCIA MONTENEGRO....................................................................229
O AMOR (S)EM TEMPOS DE CRISE: ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS DE DIA
DOS NAMORADOS NA REVISTA VEJA (1974-1994)...........................................240
MITOS DO AMOR.........................................................................................................................248
A PRESENÇA DE EROS EM MEMÓRIA CORPORAL, DE ROBERTO PONTES
.......................................................................................................................................................................249
CAUSA MORTIS: AMOR – FEDRO SOB O OLHAR DE THOMAS MANN EM
A MORTE EM VENEZA.................................................................................................................259
INFÂNCIA E EROTISMO NA LITERATURA: CORAÇÃO DE MENINO: TUC,
TUC, TUC! O QUE É ESSA COISA CHAMADA AMOR?......................................270
MITO DO AMOR ETERNO: UMA ANÁLISE PELA TEORIA DA
RESIDUALIDADE...................................................................................................................................279
O AMOR DESVIRTUADO: UMA LEITURA DO INCESTO EM LAVOURA
ARCAICA................................................................................................................................................291
TEOGONIA – UMA HISTÓRIA DE AMOR DIVINA......................................................302
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APRESENTAÇÃO

Nosso protagonista é extemporâneo e heterotópico, porque surfa nas ondas


do tempo e dos espaços sem se prender a uma época e a um lugar. É certo que já
houve um tempo em que, de tão solicitado, deram às artes e aos fatos históricos seu
nome. Há tempos ele anda por aí pregando seus sortilégios pela boca de
trovadores, poetas, filósofos, místicos e loucos. Há quem o defina como faca de dois
gumes, mas também há quem o compreenda como princípio de vida e morte. Se
para alguns ele não passa de o mais terrível sentimento, para outros, o que ele
deseja é somente a libertação. Muitos tentaram encarcerá-lo numa definição, mas,
na qualidade de um deus alado e com a aljava repleta de flechas, ele nunca se deixa
aprisionar pelos humanos. Ao contrário, é um capturador nato. Figurinha fácil nos
livros sagrados, nos consultórios médicos, nas literaturas, nos livros de história, seu
nome poderia ser revolução, mas ele ousa chamar-se Amor.
O que pode o Amor em tempo de cólera? Por que seu reinado não
cessa, ainda que quem o discuta e o vivencie atualmente seja acusado de brega? Ao
definir o Amor como “bandido cachorro trem”, Drummond estava descambando
para a breguice? Os feminicidas quase sempre justificam seus atos bárbaros
pendurando-os na conta do Amor; mas os que sofrem no corpo as máculas
perpetradas em nome da paixão e do desejo dizem que “não era amor, era cilada”.
É certo que, por ele se mata e se morre, e que quem ama tudo suporta? Em tempos
de lutas políticas nas quais homens e mulheres (cisgêneros, transgêneros, binários
ou não-binários) precisam afirmar e reafirmar que o Amor, em suas múltiplas e
permanentemente reinventadas formas desejantes, não aceita limites e regras que
não sejam as dele próprio, falar sobre o Amor é uma exigência. Quando o fanatismo
e o fundamentalismo aguçam atos e falas apaixonadas em defesa das próprias
ideologias em detrimento das ideologias dos outros, realizar um simpósio sobre o
Amor, não para louvá-lo, mas para discutir suas facetas e suas narrativas em
diferentes tempos históricos, como no Banquete de Platão, mais do que uma

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necessidade, é um modo de resistir. Estratégico por excelência, o Amor é um ato


político, sobretudo em tempos em que, parodiando Nelson Rodrigues, “todo Amor
será castigado”, menos a forma de amar considerada válida pelos pregadores da
moral e dos bons costumes.
Foi, assim, com um olhar plural que o colóquio Amor, língua de Eros
convocou alunos e professores, pesquisadores das humanidades, a participar do
evento promovido pelos Programas de Pós-Graduação em Letras e de Pós-
Graduação em História, da Universidade Federal do Ceará, que se realizou em junho
de 2019. O intuito do colóquio era o de ser resistência, falando de Amor, esse tirano
que Safo denominou de doce-amargo. Os textos aqui reunidos são resultados
dessas discussões.

