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PARTE X

DTI I0
Comunicação
Audiovisual
Novos realismos em narrativas audiovisuais:
visibilidades encenadas
New realisms on audiovisual narratives:
staged visibilities
Rosana de Lim a Soa r es1

Resumo: A proposta tem como objetivo o estudo de discursos das mídias de cará-
ter realista a fim de estabelecer uma análise contrastiva entre eles. Buscaremos
demonstrar que o estabelecimento das fronteiras entre fato e relato se faz no
tensionamento dessas posições, alargando os limites entre “referencialidade” e
“ficcionalidade” em narrativas audiovisuais, contribuindo para a reflexão sobre
o estatuto da imagem na atualidade. Fatos e relatos colocam-se, assim, como
estratégias complementares na organização desses discursos, embaralhando as
fronteiras antes bem demarcadas entre realidade e ficção. Por meio da análise
de programas televisivos, exploramos a questão dos novos realismos presentes
nos discursos das mídias a partir de uma perspectiva histórica sobre as formas
de endereçamento do mundo concreto, passando pelas injunções das imagens
técnicas frente a uma cultura audiovisual cada vez mais marcada por processos
que visam produzir determinados efeitos de realidade. Sabemos ser este um
tema abrangente e, desse modo, iremos nos deter em exemplos recentes voltados
à construção da representação de diferentes sujeitos nas mídias.
Palavras-chave: Novos realismos. Políticas da representação. Reality tv.
Narrativas audiovisuais. Estigmas sociais.

Abstract: Our research intertwines two fields that are as much close to each
other as they are diverse: journalism and documentary. Regarding its objective,
the research aims to study media discourses which convey a realistic approach
to them in order to perform a contrastive analysis between both, pointing out
proximities and differences. As one of our research hypothesis we are to demon-
strate that the limits between fact/reality and tale/fiction occurs at the very ten-
sioning of their assumed ground. New realisms are established in audiovisual
narratives broadening the boundaries between “referentiality” and “fictionality”,
thus contributing to the debate on the contemporary statute of images. The
research thus focuses on the ways by which social stigmas representation is
built on contemporary audiovisual narratives taking into account the processes
of identification. Through documentary film and television news analysis, we
intend to report on the issue of new realisms identified on media discourses today
recurring to a historical perspective on the modes of addressing the concrete

1.  Professora doutora na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo/Brasil, realizou
pesquisa de pós-doutorado, com apoio Fapesp, no King’s College London. Email: rosanasoares@gmail.com.

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world. These images aim at effects of reality and bounce between the return of
the real and the praise of fiction.
Key words: New realisms. Politics of representation. Reality TV. Audiovisual
narratives. Social stigmas.

A PROPOSTA TEM como objetivo o estudo de discursos das mídias de caráter realista
a fim de estabelecer uma análise contrastiva entre eles. Buscaremos demonstrar
que o estabelecimento das fronteiras entre fato e relato se faz no tensionamen-
to dessas posições, alargando os limites entre “referencialidade” e “ficcionalidade”
em narrativas audiovisuais, contribuindo para a reflexão sobre o estatuto da imagem
na atualidade. Fatos e relatos colocam-se, assim, como estratégias complementares na
organização desses discursos, embaralhando as fronteiras antes bem demarcadas entre
realidade e fabulação. Por meio da observação de documentários e reportagens, explo-
ramos a questão dos novos realismos presentes nos discursos das mídias a partir de uma
perspectiva histórica sobre as formas de endereçamento do mundo concreto, passando
pelas injunções das imagens técnicas frente a uma cultura audiovisual cada vez mais
marcada por processos que visam produzir determinados efeitos de realidade, oscilando
entre o retorno do real e o elogio da ficção.
Sabemos ser este um tema abrangente e, desse modo, iremos nos deter em exemplos
recentes voltados à construção da representação de diferentes sujeitos nas mídias.
Buscamos identificar, nas imagens, as maneiras pelas quais se estabelecem os espaços
de visibilidade/invisibilidade em relação a grupos minoritários estigmatizados no
cenário social. Nas oscilações entre reforço ou transposição de estigmas, tais narrativas
audiovisuais empreendem, em relação ao “outro” para o qual se voltam, processos
de assujeitamento ou, ao contrário, de protagonismo (cf. FIGUEIREDO, 2012). Nesse
confronto de representações, para além de visões hegemônicas, uma pergunta norteia
a proposta: se as realidades são sempre encenadas, como construir o “outro” de forma
ativa (e altiva) em seus modos de representação? A partir de tais questionamentos,
esperamos refletir sobre a cultura audiovisual contemporânea.
Desse modo, a estética realista e a hiper-realidade; a retórica testemunhal e a ênfase
em visualidades precárias; as políticas de partilha do sensível e os novos regimes de
visibilidade, entre outros, são elementos fundamentais para problematizarmos o estatuto
das imagens hoje e suas relações com os campos da psicanálise, da antropologia, da
literatura, da filosofia, dos gêneros discursivos. A dimensão da cultura, e os processos de
sua legitimação por meio dos discursos circulantes, possibilita que pensemos a produção
audiovisual como sintoma de uma época pautada pelo desajuste, pelo transbordamento
e pelo conflito, aspectos que se fazem presentes, portanto, em tal produção.
Ao nos indagarmos sobre as maneiras pelas quais a autenticação da realidade e
o retorno a uma estética realista se impõem nas narrativas da televisão e do cinema,
indagamo-nos, também, sobre as possibilidades de delinear os contornos de um realismo
crítico e político, oscilando entre uma forma documental de expressividade e o melodrama
ficcional narrativo. Para além da construção de efeitos de realidade, em que ocorre o
mascaramento dos processos de ficcionalização nela implicados, tensionados entre a

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opacidade e a transparência dos discursos (cf. XAVIER, 1984), vemos nas narrativas
audiovisuais uma espécie de retorno pregnante do real (na forma de choque, paixão
ou horror)2 contrapondo-se ao elogio disperso da ficção. Se, a partir da psicanálise, o
Real é aquilo que insiste, mas não resiste à simbolização, é no registro do imaginário
– e portanto, da proliferação de imagens – que podemos investigar as atuais poéticas
da representação frente às posições de totalização ou inadequação, adesão ou fricção,
presentes nas narrativas audiovisuais contemporâneas, pensadas não como categorias
estanques, mas como formas genéricas.
Trata-se, assim, de indagar sobre os modos de construção da realidade (suas
representações, identidades e visualidades) em narrativas audiovisuais (cinema e
televisão) presentes nos discursos das mídias, voltando-nos especificamente para
programas televisivos. Ao fazê-lo, assumimos que, em cada um desses modos, processos
de ficcionalização se fazem presentes (seja no cinema, na televisão, no vídeo ou em outras
mídias que combinem palavra, imagem e som) para o engendramento da referencialidade
pretendida em tais discursos.
Nesse sentido, ainda que as narrativas documentais e as narrativas ficcionais
tangenciem o mundo histórico a partir de uma lógica invertida, tanto uma como a
outra têm a realidade como sua matéria prima (cf. SOARES; FREIRE, 2013). Ao olharmos
as narrativas audiovisuais (televisivas ou cinematográficas), pretendemos fazê-lo para
além de visões tradicionalistas que as colocam em simples oposição, enfatizando seu
caráter relacional. Mais do que apontar suas singularidades, interessa-nos explorar as
tensões advindas dessa relação e seus modos de inscrição nos discursos das mídias,
produzindo efeitos de sentido que vão da ilusão da objetividade ao testemunho da
verdade em tais narrativas. É interessante notar que, na passagem do fato ao relato, um
processo de narrativização se inscreve nos discursos referenciais, no qual determinadas
formas narrativas contribuem para produzir efeitos de sentido (documentais ou
ficcionais) que corroboram seus pressupostos (cf. WHITE, 1994).
Do ponto de vista teórico e metodológico, buscamos abordar os novos realismos
no audiovisual por meio da temática dos estigmas sociais presentes nos discursos das
mídias. Nas diferentes posições ocupadas pelos sujeitos no tecido social; nos embates
entre cada um e todos os outros; nas demarcações entre estigmas, estereótipos e
preconceitos; nos modos de estabelecimento dos espaços de visibilidade e invisibilidade
social; e nas disputas por formas hegemônicas de construção da representação nos
discursos circulantes identificamos um terreno fértil para a problematização de tal
questão. Se o retorno do real surge como resposta ao elogio da ficção, novos realismos
parecem também apontar para novos modos de ficcionalização. A produção audiovisual
recente, notadamente documentários cinematográficos, grandes reportagens televisivas
e reality shows (estes últimos considerados não enquanto programas isolados, mas como

2.  A exemplo do que apontam diversos teóricos, as narrativas audiovisuais contemporâneas se constituem
por meio de inúmeros hibridismos e, mais do que isso, a partir de uma reiteração da possibilidade de
representação fiel (ou verdadeira) da realidade. A “paixão pelo real” (em expressão de BADIOU, 2002), ou
o “retorno do real” (nas palavras de FOSTER, 1999), faz-se presente em diversos discursos das mídias, de
modo especial no jornalismo televisivo e no cinema documentário, sinalizando a presença marcante de
elementos de realismo/naturalismo ou delineando o “deserto do real” (como afirma ZIZEK, 2002).

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um gênero televisivo que se espraia por diversos outros gêneros, denominado reality tv)
constitui a amostragem ampliada da proposta.
Ao considerarmos programas televisivos, tomamos como ponto de partida formas
narrativas impuras, que privilegiam a referencialidade mas englobam estratégias
de ficcionalização. Ao estabelecermos diálogos com a produção inglesa, buscamos
demonstrar como as questões dos hibridismos e dos novos realismos se apresentam
em diferentes culturas, enfatizando os conceitos articuladores das análises. Desse modo,
o trabalho se justifica não apenas por tratar de um dos grandes eixos no estudo das
imagens hoje, mas também por iluminar, ainda que de modo tangencial, a dinâmica da
produção audiovisual – em que a televisão assume lugar de protagonismo, mas na qual
vemos crescer também o cinema –, em que as especificidades nos modos de produção,
distribuição e recepção a tornam singular.
Em termos conceituais, investigamos os espaços da presença/ausência de atores
sociais não hegemônicos, bem como os pontos de redundâncias e ressonâncias dos
estigmas sociais nos discursos das mídias; as formações discursivas como espaços de
intertextualidade e heterogeneidade, comumente referidas nos debates sobre convergências
midiáticas e hibridismos narrativos; as novas posicionalidades do sujeito em meio à
proliferação de imagens e, consequentemente, as transformações no imaginário social;
as políticas de representação ou as atuais formas de partilha do sensível (cf. RANCIÈRE,
1996), especialmente aquelas relacionadas a figuras de alteridade, estabelecendo as tensões
entre as narrativas do mesmo e do outro nelas apresentadas.
Em relação à amostragem, interessam-nos os “contratos comunicacionais” (ou “pactos
de leitura”) frente aos novos “regimes de visibilidade” (cf. PRADO, 2013) em que os
discursos referenciais3 deslizam para narrativas híbridas presentes nas mídias por meio de
novos realismos. Desse modo, o discurso jornalístico (especialmente reportagens televisivas)
e o discurso cinematográfico (notadamente filmes documentários) não são observados de
maneira estanque, ressaltando em programas jornalísticos para televisão ou em filmes
documentários para cinema as fronteiras entre referencialidade e ficcionalidade.
Assumindo, portanto, o hiato desde sempre incontornável entre linguagem e
referente, e embasados pelos debates sobre convergências midiáticas e hibridismos
discursivos, buscamos aproximar um conjunto de imagens que oscile entre as fronteiras
movediças das narrativas impuras, mescladas por meio do trânsito entre elementos
estéticos e tecnológicos. A crítica ao conceito de representação e sua desconstrução é,
portanto, um importante eixo teórico-metodológico norteador das análises. Buscamos,
desse modo, problematizar narrativas de caráter referencial, tensionando tais discursos
a partir dos modos de “dar a ver” as figuras de alteridade neles presentes e dos modos
de construção da representação neles ensaiados (cf. RANCIÈRE, 2005).
Dentro desse cenário, e com ele contrastando, a questão dos modos de construção
da representação – especialmente de sujeitos tradicionalmente deles excluídos (seja em
termos de produção, recepção ou interpretação) – pode ser elaborada a partir de alguns
apontamentos, em que os discursos (ou seus vestígios) articulam-se, inicialmente, a

3.  Discursos voltados à experiência da realidade, em que elementos históricos são tomados de forma
supostamente objetiva para compor os relatos sobre os fatos, ao contrário do que é suposto nos discursos
ficcionais, em que modos de fabulação são prioritariamente acionados na composição de suas narrativas
(ver BARTHES, 1988).

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partir da aproximação a um outro diverso e distante. Desse modo, vemos surgir nessas
narrativas um outro não representável e que, ao longo delas, oscila entre ausência e presença,
invisibilidade e visibilidade. Em termos de posições discursivas, podemos afirmar que
o outro, qualquer que seja ele, pontua desdobramentos que vão dos não ditos à inclusão
consentida para, finalmente, assumir lugar de protagonismo, apontando para momentos
de afirmação e identificação (cf. GEERTZ, 2005).
Pensemos na proposição de Hall (2000, p. 75), a respeito de identidades desalojadas
de tempos, lugares, histórias e tradições específicos, identidades que parecem “flutuar
livremente” no contexto de uma vida social globalizada em seus estilos, com participação
ativa dos sistemas de comunicação interligados e das imagens da mídia. Desse modo,
podemos afirmar que o “outro” opera de modo relacional com o “mesmo”; incomoda
justamente quando se torna mais semelhante a este. A questão dos estigmas sociais,
por exemplo, aponta para esse aspecto: os estigmas, diferentemente dos preconceitos,
dizem respeito ao outro que se torna próximo quando, ao contrário, deveria permanecer
“em seu lugar”, não encontrando espaço nos discursos circulantes.
As polêmicas passagens que envolvem as formações discursivas não surgem, por-
tanto, do exterior, mas presumem a partilha do mesmo campo discursivo e das leis que
lhe são associadas. Se o discurso constrói, em um mesmo movimento, sua identidade e
sua relação com outros discursos, verdade e ficção se entrelaçam em tramas complexas,
possibilitando caminhos outros nos quais tecer as narrativas audiovisuais propostas.

REPRESENTAÇÕES DA (IN)VISIBILIDADE
EM NARRATIVAS AUDIOVISUAIS
A rede de televisão inglesa BBC – British Broadcasting Corporation – é uma emissora
pública do Reino Unido e foi fundada em 1922. Regulamentada pelo Estado, produz um
grande e variado volume de programas, por meio de diversas estações de rádio e canais
de televisão, atuando tanto em nível nacional como internacional. Tradicionalmente
reconhecida como produtora de programas de qualidade, tanto no rádio como na televisão,
a BBC tem passado por crescentes transformações nos últimos anos, especialmente após a
entrada, no mercado britânico, de emissoras privadas. De formato único, combinando um
modelo de gestão pública e estatal, a BBC tem atuado na criação e renovação de gêneros
audiovisuais, contribuindo para o estabelecimento e propagação de modos inovadores
de fazer televisão, tanto em termos narrativos como estéticos.
Nesse sentido, destacamos a profícua programação encontrada na emissora por
meio de produções integrantes daquilo que se convencionou chamar de “reality tv” (ou
“factual tv”, incluindo documentários jornalísticos), do qual fazem parte não apenas
reality shows, mas também séries, seriados, reportagens, programas de auditório ou de
variedades, enfim, uma imensa gama de gêneros e formatos que confluem para este que
seria, a partir de nossas observações, o modo privilegiado presente na televisão atual
(cf. MACHADO; VÉLEZ, 2009; KAVKA, 2012).
Notemos, entretanto, que a categoria reality shows não é encontrada separadamente
no site da BBC4, sinalizando uma importante questão, qual seja, a de que em um dos

4.  Disponível em: www.bbc.com. Acesso em 21/03/2015.

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países mais destacados na produção televisiva, tal formato encontra-se espraiado


em vários outros, confirmando uma de nossas hipóteses. A partir da observação da
programação televisiva atual e da aderência aos reality shows – tanto do lado da produção,
como da recepção –, notamos que, ao contrário do que acontecia inicialmente, as formas
de inscrição da realidade na televisão tem se pautado por novos realismos. Nesse sentido,
a realidade é encenada através de diferentes formas narrativas oriundas da ficção,
embaralhando os antes demarcados lugares de factualidade/fabulação. A reality tv torna-
se a narrativa predominante na televisão, para além dos reality shows, como se os gêneros
televisivos a ela se endereçassem de algum modo. Essa demarcação é tomada como
uma espécie de marca distintiva (ou até mesmo uma vocação da produção televisiva),
apontando sua inserção na produção audiovisual recente5.
Dessa vasta produção, iremos nos deter na programação factual, termo utilizado no
site da emissora, ou, de modo mais abrangente, na chamada reality tv, destacando sua
originalidade: ao percebermos o alcance da “telerrealidade” para além de seu formato
mais direto, os reality shows, podemos afirmar que, longe de se caracterizar como um
gênero específico, a reality tv surge, no atual momento, como o próprio modo de operação
da televisão, notadamente na Inglaterra.
A fim de demonstrar essa premissa e as linhas principais de nossa observação da
BBC, iremos tecer algumas considerações sobre o programa “Make Bradford British”6,
série televisiva que mescla elementos de documentários, documentários jornalísticos,
grandes reportagens, entrevistas e reality shows. Lembramos, nesse momento, a impor-
tância que os gêneros factuais possuem tradicionalmente na BBC, apontando para uma
realidade bastante específica e instigante da televisão britânica: a grande produção de
documentários televisivos sem que sejam pensados de modo restritivo ou reducionista,
colocando-os lado a lado com séries, seriados, reportagens, telejornais e realities.
A pregnância das formas narrativas definidoras da reality tv é preponderante,
recebendo bastante aceitação não apenas por parte da audiência, mas também dos
produtores e realizadores. Na BBC, a maior ênfase atual na produção de teledramaturgia
por meio de séries, seriados e novelas, além de reality shows propriamente ditos, é também
uma característica que perpassa a programação, afetando de modo direto a produção
de documentários e grandes reportagens.
Nesse ponto, uma importante característica da produção televisiva britânica atual se
sobressai: o hibridismo de gêneros se faz de diversos modos, tanto em termos estilísticos,
como tecnológicos. As fronteiras entre sensacionalismo, entretenimento, documentário e
informação não são claramente demarcadas, e o que observamos é a presença crescente
de programas que utilizam, em diferentes graus, esses elementos. Talvez a combinação
de aspectos factuais e ficcionais seja justamente aquela que propicia a estruturação de
um padrão de programação baseado no que estamos chamando de reality tv. No caso
do Reino Unido, a diversidade étnica e cultural coloca em primeiro plano problemas

5.  Uma vasta bibliografia sobre o tema tem sido produzida por estudiosos de televisão, dentre eles
destacamos: Holmes, S. & Jermyn, D. (eds.) (2004). Understanding reality television. New York: Routledge;
Murray, S. & Ouellette, L. (eds.). (2004). Reality TV: remaking television culture. New York: New York University
Press; Hill, A. (2005). Reality TV: audiences and popular factual television. New York: Routledge; Ouellette, L.
(ed.) (2014). A companion to reality tv. Oxford: John Wiley & Sons.
6.  Informações detalhadas sobre a série em: www.channel4.com/programmes/make-bradford-british.

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relacionados ao multiculturalismo, imigração, xenofobia e segregação racial, temática


na qual se insere a série “Make Bradford British”, desenvolvida para o Channel 4, da
BBC, em 20127, e dirigida por Heenan Bhatti8, realizador que produziu filmes, séries e
documentários (como diretor e roteirista), além de atuar, anteriormente, como repórter
para jornais e telejornais.
A série contou com a participação de oito personagens, selecionados entre centenas
de candidatos (nos moldes de um reality show), que foram agrupados em duplas compos-
tas por pessoas com formações culturais bastante distintas para que cada um pudesse
viver a vida do outro no cotidiano, dividindo com ele o mesmo espaço. Diferenças étnicas,
raciais, geracionais, educacionais, profissionais, regionais, de gêneros, religiosas, culturais,
políticas e econômicas foram ressaltadas para que os participantes pudessem pensar
sobre as vantagens e desvantagens de se viver mais próximos ou distantes de pessoas
radicalmente distintas deles mesmos, enfrentando os conflitos decorrentes desse convívio.
Em sua entrevista, Bhatti afirmou que sempre busca definir seus trabalhos a partir
de uma inquietação: quais são as histórias que valem a pena ser contadas e qual a melhor
forma de fazer isso? Cada história, segundo ele, é singular e deve ser destacada dentre
outras, seja em formato cinematográfico ou televisivo. No caso da televisão, o menor
tempo de produção pode determinar alguns dos resultados, mas os assuntos voltados
a atualidades, seja em forma de notícias ou reportagens, encontram mais espaço nessa
mídia. Tradicionalmente, os documentários televisivos têm se dedicado a temas culturais,
enfatizando a importância em narrar histórias de diferentes atores sociais e buscando a
melhor maneira de contar essas histórias por meio de personagens fortes. Um aspecto
importante foi ressaltado pelo diretor ao afirmar que há diferentes maneiras de se fazer
um filme, inclusive em termos de escolhas narrativas e de gêneros, mas que atualmente
é possível realizar narrativas hibridizadas e que misturem, inclusive, entretenimento e
informação visando apresentar ao público a maior variedade possível de temas históricos,
culturais, sociais e políticos.
Buscando agregar um grupo de pessoas que pudesse representar, de modo abrangen-
te, aspectos multiculturais presentes em diversas regiões do Reino Unido – reproduzindo
uma espécie de microcosmos com indivíduos variados – e que, ao mesmo tempo, fosse
capaz de compreender as diferentes comunidades constituintes da sociedade britânica,
o programa visava construir seus personagens da maneira mais aprofundada possível.
Para chegar aos oito participantes, partiu-se de um elenco de mil candidatos, que foram
reduzidos a uma centena para, finalmente, chegarem ao número de dezesseis para a
escolha final. A seleção se mostrou bastante complexa por ser, na opinião da equipe de
produção, a chave definidora da série, já que esta deveria falar sobre sujeitos diversos e
a posição que cada um deles ocupa na sociedade britânica. Encontrar boas histórias em
comunidades de diferentes origens étnicas e culturais seria possível, segundo Bhatti,

7.  A série, composta de duas temporadas, foi criada em quatro meses e produzida em um ano, contando
com aproximadamente cem horas de gravação por episódio e sete semanas de edição. Cada episódio custou
por volta de 150 mil libras, valor elevado mesmo se comparado àqueles relativos a um capítulo de uma
telenovela da Rede Globo, e pouco frequente em outros formatos televisivos dramatúrgicos ou informativos.
8.  Em nossa pesquisa de pós-doutorado, tivemos a oportunidade de assistir a uma palestra com o diretor
e de realizar uma entrevista com ele, além de assistir ao making of e aos episódios da série, na Birmingham
City University (Inglaterra), em 28 de novembro de 2013.

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apenas se os produtores conseguissem criar bons personagens, capazes de ao mesmo


tempo entreter, cativar e desafiar a audiência.
De modo semelhante a alguns documentaristas brasileiros, a passagem do indivíduo
concreto ao personagem – e a naturalidade com que atores não-profissionais poderiam
interpretar papéis que representassem a eles mesmos – foi um dos desafios apontados pelo
diretor. Além disso, a questão da edição foi colocada com um dos pontos fundamentais
da produção, já que tanto a narrativa como os personagens, de acordo com Bhatti, foram
construídos no momento da montagem. Muitas vezes um personagem pode parecer
excelente no momento da filmagem e, ao chegar o momento da edição das imagens, sua
presença se dilui em detrimento de outro. Nesse ponto é interessante apontar um aspecto
inusitado ao pensarmos as produções televisivas britânicas e brasileiras: enquanto no
Reino Unido, a exemplo do que observamos com respeito a essa série, o modelo de
produção televisiva parece acompanhar aquele da produção documental (inclusive com
a grande presença de documentários televisivos), no Brasil ocorre algo oposto, afastando
a televisão da estética documental.
No caso brasileiro, a televisão (incluindo séries, reportagens ou novelas, com pequena
presença de documentários) tem utilizado procedimentos de produção bastante distintos
daqueles utilizados nos documentários, fato que podemos observar ao nos debruçarmos
sobre entrevistas, depoimentos e relatos de realizadores, diretores e roteiristas. De modo
análogo, a própria definição de “documentário” parece ser mais ampla no Reino Unido,
podendo contemplar vários formatos neste gênero, incluindo educacionais, subjetivos,
reflexivos, científicos, tradicionais, ficcionais, jornalísticos e até mesmo, como no caso
mostrado, produções seriadas.
Isso aponta para uma de nossas questões fundamentais: para além da distinção entre
jornalismo e cinema, ou entre reportagens e documentários, tratando-os como gêneros
ou formatos separados, interessa-nos buscar seus pontos de contato, suas zonas de
aproximação e seus espaços limítrofes, justamente pensados em produções hibridizadas
em termos de discursos audiovisuais e seus efeitos de sentido (cf. NICHOLS, 1991;
WINSTON, 2005). É importante destacar, nesse sentido, a preocupação da produção
televisiva da série em questão no que diz respeito à relação dos gêneros integrantes da
chamada “telerrealidade” com a realidade concreta – e notemos que Bhatti, em momento
algum, define sua série como reality show, mas concebe-a como um documentário.
Assim como nos documentários brasileiros que visam a construção do outro de
modo relacional e reversível, subvertendo as posições hierarquizadas entre realizador e
entrevistado, a série britânica analisada não se preocupa com o maior ou menor grau de
verdade nela presente, mas com a construção dos personagens feita por meio da filmagem
e da edição. Mais do que se perguntar sobre se as situações criadas são artificiais ou
verídicas, ou se aconteceram de fato da maneira como são mostradas, a série ressalta
justamente seu aspecto narrativo e a fabulação implicada em sua fatura, qual seja, a de
que tanto os personagens como a história emergem do processo de interação entre cada
um deles e o próprio realizador, mediados pelos dispositivos estéticos, políticos, éticos
e tecnológicos presentes em qualquer produção audiovisual.
A exemplo de outros realities, essa série – e notamos uma distinção importante em
relação à televisão brasileira, já que, como dissemos, o programa não foi simplesmente

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classificado como um reality show –, ao contrário de apresentar desafios de transformação


ou competição, propunha a convivência entre diferentes sujeitos em um mesmo espaço
físico, caracterizando-se como uma espécie de “experimento” ou, de modo mais extenso,
possibilitando uma aproximação à questão dos conflitos e intolerâncias decorrentes do
convívio entre todos9. Indagado sobre a existência ou não de uma hipótese prévia à
realização da série, Bhatti afirmou não partir de uma tese que devesse ser comprovada
mas, ao contrário, possuir apenas uma premissa. Tomando como base o multicultura-
lismo formador da atual sociedade britânica e problematizando a premissa de que, para
ser cidadão do Reino Unido, um estrangeiro deve ser capaz de passar em um teste que
prove o quão britânico ele é, a série partiu de duas perguntas: o que faz de alguém um
britânico? O que é comum a todos os britânicos hoje?
As questões se referem a um tema especifico mas, segundo postura percebida na
emissora BBC, dizem respeito a aspectos mais gerais sobre como tratar temáticas densas
e socialmente relevantes de modo reflexivo e, ao mesmo tempo, atraente. Em termos
de produção, foram utilizados entre três e quatro meses para a seleção dos persona-
gens, um dos momentos cruciais do trabalho e que, na maneira como foi desenvolvido,
guarda semelhanças com o processo presente em documentários, notadamente aqueles
realizados pelo cineasta Eduardo Coutinho (morto em 2014), que afirmava ser o docu-
mentário “a arte do encontro” em vários níveis: entre o realizador e o entrevistado,
entre o realizador e o personagem, entre o personagem e o público, entre o público e o
realizador (cf. COUTINHO, 2005).
Nesse sentido, destacamos, na BBC, tanto em sua produção ficcional como naquela
propriamente factual, o esforço por produzir programas significativos, sejam séries,
reportagens ou documentários, estes últimos uma das marcas desta emissora. Para
além da percepção de que o formato reality tv diz respeito a “pessoas reais fazendo
coisas reais em lugares reais”, da pré-produção até a pós-produção, incluindo filmagem,
edição e finalização, a série “Make Bradford British” buscou agregar elementos
ficcionais e jornalísticos em sua realização. Para o diretor, a separação entre reality shows
e documentários, bem como aquela entre sensacionalismo e humanização, ou entre
fabulação e jornalismo, não pode ser facilmente estabelecida, já que todos esses gêneros
tornam-se cada vez mais hibridizados e visam, ainda que de maneiras distintas, contar
histórias por meio da criação de personagens. Na perspectiva do diretor, seriam eles os
que estabelecem demarcações entre os gêneros, pois se tornam mais autênticos à medida
que são criados pelos próprios sujeitos e não a partir de imposições do realizador, a
exemplo do que vemos em documentários que deslizam entre uma ou outra posição
autoral: aquela mais exterior, voltada para a construção dos personagens, ou a mais
subjetiva, realizada a partir deles.

9.  Ainda que a série tenha buscado tratar da questão multicultural como um modo de integração e não de
separatismo, alguns setores da sociedade protestaram contra sua veemência em termos de crítica social.
A pergunta colocada pelo diretor na apresentação ao programa parece guiar sua narrativa: “How do we,
despite class, cultural and religious differences, find a way to live together? What makes us all British today?”. Por
meio dos personagens e de seus conflitos, vemos diversas possíveis respostas a essa questão, inserindo a
televisão como agente no debate público sobre questões sociais. Para mais informações, ver: www.channel4.
com/programmes/make-bradford-british/articles. Acesso em 21/03/2015.

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Novos realismos em narrativas audiovisuais: visibilidades encenadas

Rosana de Lima Soares

De certo modo, um dos aspectos mais relevantes na observação da série foi a


percepção de que mais do que separar uma produção televisiva ficcional de uma factual,
podemos identificar aspectos constituintes da ficcionalidade ou da factualidade de um
programa em diferentes graus (cf. ODIN, 2012). No caso de “Make Bradford British”,
há uma clara tendência de aproximação à linguagem dos documentários no modo de
articulação narrativa, como se pudéssemos reconhecer a aglutinação de elementos não
reconhecíveis em documentários tradicionais, mas presentes em novos documentários,
entre eles um possível formato de reality documentary.
Se pensarmos na relação entre reportagens e documentários, a partir da observação
da produção inglesa veremos que ocorre, na televisão britânica, a emergência de um
novo formato em termos de produção de filmes, enquanto o jornalismo ainda se mantém
fechado em modelos mais convencionais. De certo modo, tal descoberta vai ao encontro
das hipóteses iniciais, e também de conclusões obtidas em pesquisas anteriores, no que
diz respeito aos estigmas sociais em termos de seu reforço ou transformação. Nesse
ponto, iremos nos deter, em relação à série analisada, nessa questão específica.
Um dos destaques se deu justamente em relação à questão dos estigmas sociais: ainda
que haja um grande volume de produções televisivas que não trazem essa preocupação
em primeiro plano, confirmamos tendência já observada no caso da televisão brasileira:
a forte presença de temas polêmicos, geralmente de cunho social, chamando ao
posicionamento e ao engajamento não apenas dos produtores, mas também da audiência.
Em “Make Bradford British”, a questão dos estigmas se coloca em evidência, a começar
pelo elemento aglutinador da série, a temática do multiculturalismo e da imigração. Os
episódios mostram os participantes vivendo por um período longo nas casas uns dos
outros, divididos em duplas formadas por sujeitos que, a princípio, possuem diferenças
inconciliáveis entre si.
É assim que vemos um típico garoto inglês de origem operária ser inserido na
família de um muçulmano; a mulher muçulmana colocada no cotidiano de uma negra
inglesa que trabalha em um bar; a senhora idosa convivendo com uma jovem, e assim
por diante. Seja em termos étnicos, religiosos, geracionais, as diferenças entre cada
um – e os modos de lidar com elas – colocam-se como definidoras da série. Ou seja,
uma vez mais, a questão do convívio e do conflito entre cada um e todos aparece como
preponderante e configura, assim, uma aproximação aos estigmas sociais. No caso desta
série, isso ocorre de modo transgressor, já que aprender a lidar com as diferenças, por
meio da subversão da pergunta sobre se há algo que possa definir a “britanidade” de
um cidadão do Reino Unido, é justamente seu objetivo. País de longa história no que
diz respeito à presença de imigrantes – sejam eles de origem negra, árabe ou indiana,
de ex-colônias ou outros lugares, entre eles o Brasil –, a premência dessa questão salta
aos olhos quando nos deparamos com os desafios encenados na série, que deriva seu
aspecto realista não apenas na definição de um formato, mas na problemática tratada.
Em termos dos personagens, uma vez mais confirmamos o modo como a série
desmobiliza lugares comuns: ao revezar entre realizador e audiência o espaço de
construção narrativa, movimento esse contemplado na produção de reality shows, os
personagens não são simplesmente encaixados na história – como muitas vezes acontece
no jornalismo – mas colaboram com sua narração, determinando e sendo determinados

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Novos realismos em narrativas audiovisuais: visibilidades encenadas

Rosana de Lima Soares

por ela. É aqui que a mistura entre realidade e ficção pode ser apontada, pois o aspecto
de fabulação advindo dessa escolha – ao mesmo tempo estética e politica – corrobora
a aposta factual do formato documental do programa, e é dessa síntese que vemos
delinear-se o gênero da telerrealidade, percebida como um lugar próprio da linguagem
televisiva contemporânea que coloca em operação a triangulação entre autor, leitor e
texto (ECO, 1994; ISER, 2013), ou entre realizador, público e programa.
Uma espécie de factual entertainment, como colocado pelo diretor da série em ques-
tão, faz-se presente nesses formatos híbridos, propondo novos modos de produzir,
assistir e refletir sobre a televisão britânica. Bhatti aponta que o documentário, espe-
cialmente o televisivo, não se encontra tão distante dos programas de entretenimento
como desejaríamos e, desse modo, séries como “Make Bradford British” podem tratar
de temas relevantes e densos por meio de uma abordagem mais lúdica e emocional e,
ainda assim, problematizar estigmas sociais relacionados a questões de identidade,
alteridade e representação social. Não se trata, portanto, de simplesmente classificar
diferentes programas mas, ao contrário disso, reconhecer um conjunto deles que possa
integrar esse lugar híbrido que desliza entre formas documentais diversas, sejam elas
referenciais, convencionais ou popularescas. É desse modo que a realidade passa a ser
encenada, por meio de documentários, reportagens, séries e reality shows, complexifi-
cando os novos realismos presentes no cinema e na televisão.
Finalmente, um último aspecto merece ser apontado no estabelecimento da relação
entre reportagens, documentários e realities. De acordo com Bhatti e em consonância
com análises anteriormente realizadas sobre a produção audiovisual atual (cf. SOARES;
LIMBERTO, 2014), percebemos nas várias possibilidades factuais da programação televisi-
va a importância da relação entre realizador e entrevistado. Se baseada na reciprocidade,
nos termos em que o filósofo Buber (2001) utiliza este conceito, é um pacto de confiança – e
de fidúcia – que se estabelece entre ambos. É dessa maneira que a relação aparentemente
dual entre realizador e entrevistado se torna uma relação triádica entre realizador, entre-
vistado e personagem e, posteriormente, destes com o espectador (cf. RANCIÈRE, 2012).
Nesse ponto as diferenças entre a produção audiovisual brasileira e a britânica
se colocam como prementes, justamente devido às características singulares de cada
uma e à forte presença, no caso da emissora britânica, de formatos híbridos em termos
narrativos e estéticos, e de documentários televisivos (gênero ainda pouco presente na
televisão brasileira, que ainda se pauta, como notamos ao confrontá-la com a produção
britânica, por divisões mais rígidas de formatos). Além da marcante hibridização em
termos de gêneros televisivos, na produção inglesa isso se reflete, também no modo
de demarcação dos estigmas, que se tornam mais diluídos e, portanto, potencialmente
mais transformadores, levando a uma baixa frequência de redundâncias e aumentando
o grau de ressonância de suas imagens.
Se tomarmos os processos comunicacionais como uma permanente negociação,
entendemos que as mídias não podem ser vistas como totalizantes, mas sim como
lugares de reconhecimento e trânsito simbólico, como zonas de fronteira e passagem
nas quais as reapropriações se fazem nas bordas dos “contratos comunicacionais”
estabelecidos, transformando os modos de construção da representação especialmente
quando tratamos dos espaços de visibilidade e invisibilidade neles presentes.

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Novos realismos em narrativas audiovisuais: visibilidades encenadas

Rosana de Lima Soares

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Por um modelo de análise da complexidade narrativa
na ficção televisual: o lúdico em evidência
Toward a model of complex narratives in tv drama:
the evidence of the ludic
L e t íc i a C a pa n e m a 1

Resumo: Este estudo propõe um modelo de investigação da complexidade


narrativa na ficção televisual. Tal fenômeno tem sido observado pela crítica a
partir de programas de ficção como Hill Street Blues (1981-87), Twin Peaks (1990-
91), X Files (1993-2002), Breaking Bad (2008-2013) entre outros. Dada a pluralidade
das manifestações da narrativa complexa na televisão e em outros sistemas de
linguagem, propomos identificar uma lógica subjacente capaz de delimitar os
territórios de onde ela provêm. Para isso, percorremos os conceitos da narrativa
complexa em sistemas narrativos distintos (oral, cênico, escritural, fílmico e
televisual) para deles extrair um modelo teórico capaz de nos auxiliar nos estudos
da complexidade na ficção de televisão. Para construí-lo, buscamos apoio no
modelo de François Jost (2004, 2010) dos três mundos (real, ficcional e lúdico)
de onde emergem os gêneros televisuais. Nossa hipótese é que a complexidade
narrativa televisual atua sobretudo no território lúdico, gerando interpretantes
de nível auto-referencial. O modelo proposto será aplicado ao estudo do universo
narrativo da série Twin Peaks, criada por David Lynch e Mark Frost.
Palavras-Chave: Complexidade narrativa. Ficção televisual.Twin Peaks

Abstract: This study proposes a model to analyse complex narratives in TV


drama. Critics and researchers have observed this phenomenon in TV shows
like Hill Street Blues (1981-87), Twin Peaks (1990-91), X Files (1993-2002), Breaking
Bad (2008-2013) among others. Given the plurality of complex narratives on tele-
vision and in other supports, we introduce a framework to delimit territories
in which these narratives operate. The concepts of complexity in different nar-
rative systems (oral, scenic, written, filmic and televisual) will be recovered, in
order to extract a theoretical model of analysis. This model is based on François
Jost’s methodology (2004, 2010) of the three worlds (real, fictional and ludic)
where television genres emerge. Our hypothesis is that the complex narrative
in television operates mainly in ludic territory, generating self-referential effects
of interpretation. As an example, this model will be applied to the narrative
universe of Twin Peaks, created by David Lynch and Mark Frost.
Keywords: Complex Narrative.Television Drama.Twin Peaks.

1.  Mestre e doutoranda em Comunicação e Semiótica pela PUCSP e professora do curso de graduação em
Rádio, TV e Vídeo da FIAMFAAM Centro Universitário. Email: capanema.leticia@gmail.com

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Por um modelo de análise da complexidade narrativa na ficção televisual: o lúdico em evidência

Letícia Capanema

INTRODUÇÃO

E STE ESTUDO busca contribuir para os avanços da narratologia da televisão à partir


da análise de um fenômeno particular: a complexidade narrativa na ficção televi-
sual. Tal fenômeno tem sido observado, em suas diversas faces, pela crítica e pela
pesquisa acadêmica e refere-se às transformações que ocorrem no conteúdo (JOST, 2012
e 2015), na estrutura (MITTELL, 2012; BENASSI, 2012; BOOTH, 2011) e no código narra-
tivo (ANG, 2010; SILVA, 2014) da teledramaturgia produzida nas duas últimas décadas
do século XX e início do século XXI. Embora os pesquisadores citados concentrem
suas análises na produção ficcional da televisão estadunidense, a complexificação da
teledramaturgia pode ser considerada como um fenômeno mundial, já que é possível
identificá-la em outros países (Dinamarca, França, Reino Unido, Brasil etc), como afirma
Silva (2014).
De fato, a complexificação da cultura popular (Johnson, 2006) encontra na televisão
um de seus territórios mais propícios. Porém, a complexidade narrativa não é exclusiva
de nossa contemporaneidade, tampouco da televisão, apresentando-se em outros
sistemas narrativos e em épocas distintas. À partir da pluralidade de manifestações e
definições da narrativa complexa, este estudo busca responder às seguintes questões:
O que seria a complexidade na ficção televisual? A complexidade se manifesta da
mesma maneira em sistemas narrativos distintos? Existe uma lógica subjacente a todas
as manifestações da complexidade narrativa ficcional? Como identificá-la?
Ao responder às perguntas, este estudo objetiva não somente contribuir para
a conceituação da narrativa complexa na televisão, mas também erigir um modelo
de análise de tal complexidade que é aqui entendida como um fenômeno ao mesmo
tempo narratológico e comunicacional. Nossa hipótese é que a complexidade narrativa,
particularmente a televisual, atua sobretudo no território lúdico, gerando efeitos
interpretativos auto-referenciais. Para verificá-la, iremos levantar algumas características
da série televisiva de Twin Peaks (EUA, 1990-91) a fim de compreender a complexificação
de sua narrativa.

1. BREVE ARQUEOLOGIA DA COMPLEXIDADE NARRATIVA


Não podemos ignorar o passado de um conceito. Portanto, é imprescindível discernir
as definições da narrativa complexa anteriores à sua aplicação à televisão. Mais do que
identificá-las, é preciso compreender os contextos no interior dos quais essas definições
foram geradas, a que aspectos elas apontam e os sistemas de linguagem às quais elas
se referem.
A complexidade narrativa, como veremos, não é um fenômeno nem um conceito
exclusivo de nossa contemporaneidade. Suas origens nos levam à Poética2 de Aristóteles,
que analisou os sistemas narrativos orais e cênicos existentes na Antiguidade,
particularmente o ditirambo, a epopéia e a tragédia. Em suas observações, Aristóteles
distinguiu a forma simples (aplen) e a forma complexa (peplegmenen). Segundo o filósofo,
essa última se encontra em narrativas que contém ações de peripécia e/ou reconhecimento.
A peripécia seria “uma mudança para a direção contraria dos eventos” (2011, p.57) e o

2.  ARISTÓTELES. Poética. Tradução, textos adicionais e notas de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2011.

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Por um modelo de análise da complexidade narrativa na ficção televisual: o lúdico em evidência

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reconhecimento, “a mudança da ignorância ao conhecimento, que conduz à amizade ou


à inimizade, e envolvendo personagens destinados à boa sorte ou ao infortúnio” (2011,
p.58). Aristóteles qualificou como complexas a tragédia (cênica) Édipo e a epopéia (oral)
A Odisséia, inclinando-se em favor da superioridade da tragédia sobre a epopéia. As
narrativas simples foram definidas por Aristóteles como aquelas formadas por ações
simples, isto é, contínuas e unitárias, sem a presença transformadora da peripécia e do
reconhecimento.
Se tentarmos identificar as definições da narrativa complexa no seio de um único
sistema narrativo não encontraremos unanimidade. Tal fenômeno foi descrito por certos
teóricos da literatura sem portanto alcançar uma única definição. Vladimir Propp, por
exemplo, representante do movimento formalista, adotou o método morfológico (estudo
das formas à partir da observação de suas partes constituintes) para estudar o conto
folclórico russo3. Para ele, as unidades fundamentais da narrativa são suas “funções”,
definidas como a “atuação do personagem, determinada do ponto de vista de seu sig-
nificado para o desenvolvimento da ação” (2010, p. 245). Propp identificou trinta e uma
funções de personagens (afastamento, proibição, transgressão, interrogação, dano...),
sendo que o desenvolvimento de uma combinação funcional à outra resulta em uma
sequência. Em seu estudo do conto fantástico russo, ele relaciona a complexidade à
combinação de diversas sequências funcionais, sendo que cada uma contém em seu
arranjo uma função de dano. Assim, os contos simples, segundo Propp, seriam aqueles
constituídos por uma seqüência única (único dano), e os contos complexos, constituídos
pela combinação de sequências (vários danos). Propp (2010, p.98) também considera o
entrecruzamento de gêneros no interior de um mesmo conto como um elemento de
complexificação narrativa.
Por caminhos diferentes, Todorov se aproxima da noção de complexidade narrativa
desenvolvida por Propp, identificando-a também na reunião de histórias em uma mesma
narrativa. Segundo Todorov, “as formas mais complexas da narrativa literária contêm
diversas histórias” (2013, p. 243). Por esse motivo, ele considera As Mil e Uma Noites
(narrativa oral em árabe, compilada à partir do século IX) e o romance epistolar Les
Liaisons Dangereuses (CHODERLOS DE LACLOS, 1782) como narrativas constituídas por
um conjunto de histórias, logo dotadas de complexidade. Contudo, Todorov vai além e
explica que as histórias de uma mesma narrativa podem se conectar fundamentalmente
de três maneiras: por encadeamento, como nas coleções literárias (por exemplo, um
mesmo personagem vive uma aventura à cada história); por encaixamento, como em
As Mil e Uma Noites (todas as histórias estão inseridas na história de Sherazade); e por
alternância como o conto Le Chat Murr (1821), de Hoffman (duas histórias são relatadas
de maneira alternada).
Já Calatrava (2008) relaciona o surgimento da narrativa complexa à emergência do
romance moderno, reconhecendo em D. Quixote (Miguel de Cervantes, 1605) uma obra
precursora desse tipo complexificação. Segundo o autor, tal obra atua numa dimensão
auto-referencial, já que adota a intertextualidade, a reflexão sobre a própria escritura
e o deslocamento entre instâncias narrativas. Mesmo que a idéia de transgressão

3. PROPP, Vladimir. Morfologia do Conto Maravilhoso. Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2010.

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Por um modelo de análise da complexidade narrativa na ficção televisual: o lúdico em evidência

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narrativa não seja explicitamente relacionada à complexidade, ela foi discutida por
certos teóricos, como Genette (1972) que destaca a noção de metalepse4, à partir das obras
de Cervantes, Cortázar e Borges. As inovações narrativas do modernismo literário de
Joyce e de Proust e aquelas do modernismo tardio do nouveau roman, nos anos de 1950,
de Robbe-Grillet e de Duras, são também importantes, cada uma a sua maneira, para
a noção de formas complexas na literatura. Nessas obras, a complexidade é associada
à sofisticação da retórica da narrativa ficcional à partir do uso de estratégias tais como
diversos níveis narrativos, reflexividade, múltiplas tramas, diferentes perspectivas,
monólogos interiores, ambiguidades etc.
Para tratar do problema da complexidade na narrativa fílmica, destacaremos dois
contextos da produção e dos estudos cinematográficos: o nouveau cinéma francês e o
cinema contemporâneo de grande público, principalmente o norte americano.
Robbe-Grillet, autor conhecido do nouveau roman, levou ao cinema sua vontade
de romper com os códigos narrativos. Em seu primeiro projeto para a grande tela,
L’Année Dernière à Marienbad (1961), em colaboração com Alain Resnais, encontramos
uma estrutura complexa da narrativa fílmica, qualificada por Pierre Beylot como
“construções labirínticas”, “marcadas pela confusão entre o antes e o depois e pela
arbitrariedade de conexões entre as seqüências”5 (2005, p.51). François Jost e Dominique
Chateau6 desenvolveram as bases de uma nova semiologia à partir da análise dos filmes
disnarrativos de Robbe-Grillet, tais como L’homme qui ment (1968) et L’Éden et après, (1970).
Segundo os autores, o cinema de Robbe-Grillet utiliza de outras operações estruturantes
da narrativa que não a implicação e a coordenação. Assim, as telestruturas de tais filmes
são organizadas via uma lógica paradigmática e não sintagmática, significando que
eles se organizam segundo o jogo de possíveis narrativos, e não por suas relações de
casualidade e de coordenação da narrativa clássica.
É à partir da produção cinematográfica ficcional dos anos de 1990 que a complexidade
ressurge como objeto de estudo da narratologia fílmica. À partir da retomada do tema,
outras classificações da narrativa fílmica complexa surgiram. David Bordwell (2002)7,
por exemplo, estudou a complexidade narrativa do filme sob a perspectiva da narrativa
clássica. Segundo o autor americano, as estratégias encontradas nos filmes pós-clássicos
são apenas versões mais complexificadas das técnicas inerentes à narrativa clássica.
Bordwell nomeia como forking path films os filmes narrativamente mais audaciosos,
como Corra, Lola, Corra (1998), isto é, tal denominação refere-se aos filmes que possuem
mais de um caminho narrativo.
Por outro lado, Warren Buckland adota o termo puzzle films para se referir ao
ciclo de filmes de 1990 que refutam as técnicas da narrativa clássica e as substitui pela
narrativa complexa (2009, p.6). Buckland argumenta que a complexidade presente
nos puzzle films opera em dois níveis: o nível narrativo e o nível da narração. O autor
associa respectivamente esses níveis à distinção formalista entre história (fábula) e

4.  O conceito de metalapse foi trabalhado por Genette em Figures III (1972, p. 243) e refere-se à todo tipo
de passagem ou transgressão entre níveis narrativos.
5.  Tradução livre do texto original em francês: « marquées par la confusion de l’avant et de l’après et par
l’arbitraire des connections entre les séquences » (BEYLOT, 2005, p. 51).
6. CHATEAU, D., JOST, F. Nouveau cinéma, nouvelle sémiologie. Les éditions 10/18, 1979.
7. BORDWELL, D. 2002. “Film futures”. SubStance, 97: 88–104.

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Por um modelo de análise da complexidade narrativa na ficção televisual: o lúdico em evidência

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enredo (syuzhet). À partir dessa perspectiva, os filmes Inception (2010) e Memento (2000),


de Christopher Nolan, são diferentemente complexos: o primeiro, no nível narrativo
(história) e o segundo, no nível da narração (enredo). Em oposição ao complexo, Buckland
utilisa o filme Die Hard (John McTiernan,1988) por utilisar a narrativa simples, isto é,
uma narrativa que garante a continuidade cronológica transparente, oferece uma simples
casualidade ação/reação, contém personagens bem definidos e imutáveis no curso da
história, em suma, apresentam coerência e continuidade narrativas.
Outros aspectos da complexidade fílmica foram levantados por autores distintos,
gerando uma grande variedade de termos. Miklos Kiss (2013), por sua vez, propôs o
termo riddle plots para distinguir uma categoria muito especifica de filmes complexos.
Segundo o autor, os filmes como Lost Highway (David Lynch, 1997) et The Element of
Crime (Lars Von Trier, 1984) estão além dos puzzle films de Buckland, pois eles apresentam,
no interior de suas narrativas, enigmas impossíveis de serem resolvidos. Allan Cameron
sugeriu a tipologia modular narratives  que ele distingue como um grupo de filmes
caracterizados pela organização narrativa episódica, isto é, como uma antologia no
interior do filme. Cameron ilustrou esse tipo de complexidade com os filmes de Alejandro
González Inárritu 21 Grams et Babel (Cameron 2008, p.13-15). Ainda que Cameron tenha
tratado do cinema, sua noção de complexidade é próxima àquela da narrativa literária
complexa de Todorov, ambos destacaram o conjunto de histórias no seio de uma mesma
narrativa como um traço da complexidade. Por fim, Thomas Elsaesser (2009) utiliza
a expressão mind-game films para designar os filmes que propõem um tipo de jogo
mental ao espectador, como Fight Club (David Fincher, 1999). O autor alemão reconhece
o caráter lúdico da complexidade fílmica, no sentido de que tais filmes propõem um
jogo narrativo ao espectador.

2. A COMPLEXIDADE NARRATIVA NA TELEVISÃO


Para compreender a complexidade televisual, é preciso primeiramente explicar os
formatos canônicos da teledramaturgia. Stéphane Benassi (2000), que se debruçou sobre
esse assunto, distingue três formas matriciais: o folhetim, a série e o telefilme. Segundo o
autor francês, esses três formatos narrativos são modelos teóricos fundamentais mais ou
menos contaminados pelo fenômeno da mise en série8 (serialização) e da mise en feuilleton9
(folhetinização).
Ainda segundo Benassi, os folhetins são ficções obtidas pela fragmentação da
unidade diegética em diversos episódios e dotadas da relação de causa e conseqüência
e de um desenvolvimento narrativo temporal e semântico, como, por exemplo, as
telenovelas brasileiras. As séries são ficções em que cada episódio possui sua própria
unidade diegética. Além disso, elas contém um tipo de fórmula estrutural que se repete,
com um esquema narrativo, semântico e temporal fixo. As séries Columbo (1968-2003) e
The Simpsons (1989-) podem ilustrar esse tipo. Por fim, os telefilmes são ficções unitárias
ou fragmentadas em um número reduzido de episódios, fechadas em si mesmas e, por

8.  « Mise en série », segundo Benassi, é a operação de desenvolvimento de diversas situações narrativas
para um herói permanente. (Benassi, 2011, p. 46)
9. « Mise en feuilleton », segundo Benassi, é a operação de dilatação e estiramento da diegese, conservando
a passagem inevitável do tempo. (2011, p. 44)

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Por um modelo de análise da complexidade narrativa na ficção televisual: o lúdico em evidência

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essa razão, freqüentemente destinados a serem assistidos de uma vez na televisão ou


no cinema, como a minissérie brasileira O Auto da Compadecida (1999).
Para Benassi, a complexificação da narrativa decorre da mistura entre tais formatos
matriciais, resultando na mescla de características estruturais das séries e dos folhetins,
além da mistura de gêneros. Os resultados dessa hibridação, que ele denomina de
fiction plurielle (2000, p.43), seria, portanto, os formatos do folhetim serializante (feuilleton
sérialisant) e da série folhetonante (série feuilletonnante). Assim, a ficção televisual atual
pode resultar em formatos diversos que variam segundo seus graus de mise en série e
de mise en feuilleton, além de possibilitarem várias camadas de leitura ao público.
Jason Mittell (2012) identifica a complexidade televisual de maneira similar. Para o
pesquisador estadunidense, a teledramaturgia complexa é resultante da mistura entre o
formato serie (estrutura capitular) e o serial (estrutura episódica). Mittell elege a hibridação
estrutural como aspecto central da complexidade televisual, embora também considere
a mistura de gêneros como característica importante da complexificação. Para o autor,
o equilíbrio entre os dois formatos (serie e serial) resulta em uma estrutura complexa
que, ao mesmo tempo em que recusa “a necessidade de fechamento da trama em cada
episódio, que caracteriza o formato episódico convencional, (...) privilegia estórias com
continuidade e passando por diversos gêneros.” (2012, p. 36). Mittell apresenta diversos
exemplos da narrativa complexa e destaca a série X-Files (1993-2002) na qual a recusa ao
fechamento narrativo e a adoção de continuidade na histórias aparecem distintamente.
Se as combinações possíveis entre os formatos narrativos televisuais são essenciais
à compreensão da complexidade narrativa, é preciso, contudo, interessar-se também
à outros aspectos. Paul Booth (2011) estudou um tipo específico de complexificação da
narrativa nas emissões televisivas contemporâneas que é o deslocamento temporal.
Ele observa a complexidade temporal nas séries Doctor Who (2005-) e Lost (2004-10),
caracterizadas pela descontinuidade do tempo narrativo por meio do uso de flash-
forwards, flashbacks, flashsides e viagens no tempo, gerando, segundo Booth, uma recepção
esquizofrênica da parte do público. Henry Jenkins (2008), por sua vez, identificou um
outro tipo de complexificação na ficção televisual e cinematográfica construída à partir da
transmidiação da ficção, isto é, por meio da expansão narrativa à outras obras e da cultura
participativa e colaborativa do público. Na televisão, encontramos, por exemplo, as séries
Twin Peaks (1990-91) et Lost (2004-10) que tiveram seus universos narrativos estendidos
a outras obras (filmes, livros, videogames, conteúdos para internet), produzidos pelos
produtores oficiais ou mesmo pelos fãs.
Outro aspecto relevante presente na produção televisual é a construção de relações
metalingüísticas e auto referenciais. Programas televisivos como Dallas (1978-91) e
Dynasty (1981-89) desencadearam, segundo Ang (2010), o crescimento de uma cultura
da ironia pós-moderna em relação à teledramaturgia. Segundo a autora, Dynasty, por
exemplo, absorve tal ironia em sua narrativa, tornando-se um programa baseado no
auto-sarcasmo e na auto-parodia. Ang explica que “muito mais que Dallas, Dynasty era
um texto pós-moderno auto-reflexivo que absurdamente atraiu atenção para si mesmo
como um texto engenhoso, ardiloso e trapaceiro, mais do que por ser um melodrama
sério.” (2010, p.89). De maneira similar Marcel Vieira Silva (2013) também observou a
auto-reflexividade na construção de gags nas sitcoms televisivas. Séries como Modern

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Por um modelo de análise da complexidade narrativa na ficção televisual: o lúdico em evidência

Letícia Capanema

Family (2009-), por exemplo, utilizam estratégias discursivas próprias do documentário


com o fim de criar novas nuances e novos códigos para o cômico.
Os personagens e suas transformações são também elementos importantes da ficção
televisual que merecem atenção especial no contexto da complexidade narrativa. François
Jost (2015) já apontou algumas dessas transformações ao analisar a dualidade vilão/
herói na ficção televisual contemporânea. De fato, na teledramaturgia contemporânea,
os personagens ganham em profundidade (psicológica, emocional e social ) ao mesmo
tempo em que tornam-se mais voláteis, isto é, não são mais personagens monolíticos,
que não sofrem mudanças ao longo do desenvolvimento da história.

3. TERRITÓRIOS DA COMPLEXIDADE: A NARRATIVA


AUTO-REFERENCIAL E LÚDICA
Nos estudos citados sobre a complexidade narrativa, observamos que falta uma
teoria geral capaz de abarcar os casos empíricos e, ao mesmo tempo, construir modelos
teóricos universais. Esta pesquisa sustenta a hipótese de uma teoria universal que,
embora gerada à partir da narrativa televisual, poderia contribuir para compreender o
fenômeno da narrativa complexa no geral. Para construir uma metodologia de análise,
buscamos apoio no modelo teórico também geral de Jost (2010), no qual ele distingue
três mundos (real, ficcional e lúdico) sobre os quais são fundados os gêneros televisuais.
Nossa hipótese é que a complexidade narrativa televisual, mesmo estando localizada
no mundo ficional, trabalha sobretudo no território lúdico, gerando interpretantes de
nível reflexivo.
Como demonstrado, a complexidade narrativa é um fenô­meno plural que pode
se manifestar em seus diversos aspectos, mesmo no interior de um único sistema
narrativo. As identificações da narrativa complexa são certamente infinitas, pois as
combinações de onde elas decorrem também o são. Tratar da complexidade narrativa
na televisão nos confronta a um problema similar à definição do gêneros televisu-
ais: a dificuldade de alcançar uma tipologia satisfatória face à pluralidade de suas
manifestações. Mais do que criar uma tipologia infinita da complexidade narrativa,
melhor vale observar os territórios comuns de onde provêm suas manifestações. Para
traçar esses territórios, tentaremos destacar aspectos comuns nas diversas definições
e manifestações da narrativa complexa, a fim de encontrar uma lógica subjacente que
permita lhes reagrupar.
Propp e Todorov, por exemplo, associaram a complexidade narrativa oral e escritural
à propriedade multitramas da narrativa. De maneira similar, Cameron identificou as
narrativas fílmicas modulares (episódicas ou antológicas) como as mais complexas.
Aristóteles e Bordwell consideraram a complexidade como uma manifestação mais
sofisticada das narrativas clássicas, o primeiro na tragédia e na epopéia, e o segundo,
no cinema. Robbe-Grillet construiu narrativas complexas na literatura e no cinema
à partir da subversão e da recusa às formas narrativas canônicas. Buckland também
identificou a complexidade fílmica à ruptura com o formato clássico, distinguindo sua
atuação no nível da história e no nível da narração. Kiss considera a falta de resolução
narrativa como característica principal do cinema do tipo complexo. Benassi et Mittell
identificaram as origens da complexidade narrativa televisual na mistura dos formatos

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Por um modelo de análise da complexidade narrativa na ficção televisual: o lúdico em evidência

Letícia Capanema

canônicos da teledramaturgia. Booth observou na ficção televisual contemporânea a


complexificação temporal das narrativas, por meio da prolepses e da analepses. Jenkins
estudou a complexificação através da expansão narrativa no cinema e na televisão.
Ang e Silva destacaram a auto-referencialidade na teledramaturgia como indicio da
complexificação do enredo. Jost destacou as ambigüidades e mutações dos personagens
na teledramaturgia norte-americana.
Apesar da pluralidade de classificações e de manifestações da narrativa complexa,
observamos, nos exemplos citados, uma dimensão auto referencial no processo narrativo.
Como um signo que envia a si mesmo, acreditamos que a narrativa complexa propõe uma
espécie de jogo a seu público, seja ele ouvinte, leitor ou espectador. Nessa perspectiva, a
noção de complexidade narrativa (auto-referencial e lúdica) poderia ser encontrada, por
exemplo, quando a ficção joga com sua própria história (personagens e ações), como as
peripécias e os reconhecimentos na tragédia de Édipo ou nas mutações de personalidade
nos romances modernos de Dostoievsky e nos heróis/vilões da series televisivas (como
Walter White, de Breaking Bad). A ficção pode também jogar com a estrutura narrativa,
como as analepses e prolepses do filme Memento ou as construções labirínticas de L’Année
Dernière à Marienbad e de Lost . Ela pode ainda jogar com a linguagem, seu código
expressivo, através de metáforas, metalinguagens, ironias, pastiches e intertextualidades,
como a série televisiva The Simpsons ou o romance Ulysses.
Elegemos a idéia do jogo para tratar da complexidade narrativa devido à sua
característica auto-referencial. Como afirma Jost (2010, p.64), “o jogo faz sempre referência
mais ou menos a ele próprio”. Em outras palavras, um dos traços fundamentais do jogo é
se referir às regras que o organiza. Dessa maneira, propomos observar a complexificação
do jogo narrativo à partir de três territórios de onde eles são provenientes: 1. O conteúdo
ficcional, ou seja, a história ainda virtualizada e dissociada da forma e do código; 2. A
forma ou estrutura narrativa, isto é, o modo e a ordem em que a história é contada. 3. O
código ou linguagem utilizada como meio de expressão. Certamente, devemos destacar
que essas três instancias da narrativa (conteúdo, forma e código) são modelos teóricos,
muitas vezes difíceis de serem observados de forma separada. Porém, tais territórios
podem nos auxiliar na compreensão de como ocorre o processo de complexificação
narrativa na televisão.

4. OS JOGOS NARRATIVOS DE TWIN PEAKS


Com o intuito de aplicar o modelo proposto, iremos desenvolver uma breve análise
do universo narrativo da série Twin Peaks, objetivando levantar os traços da complexidade
(auto-referencial e lúdica) presentes nessa obra.
A série, composta por trinta capítulos organizados em duas temporadas, foi criada
por David Lynch e Mark Frost e exibida pela primeira vez pelo canal ABC nos anos de
1990 a 1991. Twin Peaks obteve uma audiência moderada nos EUA, apesar do grande
sucesso de crítica, e marcou a ficção televisual por sua abordagem surrealista e fantástica
da investigação do assassinato de Laura Palmer. A série aborda os acontecimentos que
se desenvolvem na cidade fictícia de Twin Peaks a partir do descobrimento do cadáver de
Laura, popular colegial admirada por sua beleza e bondade. Dale Cooper, o excêntrico
agente especial do FBI, chega à cidade para investigar o assassinato. No decorrer da

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Por um modelo de análise da complexidade narrativa na ficção televisual: o lúdico em evidência

Letícia Capanema

investigação, descobrimos que Laura e os estranhos habitantes de Twin Peaks escondem


segredos sob as aparências da normalidade.
Kristin Thompson (2003, p.106-140), pesquisadora estadunidense, classifica a série
como um exemplo de art television10, devido a seus fortes traços autorias, ambigüidades
e mistura entre gêneros. De fato, é impossível desvincular a série da obra cinema-
tográfica de David Lynch, um de seus criadores. Mais conhecido por seus trabalhos
no cinema, Lynch possui como traços autorais uma forte influência do surrealismo, a
presença de personagens ambíguos e de enredos narrativamente confusos. Sua obra
cinematográfica é muitas vezes relacionada à noção de complexidade narrativa (KISS,
2013 e BUCKLAND, 2009) e sua incursão na ficção televisual carrega, consequentemente,
muitas dessas características.
Para levantar os traços de complexidade no nível do código narrativo em Twin Peaks,
destacamos dois elementos: os gêneros e a metalinguagem presentes na série. É tarefa
difícil distinguir a que gênero pertence Twin Peaks. O melodrama e o drama policial são
certamente centrais na narrativa, mas a série também possui características do suspense,
do fantástico e da comédia. Por exemplo, os tradicionais métodos de investigação policial
são ironizados, ganhando traços de estranheza e comicidade, como os excêntricos
raciocínios dedutivos utilizados pelo agente Cooper.
A metalinguagem e a auto-ironia também podem ser identificadas na inserção
da novela intra-diegética Invitation to Love. Durante o desenvolvimento dos episódios,
percebemos que os personagens de Twin Peaks acompanham tal novela, o que gera um
efeito de eco narrativo em relação às ações da série. Invitation to Love reverbera diversas
situações narrativas da trama de Twin Peaks, ao mesmo tempo em que a parodia e a iro-
niza. Como, por exemplo, o momento em que Leo, personagem de Twin Peaks, é baleado
ao mesmo tempo em que assiste, sentado no sofá de sua sala, ao capítulo de Invitation
to Love em que o protagonista também é alvejado.
No nível da forma e da estrutura narrativa, evocamos os arcos dramáticos, os prólo-
gos e as expansões da série. Twin Peaks é uma narrativa televisual que apresenta carac-
terísticas do formato serial e também do formato capitular. Em outras palavras, perce-
bemos uma dupla estruturação narrativa, pois cada episódio possui um arco dramático
dotado de autonomia, ao mesmo tempo em que a sucessão dos episódios desenvolve o
arco dramático da série como um todo. Nesse sentido, Twin Peaks pode ser considerada
uma obra de estruturação hibrida ou, utilizando o termo de Benasse, uma fiction pluriel.
A estrutura da série também conta com a inserção de prólogos no início de cada
episódio, antes da vinheta de abertura. Tais prólogos são apresentações feitas pela
personagem The Log Lady (a Dama do Tronco). O formato de um apresentador é bastante
usual em séries como Alfred Hitchcock Apresenta (1962-65) e Além da Imaginação (1959-
64). O apresentador abre o episódio do dia tecendo comentários ao espectador sobre a
história que será exibida. Em Twin Peaks, The Log Lady utiliza um tom cômico e misterioso
para apresentar o episódio do dia. Além de apresentadora, ela é uma personagem da

10.  Tal termo é uma transposição feita por Thompson de art film para o contexto da televisão. Art film e art
television se opõem respectivamente aos conceitos de classical cinema e de classical televison. Nesse sentido,
art televison se caracteriza, segundo Thompson, por fortes traços autorais, ambiguidades, rompimento
com a estrutura causa/efeito da narrativa clássica e violação das definições de espaço e tempo narrativo.

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Por um modelo de análise da complexidade narrativa na ficção televisual: o lúdico em evidência

Letícia Capanema

série, com participação ativa na trama. Essa complexificação do sentido e da função das
apresentações tem por conseqüência a mistura entre a ficção e a não ficção.
Outro aspecto importante da estruturação do universo Twin Peaks é sua expansão
para outras obras. A série é classificada como um caso precursor da transmidiação da
ficção televisual (FERRARAZ E MAGNO, 2014), já que seu universo narrativo ultrapassa
os episódios feitos para a televisão e se expande em outras cinco obras: três livros, um
áudio livro e um filme. A série ocupa posição central no sistema Twin Peaks, já que
as cinco obras restantes foram criadas a partir de elementos do seu enredo. As obras
complementares estabelecem uma relação estrutural com a série, assumindo funções
como flashbacks, preenchimento de elipses e prequels11. Nesse sentido, a estrutura narrativa
do universo ficcional Twin Peaks se complexifica à partir de suas obras complementares
que reenviam informações narrativas e estéticas à série, enriquecendo sua compreensão
e possibilitando outras camadas de interpretação.
No nível do conteúdo, ou seja, da história contada em Twin Peaks, destacamos o
tema do duplo que atravessa os personagens, as ações e o contexto da série. A imagem
do duplo está representada, por exemplo, no nome da cidade (Montes Gêmeos), na sua
localização geográfica (na fronteira entre os EUA e o Canadá), nos mundos internos à
ficção (mundo “real” e mundo dos sonhos), na vida dupla de Laura Palmer, na vida dupla
de Leland, pai de Laura, nos personagens que se complementam (o anão e o gigante;
Bob, o espírito do mal e Mike, o espírito regenerado).
A partir dos elementos levantados, destacamos alguns aspectos da complexidade
de Twin Peaks presente nas instâncias narrativas do código, da forma e do conteúdo.
Buscamos evidenciar os jogos auto-referenciais propostos pela série que permitem ao
público trafegar por várias camadas de leitura, recompensando-o com o prazer de
desvendar as artimanhas da máquina narrativa.

REFERÊNCIAS
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Ano. N.1. jul/dez, 2010. São Paulo, p. 83-99.
Aristóteles. Poética. Tradução, textos adicionais e notas de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2011.
Barthes, R. Análise estrutural da narrativa. Editora Vozes, Petrópolis, 2013.
Benasse, S. Séries et feuilletons T.V. Pour une typologie des fictions télévisuelles. Éditions du
CEFAL, Liège, 2000.
_______.Sérialité(s). In: Décoder les series televises. Sous la direction de Sarah Sepulcre. De
Boeck, Bruxelles, 2012, pgs 75- 105.
Beylot, P. Le récit audiovisuel. Armand Colin, 2005.
Booth, P. Memories, Temporalities, Fictions: Temporal Displacement in Contemporary Television.
In: Televison & New Media, 2011.
Bordwell, D. Film futures. SubStance, N.97, 2002, p. 88–104.
Buckland, W. (Ed.). Puzzle films: complex storytelling in contemporary cinema. John Wiley &
Sons, 2009.

11.  Sobre as relações narrativas entre a série Twin Peaks e suas obras complementares, consultar o artigo
“Reconfiguração do conceito de montagem na ficção televisual expandida” de CAPANEMA (2014).

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Por um modelo de análise da complexidade narrativa na ficção televisual: o lúdico em evidência

Letícia Capanema

Calatrava, J. R. V. Teoría de la narrativa. Una perspectiva sistemática. Madri: Iberoamericana, 2008.


Cameron, A. Modular Narratives in Contemporary Cinema. Houndmills/Basingstoke: Palgrave
Macmillan, 2008.
Capanema, L. Reconfiguração do conceito de montagem na ficção televisual expandida. Lumina,
v.8 , n. 1, 2014.
Chateau, D., Jost, F. Nouveau cinéma, nouvelle sémiologie. Les éditions 10/18, 1979.
Elsaesser, Thomas. The Mind-Game Film. In: Buckland, Warren 2009,13–41.
Genette, G. Figures III. París, Seuil, 1972.
Jenkins, H. Cultura da Convergência. São Paulo: Editora Aleph, 2008.
Johnson, S. Tudo o que é mau faz bem: como os jogos de vídeo, a TV e a Internet nos estão a tornar
mais inteligentes. Lisboa: Lua de Papel, 2006.
Jost, F. Compreender a televisão. Trd. Elizabeth Bastos Duarte, Maria Lília Dias de Castro,
Vanessa Curvello. Porto Alegre: Sulina, 2010.
_______. De quoi les séries américaines sont-elles le symptôme? CNRS Editions, Paris, 2012.
_______. Les Nouveaux Méchants :comment les séries télé font bouger les lignes du bien et du mal.
Éditeur : Bayard, Paris, 2015.
Ferraraz, R.; Magno, M. I. C. A Contemporaneidade de/em Twin Peaks (1990-1991): a junção
entre o moderno e o pós-moderno no jogo (proto) transmidiático do seriado criado
porDavid Lynch e Mark Frost . In: XXIII Encontro Anual da Compós, 2014.
Kiss, M. Navigation in Complex Films Real-life Embodied Experiences Underlying Narrative
Categorisation. In: (Dis)Orienting Media and Narrative Mazes, 2013.
Mittell, J. Complexidade narrativa na Televisão americana contemporânea. São Paulo:
Matrizes. Ano 5 – N.2 jan./jun. 2012
Propp, V. Morfologia do Conto Maravilhoso. Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2010.
Silva, M. V. B. Sob o riso do real. Ciberlegenda, n. 27, Niterói-RJ: 2013, p. 23-33.
_______. Dramaturgia seriada contemporânea: aspectos da escrita para a tevê. In: Revista
Lumina. Vol.8, N.1, Juiz de Fora, junho 2014.
Todorov, Tzvetan. As estruturas narrativas. Vol. 14. Editôra Perspectiva, 2013.
Thompson, Kristin. (2003). Storytelling in Film and Television. Cambridge/ Massachusetts/
Londres: Harvard University Press.

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TV paga e ficção televisiva brasileira:
Dados de 2007 a 2013
Brazilian cable TV and tv fiction content:
Data from 2007 to 2013
Ligia Maria Prezia Lemos1

Resumo: O artigo realiza uma compilação dos Anuários OBITEL de 2008 a


2014, referentes anos de 2007 a 2013. Debruçamo-nos sobre dados e análises
a respeito da TV Paga brasileira e da ficção televisiva brasileira na TV Paga,
além da cronologia de implantação da Lei da TV Paga. Captamos os dados no
capítulo referente ao Brasil, no trecho sobre o contexto do País e acrescentamos
elementos detalhados de nossas próprias pesquisas. Dessa maneira, tomamos
os dados de cada monitoramento anual e os inserimos num panorama temporal
retrospectivo, com possibilidade de gerar reflexões sobre perspectivas do setor,
além de converter-se em material para novas pesquisas.
Palavras-Chave: TV Paga. Ficção televisiva brasileira. Anuário OBITEL.

Abstract: This article compiles OBITEL Yearbook content from 2008 to 2014,
referring to the years of 2007 to 2013. We inspect data and analysis about Brazilian
Pay TV and Brazilian Pay TV fiction, as well as the chronology of the law “Lei
da TV Paga” and its implementation. Data from the chapter pertaining to
Brazil is captured in the excerpt about the context of the country, and detailed
elements from our own researches are added. That way, we get data from each
annual monitoring and insert it into a retrospective temporal panorama, with
the possibility of generating reflections about the sector’s perspective, and also
becoming material for new researches..
Keywords: Pay TV. Brazilian television fiction. OBITEL Yearbook.

INTRODUÇÃO

O CONCEITO SÍNTESE de “mediações” de Martín-Barbero (2006) que reflete sobre


a comunicação a partir de seus nexos nos ampara na realização da presente
pesquisa. Nesse sentido, pensamos mediação como o lugar circulante em que
transitam produção e recepção. Assim, o espaço das mediações é o espaço em que a
cultura verdadeiramente se mostra e se realiza. No mapa das mediações proposto por

1.  Doutoranda em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de


São Paulo, ECA, USP, bolsista CNPq. Pesquisadora do Centro de Estudos de Telenovela, CETVN/USP e
do Observatório Ibero-Americano da Ficção Televisiva - OBITEL. Mestre em Ciências da Comunicação e
Especialista em Gestão da Comunicação - Políticas, Educação e Cultura também pela ECA, USP. Redatora,
roteirista e arte-educadora. E-mail: ligia.lemos@usp.br.

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TV paga e ficção televisiva brasileira: Dados de 2007 a 2013

Ligia Maria Prezia Lemos

esse autor, as lógicas de produção mobilizam uma tríplice indagação sobre: (1) a estrutura
empresarial – dimensões econômicas, ideologias profissionais, rotinas produtivas; (2) a
competência comunicativa – capacidade de interpelar/construir públicos, audiências,
consumidores; e (3) a competitividade tecnológica - tecnicidades e capacidade de inovar
nos formatos industriais (BARBERO, 2006: 18). Nesse sentido, o artigo busca colocar-se
como material de pesquisa, porém sem avançar sobre questões como representações,
discursos, consumo. Coloca-se como uma entre muitas fontes para pensar nosso tempo,
pois “vivemos o hoje, vivemos este tempo de agora, tecido de ‘destiempos’.” (MARTÍN-
BARBERO, 1998).
O Observatório Ibero-americano da Ficção Televisiva – OBITEL desenvolve um
projeto intercontinental que realiza a observação das políticas de produção e criação
midiática, cultural, artística e comercial da ficção televisiva dos países participantes2 e,
como resultado dessa análise, publica o Anuário OBITEL3 que se tornou referência para
estudantes e pesquisadores da área:
Os anuários Obitel dividem-se em duas partes. A primeira realiza uma síntese comparativa
de todos os capítulos, ou seja, pretende aglutinar os resultados trazidos pelos países partici-
pantes; a segunda parte contempla os capítulos específicos com dados e análises referentes
a cada país. (LEMOS, 2014, p.140)

O presente artigo baseia-se, justamente, nessa segunda parte que se refere ao


contexto audiovisual de cada país, e que apresenta informações sobre o setor e sua
produção a cada ano. O Centro de Estudos de Telenovela da Escola de Comunicações e
Artes da Universidade de São Paulo (CETVN – ECA – USP) é o responsável pelo capítulo
do Brasil no Anuário. Cumpre lembrar que o Anuário OBITEL monitora amplamente os
dados do ano referentes a programas ficcionais dos canais de televisão aberta de alcance
nacional, entretanto, no trecho sobre o Contexto, traz informações e dados expressivos
também sobre a TV Paga.
Para este artigo, realizamos uma abordagem da sequência histórica da TV Paga no
Brasil a partir dos sete Anuários OBITEL mais recentes. Fazemos, portanto, uma leitura
que perpassa tal sequência histórica que começou a ser apresentada no Anuário OBITEL
2008 e permanece até a data atual. Em outras palavras, tomamos os tópicos referentes à
TV Paga e Políticas de Comunicação4 examinados nos Anuários de maneira profunda
e verticalizada e os inserimos numa análise horizontalizada, cronológica e histórica.
Cremos que, assim, operacionalizamos os dados captados pelo monitoramento anual e os
inserimos num panorama temporal retrospectivo, com possibilidade de gerar reflexões
sobre perspectivas do setor. Acrescentamos a esse material nossas pesquisas referentes
aos gêneros das ficções, além de catalogar as empresas produtoras e coprodutoras.
A reclassificação de assuntos e/ou dados abordados fizeram parte da metodologia
empregada, assim como a criação de gráficos comparativos. Em paralelo, realizamos

2.  Os países participantes atualmente são: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Espanha, Estados
Unidos, México, Peru, Portugal, Uruguai e Venezuela.
3.  Disponíveis para download em: www.obitel.net
4.  No tópico referente às Políticas de Comunicação dos Anuários OBITEL 2008 a 2013 tivemos acesso às
questões referentes à Lei 12.485, desde o projeto até implantação.

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TV paga e ficção televisiva brasileira: Dados de 2007 a 2013

Ligia Maria Prezia Lemos

pesquisa bibliográfica para nortear teoricamente a investigação. Partimos da análise


dos dados dos Anuários OBITEL (LOPES & VILCHES, 2008; LOPES & OROZCO, 2009
a 2014) e os confrontamos com artigos que refletem sobre temas como Lei da TV Paga;
histórico da TV Paga no Brasil; produção independente e cotas de conteúdo. Como
resultado, apresentamos um histórico da ficção televisiva brasileira na TV Paga do
Brasil, nos últimos sete anos, tanto em termos de incremento e legislação, quanto de
produção e gêneros.
O início dos anos 1990 marca o princípio da história da TV Paga em nosso país,
com oferta de canais com programação segmentada e atrativa para o consumidor, mas
Devido a seu alto preço e alcance reduzido, pois apenas poucas localidades tinham possibi-
lidade de receber o serviço, a TV paga no Brasil permaneceu como um privilégio das classes
sociais mais abastadas até meados da primeira década dos anos 2000. Segundo indicadores
do setor de televisão por assinatura, no Brasil, em 1994 havia apenas 400 mil assinantes; dez
anos depois, em 2004, 3,8 milhões. (LEMOS, 2012, p. 3)

Nos anos seguintes, a velocidade de crescimento ano a ano aumentou e, em 2013, a


TV Paga no Brasil já abrangia 18 milhões de domicílios5, ou 59 milhões de brasileiros. Tal
crescimento, aliado ao desenrolar da aprovação da Lei 12.485, justifica a observação do
setor e consequente desenvolvimento e experimentações relacionadas à ficção televisiva
brasileira na TV Paga. Portanto apresentamos, a seguir, o panorama e dados anuais da
TV Paga no Brasil, um breve histórico da aprovação da lei e um apanhado da Ficção
Televisiva Brasileira, por título, canal, gênero e produtora, no período de 2007 a 2013
segundo os Anuários OBITEL 2008 a 2014.

PANORAMA E DADOS ANUAIS


De acordo com o registro histórico dos Anuários OBITEL, a TV Paga no Brasil, no
ano de 2007, contabilizava 12 anos de existência alcançando o número de 5,2 milhões de
assinantes no país, com uma taxa de crescimento de 15% no ano (a maior no período de
2000 a 2007). Esse crescimento seria consequência da entrada de empresas de telefonia
no capital das operadoras, aumento de renda da população e oferta de pacotes que
incluíam TV por assinatura, internet banda larga e telefonia fixa, o então chamado triple
play: “Da mesma forma que as TVs por assinatura passaram a atuar na área das teles,
estas passaram a disponibilizar serviço de TV paga [...]” (LOPES & VILCHES, 2008:
87). Tínhamos, então, a NET como maior operadora de TV paga, com 45% do mercado
de cabo. E a maior operadora de TV paga via satélite era a Sky dominando 95% desse
mercado. Em termos gerais, no Brasil, a cada grupo de 200 habitantes, cinco possuíam
TV paga. Mas o sinal desse serviço cobria apenas 475 municípios do país.
Havia 6,3 milhões de assinantes de TV paga no ano de 2008, representando um
crescimento de 20% em relação ao ano anterior. Naquele ano, a TV por assinatura
registrou alta de dois pontos percentuais de audiência sendo que “a divisão ficou em
74% para a TV aberta e 26% para a TV por assinatura”6. Viu-se, no ano, um esforço das

5.  Dados do Anuário OBITEL 2014.


6.  Pesquisa Hábitos & Consumo de 2008 divulgada pela Globosat. Dados disponíveis em: http://ultimo
segundo.ig.com.br/brasil/tv-paga-esta-em-54-milhoes-de-casas-revelapesquisa/n1237647557279.html.

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TV paga e ficção televisiva brasileira: Dados de 2007 a 2013

Ligia Maria Prezia Lemos

operadoras de TV por assinatura para conquistar assinantes das classes mais baixas,
principalmente por meio dos pacotes triple play a preços reduzidos.
No ano de 2009 havia 7,4 milhões de assinantes de TV paga, representando um
acréscimo de 18,24% em relação a 2008. A estimativa era de que tínhamos 25 milhões
de brasileiros com acesso à programação da TV paga e esse crescimento, mais uma vez,
devia-se à ampliação de oferta de combos e serviços de assinatura por satélite.
Em 2010 já possuíamos quase 10 milhões de assinantes de TV Paga no Brasil e
estimativa de mais de 32 milhões de brasileiros com acesso à sua programação. Esse
número era creditado ao contínuo crescimento da Classe C e à Copa do Mundo de 2010.
O maior crescimento percentual naquele ano foi nas regiões Norte e Nordeste sendo
que o maior número absoluto de aquisições foi na região Sudeste.
Em 2011, o número de assinantes da TV Paga chegava a 12,7 milhões, o que
corresponde a 42 milhões de brasileiros com acesso à programação. O Brasil tornou-se
o maior mercado de TV por assinatura da América Latina em números absolutos devido,
especialmente, à ascensão de 40 milhões de pessoas à classe C, com o consequente aumento
de seu poder de compra. O quadro comparativo abaixo (Tab. 1) retrata o crescimento desta
classe social entre os assinantes o que, em apenas três anos, alterou completamente a
conjuntura do setor. Viu-se, por exemplo, no período, uma importante mudança cultural:
a dublagem de grande número de programas estrangeiros, principalmente filmes e
séries, que anteriormente eram legendados.

Tabela 1. Assinantes por Classe Social

ANO AB C DE
2008 75% 22% 3%
2011 50% 43% 7%

Dados OBITEL

O crescimento da adesão da Classe C à TV Paga era atribuído à possibilidade de


assistir TV aberta com melhor qualidade de imagem e à grande oferta de conteúdo
infantil e de programas esportivos. No ano, as operadoras de TV paga seguiram lançando
opções de pacotes (TV por assinatura, telefonia fixa, banda larga) com preços acessíveis.
O acesso dos consumidores da Classe C interessados em TV paga e internet e a
aprovação da Lei do Cabo fizeram com que o ano de 2012 fosse especialmente fértil,
alcançando a marca de 16,2 milhões de assinantes, ou 53 milhões de brasileiros. Houve,
portanto, um crescimento de 28,3% em relação ao ano anterior. Apesar disso, os dados
do IBOPE mostravam que a penetração da TV paga brasileira ainda era pequena, ou
seja, englobava apenas 30% do total de residências do país.
Ainda que o serviço tenha atualmente baixa penetração no Brasil, a experiência no estrangei-
ro indica que a TV por assinatura ganhará mercado no país, podendo em breve se equiparar
à TV aberta nos níveis de penetração nos domicílios brasileiros e, por consequência, também
na importância para a difusão da cultura e informação (BARCELOS, 2013).

Acesso em janeiro de 2015.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

5349
TV paga e ficção televisiva brasileira: Dados de 2007 a 2013

Ligia Maria Prezia Lemos

Em termos gerais, a TV paga do Brasil, em contínuo desenvolvimento nos últimos


anos, apresentou certa desaceleração em 2013 – de quase 30% para 10% ao ano – fato
que não a impediu de alcançar os 18 milhões de assinantes. A dimensão da base de
assinantes seguiu impulsionada pela classe C, que se impôs pelo aumento do número
de canais dublados ou falados em português e, ainda, pela assistência de canais abertos
via TV paga para obter melhor qualidade de imagem.

ANUÁRIO ANO MILHÕES DE


BRASILEIROS 1
2008 2007 17
2009 2008 20
2010 2009 24
2011 2010 33
2012 2011 42
2013 2012 53
2014 2013 59

Figura 1. Crescimento do Número de assinantes da TV Paga no Brasil (2007-2013)

Os dados registrados pelo Anuário OBITEL no período de sete anos, de 2007 a


2013, exibem um salto de 247% no número de assinantes e de brasileiros com acesso à
TV Paga no Brasil conforme podemos observar no gráfico e tabela acima (Fig.1).

BREVE HISTÓRICO DA LEI DA TV PAGA


No ano de 2007 tramitou no Congresso Nacional um Projeto de Lei (PL-29) propondo
reformas na TV Paga brasileira no sentido de desagregar os componentes da cadeia
produtiva (produção, programação, empacotamento e distribuição). Nesse projeto, o
maior destaque era o estímulo à promoção de conteúdo nacional na TV Paga por meio
do conceito de “espaço qualificado” 8 em que todo canal que exibisse filmes ou ficção
televisiva deveria destinar 10% do tempo total para a transmissão de conteúdo nacional.
Em 2008 prosseguiu o debate sobre o PL-29, já com expectativas de sua votação em
2009. O projeto tornou-se mais amplo, objetivando liberar as operadoras de telefonia
para também atuar no mercado de TV por assinatura. Além desse ponto, prosseguiu o
debate para que a TV Paga reservasse 10% do tempo total veiculado em horário nobre
para produções nacionais e independentes de séries, filmes e documentários.

7.  Segundo critérios populacionais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que estima a
existência média de 3,3 pessoas para cada domicílio. Utilizamos esta estimativa no decorrer do presente
artigo.
8.  Espaço qualificado é “O espaço total do canal de programação, excluindo-se conteúdos religiosos ou
políticos, manifestações e eventos esportivos, concursos, publicidade, televendas, infomerciais, jogos
eletrônicos, propaganda política obrigatória, conteúdo audiovisual veiculado em horário eleitoral gratuito,
conteúdos jornalísticos e programas de auditórios ancorados por apresentador”. (BRASIL, 2011)

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5350
TV paga e ficção televisiva brasileira: Dados de 2007 a 2013

Ligia Maria Prezia Lemos

Em dezembro de 2009, o Projeto de Lei 29 foi aprovado pela Comissão de Ciência


e Tecnologia e encaminhado à Comissão de Constituição e Justiça da Câmara para ser
apreciado e votado em 2010. Nessa altura, já definia que as regras deveriam ser as mesmas
para todas as tecnologias, sem restrições ao capital estrangeiro ou a concessionárias de
telefonia fixa local; mantendo, também, as cotas de programação nacional.
Em junho de 2010, o projeto de lei da TV paga foi aprovado pela Comissão de
Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados e encaminhado ao Senado
como Projeto de Lei da Câmara (PLC-116). Permaneceram os pontos mais polêmicos do
projeto, ou seja, a entrada no mercado das operadoras de telecomunicações e as cotas
de conteúdo nacional.
No dia 12 de setembro 2011, a presidente Dilma Rousseff sancionou a nova Lei de
TV por Assinatura (ou Lei do Serviço de Acesso Condicionado – SeAC) que criava novas
regras para o serviço de TV Paga, alterando radicalmente o mercado. A nova lei previa
mais canais com conteúdo brasileiro além de cotas de produção nacional em canais
estrangeiros. Os objetivos eram “aumentar a produção e circulação de conteúdo audio-
visual brasileiro, diversificado e de qualidade, gerando emprego, renda, royalties, mais
profissionalismo e o fortalecimento da cultura nacional” (BARROS & RICHTER, 2013,
p. 317). A regulação e fiscalização das atividades de programação e de empacotamento
do SeAC ficaram a cargo da ANCINE (Agência Nacional do Cinema).
O ano de 2012 foi marcado por discussões referentes ao SeAC, pois as novas regras
trouxeram alterações substanciais para o mercado audiovisual. A implantação das cotas
de conteúdo deveria ser progressiva9, mas já começava a trazer mudanças importantes
no cenário audiovisual como a ampliação do número de produtoras independentes; a
migração de profissionais de publicidade e cinema para a TV e o aumento dos recursos
disponíveis para a produção televisiva.
Em 2013 já se observava certa consolidação das produções brasileiras na TV Paga,
sendo que a lei reforçou também a diversificação e o aumento do número de produtoras
atuantes no setor. Finalmente, com a vigência da lei, mesmo canais internacionais, que
anteriormente apresentavam apenas conteúdo estrangeiro, passaram a exibir produções
nacionais em horário nobre.

FICÇÃO TELEVISIVA BRASILEIRA NA TV PAGA


Durante o período observado pelo presente artigo, o tópico sobre TV Paga dos
anuários OBITEL passou por alterações, naturais durante seu desenvolvimento e
implantação. Assim, redefinimos aqui o que se considera ficção televisiva como a
entendemos hoje, e não como considerado então. Por essa razão alguns títulos – poucos –
foram reclassificados eliminados ou acrescentados, como as séries compostas de quadros,
ou esquetes, que não se consideram mais como ficção televisiva stricto sensu tais como
220 Volts, Olivias na TV e Sensacionalista, por exemplo. Outro ponto que destacamos na

9.  De acordo com a nova lei, os canais de TV paga deveriam passar a exibir, semanalmente, 3h e 30min de
conteúdo nacional no horário nobre (sendo que metade deveria ser proveniente de produtoras brasileiras
independentes). No primeiro ano a partir de sua publicação os canais deveriam exibir 1 hora e 10 minutos
por semana de programação nacional, metade dela independente, no horário nobre; no segundo ano, 2
horas e 20 minutos; a partir do terceiro ano, 3 horas e 30 minutos.

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5351
TV paga e ficção televisiva brasileira: Dados de 2007 a 2013

Ligia Maria Prezia Lemos

presente pesquisa é a citação dos nomes das produtoras, o que permite verificar sua
crescente participação no cenário. Finalmente, relacionamos as temporadas de estreia
no ano, o que pode gerar dúvidas quanto à presença da mesma temporada em dois anos
diferentes. Isso ocorre devido a alguns episódios estrearem no final de determinado
ano e os demais episódios no ano seguinte.
No ano de 2007, a produção de ficção televisiva brasileira para a TV Paga ainda
era tímida, assim como no período imediatamente anterior ao início da publicação dos
Anuários OBITEL que registra que a primeira série brasileira, do canal Multishow, Cilada,
foi lançada em 2005 e perdurou por seis temporadas, até 2009. Além do Multishow, HBO
também apresentou ficção televisiva brasileira então, Mandrake e Filhos do Carnaval.

Tabela 2. FICÇÃO INÉDITA BRASILEIRA NA TV PAGA (2005)

CANAL TÍTULO GÊNERO PRODUTOR

Multishow 1. Cilada Comédia Casé Filmes

HBO 2. Mandrake Drama HBO/Conspiração

Dados OBITEL

Tabela 3. FICÇÃO INÉDITA BRASILEIRA NA TV PAGA (2006)

CANAL TÍTULO GÊNERO PRODUTOR

1. Cilada - 2ª temp. Comédia Casé Filmes


Multishow
2. Cilada - 3ª temp. Comédia Casé Filmes

HBO 3. Filhos do Carnaval Drama HBO / O2

Dados OBITEL

Tabela 4. FICÇÃO INÉDITA BRASILEIRA NA TV PAGA (2007)

CANAL TÍTULO GÊNERO PRODUTOR

Multishow 1. Cilada- 4ª temp. Comédia Casé Filmes

HBO 2. Mandrake – 2ª temp. Drama HBO

Dados OBITEL

Em 2008 mais dois canais exibiram séries nacionais, Fox e GNT. No ano, houve
pela primeira vez o lançamento de quatro produções de ficção nacional diferentes em
um único ano.