CLAUDICÉLIO RODRIGUES
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VÊNUS ESTÉRIL – CORPOS APRISIONADOS, AMORES FUGIDIOS


(FORTALEZA 1970-1990)
Cynthia Corvello
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Mário Martins Viana Júnior


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Resumo: Venustério é o neologismo criado para denominar as celas para visita íntima
das mulheres aprisionadas no Instituto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura
Costa, criada em meados de 1990, duas décadas após a inauguração da
penitenciária feminina cearense ocorrida em 1974. O hiato temporal para a
institucionalização do encontro íntimo é o mote para o trocadilho "Vênus estéril", que,
utilizado como título, tem a intenção de ser uma palavra-chave da reflexão proposta,
que objetiva, a partir de dialogo interdisciplinar com as fontes – prontuários prisionais
e entrevistas –, refletir sobre as relações de poder que buscavam normatizar os
corpos de mulheres criminalizadas reforçando espaços sociais adequados ao gênero
feminino.
Palavras-chave: Gênero; sexualidades; mulher; prisão.

INTRODUÇÃO
O primeiro presídio feminino cearense, inaugurado sob a gestão do coronel
e governador César Cals de Oliveira Filho em agosto de 1974, assentou sua estrutura
disciplinar em prédio que abrigara anteriormente uma instituição religiosa. 60 O
espaço – cuja vocação monasterial se perpetuava nos símbolos religiosos
espalhados em pátios; nos muros baixos outrora criados para isolar mulheres do
mundo exterior e não para impedi-las de ter acesso às ruas; nas referências em
relatórios sociais utilizando a frequência a encontros religiosos como sintoma de
recuperação e cura moral; nos cursos voltados para o espaço doméstico como
corte-costura, culinária e bordado; na ausência de creche para os bebês das internas
e de espaço institucional para visita íntima – sinalizava uma relação de tensão que

60 O Estado alugou a ala sul do conglomerado de prédios que pertenciam à Congregação Bom
Pastor d'Angers, onde funcionava também Instituto Bom Pastor. Localizada na Avenida Filomeno
Gomes, nº 110, bairro Jacarecanga, região centro-oeste da capital, a instituição acolheu mulheres em
situação social vulnerável, funcionando também como "[...]escola para a educação de jovens que
necessitavam de um internato para corrigir comportamentos não condizentes com a sociedade da
época." (VASCONCELOS, 2014, p.47). Para saber mais sobre a Congregação Bom Pastor d'Angers e
sua atuação como instituição total junto a mulheres criminalizadas ver ANDRADE, 2011 e ARTUR, 2017
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buscava sedimentar lugares sociais do gênero feminino – docilidade, recato e


submissão – e, por intermédio de mecanismos de força, controlar e normatizar os
desejos e paixões destes sujeitos.
Entendendo o sexo como espaço e ferramenta de poder, é possível
compreender a inexistência de um lugar, tanto para a maternidade quanto para
relações sexuais, haja vista as mulheres, quando criminalizadas, serem percebidas e
categorizadas em função de questões que vão além do ato criminal. Transgressoras
da ordem social e familiar, imorais e inadequadas para o convívio harmonioso que
se espera em uma sociedade disciplinar, elas se encontram sujeitas a

uma dupla punição: a privação de liberdade, comum a todos os


condenados, e a sujeição a níveis de controle e observação muito mais
rígidos, que visam reforçar nelas a passividade, a docilidade, a
subordinação e a dependência, o que explicaria porque a direção de uma
prisão de mulheres se sente investida de uma missão moral (LEMGRUBER,
1999 APUD GUIMARÃES, 2015, p. 36).

Isto posto, pretendemos, nesta reflexão que faz parte da pesquisa de


mestrado que ora desenvolvemos, compreender como se deram as relações de
gênero entre mulheres possuidoras de corpos sexuados e gêneros plurais e as
instituições disciplinares, de modo que seja possível pensar em uma das muitas
histórias possíveis sobre indivíduos transpassados por relações de poder em um
determinado contexto histórico e social.

NEM MARIAS, NEM MADALENAS

Ela tinha neném na maternidade. Já cheguei vezes de ir para a


maternidade de madrugada para autorizar tudinho. Mas dava, a gente
dava um jeito. Aí separava. Entendeu? (RIBEIRO, 2019, p. 03, grifo nosso).

Durante os primeiros anos de funcionamento de Instituto Penal Feminino


Desembargadora Auri Moura Costa, a partir de agora IPFDAMC, o exercício da
maternidade não se fazia possível. De acordo com Humberto Ribeiro, diretor da
unidade prisional feminina de 1974 a 1990, as mulheres gestantes que parissem
enquanto presas entregavam seus filhos e filhas a familiares, amigos ou outra