Tabela 5. FICÇÃO INÉDITA BRASILEIRA NA TV PAGA (2008)

CANAL TÍTULO GÊNERO PRODUTOR

Multishow 1. Cilada – 5ª temp. Comédia Casé Filmes

HBO 2. Alice Drama HBO / Gullane Filmes

Fox 3. 9mm São Paulo Drama Policial Fox / Moonshot Pictures

GNT 4. Dilemas de Irene Comédia Romântica GNT / Youle Produções

Dados OBITEL

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TV paga e ficção televisiva brasileira: Dados de 2007 a 2013

Ligia Maria Prezia Lemos

No ano de 2009 houve cinco títulos de ficção inédita nacional, mantendo a tendência
de incluir a produção de ficção brasileira na TV Paga. O canal que mais exibiu ficção
nacional foi o Multishow.

Tabela 6. FICÇÃO INÉDITA BRASILEIRA NA TV PAGA (2009)

CANAL TÍTULO GÊNERO PRODUTOR

1. Cilada - 6ª temp. Comédia Casé Filmes


Multishow 2. Quase anônimos Comédia Multishow / Mixer
3. Beijo, me liga! Comédia Romântica Endemol-Globo

HBO 4. Filhos do carnaval -2ª temp. Drama HBO / O2

Fox 5. 9mm São Paulo - 2ª temp. Drama Policial Fox / Moonshot Pictures

Dados OBITEL

Em 2010 houve um crescimento significativo nos títulos inéditos de séries, com 16


títulos contra os cinco de 2009. O canal Multishow, principal responsável pelo aumento,
exibiu dez títulos.

Tabela 7. FICÇÃO INÉDITA BRASILEIRA NA TV PAGA (2010)

CANAL TÍTULO GÊNERO PRODUTOR

1. Quase anônimos -
Comédia Multishow / Mixer
1ª temp. cont.
Comédia Dois Moleques Produções
2. Open Bar
Comédia Conspiração Filmes
3. Morando Sozinho
Comédia Dínamo Entretenimento
4. Na fama e na lama
Comédia Goritzia Filmes
Multishow 5. Adorável psicose
Comédia Dois Moleques Produções
6. Os gozadores
Comédia Conspiração
7. Amoral da história
Comédia Multishow / KN
8. Bicicleta e melancia
Comédia Multishow / Zeugma
9. Vendemos cadeiras
Comédia Multishow / Gullane&Grifa
10. Desprogramado

HBO 11. Alice (2ª temp) Drama HBO LA / Gullane Filmes

Film Planet / Satelite Audio /


MTV 12. Tô frito Comédia Romântica
Aretha Marcos

13. Elvirão ou como vovó já dizia Comédia Canal Brasil / Tribal filmes
14. Bipolar Drama Policial Felistoque Filmes
Canal Brasil
15. Quando a noite cai Comédia Canal Brasil
16. O vampiro carioca - 1ª temp. ComédiaTerrorErótico Canal Brasil / LC Barreto

Dados OBITEL

Em 2011 o Anuário OBITEL registra que os três últimos anos apresentaram aumen-
to expressivo de programas de ficção brasileira, produzidos e veiculados exclusiva-
mente na TV Paga. Os canais brasileiros que então apresentavam ficção televisiva
eram Multishow, GNT e Canal Brasil, os três pertencentes à Globosat, da Rede Globo.
Em sua maioria, essas produções tinham o formato de série, com grande predomínio
do gênero comédia, dirigida para o público jovem/adulto. Nos canais estrangeiros, a
ficção brasileira aparece em coproduções com Fox e HBO. Vale destacar que o canal
Multishow se adiantou à lei de TV paga e, no ano, já apresentava produções nacionais
em praticamente 90% da grade.

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5353
TV paga e ficção televisiva brasileira: Dados de 2007 a 2013

Ligia Maria Prezia Lemos

Tabela 8. FICÇÃO INÉDITA BRASILEIRA NA TV PAGA (2011)

CANAL TÍTULO GÊNERO PRODUTOR


1. Adorável psicose - 2ª temp. Comédia Goritzia Filmes
2. Barata Flamejante Comédia Multishow
3. Bicicleta e melancia - 2ª temp. Comédia Multishow / KN
4. Cara metade Comédia Multishow / Atitude
5. De cabelo em pé Comédia Total Filmes
6. Desenrola aí - 2ª temp. Comédia Multishow
7. Desprogramado - 1ª temp. (cont.) Comédia Multishow/Gullane&Grifa
8. Ed Mort Comédia Urca Filmes
Multishow
9. Mais X favela Comédia Multishow
10. Morando sozinho Comédia Dínamo
11. Morando sozinho - 2ª temp. Comédia Dínamo
12. Na fama e na lama - 1ª temp. (cont.) Comédia Dínamo
13. Na fama e na lama - 2ª temp. Comédia Dínamo
14. Oscar Freire 279 Drama Prodigo Films
15. Os figuras Comédia Total Entertainment
16. Os gozadores - 1ª temp. (cont) Comédia Dois Moleques Produções
HBO 17. Mulher de fases Comédia HBO/Casa Cine P.Alegre
Fox 18. 9mm: São Paulo - 2ª temp. Drama Policial Fox/ Moonshot Pictures
19. Duas histéricas Ficção / Reality Chocolate Filmes
GNT
20. Duas histéricas - 2ª temp. Ficção / Reality Chocolate Filmes
Canal Brasil 21. O vampiro carioca - 1ª temp. (cont) Comédia/Terror/Erótico Canal Brasil/LC Barreto

Dados OBITEL

Em 2012, mais uma vez, houve predomínio do gênero comédia nas ficções para o
público jovem/adulto, com experimentações de formato em algumas produções. No ano,
o Anuário OBITEL passou a contar com os dados do IBOPE de Alcance10 da TV Paga e as
lideranças foram, pela ordem, A Vida de Rafinha Bastos; Oscar Freire,279; Adorável Psicose;
Meu Passado me Condena e Ed Mort.

Tabela 9. FICÇÃO INÉDITA BRASILEIRA NA TV PAGA (2012)

CANAL TÍTULO GÊNERO PRODUTOR

1. Adorável psicose - 3ª temp. Comédia Goritzia Filmes


2. Do amor Comédia Romântica Fina Flor Filmes
3. Meu passado me condena Comédia Romântica Multishow / Atitude
4. Malícia - 2ª temp. Comédia Erótica Multishow / Conspiração
5. Morando sozinho - 3ª temp. Comédia Dínamo
Multishow
6. Open bar Comédia Dois Moleques Produções
7. Os buchas Comédia Pérola Negra
8. Quero ser solteira Comédia Multishow / Raccord
9. Oscar Freire, 279 Drama Pródigo Filmes
10. Ed Mort - 1ª temp. (cont.) Comédia Urca Filmes

11. Destino: São Paulo Drama O2


12. Mandrake - 3ª temp. Drama HBO
HBO
13. FDP Drama Pródigo Filmes
14. Preamar Comédia Dramática Pindorama Filmes
Fox 15. A vida de Rafinha Bastos Comédia Canal FX / Zeppelin
GNT 16. Sessão de terapia Drama Moonshot Pictures
Futura 17. Família imperial Aventura Primo Filmes/Globo Filmes
TBS 18. Elmiro Miranda Show Comédia ParanoidBR

Dados OBITEL

10.  Fonte: IBOPE Media - Media Workstation – Paytv. Dados do Universo domiciliar 2012: 5.226.185. O
índice de alcance é, grosso modo, o percentual de indivíduos e/ou residências diferentes que assistiu,
por determinado período de tempo, às diversas exibições de certo programa. Dessa maneira, a cada nova
apresentação, é alcançado dado grupo de pessoas, tanto aquelas que já tiveram a oportunidade de assistir
aos programas/episódios anteriormente quanto aquelas que os assistem pela primeira vez.

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TV paga e ficção televisiva brasileira: Dados de 2007 a 2013

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As produções nacionais de ficção televisiva se firmaram cada vez mais e, em 2013,


estiveram presentes em oito canais pagos nacionais e internacionais, dois a mais do
que no ano anterior. Os canais que mais investiram em produção nacional foram GNT
e Multishow com sete produções cada. É possível verificar, além do crescimento do
número de produções, o aumento do volume de produtoras atuantes no setor. Os canais
que tiveram maior alcance de audiência da ficção televisiva nacional foram Multishow,
Fox e GNT.
Tabela 10. FICÇÃO INÉDITA BRASILEIRA NA TV PAGA (2013)

CANAL TÍTULO GÊNERO PRODUTOR


Multishow 1. Adorável psicose - 4ª temp. Comédia Goritzia Filmes
2. Adorável psicose - 5ª temp. Comédia Goritzia Filmes
3. Vai que cola Comédia Multishow / Zola
4. De volta pra pista Comédia Multishow / Migdal Filmes
5. Do amor - 2ª temp. Comédia Romântica Fina Flor Filmes
6. Meu passado me Condena - 2ª temp. Comédia Romântica Multishow / Atitude
7. Uma rua sem vergonha Comédia Erótica Multishow / Conspiração

HBO 8. Destino: Rio de Janeiro Drama O2


9. O Negócio Drama HBO / Mixer
Fox 10. Contos do Edgar Terror O2
11. Se eu fosse você Comédia Fox
GNT 12. 3 Teresas Drama Bossa Nova Films
13. As Canalhas Comédia Migdal Filmes
14. Beleza S/A Comédia O2
15. Copa Hotel Comédia Dramática Pródigo Filmes
16. Copa Hotel - 2ª temp. Comédia Dramática Pródigo Filmes
17. Sessão de Terapia - 2ª temp. Drama Moonshot Pictures
18. Surtadas na Ioga Comédia Conspiração

TBS 19. Elmiro Miranda Show - 2ª temp. Comédia ParanoidBR


Sony 20. Agora Sim Comédia Sony Entertainment / Mixer
FX 21. A Vida de Rafinha Bastos - 2ªtemp. Comédia Zepelin
TNT 22. Latitudes Drama Losbragas e House Enter-
tainment

Dados OBITEL

A título de compilação de dados, destacamos a seguir três nuvens de palavras que


oferecem imagens comparativas indicando os canais pagos que mais exibiram ficção
televisiva brasileira (Fig. 3); as empresas produtoras e coprodutoras que mais realizaram
ficção televisiva brasileira (Fig. 4); e os gêneros mais presentes na ficção televisiva
brasileira na TV Paga (Fig. 5) no período de 2007 a 2013.

Figura 2. Canais pagos que mais exibiram ficção televisiva brasileira (2007-2013)

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TV paga e ficção televisiva brasileira: Dados de 2007 a 2013

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Figura 3. Produtores e coprodutores que mais realizaram ficção televisiva brasileira (2007-2013)

Figura 4. Gêneros mais presentes na ficção televisiva brasileira na TV Paga (2007-2013)

O panorama da ficção televisiva brasileira na TV paga do País nos últimos anos


apresentou forte crescimento (Fig. 2) e inúmeras modificações. O que antes se limitava a
esparsas produções de ficção nacional em um ou outro canal, atualmente se multiplica e
se espalha por emissoras nacionais e estrangeiras de maneira ampla. Esse espalhamento
oferece um cenário distinto daquele presente na TV aberta, pois apresenta outras
características como, por exemplo, episódios exibidos diversas vezes em diferentes
horários na grade do canal, episódios diferentes da mesma ficção exibidos no mesmo
dia e, ainda, produções exibidas em mais de um canal em determinado período.

Figura 5. Número de títulos inéditos de ficção televisiva brasileira na TV Paga (2007-2013)

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TV paga e ficção televisiva brasileira: Dados de 2007 a 2013

Ligia Maria Prezia Lemos

A implantação definitiva da lei da TV Paga, o aumento do valor dos incentivos


fiscais, além dos investimentos financeiros na produção brasileira de audiovisual foram
fatores desencadeantes desses processos de crescimento que, ainda, trouxeram reflexos
no sentido de estimular a produção e, consequentemente, a receita das produtoras
independentes, pois até canais internacionais, que anteriormente apresentavam apenas
conteúdo estrangeiro, passaram a exibir produções nacionais em horário nobre. Também
é relevante ressaltar que o espaço da TV Paga revela-se importante em termos de atuação
e experimentação transmídia, que trataremos em próximo trabalho. Nos anos recentes,
a TV Paga brasileira tem estabelecido novos elencos e novos padrões visuais – diferentes
dos conhecidos pelo público das TVs abertas, tornando-se opção e possibilidade de
negócios e de empreendimentos criativos.

REFERÊNCIAS
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Edição nº 768, de 15/10/2013. Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/
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BARROS, B. M. C. de; RICHTER, D. (2013) Empresas transnacionais de mídia x Lei 12.485/11:
o pluralismo e diversidade na promoção do direito à cultura. REDESG / Revista Direitos
Emergentes na Sociedade Global. Universidade Federal de Santa Maria. V. 2, n. 2, jul.dez.
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LEMOS, L.M.P. (2014) Memória e ficção televisiva ibero-americana. Comunicação & Educação.
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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

5357
TV paga e ficção televisiva brasileira: Dados de 2007 a 2013

Ligia Maria Prezia Lemos

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net/. Acesso em fevereiro de 2015.

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5358
Dupla Identidade, o desafio de ser outro
Double Identity: the challenge of being Other

L u i z a L u s va r g h i 1

Resumo: A análise de “Dupla Identidade” (Globo, 2014), criada por Gloria Perez,
integra uma pesquisa que visa estabelecer uma metodologia para estudar os
modos de endereçamento das séries televisivas criminais na América Latina.
Séries televisivas como “Dupla Identidade”, baseada no formato de séries
criminais hollywoodianas, buscam representar não apenas a nação, mas o
regional no mundo global. Narrativas interculturais e transnacionais, essas obras
evitam traços da cultura local, criando um modelo latino-americano padrão que
favorece a exportação de conteúdos ficcionais.
Palavras-Chave: ficção seriada; séries policiais; interculturalismo; transna-
cionalismo; transmidiação.

Abstract: The analysis of “Dupla Identidade” (Double Identity, Globo, 2014),


created by Gloria Perez, is part of a research that aims to establish a methodology
to classify the addressing modes of criminal narrative series in Latin America. TV
series like “Dupla Identidade”, based on hollywoodian crime tv series, represent
not only the nation, but the regional in the global world. These transnational and
intercultural narratives avoid the local cultural traces, creating a standardized
Latin American model that contributes for the exportation of fictional contents.

INTRODUÇÃO

A PARTIR DE 2010, a Globo, influenciada por êxitos como “Cidade de Deus”(2002),


“Carandiru” (2003) e “Tropa de Elite” (2010), a maior bilheteria da história do
cinema nacional, passou a se empenhar na produção de ficção seriada do gênero
policial e de ação, sempre exibido fora do prime time, caso de “Força-Tarefa” (2009-
2011) , “A Teia” (2014) e “O Caçador” (2014). O estilo dessas produções segue a fórmula
das séries estadunidenses, com ênfase no papel das corporações, limites rigidamente
estabelecidos entre o bem e o mal, e busca destacar-se do formato telenovela, adotando
técnicas narrativas cinematográficas. Como ocorre com as demais produções latino-
-americanas do gênero, em geral os policiais enfrentam ainda a corrupção dentro das
corporações e pressões políticas. A mais recente tentativa é “Dupla Identidade”, dirigida
por Mauro Mendonça Filho e Rene Sampaio, exibida entre setembro e dezembro de

1.  Universidade de São Paulo, luiza.lusvarghi@gmail.com

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Dupla Identidade, o desafio de ser outro

Luiza Lusvarghi

2014, com farta promoção na grade e 8 webdocs, disponíveis no serviço de streaming


da emissora, o GShow.
Na verdade, desde 2000, grupos de mídia brasileiros, notadamente a Record e
Globo, vêm investindo na criação de ficção seriada, buscando alternativas ao formato
telenovela e aperfeiçoando, assim, sua competitividade com as emissoras internacio-
nais a cabo. HBO e Fox, por sua vez, apostam cada vez mais em coproduções voltadas
para o mercado latino-americano, com estratégias regionais que envolvem parcerias
com grupos de mídia e produtoras locais. As narrativas criminais fazem parte deste
novo filão realista (LOPES, VILCHES, 2007, pág. 98). No entanto, enquanto a emissora
de Edir Macedo buscava inspiração nos programas da linha de reportagens reality
para a ficção seriada criminal, característica de sua grade voltada para uma linguagem
popular, marcando oposição aberta à Globo, esta se manteve com uma produção em
que referências diretas à violência, drogas e corrupção política eram sempre suavizadas
diante dos conflitos familiares.

OBJETO
A ideia desta comunicação é a de refletir sobre a relação da série “Dupla Identidade”
e a emergência de seriados como “Força-Tarefa” (Globo, 2011-2013), “A Lei e o Crime”
(Record, 2010), que surgem a partir de movimentos de retomada da produção audiovi-
sual na América Latina na década de 90, e sua relação com os processos transnacionais
e interculturais. Se por um lado, eles representam uma nova ordem social e econômica,
de outro também assinalam novas formas de produção e circulação de cultura, em
sistema aberto e a cabo, amparadas por leis de incentivo, coprodução e parcerias com
grupos internacionais, visando o mercado internacional.

QUADRO TEÓRICO
García Canclini (2003, 2005) propõe o termo interculturalidade para definir as rela-
ções entre imaginários e identidades na América Latina. O interculturalismo incluiria
formas de hibridação, de intercâmbio entre as culturas, mescla de formas culturais,
sincretismo religioso, num processo muitas vezes conflitivo. Desta forma, obras feitas
em coprodução por pequenos grupos de mídia local e produtoras independentes, podem
eventualmente se constituir como uma forma de resistência aos grandes grupos globais,
possibilitando o surgimento de uma produção audiovisual regional forte e de qualidade,
e de certa forma, assegurar a diversidade cultural. No entanto, o que se verifica cada
vez mais na América Latina é a presença de grupos como Fox, agora em parceria com
a RCN no Mundo Fox (News Corp), HBO Latin America (Time Warner), e AXN (Sony),
produzindo ficção seriada regional. Grupos de mídia locais, como a Globo, possuem
interesse em exportar produtos, e cada vez mais buscam formatos híbridos, que lhe
permitam ser consumidas internacionalmente. O interculturalismo está presente nessas
obras então não somente como forma de resistência, pois necessita ultrapassar fronteiras
para ser afirmar como produção, mas porque a mescla de formas culturais numa obra
é também uma negociação na produção de sentidos. O conceito de interculturalismo se
contrapõe, naturalmente, ao de multiculturalismo, que aceita as diferenças.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

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Dupla Identidade, o desafio de ser outro

Luiza Lusvarghi

Já o transnacionalismo seria uma espécie de terceira etapa, após a internacionalização


e a globalização, uma nova ordem que reestrutura o local, o nacional e o regional por meio
de novas configurações mediáticas que articulariam corporações, produtos e audiência
(VASSALO DE LOPES, OROZCO, 2012). No caso do Brasil, um país exportador e polo
regional de produção de conteúdos, essa dimensão transnacional não afetaria a relação
cultural com o mercado interno, mesmo porque a tradição televisiva nacional foi sedi-
mentada a partir do modelo implementado pelas agências publicitárias estadunidenses.
Os estudos sobre audiência e segmentação em ambiente de convergência dos meios
que enfatizam a importância de obras que não necessariamente espelham a audiência
massiva são essenciais para entender o surgimento de séries que, aparentemente, não
dão a mesma audiência que as telenovelas (JENKINS, 2006; EVANS, 2011; BRITTOS, 1996;
SANTAELLA, 2004; CARDOSO, 2007), na medida em que dão conta de uma mudança
na forma de consumo da ficção audiovisual. A série “Dupla Identidade” não se destina
ao público de telenovelas, e nem necessita atingir grandes picos de audiência, embora
a presença de Bruno Gagliasso assegure certo atrativo para o telespectador deste tipo
de ficção. Os webdocs, disponíveis apenas no serviço de streaming, exercem a dupla
função de contribuir para garantir verossimilhança à narrativa, mas também de atrair
um público mais jovem, acostumado à linguagem da era web. A utilização de compo-
sições de rock cantadas em inglês por um grupo que possui inserrção internacional,
são também importantes dados a serem avaliados nesta produção. Desde 2001, a Globo
vinha se empenhando em trabalhar com o conceito de temporadas, com “A Grande
Família”. Ou seja, trata-se da diversificação de produção de conteúdos audiovisuais,
para aperfeiçoar sua competitividade no mercado externo, e no interno, que já vinha se
evidenciando desde a criação da Globo Filmes, em 1998. Novos players como os canais
de televisão paga, e a expansão de sites de conteúdo na web, acabaram por intensificar
essa demanda.
O papel da televisão como articulador desse novo modelo de negócios e como
produtor de sentidos, aliado às redes sociais, telefonia, web é fundamental (BENDASSOLI,
2009). O impacto se faz sentir no mundo inteiro, e favorece a regionalização da produção,
a segmentação, pois com o mundo conectado os trabalhos com nichos se agiliza, e a
individualização do consumo, que cada vez mais passa a ser operado em múltiplas telas.
1) Primeiro, nas indústrias criativas a criatividade é o elemento central, sendo
percebida como necessária para a geração de propriedade intelectual.
2) Segundo, observa-se que a cultura é tratada na forma de objetos culturais. Esses
objetos são definidos pela carga dos sentidos socialmente compartilhados que
carregam, derivando seu valor de tal carga.
As indústrias criativas transformam esses significados em propriedade intelectual e,
portanto, em valor econômico. Essa ideia repousa em duas premissas. A primeira é que as
cadeias produtivas imateriais (NEGRI e LAZZARATTO, 2001) predominam, em termos
de relevância econômica, em um contexto pós-industrial marcado pela preponderância
do setor de serviços e da economia de signo. A segunda premissa é que o consumo
de símbolos ou significados prevalece sobre o consumo de bens materiais, tais como
eram produzidos e consumidos na sociedade industrial (BOLIN, 2005; BLYTHE, 2001;
HARTLEY, 2005; LAWRENCE e PHILLIPS, 2002).

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Dupla Identidade, o desafio de ser outro

Luiza Lusvarghi

Os novos modelos de negócios do mercado audiovisual, voltados não somente


para a televisão aberta, mas também pela televisão paga e pela web, vem gerando
novas formas de relacionamento com a audiência, e incrementando noções de audiência
acumulada (CANNITO, 2010). No Brasil, a televisão aberta concentra mais da metade
dos investimentos, registrando em 2013 aumento de 18% em relação a 2012. Já no caso
da TV paga o “sucesso comercial” está ligado à escolha da programação adquirida
pelo assinante. É a forma de entrar em contato com os desejos do espectador. O caso
da CNN é clássico. Embora o índice de audiência não ultrapasse o 0,5% desde 1980, nos
EUA, todos querem tê-la no pacote. É o que até hoje garante ao canal uma audiência
cumulativa, que é a forma como as pessoas assistem ao canal ao longo do tempo (Project
for excellence in journalism), a CNN tem 100% de audiência somada, todos assistem
em algum momento.

METODOLOGIA
A análise da série “Dupla Identidade” integra uma pesquisa que visa estabelecer
uma metodologia de trabalho para estudar o processo de comunicação transmidiática
em seus aspectos teóricos aplicados à questão transnacional e intercultural na produção
cultural da América Latina por meio da análise dos modos de endereçamento e do
conteúdo das séries televisivas criminais, policiais e de ação. No levantamento inicial,
foram identificados, quanto à temática, dois grandes modelos:
1 – O modelo estadunidense clássico, realista, semidocumental, com narrativa
centrada na solução dos casos, e não na vida dos personagens, com uma visão que de
modo geral enaltece o papel da polícia como corporação que combate o crime e promove
a segurança e a consolidação da cidadania;
2 – Crítica social, de inspiração noir, em que o personagem principal deve romper
com o bem, para poder combater o mal. O protagonista não é necessariamente policial,
ele personifica com frequência o “marginal romântico”.
Com relação ao formato e à estrutura narrativa, existem dois tipos predominantes:
1 – Estrutura híbrida, com elementos da narrativa policial e detetivesca clássicas,
porém aliadas à estrutura de melodrama da telenovela, caso das narcosséries, mas
também de minisséries.
2- Formato estadunidense. Temporadas, com arco dramático definido, com uma
historia fechada, e temporadas de 12, 13 episódios.
A série “Dupla Identidade” se inscreve claramente no primeiro modelo, e adota o
formato estadunidense e hollywoodiano, o mais popularizado no Brasil.

ANÁLISE
O maior desafio da rede em sinal aberto é conciliar classificação de censura a temas
mais adultos, seu público menos intelectualizado, possíveis anunciantes, e conquistar
ainda assim a crítica especializada. De todas as tentativas anteriores, sem dúvida o
projeto mais ambicioso é “Dupla Identidade” (2014). O título deste artigo, e um de seus
principais problemas, tem como referência a famosa frase de Paulo Emilio Salles Gomes
(1980), em seu ensaio sobre a produção cinematográfica nacional:

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Dupla Identidade, o desafio de ser outro

Luiza Lusvarghi

Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original, nada
nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na
dialética rarefeita entre o não ser e ser outro. O filme brasileiro participa do mecanismo e o
altera através da nossa incompetência criativa em copiar (SALLES GOMES, Paulo Emilio,
1980, pag. 77).

Ou seja, a produção brasileira nunca teve uma originalidade básica em relação


ao Ocidente, como ocorreu com hindus, iranianos e chineses, por exemplo. O traço
principal do estilo narrativo dessas séries, dentre as quais “Dupla Identidade” se inclui,
é o alinhamento à narrativa estruturada de acordo com o padrão estadunidense de
ficção seriada policial. As maiores críticas que enfrentam são justamente a de reproduzir
clichês. Nossas séries policiais devem colocar em cena protagonistas que espelham
os anseios por uma nova ordem na corporação policial civil local, sem se esquivar do
tratamento de temas realistas e violentos que caracterizam esse tipo de narrativa, e que,
costumeiramente, estão ausentes das telenovelas.
O projeto de “Dupla Identidade” (Globo, 2014) foi o primeiro gravado com tecnologia
4K, para uma melhor definição em HD, e conta com o suporte de 8 Webdocs produzidos
especialmente para a plataforma de streaming da emissora, o GShow. Como todos os
projetos da autora Gloria Perez, conta com um blog que ela alimenta com discussões
e pesquisas sobre o tema. Não é pretensão do projeto, segundo a autora, criar uma
campanha sobre serial killers .
Ambos, documentário e série, tentam dar conta da ausência do tema psicopatas
e serial killers na dramaturgia brasileira, e na crônica policial, reafirmando a
“autenticidade” da trama. Na verdade, existem diversos casos registrados pela polícia
brasileira, como o do Maníaco do Parque, “Chico Picadinho” (Francisco da Costa Rocha),
mas faltam condições de investigação, essa é questão defendida pelo conteúdo exibido.
A argumentação, endossada pela autora, por Ilana Casoy, especialista em criminologia,
e por Rodrigo Oliveira, coordenador do CORE (Coordenadoria de Recursos Especiais) ,
é a de que eles provavelmente nunca foram identificados. A maioria dos casos relatados
são sempre estadunidenses, como BTK (Dennis Rader), ou Ted Bundy.
A primeira temporada teve direção de Mauro Mendonça Filho e do brasiliense René
Sampaio, em sua primeira experiência fora do cinema, onde dirigiu “Faroeste Caboclo”
(2013, Brasil), baseado na música homônima de Renato Russo, do grupo de rock Legião
Urbana. A excelente trilha sonora da série, em que predomina o rock metal, a cargo
de Andreas Kisser, do Sepultura, contribuiu para ambientar o espectador no mundo
sombrio de Edu e colher elogios da crítica. A música principal, “Two-Faced Mask”, soa
como uma balada, mas “Devil in Disguise”, que revela a verdadeira face de Edu, é mais
pesada. A vinheta da série sugere uma estética de videoclipe. Nas cenas, a música cria
clima e traz mais suspense e identidade à trama.
O rock como trilha é um traço recorrente nas produções do gênero estadunidenses,
como podemos conferir na franquia CSI (The Who) e seus spin offs, “Dexter” (Showtime,
2006-2013) e na vasta cinematografia sobre psicopatas e suspense, que inclui desde
“Assassinos por Natureza” (Natural Born Killers, USA, 1994), de Oliver Stone, até o
recente “Garota Exemplar” (Gone Girl, 2014), de David Fincher, com trilha de Trent

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Dupla Identidade, o desafio de ser outro

Luiza Lusvarghi

Reznor, do Nine Inch Nails. Já os clássicos noir sempre elegeram o jazz como matéria-
prima. A trilha concorre não apenas para forjar um clima de suspense macabro à série,
mas também para a sua internacionalização, porque cria empatia com a audiência.
Outras séries policiais da emissora também recorreram ao rock, como “A Teia” (Globo,
2014), que tinha abertura ao som de “Smells like teen´s Spirit”, do Nirvana. A sinopse
da série fala da história de um jovem estudante de Psicologia e Direito, Edu (Marcelo
Gagliasso), com aspirações políticas, que se torna assessor de um candidato a senador,
Oto Veiga (Aderbal Freire Filho). Polivalente, Edu ainda presta serviços voluntários em
um serviço de atendimento telefônico a vítimas de depressão e suicidas. Completa o time
de personagens o delegado Dias (Marcello Novaes), representando a postura tradicional
da polícia local, e a psicóloga forense Vera Muller (Luana Piovani), ex- namorada de Dias,
que vem de um estágio no FBI, para ajudar nas investigações a fim de traçar um perfil
do criminoso. Vera personifica a nova imagem da corporação local. Eduardo também
mantém um relacionamento com Ray (Débora Falabella), uma mãe solteira, borderline
cujos transtornos de humor a levam a se automutilar com frequência.
A técnica do chiaroscuro, celebrizada por filmes noir, se faz notar logo na cena de
assassinato do primeiro episódio, estratagema usado por cineastas daquele período
nos filmes em PB, mas também em technicolor, como provou o mestre Hitchcock em
“Festim Diabólico” (Rope, 1948). A iluminação é coadjuvante nas cenas. Quando Edu
entra no quarto da namorada com todo o aparato que costuma levar para executar seus
crimes, e a câmera se fixa em seus olhos azuis que observam Ray dormindo, temos a
certeza de que chegou a vez dela. No entanto, a conclusão da cena, vista ao final do
episódio 9, exibido a 21 de novembro de 2014, fica para o próximo episódio. A cena de
Edu abrindo os braços para a Guanabara, com o Cristo de fundo, já deve figurar como
antológica na televisão.
O modelo narrativo adotado foi o formato de temporadas, no caso com 13 episódios,
com arco dramático definido, e que começa com um crime, uma convenção do gênero.
As séries que adotam esse formato trabalham tanto com blocos narrando um caso a cada
episódio – foi assim em “Força-Tarefa” (2009-2011) –, quanto com o estilo minissérie, caso
de “A Teia”, “O Caçador”, e “Dupla Identidade”. A série foi criada por uma das autoras
mais bem-sucedidas da linha de merchandising social nas telenovelas, Gloria Perez,
posto que divide com o autor Manoel Carlos.

RESULTADOS INICIAIS
Séries televisivas como “Dupla Identidade” não objetivam representar apenas a
nação, como ocorreu com as primeiras telenovelas (LOPES, ), mas o mundo global, e os
conflitos decorrentes da urbanização do mundo. Trata-se de um produto intercultural.
O final da série, com a descoberta de que Edu tem dupla cidadania, e já havia cometido
crimes nos EUA, acentua ainda mais esse caráter. A imagem do serial killer em uma
cadeira elétrica reforça o “parentesco” da narrativa e de seu personagem principal com
a televisão e o cinema hollywoodiano.
Ao criar narrativas interculturais e transnacionais, que mesclam formatos já con-
sagrados mundialmente de um gênero, a práticas culturais e um contexto regional,
essas obras se afastam, premeditadamente, de traços de identidade cultural local, e

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Dupla Identidade, o desafio de ser outro

Luiza Lusvarghi

acabam criando um modelo latino-americano estandardizado que favorece a exportação


de conteúdos. Essa estandardização inclui um sotaque hispânico transnacional, sem
expressões regionais, e coproduções com atores e equipes de diferentes nacionalidades
dentro da América Latina. A aceitação dessas séries por parte da crítica especializada
está longe de ser uma unanimidade. Mas a série “Epitáfios”, da HBO, abriu esse prece-
dente ao estrear já em 2005, e foi um sucesso na Europa e nos Estados Unidos. Agora é
a vez da Netflix com Narcos, dirigido por José Padilha e estrelado por Wagner Moura,
no papel de Pablo Escobar, série rodada na Colômbia em espanhol, e da produção “El
Hipnotizador”, dirigida por José Eduardo Belmonte, com atores argentinos, brasileiros
e uruguaios.
Dentro deste contexto, “Dupla Identidade” parece ser uma produção à moda antiga.
O modelo de produção que prevalece no Brasil ainda é o da televisão aberta (Cannito,
2010). Em ficção dramatúrgica e cinema, a Globo é a grande referência, e seu modelo
inclui a produção e distribuição do produto audiovisual, o que não exclui, eventualmente,
a participação das chamadas produtoras independentes como a O2 e a Conspiração, em
sistema de coprodução, mas não está ainda centrado nelas. “Dupla Identidade” ratifica o
modelo da produção própria para televisão aberta, focado no anunciante e na audiência
massiva (Cannito, 2010). Entretanto, às vésperas do apagão analógico, previsto para o
final de 2015, que gradativamente irá expulsar alguns milhares de telespectadores dos
ratings de audiência, a preocupação em abrir outros caminhos é evidente. A série foi
a primeira realizada em ultra definição (4K) em uma das mais famosas feiras, a The
National Association of Television Program Executives (NATPE), realizada em Miami,
Florida, no início do ano.
O modelo em ascensão é o da televisão paga, que está mais preocupada com o
número de pacotes que vende, e com índices de audiência cumulada, do que com milha-
res de pessoas que assistem a um determinado programa da grade. As plataformas de
streaming, muito mais baratas do que a televisão a cabo, oferecem conteúdos locais e
estrangeiros a módicas mensalidades que não ultrapassam os R$ 15. Recentemente, o
You Tube voltou a exibir os produtos da Globo.

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Dupla Identidade, o desafio de ser outro

Luiza Lusvarghi

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5366
“Virou um cult!”: usos do conceito e
a validade do senso comum
“It’s a cult!”: uses of the concept and
the validity of common sense
Cl arice Greco1

Resumo: Este trabalho reflete sobre o uso do termo “cult” em relação à ficção
televisiva no cotidiano brasileiro. Seu objetivo é compreender como o uso do
termo cult em relação à ficção televisiva no senso comum pode contribuir para
uma teoria sobre a TV cult no Brasil. O artigo utiliza como quadro teórico
principal os estudos de Eco (1985), Pearson (2002) e Hills (2010) sobre o conceito
de TV cult. A metodologia do trabalho se baseia na análise de blogs brasileiros
que se propõem a discutir assuntos associados à noção de cult. O artigo analisará
os posts sobre ficção televisiva (nacional e internacional). A partir dessa análise,
o trabalho busca propor como seria possível incorporar esses usos a pesquisas
teóricas sobre o conceito de “TV cult” no contexto brasileiro.
Palavras-Chave: TV cult. Ficção Televisiva. Estudos de fãs. Senso comum.

Abstract: This paper draws a reflection over the expression “cult” related to
television fiction and its uses in everyday life. The aim is to understand how the
uses of the term in common sense can contribute to a theory about cult television
in Brazil. The main theoretical overview is on the studies of Eco (1985), Pearson
(2002) and Hills (2010) on the notion of cult TV. The methodology relies on the
analysis of Brazilian blogs that intend to discuss subjects related to the notion of
cult. It will analyze posts about national and international television fiction. From
that analysis, the paper tries to propose how it is possible to incorporate those
uses to theoretical researches on the concept of “cult TV” in Brazilian context.
Keywords: cult TV. Television Fiction. Fan studies. Common Sense.

INTRODUÇÃO

N O DIA a dia é comum fazermos uso de diversas expressões, com pouco ques-
tionamento sobre suas origens e sem investigação científica. Essas noções são
também chamadas de senso comum. No campo das ciências sociais aplicadas,
cabe aos pesquisadores questionar essas expressões e compreender seus usos.
Em relação à televisão e à ficção televisiva, pautas constantes na mídia, nas rodas
de conversa e nas redes sociais, entre os termos utilizados encontra-se o ‘cult’. Apesar da
existência de teorias sobre a TV cult, elas se concentram nos usos do termo na realidade

1.  Doutoranda em Ciências da Comunicação na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São


Paulo (ECA/USP). Bolsista FAPESP, Processo n. 2012/05000-6. Email: claricegreco@gmail.com.

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“Virou um cult!”: usos do conceito e a validade do senso comum

Clarice Greco

da Europa (especialmente Inglaterra) e Estados Unidos. O Brasil carece, ainda, de uma


compreensão de seu uso no contexto nacional.
Por esse motivo, este artigo volta o olhar ao que tem sido dito em relação ao conceito
de cult, por meio de blogs ou sites que utilizam o termo em seus títulos. A análise dos
posts demonstra que a expressão é, também no Brasil, utilizada de forma abrangente,
mas mostra igualmente que esses usos são extremamente importantes para iniciarmos
uma compreensão do que seria a TV cult nacional.

TEORIAS SOBRE A TV CULT:


A expressão TV cult tem estado cada vez mais presente nos debates acadêmicos
sobre a televisão na última década. Como vários outros conceitos do campo, a discussão
é sempre polêmica, com vertentes que se complementam ou discordam entre si. Teorias
mais recentes chegam a defender que sempre haverá debate em torno de cada programa,
com alguns concordando ser cult, e outros a refutar a classificação.
No entanto, alguns programas internacionais são unânimes entre os debates teó-
ricos. Séries como Star Trek, Arquivo X, Doctor Who e Twin Peaks foram consagradas
com o status cult. Mas o que essas séries têm em comum? De acordo com a teoria
interacional, Pearson (2010) sugere basicamente três elementos caracterizam um pro-
grama cult. O primeiro é relacionado ao texto ou à produção; programas que trazem
conteúdo polêmico, como sexo ou violência, ou apresentem imagem e abordagem
estética inovadora – como o caso de Twin Peaks de David Lynch. Nesse caso a expres-
são se comporta como a denominar um gênero televisivo. A análise desse tipo de cult
aproxima-se da semiótica, como faz ECO (1985) em seu ensaio sobre Casablanca. Ainda
do ponto de vista da produção, no cinema, muitas vezes são considerados cult filmes
de baixo orçamento, os chamados “filmes B”. Jancovich e Hunt (2004) mencionam, com
ressalvas, essa característica comumente associada à natureza do cult, de que “não é
pra qualquer um”.
O segundo elemento seria o apelo nostálgico, relativo à noção de clássico. Refere-
se a programas que marcam a história da televisão e causam sentimento de nostalgia
quando mencionados, como I Love Lucy. Esse elemento, no Brasil, teria forte raiz na
cultura televisiva nacional, por representar uma narrativa da nação (Lopes, 2003) e por
criar uma atmosfera de pertencimento nacional por meio da ficção. É o caso de repri-
ses, produções que voltam ao ar depois de anos e ainda angariam público. A cultura
norte-americana de reprodução é bem trabalhada por Kompare (2005), que mostra com
detalhes históricos como a televisão estadunidense se desenvolveu com base em uma
cultura da reprodução, com grande espaço a reprises e remakes. Essa característica
pode ser aplicada ao Brasil, pois se aproxima da cultura e do modelo norte-americano
de televisão e sustenta o sentimento de nostalgia por determinados programas.
A terceira, e talvez principal, característica de um programa cult é o engajamento
do público. Na maioria das vezes, um programa é considerado cult quando conquista
um nicho de público que forma uma audiência fiel, ou seja, se tornam fãs. Esses fãs são
responsáveis, em maior ou menor grau, por assegurar a exibição ou a memória desses
programas, motivando um sentimento de nostalgia. São eles também quem asseguram

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

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“Virou um cult!”: usos do conceito e a validade do senso comum

Clarice Greco

a raridade e o valor do filme ou programa, prestam culto às ficções televisivas, como é


o caso dos mais citados – os cults dos cults – Star Trek e Doctor Who.
Essas três abordagens são as mais comumente citadas para definir o conceito. Ainda
assim, programas como Friends ou Grey’s Anatomy incitam debates a respeito do mereci-
mento ou não do status. Isso porque a principal divergência teórica consiste na batalha
cult x mainstream. Poderia o cult ser popular?
No Brasil, as telenovelas e séries não apenas são populares como apresentam fortes
traços do melodrama, portanto distanciando-se, inicialmente, das definições mais utili-
zadas no cenário internacional. Porém enquanto alguns autores se mostravam descrentes
com a relação entre cult e popular, surgem estudos que defendem a associação e criticam
a distinção entre os conceitos, como Hills (2002) e Jancovich e Hunt (2010).
As primeiras definições do cult supunham um público fiel em comunidades for-
mais, com hierarquia entre os “verdadeiros fãs”, tidos como uma raça pura e afastada do
mainstream. Jancovich e Hunt (2010) veem um problema nisso, pois essa ideia pressupõe
uma TV cult não definida pelo conteúdo, mas pelos modos como são apropriados por
grupos específicos e pelo grau de distância que se encontram do grande público. Os
autores consideram essa classificação tão incoerente quanto o processo de distinção que
cria o antagonismo entre o cult e o popular. A abordagem fenomenológica, defendida
por Jancovich e Hunt (2010), vai, então, analisar o contexto em vez do texto, com foco na
crescente variedade de fãs e formas de engajamento. Sobre o grande arco de significados,
Le Guern defende que o termo cult
pode indicar uma gama heterogênea de audiências: uma cultura do fã de audiência segmen-
tada ou especializada, afinidades geracionais ou cultura jovem [...], ou o interesse de uma
audiência de massa que adquire o aspecto de um fenômeno social, como o filme Titanic. Em
uso comum, o termo “cult” tem aplicação ainda mais ampla e se refere a um repertório ritual
comum; o fusca da Volkswagen, a mobilete Solex e o Citroen 2CV são descritos como “objetos
cult” porque evocam nostalgia por um repertório cultural comum.” (LE GUERN, 2004, p. 3)

Segundo o autor, em cada um desses exemplos as relações com os textos parecem


compor uma verdadeira interação sociocultural, pois refletem aspirações ou reivindica-
ções de identidade: eles unem membros de uma mesma geração em torno de um estilo
de vida comum, traduzem as estratégias de posição e oposição e expressam preferências
culturais. É neste sentido que atuam algumas telenovelas brasileiras: representam um
repertório cultural comum e, quando rememoradas, trazem o sentimento de nostalgia
por uma vivência compartilhada.
Por essa abordagem a análise do contexto brasileiro será o ponto mais importante
para a definição de cult nacional. Faz-se necessário, portanto, compreender e por vezes
questionar alguns aspectos que aproximam um programa televisivo das noções de cult
de acordo com a teoria internacional. O olhar cuidadoso mostrará ser possível adaptar
essas noções a contexto e público brasileiro e investigar como elas se apresentam nas
ficções nacionais.
A abordagem do cult repertório cultural compartilhado sugere que a melhor forma
de investigar os programas no País são por meio da própria audiência. Assim, o caminho

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

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“Virou um cult!”: usos do conceito e a validade do senso comum

Clarice Greco

metodológico deste artigo baseia-se na compreensão do que já existe em relação ao cult,


isto é, o senso comum. Como prega Bachelard (1972) a pesquisa empírica representa
uma forma de ruptura epistemológica entre a ciência e o senso comum. Trata-se, para
Lopes (2010) de reduzir a distância entre o poder simbólico e cultural dos especialistas
e dos leigos, por meio da construção do “investigador coletivo”, que não exclui o senso
comum do campo científico, mas o relativiza na pesquisa empírica. Martins (1998) fala
da importância do conhecimento de senso comum na vida cotidiana:
Se a vida de todo o dia se tornou o refúgio dos céticos, tornou-se igualmente o ponto de
referência das novas esperanças da sociedade. O novo herói da vida é o homem comum
imerso no cotidiano. É que no pequeno mundo de todos os dias está também o tempo e o
lugar da eficácia das vontades individuais, daquilo que faz a força da sociedade civil, dos
movimentos sociais. (MARTINS, 1998, p.2)

Para o presente trabalho, a reflexão sobre o conceito será voltada ao campo onde o
termo é utilizado, para pensar uma teoria brasileira de televisão cult a partir da investi-
gação dos significados da expressão em uso cotidiano. A abordagem parte do princípio
de que “O senso comum é comum não porque seja banal ou mero e exterior conheci-
mento. Mas porque é conhecimento compartilhado entre os sujeitos da relação social”
(MARTINS, 1998, p.3).
O saber compartilhado é indicativo da existência de sementes que podem germinar
conhecimentos sobre as práticas sociais. Se no Brasil o termo cult aparece com certa
frequência nas falas e nas redes, é merecedor de atenção por parte da academia. Se a
teoria concentrada na Europa é obscura, difusa e, por consequência, de difícil aplicação
a outro país em outro contexto, as especificidades da conjuntura nacional podem ser
a base da reflexão. Apenas por causa de divergências entre as teorias hegemônicas do
norte ocidental e a prática televisiva brasileira, não é suficiente refutar a existência de
uma TV cult nacional.

O TERMO CULT NO COTIDIANO (GÍRIA OU SIGNIFICAÇÃO?)


A palavra cult, no dia a dia, adquire diversos significados. Algo fácil de notar a
partir da simples pesquisa pela palavra em redes sociais. Em ferramenta de busca para
o Twitter, algumas frases destacadas a seguir mostram o tipo de uso no senso comum. O
Twitter foi escolhido por ter como característica frases curtas, a expressarem opiniões em
poucas palavras. Assim é possível uma visão da expressão por pessoas que conversam
sem problematização dos conceitos, mas atribuem sentido a elas.

as construções teórico-interpretativas, dependentes de um trabalho de conceituação cien-


tífica, não podem opor-se às construções interpretativas comuns dos atores sociais, pois
estas últimas (as construções simbólicas “locais”) funcionam como indicadores de postu-
lados teóricos mais abstratos que permitem comparar e sistematizar conhecimentos sobre
diferentes contextos sociais (LOPES, 2010, p. 38)

No Twitter as opiniões são emitidas grande parte das vezes de forma simplificada.
A pensar nos atores sociais, graus de reflexividade e níveis de especialização sobre uma

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“Virou um cult!”: usos do conceito e a validade do senso comum

Clarice Greco

teoria ou um conceito, a plataforma traz frases que ilustram um ou mais tipos de pen-
samentos em torno do problema de pesquisa deste artigo. Porém, aqui será considerado
exemplo de saberes comuns com menor grau de reflexividade. Em seguida, a análise
do uso do termo de forma semi-especializada e com intenções menos amplas se dará
com base em websites de conteúdo cultural.
A busca pela palavra-chave “cult” no Twitter mostra diversos tipos de resultados.
Muitos são em referência a veículos ou programas que levam o termo, como Telecine
Cult, Revista Cult ou Ponto Cult. Retirados esses resultados, pois o foco do artigo não
é o sentido de marca, a maioria dos resultados mostra a palavra relacionada à visão de
cult como algo ‘para poucos’, distante do popular. Por consequência, até mesmo pessoas
são chamadas de cult, denotando alguém que tem preferências não populares, frequen-
ta lugares e desfruta produtos culturais ‘diferenciados’ – associados à distinção entre
alta e baixa cultura, representação de uma suposta elite intelectual. Por isso, o termo
algumas vezes aparece em tom pejorativo, em relação a alguém metido a cult, ou metido
a intelectual, pedante. Exemplos de tweets nessa linha são:2

“Todo mundo já entendeu que vc lê. Que vc é “inteligente”, que vc é “cult”, q vc é “cool”
(rs). Não precisa gritar!”

“Das coisas mais feias do nosso mundo, eu destaco aqueles que pagam de Cult”

“Tem cada medido a pseudo diretorzinho cult na minha sala que olha...”

Nesses casos a noção de cult tem a função de gíria, expressão que carrega um
entendimento popular, sem muita reflexão sobre o que está sendo dito. Os exemplos
evidenciam ainda, de forma direta ou por uso de ironia, uma crítica à distinção entre
cult e popular. A partir do momento em que considera a postura de diferenciação “das
coisas mais feias do mundo”, a fala conota discordância com essa separação.
Essa mesma crítica é vista de forma mais clara no exemplo:
“Adoro esse povo cult que se retira de frente da tv quando começa o bbb”.

Aqui existe claramente a distinção entre o cult como avesso ao popular, ao que não
tem validade artística. O “bbb”, referente ao programa Big Brother Brasil, é considerado
por muitos uma atração popular e populesca, com pouca ou nenhuma contribuição
social e cultural. Outro exemplo se aproxima um pouco mais da convivência entre os
opostos cult x popular:
“sempre paro tudo que to fazendo quando tem uma comedia romântica passando na tv,
pois não é só de filme cult que se vive uma pessoa”.

Nesse caso, ainda coloca-se a oposição entre a comédia romântica – popular, narrativa
simples, distante da noção de qualidade cinematográfica por parte da maioria dos
teóricos do cinema– e os filmes cult – aqui referido como gênero. Mas a frase sugere uma

2.  Pesquisa realizada pela ferramenta Topsy, palavra-chave “cult” e “TV cult”, no dia 18.03.2015.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

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“Virou um cult!”: usos do conceito e a validade do senso comum

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convivência entre os dois gêneros, como se defendendo que é possível – e até saudável
– beber de ambas as fontes culturais. Coloca ambas as formas culturais como passíveis
de serem consumidas sem que isso incorra em problema de identidade, entretanto
ainda aponta diferença entre elas. Outro tipo de comentário reflete um pensamento
que, mais do que sugerir ser possível usufruir tanto de produtos de “alta” quanto de
“baixa” cultura, questiona essa distinção:
“como se filmes e programas de TV fossem “menos cult” ou qualquer rótulo assim”.

Esse comentário mostra outro tipo de crítica à distinção cultural. Insinua que
programas de TV não são ‘menos cult’ – imagina-se que em referência a produtos como
livros ou teatro. Esse pensamento mostra-se mais crítico e menos conservador, em acordo
com uma possível teoria brasileira do cult. Contudo, ainda utiliza a palavra a partir do
estereótipo da distinção.
O último tipo de comentário aborda a palavra-chave no sentido mais próximo
daquele usado nas teorias de TV cult, ligado ao afeto e ao repertório compartilhado,
que traz nostalgia. A memória afetiva refere-se àquilo que marcou a história do país,
no caso, da televisão.
“É o mínimo q posso fazer, PH! Vc e o Top Tv estão na memória afetiva cult do país.”

Nota-se, nos comentários do Twitter, três principais visões sobre o conceito. A


primeira seria aquela carregada de preconceito, que afasta o que seria cult do que é
popular; a segunda abordagem aplica visão crítica a essa ideia de distinção, mas ainda
sugerindo que ela existe; e por fim, um uso em que a noção é utilizada em referência
à memória e à história cultural, com base em repertório comum compartilhado pelo
público brasileiro. As duas primeiras visões corroboram o principal obstáculo para uma
construção da teoria no país: o preconceito contra os programas brasileiros, enquanto o
terceiro enfoque representa a principal base de uma discussão madura sobre a opinião
crítica do público. Traços semelhantes são notados em websites de temas culturais.

CONTEÚDO CULTURAL DOS WEBSITES


Vários sites ou blogs, com produção de conteúdo do interesse do autor, podem ajudar
como ponto de partida para a discussão aqui proposta. São sites que compartilham
informações e opiniões sobre programação cultural e levam no título a palavra cult. A
análise não tem a intenção de insinuar que o conteúdo dos sites define o que é ou não
cult. O objetivo da investigação é realçar a frequência de uso do termo para reforçar a
existência de um pensamento sobre programas cult no Brasil. Se a teoria europeia é de
difícil aplicação, isso não significa que o debate não é importante no País. A simples
existência de usos da expressão em referência a programas televisivos confirma a
relevância de uma reflexão voltada ao cenário nacional. O objetivo é investigar como a
expressão tem sido aplicada e em qual contexto.
Seis sites foram selecionados para análise:

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“Virou um cult!”: usos do conceito e a validade do senso comum

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1. Cult Pop Show3


2. Cult Flow4
3. Miscelânia Cult5
4. Cult em Dobro6
5. Seja Cult7
6. Conversa Cult8

Todos apresentam conteúdo diversificado, não especificamente sobre uma mídia


ou programação cultural. Além de televisão, trazem posts sobre cinema, música, teatro,
quadrinhos, animes e mangás. Alguns blogs são mais opinativos, com intenção de
compartilhar gostos, enquanto outros têm postura mais voltada à divulgação.
O recorte dentro dos blogs e sites baseou-se na seleção de posts em relação à TV.
Na maioria dos casos, apresentam uma seção sobre o assunto TV. As exceções são o
Cult em Dobro, com seções temáticas como ‘seção nostalgia’, ‘indicações dela’, ou ‘Top 5,
tendo sido portanto avaliado em todo o seu conteúdo; o Seja Cult, no qual houve busca
pela palavra-chave ‘televisão’; e Conversa Cult, em que foram analisados os posts da
seção ‘crítica de séries’. A fim de introduzir o tipo de abordagem, um panorama geral
quantitativo mostra a relação entre posts sobre televisão nacional e internacional.

Tabela 1. Número de posts por site ou blog

No de posts sobre
Blog Programas mencionados Ficções mencionadas
séries ou TV
    Brasileiros Internacionais Brasileiras Internacionais
Cult Pop Show 14 0 16 0 11
Cult Flow 108 99 9 3 4
Miscelânia Cult 31 22 11 3* 8
Cult em Dobro 58 11 55 5 4
Seja Cult 7 0 7 0 7
Conversa Cult 9 2 6 1 4

Como já dito, o conteúdo na internet representa normalmente a opinião e os


interesses do autor. Nota-se pela Tabela 1 a grande diferença na quantidade de posts
analisados. Todos os sites são ativos e atualizados com frequência, a discrepância
apontada na Tabela 1 ilustra a atividade do site em relação ao tema TV. No caso, Cult
Flow, Cult em Dobro e Miscelânia Cult são os que mais falam sobre televisão. O segundo
ponto a chamar atenção é a relação de número de posts sobre programas nacionais e
internacionais. Importante ressaltar que os números dizem respeito aos programas

3.  <http://cultpopshow.com.br>.
4.  <http://www.cultflow.com>.
5.  <http://miscelaneacult.wordpress.com>.
6.  <http://www.cultemdobro.com>.
7.  <http://www.seja-cult.com/>.
8.  <http://www.conversacult.com.br/>.
* A série mexicana Chaves foi contabilizada como nacional por ter um grande grupo de fãs brasileiros, além
de ser latino-americana, em contraposição à maioria das séries internacionais citadas ser norte-americana.

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“Virou um cult!”: usos do conceito e a validade do senso comum

Clarice Greco

mencionados, não ao número de posts. Isso significa que o mesmo post pode mencionar
mais de um programa, portanto a soma entre as menções internacionais e nacionais não
necessariamente totaliza o número de posts. A proporção na origem dos programas
citados é mais facilmente visualizada na Figura 1.

Nacional
Internacional

Figura 1. Post sobre programas nacionais ou internacionais

A Figura 1 mostra que os sites Cult Pop Show e Seja Cult apresentam apenas posts
sobre programas internacionais. Se o conteúdo do site representa interesse pessoal,
o fato sugere menor empenho pelos programas nacionais. Por outro lado, quatro dos
seis sites comentam conteúdos nacionais, e ao menos uma ficção. Essa é a primeira
característica relevante para análise: apesar de os olhares serem voltados majoritariamente
à programação estrangeira exibida no Brasil, mais da metade dos autores dos sites
consideram a televisão brasileira no cenário cultural. Em outras palavras, esse quadro
sugere que a noção de cult possa ser mais associada a programas internacionais, mas
não desconsidera a ficção brasileira no debate.
Voltando o olhar para o conteúdo, é interessante notar que os programas citados são
bem variados: de ficção a programas de música, passando por programas de entrevistas.
Cult Flow, apesar do título em inglês, é o site com maior número de posts e também o
que mais apresenta conteúdo nacional, seguido por Miscelânia Cult. A postura do site
Cult Flow é mais informativa, menos opinativa. Dos 108 posts na seção TV, dos quais 99
são sobre programas brasileiros, cita apenas três séries de ficção nacional: Surtadas na
Yoga (GNT, 2013-2014), Sessão de Terapia (GNT, 2012-2013), e Detetives do Prédio Azul (Gloob,
2011-2015), esta última citada em quatro posts. Os outros programas são de música,
de entrevistas, de auditório, e séries documentais de aventura (como voltados a surf
ou skate). Há também um post sobre um especial do canal Multishow, um programa
musical que apresentou músicas que marcaram as novelas nos anos 1980. Apenas nove

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“Virou um cult!”: usos do conceito e a validade do senso comum

Clarice Greco

entre os 108 posts (8,3%) são sobre programas internacionais, quatro deles séries de
ficção: Weeds, Breaking Bad, American Horror Story e Sadie J. Cult Flow é, portanto, o site
com maior atividade em TV e, em grande maioria, televisão nacional. Apenas a ficção
tem pouca participação no conteúdo e, quando aparece, são séries. A única referência a
telenovelas foi o programa sobre trilha sonora, indicando que as músicas das telenovelas
são parte marcante de sua história cultural.
O segundo site com maior participação de conteúdo nacional é o Miscelânia Cult.
Nesse blog, os posts sobre programas brasileiros somam o dobro dos conteúdos estran-
geiros. A maioria dos posts de conteúdo internacional é sobre séries americanas. Dos
22 posts sobre programas latino-americanos, apenas três são sobre ficções, sendo elas:
Castelo Rá-tim-bum, Chaves e um post sobre a abertura de Passione. No caso aqui men-
cionamos programas latino-americanos por causa do programa Chaves, que tem grande
comunidade de fãs no Brasil, país em que a ficção tem exibição mais longeva. Portanto,
o fenômeno do engajamento dos fãs pode ser considerado nacional, apesar de a série
ser mexicana. Enquanto. Dentre as 11 séries citadas, algumas são compatíveis com o
que a teoria internacional considera cult, como gênero de narrativas de terror ou ficção
científica (exemplos são Resident Evil, The Walking Dead e Zumbilândia). Entre as séries
citadas está ainda True Detective, também mencionada pelo site Cult Pop Show, que não
apresenta conteúdo nacional. True Detective foi a única série estrangeira citada em mais
de um site e Castelo Rá-tim-bum a única ficção nacional mencionada duplamente. Vale
lembrar que a série ganhou também uma exposição no Museu de Imagem e Som de
São Paulo (MIS), cujos ingressos foram esgotados.
O site Cult em Dobro é o segundo em termos de número de posts sobre TV. Apresenta
abordagem mais juvenil, voltado principalmente para televisão e música. Dos 58 posts
sobre TV, apenas 11 são sobre conteúdo brasileiro e apenas cinco sobre ficção. O interes-
sante é que todas as ficções nacionais são citadas na seção ‘nostalgia’, conceito próximo à
ideia de cult brasileiro por importância na história cultural. É ainda o único que menciona
uma telenovela: O beijo do Vampiro – que além do apelo nostálgico, é ligada novamente à
ideia de cult como gênero que envolve terror e fantasia. Séries como Buffy a caça-vampiros
e Vampire Diaries são citadas por Abbott (2010) como exemplos do gênero cult.
O site menciona ainda os programas da TV Cultura: Rá-tim-bum (1990-1994), Castelo
Rá-tim-bum (1994-1997), Ilha Rá-tim-bum (2002-2006), e Mundo da Lua (1991-1992). Os exem-
plos são muito importantes para a abordagem da ficção brasileira pelo pressuposto
do sentimento de nostalgia, cuja definição do cult se relaciona com a fala de Le Guern
(2004), na qual o objeto é cult por evocar nostalgia por um repertório cultural comum.
Em 2015 o Museu da Imagem de Som (MIS) em São Paulo trouxe a exibição do Castelo
Rá-tim-bum, o que comprova e reafirma a relevância da série na memória cultural da
televisão brasileira.
Por fim, o site Conversa Cult tem, dentre todos, talvez a postura mais opinativa e
reflexiva. Dos nove posts sobre programas televisivos, dois são brasileiros e somente
um relacionado a ficção – uma análise crítica do beijo entre Félix e Niko, personagens
masculinos que protagonizaram o primeiro beijo gay no horário nobre da Globo. Além
disso, Conversa Cult traz um post de grande importância para a discussão do conceito

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“Virou um cult!”: usos do conceito e a validade do senso comum

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de cult. Com o título “Discussão: (Não) desligue a TV e vá ler um livro!”9, os autores


Paulo Santana e Dana Martins discutem o preconceito contra a televisão e a ideia de ler
um livro contestando a separação entre alta e baixa cultura.
A descrição do conteúdo dos sites pode ser uma base inicial para a compreensão
dos usos do termo cult. Nenhum deles problematiza o conceito de cult, apenas o usam
segundo um repertório comum e de acordo com impressões pessoais. A escolha de
conteúdo não é feita por via comercial (propaganda de anunciante), e sim por interesse
do autor. Essas informações podem auxiliar discussões futuras sobre a visão do público
sobre os programas televisivos merecedores de atenção no Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para que seja possível avançar os estudos da teoria sobre TV cult aplicado a pro-
gramas brasileiros, é necessário compreender como o termo é visto e apreendido pelo
público no País. A aplicação bruta da teoria presente na Inglaterra e nos Estados Unidos
é insuficiente para uma compreensão nacional do conceito. Isso, no entanto, não pode
sugerir a inexistência de potencial cult em programas brasileiros.
A análise descritiva de comentários no Twitter, a representar manifestações descom-
promissadas com uso da expressão TV cult, combinada com a leitura de blogs que se
propõem a discutir a produção cultural e televisiva no País pode ser um início consistente
para pautar a reflexão. Perceberam-se elementos presentes nas teorias estrangeiras que
constam nas falas do público brasileiro, em especial: a distinção entre ‘alta’ e ‘baixa’
cultura, por vezes em forma de crítica; a ideia de cult como gênero, associado a narra-
tivas de terror ou fantasia; e, por fim, e talvez mais compatível com a ficção televisiva
nacional, a relação entre cult e memória, na qual alguns programas sobressaem porque
evocam nostalgia por um repertório cultural comum.
Essas percepções pautam questões importantes para reflexões futuras: como apro-
veitar o senso comum para construção de novas teorias? Por que os websites de conteúdo
cultural dão preferência a conteúdos estrangeiros? É importante pensar uma teoria da
TV cult no Brasil? A essa última, este artigo sugere resposta positiva, deixa a promessa
de futuras contribuições cada vez mais aprofundadas e espera que possa colaborar para
avanços no campo dos estudos de ficção televisiva.

REFERÊNCIAS
Abbott, S. (2010). The cult TV book: from Start Trek to Dexter, new approaches to TV outside the
box. Berkeley, CA: Soft Skull Press.
Bachelard, G.(1972). Conhecimento comum e conhecimento científico. Tempo Brasileiro. São
Paulo, n. 28, p. 47-56, jan-mar 1972.
Eco, U. (1985) “Casablanca”: Cult Movies and Intertextual Collage. SubStance, Vol. 14, No. 2,
Issue 47: In Search of Eco’s Roses. pp. 3-12.
Hills, M. (2010). Mainstream Cult. In: Abbot, Stacey (Ed.). The Cult TV book: from Star Treck
to Dexter, new approaches to TV outside the box. New York: Soft Skull Press.
Hills, M. (2002) Fan Culture. Londres: Routledge.

9.  <http://www.conversacult.com.br/2013/03/discussao-nao-desligue-tv-e-va-ler-um.html>.

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5376
“Virou um cult!”: usos do conceito e a validade do senso comum

Clarice Greco

Jancovich, M. e Hunt, N. (2004). The mainstream, Distinction and Cult TV. In: Pearson, R. e
Gwenllian-Jones, S. Cult Television. London: University of Minnesota Press.
Kompare, D. (2005) Rerun Nation: How Repeats Invented American Television. New New
York: Routledge.
Le Guern, P.(2004). Toward a Constructivist Approach to Media Cults. In: Pearson, R. and
Gwenllian-Jones, S. Cult Television London: University of Minnesota Press.
Lopes, M. V. I (2010). Reflexividade e Relacionismo como Questões Epistemológicas na
Pesquisa Empírica em Comunicação. In: Braga, José Luiz; Lopes, Maria Immacolata
Vassallo de; Martino, Luiz Claudio (orgs.). Pesquisa empírica em Comunicação. São Paulo:
Paulus. Pp 27-49.
_______. (2003). A Telenovela Brasileira: uma Narrativa Sobre a Nação. Comunicação & Educação,
v.26. São Paulo, jan/abr.
Martins, J. S (1998). O senso comum e a vida cotidiana. Tempo Social; Revista de Sociologia.
USP, São Paulo, 10 (1): 1-8.
Pearson, R. (2002). Introduction. In: Pearson, R. e Gwenllian-Jones, S. Cult Television London:
University of Minnesota Press.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

5377
Reflexos de um clássico: referências do filme Todos os
homens do presidente na obra Intrigas de Estado
Classic’s reflections: All the president’s men
references in State of Play movie
Fa b í o l a Pa e s de A l m e i d a T a r a p a n o ff 1

Resumo: O estudo investiga os espelhamentos de Intrigas de Estado e que refletem


a influência de Todos os homens do presidente e busca compreender como os filmes
contribuem no imaginário dos estudantes de Jornalismo sobre a profissão.
Palavras-Chave: Imaginário. Cinema. Journalism movies. Todos os homens do
presidente. Intrigas de Estado.

Abstract: The study investigates the reflections in State of Play which shows the
influence of All the president’s men and seeks to understand how films contribute
in the minds of Journalism students about the profession.
Keywords: Imaginary. Cinema. Journalism movies. All the president’s men. State
of play.

1.INTRODUÇÃO

1 972. ANSIOSOS, os jornalistas olham para a máquina de escrever e tentam anotar


e relembrar tudo o que já sabem a respeito do caso. Eles sabem que suas vidas não
serão mais as mesmas após a publicação daquela verdadeira “bomba”. Seus nomes?
Carl Bernstein e Bob Woodward, repórteres do jornal The Washington Post.
Os jornalistas são designados para cobrir um fato policial aparentemente corriqueiro: a
invasão da sede do Partido Democrata em Washington. Mas à medida que investigam
as causas, acabam escrevendo a maior reportagem do século, sobre o escândalo político
que culminou com a renúncia do então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon.
Escrita de forma poética por esta autora, segundo o gênero New Journalism, a
introdução refere-se ao episódio “Watergate”, apresentado no filme Todos os homens
do presidente. Verdadeira aula de jornalismo, no filme pode-se ver como utilizar fontes
sigilosas e juntar as peças de um “enorme quebra-cabeças” que conduziu à deposição
do então presidente Richard Nixon. Mais de três décadas depois, um filme presta
homenagem a obra-prima de Pakula, Intrigas de Estado. Dirigido por Kevin Macdonald,
apresenta os mesmos temas como a questão da ética jornalística, do furo de reportagem e
a oposição entre repórter experiente (Jornalismo Tradicional) e novato (Novo Jornalismo),

1.  Doutora pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Comunicação - Área de Concentração:
Processos Comunicacionais – Linha de Pesquisa: Comunicação Midiática nas Interações Sociais pela
Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). E-mail: fabiolapaes@uol.com.br.

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5378
Reflexos de um clássico: referências do filme Todos os homens do presidente na obra Intrigas de Estado

Fabíola Paes de Almeida Tarapanoff

a oposição entre repórter experiente (Jornalismo Tradicional) e novato (Novo Jornalismo),


nas figuras dos jornalistas Cal McAffrey (Russel Crowe) e Della Frye (Rachel McAdams).
O artigo tem justamente esse intuito: investigar os espelhamentos culturais
presentes na obra Intrigas de Estado e que refletem a influência da obra Todos os homens
do presidente. O texto traz como tema os Journalism movies, que também são analisados na
tese “Jornalistas no cinema: representações e apropriações”, defendida por esta autora
para o Doutorado em Comunicação – Área de Concentração: Processos Comunicacionais
– Linha de Pesquisa: Comunicação Midiática nas Interações Sociais pela Universidade
Metodista de São Paulo (UMESP). O texto foi escrito durante o período em que ela esteve
como pesquisadora visitante (Programa Doutorado Sanduíche no Exterior – PDSE –
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES) na University
of California, Los Angeles (UCLA) sob supervisão do Prof. PhD. Randal Johnson (UCLA
Spanish and Portuguese Department).
A fundamentação teórica inclui autores que trabalham com os temas Journalism
movies como Christa Berger, Stella Senra, Brian McNair, Matthew Ehrlich, Joe Saltzman.
Além disso, traz autores relacionados a questão das apropriações culturais e das midia-
tizações, como José Luiz Braga (A sociedade enfrenta sua mídia), Clarisse Castro Alvarenga
e Kátia Hallak Lombardi (artigos da obra Mediação & midiatização, organizado por Maria
Ângela Mattos, Jeder Janotti Junior e Nilda Jacks), Pierre Bourdieu e Randal Johnson.
A metodologia utilizada inclui a pesquisa sobre filmes de jornalismo, sendo realizada
análise em profundidade de duas obras: Todos os homens do presidente e Intrigas de Estado.

2. JOURNALISM MOVIES - REPRESENTAÇÕES


Antes de iniciar uma análise sobre os filmes, é preciso compreender melhor o que
são Journalism movies. Segundo Brian McNair na obra Journalists in film: heroes and villains
(Edinburgh, Edinburgh University Press, 2010), muitos autores na área de jornalismo
se referem a essas obras como um gênero. McNair explica que embora procure seguir
a convenção, considera mais correto dizer que Journalism movies refere-se a variados
tipos de filme sobre jornalismo, que inclui uma enorme gama de categorias. No cinema
há uma tradição sobre categorizar os filmes de acordo com gêneros, dependendo do
tema (guerra ou western), da narrativa (filme noir, em que o personagem principal acaba
sendo destruído pela femme fatale), da audiência (comedias românticas para mulheres),
do contexto da produção (independente e blockbusters) ou por apresentar uma estética
particular (Nouvelle Vague). Segundo o autor, gêneros são reconhecidos apresentarem
uma série de características similares. Mas alguns filmes atravessam gêneros múltiplos,
tomando emprestado ou recombinando essas características.
Ele explica que há poucos filmes que se encaixam nessa definição e pode-se dividir
essas obras em duas subcategorias. Primeiro, há as representações primárias sobre
jornalistas e jornalismo, obras que podem ser classificadas como dramas, comédias
românticas, biografias, thrillers em que jornalismo e jornalistas são o assunto principal,
como Cidadão Kane, baseado na vida do magnata da mídia William Randolph Hearst e
como a mídia pode ser utilizada de forma sensacionalista, visando apenas a audiência
e os lucros. Há ainda as representações secundárias, em que os jornalistas podem
até ocupar papéis centrais na trama, mas o jornalismo não é o assunto principal da

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obra, como o filme brasileiro Tropa de Elite: o inimigo agora é outro, que apresenta uma
jornalista, Clara, assassinada após descobrir um esquema de troca de favores entre
políticos e traficantes.
Outra questão importante refere-se às imagens recorrentes do jornalista no cinema
e os mitos contemporâneos presentes nesse gênero. Um professor que tem se dedicado
a essa questão é Joe Saltzman. Em 2003, ele iniciou o projeto The Image of Journalist in
Popular Culture (IJPC) no Norman Lear Center, na Annenberg School for Communication
(University of Southern California – USC), que inclui mais de 8.500 itens, como DVDS,
áudios e livros sobre o assunto. De acordo com Saltzman, a imagem popular do jornalista
flutua entre o real e o ficcional sem discriminação. Nomes como Clark Kent, Lois Lane,
Carl Bernstein, Hunter S. Thompson, Veronica Guerin são todos conhecidos pelo grande
público e foram apresentados no cinema, mas algumas pessoas se esquecem que os dois
primeiros só existem na ficção e que há uma grande diferença no que é apresentado nos
filmes em relação a sua vida real.
Saltzman explica que a palavra jornalista surgiu em 1693 e pode ser definida como:
“alguém que ganha a vida editando ou escrevendo para um jornal público ou jornais.
Hoje o jornalista é visto não só como alguém envolvido na produção e impressão de
jornais. Tornou-se sinônimo de alguém que escreve reportagens para qualquer tipo
de mídia. Se observarmos a definição de acordo com um prisma histórico, o jornalista
pode ser considerado alguém que em qualquer século desempenhava a função que um
jornalista exerce hoje – seja disseminando notícias, informações, comentários ou críticas.
Ao longo dos séculos, o jornalista foi visto basicamente como herói ou como vilão:
The hero reflects a society’s innermost hopes and dreams, the villain its fears and night-
mares. The journalist as hero and scoundrel is no exception. Journalist heroes often are
self-made persons, independent spirits, people who get angry over injustice and unfairness.
They distinguish themselves by their achievements, not their boasts. They are people of
good will, unselfish, trusting, decent, honorable with a sense of fair play, self-confident,
resourceful and sometimes too witty for their own good (…) The journalist hero is convin-
ced that the ends, the triumph of right over wrong, justify any means, no matter what the
ethical or moral cost may be. They believe in and embrace the public interest. Journalist
scoundrels or villains are arrogant and have no scruples. They are braggarts who are vain
and conceited. They are socially undesirable, usurpers, abusers, snobs, strangers, traitors,
sneaks, chiselers, narcissists (…) They care nothing about the public interest, except to use
it for their own selfish end (Saltzman, 2002, pp. 4 e 5).2

2.  Tradução da autora: “O herói reflete os maiores desejos e sonhos da sociedade, enquanto o vilão reflete
os medos e pesadelos. O jornalista como herói e como vilão não e exceção. Jornalistas heróis são pessoas
com sua própria personalidade, espíritos independentes, pessoas que ficam bravas diante da injustiça.
Eles se distinguem dos outros por suas conquistas verdadeiras, não se vangloriando. São pessoas de boa
índole, não egoístas, confiáveis, decentes, honoráveis e com senso de justiça, confiantes, cheios de recursos
e muito generosos até para o seu próprio bem. O herói jornalista está convencido que no final, o triunfo
do certo sobre o errado, justifica qualquer meio, não importa o custo moral ou ético que possa ter. Eles
acreditam nisso e abraçam o interesse público. Jornalistas sem honra ou vilões são arrogantes e não possuem
escrúpulos. Eles são orgulhosos, vaidosos e convencidos. Eles são socialmente indesejáveis, usurpadores,
esnobes, estranhos, traidores, ardilosos, incisivos, narcisistas (...) Eles não dão importância para o interesse
público, exceto para usá-lo para o seu próprio fim egoísta”.

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E no cinema, as imagens do jornalista ganham mais visibilidade diante do público.


Segundo Stella Senra no livro O último jornalista, o cinema tem proposto ao longo de sua
história um grande número de imagens referentes a diferentes atividades profissionais,
cada uma com sua prática específica:
Cada uma dessas práticas específicas, assim como todos aqueles que delas se beneficiam, têm
igualmente o poder de engendrar imagens, representações mentais integrais e duradouras
a respeito dos profissionais que a elas se dedicam. Mas a capacidade do cinema de criar
imagens com existência autônoma e de poder registrá-las e reproduzi-las e conservá-las,
confere a essa representação um poder inusitado: o de gerar e manter viva todas as suas
construções, até mesmo aquelas cuja correspondência com as figuras da prática cotidiana
o tempo já se encarregou de anular (Senra, 1997, p.13).

Senra explica que diante de outras atividades profissionais retratadas pelo cinema,
o jornalismo parece desfrutar de uma posição privilegiada em relação à construção da
imagem do profissional. Devido ao fato de serem públicas as figuras da grande imprensa
e por ser a exposição o requisito primeiro no exercício do jornalismo, a transformação
em imagem do profissional é uma das etapas fundamentais da profissão. No mundo
contemporâneo, mesmo jornalistas que atuam na imprensa escrita são cada vez mais
solicitados a exibir sua persona, transformando-se em uma espécie de personagem. Trata-
se de um processo de espetacularização do profissional da imprensa e da transformação
da sua imagem para consumo.
A autora aponta que até a década de 1950, os proprietários responsáveis pelas empre-
sas jornalísticas também eram jornalistas e foi nesse contexto que surgiu uma imagem
comumente associada à figura do profissional de imprensa, como diz o cronista da Folha
de S.Paulo Jânio de Freitas: “época em que os jornais não tinham horário, do jornalis-
mo boêmio, sem disciplina, com jeito anárquico e muita liberdade, quando não havia
imposição industrial de tempo e de espaço, mas havia mais prazer em exercer a pro-
fissão” (Freitas apud Senra, 1996, p.20). Era o tempo do jornalismo com personalidades
fortes, com uma tradição humanista que hoje desapareceu. E ao falar que o jornalista se
conhecia pela “sola dos sapatos”, o jornalista Newton Carlos se referia ao tempo em que
o profissional vivia em maior sintonia com a realidade, trabalhava nas ruas e ia atrás
dos acontecimentos.
E no cinema a se imagem aparece com maior frequência. Senra diz que a afinidade
entre cinema e jornalismo é histórica e pode se verificar tantos nos temas como procedi-
mentos próprios do jornalismo, que foram incorporados à linguagem cinematográfica.
O diretor e também jornalista Samuel Fuller destacava que cinema e jornalismo tinham
modos semelhantes de registro, verificáveis em termos como cortar (texto ou editar um
filme) e colar (inserir um trecho no texto ou obra cinematográfica).
E tanto no cinema quanto no jornalismo os dispositivos técnicos foram desenvolvi-
dos buscando uma mesma transparência, objetividade e verossimilhança nas imagens.
A narrativa cinematográfica de Hollywood busca enfatizar o indivíduo e a ação que
deve desempenhar e a história termina com a vitória decisiva ou o fracasso. Há um
parentesco íntimo, como aponta Senra, entre relatar e escrever uma notícia. No jor-
nalismo é fundamental a existência de um lead, primeiro parágrafo da notícia que

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responde a seis questões fundamentais: quem fez o que, a quem, quando, onde, como,
por que e para que. Essas perguntas destacam o indivíduo, focalizam a ação e invocam
uma causa responsável pelo desenrolar dos acontecimentos. O jornalismo também se
aproxima mais do público como o cinema a partir do surgimento dos penny press, um
pouco antes da metade do século XIX, tornando-se mais baratos e com temas mais
próximos à realidade dos cidadãos.
No cinema os primeiros filmes sobre jornalismo surgirão a partir dos anos 1920,
quando nas telas os temas populares estão em voga e no momento também em que os
jornais se encontravam associados à vida da comunidade e os jornalistas tinham não
só a mesma condição dos leitores, como partilhavam do seu mesmo universo cultural
e simbólico. Como o cinema hollywoodiano inicialmente utilizava fórmulas (clássicos
happy ends), buscando assim sempre boas bilheterias, esses filmes surgem inicialmente
calcados em estereótipos, representações simplificadas do profissional de imprensa,
buscando que ele seja mais facilmente reconhecido pelo público. Como os penny press
eram populares, a figura do jornalista que atuava nessas publicações é que se destaca.
Na opinião de Christa Berger na obra Jornalismo no cinema, entre as razões da atração
do cinema pelo jornalismo está no “glamour da mídia” e no incentivo que os próprios
jornalistas deram à consolidação dessa imagem. A atividade do profissional de impren-
sa também contém uma série de elementos atrativos para contar uma boa história: o
jornalista
quando recebe uma pauta e precisa escrever uma reportagem, assim como um
detetive, deve fazer um trabalho de pesquisa e depois ir a campo, entrevistar fontes e
busca localizar problemas, identificar causas e buscar soluções.
Nos filmes os jornalistas sempre são pessoas inteligentes, perspicazes, que chegam
às conclusões rapidamente, com a facilidade de um Sherlock Holmes. Isso encanta a
plateia, que se identifica e se coloca na posição do personagem, procurando também
desvendar a história. E no final, tudo acaba bem, com o jornalista conseguindo publicar
sua reportagem e tendo sucesso na carreira. Se considerarmos a influência do cinema
hoje e que tem poder ainda maior perante jovens, que ainda não têm experiência de
vida e nem ideia de como será um trabalho, é fácil perceber como se opera com força
a identificação e a busca em se obter o mesmo sucesso de seus personagens favoritos.
Também é interessante lembrar que muitos super-heróis também atuam de alguma
forma na imprensa, pois isso possibilita o acesso a tudo o que ocorre no mundo. Peter
Parker é um adolescente desajeitado, nerd e que deseja conquistar a garota de seus sonhos.
Gosta de fotografar e suas imagens têm estilo e captam momentos que ninguém tem acesso.
Mas justamente por ele ser o Homem-Aranha, consegue verdadeiros furos de reportagem.
O Super-Homem também é um rapaz tímido, Clark Kent, jornalista do Planeta Diário,
apaixonado pela colega de trabalho, a dinâmica e perspicaz Lois Lane. Atrapalhado,
vive derrubando café e objetos e trabalhar em um jornal o auxilia a saber quem está
precisando de ajuda. Essas imagens são tentadoras para um jovem adolescente, que vê
que mesmo sendo tímido e desajeitado, tem um lugar no mundo como jornalista. É um
super-herói que defende os mais fracos dos opressores e que está apenas utilizando
sua “identidade secreta”.

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De acordo com Christa Berger, que fez um exaustivo trabalho de levantamento de


obras sobre os Journalism movies, foram identificados 785 filmes sobre o assunto. Dessas
obras, 536 foram produzidas nos Estados Unidos, o que chama a atenção. Berço do
jornalismo, país que criou o primeiro curso de jornalismo em uma instituição de nível
superior (Universidade de Columbia), não é de se admirar que o país seja o que mais
produz obras desse tipo. Dirigido por Van Dyke Brooke em 1909, The power of press foi o
primeiro Journalism movie, ainda mudo, mas que já destacava a figura do jornalista como
herói de aventura. A obra foi um marco no cinema do país e serviu de inspiração para
Mocidade audaciosa (1928), de Frank Capra. Para Berger, o cinema, apesar de ter nascido
na França, ganhou status e sucesso com Hollywood nos anos 1930 e 1940.

3.TODOS OS HOMENS DO PRESIDENTE : UMA LENDA


Filmado na própria redação do jornal Washington Post, a pedido de Robert Redford, o
que só ressalta a verossimilhança, Todos os homens do presidente é um clássico dos Journalism
movies. A obra mostra dois jornalistas com perfis um pouco diferentes. Talentoso, o
veterano Carl Bernstein, interpretado por Dustin Hoffmann, tem segurança em seu
trabalho, escreve bem e é elogiado pelos colegas. No entanto, fuma compulsivamente,
sempre deixa sua barba por fazer e sua mesa de trabalho está sempre uma bagunça. Já
Bob Woodward (Robert Redford) é organizado, detalhista, preocupado com a aparência
pessoal e que apesar de não ser tão talentoso como Bernstein sabe fazer muito bem o
trabalho de campo, como apuração, entrevista e verificação de informações.
Mas os dois possuem características em comum: são íntegros, apaixonados por sua
carreira e procuram obter um “furo jornalístico”. São comprometidos com o público e a
informação e em nome deles, irão buscar a verdade, trazendo a público um dos maiores
escândalos da história política norte-americana, episódio conhecido como “Watergate”,
nome do edifício do Comitê do Partido Democrata, que foi invadido e espionado por
colaboradores do Partido Republicano, do presidente Richard Nixon. O trabalho dos
jornalistas acabaria conduzindo ao impeachment do presidente dos EUA e imortalizaria
a figura dos repórteres como exemplo a ser seguido de bom jornalismo.
Matthew C. Ehrlich, na obra Journalism in the movies, ressalta a diferença entre os dois
repórteres. Carl Bernstein era filho de judeus que eram ativistas políticos e pertenciam
ao partido comunista. Nascido em Washington, começou cedo na profissão, aos 16 anos,
como copyboy no jornal Washington Star. Ele se mudou para Greenwich Village em 1965
e rapidamente construiu sua reputação no Elizabeth Daily Journal.
Enquanto Bernstein cresceu simpático à contracultura (ele tentou trabalhar como
crítico de rock na prestigiada revista Rolling Stone), Woodward tinha um temperamento
oposto. Ele nasceu em uma família protestante em Illinois e fez faculdade em Yale, serviu
a Marinha Norte-Americana. Em 1971, ele começa a trabalhar no jornal Washington Post,
onde conhece Carl Bernstein. Tudo começou na manhã de 17 de junho de 1972, quando
os policiais prenderam pessoas que haviam invadido Watergate, edifício que abrigava
o Comitê do Partido Democrático. Woodward e o repórter de polícia Al Lewis cobriram
a notícia para o Post. Um dos invasores confessou que havia trabalhado na CIA. Na
manhã seguinte, o repórter de polícia Gene Bachinski teve acesso aos itens obtidos
pelos invasores. Um deles era um caderno ligando os invasores à Casa Branca. Nos

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próximos meses o jornal Washington Post continuou a publicar notícias sobre a história,
com Woodward e Bernstein conduzindo a investigação jornalística. Eles descobriram
que a invasão ao prédio Watergate estava ligada ao chefe de departamento de Richard
Nixon, H.R. Haldeman. Ele tentou desacreditar o jornal, mas logo se confirmou que
a história estava correta. Mesmo assim, Nixon foi reeleito duas semanas depois. No
entanto, no ano seguinte, as investigações sobre Watergate no Senado passaram a ser
transmitidas para todo o país e a opinião pública ficou contra o presidente, conduzindo
ao seu impeachment em agosto de 1974.
Depois de muita especulação, em 2003 os estudantes da Universidade de Illinois
descobriram que a famosa fonte “Garganta Profunda” era o conselheiro da Casa Branca, o
deputado Fred Fielding. Bernstein disse que a investigação da classe violou os princípios
jornalísticos, revelando uma fonte secreta. O instrutor Bill Gaines respondeu que “se
um jornalista quer realmente proteger suas fontes não pode dar pistas de quem seja a
fonte ou escrever um livro ou um filme sobre o assunto” (Ehrlich, 2004, p. 113).
Ehrlich diz que não importa se Bernstein e Woodward exageraram na descrição de sua
fonte secreta, mas certamente queriam contar uma boa história, ainda mais ao perceber
o interesse de Hollywood. Quem primeiro se interessou em transformar o livro dos
repórteres em filme foi Robert Redford, em 1972, quando promovia seu filme O candidato.
Os jornalistas haviam combinado com a editora que escreveriam uma obra sobre a
corrupção no governo Nixon desde a década de 1970. Redford os encorajou a escreverem
só sobre a investigação de Watergate, pois achava que renderia um filme melhor e
ofereceu US$450 mil em direitos autorais. Para Ehrlich:
The movie, starring Redford as Woodward and Dustin Hoffman as Bernstein, accentued
even more the journalist’s role in Watergate and cloak-and-dagger aspects of the story.
Under director Alan J. Pakula, the film adopted a noir-like look and feel, portrayed the
reporters as serious but small and anonymous figures, and depicted the paper and its editor
as fearless foes of corruption. All the president’s men was the third of what has been called
Pakula’s paranoia trilogy”, following Klute (1971), and Parallax view (Ehrlich, 1974, p. 128).3

A obra recebeu 4 Oscars: Melhor Ator Coadjuvante (Jason Robards), Melhor Direção
de Arte (George Jenkins e George Gaines), Melhor Som (Arthur Piantadosi, James E.
Webb, Les Fresholtz e Dick Alexander) e Melhor Roteiro Adaptado (William Goldman).
O filme mudou a forma como muitas pessoas viam a profissão em todo mundo e o
caso Watergate, tornou-se uma lenda, sendo até hoje citado nas escolas de jornalismo.
De acordo com McNair, Todos os homens do presidente obteve mais de US$ 70 milhões de
dólares em sua estreia nos EUA. Um número muito maior de pessoas viu o filme do que
leu o livro escrito por Bernstein e Woodward. Nos Estados Unidos hoje há mais de 50 mil
estudantes de graduação em Jornalismo e 3.800 fazendo mestrado nessa área, números
considerados bastante expressivos. McNair diz que Todos os homens do presidente foi uma

3.  Tradução da autora: “O filme, que era estrelado por Redford como Woodward e Dustin Hoffman
como Bernstein acentuou ainda mais o papel dos jornalistas na investigação de Watergate e os aspectos
intrigantes e de espionagem da história. Sob a direção de Alan J. Pakula, o filme adotou um estilo noir e
retratou os repórteres de forma séria, figuras pequenas e anônimas e o jornal e o editor como destemidos,
sem medo da corrupção. Todos os homens do presidente foi a terceira obra da chamada trilogia da paranoia
de Alan Pakula, depois de Klute, o passado condena (1971) e A trama (1974).”

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Reflexos de um clássico: referências do filme Todos os homens do presidente na obra Intrigas de Estado

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das obras que mais afetou o público em relação a imagem do jornalista e sua prática
nos Estados Unidos e contribui para o aumento no número de alunos nas escolas de
jornalismo. Mas o que o autor diz que uma das maiores contribuições do filme foi que:
Its production and its commercial and artistic success both reflected and reinforced US public
anxiety about, on the one hand, the state of the presidency, and on the other, the state of the media.
If in the Nixon era all the US journalists had been like Woodward and Bernstein in their dedi-
cation and tenacity perhaps the film would not have been necessary, nor would the Watergate
scandal have been allowed to happen. The Watergate investigation can justifiably be seen as a
triumph of American liberal journalism. The film of that investigation fed back into a debate
which concerned not just the corruption of politics, but the potentially corrupt relationship of
journalism to power. Its effectiveness as a work of cinematic art enable it to provide a model for
future journalistic practice, although we cannot know how influential the model was or has been
(McNair, 2010, p. 19-20)4

No filme pode-se ver como apurar, como utilizar fontes sigilosas (como o famoso
“Garganta Profunda”, nome de filme pornô e fonte que mais ajudou nas investigações) e
como juntar as peças de um “enorme quebra-cabeças”. Trata-se do trabalho jornalístico
levado às últimas consequências, um jornalismo informativo e objetivo à prova de
suspeitas ou denúncias. Nesse caso, pode-se recorrer à definição proposta por Berger:
Herói é a primeira definição para o tipo ideal criado com esmero para dar forma e sentido
ao jornalista dentro do contexto também enaltecido do jornalismo, em suas diversas apa-
rições (Jornal, rádio e tevê) no decorrer do tempo [...] Ele está ali, imprimindo sua marca – de
investigador, de aventureiro, de destemido e solitário lutador, - correndo riscos para realizar
sua profissão/missão, como também estão na tela, com a mesma inclinação, cowboys e poli-
ciais (BERGER, 2002, p.17).

Figura 1. Cena de Todos os homens do presidente.

4.  Tradução da autora: “Seu sucesso comercial e artístico ambos refletem e reforçam a ansiedade do público
norte-americano e por outro lado, o estado da presidência e por outro lado, o estado da mídia. Se na era
Nixon todos os jornalistas queriam ser como Woodward e Bernstein em sua dedicação e tenacidade, talvez
o filme não fosse necessário, nem o escândalo de Watergate teria ocorrido. A investigação Watergate pode
ser vista de forma justificada como o triunfo do jornalismo liberal norte-americano. O filme sobre essa
investigação não apresenta um debate que preocupa somente com a corrupção presente na política, mas com
o relacionamento potencialmente corrupto entre jornalismo e poder. A sua efetividade como um trabalho
da arte cinematográfica está em providenciar um modelo para a futura pratica jornalística, apesar de não
sabermos o quão influente esse modelo foi e continuará sendo”.

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Reflexos de um clássico: referências do filme Todos os homens do presidente na obra Intrigas de Estado

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4. INTRIGAS DE ESTADO : REFLEXOS DE UM CLÁSSICO


DOS JOURNALISM MOVIES
Homenagem aos Journalism movies e um tributo a Todos os homens do presidente.
De acordo com o próprio diretor, Kevin Macdonald, “trata-se de um dos maiores filmes
sobre jornalismo americanos já criados.”5 Baseado no seriado homônimo da BBC, o
filme mostra o misterioso assassinato da assistente do congressista norte-americano
Stephen Collins (Ben Affleck). Abalado com a morte da assistente, Stephen chora em um
discurso público, levantando suspeitas pela imprensa de que ele teria um relacionamento
amoroso com a jovem. O repórter veterano Cal McAffrey, do jornal The Washington
Globe, é designado por sua editora Cameron Lynne (Helen Mirren) para investigar a
história. Ele contará com a ajuda da novata Della Frye, responsável pelo blog do jornal
e por escrever notícias sobre celebridades. Durante a investigação eles descobrirão que
o crime envolve muitos outros aspectos, como a conspiração de uma grande empresa
que deseja privatizar a segurança dos Estados Unidos.
Cal é cuidadoso na investigação, procura índices que comprovem o que será
publicado, mas “demora demais, o que custa caro”, como diz a editora-chefe Cameron
Lynne. Representa o Jornalismo Tradicional, que busca a averiguação dos fatos e a
credibilidade acima de tudo. Já a novata Della é curiosa, rápida, mas devido à pressa em
furar os concorrentes presentes na internet, muitas vezes comete erros, não checando
todas as informações. Ela representa o Novo Jornalismo e apesar de cometer erros, é
bem vista pela editora-chefe porque “ganha pouco e escreve dez reportagens por hora”,
ao contrário de Crowe, que produz de forma mais lenta e cara.
Aqui já encontramos uma semelhança com Todos os homens do presidente, ao utilizar a
representação do jornalista veterano (Carl/Cal, não é à toa que tem o mesmo nome) e do
novato (Bob/Della). Assim como o personagem de Dustin Hoffman, o de Russel Crowe
sempre deixa sua barba por fazer e sua mesa de trabalho é um caos, com um monte de
recortes antigos e papeis. Já Della tem características próximas a Bob, apesar de não ser
tão experiente, é persistente e determinada e quer descobrir todos os detalhes da história.

Figura 2. Pôster do filme Intrigas de Estado.

5.  MIRANDA, Debora. “Intrigas de Estado presta homenagem ao velho jornalismo.” In: G1 - Endereço
eletrônico: http://g1.globo.com/Noticias/Cinema/0,,MUL1190502-7086,00-INTRIGAS+DE+ESTADO+PRE
STA+HOMENAGEM+AO+VELHO+JORNALISMO.html. Acesso: 24 out. 2013.