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instituição de custódia de menores após a alta do parto. De fato, ele desconhecia o


destino dado aos bebês. Ser mãe, papel naturalizado na sociedade patriarcal 61 como
o sentido maior da existência do sujeito feminino, se apresentava, portanto, como
um problema a ser ignorado ou procrastinado pela administração penitenciária, a
julgar a ausência de estrutura física como berçário ou creche, mas também em
decorrência do incipiente processo da construção de um saber assistencial laico 62
sobre estes indivíduos. Contudo, esse deslocamento de olhar sobre a maternidade
não ficou restrito ao universo intramuros. É possível inferir que houve mudanças em
meados da década de 1960 nos discursos produzidos por instituições como Estado,
Igreja e mídia acerca do controle de natalidade. Se até os anos 1950-1960 a atenção
destas instituições voltava-se ao cuidado da criança e ao estímulo à maternidade,
observa-se, já na década de 1960, uma preocupação crescente com a “explosão
demográfica” que ocorria em países da América Latina. Diligência que se materializa
em órgãos como o BEMFAM – Sociedade Civil Bem-Estar Familiar no Brasil, fundado
em 1965, com forte atuação na região do Nordeste, principalmente em estratos
sociais empobrecidos (MENEZES, 2012, p. 38). Ainda é necessário citar que, nos anos
1970, a venda de anticoncepcionais em farmácia ocorria apenas com receita médica,
dificultando, portanto, o acesso a esse recurso, todavia. o mesmo não ocorria a
mulheres empobrecidas atendidas pelo BEMFAM. Segundo Menezes (2012),

os serviços de planejamento familiar prestados por aquela entidade


[BEMFAM] – distribuição de pílulas e inserção de DIUs – direcionavam-se
principalmente para as mulheres pobres. Isso ocorria porque, de acordo
com os dirigentes daquela instituição, as mulheres ricas e de classe média
já dispunham dos meios e das informações necessárias para realizar o
controle de sua fertilidade (MENEZES, 2012, p. 163).

61 "O patriarcado designa uma formação social em que os homens detêm o poder, ou ainda, mais
simplesmente, o poder é dos homens. Ele é, assim, quase sinônimo de 'dominação masculina’ ou
de opressão das mulheres" (DELPHY, 2009, p.173).
62 Observamos que nos primeiros anos de funcionamento do IPFDAMC, o relatório social poderia
ser elaborado por outro elemento do corpo administrativo do presídio, não ficando exclusivamente a
cargo da assistente social, o que nos permite supor que o saber para lidar com mulheres no sistema
prisional estava em construção. Mesmo havendo no estado do Ceará o encarceramento de mulheres
criminalizadas anterior à inauguração do presídio feminino, eram prisões mistas ou espaços
correcionais religiosos, portanto, o IPFDAMC foi a primeira penitenciária feminina, onde corpo
administrativo – laico –, voltava-se exclusivamente para a mulher.
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O esforço de normatizar a reprodução dentro do espaço prisional fez parte


de tessituras disciplinares que forcejavam a construção de um novo sujeito social
dócil, eficiente e produtivo (FOUCAULT, 2015, p. 31-32), adequado ao desejável para
a sociedade disciplinar do período, estando, portanto, o ideal feminino “mãe”
ausente desta nova configuração, devendo ser anulado através do controle da
atividade sexual. Táticas diversas atuaram nesse sentido, algumas visíveis, outras
entrelaçadas na rotina prisional. Dessemelhantes dos homens aprisionados em
penitenciárias masculinas que recebiam, sem a necessidade de grande burocracia,
as mulheres (esposas ou não) em suas celas nos dias de visita, as detentas do
IPFDAMC não possuíam tal benefício: para impossibilitar que utilizassem os cárceres
para momentos de intimidade com seu parceiro ou parceira à revelia da
administração prisional, as mulheres deveriam ficar do lado de fora das celas
durante o período da visitação, que permaneciam trancadas até o término da visita
(ACIOLY, 200?). Nesse sentido, “a interpretação da opção ou não pela visita íntima
passa, num primeiro momento, pela desigualdade de gênero [...]” (LIMA, 2006, p.
57), desigualdade essa na permissão institucional para ter relação sexual, sendo
permitido aos homens aprisionados o que era negado às mulheres na mesma
situação.
Estes indivíduos, cujos corpos, submetidos a uma tensa relação com
mecanismos disciplinares que pretendiam, além do aprisionamento da carne e dos
desejos, inseri-los em uma lógica harmoniosa e econômica, desenvolveram táticas
para sobreviver à experiência do cárcere. Nossas fontes indicam alguns desvios que
possibilitaram encontros furtivos, tanto nos corredores da unidade prisional, que em
dias de visita social se faziam de nichos por intermédio de colchões e lençóis a
garantir certa privacidade (GALEAZZO, 2018, p. 05), quanto na unidade prisional
masculina, por meio dos encontros de amores inventados na solidão das grades e
solidariedade das colegas que se faziam ponte para estes relacionamentos, como
bem nos explicou Elena Galeazzo (2018, p.16), religiosa da Pastoral Carcerária que
proporcionou assistência espiritual no IPFDAMC de 1979 a 2014, em entrevista
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concedida para a nossa pesquisa:

[...] todo mundo tinha um marido ali [no presídio masculino], um


companheiro. Não era, bastava uma que tivesse um marido e: – dá o
nome do teu amigo porque tenho um amigo [...] vou dizer que é a
companheira dele. [...] E lá mais de uma ficaram grávida. Era preocupada
porque com esta visita íntima todo mundo ficava grávida, a maioria ficava
grávida. Muitas eram do marido, do companheiro, outras não.
(GALEAZZO, 2018, p. 16, grifo nosso).

Sexo que se fez através de pontes epistolares e sexo em oásis de algodão.


Os corpos desejosos e desejáveis certamente não eram assexuados. Nas fronteiras
definidas pelas disciplinas, havia tensão e sensualidade que escapavam das fôrmas
que buscavam harmonizar as diferenças. A homossexualidade, que na elaboração
da memória dos entrevistados surge contrafeita num esforço de ignorá-la, não se
oculta por completo quando observamos os documentos administrativos e
judiciários dos prontuários prisionais, que, transmutados em fontes, aparecem,
mesmo que sob a forma de estranhamento. Podemos inferir que das 16 mulheres
que inauguraram o IPFDAMC, uma seria lésbica, indiciada por assassinar a
companheira63 e um/uma seria o que atualmente chamamos de homem trans
heterossexual,64 mas que chega até nós como “[...] uma mulher que parecia homem
com tendências lésbicas”. O arranjo para descrever e definir um outro que não se
enquadra no normativo e passa a ser uma não-mulher possibilita-nos ter acesso a
indícios de outras formas de se viver, não apenas o gênero, mas a relação com o
corpo.
As relações homossexuais dentro do universo carcerário feminino revestem-
se de diversos significados imbricados com a vivência de cada indivíduo. Num

63 "[...] a acusada e vítima, desde que se viram pela primeira vez, não se separaram mais, viviam
juntas; que, neste relacionamento, a acusada e vítima praticavam atos de natureza sexual, uma com a
outra[...]" (VERA...1974, p. 07).
64 AAIPF – SAP. Prontuário nº 08. Carta de Guia. Vara Única das Execuções Penais. Fortaleza, 28 abr.
1975, f.1-2. Optamos por sinalizar sua possível orientação sexual – heterossexual – por entendermos
que o sujeito se percebia como homem a julgar sua performatividade de gênero masculino
sinalizada, não apenas pela descrição "mulher que parecia homem", mas também pelo crime que
este indivíduo respondia – o Art. 214: Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a
praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal (BRASIL,
1940).
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primeiro momento, concordando com Lemgruber (1999), podemos afirmar que

A relação homossexual, sem dúvida preenche uma série de necessidades,


principalmente de auto-afirmação e de estabelecimento de relações
afetivas significativas, devendo se lembrar que grande parte dessas
mulheres não mantém qualquer laço afetivo com pessoas fora dos muros.
[...] um grande número encara a relação homossexual como substituto
capaz de aliviar a tensão resultante da impossibilidade de manter relações
heterossexuais (LEMGRUBER, 1999, p. 124-125).

Contudo, ainda é possível depreender que, em alguns casos, estes


relacionamentos servem como suporte simbólico, promovendo proteção frente a
conflitos que possam surgir com outras internas; ou material, oportunizando
melhores condições de sobrevivência em um espaço onde alguns víveres são artigos
de luxo. Entretanto, para além das razões pautadas nas ausências – de apoio
familiar, de acesso a relações heterossexuais, de bens materiais e de ambiência
segura –, entendemos que a mulher, quando oculta da sociedade extramuros,
permite-se experiências outras que se fazem na descoberta de sabores e texturas
similares e, ao mesmo tempo, velhas conhecidas; e, na descoberta de um novo
corpo através de corpo tão semelhante, o prazer flerta com a querência e se faz
aconchego e lar.
Por fim, mesmo que a instituição possua barreiras que impeçam as internas
de acessarem o universo extramuros, o espaço prisional, cuja função é manter
separado o indivíduo que não se adequa ao meio social, nos oferece uma lente de
aumento sobre esta sociedade, possibilitando que alguns comportamentos sociais
tornem-se mais aparentes, e, por que não dizer, desmascarados. A estrutura
patriarcal que alimenta e legitima a subordinação da mulher pelo homem em alguns
casos se faz presente em relacionamentos homoafetivos, onde o sujeito que assume
a identidade masculina oprime, agride e submete o sujeito feminino. A violência,
travestida de amor, aprisiona duplamente – ao corpo vigiado, controlado e agredido
pela instituição prisional, soma-se o olhar ciumento e cerceador que se apropria da
amante/namorada.