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Reflexos de um clássico: referências do filme Todos os homens do presidente na obra Intrigas de Estado

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Há outras referências, como um dos prédios da organização Pointcorp, alvo de


investigação ser Watergate, o mesmo em que ocorreu a invasão e culminou com o
impeachment do ex-presidente dos EUA, Richard Nixon, apresentado em Todos os homens
do presidente. Além disso, a cena no estacionamento em Intrigas de Estado, em que Crowe é
perseguido por um dos investigados, lembra muito o local em que Bernstein e Woodward
encontravam a fonte “Garganta Profunda”. Por fim, o nome do jornal em Intrigas de Estado
é The Washington Globe, clara referência ao The Washington Post, local em que trabalhavam
os dois jornalistas que foram responsáveis pelo maior furo jornalístico do século XX.

5. CONCLUSÕES
E como podemos compreender esses reflexos de Todos os homens do presidente
presentes em Intrigas de Estado? Uma boa forma de compreender isso é retomando o
texto “Midiatização e mediação: seus limites e potencialidades na fotografia e no cinema”,
de Clarisse Castro Alvarenga e Katia Hallak Lombardi, presente no livro Mediação
& midiatização, organizado por Jeder Janotti Jr., Maria Angela Mattos e Nilda Jacks.
As autoras citam Rancière, dizendo que “o artista não quer impor, nem instruir o
espectador. Quer somente produzir uma forma de consciência, uma intensidade de
sentimento, uma energia para a ação” (ALVARENGA & CASTRO, 2012, p. 285). Assim
quando um cineasta como Kevin Macdonald busca inspiração em Todos os homens do
presidente para fazer o filme Intrigas de Estado, ele busca traduzir a partir de traduções
que os outros lhe apresentam, de colocar as suas experiências em palavras é um trabalho
poético que está no cerne de toda a aprendizagem. Cada um tem o poder de traduzir
à sua maneira o que percebe, tornando os filmes únicos, mas com semelhanças em
relação às obras anteriores. Ocupando um papel cada vez mais privilegiado no cenário
atual do entretenimento e que um filme pode ser visto na internet, no YouTube ou até
em um celular, o cinema contribui assim para problematizar os diversos sistemas de
representação social e de categorias profissionais presentes no mundo.
Quando Kevin Macdonald traz reflexos da obra Todos os homens do presidente em
Intrigas de Estado, ele deseja assim fazer um tributo aos Journalism movies e mostrar a
importância do jornalismo impresso, em uma sociedade em que a internet se faz cada
vez mais presente. E os espelhamentos em outro filme são uma forma do diretor fazer
isso e mostram como foi influenciado por essa obra de arte.
É preciso compreender que esse ciclo não termina aí. As representações do jornalista
no cinema, quando apropriadas pelos receptores, vão gerar um imaginário próprio
sobre a profissão, de como será sua carreira no futuro. Mas esse processo não ocorre
de forma unidirecional e passiva, mas comunicacional e interativa, como salienta José Luiz
Braga em A sociedade enfrenta sua mídia. Braga propõe assim o conceito de midiatização
da sociedade, que corresponde a tornar viável o acesso posterior e a ampliar o número
e a abrangência das mensagens, tornando-as “diferidas e difusas” (2006, p.23).
E os filmes contribuem para inculcar valores sobre a sociedade e a respeito de
profissões, como o jornalismo. As imagens de profissionais nas obras como Todos os
homens do presidente e Intrigas de Estado acabam influenciando na forma como a sociedade
e estudantes de Jornalismo veem a categoria. Como explica Randal Johnson na obra
The field of cultural production, em que analisa a obra de Pierre Bourdieu:

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The habitus is the result of a long process of inculcation, beginning in early childhood,
which becomes a ‘second sense’, or a second nature. According to Bourdieu’s definition, the
dispositions represented by the habitus are ‘durable’ in that they last throughout an agent’s
lifetime. They are ‘transposable’ in that they may generate practices in multiple and diverses
fields of activity, and they are ‘structured structures’ in that they inevitably incorporate the
objective social conditions of their inculcation (Johnson, 1993, p.5).6

Segundo Brian McNair em Journalists in film (Edimburgh, Edimburgh Press, 2010), o


cinema, como qualquer arte pode ser visto como uma arena de mediação da complexidade
social e contribui para uma melhor compreensão dessa sociedade:
Cinematic representations of a particular social type, which a particular social type inevi-
tably draw upon the prevailing models of that type which a particular society harbors,
and in the process contribute to consolidating and reinforcing the prevalence. In the case
of journalism, some of these types are clearly based on normative models of the journal-
ist’s role – such as the character of Charles Tatum whom we shall encounter later on. The
filmmaker is lightening rod for these competing images of heroism and villainy, licensed to
dramatize them, and thus to furnish the material for public debate around the performance
of the journalists (McNair, 2010, p.15)7.

A sociedade, portanto, se organiza para compreender sua própria mídia e desenvolve


dispositivos sociais, com diferentes graus de institucionalização e os faz circular. Entre
esses dispositivos sociais estão, por exemplo: universidades, cineclubes, sites de media
criticism que ajudam a pensar melhor a mídia. E auxiliam também o jovem a compreender
o mundo e a estabelecer um imaginário a respeito dele e da profissão que desejam seguir.

REFERÊNCIAS
ALVARENGA, Clarisse Castro & LOMBARDI, Katia Hallak.“Midiatização e mediação: seus
limites e potencialidades na fotografia e no cinema.” In: JANOTTI JR, Jeder; MATTOS,
Maria Angela & JACKS, Nilda (Orgs.) Mediação & midiatização. Salvador: UFBA; Brasília:
Compós, 2012. pp. 272-296.
BERGER, Christa. Jornalismo no cinema. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002.
BRAGA, José Luiz. A sociedade enfrenta sua mídia. São Paulo: Paulus, 2006.
EHRLICH, Matthew C. Journalism in movies. Urbana and Chicago, University of Illinois
Press, 2004.

6.  Tradução da autora: “O habitus é resultado de um longo processo de inculcação, que se inicia na infância e
torna-se um segundo sentido, uma segunda natureza. De acordo com a definição de Bourdieu, as disposições
representadas pelo habitus são duráveis e podem permanecer durante toda a vida do agente. Elas são
transponíveis e podem gerar praticas em múltiplos e diversos campos de atividade e são estruturas bem
firmadas que inevitavelmente se incorporam as condições sociais de sua inculcação”.
7.  Tradução da autora: “Representações nos filmes de um tipo social particular, que inevitavelmente refletem
as representações dominantes em determinadas sociedades e nesse processo contribui para consolidar
e reforçar essa prevalência. No caso do jornalismo, alguns tipos estão claramente baseados em modelos
normativos do papel do jornalista – como o personagem de Charles Tatum, que devemos retomar depois na
obra. O diretor é responsável por determinar essas imagens de heroísmo ou de vilania, estão autorizados
a dramatiza-las e propiciando material para o debate público sobre a atuação dos jornalistas na realidade”.

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Reflexos de um clássico: referências do filme Todos os homens do presidente na obra Intrigas de Estado

Fabíola Paes de Almeida Tarapanoff

JOHNSON, Randal. “Editor’s introduction: Pierre Bourdieu on Art, Literature and Culture.”
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MIRANDA, Débora. “Intrigas de Estado presta homenagem ao velho jornalismo.”
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McNAIR, Brian. Journalists in films: heroes and villains. Edimburgh (US): Edimburgh Press,
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SENRA, Stella. O último jornalista: imagens de cinema. São Paulo: Estação Liberdade, 1997.

Filmes (Informações e Figuras utilizadas)


Intrigas de Estado
Adoro Cinema
Disponível em: http://images2.fanpop.com/images/photos/5700000/State-of-Play-state-of-
play-5701773-1543-1024.jpg. Acesso: 22/3/2015.

Todos os homens do presidente


Time
Disponível em: http://content.time.com/time/world/article/0,8599,1613430,00.html.
Acesso: 22/3/2015.

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Implicações político-afetivas da relação imagem-
narrativa na análise do personagem cinematográfico
Affective- political implications by the relationship image-
narrative from an analysis of the cinematographic character
M árcio Zanet ti Negrini1

Resumo: Este artigo propõe-se a investigar as relações entre imagem, narrativa


e o político por meio da subjetividade. Desse modo, é realizada uma análise
fílmica dos aspectos político-afetivos do personagem Espírito no filme Rio, Zona
Norte (1957) do diretor brasileiro Nelson Pereira dos Santos. O político é tratado
no cinema na perspectiva de Alain Badiou (2004), para quem, os personagens,
manifestam-se politicamente nas formas de resistência as dominações de seus
afetos. Com esse pressuposto, procura-se refletir como o personagem Espírito
produz envolvimentos político-afetivos em seu cotidiano. Para isso, mobiliza-se
um quadro teórico composto especialmente por Jacques Rancière (2012), Sigfried
Kracauer (2001) e Gilles Deleuze (1985). As análises mostram que o político-
-afetivo do personagem é formado através de campos de forças produzidos
pela interlocução imagem-narrativa. Tratam-se de forças de transformação dos
sentidos político-sociais implicados na narrativa de Rio, Zona Norte (1957).
Palavras-Chave: Personagem Político. Subjetividade. Análise Fílmica. Cinema
Brasileiro.

Abstract: This article aims to investigate the relationship between image, nar-
rative and political through subjectivity. In this way, it is made a film analysis
based on political and emotional aspects of the character Espírito in the movie
Rio, Zona Norte (1957) by the brazilian director Nelson Pereira dos Santos. The
political is treated in movies from the perspective of Alain Badiou (2004), due
to the fact that the characters manifest themselves politically in forms of resis-
tance of dominations of their affections. With this assumption, it has been tried
to reflect how the character Espírito produces political-emotional involvement
over his social environment. In this regard, it has been mobilized a theoretical
framework especially composed by Jacques Rancière , Sigfried Kracauer (2001)
and Gilles Deleuze (1985). The analyzes show that the political-affective of the
character is formed through fields of force produced by image-narrative interac-
tion. These refer to transformation forces of political-social meanings implied
in the narrative Rio, Zona Norte (1957).
Keywords: Political character. Subjectivity. Film Analysis. Brazilian Movie.

1.  Mestrando do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da PUCRS, bolsista CAPES/Prosup.


Estudante vinculado ao Grupo de Pesquisa Kinepoliticom (CNPq). E-mail: marcionegrini@uol.com.br

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Implicações político-afetivas da relação imagem-narrativa na análise do personagem cinematográfico

Márcio Zanetti Negrini

1. INTRODUÇÃO

N ELSON PEREIRA dos Santos é o diretor do filme Rio, Zona Norte (1957) que se
analisa neste artigo. Com esse cineasta percebeu-se a possibilidade de encontrar
personagens brasileiros que, em seus cotidianos, apresentam ações políticas
vinculadas a suas relações afetivas. Notou-se que, para esse diretor, os temas políticos
implicados nas vidas de seus personagens inscrevem-se junto às formas de resistência
e não condicionamento afetivo às circunstâncias sociais em que estão inscritos.
Encontrou-se uma interlocução entre as implicações políticas notadas nos filmes de
Nelson Pereira dos Santos e a reflexão acerca do personagem fílmico em Alain Badiou
(2004, p.73). Para o autor, o cinema inscreve-se como “categoria política ativa” na medida
em que seus personagens permitem pensar as “lógicas de emancipação” que impedem
sujeições e estabilizações das subjetividades numa instância político-social de domi-
nação dos afetos.
Assim, neste artigo, parte-se do pressuposto que compreende o cinema e seus
personagens como experiência afetiva que possibilita levantar questões acerca do político
a partir do ponto de vista da subjetividade. Desse modo, nota-se a materialidade que
compõe as representações fílmicas como agentes de significação formados por afetos.
Com isso, os aspectos materiais das imagens que compõem o universo socioafetivo do
personagem Espírito no filme Rio, Zona Norte (1957) amplificam os sentidos narrativos
do filme de modo a revelar as implicações político-afetivas de seu cotidiano.
Esse personagem foi elencado como suporte de análise na medida em que também
se percebeu, numa reflexão com base em Rancière (2009), que ele produz ações políticas
por meio da criação de ficções sobre si mesmo. Espírito é um sambista cujas composições
musicais são elaboradas a partir de suas relações afetivas com os outros personagens
e o espaço em que é representado. Nesse sentido, compreende-se que o filme Rio, Zona
Norte (1957) mostra um personagem fértil quanto às observações da política a partir
do ponto de vista afetivo. Assim, nota-se que as criações das ficções sobre si que esse
personagem engendra partem das suas relações com o espaço material que o constitui
enquanto representação.
Na medida em que se estabeleceu de forma preliminar que o personagem pode ser
analisado em vista de suas formas de resistência afetiva aos condicionamentos sociais,
tem-se como objetivo responder as seguintes questões: como e em quais circunstâncias
da inter-relação imagem-afeto-narrativa manifestam suas resistências político-afetivas?
E, ainda, quais disputas produzem sujeições que resultam em seus condicionamentos
político-sociais?
Desse modo, estabeleceu-se no âmbito teórico, junto a Kracauer (2001) e Deleuze
(1985), que a análise fílmica realizada leva em conta a materialidade que compõe o
universo socioafetivo do personagem numa relação inalienável com a subjetividade
do sujeito que o analisa. Por meio desses autores, compreende-se que os primeiros
planos cinematográficos produzem variações nos sentidos narrativos. Isso decorre das
fraturas na totalidade da montagem que revelam, pelos aspectos materiais das imagens,
significações que produzem novas possibilidades de compreender as histórias narradas.
Também fundamentando-se em Rancière (2012), o que se define em termos de análise
do universo político-afetivo desse personagem está implicado nas significações que a

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Implicações político-afetivas da relação imagem-narrativa na análise do personagem cinematográfico

Márcio Zanetti Negrini

materialidade das imagens propõe junto à narrativa do filme. Ou seja, os elementos


visuais que elaboram as representações e que se relacionam com os sentidos inscritos
na narração sobre a vida do sambista morador de um morro na Zona Norte da cidade
do Rio de Janeiro.

2. DA SUBJETIVIDADE PARA ESTRUTURA: ALGUNS ASPECTOS


TEÓRICO-METODOLÓGICOS
A análise filmica que desenvolve-se em vista da observação do personagem fílmi-
co sob o ponto de vista político-afetivo, por meio da relação imagem-afeto-narrativa,
compreende com Rancière (2012) que a potência da imagem cinematográfica revela a
experiência do tempo numa simultaneidade que regula o movimento entre o singular
e o que é comum.
O autor sugere a mudança no sistema de equivalência do “regime representativo de
subordinação” para um “regime estético de representação”. A palavra antes determinava,
e a imagem, até então, sucumbia como suporte da ação falada. No novo “regime estético
da arte” apresentado por Rancière (2012, p. 123; 133), um fluxo de significações permite
a não ruptura entre a ação da palavra e o movimento da imagem; há então uma nova
espécie de “regulação” não redutível a palavra-ação e imagem-reação.
Compreende-se com este autor que a representação passa a transformar a repetição
e abre espaço para uma (re)apresentação. Surge assim uma proposta de entendimento
do tempo e da história como não linearidade, espaço de criação onde operam novas
sínteses que são paragens, ou seja, permitem falar sobre o vivido e seguem um novo
rumo sem a determinação do consenso, ou, então, um não condicionamento do movi-
mento da experiência humana a uma única história. Desse modo, para o autor, o cine-
ma como exercício de “regulagem” entre o visível e o dizível produz reconfigurações
que tornam-se criações, ou seja, o que o autor denomina “fraternidade das metáforas”
(RANCIÈRE, 2012 p.65).
Com isso, inscreve-se a análise do personagem Espírito, na desobrigação de uma
representação como regime da imagem em subserviência à palavra. A primeira, contida
em sua mobilidade por obediência a uma ação fechada numa história que se subordina
a linearidade do tempo. Do filme, o que é apresentado como análise é uma passagem
proporcionada pelo visível em sua mobilidade imanente, irredutível à determinação da
palavra. Entende-se, portanto, que a palavra na voz dos personagens, como designação
narrativa, apresenta-se por uma “regulagem” que, para Rancière (2012, p.131), acontece
pelo visível que “impõe presença”. Ou seja, a ocupação dos espaços narrativos por meio
das significações sensíveis das imagens.

2.1. O primeiro plano cinematográfico como produção de significações


politico-afetivas do personagem
Kracauer (2001), cuja teoria reivindica a redenção do cinema à “realidade física”,
compreende que as relações sociais podem ser reveladas por meio das imagens fílmicas.
Desse modo, é próprio ao dispositivo cinematográfico dar conta da “materialidade
sensível” (Kracauer, 2001, p. 366). Então, tem-se no primeiro plano cinematográfico
a espessura da vida social que é material e não se fecha numa totalidade do tempo

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Implicações político-afetivas da relação imagem-narrativa na análise do personagem cinematográfico

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linear. A ruptura provocada pela imagem em primeiro plano na montagem traz à tona
formações afetivas que transitam na materialidade do espaço social.
A noção do primeiro plano cinematográfico em Kracauer torna evidente sua
compressão do tempo como não totalidade justamente pela descomposição da montagem
que esse plano possibilita. Uma divisão do movimento amplifica o microscópico imanente
à matéria, e mostra a energia simbólica acumulada no meio físico em que a vida transita
e que a câmera revela para passagem e o aparecimento do afeto; relação com a imagem
que para o autor é uma região de encontro entre o presente e o passado em que acontece
a história. Compreender o personagem Espírito numa perspectiva teórica do primeiro
plano em Kracauer (2001) concebe notar a variação de sentidos exercida pelos aspectos
materiais das imagens que representam o personagem.
As transformações que as potências das imagens criam são da ordem dos desloca-
mentos que os enquadramentos em primeiro plano provocam. Com isso, evidencia-se a
materialidade que compõe o universo do personagem desviando-a de um movimento
único e totalizante da narrativa. Assim, o rosto de Espírito produz sentidos por meio
da amplificação que sua imagem passa a exercer. Junto a ele, veem-se objetos e per-
sonagens que constituem seu universo afetivo e que evidenciam novas significações,
de modo a desomogeneizar suas experiências e revelando formações afetivas que
compõem seu cotidiano.
Para compreender a noção de “materialidade sensível” em Kracauer (2011) na pers-
pectiva de uma análise fílmica que assume o ponto de vista da subjetividade, ou seja,
assumindo-se a escritura de análise como imaginários produzidos por meio do movi-
mento entre o sujeito que analisa e o objeto cinematográfico, sugere-se aproximá-lo dos
escritos sobre a “imagem-movimento” de Deleuze (1985) e sua noção de “rostidade”. Tal
proposição desse autor é encontrada em suas ponderações sobre o primeiro plano cine-
matográfico e a “imagem-afecção”, de modo que, se compreende o rosto do personagem
como ativações de sentidos. Isso decorre pelas variações dos enquadramentos em primei-
ro plano em sua relações com a montagem numa analogia a formação da consciência.
Deleuze (1985, p. 114; 156) define a “imagem-afecção” e, por consequência, a “rostida-
de”, como descentramento “pré-atual” que é pura “virtualidade”, ou subjetividade, aquilo
que serve ao espírito ou, ainda, a memória que aparece pela reflexão e opacidade. O que
se deve sublinhar é o sentido “sensório-motor” do afeto que é retido e refratado como
sombra e luz. O primeiro plano como rosto é o próprio “devir”. Com isso, a “rostidade”
não diz de um estado de coisas definido por uma “imagem-ação” do personagem. Antes
disso, provoca ativações de sentidos possíveis onde, por meio do rosto de Espírito, busca-
-se pistas para compreendê-lo quanto à perspectiva política. Neste caso, o político-afetivo
inscreve-se nas transformações de sentidos que o rosto produz, ou seja, não apenas pelas
ações e reações narrativas que representam o cotidiano do personagem. Com isso, a
noção de “rostidade” deve ser compreendida junto a Deleuze (1985) como um rosto, um
traço, um objeto, um possível como expressão que não se fecha no enquadramento em
primeiro plano. Ela o amplifica como qualidade potência que apresenta o novo imanente
a imagem, ou seja, abre a imagem que segue como afeto, potência que não se esgota.
Adotaram-se como instrumento de análise fílmica figuras formadas por conjuntos
de primeiros planos do personagem em vista da composição material das imagens como

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Implicações político-afetivas da relação imagem-narrativa na análise do personagem cinematográfico

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amplificação da narrativa. Entendem-se por esses elementos materiais a visualidade


do rosto de Espírito em sua relação com outros personagens e com os objetos que,
ao serem enquadrados junto a ele, elaboram sua representação cinematográfica. Com
isso, a materialidade que compõe os enquadramentos em primeiro plano é analisada
em sua força de significação. De modo que, quando se remete à duração da narração,
produz sentidos que a amplificam e revelam na interlocução imagem-afeto-narrativa
formações afetivas produzidas por campos de disputa entre a sujeição político-social e
a experiência político-afetiva do personagem Espírito.
Nota-se que as combinações afetivas presentes no rosto de Espírito modificam-se em
duas variáveis que se reportam reciprocamente possibilitando a formação de categorias
de análise. Com base numa leitura de Badiou (2004), a categoria rosto povoado compreende
as formas de resistência do personagens às subordinações de seus afetos. Parte-se de
uma perspectiva teórica que entende a ativação político-afetiva por meio das formas de
emancipação de Espírito, na medida em que o personagem não se determina unicamente
a um estado de coisas político-social. Já o rosto despovoado inscreve-se nas formas de
dominação dos afetos do personagem por meio de sujeições que visam enredá-lo numa
perspectiva político-social.

3. ESPÍRITO EM RIO, ZONA NORTE (1957): PRIMEIRAS PISTAS


SOBRE O ROSTO POVOADO E O ROSTO DESPOVOADO.
Espírito da Luz Soares é um compositor de samba, e a música aparece como o
elemento que designa sua movimentação entre o morro em que mora, na Zona Norte
do Rio de Janeiro, os trilhos do trem da Central do Brasil e os estúdios da rádio onde o
personagem deseja que suas composições sejam comercialmente produzidas.
O filme se inicia nos trilhos da Central do Brasil, onde Espírito está agonizante à
margem da linha do trem. Funcionários da rede férrea o removem dos trilhos, onde
folhas de papel estão ao vento. Em fusão com o rosto do personagem, a memória de
Espírito conduz a narração para um ensaio da Escola de Samba Unidos da Laguna.
Esta primeira sequência em que o personagem aparece revelará, por meio de seu
rosto (Figura 1.), as relações afetivas de Espírito com o mundo em que vive. O filme
mostra um homem convalescente que terá seus últimos dias contados por uma montagem
que alterna entre a condição de seu corpo à beira da morte, nos trilhos, e seus afetos.
Uma fusão entre as imagens mostra o rosto deitado no chão e o rosto do personagem
junto aos amigos da escola de samba (Figura 1). Essa relação entre as duas sequências
mediante os primeiros planos traz pistas sobre como as imagens de Espírito se modificam
por meio de sua relação com o samba no lugar em que vive.

Figura 1. O rosto em conexão entre a linha do trem e a escola de samba.


Fonte: Rio, Zona Norte (1957). Sequências 01 e 02, tempo 00:01

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Espírito está no ensaio da escola, sentado à mesa, conversando, quando Seu


Figueiredo, dono da mercearia onde o personagem faz trabalhos eventuais, o avisa que
algo será pronunciado ao microfone. O famoso Alaor da Costa não pode comparecer;
então, em seu lugar, é apresentado o “artista de rádio Maurício Silva”2 (SANTOS, 1957).
A ação dos personagens deixa claro que há uma expectativa quanto à presença de
Maurício, já que este é um produtor de rádio que está no ensaio da escola à procura de
novas composições de samba. Maurício pronuncia-se e, em seguida, Espírito puxará o
samba de sua autoria “mexi com ela, mas ela nem me deu bola e me levou pra escola
pra mim aprender o bê-á-bá”3 (SANTOS, 1957).
O rosto do personagem assume feições que o conectam com o grupo de pessoas da
sua comunidade (Figura 2). A relação de Espírito com os demais sujeitos se dá por meio
da música, e os primeiros planos do personagem dentro da escola de samba mostram que
o sonoro produzido pelos instrumentos e as pessoas que compõem esse ambiente estão
contidos no sorriso de Espírito. Entre o grupo que dança aparece Adelaide; a morena,
então, mobiliza o olhar do personagem em sua direção. Surge com isso um novo sentido
para os afetos de Espírito, seu corpo liga-se a Adelaide por meio do samba. Os dois estão
distantes no espaço do barracão; o que desfaz essa distância são os enquadramentos
que mostram o sorriso do personagem para a morena.

Figura 2. O rosto liga-se à comunidade por meio da música. Fonte:


Rio, Zona Norte (1957). Sequência 02, tempo 00:01

A conexão entre Espírito e Adelaide sofre uma ruptura. Um novo elemento imagético
surge na duração desta sequência e desestabiliza o movimento produzido pelo samba que
conectava os corpos. Adelaide é atacada por um homem, que mais adiante a narrativa
identifica como o pai de seu filho, com uma navalha. A mulher não é ferida, já que os
demais integrantes do grupo tratam de conter o agressor.
Nota-se que, diferentemente da sequência 01 (Figura 1. Rosto de Espírito nos
trilhos), em que a possibilidade da morte do sambista pode ser vista como ativação de
memória, na sequência 02 (Figura 1. Fusão do rosto do personagem dos trilhos do trem
para o barracão da escola de samba), a ação violenta do homem com a navalha tenta
cooptar a multiplicidade dos corpos que estão conectados por intermédio do rosto de
Espírito (Figuras 1 e 2.). O personagem puxa outro samba: “dama de ouro, sumiste do
meu baralho, voltarei para o meu trabalho”4 (SANTOS, 1957), e o grupo mobiliza-se
novamente em função da música.

2.  Texto do filme.


3.  Mexi com ela é uma composição do sambista carioca Zé Kéti.
4.  Dama de Ouro é uma composição do sambista carioca Zé Kéti.

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Implicações político-afetivas da relação imagem-narrativa na análise do personagem cinematográfico

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Após o segundo samba cantado, Espírito encontra-se com Maurício e lhe pergunta
sobre o que achou das composições. O produtor de rádio diz que ninguém gostou das
músicas. Há um primeiro contato de Espírito com outro polo de significações da cidade:
Maurício é “artista de rádio”5 (SANTOS, 1957), como foi anunciado por Seu Figueiredo
ao microfone. Esse personagem distingue-se visualmente dos outros que compõem a
sequência por sua pele branca, pelo terno que veste e pelo lugar que lhe é dado pela
comunidade dentro da situação do ensaio da escola de samba. Percebe-se que o produtor
detém o poder sobre os sambas que serão gravados em disco e cantados na rádio. Espírito
ouve a crítica de Maurício e não contra-argumenta, seu rosto se desfaz. Nesta parte da
sequência, Maurício é capaz de capturar o rosto de Espírito imobilizando as linhas de
expressão que instantes antes estavam ligadas à comunidade por meio do samba.
Espírito deseja que suas composições sejam reconhecidas. Sua comunidade já as
reconhece; contudo, o personagem quer que sua música seja multiplicada pela cidade
do Rio de Janeiro por meio da rádio para, então, não viver mais de biscates, e sim do
samba. Logo em seguida, Espírito será chamado por Moacir para sentar à mesa. Esse
personagem, assim como Mauricio, é oriundo do Rio de Janeiro, que produz sentidos
como o de grande cidade urbanizada com efervescência intelectual e artística.
Moacir apresenta-se como um compositor que não obteve sucesso com seus concertos
e sinfonias, de modo que trabalha como violinista numa orquestra de rádio. A sequência
desenvolve-se com Espírito sentado à mesa cantando mais um de seus sambas.
A montagem do filme nesse momento da sequência (Figura 3.), em relação ao
conjunto dos primeiros planos de Espírito, permite notar a conexão que o personagem
estabelece entre sua comunidade e as produções de sentidos que Maurício e Moacir
revelam em Rio, Zona Norte (1957). Ou seja, as significações que partem do lugar da
cidade em que esses dois personagens habitam e cruzam com a experiência vivida
por Espírito.
O rosto do sambista é ligado a Moacir e sua esposa e também a Maurício. Estes per-
sonagens compõem parte do quadro onde os olhares que interceptam Espírito aparecem
para transfigurá-lo do rosto que instantes antes cantava animado para a comunidade.
O rosto do personagem (Figura 3.) sofre oscilações entre a melancolia e alguma força
que tenta sair de um estado de predominância quase letárgica. Resulta que a expressão
do rosto do sambista parece enfraquecida, ou seja, desanimada.
A composição dos primeiros planos de Espírito (Figura 3.) acontece em relação
aos enquadramentos em primeiros planos e os pontos de vista de Maurício, Moacir e
a esposa, que representam a produção de sentidos da cidade burguesa, intelectual e
detentora do poder sobre as manifestações artísticas que serão amplificadas por meio
da rádio. Mas também há personagens como Seu Figueiredo, Gracinda, que é afilhada
de Espírito, e Adelaide. Percebe-se que o rosto de Espírito sofre variação de quando,
momentos antes, cantava para a comunidade. As conexões entre seu rosto e a dos demais
personagens formam um campo de disputa entre o povoamento e o despovoamento. Ou
seja, entre o rosto cujas linhas produzem sentidos a partir do personagem em sua
relação com a comunidade (Seu Figueiredo e a sobrinha acompanham a ação) e o rosto

5.  Texto do filme.

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que se forma pela estabilização das linhas numa expressão apática em interseção com
os olhares de Maurício, Moacir e sua esposa.
A personagem Adelaide, que momentos antes dançava o samba de Espírito e era
atacada com uma navalha, acompanha os olhares do grupo estrangeiro à comunidade.
Nota-se que, em relação ao rosto de Espírito, há transversalidades do olhar de Adelaide
conectando-o a Maurício e Moacir de modo a reforçar a tentativa de cooptar a expressão
de vida que Espírito mostrava na figura 2. As feições melancólicas do personagem
não resultam simplesmente da dor de amor que o samba cantado por ele expressa. A
melancolia do rosto de Espírito revela a tentativa de captura do seu desejo musical pelos
olhares de Moacir, sua esposa, Maurício e Adelaide.
Desse modo, os olhares da morena Adelaide, que instantes antes mobilizam a
expressão do rosto de Espírito, conectando-os à comunidade por meio da dança e do
samba, assumem outra direção. A montagem compõe os primeiros planos de Espírito
entre os primeiros planos de Adelaide e seu olhar para o grupo estrangeiro à comunidade,
que, por sua vez, também observa Espírito. Em vista da mudança sofrida pelo rosto do
sambista, entre a figura 2 e a figura 3, uma nova pista forma-se para compreender as
relações afetivas do personagem. Ou seja, percebe-se a elaboração do rosto despovoado
(figura 3) como variação do rosto povoado (figura 2), transformação esta que produz
significações pela conexão do rosto de Espírito a Adelaide, Maurício, Moacir e sua esposa.

Figura 3. Espírito canta a mesa e a melancolia toma forma em seu rosto.


Fonte: Rio, Zona Norte (1957). Sequência 02, tempo 00:09

Compreende-se que os conjuntos de primeiros planos, figuras 1 e 2 (que são uma


fusão entre o prólogo do filme e a sequência 2) e os enquadramentos da figura 3, apre-
sentam o personagem por meio de uma constelação de sentidos que recorre no rosto
de Espírito.
Nas figuras 1 e 2 aparecem as relações do personagem com a morte, o espaço da
cidade, as pessoas que com ele transitam em sua comunidade e o samba. Esse grupo de
imagens constitui a categoria rosto povoado. Contudo, há uma modificação de significações
que está presente no conjunto de planos da figura 3. Trata-se do rosto despovoado, ou seja,
as interferências que o rosto de Espírito sofre na tentativa de controle dos afetos que
constituem o povoamento de seu rosto.
Como resultado da atenção que Moacir dedica a Espírito, o primeiro convida-o para
uma visita à rádio, Maurício percebe que o talento do sambista, identificado por Moacir,
pode ser uma oportunidade de negócio.
Nessa noite, Espírito segue para sua casa com a afilhada Gracinda e, na chegada,
encontra o compadre Honório. Ele está trabalhando na construção de uma nova casa,

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na qual Espírito morará na parte de baixo, dividindo espaço com uma mercearia. O
estabelecimento permitirá que Espírito tenha um trabalho fixo e, assim, retome a guarda
do filho, Norival, que vive no Patronato. Espírito é viúvo, e a mãe de Norival morreu
no parto do filho único.
No amanhecer do dia seguinte, Adelaide aparece junto com seu bebê no cômodo
em que Espírito mora, que é conjugado à casa do compadre Honório e de Gracinda. A
mulher une-se a Espírito após o rompimento com o companheiro que tentara atacá-la na
escola de samba na noite anterior. Nota-se que, como foi apontado por meio do rosto de
Espírito na figura 3, Adelaide aproxima-se do compositor na medida em que percebeu
os interesses de Moacir e Maurício pelo sambista.

3.1. Movimentos do rosto entre o despovoado e o povoado:


algumas estratégias de vida
Espírito está à mesa com os amigos da comunidade na casa de Seu Figueiredo.
Ao redor da mesa, o clima é de alegria, e o compositor está confiante, pois acertou a
produção de um samba com Maurício. A partir desse, outros serão cantados na rádio e,
finalmente, ele terá seu reconhecimento como artista da música. Adelaide liga o rádio,
e o samba criado por Espírito é anunciado como de autoria apenas de Alaor da Costa e
Maurício Silva. A câmera movimenta-se e registra a desolação do grupo. A afilhada diz,
para consolar seu padrinho, que o samba foi gravado como um bolero. Adelaide, por sua
vez, fala do dinheiro que não veio, da música que não foi reconhecida. A câmera mostra
Espírito, que segue com o bebê de Adelaide no colo: seu rosto se contrai brevemente,
por instantes o personagem fecha o semblante, e a imagem de Ogum6 aparece e divide
o plano com Espírito.
O aparecimento de Ogum (Figura 4.) nesse momento junto ao rosto de Espírito
integra um novo elemento imagético ao enquadramento e fornece nova pista para com-
preender a forma com que o personagem afrontará a trapaça de Maurício. Espírito não
se determina como um homem pobre, revoltado ou resignado que se condiciona ao
sofrimento pela perda da canção e o engano de sua boa-fé. O rosto do personagem logo
se transforma, ele sorri e canta a música de sua autoria.
Na relação de seu rosto com Ogum (Figura 4.), encontra-se uma de suas armas de
guerra, a qual, como uma lança, perfura a situação para uma abertura que faz ver o
povoamento de Espírito, ou seja, sua irredutibilidade. É por meio do rosto povoado que se
percebe a arte do samba como transgressão ao estado de coisas. Espírito puxa o samba,
seu rosto está alegre, os amigos levantam, batucam, cantam, a vida segue em novo
movimento. O político-afetivo de Espírito aparece em seu rosto pelo povoamento, ou seja,
uma nova organização de seus afetos que não permitem a captura de sua vontade de
criação pela trapaça de Maurício.

6.  A imagem do orixá Ogum sincretizada pela religião afro-brasileira Umbanda por meio da representação
Católica de São Jorge é recorrente na cinematografia de Nelson Pereira dos Santos. Podem-se citar como
exemplos os filmes Boca de Ouro (1962) e O amuleto de Ogum (1974). As significações que Ogum produz
junto a essa religião afro-brasileira o remetem aos impulsos de vida; desse modo, ele é reconhecido por
seus devotos como o senhor das vontades. Na mitologia dos orixás, existe Oxalá, que, na Umbanda, é
representado pela imagem de Jesus Cristo associando-se à ideia de criação. Nesse sentido, como senhor
da vontade, na hierarquia religiosa, Ogum é a vontade do criador.

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5398
Implicações político-afetivas da relação imagem-narrativa na análise do personagem cinematográfico

Márcio Zanetti Negrini

Figura 4. O rosto de Espírito mostra suas armas de povoamento.


Fonte: Rio, Zona Norte (1957). Sequência 15, tempo 00:42

O personagem lida com a situação de captura de sua criação pelo produtor de


rádio a partir da própria composição, que foi fraudada por Maurício. Espírito recria sua
música na medida em que ele mesmo a interpreta (Figura 4.). Ou seja, seu rosto revela
o povoamento como estratégia de vida por intermédio do novo. Isso quer dizer que o
rosto do personagem mostra a repetição do samba apropriado por Maurício não como
retorno da canção ao seu lugar de origem. O que Espírito produz é a diferença entre o
que ele havia criado e foi capturado por Maurício e aquilo que se forma como algo novo.
Assim, o rosto povoado de Espírito revela que, ao reinterpretar sua composição que acaba
de ser cantada na rádio por Alaor da Costa, aquilo que é produzido enquanto afeto é
diferente da composição original escrita por Espírito e interpretada por ele próprio na
ocasião do ensaio na Escola Unidos da Laguna. O que se soma à formação afetiva do rosto
de Espírito na figura 2 e compõe o seu rosto na figura 4 é a resistência ou, então, o não
condicionamento ao estado de coisas por meio dos afetos que são mobilizados pelo novo
samba e que são vistos em seu rosto.
Espírito resiste, e isso pode ser identificado quando Adelaide, que na figura 3
conectava-se à tentativa de cooptação dos afetos de Espírito (por meio dos olhares para
Maurício, Moacir e sua mulher), tenta bloquear o movimento novo produzido pelo
sambista. Adelaide é mostrada em primeiro plano pela câmera trocando as estações de
rádio. Resulta disso que são produzidos, por meio do sonoro, ruídos distorcidos que
formam um campo de imobilização, ou seja, uma tentativa de interceptar a movimen-
tação do novo que Espírito produz, em segundo plano, junto aos seus amigos. O rosto
de Espírito não se desfaz pela ação de Adelaide, pois os afetos do personagem operam
como formação de resistência ressignificando a música (Figura 4.). Assim, forma-se a
arma de guerra que nesse embate não submete o desejo de criação do personagem às
forças que tentam reduzir sua forma de estar no mundo.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise reflete o político-afetivo por meio das transfigurações nas linhas do rosto
do personagem. Esses movimentos de sua face são vínculos imagéticos entre os sentidos
narrativos e a materialidade que compõe a representação de Espírito. Desse modo, a
análise percebe que as resistências são ativadas numa inter-relação com as questões
socioafetivas. Isso implica num envolvimento da narrativa com as imagens, que são
consideradas numa perspectiva sensível dos afetos. Assim, a resposta à questão de como
o personagem resiste em suas formas de não condicionamento político-social encontra-
se em seu rosto e nos elementos visuais a eles conectados numa relação inalienável com
sua história de vida narrada no filme.

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5399
Implicações político-afetivas da relação imagem-narrativa na análise do personagem cinematográfico

Márcio Zanetti Negrini

Ao observar as figuras de análise por meio das categorias, percebeu-se que os


movimentos produzidos entre as relações imagético-narrativas resultam em campos de
força. Ou seja, ora a imagem revela formas de resistência, e a narrativa, sujeições, ora a
narração produz sentidos de resistência e a imagem revela estabilizações nas formas de
transformação afetiva do personagem. Nota-se com isso que as categorias de análise do
rosto povoado e rosto despovoado remetem-se umas às outras constantemente. Assim, as
contradições nas formas de resistência desse personagem estão implicadas na invasão
de sentidos da narrativa pelas imagens, do mesmo modo que a narração também força
as imagens na produção de novos sentidos que formam as disputas entre sujeições
político-sociais e emancipações político-afetivas.
A perspectiva adotada para compreender o personagem em suas características
político-afetivas também considera que a análise fílmica, aliada à subjetividade, inscreve
o olhar lançado sobre o filme como um ponto de vista que implica uma partilha simbólica.
Dessa forma, a análise fílmica criada é uma regulação dos campos de forças formados
pela inter-relação imagem-narrativa-afeto no filme Rio, Zona Norte (1957).

REFERÊNCIAS
Badiou, A. (2004). El cine como experimentación filosófica. Pensar el Cine 1: imagen,
ética y filosofia. Gerardo Yoel (Ed.) . Buenos Aires: Manantial.
Deleuze, G. (1985). A imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense.
Kracauer, S. (2001). Teoría del Cine. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica.
Rancière, J. (2009). A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34.
Rancière, J. (2012). O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto.
Santos, N. (Diretor), (1957). Manchete Vídeo [VHS]. Brasil.

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5400
Do Jogo de Cena a Cópia Fiel:
as potências do falso no cinema de Eduardo
Coutinho e Abbas Kiarostami
J e s s i c a G o n ç a lv e s de Andrade1

Resumo: Como fazer cinema em um mundo onde os meios de comunicação


determinam os relatos que devemos acreditar restringindo o real ao visível, onde
a maioria dos filmes se dissociou da vida cotidiana? Diante de tal questionamen-
to é que este artigo vem refletir o cinema contemporâneo e a partir do conceito
deleuziano de Potências do Falso. Estudamos dois filmes que trazem algumas
pistas de que o cinema contemporâneo ainda pode ser ligado ao cotidiano das
pessoas comuns: Jogo de cena (2007) do cineasta brasileiro Eduardo Coutinho e
Cópia Fiel (2010) do iraniano Abbas Kiarostami. Faremos uma analise dos filmes
citados em duas etapas: primeiro faremos a decomposição fílmica, descrevendo-
-os, em seguida, estabeleceremos as relações entre esses elementos decompostos
e o conceito de Potência do Falso de Gilles Deleuze (2005). As (in)conclusões nos
levam para além da armadilha de ficar interpretando enigmas tentando descobrir
quem é quem em uma leitura ilusória do que pretende ser cada obra. Buscamos
uma potência inventiva onde a noção de falso e verdadeiro foi arruinada con-
duzindo o pensamento a sua capacidade de inovar e inventar. O falso foi, e é, à
potência artística que dá ao eterno retorno a função fabuladora do pensar.
Palavras-Chave: Potências do Falso, Cópia Fiel, Jogo de Cena, Fabulação, Pensar

Abstract: How to cinema in a world where the media determine the accounts
that we believe restricting the real visible, where most films dissociated from life
everyday? Faced with this question is that this article is to reflect contemporary
cinema and from the Deleuzian concept Powers of the False. We present two
films that bring some clues that the contemporary cinema can still be connected
to the daily lives of ordinary people: Jogo de cena (2007) Brazilian filmmaker
Eduardo Coutinho and Copie Conforme (2010) of the Iranian Abbas Kiarostami.
We will analyze the films mentioned in two steps: first we will film decompo-
sition, describing them, then we will establish the relationships between these
False decomposed elements and the concept of power Deleuze (2005). The (in)
findings lead us beyond the trap of spending playing puzzles trying to figure
out who is who in an illusory reading of would-be each work. We seek an
inventive power where the notion of true and false was ruined leading thought
their ability to innovate and invent. The fake was, and is, the artistic power that
gives the eternal return the fabulation function of thinking.
Keywords: Powers of the False, Jogo de Cena, Copie Conforme, Fabulation, Think

1.  Doutoranda em Difusão do Conhecimento na Universidade Federal da Bahia (UFBA); Mestre em Educação
pela Universidade Tiradentes (Unit); Pedagoga licenciada pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).

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Do Jogo de Cena a Cópia Fiel: as potências do falso no cinema de Eduardo Coutinho e Abbas Kiarostami

Jessica Gonçalves de Andrade

INTRODUÇÃO

E M O céu de Lisboa (1994) Wim Wenders deixa escapar em uma das falas do filme
um simbólico dilema que a produção cinematográfica vive na contemporaneidade
“Antes as imagens contavam histórias, mostravam coisas. Agora elas sequer sabem mais
como mostrar as coisas. Simplesmente esqueceram. As imagens estão vendendo o mundo e com
um grande desconto”. Tal afirmação nos faz pensar em algumas interrogações: como
podemos fazer cinema em um mundo onde os meios de comunicação determinam os
relatos que devemos acreditar restringindo o real ao visível? Como fazer cinema em
um mundo onde a maioria dos filmes se dissociou da vida cotidiana?
A produção cinematográfica é detentora de uma linguagem específica em que o som,
o movimento e as imagens são trabalhados para organizar uma mensagem intencional.
A linguagem é definida por sua relação com as imagens. Entendemos que o exercício do
‘ver’ é o elemento principal desta linguagem, a qual se organiza em torno das imagens
e da possibilidade de “ver” ou “ler” o filme. Entendemos que quando falamos de um
filme, falamos daquilo que nele nos movimenta enquanto dura sua exibição, e para nós,
esta duração ultrapassa o tempo cronológico de cada filme. Alguns passam sem deixar
nada, outros perduram muito tempo e existem aqueles que nunca terminam. Em nosso
interior, cada filme vai fazendo seus percursos, encontrando-se com outros filmes, com
textos e com situações da vida.
Diante de tais inquietudes, podemos pensar em dois filmes que trazem algumas
pistas de que o cinema contemporâneo ainda pode ser ligado ao cotidiano das pessoas
comuns. O cineasta brasileiro Eduardo Coutinho em 2006 lança o documentário Jogo de
cena, o qual se tornou um marco não apenas em sua carreira de documentarista, mas
também na forma de se produzir documentários. Neste filme, Coutinho aborda uma
questão crucial discutida no meio de produção cinematográfica: quais os condutores
imperceptíveis que separam os gêneros cinematográficos, documentário e ficção?
Na primeira cena do filme vemos um anuncio de jornal que oferece não um produto
ou serviço, mas um espaço de compartilhamento de histórias o qual convida mulheres
do Rio de Janeiro a contar suas histórias. Em meio a um teatro vazio, Coutinho se propõe
a ouvir algumas das histórias contadas por aquelas mulheres. É neste momento que as
histórias que seriam de mulheres reais começam a ser encenadas por atrizes, a partir dai
não sabemos se quem conta a história foi quem viveu a situação descrita, ou se ela esta
sendo encenada. De quem é essa história? O que é representação? O que é encenação?
Quem é real e quem é ficção? Tudo é mentira ou tudo é verdade?
Em 2010 o cineasta iraniano Abbas Kiarostami lançou o filme Cópia Fiel. Diferente-
mente dos seus outros filmes, que privilegia a atuação de pessoas pouco ou nada
conhecidas, para Cópia Fiel, a opção do diretor incide na renomada atriz francesa Juliette
Binoche e o conhecido barítono inglês William Shimell. O filme se passa em Toscana
na Itália e conta a história de James Miller (William Shimell), um escritor que defende
a tese de que a qualidade de uma obra de arte depende do contexto e está nos olhos
de quem a vê, então uma falsificação pode ter a mesma validade do original.
Logo na primeira cena do filme, o escritor aparece dando uma palestra sobre o seu
mais novo livro que leva o mesmo título do filme. Ele defende a tese que a cópia tem um

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5402
Do Jogo de Cena a Cópia Fiel: as potências do falso no cinema de Eduardo Coutinho e Abbas Kiarostami

Jessica Gonçalves de Andrade

valor próprio e propõe em suas próprias palavras “um paralelo entre a reprodução na
arte e a reprodução na raça humana”. Enquanto vemos James discursar que o original
nada mais é do que uma reprodução de alguma coisa que é externo a ele, avistamos
na platéia Elle (Juliette Binoche), dona de uma loja de artigos antigos que se interessa
pelo tema abordado pelo escritor. James Miller precisa voltar para a Inglaterra, mas
antes aceita o convite de Elle que na companhia do seu filho, o leva para passear pelas
ruazinhas da comuna de Lucignano. Passando por um café, os dois são confundidos
como marido e mulher, e por brincadeira passam a encenar esses papéis.
Compreendemos que, tanto Coutinho quanto Kiarostami põem em suspeita o
conceito de arte como portadora de uma aura e de autenticidade. No entanto, o que
nos interesse aqui é compreender como estes dois filmes podem proporcionar um
cinema das potências do falso (DELEUZE, 2005). Refletimos que, é possível pensar em
um paralelo entre ambos os filmes os quais se assumem como reproduções aceitando
a impossibilidade de correlação com o que realmente vem a ser uma obra original,
uma obra da vida.
Para além da armadilha de ficar interpretando enigmas como detetives tentando
descobrir quem é quem nesse jogo de erros e acertos em uma leitura superficial do que
pretende ser cada obra, pretende-se aqui ir muito além de uma busca pela verdade e
mentira do cinema. Tentaremos inventar pensamentos onde a noção de original e cópia
seja arruinada, de modo a aprender, mas nunca saber, conduzindo o pensamento a
sua extraordinária capacidade de inovar de inventar, impedindo que este se restrinja a
opiniões, boatos ou reproduções. Aqui o falso vem a ser a potência artística que dá ao
eterno retorno a função fabuladora de se pensar.

KIAROSTAMI E SUA CÓPIA FIEL


Enquanto o Irã é negativizado pelas grandes potências econômicas do mundo, seu
cinema segue produzindo filmes artisticamente instigantes, prova disso é o cinema de
Abbas Kiarostami, o qual se insere em uma perspectiva universal embasado na natureza
filosófica da sétima arte, das artes plásticas e da poesia, deste modo ele não consegue
ser enquadrado no sistema vigente deste país. Quando Kiarostami dirigiu seu primeiro
curta O Pão e o Beco (1970) foi fato determinante para o desenvolvimento do cinema no
país dando oportunidade a novos diretores e gerando o que alguns autores chamam
de “novo cinema iraniano”. Kiarostami trilhou um caminho próprio, por isso é difícil
associá-lo a um gênero, seu papel para o cinema iraniano transcende fronteiras. Desde
Gosto de Cereja (1997, Leão de Ouro em Cannes) ele projetou a cinematografia iraniana
para o mundo, suscitando estudos acadêmicos, abordagens jornalísticas, e linhas estéticas
particulares.
O caráter experimental de Kiarostami Fica evidente nos seus três filmes rodados
em épocas diferentes: Onde fica a casa do meu amigo?, Close-up, Gosto de Cereja, Através das
Oliveiras, Dez. O iraniano trabalha para que a ficção ecoe como expressão da realidade.
Ou seria a realidade com uma expressão da ficção? É nesta perspectiva que tentamos
aqui nos ater a um dos seus filmes: Cópia Fiel.

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Do Jogo de Cena a Cópia Fiel: as potências do falso no cinema de Eduardo Coutinho e Abbas Kiarostami

Jessica Gonçalves de Andrade

Figura 1. Cena do Filme Cópia Fiel

Em Toscana, Itália vemos um auditório ruídos com vozes de pessoas ansiosas para
o início de uma conferência, ao fundo a câmera imóvel apresenta um balcão com dois
microfones, uma garrafa de água e um livro, que tem o mesmo nome do filme. Assim
como os ouvintes que estão ali a esperar o conferencista, o espectador também espera
alguns minutos por ele. James Miller (William Shimell) é o homem que chega atrasado
ocupa o lugar central do auditório para discursar sobre seu novo livro. Segundo sua
tese, a qualidade  de uma obra de arte depende do contexto e está nos olhos de quem
a vê, então uma falsificação pode ter a mesma validade do original. A arte (escultura,
pintura, fotografia, cinema) que tanto se admira como portadora de uma aura2, está
compreensível a todos, bastando apenas um olhar de sensibilidade.
Em outras palavras, uma vez que tudo se configura mediante o olhar que qualquer
sujeito lhe conduz, não é aceitável pensar que somente uma peça de museu seja obra
de arte por ser esta a “verdadeira”. Para Miller, a arte existe pelo olhar que se dirige
a ela, é uma relação, mantida pelo movimento, por fissuras, fugas e escapamentos e
não por uma essência inatingível que ela portaria e que a alocaria em um lugar nunca
compreensível. Diante de sua conferência o escritor acaba por travar uma discussão com
uma leitora entusiasmada do seu trabalho, Elle (Juliette Binoche), que é dona de loja
de reprodução de obras de arte antigas no mesmo local. O fato de partilharem vários
interesses em comum dá ensejo a um pequeno passeio de carro pela bucólica Toscana,
quando a dona de um café os confunde com um casal, a partir dai ambos passam a
comportar-se efetivamente enquanto tal, já não como duas pessoas que acabaram de
se conhecer, mas enquanto marido e mulher, casados há sensivelmente quinze anos.
Neste momento, a obra de Kiarostami se desenrola de maneira peculiar, em um
jogo labiríntico onde espectador ocupa um lugar central. Em primeiro momento, James
e Elle parecem ser meros desconhecidos que após a palestra se conhecem, em segundo
momento, ambos se assumem ser um casal imerso em uma crise conjugal, e durante toda
a trama ficamos sem saber se eles realmente são um casal ou não. O filme desdobra-se

2.  Para Walter Benjamin a Aura está relacionada à autenticidade de uma obra. Tal fator cria uma sucessão
de valores sobre a obra. A medida que se põe em prática o processo de reprodução desta obra, sua aura se
enfraquece (BENJAMIN, 2012).

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Do Jogo de Cena a Cópia Fiel: as potências do falso no cinema de Eduardo Coutinho e Abbas Kiarostami

Jessica Gonçalves de Andrade

no interior de si próprio, duplicando-se. Na sua narração Kiarostami, faz com que os


personagens pareçam simular uma ficção alternativa.
Eles são casados?
Eles não são casados?

Figura 2. Cena do Filme Cópia Fiel

Qual o sentido de distinguir uma espécie de sub-ficção no interior da ficção principal,


como se tivéssemos, durante a primeira parte do filme, a “ficção-real e, na segunda parte,
a “ficção-fictícia”? Por que razão seria a primeira ficção mais real do que a segunda?
Qual seria o critério que permitiria estabelecer uma tal distinção? Para Jean-Claude
Bernardet (2004) na obra de Kiarostami há um  princípio da incerteza que rege a obra do
cineasta: em decorrência desse recurso autoral, o espectador nunca sabe exatamente a
que está assistindo.
Mostrando-nos uma inconstância entre as fronteiras da arte e vida Cópia Fiel insinua
a manifestação de uma zona de indiferenciação em que arte e vida se confundem, onde
a arte mostrar-se como palpitação de vida e, por sua vez, a vida aparece como a arte
de viver. No momento em que James nos apresenta a ideia de que, independente do
paradoxo original/cópia o importante é que, quem aprecia uma obra de arte consiga
desfrutar do que vai além daquilo que é representado, o próprio filme se transforma
em uma metalinguagem .

O JOGO DE CENA DE COUTINHO


Eduardo Coutinho é um cineasta brasileiro, nascido em São Paulo (1933) no seio de
uma família abastada e se identificou com o cinema desde jovem. Segundo Bernardert
(2000) no inicio de sua carreira Coutinho não veda nenhum tema ao cinema o qual
deixou de ser um meio exclusivo de contar ‘estórias’ para se tornar também um meio
de reflexão política, estética, ética, religiosa, sociológica. Percebemos isso com um dos
seus principais filmes Cabra Marcado para Morrer.
Sua imagem profissional é reconhecida como uma referência no cinema documental,
considerado unanimemente como o criador de um modo próprio de fazer documentário.
Segundo entrevistas dadas por ele mesmo, seu método de trabalho segue algumas
características: fazer uma pesquisa anterior para descobrir pessoas que queiram (e
saibam) contar histórias, eleger aquelas com quem ele irá “conversar” e só surgir no

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Do Jogo de Cena a Cópia Fiel: as potências do falso no cinema de Eduardo Coutinho e Abbas Kiarostami

Jessica Gonçalves de Andrade

dia marcado, na ocasião da filmagem. Dentre os seus filmes mais aclamados poremos
citar: Boca de Lixo, Santo Forte, Edifício Master, Peões e mais especificamente aqui analisado
Jogo de cena.
Jogo de Cena inicia com a foto de um anúncio de jornal, que convida mulheres maiores
de 18 anos, residentes do Rio de Janeiro, a participar de um teste para contar histórias.
Compareceram 83 mulheres as quais narraram suas histórias, experiências pessoais, mas
apenas e 23 foram selecionadas para o documentário. Os depoimentos foram gravados
separadamente no Teatro Glauce Rocha, em uma produção onde estão presentes apenas
a pequena equipe, o diretor e a mulher que contará a história da vez. Dessas mulheres
algumas eram atrizes reconhecidas nacionalmente: Marília Pêra, Andrea Beltrão, e
Fernanda Torres, outras eram mulheres não conhecidas, mas que também encenam.

Figura 3. Convite para gravação do filme Jogo de Cena

O grande momento do filme é quando percebemos que as histórias contadas, que


pareciam ser a história de vida daquela mulher, começam a se repetir. O espectador
num primeiro momento deve ficar na dúvida: quem é a verdadeira dona da história e
quem está interpretando?
Os relatos são histórias de vida desafiadoras, gravidez indesejada, a perda de um
filho, separação conjugal traumática. No entanto, a maneira como Coutinho ordena as
personagens no filme deixa claro que seu objeto central é a representação. Para Coutinho,
o que interessa é mostrar como aquelas mulheres se portam diante da câmera, não
interessa saber de quem é a história, pois ela pode ser de qualquer um, inclusive de
nenhuma daquelas mulheres. Pode ser uma história montada ou um roteiro dado pelo
próprio diretor. Mas, o que importa sabem de quem é a história, ou pensar que estamos
sendo enganados.
Desde que Coutinho dirigiu Santo forte e em meio ao documentário ele faz o
pagamento de cachê para as pessoas que irão participar deste documentário, ele sofreu
muitas críticas. Como assim? Então era tudo mentira? Então para desconstruir este
questionamento e nos trazer ainda mais perguntas é que Coutinho roda Jogo de Cena.
De acordo com Giovana Scareli (2012) em Santo Forte Coutinho faz o pagamento para
garantir a presença das pessoas, de preferência nas suas casas, evitando transtornos de
ir até o local e não encontrar ninguém.

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Do Jogo de Cena a Cópia Fiel: as potências do falso no cinema de Eduardo Coutinho e Abbas Kiarostami

Jessica Gonçalves de Andrade

Para Coutinho “a filmagem é um acontecimento único: não houve antes, nem há depois”.
Ele diz ainda “eu odeio que as coisas aconteçam no mundo sem uma câmera. (...) Porque o
que não é filmado está perdido, né? Porque não pode repetir, manja? Você pode repetir o
gesto, a fala não” (SCARELI, 2012. p. 56).

Figura 4. Cena do filme - Jogo de Cena

Para além de tentar definir se Jogo de Cena está no gênero documentário, ou ficção, nos
interessa aqui perceber a fragilidade da concepção do que é falso e do que é verdadeiro.
E o filme realiza isso utilizando uma composição categoricamente minimalista, sem
personagens com grandes apresentações, sem grandes movimentos de câmera, e sem
um roteiro com muitas manobras. Mas, a configuração de ordenamento e montagem
dessas histórias é suficiente para questionarmos a objetividade do gênero documentário
e o conceito de verdade.
Percebemos então que Jogo de Cena expõe claramente que a única realidade
documental que existe é a realidade do filme, arquitetada pelo filme, conseqüência
do encontro do diretor e sua forma de narrar, expor ou montar as experiências das
entrevistadas, sejam elas propriamente vivenciadas ou somente apropriadas pelas atrizes.

CÓPIA FIEL E JOGO DE CENA NA PERSPECTIVA DAS POTÊNCIAS DO FALSO


Desde o surgimento do cinema, podemos notar a essência de dois tipos diferentes
de imagens: os irmãos Lumière apostavam nas imagens documentais mostrando alguns
trabalhadores saindo de uma fábrica enquanto um trem chegava à estação, Georges
Meliès, por sua vez, iniciou um diálogo entre as técnicas ilusionistas e a falsificação do
real. Para Deleuze (2005) o cinema é a arte da falsificação e distingue dois regimes de
imagens: um orgânico e outro cristalino a partir da descrição e da narração.
Para Deleuze (2005), quanto a descrição, a imagem “orgânica” supõe uma inde-
pendência do seu objeto, este tipo de imagem pressupõe a independência de um meio
qualificado e definem situações sensório-motoras. Neste tipo de imagem, o que conta é
o meio descrito em que cenários ou externas valha uma realidade supostamente pree-
xistente. Para este autor nas descrições orgânicas o real suposto é reconhecido pela sua
continuidade é um regime de relações localizáveis, de encadeamentos atuais, conexões
legais, causas e lógicas. Elas se atualizam em função da necessidade do atual presente.

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Do Jogo de Cena a Cópia Fiel: as potências do falso no cinema de Eduardo Coutinho e Abbas Kiarostami

Jessica Gonçalves de Andrade

Por sua vez, a imagem “cristalina” se refere a descrição que vale por seu objeto, que o
substitui, cria-o e apaga-o ao mesmo tempo e sempre está dando lugar a outras descrições
que contradizem, deslocam ou modificam as precedentes. A imagem cristalina constitui
seu próprio objeto, remetem a situações puramente óticas e sonoras desligadas de seu
prolongamento motor. (DELEUZE, 2005, 155-156). As descrições cristalinas remete-nos
a situações puramente óticas e sonoras.
Segundo Deleuze (2005), o regime orgânico abrange o irreal, a lembrança e o sonho,
mas por oposição, delimitando sempre o que é o real e o que é imaginário, bem diferente
do regime cristalino, onde o real e o imaginário, o atual e o virtual são indiscerníveis.
A narração orgânica consiste no desenvolvimento dos esquemas sensório-motores
segundo os quais as personagens reagem a situações, ou agem de modo a desvendar a
situação, é uma “narração verídica, no sentido em que aspira o verdadeiro ate mesmo
na ficção” (DELEUZE, 2005, p. 157). Neste tipo de narração, é considerado como um
meio no qual as tensões se resolvem conforme um princípio de economia, segundo leis
distintas entre os extremos de mínimo e máximo: os caminhos mais simples, o desvio
mais adequado, a palavra mais eficaz, o máximo de efeito. Aqui o tempo depende da
ação, do movimento.
Enquanto que a narração cristalina, implica um aniquilamento dos esquemas sen-
sório-motores dando lugar às situações óticas e sonoras puras nas quais os personagens
já não podem ou querem reagir, pois precisam enxergar o que há na situação. Neste
sentido, as irregularidades dos movimentos se tornam o essencial, ao invés de serem
acidentais ou eventuais. “Tendo perdido suas conexões sensório-motoras, o espaço
concreto deixa de se organizar conforme tensões e resoluções de tensão, conforme
objetivos, obstáculos, meios e até mesmo desvios [...] É aí que uma narração cristalina
vem prolongar as descrições cristalinas, suas repetições e variações, através de uma
crise da ação” (DELEUZE, 2005, p. 158).
Não temos mais uma imagem indireta do tempo que resulta do movimento, mas uma ima-
gem-tempo direta da qual resulta o movimento. Não temos mais um tempo cronológico que
pode ser perturbado por movimentos eventualmente anormais, temos um tempo crônico,
não-cronológico, que produz movimentos necessariamente “anormais” e essencialmente
“falsos” (DELEUZE, 2005. p. 159).

No cinema proposto por Deleuze (2005) a montagem continua sendo o ato


cinematográfico essencial, mas, desta vez, muda de sentido: em vez de compor as
imagens movimento de tal maneira que delas saia uma imagem indireta do tempo, ela
decompõe as relações em uma imagem tempo direta de tal maneira que desta saiam
todos os movimentos possíveis. Assim, Deleuze chama atenção para um ponto que
acredita ser essencial. Ao considerar a história do pensamento, ele constata que o tempo
sempre pôs em crise a noção de verdade, para ele é a forma ou a força pura do tempo
que põe a verdade em crise.
Aqui Deleuze (2005) traz o conceito de “incompossibilidade” que se diferencia da
contradição. Não é o impossível, é apenas o incompossível que procede do possível, ou
seja, o passado pode ser verdadeiro sem ser, necessariamente verdadeiro. Uma linha
reta como força do tempo, é também a linha que se bifurca e não para de se bifurcar,

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5408
Do Jogo de Cena a Cópia Fiel: as potências do falso no cinema de Eduardo Coutinho e Abbas Kiarostami

Jessica Gonçalves de Andrade

passando por presentes incompossíveis, retornando um passado que não é necessa-


riamente verdadeiro. Assim, a narração deixa de ser verídica, de aspirar a verdade,
para se fazer essencialmente falsificante. Isto não significa dizer que cada um tem uma
verdade como uma variabilidade que se referiria ao conteúdo, mas é uma potência do
falso que substitui e destrona a forma do verdadeiro, pois ela afirma a simultaneidade
de presentes incompossíveis, ou a coexistência de passados não necessariamente ver-
dadeiros. Deleuze (2005) compreende a potência do falso como o princípio mais geral
das relações na imagem-tempo.
A descrição cristalina atingia já a indiscernibilidade do real e do imaginário, mas a narração
falsificante que lhe corresponde vai um pouco adiante e coloca no presente diferenças inexpli-
cáveis; no passado, alternativas indecidíveis entre verdadeiro e falso. O homem verídico morre,
todo o modelo de verdade se desmorona, em favor da nova narração (DELEUZE, 2005, p. 161).

A narração abandona a função de ser verdadeira que se prende a descrições reais


(sensório-motoras), sendo que desta vez a descrição se torna seu próprio objeto e a
narração se torna temporal e falsificante. Desse modo, a formação do cristal, a força
do tempo e a potência do falso são estritamente complementares, e não param de se
implicar como as novas coordenadas da imagem. Neste momento podemos fazer uma
relação com o que Kiarostami nos mostra em Cópia Fiel no momento em que o casal
Miller e Elle, aparentemente desconhecidos um para o outro no inicio do filme, começam
a encenar, como num teatro, que são marido e mulher. Para Deleuze (2005) o falsário
torna-se o próprio personagem do cinema e não o cowboy, ou o herói, mas o falsário, o
falsário como uma figura ilimitada de condições.
Para Deleuze (2005), a narração verídica se desenvolve organicamente, segundo cone-
xões legais no espaço e relações cronológicas no tempo, provoca uma investigação que
a referem ao verdadeiro e um sistema de julgamento. A narração falsificante escapa desse
sistema, ela quebra o sistema de julgamento, seus elementos estão sempre mudando,
conforme mudam as relações de tempo e suas conexões, fato que conseguimos perceber
na narração de Cópia Fiel, para Deleuze (2005), as metamorfoses do falso estão sempre
substituindo a forma do verdadeiro.
Da mesma forma que Coutinho em Jogo de Cena, a narração deixa de ser verídica,
deixa de aspirar a verdade para, segundo Deleuze (2005) se fazer essencialmente fal-
sificante em uma potência do falso que destrona a forma do verdadeiro pois afirma a
simultaneidade de presentes imcompossíveis ou coexistências de passados não neces-
sariamente verdadeiros. Para Deleuze (2005) a descrição cristalina atinge já a indiscer-
nibilidade do real e do imaginário mas é na narração falsificante que consegue levar
adiante a potência do falso, colocando no presente diferenças inexplicáveis e no passado
alternativas indecidíveis entre o que é verdadeiro e o que é falso.
A narração de ambos os filmes cria uma imagem cristalina falsificante que escapa,
pois a potência do falso muda os próprios elementos com as relações de tempo, ela
está sempre se modificando segundo os lugares desconectados e descronologizados
(DELEUZE, p. 162). Contrariamente a forma do verdadeiro, trazido pela imagem orgânica,
que é unificante e tende a identificação de um personagem, descobertas ou simplesmente
coerências. A potência do falso no cinema vem como multiplicidade do pensar, fabular.

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Do Jogo de Cena a Cópia Fiel: as potências do falso no cinema de Eduardo Coutinho e Abbas Kiarostami

Jessica Gonçalves de Andrade

(IN)CONCLUSÕES PO-TENTES
Diante de tais pontuações, vale ressaltar que não estamos tentando aqui interpretar
os enigmas dos filme Cópia Fiel e Jogo de Cena a fim de descobrir quem é quem em uma
leitura ilusória do que pretende ser cada obra. Ao contrário, buscamos aqui uma potência
inventiva onde a noção de falso e verdadeiro é arruinada conduzindo o pensamento a
sua capacidade de inovar e inventar. Aqui o falso é considerado à potência artística que
dá ao duradouro retorno a função fabuladora do pensar.
Propomos que o cinema contemporâneo tente descobrir ainda mais esse regime
de imagem cristal, a imagem tempo direta, a qual atua com descrições óticas e sonoras
puras, narrações falsificantes, puramente crônicas. De modo que ao mesmo tempo em
que a descrição deixa de pressupor a realidade, a narração também deixa de remeter o
verdadeiro. Deleuze (2005) pensa em um cinema para além da vontade de verdade,
que assim como a filosofia, pode inventar novos conceitos e pensamentos, e é
nesse ponto que os filmes Jogo de Cena e Cópia Fiel aparecem como mediador da
potência do falso, produzindo de novas imagens do pensamento ou de pensa-
mentos sem imagem.

REFERÊNCIAS
BERNARDET, Jean-Claude. Caminhos de Kiarostami. São Paulo: Companhia Das Letras, 2004.
BENJAMIN, W. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. 1 edição. Porto Alegre:
Zouk, 2012.
DELEUZE, Gilles. Cinema II – A imagem-tempo. São Paulo-SP: Brasiliense, 2005.
KIAROSTAMI, Abbas. Abbas Kiarostami: duas ou três coisas que sei sobre mim. São Paulo:
Cosac Naify, 2004.
OHATA, Milton (Org). Eduardo Coutinho. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
SCARELI, G. Santo Forte: cinema e educação na obra de Eduardo Coutinho. São Cristóvão:
Editora UFS, 2012. 186 p.
JOGO DE CENA (2007). Direção de Eduardo Coutinho.
CÓPIA FIEL (2010). Direção de Abbas Kiarostami.

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Luz, Câmera e Encenação: aproximações entre o cinema
de Michael Haneke e o teatro de Bertold Brecht
Light, Camera and Staging: approaches between Michael
Haneke cinema and the theatre of Bertolt Brecht
L í v i a M a r i a M a rqu e s Sa m pa io 1

Resumo: A proposta deste trabalho é fazer uma análise dos pontos de


convergência entre o teatro épico de Bertold Brecht e o cinema de Michael
Haneke, a fim de demonstrar que o cinema de Haneke utiliza diversos recursos
propostos por Brecht, o que traz como resultado um cinema reflexivo. Tomando
como base suas produções cinematográficas, pretende-se demonstrar que seus
filmes possuem digitais da sua formação como dramaturgo e do seu trabalho
como diretor de teatro, e são uma importante ferramenta de estilo que ilumina
com especial atenção os elementos postos em cena. Os planos longos e fixos, a
demora da câmera em objetos e partes do corpo dos personagens, a distribuição
minimalista de objetos, entre outros recursos específicos, mostram que a atenção
dada pela mise-en-scène em seus filmes pode funcionar como um contraponto
à ideia que de a montagem é o elemento central do cinema.
Palavras-Chave: Cinema. Michael Haneke. Bertold Brecht. Mise-en-scène

Abstract: The purpose of this study is to analyze the points of convergence


between the epic theater of Bertolt Brecht and the cinema of Michael Haneke in
order to demonstrate that Haneke film uses many resources proposed by Brecht,
which brings as a result a reflective film. Based on their film productions, we
intend to demonstrate that his films have marks of his training as a playwright
and his work as a theater director, and are an important styling tool that
illuminates with special attention the elements put in scene. The long and steady
shots, the time the camera takes the objects and body parts of the characters, the
minimalist distribution of objects, among other specific strategies, show even
the attention given by the mise-en-scène in his films goes against the idea of
the editing as the central element of cinema.
Keywords: Cinema. Michael Haneke. Bertold Brecht. Mise-en-scéne

INTRODUÇÃO

N ASCIDO NA Alemanha em 1942, Michael Haneke, naturalizado austríaco, iniciou


sua carreira no campo das artes no início da década de 60 como pianista. Ao
abandonar o piano, frustrado por sua não vocação, como lamenta em entrevistas,

1.  Mestranda em Comunicação e Culturas Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia – UFBA.
E-mail lmmsampaio@hotmail.com

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Luz, Câmera e Encenação: aproximações entre o cinema de Michael Haneke e o teatro de Bertold Brecht

Lívia Maria Marques Sampaio

estudou Psicologia, Filosofia e Dramaturgia na Universidade de Viena. Após trabalhar


como crítico de literatura passou a editar roteiros para televisão. Neste caminho, come-
çou a escrever seus próprios roteiros, mas ao não encontrar possibilidades de lança-los
na TV, voltou-se para o teatro e dirigiu várias peças. Sua reputação cresceu no meio
artístico germânico e Haneke retornou à televisão, na estatal German Network SWF,
onde fez seu primeiro filme em 1974: After Liverpool, uma adaptação da peça de teatro
do britânico James Saunders.
Para Roy Grundmann (2010), no início da década de 70, Haneke já estava engajado
em uma grande variedade de projetos artísticos, dirigindo e produzindo diversas peças
de teatro, intercalando-as com trabalhos na televisão. No teatro ele dirigiu peças de
Margherite Duras, Heinrich von Kleist, Strindberg ( inclusive sua famosa peça The Father
), Mozart, enquanto no cinema ele era um diretor ativo de Spielfilme, gênero que nos
países de língua alemã correspondia às novelas brasileiras ou às minisséries. Segundo
Adalberto Muller (2011), os Spielfilms mobilizavam parte importante do audiovisual
naqueles países, e, por sua alta qualidade, a teledramaturgia lá produzida levou muitos
desses filmes feitos para a televisão a se transformarem em cult movies na Europa.
Assim, a carreira eclética de Haneke foi se expandindo, enquanto ele ganhava fama
como “diretor estrela”, “agente provocador financiado pelo Estado”. Um “enfant terrible”.
(Grundmann, 2010, p. 44).
É frequente a comparação entre o teatro de Bertold Brecht e o cinema de Haneke.
Embora este diga não ser um grande fã de Brecht, os pontos de convergência nas obras
dos dois realizadores são marcantes. Haneke, inclusive, por ter trabalhado muitos
anos como diretor de teatro, viveu a dramaturgia alemã e certamente conheceu com
profundidade a dramaturgia brechtiana. De acordo com Grundmann (2010) as práticas
realizadas por Haneke no teatro constituem o valor de suas obras e são sua principal
ferramenta de estilo. Ele busca um controle total do dispositivo cinematográfico através
de uma seleção rigorosa dos recursos que aparecem nos planos para alcançar os efeitos
pretendidos, entre eles, o mais evidente: provocar o espectador.
Este trabalho vai trazer alguns conceitos desenvolvidos por Bertold Brecht na
sua teoria do Teatro Épico, para identifica-los nos filmes de Michael Haneke, a fim de
compreender como eles são articulados no cinema para alcançar um resultado similar
ao pretendido por Brecht: distanciar o espectador da ficção e aproximá-lo da realidade
para que ele possa encontrar na representação uma possibilidade de reflexão.

O TEATRO ÉPICO DE BERTOLD BRECHT


A Teoria do Teatro Épico de Brecht 2, proposta no início do século XX, buscou romper
as convenções do teatro clássico (teatro aristotélico), que se caracterizava essencialmente
pelo efeito ilusionista, propondo uma nova teoria de representação que suprimisse a ideia
de ilusão, através, especialmente, do “efeito distanciamento”, que, afirma Gerd Bornheim

2.  “A expressão ‘ teatro épico ‘ justifica-se por duas razões. A primeira, mais exterior, é que ela estava em
moda, representava uma novidade introduzida por Piscator e que começava a contagiar Brecht. E a outra
está precisamente no fato de que Brecht toma consciência cada vez mais clara dos recursos necessários
para que se codificasse aquilo que logo mais seria assumido por ele como definidor do teatro épico ”.
(Bornheim 1992, p. 69).

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Luz, Câmera e Encenação: aproximações entre o cinema de Michael Haneke e o teatro de Bertold Brecht

Lívia Maria Marques Sampaio

“ trata-se da verdadeira coluna dorsal de tudo o que se faz em cena, ele é o grande meio
técnico do qual vai depender a própria essência do caráter épico do teatro”. (1992, p. 251)
Para isso, Brecht criou um método baseado na exibição do dispositivo que, ao revelar
os procedimentos técnicos, poderia suprimir a ilusão do espetáculo, provocando no
espectador um olhar consciente e realista sobre os fatos.
Brecht atribuiu ao ator um papel crucial para cumprir basicamente duas funções:
representar os problemas sociais e causar uma atitude crítica no espectador. Ele procurava
fazer o público entender as questões sociais como algo humano, e por isso, a mediação
entre o texto e a representação deveria estar centralizada no ator, o que não significava
esquecer os demais recursos (no caso do teatro são principalmente o palco, a iluminação
e os sons), ao contrário: todos os elementos necessitam, sempre, de controle, pois tudo o
que é posto em cena deve atuar obrigatoriamente. Nada deve estar no palco que possa
desviar a atenção sobre o fato encenado. O artista tem que criar um universo diegético
totalmente em conexão com o sentido ideológico da obra.
Segundo Brecht
As premissas para a utilização do efeito distanciamento com o fim citado são que se limpe
o cenário e a zona do público de todo elemento “mágico” e que não se formem “campos
hipnóticos” […] há que neutralizar com determinados meios técnicos a tendência do público
em embarcar-se em uma de essas ilusões (Brecht, 2004, p.131). 3Aspas do autor

Dentro das especificidades da dramaturgia brechtiana, entender o conceito de gestus


social é imperativo, inclusive para estabelecer esta comunicação entre o teatro de Brecht
e o cinema de Haneke. Gestus social pode ser definido como a expressão gestual das
relações sociais. O uso apropriado do gestus, segundo Brecht, cria um processo de
interação entre o ator e o espectador que permite definir a representação da realidade,
ou seja, o gestus deve ser politicamente útil para a ação. Para este dramaturgo, o gesto
estilizado, que costuma ser excessivamente dramático, não deve ser usado em nenhum
caso, o que converge com o pensamento de Haneke que inclusive escreveu em seu
texto Terror e Utopia da Forma: “sempre me pareceu obsceno assistir a um ator retratar,
com fúria dramática, alguém que estivesse sofrendo ou morrendo − é roubar daqueles
que estão realmente sofrendo ou morrendo sua ultima posse: a verdade” (HANEKE
in CAPISTRANO, 2011, p. 20). O movimento dos atores, sua expressão, seus gestos,
são sempre exatos para representar cada fato em cada cena. Não há excessos, o que se
assemelha também às ideias de Robert Bresson, um dos cineastas que inspirou Haneke.
Um suspiro, um silêncio, uma palavra, uma frase, um barulho, uma mão, seu modelo inteiro,
seu rosto, imóvel, em movimento, de perfil, de frente, um imenso ponto de vista, um espaço
restrito. Cada coisa exatamente no seu lugar: seus únicos recursos. 4 (Bresson, 1979, p. 32)

3.  Tradução livre de “Las premisas para la utilización del efecto distanciador con el fin citado son que se
limpie el escenario y la zona del publico de todo elemento «magico» y que no se formen «Campos hipn6ticos».
[...] hay que neutralizar con determinados medios técnicos la tendencia del publico a embarca rse en una
de esas ilusiones (Brecht, 2004, p. 131).
4.  Tardução livre de “Un suspiro, un silencio, una palabra, una frase, un estrepito, una mano, tu modelo
entero, su cara, quieto, en movimiento, de perfil, de frente, una vista inmensa, un espacio restringido. Cada
cosa exactamente en su lugar: tus únicos recursos. ( Bresson, 1979, p. 32)

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Luz, Câmera e Encenação: aproximações entre o cinema de Michael Haneke e o teatro de Bertold Brecht

Lívia Maria Marques Sampaio

É dentro desta lógica que está outro conceito de Brecht : parquedad, palavra que quer
dizer parcimônia, o que significa que o esvaziamento, a austeridade, são necessários e
não devem ser entendidos como uma instância pobre, inclusive porque o excesso pode
significar uma carência artística.
Na realidade, o excesso de objetos não é mais do que uma falta de espaço. Muitas vezes,
as casas mais pobres são mais ricas em objetos. Uma impressão de parquedad também
se deve à construção cênica do ilusionista que não se contenta em sugerir características,
trabalhar com abstrações, deixando a cargo do espectador a tarefa de concretizar. Se opõe
a paralização e atrofia a fantasia.5 (Brecht, 2004, p. 203)

Assim, tanto o movimento dos atores quando tudo o que é posto em cena deve
obedecer a um critério essencial: necessidade. Se não é necessário para representar
a trama, não deve existir. É a quebra da quarta parede, entretanto, que descortina –
literalmente – a relação palco/plateia. Um jogo de cena que arrasta e surpreende o
espectador.
Consta que a teoria da quarta parede foi proposta pelo teatro italiano, em meados do
século XIX. Na arquitetura desse teatro – ainda hoje predominante nos espaços cênicos
–, a visão do público deve ser frontal e distante do palco, em um formato quadrangular,
tendo, portanto, três paredes. A quarta parede seria imaginária, fazendo “com que o ator
seja como a pintura: observado por duas dimensões como o que nos permite a moldura
do quadro” (ROUBINE, 1998, p. 82). Nas palavras de Ismail Xavier
No século XVIII, o teatro assumiu com mais rigor a “quarta parede” e fez a mise-en-scène
se produzir como uma forma de tableau que, tal como uma tela composta com cuidado pelo
pintor, define um espaço contido em si mesmo, sugere um mundo autônomo de representa-
ção, totalmente separado da plateia. Como queria Diderot, a “quarta parede” significa uma
cena autobastante, absorvida em si mesma, contida em seu próprio mundo, ignorando o
olhar externo a ela dirigido, evitando qualquer sinal de interesse pelo espectador, pois os
atores estão “em outro mundo”. (Xavier, 2003, p. 17).

A quebra da quarta parede, proposta por Brecht, ocorre quando um personagem


se dirige ao espectador e/ou fala/faz algo em cena que mostra ao público que aquelas
ações são ficcionais. À primeira vista parece ambivalente pretender um distanciamento
do público se aproximando ele, lembrando-o de que o que ele está assistindo não é real,
porém a ideia é que, ao romper o limite – a quarta parede – entre quem assiste (e está
na plateia, ou seja, em um espaço da sua vida real) e quem atua ( dentro do espaço de
representação ), o espectador se depara com um dado de realidade : ele está assistindo
a uma peça de teatro. É isso que cria o “efeito distanciamento”. Primeiro, se suprime da
representação tudo que não é necessário – com o gestus e o parquedad – , aproximando
ao máximo a história contada da realidade, para depois quebrar a ilusão, mostrando
elementos que dão forma o teatro, como equipamentos de luz, cortinas, escadas, etc.

5.  Tradução livre de “En realidad, el exceso de objetos no es mas que una falta de espacio. A menudo las vivien-
das pobres son las mas ricas en objetos. Una impresión de parquedad también se debe a que la construcción
escenica no ilusionista se contenta con sugerir características, trabaja con abstracciones, dejando a cargo del
espectador el trabajo de concretar. Se opone a la paralización y a la atrofia de la fantasia”. (Brecht, 2004, p 203)

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Luz, Câmera e Encenação: aproximações entre o cinema de Michael Haneke e o teatro de Bertold Brecht

Lívia Maria Marques Sampaio

O som também é utilizado com a mesma função: ele não enfatiza ações, e sim, pontua
quebras de cenas e/ou é colocado em substituição a algumas falas, por exemplo. A
orquestra, quando existe, está à vista, no palco.
De fato, no ilusionismo do século XVIII, o teatro buscava fazer o público entrar ao
máximo na história, se esquecendo de que estava assistindo a uma encenação. A quebra
da quarta parede, em suma, propõe “cuidar para que não surjam campos hipnóticos’
que magnetizem o espectador” (BORNHEIM 1992, p.258). É bom lembrar que a quebra
da quarta parede já era usada na comédia antiga, como, por exemplo, em prólogos e
epílogos nas comédias de Plauto e Terêncio, mas o propósito de Brecht era romper o
ilusionismo conscientizando o espectador sobre a realidade social.

O TEATRO ÉPICO E O CINEMA DE MICHAEL HANEKE


Como já foi dito na pequena biografia de Haneke, antes de trilhar seu caminho no
cinema, ele passou pelo teatro e pela televisão, o que certamente influenciou seu estilo
cinematográfico. Há um forte tom teatral em suas obras, percebido especialmente pela
rigorosa construção da mise-en-scène que inclui a interpretação dos atores. Esta maneira
de Haneke filmar exemplifica a colocação de David Bordwell: “a feitura de um filme é
uma avalanche de escolhas mínimas [...]. Ao fazer suas escolhas, o cineasta é guiado
pelo ofício que dominou, pelos modelos que conhece, pelos ensaios, erros e hábitos da
experiência” (2013, p. 205).
Na fase inicial do cinema havia um enaltecimento da técnica da montagem por
ser puramente cinematográfica, em detrimento da encenação que remetia ao teatro.
Os críticos, muito atentos à montagem, praticamente ignoravam a mise-en-scène. Com
o cinema sonoro a encenação ganhou mais espaço, ainda que até hoje a montagem
habilidosa costuma ser mais elogiada do que uma encenação bem elaborada. Segundo
Bordwell, isso pode ser explicado pelo fato de que os recursos usados para a elaboração
da mise-en-scène são mais sutis do que os da montagem.
Tarkovsky, um grande defensor da mise-en-scène cinematográfica, usou a expressão
“tempo impresso“ para se referir à precisão de uma obra fílmica na qual só deveria estar
em cena personagens e objetos que tivessem função no enredo. As técnicas cinematográ-
ficas teriam que ser contidas, exatas, para dar um efeito de concentração no que estava
sendo mostrado, sem dar espaço à dispersão, de forma muito similar aos conceitos de
Brecht. Segundo ele, era preciso “deixar as mãos livres”, tirando “todos os elementos
desnecessários, inadequados ou irrelevantes, e fazê-lo de tal forma que a questão das
necessidades do filme e das coisas que deveriam ser evitadas fosse resolvida por si
própria” (1998, p. 111). Ele dá o exemplo de Bresson, que fazia seus filmes sem “nenhu-
ma introdução especial de material, nada de forçado, nada que lembre generalização
deliberada” (1998, p. 112).
No cinema é mais difícil do que no teatro dar funções a todos os elementos colocados
em cena, pois os filmes costumam carregar mais os espaços com objetos, porém em
praticamente todos os filmes de Haneke a composição do cenário aparece reduzida a
seus limites. Mesmo que os indícios sejam de que alguns personagens possuem uma
vida financeira abastada, o cenário costuma ser simples. Importante observar que na
maioria dos filmes de Haneke o espaço predominante é a casa, e nesta casa, a sala

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Luz, Câmera e Encenação: aproximações entre o cinema de Michael Haneke e o teatro de Bertold Brecht

Lívia Maria Marques Sampaio

costuma ter como decoração prateleiras com muitos livros ou paredes cheias de quadros,
ou seja, os ornamentos remetem à cultura dos personagens. Percebe-se, por exemplo,
que o garoto Benny, de Benny´s Video (1992), pertence a uma família rica, e não só pelas
obras de arte que estão nas enormes paredes da sala, como também no próprio aparato
tecnológico de Benny que, em 1992, só era acessível às pessoas que poderiam pagar uma
alta quantia por aquilo, mas o apartamento não é ostensivo. O mesmo ocorre com a casa
de férias dos Schober´s em Funny Games (1997) e Funny Games U.S (2007), e com o casal
em Amor (2012). Certamente um cenário luxuoso, com móveis vistosos, tapetes e lustres
chamativos, poderia ofuscar as ações dos personagens. Os cenários, austeros, estão
dentro do conceito de parquedad. Em um universo de 11 filmes, somente três destes – 71
Fragmentos – Uma Cronologia do Acaso (1994); O Tempo do Lobo (2003) e A Fita Branca (2009)
6
– possuem uma quantidade razoável de cenas externas, e nestes, o cenário – tanto nas
tomadas internas quanto nas externas – também é enxuto.
Da mesma forma, os atores, como componentes essenciais do distanciamento, só
aparecem em cena para mostrar algo ao público. Haneke trabalha com poucos perso-
nagens que normalmente estão centrados em um núcleo familiar composto de pai, mãe
e um filho/a. 71 Fragmentos – uma Cronologia do Acaso e A Fita Branca são exceções, pois
possuem diversos núcleos, e, consequentemente, um maior número de personagens,
mas todos eles têm uma função importante no enredo, inclusive é difícil identificar
“personagens secundários”, uma vez que quase todos protagonizam cenas.
Distribuição minimalista de objetos e pessoas dentro do quadro, silêncios
significantes, quadros vazios, entre outros aspectos, mostram que Haneke usa a
teatralidade de forma muito similar ao Teatro Épico, inclusive como contraponto ao
cinema espetacular. Em seus filmes é o plano fixo que predomina, e o movimento de
câmera é reduzido ao máximo para manter a concentração do espectador, com exceção
de casos isolados necessários para acompanhar determinadas cenas. A combinação do
plano fixo, com movimentos de câmara contidos e vários closes em partes dos corpos e em
objetos, produz um efeito semelhante a um olhar que percorre um cenário lentamente,
fixando esse olhar, às vezes, em algum objeto ou pessoa. O próprio autor diz que prefere
filmar planos longos porque os atores, principalmente os de teatro, desenvolvem com
mais fluência suas emoções quando não há cortes nem interrupções. Faz a ressalva
de que no caso de cenas externas e/ou com muitos coadjuvantes fica difícil manter a
qualidade de um plano longo, com seis, sete minutos, por exemplo, pois ao trabalhar
com muitas pessoas, especialmente não se tratando de atores profissionais, é difícil
não haver dispersão (MONTMAYEUR, 2013). Trabalhando com esses planos de longa
duração, a composição dos quadros é meticulosa. É como se o quadro fosse um palco
de teatro onde atores e objetos ganham movimento.
A quebra da quarta parede é usada em apenas três de seus onze filmes, mas de
forma marcante: em Código Desconhecido7 e nas duas versões de Funny Games. No pri-
meiro, em uma cena emblemática, Anne, uma atriz, interpretada por Juliette Binoche
está ensaiando a cena de um filme, quando a câmera se aproxima e uma voz ( não se
vê o dono da voz) diz que ela caiu em uma armadilha, que ela não sairá mais dali e que

6.  Títulos em inglês: 71 Fragments of a Chronology of Chance, Time of the Wolf e The White Ribbon respectivamente.
7.  Título em Inglês : Code Unknown.

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Luz, Câmera e Encenação: aproximações entre o cinema de Michael Haneke e o teatro de Bertold Brecht

Lívia Maria Marques Sampaio

ele – a voz é masculina – ficará lá, assistindo a morte dela. A atriz se desespera, pergunta
o que ele quer, ao que ele responde “quero sua verdadeira face”, mas o espectador não
sabe se é a voz do próprio Haneke brincando com Binoche ou a voz de um personagem
( que pode interpretado por Haneke ) brincando com a personagem Anne. Passados
alguns momentos da cena, pelo desespero dela, percebe-se que não é possível que seja
uma cena totalmente improvisada, mas ao colocar em dúvida se a pessoa que fala está
dirigindo à personagem, ou a atriz, e, mais, se quem fala é o próprio Haneke ou não,
desestabiliza a certeza do universo ficcional. Mais tarde, em um palco no teatro, Binoche/
Anne anda de um lado para o outro, rindo histericamente e falando com uma pessoa
que pode ser ou não o diretor (novamente só se ouve a voz masculina. Não é mostrado
o contracampo). Em outra cena, Anne/Binoche e o ator que trabalha com ela no filme
estão dentro do estúdio, colocando as falas de uma cena que eles participaram e um
homem – o diretor – chama a atenção dos dois. Novamente ela ri. Novamente não se
sabe se quem riu foi Anne ou Binoche, nem o rosto do diretor.
Funny Games8, por sua vez, é um filme que quebra a quarta parede de diversas for-
mas. Neste, são basicamente quatro tipos de ações que “chamam o espectador à razão”,
alertando-o, lembrando-o de que ele está assistindo a um filme. A primeira, sutil, é na
abertura, quando a família se encontra dentro do carro ouvindo música clássica e o
espectador vê, no primeiro plano, outra cena: a dos créditos em letras vermelhas que
surgem na tela ao som de outra música: os gritos caóticos de Bonehead, música do com-
positor e saxofonista John Zorn. Minutos depois, Paul (um dos torturadores) olha para
a câmera pela primeira vez, ou seja, para o público (ele olha quatro vezes ao longo do
filme). Outro tipo de comunicação com o espectador ocorre através de diálogos travados
entre eles, mas que remetem a questões que não são parte da ficção como, por exem-
plo, quando Anna, que está sendo torturada, pergunta a Peter (o outro torturador) por
que eles não nos os matam logo, e ele responde “não se esqueça do valor da diversão.
Não devemos nos privar do nosso prazer”, ou quando Paul tira a mordaça que impede
Anna de gritar e comenta que vai fazer isso porque “Os mudos não sofrem de maneira
espetacular. Temos que mostrar ao público. Perder a vida às vezes pode ser uma grande
festa”, ou ainda quando, novamente questionados porque não acabam logo com aquilo,
Paul diz “Ainda não cumprimos o tempo do longa-metragem” (HANEKE,1997; 2007).
Por fim, a ruptura total da ficção: quando Paul rebobina a cena na qual Anna mata
Peter. A famosa cena do controle remoto em Funny Games fez história. Quase ao final
do filme, em um descuido dos sequestradores, Anna pega a arma e atira em Peter. Em
entrevista a Toubiana (2005), Haneke contou que na exibição no Festival de Cannes, a
plateia aplaudiu em pé este momento, porque, finalmente, após quase duas horas de
tortura, o jogo virou. Um bandido foi morto. Infere-se que o segundo também será.
Anna e Georg vão sobreviver, e com um deleite de vingança: Anna mata Peter! Pronto!
Um final que caminha para um happy end. Porém, o controle remoto que estava na sala
cumprindo sua função cotidiana de mudar o canal da televisão é procurado por um
Paul em desespero que brada “cadê, cadê o controle?”. Quando o encontra no sofá, Paul

8.  Como são duas versões praticamente idênticas, a referência a Funny Games, aqui, é em relação a ambos:
tanto à versão de 1997 quanto à versão de 2007.