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CONCLUSÃO
Buscamos compreender as relações de poder que perpassavam o cotidiano
de mulheres criminalizadas a partir da perspectiva de gênero, onde dispositivos
disciplinares atuavam sobre seus corpos com a intenção de esquadrinhar,
regularizar, normatizar suas funções biológicas, como a maternidade e seus desejos.
As táticas desta instituição total65, que procuravam mortificar o eu de mulheres
criminalizadas utilizando-se de rotina rigorosa com o objetivo de reforçar o papel de
docilidade e submissão adequado ao feminino, esbarraram em indivíduos distantes
do ideal feminino de recato, docilidade, subserviência e sujeição ao homem (pai,
irmão ou marido). As mulheres aprisionadas no IPFDAMC, que, em sua maioria,
possuíam autonomia financeira (mesmo que precária ou delituosa), circulavam pelas
ruas desde meninas em busca do sustento da família. Quando adultas,
experimentavam uma certa liberdade no meio social onde viviam – iam a festas,
bebiam, fumavam, riam e falavam alto, não se mantinham “castas” e, em muitos
casos, não se prendiam ao jugo do matrimônio. Segundo Soihet (1997, p. 362), “a
organização familiar dos populares assumia uma multiplicidade de formas, sendo
inúmeras as famílias chefiadas por mulheres sós. Isso se devia não apenas às
dificuldades econômicas, mas igualmente às normas e valores diversos, próprios da
cultura popular”. Portanto, entendemos que ajustamentos ocorreram de modo que,
não desafiando diretamente os agentes de vigilância, elas conseguiram encontrar
caminhos, apesar do esforço de mortificação que objetivava provocar um
rompimento sobre as crenças que possuíam sobre si e sobre os outros, mudando
com isso suas percepções de mundo e construindo novos padrões de conduta
(GOFFMAN, 1996, p. 24). Por fim, podemos inferir que parte de seus valores culturais
não ficaram presos do lado de fora das grades do IPFDAMC e, possivelmente,
influenciaram o modo como algumas mulheres conduziram suas vidas relacionais e
65 A grosso modo, podemos definir instituição total como um lugar fisicamente separado da
sociedade em geral, onde todas as funções rotineiras do indivíduo custodiado ficam circunscrita a um
espaço único: lazer, trabalho, necessidades básicas; e que são geridas por um corpo administrativo
com o objetivo de sujeitar este indivíduo e fazer dele um novo sujeito. Em síntese "São estufas para
mudar pessoas; cada uma é um experimento natural sobre o que se pode fazer do eu". (GOFFMAN,
1996, p. 22).
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sexuais no cárcere, onde alguns corpos, mesmo que aprisionados, viveram amores
fugidios.

REFERÊNCIAS

Fontes

Prontuário prisional

Secretaria da Administração Penitenciária Estado do Ceará – Arquivo Administrativo


do Instituto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura Costa (AAIPF-SAP). Nº 08
– Gaveta S – Lote 1 A9G2. Acesso: 15 jun. 2018.

Entrevista Temática

GALEAZZO, Elena [Irmã Lorenza] – Entrevista [6 abr. 2018] - Fortaleza, Ceará.


Acervo pessoal.

RIBEIRO, Humberto Heitor – Entrevista [19 FEV. 2019] - Fortaleza, Ceará. Acervo
pessoal.

Periódico

Vera confirma: matou dopada. O Povo – Fortaleza, 21 jan. 1974. Caderno 1, p.7.

Publicações Oficiais

BRASIL. Decreto-Lei Nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal Brasileiro.


Presidência da República, Rio de Janeiro, DF, 7 dez.1940. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-
dezembro-1940- 412868-publicacaooriginal-1-pe.html> Acesso: 18 abr. 2018.

Bibliografia

ACIOLY, Josefa Feitosa. Manifestação da Sexualidade na Prisão Feminina: Um estudo


realizado com presidiárias do Instituto Penal Feminino Desembargadora Auri Mora
Costa-CE. [200?] Monografia (Especialista em Gestão em Segurança Penitenciária) –
Centro de Estudos Sociais Aplicados – Universidade Estadual do Ceará, Ceará [200?].

ANDRADE, Bruna Soares Angotti Batista de. Entre as leis da Ciência, do Estado e de
Deus: O surgimento dos presídios femininos no Brasil. 2011. Dissertação (Mestrado
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