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Luz, Câmera e Encenação: aproximações entre o cinema de Michael Haneke e o teatro de Bertold Brecht

Lívia Maria Marques Sampaio

rebobina a cena, voltando ao mesmo ponto onde estavam os personagens. A arma que
Anna tenta pegar é tomada por um Paul irônico, certo de que o jogo não vai mudar,
como de fato não mudará, e a felicidade do público é frustrada impiedosamente. Eles não
falam com o espectador, não olham para a câmera, mas mostram que o que ali ocorre é
tão ficcional que pode ser alterado por eles, personagens de um filme de ficção. E mos-
tram, com isso, a impotência do espectador que não tem um controle remoto que possa
modificar alguma cena. Quem está no controle é o diretor, e não o público. Este pode
sair da sala do cinema, desligar o aparelho de DVD, fechar os olhos, tapar os ouvidos,
mas a história está lá, pronta, com começo, meio e fim, e nada vai modificá-la, o que
torna muito angustiante, neste filme, o contato do personagem com o espectador: além
de não poder responder, quando questionado, o público não pode interferir na história.
A situação do público é claustrofóbica: Paul pode perguntar, mas se alguém responder,
não será ouvido. Paul pode rebobinar e alterar uma cena, mas o espectador, mesmo que
tenha um controle remoto em mãos, e rebobine cenas, não poderá modificá-las.
O som é outro elemento caro à obra de Haneke. Usado com extrema cautela, todos
os elementos sonoros dos seus filmes acompanham as ações, que às vezes servem para
contrapor a imagem e em outras para reforçá-la. Ele não faz uso do som para preencher
vazios na trama. Ao tratar do uso do som em O Sétimo Continente 9, Hernández chamou
o realizador de “gourmet do som” (HERNÁNDEZ, 2009, p. 28). Por som, entende-se a
música, os ruídos e os efeitos sonoros. Segundo Aumont e Marie:
O som que um filme oferece raramente intervém sozinho. Ele supõe um agenciamento entre
vários eixos: ruídos, falas e, às vezes, música. Procede de uma certa arte da composição
sonora. Além disso, o som fílmico é acompanhado de uma percepção visual, até mesmo
nos casos-limite em que a tela fica escura. A percepção fílmica é, portanto, áudio (verbo)
visual e faz intervir numerosas combinações entre sons e imagens: redundância, contraste,
sincronismo ou dessincronismo ou dessincronização etc. (Aumont, Marie, 2010, p. 276).

A função do som de pontuar uma cena no cinema é enfatizada por Chion (2008).
Remetendo à encenação no teatro, este autor retoma o significado de “pontuar cenas”,
seja através de pausas, respiração, gestos e outras expressões, ou através das múltiplas
pontuações no cinema mudo: gestuais, visuais, inclusive dos cartões que serviam no
cinema mudo como elemento de pontuação. Nas obras de Haneke, existem sons que se
repetem, como o barulho do motor do carro, ruídos mecânicos e de aparatos tecnológicos,
sendo mais frequentes o som do rádio e da televisão. Estes sons acompanham as cenas,
o movimento dos personagens, pontuam momentos da trama, também de forma similar
à proposta de Brecht.
Em The violence of silence: vocal provocation in the cinema of Michael Haneke, Lisa
Coulthard observa que nos filmes de Haneke
[...] uma uniformidade de estilo é facilmente identificável e é uma identidade formal formada
em grande parte por tendências acústicas: poucos diálogos, raros casos de música que estão
sempre, de alguma forma diegeticamente motivados e uma enorme amplitude dinâmica
que muda de forma abrupta e violenta entre o ruído e o silêncio10 (Coulthard, 2012, p. 89)

9.  Título em inglês: The Seventh Continent


10.  Tradução livre de “ ... the uniformity of style is readily identifiable and it is a formal identity shaped in

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Luz, Câmera e Encenação: aproximações entre o cinema de Michael Haneke e o teatro de Bertold Brecht

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Os sons usados por Haneke, em todos os seus filmes, também se adequam à


proposta de Brecht, dentro do conceito de distanciamento. “Se o espetáculo é composto
de música, palavra e cena, trata-se de saber manter as distâncias e atribuir a cada um
desses elementos a maior autonomia possível” (BORNHEIM, 1992, p. 179). Lembra
Bornheim que, ao escrever seu ensaio Sobre o emprego da música no teatro épico, Brecht
usa também o conceito de gestus, pois a música deve estar vinculada ao trabalho do ator,
sendo executada dentro dos princípios do distanciamento. “Os três elementos – ação,
música e quadro cênico – aparecem unidos e ao mesmo tempo separados” ( BRECHT
in BORNHEIM, 1992, p. 301). Da mesma forma que se refere à música, Brecht se refere
aos sons que devem estar sempre no mesmo compasso da representação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Oriundo do teatro, Haneke utiliza muitos elementos da práxis teatral em seus filmes.
Este trabalho procurou mostrar as aproximações entre Brecht e Haneke, fazendo a
ressalva de que apesar desta relação ser referência frequente em críticas e trabalhos
acadêmicos, Haneke coloca em seus filmes um vasto repertório teatral que não se limita
a Brecht. Os conceitos de gestus, parquedad, o uso do som e a quebra da quarta parede,
no entanto, são marcas da dramaturgia brechtiana que buscam o “efeito distanciamento”
para fazer do espectador um agente ativo da representação, o que condiz com a proposta
explícita de Haneke. Como diz Borheim “O distanciamento não constitui uma experiência
especificamente teatral, embora, desde que utilizado no teatro, chegue a ostentar uma
especificidade teatral” (1992, p. 243).
Levantar diversas questões e não dar nenhuma resposta, deixando ao espectador a
tarefa de busca-las é a proposta de Haneke, seja qual for o tema do seu filme, exatamente
para fazer o espectador refletir sobre o que está sendo mostrado. Diz ele:
Por anos venho tentando devolver aos espectadores um pouco do tipo de liberdade que eles
têm em outras artes. Música, pintura, as belas artes dão aos receptores espaço para respirar
em suas considerações sobre a obra. As artes que envolvem a língua já circunscrevem essa
liberdade consideravelmente porque elas são obrigadas a chamar as coisas pelo seu nome. [...]
Em outras palavras, o cinema tem, desde o início, uma tendência a desautorizar o receptor.
Mas se o cinema aspira ser uma arte, deve levar o público ao qual se dirige a sério e, tanto
quanto possível tentar devolver a ele a liberdade perdida. Mas de que forma? Eu acho que
esta é uma pergunta muito decisiva, com a qual todos os cineastas sérios devem se engajar.
[...] É preciso encontrar a construção que permita ao espectador voar – em outras palavras,
que agite sua imaginação11 (HANEKE in GRUNDMANN, 2010, p 605-606).

large part by acoustic tendencies: minimal dialogue, only rare instances of music that are always in some way
diegetically motivated, an intensification of foley sounds associated with bodily movement and a massive
dynamic range that shifts abruptly and violently between noise and silence” (Coulthard, Lisa, 2012 , p. 19 ).
11.  Tradução livre de “For years, I have been trying to restore to spectators a little bit of the kind of freedom
they have in the other arts. Music, painting, the fine arts give recipients breathing space in their consideration
of the work. The language-bound arts already circumscribe this freedom considerably, because they are
forced to name things by their name [...] In other words, film has, from the outset, a tendency towards
disenfranchising the recipiente. But if film aspires to be na art, it must take it addressee seriously and, as
much as possible, attempt to restore the lost freedom to the later. But what it means ? I think this is a very
decisive question, with whitch all serious filmmakers engage. [...] One has to find a construction that lets
the viewer fly-- in other words, that stirts the viewer imagination” (Haneke in Grundmann, 2010, p 605-606).

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Luz, Câmera e Encenação: aproximações entre o cinema de Michael Haneke e o teatro de Bertold Brecht

Lívia Maria Marques Sampaio

Assim, ao utilizar recursos do Teatro Épico e propondo um cinema que busca o


engajamento do público, Haneke infiltra e maneja elementos da dramaturgia brechtiana
em suas obras, desencadeando diversos dilemas sobre os temas abordados, cujo impacto
é reforçado pela forma com a qual que busca contar ao espectador suas histórias
perturbadoras.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Bordwell, D. (2013). Sobre a história do estilo cinematográfico. Campinas: Unicamp.
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Chion, M. ( 2008). A Audiovisão: som e imagem no cinema. Lisboa: Texto & Grafia.
Coulthard, L. (2012). The violence of silence: Vocal provocation in the cinema of Michael Haneke.
Vancouver: University of British Columbia.Studies in European Cinema, v. 9, numbers
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Janeiro: Caixa Cultural.
Roubine J. J. (1998) A linguagem da encenação teatral, 1880-1980. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Tarkovsky, A. (1998). Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes.
Xavier, I. (2003) O olhar e a cena: Melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues. São
Paulo: Cosac & Naify.

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[DVD]. Austria/ Switzerland: Wega Film/ Langfilm.
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Luz, Câmera e Encenação: aproximações entre o cinema de Michael Haneke e o teatro de Bertold Brecht

Lívia Maria Marques Sampaio

______ (Director/Writer). Philippe Aigle & Rene Bastian (Producers) (2007). Funny Games US
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______ (Director/Writer). Stefan Arndt & Veit Heiduschka ( Producers) ( 2009) The White
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______ (Director/Writer). Stefan Arndt & Veit Heiduschka (Producers) (2012) Amour [DVD].
France/ Germany : Les Films du Losange/ X-Filme Creative Pool
Montmayeur, Y (Director/Writer), Serge G. & Vincent L. (Producers) (2013). Michael H.
Profession: Director. [DVD]. Austria/France: Wildart Film/Les Films du Losange.

WEB SITE
Toubiana,S.(2005) Entrevista com Michael Haneke. (Tradução livre). Acesso em 13 mar. 2015.
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=28Q8m1Lr4GY>

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O pesadelo cinematográfico do morcego:
Os Batman’s de Tim Burton e Christopher Nolan
The cinematographic nightmare of the bat:
The Batman’s of Tim Burton and Christopher Nolan
R e b e c a C a m b a ú va L e i t e 1

Resumo: O objetivo do estudo é identificar as transformações processuais entre a


personagem Batman retratada pelos diretores T. Burton e C. Nolan. O resultado
revela personagens e narrativas com conceitos opostos, abordando a mesma
personagem.
Palavras-Chave: Audiovisual. Cinema. Batman

Abstract: The objective of the study is to identify the procedural changes between
the Batman character portrayed by the directors T. Burton and C. Nolan. The
result revels characters and narratives with opposite concepts, addressing the
same character.
Keywords: Audiovisual. Movies. Batman

INTRODUÇÃO

B RUCE WAYNE/ BATMAN 2, o protagonista da trama, é apresentado ao público como


um homem na faixa de idade entre 28 a 31 anos, que reside nos limites da cidade
de Gotham, representada nos Estados Unidos e herdeiro de uma empresa mul-
timilionária chamada Wayne Enterprises, deixada por seus pais. A questão dos pais
na história de Bruce Wayne é primordial para o desenvolvimento de trama. Durante a
infância do protagonista, seus pais são assassinados em sua frente por um ladrão armado,
ele, até então apenas um garoto, presencia o ato e por ser apenas uma criança não tem
nenhuma reação, a não ser o desespero e a sensação (anos mais tarde) de impotência.
Motivado pela sede de justiça e, no caso dos quadrinhos, também de vingança, Bruce
Wayne decide investir grande parte de sua fortuna em treinamentos de artes marciais
de extrema dificuldade, como o ninjitsu e em equipamentos de altíssima tecnologia e
qualidade, que adiante servirão como acessórios para facilitar suas missões. Após anos
de preparação e aprimoramento, Bruce Wayne cria então seu alter ego3: Batman. A ideia é

1.  Mestranda, Universidade Anhembi Morumbi, rebeca.cambaúva@hotmail.com


2.  Batman é uma personagem ficcional criado em 1939 para história em quadrinhos. O criador Bob Kane,
era desenhista e escritor, vendeu os direitos de exibição da personagem para a editora norte-americana
DC COMICS, que até os dias atuais publica novas histórias sobre o herói e continua responsável por todas
as obras relacionadas à personagem.
3.  Alter ego é uma definição criada por Sigmund Freud que conceitua questões que estão no ego de
determinada pessoa e podem ser transferidas para outra, duplicando assim a personalidade do mesmo
ser. (FREUD, 1976)

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O pesadelo cinematográfico do morcego: Os Batman’s de Tim Burton e Christopher Nolan

Rebeca Cambaúva Leite

dar vida á um justiceiro sem identidade, nesse caso, um homem morcego, caracterizado
por sua armadura toda preta, uma capa remetente a asas de morcego, uma máscara que
esconde a face e com orelhas pontudas, como a do animal. A escolha de Bruce Wayne
pelo símbolo do morcego se dá a partir de um acontecimento de sua infância, no qual
ele cai em um poço desativado que é habitado por morcegos, os animais o atacam e
Bruce passa a desenvolver um terrível medo de morcegos. Quando a personagem esco-
lhe o morcego como símbolo de seu alter ego justiceiro, ele tem como objetivo superar
o próprio medo e compartilha-lo com seus inimigos.
O objetivo do herói é proteger a cidade de Gotham a todo e qualquer custo, sem
limites, sem precedentes. A motivação originária do herói nos quadrinhos é a morte dos
pais e a necessidade de vingança. Ao longo da jornada do herói, o criador Bob Kane leva
ao público uma série de vilões bizarros e sobrenaturais em conjunto com os traumas
pessoais do herói concomitante à sua personalidade sombria.

A REPRESENTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA DE GOTHAM CITY POR BURTON


O diretor Tim Burton, produziu dois longas metragens da franquia Batman. Em
1989, Burton produziu seu primeiro filme adaptado na personagem, que levou o nome
Batman. O filme traz Michael Keaton como Batman, Kim Basinger como Vick Vale,
uma jornalista curiosa e dedicada e Jack Nicholson como Coringa, um dos principais
vilões do herói nas histórias originais dos quadrinhos. Em 1991, Burton dirigiu uma
sequencia á sua produção anterior, Batman Returns, Michael Keaton aparece novamente
como Batman, Michelle Pfeiffer como Mulher – gato, representada por uma secretária
executiva frustrada que após sofrer uma, até então, tentativa de homicídio, é ressus-
citada por gatos e se torna uma mulher de personalidade, habilidades e versatilidade
física semelhante a dos gatos, ela age no filme como vilã, mas ao decorrer da trama o
espectador nota sua personalidade mal compreendida, traumática e consecutivamente
psicótica. Danny DeVito aparece como principal vilão, uma personagem sobrenatural
com características físicas de um pinguim, abandonado quando criança pela família, o
vilão naturalmente chamado Oswald Cobblepot cresce no esgoto e se torna um vilão
nato, com comportamento quase animal. A veia artística expressionista4 de Burton,
leva ao espectador uma Gotham City sombria, muito semelhante à cidade retratada
nos quadrinhos de herói. Uma cidade em plena decadência, dominada pelo desejo de
poder e irresponsabilidade social de seus governantes e de personalidades poderosas.
A personagem Batman retratada em meio a essas características da cidade, por sua vez,
se vê sozinha. A solidão presente nas representações do herói por Tim Burton é res-
saltada aos olhos do crítico, assim como nos quadrinhos. É muito comum notar certa
insistência do diretor em retratar as pessoas de sua Gotham City consumindo algo. Em
muitas cenas as pessoas estão com sacolas na mão, as lojas sempre lotadas, inclusive, na
adaptação de 1991, Batman Returns, o longa se passa em época de Natal, o que ressalta
ainda mais a questão do consumo desenfreado retratado pelo diretor. Na produção de

4.  [...] pretende-se designar um estilo baseado em cenografias e métodos de representação de matriz
teatral e pictórica com o fim de exprimir uma visão deformada de situações e ambientes em sintonia
com os argumentos que apresentam personagens decididamente patológicas e vivências marcadamente
emblemáticas (COSTA, 1985).

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O pesadelo cinematográfico do morcego: Os Batman’s de Tim Burton e Christopher Nolan

Rebeca Cambaúva Leite

1989, Batman, ocorre também uma situação com o vilão Coringa, que oferece uma festa
a todos os habitantes da cidade, em comemoração ao aniversário de Gotham. Apesar
dos moradores terem conhecimento da intenção e histórico da personagem Coringa,
eles aceitam o convite, pois o vilão afirma que irá distribuir 1 milhão de dólares durante
a festa para as pessoas presentes no evento, ou seja, mesmo os habitantes conhecendo
aquela personagem como perigosa, assassina e psicótica, as mesmas aceitam o convite
da personagem e no momento da festa a rua está completamente lotada, eles compare-
cem pelo dinheiro, mesmo correndo risco de vida. Mais uma vez a questão do consu-
mo é retratada por Burton. Os elementos personificados que comandam a cidade são
geralmente figuras poderosas, empresários e políticos. O diretor destaca a questão do
poder, pois um empresário possui mais influência do que o próprio prefeito da cidade,
em ambas as narrativas. O grupo de vilania apresentado são sempre personalidades
que vieram a se tornar maléficas em consequência das experiências que viveram em
meio a aquela ambientação. Foram vitimadas por Gotham City. Exemplificando: A per-
sonagem Coringa era um empresário mafioso, que respondia apenas ao líder da máfia.
Já corrompido pelo desejo de poder e pela perversidade gananciosa, a personagem é
enganada pelo líder da máfia e fica a beira da morte. Essa experiência faz com que a
personagem fique deformada, com um sorriso bizarro. A experiência em conjunto com
sua personalidade desviada cria um vilão, emergido da própria Gotham City, criado por
ela, para ela. Outro exemplo é a faceta diferenciada que o diretor cria da personagem
Selina Kyle, a mulher-gato, a até então tímida secretária executiva, sofre uma tentati-
va de homicídio de uma personalidade poderosa na trama. Após essa experiência a
personagem retorna à sua vida cotidiana com características de vilania, decorrentes
de sua revolta e frustação, até então, reprimida e agora extraída de sua personalidade
e efetivada em suas ações futuras. Burton apresenta uma cidade já adoecida, tanto em
seus governantes, quanto em sua sociedade. A personagem Batman aparece na trama
para impedir que o caos agrave a situação já instalada em sua ambientação, e não para
evitar que se instale. Sua função é minimizar os danos que já foram causados.

A REPRESENTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA DE GOTHAM CITY POR NOLAN


Em 2005, Nolan dirigiu e escreveu seu primeiro filme da franquia Batman, intitu-
lado Batman Begins. A proposta do longa metragem era retratar uma adaptada versão
da origem do herói. A personagem Batman ganha vida através do ator Christian Bale
nas 3 versões produzidas, o vilão da estória que é apresentado incialmente como um
aliado é o místico Ra´s al Ghul, vivido pelo ator Liam Neeson. Nas versões adaptadas
pelo diretor, à narrativa apresenta ao espectador uma gama diversificada de aliados e
vilões secundários, no caso de Batman Begins, o vilão secundário é o psicótico doutor
Crane, interpretado pelo ator Cillian Murphy, que atua em conjunto com Ra´s ah Ghul
em planejamento à destruição da cidade de Gotham. Um fator interessante nas ver-
sões de Nolan é o de que o diretor carrega consigo nas 3 versões um grupo de atores
conceituados da indústria cinematográfica Hollywoodiana: Gary Oldman, como o até
então investigador de polícia de Gotham, Michael Caine como o mordomo e aliado do
herói, Alfred Pennyworth e Morgan Freeman na pele do cientista Lucius Fox, também
aliado de Batman. Na primeira adaptação do diretor, o espectador tem a oportunidade

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de conhecer uma nova face do super-herói. O diretor revela também uma nova cidade
de Gotham, um ambiente moderno, porém decadente, a corrupção tenta a todo instante
penetrar dentre mais profundos níveis da cidade. Os poderosos, incluindo mafiosos,
policiais e políticos, persistem na missão de dominar a cidade, levando os moradores ao
medo e desespero, mostrando ao espectador uma sociedade vitimada pela ganância e
busca incansável pelo poder. O segundo filme da franquia Batman The Dark Knight, foi
produzido em 2008 e traz como vilão o demente Coringa, vivido pelo ator Heath Ledger
e a personagem Harvey Dent, interpretada pelo ator Aaron Eckhart, um promotor de
polícia disposto a lutar a todo custo pela integridade moral de Gotham, mas que pos-
teriormente será representado como vilão secundário na trama. Nesse caso, Batman já
é atuante na cidade e reconhecido como um herói em sua cidade natal e trabalha em
conjunto com a polícia para deter os criminosos e acabar com a corrupção. O terceiro e
último longa metragem dirigido por Nolan, intitulado Batman The Dark Knight Rises é o
retorno do Batman à suas atividades heroicas na cidade, tendo em vista que ao final do
segundo filme à personagem abandona as missões, em decorrência à acontecimentos
que tornam essa postura necessária. O vilão nesse caso é o destemido Bane, interpre-
tado pelo ator Tom Wardy, que é motivado pela vontade de Ra’s al Ghul em destruir a
cidade de Gotham, a até então aliada do herói Miranda Tate, vivida pela atriz Marion
Cotillard se torna a principal vilã da narrativa e é revelada como Talia al Ghul, filha de
Ra´s al Ghul, e responsável por toda arquitetura metódica para levar Gotham á ruina, ao
contrário da maioria das colocações temporais de apresentação dos personagens, Selina
Kyle, interpretada por Anne Hathaway, aparece inicialmente como vilã e posteriormente
vem a se tornar aliada do herói. Nolan leva ao espectador uma Gotham semelhante a
uma grande capital, como por exemplo, Nova Iorque. O espectador vê a cidade como um
ambiente real e crível. Os vilões não necessariamente emergem da própria cidade, pelo
contrário, a maioria deles em sua grande maioria não é apresentada como originários
da cidade e sim de fora do ambiente de Gotham. São motivados pelo conhecimento
do histórico da cidade, que é conhecida como uma cidade corrupta, mas que luta para
mudar sua situação, inclusive, no passado, com a ajuda de empresários poderosos,
como por exemplos os pais de Bruce Wayne, que no inicio de Batman Begins (2005) são
apresentados como bem feitores filantropos, que lutam para conceder mais qualidade
de vida e segurança aquela sociedade, investindo recursos próprios. Os vilões surgem
para exterminar Gotham, receando a semeação da corrupção e violência. Batman tra-
balha nas 3 versões do diretor em conjunto com aliados também poderosos, membros
das instituições da cidade. Nota-se que as instituições estão corrompidas, porém existe
um grupo de personagens dentro destas instituições que tentam sanar a situação de
adoecimento que vive a cidade na narrativa de Nolan, em conjunto com Batman.

BATMAN VS. BRUCE WAYNE


Em todas as narrativas retratadas pelos diretores em questão, a personagem Batman
possui suas características originárias, tanto físicas quanto históricas, porém, é possível
observar uma indução diferenciada á forma que o protagonista é apresentado. Nas pro-
duções de Burton, é possível acompanhar os feitos de herói como se estivesse assistindo
à sequencia de um episódio de série, o espectador não vê Bruce Wayne torna-se Batman,

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e sim ao contrário, Batman se torna Bruce Wayne. O herói é identificado na narrativa e


já está a postos para a próxima missão. Bruce Wayne por sua vez aparece de maneira
superficial, o que aguça a reflexão da possibilidade dessa narrativa ser abordada propo-
sitalmente. A origem e as intenções de Bruce não são destacadas, o destaque na obra são
as ações de Batman. Bruce Wayne é tímido, pacato e não possui destaque na sociedade.
Mas o Batman enfrenta seus inimigos, se mantém a disposição de Gotham City e luta
pela sociedade que ali vive. São personalidades duplicadas, caracterizando o Bruce
Wayne como alter ego5 de Batman.
Nas produções de Nolan, por sua vez, retrata o contrário. O espectador vê a moti-
vação de Bruce Wayne de maneira quase apalpável. O diretor sabe exatamente por que
Bruce Wayne precisa se torna o Batman, e em conjunto com essa descoberta, o espec-
tador também conhece o verdadeiro Bruce, diferenciado daquele que é retratado para
a sociedade. Na narrativa de Nolan é possível encontrar 3 diferentes alter egos: Bruce
Wayne retratado ao espectador; Batman e Bruce Wayne retratado à sociedade. É notável
que são personalidades diferentes, decorrentes das necessidades implícitas ao herói.
Existe um cuidado em de fato esconder a identidade de Bruce Wayne em conjunto com
a identidade de herói, porém, é possível identificar que Bruce apresentado ao espectador
é a mesma persona da personagem Batman. Os dois possuem os mesmo objetivos, as
mesmas crenças, nada muda. A palavra “pesadelo” pode ser relacionada às vivencias de
cada persona retratada nas obras em questão, partindo da premissa que as personagens
são assombradas por questões passadas envolvendo medo e insegurança. Bachelard
(1994) diz que “[...] Sonhos e pesadelos ficam então tão distantes das verdades da luz
quanto da grande sinceridade noturna” (BACHELARD, 1994, p. 161). Essa citação pode
ser relacionada à ambientação de criação da personagem, uma vez que em sua grande
maioria o herói age somente à noite, fazendo desse período seu momento confortável
para agir, abraçando à sinceridade noturna citada por Bachelard (1994).

CONCLUSÃO
Em observação às obras conceituadas neste artigo, pude notar que referente
à personagem Batman retratada por Tim Burton espelhada à cidade de Gotham, é possível
afirmar que o herói lida com uma cidade adoecida, já corrompida pelo medo, corrupção
e estranhamento. Observei através de análise fílmica como as personagens da cidade
vêm Batman, o herói não é visto propriamente dito como um herói, muitas vezes é visto
como vilão, pois também é vitima dos poderosos da cidade, as personagens não ficam a
espreita esperando o salvador aparecer para resgata-las, Batman circula livremente com
seu disfarce em meio à população, como sem fosse um membro da polícia. A corrupção
e o medo já estão tão nitidamente instalados naquele ambiente que as pessoas resistem
a acreditar e a aceitar de fato uma figura justiceira e bem intencionada para protegê-las.
O Batman de Tim Burton recorda às narrativas diversas construídas para os quadrinhos,
ele salva o dia, derrota o vilão e pronto. A cidade de Gotham continua suas atividades
corriqueiras, e o fato do herói existir não muda a personalização dos personagens,

5. Alter ego é uma definição criada por Sigmund Freud que conceitua questões que estão no ego de determina-
da pessoa e podem ser transferidas para outra, duplicando assim a personalidade do mesmo ser. (FREUD, 1976)

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Rebeca Cambaúva Leite

fazendo-os se tornarem pessoas melhores, por exemplo, tudo continua como está. Não
necessariamente Gotham exige de Batman, Batman age por vontade própria.
Em contra partida, a Gotham City de Nolan precisa de Batman, e pede ajuda. A
cidade é retrata como um local de pessoas honestas e caso contrário, pessoas vitima-
das pela situação em que seus governantes a deixam. A presença de figuras de poder
em luta incansável pela resolução de diversos problemas conota ao espectador que a
cidade quer ser salva, está adoecendo, mas ainda não sucumbiu em caos e corrupção.
Batman aparece então como um herói inseguro, traumatizado e dramático, na busca
incansável por justiça, motivado pelo impulso de salvação à sua sociedade. No terceiro
filme observei a metáfora do “fundo do poço”, o herói acaba literalmente naquele local,
uma prisão subterrânea que fisicamente lembra um grande poço desativado. É comum
ouvirmos a seguinte frase “se você chega ao fundo do poço, não tem mais para onde
ir, ou você permanece ali, ou você sobe”. É exatamente isso que Nolan retrata em sua
narrativa final, o herói literalmente ressurge das profundezas, e volta para salvar sua
cidade, que está sucumbindo em medo e caos, implantados por vilões que agem em
sua ausência. O herói de Nolan com sua faceta realista e dramática chamou atenção do
público de forma considerável, arrecadando bilhões de dólares para a franquia Batman,
fato que nunca tinha ocorrido até então. Em conjunto com esse acontecimento, Batman
pela primeira vez em 75 anos foi considerado no ano de 2014 o herói mais popular do
mundo, batendo a popularidade do famoso Super – Homem, que manteve seu posto
todo esse tempo. Acredito que esses acontecimentos são reflexos da personagem realista
criada por Nolan, um herói com defeitos, um herói mais humano e mais crível, que
comete erros e possui medos. A cidade de Gotham de Nolan pede socorro ao Batman,
e o herói ouve o chamado, se autoconstruindo em um vigilante justiceiro, mas com
facetas críveis.

REFERÊNCIAS
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BACHELARD, Gaston. O Direito de Sonhar. São Paulo: Difel, 1985.
BORDWELL, David; THOMPSON, Kristin. A Arte do Cinema: Uma Introdução. São Paulo:
Edusp, 2014.
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Durham/London: Duke University Press, 1993.
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MCMAHON, L. Jennifer. The Philosophy of Tim Burton. Kentucky: The University Press of
Kentucky, 2014.

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5427
O pesadelo cinematográfico do morcego: Os Batman’s de Tim Burton e Christopher Nolan

Rebeca Cambaúva Leite

ROVEN, Charles & NOLAN, Christopher & THOMAS, Emma. NOLAN, Christopher.
NOLAN, Christopher & NOLAN, Jonathan. (2008). The Dark Knight [DVD]. Estados
Unidos: Warner Bros. Pictures.
ROVEN, Charles & NOLAN, Christopher & THOMAS, Emma. NOLAN, Christopher.
NOLAN, Christopher & NOLAN, Jonathan. (2012). The Dark Knight Rises [DVD]. Estados
Unidos: Warner Bros. Pictures.
PETER, Jon & GUBER, Peter. BURTON, Tim. HAMM, Sam & SKAAREN, Warren. (1989).
Batman [DVD]. Estados Unidos: Warner Bros. Pictures.
SIGMUND, Freud. A Psicologia das Massas e Análise do Eu. Porto Alegre: Ed. L&PM Pocket.
2013.

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Sujeitos em busca de si: a dimensão da primeira
pessoa como construção documental
Subjects in search of themselves: the first
person as a documental construction
M ariana Duccini Junqueir a da S i lva 1

Resumo: A enunciação em primeira pessoa traz reflexões peculiares quando


os documentários contemporâneos tematizam a experiência dos sujeitos em
contextos políticos marcados por totalitarismo e violência, a exemplo das
ditaduras latino-americanas da segunda metade do século XX. Esta comunicação
investiga como esse recurso procede à construção identitária de um sujeito que
legitima seu lugar de fala no próprio processo da escrita documental, por meio da
análise de Los rubios (Albertina Carri, 2003) e Diário de uma Busca (Flavia Castro,
2010). É na perspectiva da microexperiência que as realizadoras-protagonistas
elaboram um relato sobre si, remontando à infância como a um tempo suspenso,
pontuado por silêncios que turvaram as respostas a perguntas como “quem é
você?” ou “o que fazem seus pais?”.
Palavras-Chave: Documentário Contemporâneo. Primeira Pessoa. Memória.
Los rubios. Diário de uma Busca.

Abstract: The first-person enunciation in contemporary documentaries affords


singular reflections when these films approach the subjects’ experience in
totalitarian regimes, such as Latin American dictatorships of the 20th century.
This paper investigates how the feature of first-person carries into effect the
identity construction of a subject who legitimizes his place of speech in the
process of documentary writing, by analyzing Los rubios (Albertina Carri, 2003)
e Diário de uma Busca (Flavia Castro, 2010). In the perspective of microhistory, the
filmmakers elaborate narratives on themselves, going back into their childhood
as a suspended time in which the imposed silence obliterated the answers to
questions such as “who are you?” or “how do your parents earn a living?”.
Keywords: Contemporary Documentary. First Person. Memory. Los rubios. Diário
de uma Busca.

E STRATÉGIA DE composição recorrente no documentário contemporâneo, a enun-


ciação em primeira pessoa traz reflexões peculiares quando as obras tematizam
a experiência dos sujeitos em contextos políticos marcados por totalitarismos e
violências, a exemplo das ditaduras latino-americanas da segunda metade do século

1.  Doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. Professora do Insper Instituto de Ensino e Pesquisa.
marianaduccini@gmail.com

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Sujeitos em busca de si: a dimensão da primeira pessoa como construção documental

Mariana Duccini Junqueira da Silva

XX. A profusão de documentários estruturados sob a perspectiva dos “herdeiros” des-


sas memórias – especialmente os filhos daqueles que se autoinvestiram nas formas
de resistência – conforma um traço geracional que não só propõe a ressignificação
de um passado histórico, mas sobretudo aponta para o caráter instável de narrativas
consensuais. Heterogêneo, o tempo pretérito é refratário aos relatos estabilizados e às
expectativas teleológicas de uma “verdade histórica”. Sob o signo da suspensão e dos
conflitos, perfazem-se os lugares subjetivos dos enunciadores nessas obras.
Esta comunicação investiga como o recurso da primeira pessoa procede à construção
identitária de um sujeito que legitima seu lugar de fala no próprio processo da escrita
documental, por meio da análise do filme argentino “Los rubios” (Albertina Carri,
2003) e do brasileiro “Diário de uma Busca” (Flavia Castro, 2010). Para Aguilar (2014),
essa modalidade não contempla simplesmente documentários “em primeira pessoa”,
mas “para se chegar à primeira pessoa”, visto serem as experiências fraturadas dos
enunciadores o que legitima o exercício discursivo que faz emergir um ponto de vista
até então ausente ou obliterado em narrativas que dão compleição a memórias coletivas
sobre a história recente.
Se o ato de escrever sobre si é, conforme Roland Barthes (2003, p.71), um fato que se
abole no significante justamente por coincidir com ele, isso se faz entender na perspectiva
da emergência de um ser que não existe senão como artifício de linguagem. Forma
vazia, signo sem referente na realidade, o “eu” apenas se atualiza na medida em que é
pronunciado – e reivindicado – por um sujeito que o remete à sua própria instância de
discurso: “cada eu tem a sua referência própria e corresponde cada vez a um ser único,
proposto como tal” (BENVENISTE, 1995, p.278, grifo do autor).
A instância da primeira pessoa, assim, assume valor em seu mecanismo de
construção (a enunciação), subjetivando-se na medida em que mobiliza um aparelho de
linguagem, pela conversão de um locutor em sujeito. Se, entretanto, em termos formais
o ato enunciativo é o que opera tal passagem, cabe investigar as modulações pelas quais
um relato enunciado em primeira pessoa alcança um lastro de autoridade discursiva,
ou seja, como a instalação desse ponto de vista se legitima em uma ordem de discursos
circulantes no corpo social.
É sensível, contemporaneamente, uma espécie de “inflação” da primeira pessoa
em diferentes produções midiáticas, o que perpassa não apenas as autobiografias, as
literaturas confessionais, o cinema, as manifestações performáticas no campo da arte e a
fotografia, mas também certas investidas jornalísticas, os reality shows e a própria dinâmi-
ca das redes sociais. É nessa medida que a presença de um “eu” que enuncia, performa,
testemunha, experimenta em sentido patético os efeitos da experiência a que está exposto
(voluntariamente ou não), rentabiliza um efeito de autenticidade a essas produções.
Nos documentários que examinamos, a emergência da primeira pessoa das
realizadoras (convertidas direta ou indiretamente em protagonistas da escritura fílmica)
procede a uma construção de duplo viés: aquela que as habilita como sujeitos de uma
narrativa específica, à medida que fazem deslanchar o enredo; e aquela que as apresenta
como sujeitos históricos, visto que se constituem como fontes até então inauditas de
processos de ressignificação quanto a versões sedimentadas sobre o passado. Mais uma
vez em consonância com a ideia de que esses documentários saem em busca da primeira

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Sujeitos em busca de si: a dimensão da primeira pessoa como construção documental

Mariana Duccini Junqueira da Silva

pessoa, sublinhamos que tal instância subjetiva não está “dada” a priori. Podemos mesmo
assumir que é uma condição inicialmente marcada pela ausência o que propulsiona e
respalda o movimento de inscrição do “eu” nesses relatos. Se a enunciação é o processo
que marca a instalação da subjetividade na língua, a terceira pessoa verbal é a instância
ausente em uma situação interlocutiva – “aquela de quem se fala” –, jamais reflexiva
de uma instância de discurso, como o são a primeira pessoa e a segunda (esta, sempre
projetada pela primeira em uma correlação de subjetividade). O que se tensiona, aqui,
é uma relação de personalidade (própria à terceira pessoa verbal) versus uma relação
de subjetividade (da ordem da primeira pessoa e da segunda, instâncias passíveis de
reversibilidade em todo ato de comunicação).
A primeira pessoa que se engendra nos documentários aqui contemplados passa,
inicialmente, pela dimensão de terceira pessoa. É apenas por um ímpeto de subjetivação
– narrar-se a si de modo a erigir um ponto de vista particular, situado, sobre eventos
traumáticos – que esses relatos vêm à luz, apontam para sujeitos que, mesmo tendo
suas existências afetadas (muitas vezes, determinadas) por desdobramentos múltiplos
da história contemporânea, apenas recentemente começam a figurar como testemunhos
passíveis de serem levados em conta.
Não se trata simplesmente de uma questão da forma do discurso, mas de sua produção e das
condições culturais e políticas que o tornam fidedigno. Muitas vezes se disse: vivemos na
era da memória e o temor ou a ameaça de uma “perda de memória” corresponde, mais que
à supressão efetiva de algo que deveria ser lembrado, a um “tema cultural” que, em países
onde houve violência, guerra ou ditaduras militares, se entrelaça com a política (SARLO,
2007, p.21, grifos da autora).

A natureza da experiência em primeira pessoa retratada em Los rubios e em Diário de


uma busca tematiza a memória não em termos de uma busca consensual por um sentido
da história, mas, ao expor as fissuras e as lacunas que se impuseram na vida de uma
geração posterior àquela que se envolveu diretamente nas formas de resistência, situa
esse trauma como possibilidade de reelaboração de um evento histórico, inicialmente
em uma perspectiva individual, mas potente para desestabilizar representações
socialmente cristalizadas. É assim que as dimensões das relações familiares muitas
vezes interrompidas, da imposição do exílio, da infância vivida na clandestinidade e
da dissimulação da própria identidade são recorrentes nesses documentários. Figuras
típicas da vida privada, esses filhos ora emergem no espaço público como sujeitos
políticos, o que aponta, no âmbito do documentário contemporâneo, para um panorama
mais abrangente: aquele que prescinde das sínteses explicativas e das figurações das
classes sociais como uma totalidade orgânica para alcançar os relatos que se voltam às
experiências particulares, ao modo como os indivíduos rearticulam as lembranças e se
constroem como sujeitos em fricção com a história.
Ainda que a tessitura das narrativas coopte materiais e fontes heterogêneos, o que
inclui as versões oficiais, assim como as revisionistas, sobre episódios relacionados
às ditaduras militares argentina e brasileira, a originalidade desses documentários
não se explicita primordialmente por uma tentativa de reescrita da história, tampouco
pelo ímpeto de reestabelecer certa imagem pública da geração anterior, que sofreu

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Sujeitos em busca de si: a dimensão da primeira pessoa como construção documental

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pessoalmente os efeitos da violência de estado. É na perspectiva da microexperiência que


as realizadoras-protagonistas elaboram um relato sobre si, remontando à infância como
a um tempo suspenso, pontuado por silêncios ou interditos que turvaram as respostas
a perguntas banais, como “quem é você?” ou “o que fazem seus pais?”.
A esse respeito, Sarlo (2007, p.90 e seguintes) chama a atenção para aquilo que
pensadores como James Young e Marianne Hirsch identificaram como o fenômeno da
pós-memória, peculiar não apenas em termos de uma proximidade temporal em relação
aos eventos traumáticos, mas também em termos da subjetividade que permeia as
narrativas a eles correspondentes. Trata-se do processo de rememoração das experiências
não diretamente experimentadas pelos enunciadores, que pertencem a uma geração
imediatamente posterior àquela que vivenciou/protagonizou esses acontecimentos.
Como muitas dessas lembranças são inevitavelmente mediadas por outras elaborações
(os relatos familiares, os discursos institucionais, o repertório escolar, as produções
midiáticas), elas comporiam uma espécie de “memória de segundo grau”. A pertinência
do conceito de pós-memória é, entretanto, relativizada: “O gesto teórico parece (...) mais
amplo que necessário. Não tenho nada contra os neologismos criados por aposição
do prefixo pós, pergunto apenas se correspondem a uma necessidade conceitual ou se
seguem um impulso de inflação teórica” (SARLO, 2007, p.95).
O núcleo dessa crítica remete à constatação de que, nos discursos de pós-memória,
estariam implicados tanto um aspecto fragmentário dos resultados quanto um caráter
vicário nos processos de articulação das narrativas memorialísticas, em uma espécie de
“lembrança por delegação”. Ocorre, entretanto, que essas características são inerentes a
qualquer dinâmica de testemunho, que sempre opera por mediações. Para Ricoeur (2003),
a dimensão fiduciária (a confiança na palavra daquele que sustenta um relato) é o que
vem à luz nos atos de testemunho, mas, ao mesmo tempo, eles serão sempre eivados de
conflitos, contraposições, indagações quanto à legitimidade da instância enunciativa,
já que a interpretação é uma prática intrínseca a todos os níveis da narrativa histórica.
Para além dos impasses ou discordâncias quanto à validade da ideia de pós-
memória2, o que se afigura de maneira ineludível em filmes como os que investigamos
é o envolvimento subjetivo das realizadoras em relação à matéria da narração, dada
a evidente vinculação com aqueles que foram, de maneira mais direta, afetados
pelo sofrimento. Mas a escritura desses documentários extrapola, como referimos, a
perspectiva de um restabelecimento moral desses personagens, ainda que isso seja
tangível nas produções. Trata-se de uma (re)elaboração do próprio “ter lugar no mundo”
das enunciadoras, e não de uma monumentalização do nome do pai.
No contexto do gênero documentário, esse intuito se especifica com a emergência
dos chamados novos realismos, em que “a legitimidade do relato não mais se atesta
pela objetividade, mas pela ênfase no lugar de onde se enuncia: o espaço de uma
experiência irredutível, particular, em oposição às categorias universalizantes”

2.  Ainda com Sarlo (2007), salientamos o questionamento quanto ao estatuto da pós-memória, cujo alcance,
para a autora, parece restrito às dimensões de uma nomenclatura, mas não de um conceito: “(...) como se
[a pós-memória] possuísse alguma especificidade heurística além do fato de que se trata do registro, em
termos memorialísticos, das experiências e da vida dos outros, que devem pertencer à geração imediatamente
anterior e estão ligados ao pós-memorialista pelo parentesco mais estreito” (p.96).

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Sujeitos em busca de si: a dimensão da primeira pessoa como construção documental

Mariana Duccini Junqueira da Silva

(SILVA, 2013, p.25). Observa-se que o estatuto do realismo identifica-se então não mais
à dimensão da referencialidade, mas à dos afetos, assumindo mesmo a ficcionalização,
no sentido de construto, como dado inerente a todo processo de biografização. No
contexto da historiografia, os relatos estruturados segundo esse matiz reconhecem que a
figurativização dos acontecimentos passados sempre será conflituosa e heterogênea, por
isso não se engajam em uma tarefa totalizante de pretensa reconstituição histórica. Antes,
têm sua legitimação no próprio reconhecimento de que se apresentam como mais um
ponto de vista em relação aos eventos pretéritos, e não como a palavra definitiva sobre
o sentido de determinada experiência, sendo abertos à interpretação, à contextualização
e ao confronto com diferentes fontes históricas.

LOS RUBIOS: A MEMÓRIA RUMO ÀS “IMAGENS SUPORTÁVEIS”


Albertina Carri tinha três anos quando os pais, Ana María Caruso e Roberto
Carri, intelectuais militantes, foram presos e assassinados pela ditadura argentina.
Essa situação não é imediatamente inferível em Los rubios, cujas sequências iniciais
alternam imagens de uma fazendinha de brinquedo (pelo recurso da animação com
bonecos Playmobil) e planos-sequência de uma paisagem rural, identificada apenas
por uma placa onde se lê: “o campinho”. A faixa sonora articula ruídos de animais e a
voz over da realizadora, que ensina alguém a cavalgar. A seguir, a leitura de trechos
de um livro de Roberto Carri3 por uma moça apresenta ideias de mobilização popular,
quando “o rebanho se transforma em ser coletivo” e “o egoísmo, o interesse privado e a
preocupação pessoal desaparecem”. A equipe de filmagem se dirige então a uma casa,
onde uma senhora, sem lhes abrir a porta, diz não se lembrar de muitas coisas a respeito
do que lhe é perguntado, mas, depois de se dirigir à realizadora para saber seu nome,
admite recordar-se de um antigo casal de vizinhos que tinha três filhas – entre elas, uma
menina chamada Albertina. Ao ser indagada sobre a presença da polícia na casa dos
antigos moradores, a entrevistada desconversa. É então que um letreiro informa que, em
1977, Roberto Carri e Ana María Caruso foram sequestrados e mortos e que tiveram três
filhas: Andrea, Paula e Albertina. O filme entrelaça o passado a seu presente enunciativo,
em um exercício memorialístico que, ao mesmo tempo em que busca ressituar eventos
pretéritos, também reconhece as opacidades próprias ao trabalho – a explicitação de um
“eu” enunciador nesse panorama sobrevém como possibilidade de alguma estabilização
diante de versões e posicionamentos aparentemente desvinculados entre si.
O enunciado do documentário, a partir desse momento, é assumido em primeira
pessoa pela realizadora, mas explicita um artifício de composição bem peculiar: a atriz
Analía Couceyro apresenta-se e diz que interpretará o papel de Albertina Carri. O jogo
de duplicação identitária dá corpo a uma ambivalência constitutiva na obra: ao mesmo
tempo em que Albertina dirige uma representação sobre si, orientando a atuação de
Analía, parece se reconhecer enredada em um dispositivo ficcional4, como ocorre em

3.  O livro é Isidro Velázquez: formas prerrevolucionarias de la violencia, publicado em 1968. Carri era professor
de sociologia da Universidade de Buenos Aires.
4.  Piedras (2014, pp.132-133) pondera que essa delegação parcial da identidade por Albertina Carri em
relação a Analía Couceyro é uma forma de se relativizar o pacto autobiográfico, mas mantém-se no terreno
documental, em vista sobretudo da reflexividade proposta (a duplicação da identidade não é escamoteada
do espectador). Para o autor, “são os recursos do documentário que validam e ressemantizam os elementos

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Sujeitos em busca de si: a dimensão da primeira pessoa como construção documental

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qualquer processo de narrativização do “eu”. Mas essa opção estética adensa ainda outra
estratégia do documentário. Os testemunhos de pessoas que conviveram com os pais
da realizadora (na maioria, também militantes) são drasticamente secundarizados, seja
porque esses personagens não são identificados por meio do nome próprio, seja porque
as inserções das imagens deles aparecem como produto claro de uma mediação, o que
perturba a organicidade dos depoimentos5.
O anonimato das “fontes primárias” indica que Los rubios não é um filme sobre o
passado, mas um meio de problematização do presente: à geração que herdou diretamente
o espólio dos militantes (a da realizadora), cabe o trabalho extenuante de construir seu
lugar identitário e uma perspectiva sobre o próprio sentido da história. Adensa-se um
conflito geracional, expresso principalmente na sequência em que Analía-Albertina
alude a um certo caráter retórico nesses testemunhos, que convertem tudo em análise
política. “Tenho de pensar em algo que seja filme”, diz a realizadora em voz over. A busca
por elementos que potencializem a natureza de filme, assim, reverbera nas sequências
que expressam a condição de uma filha que procura Roberto e Ana María como pais
– e não como atores da resistência política. “Por que me deixaram aqui, no mundo dos
vivos?”, pergunta a voz que cobre as imagens de um grito desesperado e emudecido da
protagonista no meio de uma floresta. A dor de se suportar uma identidade de tal modo
destroçada extrapola a dimensão do drama particular e ganha contornos mais amplos:
“vivo em um país cheio de fissuras (...). Os que vieram depois seguem construindo suas
vidas com imagens insuportáveis”.
A possibilidade de se construir imagens “suportáveis” (tanto em seu valor de suporte
quanto em seu papel de pacificação do olhar) não raro é viabilizada com o recurso da
fantasia e da imaginação. Em remissão às memórias da infância, a realizadora encontra
histórias incompletas sobre a ausência dos pais. Pouco interessada, aos 12 anos, na versão
que opunha “senhores bons” e “senhores maus” e desfiava termos incompreensíveis
como: peronistas, descamisados, obreros, montoneros e militares, Albertina Carri apre-
senta agora a versão que criara, tanto mais fantástica quanto paradoxalmente verossímil.
É como bonecos animados que Roberto e Ana María passeiam de carro por uma estrada
deserta quando são sequestrados por alienígenas e deixam sozinhas as três filhas. A
fabulação preenche assim as imagens que faltam, a explicação justa que jamais chegou.
A crítica latente no filme se endereça não só à geração precedente, mas também a uma
versão da história que vai sendo oficializada conforme o ponto de vista dos sobreviventes,
ainda marcado (a despeito do claro desencanto) por uma perspectiva redentora,
teleológica. Los rubios nega-se a uma apologia dessa condição, chega mesmo a desafiá-la,
movimento que respalda a inscrição subjetiva da realizadora. Uma sequência reveladora
desse conflito se estrutura quando Analía-Albertina lê para a câmera um documento
do Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales (INCAA), que aparentemente

da ficcionalização”.
5.  O caso mais frequente é que as entrevistas desses personagens não sejam incorporadas diegeticamente
ao texto fílmico: aparecem projetadas em um aparelho de televisão a que a realizadora (interpretada por
Analía Couceyro) assiste, interferindo na continuidade da própria transmissão (rebobinando a fita para
ouvir novamente uma fala, por exemplo). Muitas vezes, as vozes dessas testemunhas apenas compõem
uma ambiência sonora anódina, enquanto a câmera se detém em outros espaços e personagens (Analía-
Albertina lendo ou digitando no computador).

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Sujeitos em busca de si: a dimensão da primeira pessoa como construção documental

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rejeita o financiamento do documentário. Entre as argumentações, o parecer ressalta a


insuficiência do roteiro (que deveria ser revisado com mais rigor documental) e o fato
de que a ficcionalização da experiência poderia ser prejudicial, pois tenderia a turvar a
interpretação dos fatos. O Instituto recomenda a busca mais sistemática de testemunhos
dos companheiros do casal Carri-Caruso, em busca de afinidades e discrepâncias nos
relatos. Além da inerpretação de Analía, outros membros da equipe, junto a Albertina,
leem o parecer e problematizam seu conteúdo. É justamente na contra-mão do que fora
recomendado que Los rubios alcança originalidade como documentário. Possivelmente,
isso justifica também a presença muito pontual de materiais de arquivo, como cartas,
bilhetes e fotografias. Deles, não se pode esquivar, já que corporificam certo ponto de
vista (ainda hoje bastante legitimado) sobre os eventos históricos; da mesma forma, a
eles não se adere acriticamente.
É pelo relato de um antigo vizinho, entretanto, que se encontra um traço distintivo
cujo significado é fundamental ao filme. Diante das perguntas da equipe, o entrevistado
força a memória e reencontra no passado “los rubios”, uma família toda de pessoas
loiras (pai, mãe e três meninas) que chamava a atenção por ser tão diferente dos outros
moradores daquele bairro popular. Na verdade, a grande diferença dos “rubios” não
era a cor dos cabelos, mas o fato de que a família vivia na clandestinidade (as perucas
loiras eram um disfarce arranjado por Roberto e Ana María). Quando Albertina Carri
volta à vizinhança, então acompanhada pela equipe de rodagem, parece suscitar a
mesma admiração: ainda que não mais disfarçada, ela e a equipe não deixam de ser “los
rubios”, em quase tudo diferentes daquelas pessoas pobres que os cercam, encantadas
com o equipamento do filme.
É no espaço do “campinho”, onde começou, que o filme termina. Pela narração em voz
over, o espectador já conhecia a importância desse “lugar de fantasia ou onde começam
minhas memórias”, como relata Albertina, explicando que ela e as irmãs foram viver
no campo com os tios quando os pais desapareceram. Mais uma vez as lembranças da
infância tomam corpo: a realizadora refere odiar joaninhas, estrelas cadentes e outros
elementos a que a superstição atribui boa sorte. O motivo é óbvio: cada oportunida-
de de fazer um desejo, gasta com o pedido de que os pais voltassem logo, havia sido
desperdiçada.
Se a instabilidade identitária emerge inicialmente como marca do “eu” enunciador,
um novo sentido de pertencimento é construído como gesto final do documentário.
Toda a equipe do filme veste perucas loiras. Em uma longa caminhada pelo campo, a
protagonista vai se afastando de costas para a câmera, primeiramente solitária, mas logo
acompanhada pelos outros. A trilha sonora reverbera esse significado, com a canção
que diz: “posso ver e dizer e sentir que algo mudou/ para mim não é estranho, não vou
fugir nem escapar de meu destino”6. Se os cabelos loiros que justificam o título do filme
foram, inicialmente, a marca de uma identidade que se escondia na vida clandestina,
ora dão forma a uma identidade que se afirma: a das afinidades e afetos, nova forma
de comunidade que resiste e, simbolicamente, caminha adiante.

6.  A música “Influencia”, interpretada pelo cantor e compositor argentino Charly García, é uma versão de
“Influenza”, de Todd Rundgren.

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Sujeitos em busca de si: a dimensão da primeira pessoa como construção documental

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DIÁRIO DE UMA BUSCA : IMAGENS RUMO A UMA NOVA MEMÓRIA


Se em Los rubios o procedimento memorialístico orienta a trajetória rumo à construção
de “imagens suportáveis” pela instância enunciativa, Diário de uma busca parece inverter
o vetor: questiona o sentido de imagens estabilizadas para, a partir da tentativa de
esclarecimento sobre a morte do pai da realizadora, propulsionar uma reelaboração
subjetiva do “eu”7: “Meu pai morreu em circunstâncias misteriosas. Durante muito
tempo, pensar no meu pai significava pensar em sua morte. Como se, por seu enigma
e sua violência, ela tivesse apagado sua história. Não sei se ‘mistério’ é a palavra mais
adequada. Eu recomeço”. Flavia Castro se propõe assim a investigar os sentidos da
morte do pai, Celso Afonso Gay de Castro, ex-militante de esquerda que, segundo a
versão oficial, teria se suicidado ao tentar um assalto à casa de um ex-oficial nazista (que
também havia sido cônsul do Paraguai) em Porto Alegre, em 1984.
O recomeço a que alude a narração da diretora, no início do filme, faz entrever a
ambição do projeto, que, mesmo recorrendo a documentos oficiais, correspondências,
entrevistas com jornalistas, policiais, peritos, familiares e pessoas que militaram com
Celso, assume-se como uma visão circunstanciada e pessoal. Essa situação chega a
ser motivo de entreveros com Joca, irmão da realizadora, cuja presença é bastante
pronunciada no documentário. Antropólogo e professor universitário, Joca questiona a
validade dos procedimentos adotados pela irmã, que redargue: “estou fazendo um filme,
não uma investigação policial”. Esse posicionamento, efetivamente, situa o exercício
memorialístico de que a obra se investe. Ainda que as circunstâncias da morte do pai sejam
exaustivamente procuradas8, a condição de uma infância passada na clandestinidade
(ao lado do irmão e dos filhos de outros militantes) é o motor da dinâmica empreendida
pelo filme: ao procurar a verdade sobre a morte paterna (e reconhecê-la intangível), a
realizadora ressitua seu lugar identitário. A tessitura narrativa que entrelaça os anos
de formação dos “filhos da ditadura” e uma autoanálise da experiência, mais de duas
décadas depois, autoriza uma espécie de afirmação subjetiva menos dependente das
versões e posicionamentos da geração anterior, que não raro se autodetermina como
“dona da história”.
É nesse tensionamento que o enunciado de Diário de uma busca articula duas cama-
das de sentido: a infância dos filhos de militantes, em certa medida suspensa no tempo

7.  Para além de uma opção estritamente estética de cada um dos documentários, cremos que esse aspecto
esteja intrinsecamente relacionado às implicações políticas e culturais que modularam a forma de tratamento,
interpretação e publicização das memórias das ditaduras nas sociedades argentina e brasileira. Se, na
Argentina, a instalação da Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP) se deu já
em 1983, duante o governo Raúl Alfonsín, no Brasil, semelhante estratégia – a oficialização da Comissão
Nacional da Verdade (CNV) – ocorreu apenas em 2012, no governo Dilma Rousseff. O que sublinhamos
é que essa “defasagem” de quase três décadas, no caso brasileiro, influencia diretamente a diversidade
de relatos, fontes históricas e, consequentemente, abordagens narrativas nas diferentes produções que
tematizam os períodos de totalitarismo político.
8.  A indefinição sobre as circunstâncias em que Celso Castro foi morto (ou cometeu suicídio) torna-se ainda
mais problemática pelo fato de o evento ter ocorrido já durante o processo de abertura política no Brasil.
Uma das ambiguidades centrais que o filme pontua sobre o episódio diz respeito às versões conflitantes
quanto à natureza do assalto: alguns jornalistas asseguram que a ação tinha clara conotação política (em
vista das ligações do ex-cônsul com o nazismo); um legista que analisa os resultados da necropsia (no
contexto do filme) observa que a versão de suicídio é fortemente refutável; já o delegado que assumiu a
investigação à época dos eventos, garante ter se tratado de um crime comum: Celso teria assassinado um
colega que o acompanhava na ação e depois se matado ao perceber a chegada da polícia.

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Sujeitos em busca de si: a dimensão da primeira pessoa como construção documental

Mariana Duccini Junqueira da Silva

(os planos que remetem a esse tema são fixos, compostos por fotografias de época, têm
uma coloração pálida bem próxima ao preto e branco e uma faixa sonora que traz nar-
rações em voz over), e a diáspora sem fim dos exilados, com a leitura diegética de cartas
remetidas tanto no período do exílio quanto no da abertura, em planos coloridos e em
movimento. Este último artifício, entretanto, não se subtrai ao significado de frustração
e amargura. Em uma das cartas de Celso, lida pelo filho Joca, a constatação de que “as
pessoas não percebem que voltamos derrotados; o que houve foi uma concessão da
ditadura” expressa o desencanto em relação à Lei da Anistia.
Não raro, o documentário propulsiona uma ambiguidade entre as vozes de Joca e a
do pai – o que se deslinda quando a voz de Celso é de fato pronunciada (e identificada),
por meio de uma antiga gravação em fita cassete. Essa aparente indiferenciação alcança
um efeito poético: o filho cede ao pai ausente alguma possibilidade de corporificação, já
que o espectador só pode “conhecer” Celso por meio de fotografias. Mas não se trata de
um efeito simbiótico, pois, ressaltamos, o próprio enunciado fílmico trata de resolver esse
impasse. Diário de uma busca recorre a diferentes vozes para conferir a relatos dispersos
uma estabilidade possível, mas não adere à conjugação dessas vozes para dar forma a
uma versão totalizante da história. É entre todas elas que se afirma a inflexão do “eu”
que enuncia, assumindo uma identidade não definitiva, inacabada mesmo – aquela que
torna possível uma afirmação subjetiva menos suscetível à mobilização de estereótipos
e menos dependente dos posicionamentos alheios.
O trabalho com os testemunhos, entretanto, é bastante diferente daquele proposto
em Los rubios. Em Diário de uma busca, o enunciado incorpora diegeticamente esses ele-
mentos, identifica e nomeia as fontes, contextualiza os fatos e chega mesmo a propor
uma representação mais linear dos eventos históricos. Mas, ao mesmo tempo, torna-se
patente a dimensão do anacronismo nesses relatos, posto que a “vitória revolucionária”
tão almejada pelos militantes jamais chegou (AGUILAR, 2014). Como efeito de contraste,
a narrativização da infância e da adolescência da realizadora ganha expressividade no
filme, convida o espectador a um “desvio” no caminho da grande história e situa os
afetos como forças primordiais na construção tanto das subjetividades quanto de pro-
jetos de vida em comum. As memórias do exílio são, na maioria, eivadas de imaginação
infantil, como ressalta a relizadora ao recordar os tempos de escola no Chile, onde, além
de ter aprendido a ler, ficou famosa entre as outras crianças pela sorte de ostentar o
sobrenome Castro quando o líder cubano visitou o país de Allende, no início dos anos
1970: “virei a sobrinha brasileira de Fidel”.
A documentação da busca, mote do próprio título do documentário, tem de se haver
com as indeterminações próprias a um exercício dessa natureza – e o próprio risco de
não se chegar a uma conclusão sobre as circunstâncias da morte do pai é assumido cla-
ramente pela instância enunciadora do filme, pela inserção na narrativa de testemunhos
que expressam tal ideia. “De repente, tu tá procurando uma coisa que não existe”, diz o
jornalista Jorge Waithers, primeira pessoa a chegar ao local onde Celso morreu, embora
não tenha podido entrar no apartamento do ex-cônsul. “Resolver o mistério não vai me
fazer entender o que leva uma pessoa de 41 anos a fazer isso”, pondera Joca. O signo da
impossibilidade vai se reiterando nas últimas sequências, quando a realizadora relem-
bra o desejo desarrazoado de “voltar ao momento anterior, quando eu ainda não sabia,

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Sujeitos em busca de si: a dimensão da primeira pessoa como construção documental

Mariana Duccini Junqueira da Silva

quando não era verdade nem era possível”, assim que soube da morte do pai. Ou ainda
pela última carta de Celso, cuja leitura é dividida entre Flavia e Joca. Em uma aparente
premonição, o pai afirma: “para mim, não foi possível”.
A condição de exilado de Celso Castro e de vários de seus companheiros de militân-
cia, como se deduz a partir do filme, demarcou um dano existencial (a impossibilidade de
um sujeito coincidir consigo mesmo após uma experiência traumática) que muitas vezes
só se resolveu com a morte. Essa fratura identitária, evidentemente, alcançou também
os filhos dessa geração, destinou a eles um lugar obscuro nas tramas da história, que
progressivamente, entretanto, vai sendo ressignificado. Na última sequência de Diário
de uma busca, Flavia e Joca se separam: cada um deles vai saindo de cena por limites
opostos do quadro. A imagem da realizadora permanece no último plano. De costas
para a câmera, ela olha para uma igreja, onde os sinos dobram. Constatação da morte
irretorquível e inexplicável do pai, (anti-)herói de quem foi subtraída a possibilidade de
redenção. Prenúncio de uma transformação identitária da filha, como gesto do docu-
mentário. A realizadora não encara o espectador, assume o impasse e a ambivalência
que entrelaçam a vida e a morte – e, como na geração dos “novos rubios” do filme de
Albertina Carri, parece não se esquivar do destino, ainda que seus desdobramentos
sejam imponderáveis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise de Los rubios e Diário de uma busca tomou como inspiração uma ideia de
Ricoeur (2003), para quem a recordação surge ao espírito como imagem de uma ausência;
o passado, então, inscreve-se nessa imagem como o próprio signo da ausência, aquilo
que a memória se esforça para recuperar.
No filme de Albertina Carri, as memórias necessitam de imagens justas, já que
aquelas disponíveis são patentemente insuportáveis para toda uma geração que “chegou
depois” – por isso o filme faz poucas concessões às imagens e vozes “herdadas” e opta
por forjar, na dimensão do “eu” enunciativo, suas próprias imagens e vozes. No filme
de Flavia Castro, são as imagens em abundância que requerem uma memória justa:
aquela que pode enunciar a si mesma em meio à profusão de versões do passado que,
se alcançam o presente, é justamente para serem ressignificadas.
A busca pela primeira pessoa em documentários como os que contemplamos tem
um valor distintivo em uma infinidade de produções midiáticas que espetacularizam
a intimidade. Isso porque torna-se potente para estender o sentido da experiência para
além do espaço estrito do sujeito enunciador. Diferentemente das formas que se esgotam
na autocontemplação ou no exibicionismo, o “eu” que emerge nesses filmes propõe novas
formas de estar no mundo, de construir os sentidos da história e de forjar comunidades
de pertencimento.

REFERÊNCIAS
Aguilar, G. (2014, 2 de abril). El documental en primera persona: el desafío de la tercera
persona. Conferência realizada na Mostra Silêncios Históricos e Pessoais. São Paulo: Caixa
Cultural São Paulo.
Barthes, R. (2003). Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Martins Fontes.

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Sujeitos em busca de si: a dimensão da primeira pessoa como construção documental

Mariana Duccini Junqueira da Silva

Benveniste, E (1995). Problemas de linguística geral. 4ª.ed. Volume I. Campinas: Pontes.


Piedras, P. (2014). El cine documental en primera persona. Buenos Aires: Paidós.
Ricoeur, P. (2003). Memória, história, esquecimento. Palestra realizada na Conferência
Internacional Hauting Memories? History in Europe after authoritarianism em Budapeste.
Coimbra: Publicações Universidade de Coimbra. Disponível em: http://www.uc.pt/fluc/
lif/publicacoes/textos_disponiveis_online/pdf/memoria_historia. Acesso em 15/03/15.
Sarlo, B. (2007). Tempo passado – cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia
das Letras.
Silva, M. D. J. (2013). Ponto de vista a(u)torizado: composições da autoria no documentário bra-
sileiro contemporâneo. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Escola de
Comunicações e Artes, USP. São Paulo. Disponível em http://www.teses.usp.br/teses/
disponiveis/27/27152/tde-23082013-094442/pt-br.php. Acesso em 16/03/15.

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Pa(i)saje urbano e Intervalo: la ciudad como espacio de
tránsito en los diarios documentales de David Perlov
Landscape and Interval: city as a transit space in
David Perlov’s documentary diary films.
Pa o l a L a g o s L a b b é 1

Resumen: La obra diarística del cineasta brasileño/israelí D.Perlov, despliega


variadas estrategias de autorrepresentación que develan la existencia de un
sujeto identitariamente fragmentado y desarraigado, que vuelve a transitar los
paisajes urbanos y emocionales del pasado. Tel Aviv, Belo Horizonte, Río de
Janeiro, Sâo Paulo, son pa(i)sajes efectivos y afectivos; cartográficos y espiritua-
les; tránsitos entre umbrales no sólo espaciales sino también temporales, en las
múltiples traslaciones entre presente-pasado que nos ofrece la obra de Perlov.
Los territorios no pueden transfigurarse en imágenes nítidas, sino en representa-
ciones difusas que acentúan la idea de intervalo, flujo, tránsito y mutación. Para
representarlos, el autor se sitúa desde el lugar de la crisis y el desajuste, poniendo
en tensión las contradicciones existenciales y la complejidad de la realidad. Se
presentarán los resultados de la descripción, análisis e interpretación cualitativa
de los recursos estéticos y poéticos de Diary (1973-1983), la monumental obra de
6 capítulos y 330’ de Perlov. Se optará por una perspectiva epistemológica capaz
de responder a la multiplicidad e inestabilidad de la imagen contemporánea,
integrando variables interdisciplinarias y promoviendo un desplazamiento
desde la concepción obsoleta de la imagen como un elemento “fijo”, hacia su
comprensión como un texto complejo, abierto, fluido y dialogante.
Palabras Clave: Cine Documental. Diario de Vida/Viaje. Ciudad. Tránsito.
Intervalo.

Abstract: Diaristic work of brazilian/israeli filmmaker D.Perlov, displays


several self-representation strategies that reveal the existence of a fragmented
and rootless identitarian subject who returns to transit urban and emotional
landscapes from the past. Tel Aviv, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Sâo Paulo,
are both effective and affective, cartographic and spiritual scapes; transits
between not only spatial but also temporal thresholds, among multiple
translations between presente and past on Perlov’s work. Territories will not be
transfigured into sharp images, but into diffuse representations that emphasize
the idea of interval,
​​ flow, transit and mutation. To represent those spaces, the
author locates from the place of crisis and breakdown, tensing existential
contradictions and the complexity of reality. Analysis will exhibit the results
of description and qualitative interpretation of aesthetic and poetic resources

1.  Universidad de Chile. paola.lagos.labbe@u.uchile.cl

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Pa(i)saje urbano e Intervalo: la ciudad como espacio de tránsito en los diarios documentales de David Perlov

Paola Lagos Labbé

on Diary (1973-1983), the monumental 6 chapters and 330’ Perlov’s piece. It will
be used an epistemological perspective able to respond to multiplicity and
instability of contemporary image, integrating interdisciplinary variables
and promoting a displacement from obsolete concept of image as a “fixed”
element, to a complex, open, fluid and dialogic text.
Keywords: Documentary Film. Diary/Travelogue. City. Transit. Interval.

ANDÉN DE SALIDA .
“Recordar momentos de un pasado lejano es viajar fuera del tiempo.
Sólo la memoria de cada uno lo puede hacer, es lo que voy a intentar…”
Manoel de Oliveira en Porto da minha infância (2001).

U NO DE los aspectos que tensiona gran parte de la producción documental de


carácter autobiográfico, dice relación con la íntima búsqueda identitaria y gene-
alógica en que se embarcan sus autores, comúnmente personas desplazadas,
desterradas o desarraigadas, que en algún punto de sus vidas emprenden viajes de
retorno a la Arcadia perdida, a la historia pasada, al país de la infancia y adolescencia
que han abandonado, al hogar y a los pequeños ritos que trazan los bordes de su coti-
diano, sea éste un lugar físico concreto, o un espacio imaginado y recordado que sólo
es asequible por la vía de la memoria. La figura de estos errantes, metecos, a menudo
(auto)exiliados, no es nueva en la historia del documental autobiográfico2; son varios los
“cineastas del yo” que han empleado el recurso del viaje hacia unos orígenes natural-
mente irrecuperables sino a través de la evocación. Es por ello, que el desplazamiento
físico –generalmente desde la urbe en la que se han asentado (lo global), hacia el pueblo
del que se han marchado (lo local, lo propio, territorio que conserva ciertas tradiciones
vinculadas a la experiencia y al etos personal)- pasa a ser metáfora de un movimiento
interior, de un viaje hacia el autoconocimiento. Es el caso del cineasta David Perlov
y su documental autobiográfico Diary, que, como su nombre lo indica, constituye un
diario de vida, discurso (auto)referencial ampliamente estudiado desde los géneros
testimoniales literarios, pero de relativamente reciente visibilidad y atención crítica por
parte de los estudios cinematográficos. Compuesto por 6 capítulos (c/u de 60’ aprox.
de duración), Diary condensa diez años (1973-1983) de la intimidad de la vida cotidiana
de Perlov, poniendo en relieve la naturaleza eminentemente subjetiva del documental
ensayístico y de autor que, en el caso de Perlov, transita en un mestizaje que bordea los

2.  Algunos de los ejemplos más paradigmáticos de estos viajes cinematográficos en primera persona,
se encuentran en las obras del francés Chris Marker, quien al inicio de Lettre de Siberie (Carta de Siberia,
1957) señala “Os escribo desde un país lejano”, a modo de guiño intertextual a la obra del escritor y pintor
Henri Michaux titulada con el oxímoron “Lejano Interior”; del lituano de origen judío radicado en Estados
Unidos, Jonas Mekas y su Reminiscenses of a journey to Lithuania (Reminiscencias de un viaje a Lituania, 1972);
del norteamericano Ross McElwee y su trayecto al sur en Sherman’s March (La marcha de Sherman, 1986);
del canadiense de origen armenio, nacido en Egipto, Atom Egoyan y el viaje al país euroasiático de sus
ancestros que inspira Calendar (1993); o del centenario cineasta portugués Manoel de Oliveira, que en
Porto da minha infância (Puerto de mi infancia, 2001), retorna a su Oporto natal. Y es, por supuesto, el caso
del cineasta brasileño de origen judío, radicado en Israel, David Perlov, tanto en Diary (1973-1983), como
en Updated Diary (1990-1999).

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Pa(i)saje urbano e Intervalo: la ciudad como espacio de tránsito en los diarios documentales de David Perlov

Paola Lagos Labbé

intersticios de diversos modelos de inscripción autobiográficas tales como el diario de


vida filmado, el diario de viaje, el autorretrato, el cine familiar y amateur, entre otros.
(Dia)crónicas personales por lo general registradas a lo largo de períodos significativos
en la vida de un cineasta (varios años o décadas) que -sin un orden establecido y tal
como lo hace el diario de vida escrito- recogen y plasman sus vivencias cotidianas, sus
relaciones afectivas y familiares, pero que -a dierencia de las home movies- no sólo lo hacen
mediante el registro de momentos celebratorios, sino además de los eventos traumáticos,
desintegraciones familiares, memorias trizadas, exilios, desarraigos y eternos retornos
de autores que se posicionan desde una identidad problemática o fracturada que indaga
en experiencias pasadas a menudo no resueltas.

PRIMERA PARADA.
“La memoria es como un centro de gravedad: siempre nos atrae.
Quien tiene memoria vive en el presente;
quien no tiene, no vive en ningún lugar”.
Patricio Guzmán en Nostalgia de la Luz (2010).

La obra diarística del cineasta brasileño/israelí David Perlov pone en práctica


variadas estrategias de (auto)representación que construyen y develan la existencia
de un sujeto identitariamente fragmentado, desarraigado, desplazado. Ya en el primer
capítulo de Diary, Perlov enuncia abiertamente su condición de forastero: “Stranger here,
stranger there, stranger everywhere. I wish I could come home, baby, but I’m a stranger
also there”. Brasileño en Israel; israelita en Brasil, la vida de este cineasta estuvo, en efecto,
signada por los desplazamientos. Con ancestros dispersos tras las múltiples diásporas
y descendiente de una familia jasídica establecida en Palestina en 1857 (su abuelo, un
judío ortodoxo, fue quien emigró a Brasil), David Perlov nació en Río de Janeiro en
1930. Pasó la mayor parte de su infancia en Belo Horizonte y a los 10 años se trasladó
junto a su madre y su abuelo a São Paulo, donde transcurrió toda su adolescencia. A
principios de los años cincuenta, llegó a París para estudiar Bellas Artes y, entre otras
cosas, trabajó como montajista de Joris Ivens, uno de los padres del documental de
vanguardia. A finales de dicha década y con 28 años, Perlov decidió probar suerte en
la tierra de sus ancestros, trasladándose a Israel. Sería allí donde formaría una familia,
donde nacerían y crecerían sus hijas, donde desarrollaría su obra cinematográfica y
donde finalmente moriría, en 2003. Pero en 1983, 20 años antes de fallecer, esta percepción
de outsider empuja a Perlov a volver a su Brasil natal a transitar los paisajes urbanos,
culturales y emocionales del pasado, modelando así una subjetividad compuesta por los
espacios que atraviesa y por los que es atravesado. Las cartografías que recorre Perlov
corresponden a paisajes concebidos como espacios transformados por la mirada de este
pa(i)sajero, por las emociones que los lugares le provocan, asociadas a las memorias de
las experiencias que vivió en ellos. Para ello, el autor se sitúa desde el lugar de la crisis,
el desajuste, la disconformidad, pues es en ese espacio simbólico donde se ponen en
juego las contradicciones existenciales y la complejidad de la realidad (Cfr. Català, J. M.,
2005). La imposibilidad del desarraigado por recobrar la patria perdida y los paisajes
afectivos que ésta contiene, lo condenan a la irremediable melancolía de quien añora

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Pa(i)saje urbano e Intervalo: la ciudad como espacio de tránsito en los diarios documentales de David Perlov

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una utopía, un lugar que en realidad es imaginario y que, como toda construcción
mítica, se alimenta de la experiencia de lo real, de la vida cotidiana y sobre todo en las
memorias del período de la infancia y juventud. En el caso de Perlov, la representación
icónica de estas memorias asociadas a los paisajes urbanos y humanos de Brasil -espacio
original vinculado a todo un universo geográfico, genealógico y afectivo- dan cuenta
de su constante movimiento, de la dificultad de la aprehensión de lo real; del conflicto
permanente que asiste al exiliado. La mirada resultante de esta operación, se encarna
en la construcción de una imagen fantasmagórica sobre la realidad y los tiempos que
confluyen en ella. Parece ser que para Perlov, los territorios –topográficos y emotivos-
no pueden transfigurarse en imágenes nítidas, sino en representaciones de naturaleza
difusa, que reflejen los espejismos y acentúen la idea de flujo, de mutación.
Como alegoría de desplazamiento alrededor de los espacios que se recorren en
el presente y se contrastan con los recuerdos del pasado, Perlov emplea el recurso del
travelling para enfatizar en el carácter doble del movimiento, en su dimensión física,
efectiva, exterior, pero también en su dimensión afectiva, interior y transformadora del
“yo” y su identidad en crisis. Así, mientras baja por una cuesta y filma desde la ventana
del automóvil en el que se encuentra, Perlov indica: “Desciendo dentro de mi distante
pasado, buscando a Fawzi, un amigo de colegio” (Cap.6). En el quinto capítulo de su
diario, podemos oírlo reflexionar acerca de cómo el azar propio del tránsito y las sorpresas
que la realidad concede a la mirada en el transcurso de un trayecto indeterminado, le
dictan a menudo el método de filmación a seguir.
Deseo una cámara de video con la cual deambular por las ciudades, de ser posible, en un
taxi; permitiendo que el ritmo casual de los semáforos defina el marco. Los llamados ‘puntos
muertos’, momentos vacíos, ¿estarán realmente muertos? El taxista se impacienta con los
embotellamientos de tráfico. Yo no. (…) Recuerdo una vez, durante mis días de estudiante
en París cuando con todos mis ahorros tomé un taxi, diciéndole al taxista, ‘lléveme donde
quiera, pero no me diga dónde estamos’. Tuve efectivo suficiente para 4 horas. Esta vez nos
lleva 20 minutos regresar al punto de partida. (Diary. Cap. 5).

El movimiento es una constante en sus diarios documentales, representado por


medio del viaje por territorios imprecisos como alegoría de una errancia y de una
búsqueda que se plasma en una pieza cinematográfica -Diary- concebida como proyecto
e indagación, más que como resultado o producto acabado. El movimiento exterior –el
viaje desde la geografía que adoptó al desterrado (Tel Aviv) hacia las ciudades de infancia,
adolescencia y juventud que algún día habitó y luego abandonó (Belo Horizonte, Río
de Janeiro, Sâo Paulo)- es metáfora del desplazamiento interior hacia aquel espacio
simbólico de pertenencia al que llamamos “hogar”. Las ciudades son, pues, pasajes y
paisajes efectivos y afectivos; cartográficos y espirituales; tránsitos entre umbrales no
sólo espaciales sino también temporales, en las múltiples traslaciones entre presente-
pasado que nos ofrece la obra de Perlov, quien logra así construir una imagen capaz de
dar presencia -traer al presente- aquello que no es del orden de la presencia, sino de la
ausencia. Así es como en su primer viaje de retorno a Brasil, más de 30 años después de
haberlo dejado, Perlov recorrió con su cámara cada “lugar de (su) memoria” (Cfr. Nora, P.
1984); no para registrar lo público, sino lo privado; no el monumento, sino la tumba del

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Pa(i)saje urbano e Intervalo: la ciudad como espacio de tránsito en los diarios documentales de David Perlov

Paola Lagos Labbé

abuelo; no la avenida principal de la gran ciudad, sino los rincones del barrio que caminó
de niño; no la canción nacional, sino la que le evoca a su madrastra negra, Doña Guiomar.
En definitiva, el documental de Perlov no “documenta” el viaje, sino que construye el
universo de la nostalgia del autor. La evocación de la infancia añorada, de las pátinas
de tiempo que recubren y engrosan las paredes de la casa familiar y los recuerdos que
con ellas se engrosan, parecen despertar en el errante la necesidad de volver a transitar
instrospectuvamente los paisajes de la niñez y juventud. Así, el cineasta busca explorar
en la identidad del yo y sus fisuras, interrogar las grietas de la memoria, recomponer
la identidad escindida y corporeizar las apariciones fantasmagóricas del pasado en
personas concretas, lugares palpables, objetos, formas, colores y sensaciones que se fijan
y se perpetúan ya no solo en la fragilidad de la memoria, sino en la materialidad del
celuloide, en un tiempo y un espacio fílmicos. En su primer recorrido por Sâo Paulo,
Perlov recorre y evoca:
Las casas de mis compañeros de escuela. Aquí, el tranvía en el que solía viajar al barrio
judío. Aquí escuché el Aria de Bach por primera vez procedente de la Estación de Radio
Católica. Aquí robé mi primer libro. Kant. Aún no lo he leído. La estatua de Cervantes sigue
en su lugar. Don Quijote, me hace sonreír. La Biblioteca Pública. Camino a mi vecindario,
calles mutiladas como un rostro mutilado. Se ha conservado sólo un lado de la calle. Debajo
de ésta, el metro, el tren subterráneo de los trabajadores. ‘Extranjero aquí, extranjero allá;
extranjero en todas partes. Desearía poder volver a casa, nena, pero también allí soy un
extranjero’. Una canción de Odetta. Aquí siempre hay niebla por la mañana. Mi vecindario.
Cuando era yo muy joven mi abuelo no me permitía fumar. Tenía pronta una excusa por
si me atrapaba: ‘Es sólo el vaho de mi aliento lo que sale de mi boca, abuelo’. Mi casa, mi
cuarto, mi ventana. En el camino a casa desde la escuela, las iglesias. Prefería las barrocas
a las catedrales pseudo-góticas. Sentía además una rara atracción por la iglesia bizantina.
¿Presentía ya entonces que un día viviría no lejos de Estambul? La visita es difícil. Mi padre
sufre un ataque al corazón durante mi visita. Me encontré con el sólo en cuatro breves
ocasiones en toda mi vida. Ésta es la cuarta.

La identidad de Perlov, cuya imagen se asemeja a la de un retrato fragmentado


en las pequeñas piezas de un puzzle, busca ser encajada, completada y recompuesta
como tal. El diario filmado es, pues, el camino a transitar para dicha reconstitución y,
en la travesía del propio filme la identidad se va (re)construyendo desde la filmación
al montaje y posterior elaboración narrativa, cuando la voice over opera sobre el pasado
(las imágenes registradas). Su voz pausada y calma, posee el acento del extranjero y
es perfectamente coherente con el punto de vista de su cámara; Perlov encuadra con
la austeridad y la sencillez no del turista, sino del eterno viajero, del desplazado que
se detiene a observar sin ambages ni artilugios los caminos transitados del ayer, como
si volviera a verlos y a recorrerlos por primera vez. Durante el registro, la exploración
autorreflexiva del sí mismo, del cotidiano, del mundo histórico y del propio acto de
filmar y cómo representar cinematográficamente el frágil mundo de las emociones,
obedece a una subjetividad que se proyecta a la cámara como extensión y prótesis que
acompaña al autor en su itinerario hacia la Sudamérica natal a visitar orígenes, lugares
y amigos; trayectos y afectos. En el montaje, como un nuevo modulador de subjetividad,

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Pa(i)saje urbano e Intervalo: la ciudad como espacio de tránsito en los diarios documentales de David Perlov

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en tanto, Perlov avanza un paso más en su trayecto por evidenciarse como un outsider
en las rutas de la propia vida:
Sí, todos lo sabemos: ya es hora de partir. Regresar a casa. Aeropuerto Charles de Gaulle.
Llego temprano. Añorando a Sâo Paulo. Añorando encontrarme en Brasil. Son sólo 12 horas
de distancia, pero aun es muy temprano. Pido al taxista que dé otra vuelta alrededor del
aeropuerto. Pregunta si tengo suficiente dinero local, si soy americano. Le digo que lo soy,
del sur. (…) Le pedí a Yael y Naomi que no pidan licencia en el trabajo; que no vengan al
aeropuerto. ‘Está bien’, dije, ‘Sâo Paulo queda a la vuelta de la esquina; el avión vuela como
un pájaro’. No parecen entenderlo; para ellas, los pájaros vuelan como aviones. ¿Dónde
están hoy los pájaros?, ¿qué le sucedió a los albatros? (…) ¿Dónde está la puerta de embar-
que a Sudamérica? ¿A Sâo Paulo? Deseo encontrarme en Brasil. Aquí, París. Mañana en la
mañana, una breve escala en Río de Janeiro y luego, Sâo Paulo. Estoy en camino. [Y una
vez en Brasil, continúa:] Por segunda vez en Sâo Paulo. (…) El pueblo de mi adolescencia.
La inmensa ciudad. En los tranvías de esos tiempos, las inscripciones decían: ‘El centro
industrial más grande de Latinoamérica’. En ese entonces no comprendía el significado.
Sao Paulo era la promesa, la certeza de un futuro mejor para Brasil. Llegué a Sâo Paulo por
primera vez cuando tenía 10 años, arrancando de la oscuridad. Era un niño guiado por
mi abuelo, no podía más que observar los edificios gigantes. Aún no me atrevo a mirar a la
gente. Nuevamente, sólo a la cúspide de los edificios. Aún escucho la Aria de Bach de mi
adolescencia. Entro al mismo túnel donde de día, de noche, era siempre de noche. Aquí, de
niño, podía venir y gritar durante horas, más alto que las bocinas de los carros. Gritos de
alegría, gritos de desesperación. Aquí, era libre.

El cine de Perlov da cuenta de una subjetividad que se encuentra constantemente


en tránsito, en transformación, no hay tal como cosa como una identidad fija, cerrada,
completa, sino más bien una suerte de boceto, de “work in progress” de la experiencia
vital. Repleta de operaciones de prueba/error sin meta preconcebida –recurso por lo
demás muy propio de los diarios de vida y de viaje y de su construcción paulatina
mientras se “toma nota” con la cámara- se trata de un proyecto atravesado por el ensayo
cinematográfico. Sin pretender ahondar en el presente texto sobre este registro discursivo
y sus complejidades, es preciso constatar que, como su símil escrito, el ensayo conlleva
siempre la posibilidad de la duda, la indecisión y de la reflexión como recurso modelador
de las que, en este caso, son interrogantes existenciales para el autor, en tanto determinan
su visión sobre la propia vida, sobre los acontecimientos exteriores y también sobre la
propia práctica autobiográfica y sus potencialidades de representación con el lenguaje
cinematográfico. El ensayo, más que aportarnos respuestas, nos formula preguntas; a
través de la reflexión, nos interpela como espectadores convocándonos a reflexionar,
a someter al mundo a la prueba de la duda, a tomar distancia y a adoptar un punto
de vista en la formulación de las ideas. Se evidencian, así, las estrategias de evocación
poética que dan forma a una estética del desarraigo o del desamparo que transita entre la
filiación y la orfandad, en este constante ir y venir entre el alejamiento y el acercamiento
desde/hacia los orígenes. De ahí que no es de extrañarse que los registros de enunciación
narrativos sean la reminiscencia, la nostalgia, el desaliento, la fragilidad del recuerdo y
el futuro incierto, la “lejanía interior” (Michaux), la “saudade” que se impregna en los

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pequeños detalles, gestos e interjecciones. La travesía se encuentra pues, signada por los
estados de ánimo del autor. “Es difícil registrar mi estado de ánimo”, señala el propio
Perlov, vacilando sobre las capacidades del dispositivo para dar cuenta de elaboraciones
de la experiencia íntima y abstracta, sobre todo cuando ésta se encuentra asociada a
universos de dolor o desamparo.

TRANSBORDO
“En una pequeña ciudad de Europa del Este un judío encuentra a otro que va
a la estación cargado de maletas y le pregunta a dónde se dirige.
A América del Sur, responde el otro.
Ah, replica el primero, te vas muy lejos.
A lo que el otro, mirándole asombrado, responde:
¿Lejos de dónde?”.
Claudio Magris. Utopía y desencanto (2004).

Para quienes, como David Perlov, han debido tomar la decisión forzosa o voluntaria
de abandonar el hogar natal por razones de desplazamiento, exilio o migración, la
construcción de la figura del hogar constituye un dilema existencial de por vida, incluso
a pesar de tener la posibilidad de un fugaz retorno. El hogar puede ser desde el propio
lar de origen –el oikos–, hasta incluso la melancolía, el sentimiento de despojo, la lejanía
interior, lo irremediablemente perdido, el insuperable vacío remanente, o una promesa
de esperanza, arraigo y pertenencia en un nuevo y remoto norte, en unos nuevos afectos,
en unas nuevas geografías. “El pasado es el hogar, aunque un hogar perdido en una
ciudad perdida en la niebla de un tiempo perdido”, en palabras del escritor nacido en
La India y criado en Gran Bretaña, Salman Rushdie.
La ciudad a menudo define un espacio de identidad que se refiere al ser y al estar
de una persona, por nombrar un ejemplo: soy valdiviana; vivo en Santiago. La ciudad
natal marca un hito iniciático en la biografía de un sujeto, toda vez que sella el momento
germinal de lo que en adelante será su vida: la persona es “dada a luz”, “alumbrada” en
un espacio físico concreto. De allí la importancia de Río de Janeiro para Perlov, ciudad
que para él representa la añoranza del Paraíso perdido. En una breve estancia en Río
de Janeiro, en su viaje de regreso a Brasil, Perlov señala en el sexto capítulo de Diary:
Aún no logro comprender por qué, de bebé, fui arrancado de la ciudad más hermosa del
mundo: Río de Janeiro, no la promesa del Paraíso, sino el Paraíso mismo. Como en las
postales, te saca una sonrisa. Nací en un mundo de postal; la ciudad más maravillosa del
mundo. Busco la calle Riachuelo, al otro lado del acueducto. Busco la farmacia en la cuál
trabajé durante las vacaciones. Olía a perfumes, jabón y medicinas de patentes. Lo disfru-
taba pero, en realidad, voy en busca del tranvía; el último tranvía de Brasil. Contemplo
Copacabana. Nací justo a la vuelta de la esquina, no lejos de Clarinha. Es Clara Sverner
quien está tocando el piano; la amiga de Mira, Clarinha. Actualmente, investiga la música
brasilera. Clara pregunta, ‘¿Dónde les gustaría ir?’. ‘A ninguna parte’, contesto; ‘Lo conozco
todo, cada callejuela’. ‘¿Tal vez el Jardín Botánico?’. Acepto. (…). Lo sé; regresaré a Río de
Janeiro. (Diary, Cap. 6).

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Belo Horizonte es la ciudad de la infancia temprana, el lugar que para el cineasta


latinoamericano de origen judío representa el germen de su desarraigo, de su errancia
como eterno forastero, de su paratopía existencial y su transitar en medio de una línea de
fuga de un punto a otro, deseando –por una parte- encontrar un sentido de pertenencia,
un hogar, al mismo tiempo que huyendo de él y desestabilizando cualquier tentativa
que amenace con obstruir el devenir del flujo vital y sus posibilidades de tránsito y
de movimiento. Belo Horizonte revive el primer exilio en la infancia, es la localidad
asociada a la separación forzosa del lado de la madre, es la representación del tránsito
entre dos puntos, el dejado atrás y el de llegada (Sâo Paulo de su niñez y adolescencia),
sin que necesariamente ninguno de los dos constituya en adelante la morada identitaria,
pues básicamente se produce la conciencia de que, como dice Waldman (Cfr. Waldman,
2009) la pertenencia no reside necesariamente en un “hogar” y el “hogar” no significa
necesariamente pertenencia. “Me marché desde esta estación a Sâo Paulo, a los 10 años.
Mi madre vino aquí para verme marchar. Corrió tras el tren, sobre los rieles, despidién-
dose con la mano, pero sin alcanzarlo. Dona Guiomar permaneció inmóvil en el andén”.
Belo Horizonte representa el hogar desmembrado, la orfandad marcada por la pérdida
simbólica de la madre. En Belo Horizonte, Perlov vuelve a recurrir a la fragmentaridad
como estrategia discursiva para aportar sólo destellos de aquel momento traumático
en el que es incapaz de ahondar demasiado, porque se intuye es matriz -incluso en el
sentido de lo maternal- de un desarraigo trascendental.
Finalmente voy al edificio; mi hogar durante 10 años. En el patio, invisible, las ventanas
del salón de billar. Demencia mental. Tragedia. Las ratas multiplicándose noche tras noche.
Quise partir a la mañana siguiente. Camino al Aeropuerto, Aaron [su hermano] me dijo: ‘Si
vas a Belo Horizonte, debes ir al cementerio’. Como diciendo: ‘Visítala’. (…) Si no visito su
tumba, significa que ella no me importa, ni tampoco su memoria. Como si nadie la cuidara.
Desprotegida; que la han abandonado. Dejarla sola podría acarrear desgracia. [La cámara
encuadra una lápida con el nombre: Anna Perlof] Su nombre fue mal escrito: ‘of’ en vez de
‘ov’. Como una cruz3. (Diary, Cap. 6).

Anna, la madre de David Perlov. Figura enigmática, envuelta en un halo de misterio


y confusión, Perlov prefiere no hablar ella; tal vez no puede hablar de ella. Su presencia
sugiere conflicto, depresión, dolor, fatalidad y desgracia. Su representación evidencia
un conflicto con el devenir temporal, pugna irresoluble que tan sólo puede ser “tratada”
poéticamente. La voz autorreflexiva modulada por Perlov contiene ecos de otros tiempos,
resonancias que provienen desde el pasado y se proyectan hacia el presente y viceversa,
haciendo estallar la continuidad temporal y conminando al espectador a comprender
que las imágenes actúan como puentes de conexión entre variados universos posibles
que coexisten en múltiples tiempos. Las imágenes de Perlov actúan como puertas de
vaivén, cuyas bisagras nos refieren, al mismo tiempo, al pasado y al presente. De allí que
en los diarios de este cineasta la evocación de la memoria se eclosione hacia distintas
direcciones temporales factibles y no haya tal cosa como un tiempo lineal. El cineasta

3.  Esta alusión de Perlov, dialoga con la primera imagen de Diary, el texto sobre fondo negro, que indica:
“En tierras de pobreza e ignorancia, aquellos que no sabían firmar, presentaban dos cruces sobre sus
fotografías: nombre y apellido”.

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vendría a ser una especie de espectro; un medium que transita por los tiempos y las
estaciones de la existencia. La de Perlov es, pues, una estética del intervalo, toda vez
que los universos que construye tienen que ver tanto con la vida, como con la muerte; la
realidad se articula para él en el tránsito entre el lenguaje de los muertos y el lenguaje de
los vivos; entre pasado y presente; entre historia y memoria. En ese sentido, los paisajes
afectivos de la memoria de este diario filmado, se diferencian notoriamente respecto de
aquellos discursos que presentan una visión meramente nostálgica o melancólica de un
espacio idealizado; por el contrario, como hemos visto, los diarios de Perlov incorporan
la problematización que supone apropiarse y explorar un pasado tensionado también
por la violencia, el abandono, el sufrimiento y el trauma. Pese a que la historia con la
madre nos es velada y vedada a lo largo de Diary, de algún modo se percibe que la
necesidad de reconciliarse con su pasado y la traumática figura materna, es un motor
esencial que moviliza los viajes de Perlov a los paisajes de la infancia y que se ritualiza
en la visita del cineasta a la sepultura de Anna, en Belo Horizonte. Solo entonces, Perlov
es capaz de emprender su retorno a Israel.
Sâo Paulo, en tanto, representa para Perlov una imagen poderosa, no sólo porque
fue allí donde pasó su infancia tardía (desde los 10 años) y su juventud, sino también
porque la decisión de dejar ese hogar, fue libre y consciente, para emprender una nueva
vida y probar suerte a Europa. La relación con su destierro de Sâo Paulo es, pues, la
que se establece con un espacio de intimidad en el que el universo de los afectos aún
se mantiene vivo por lo que el sentimiento de pertenencia a esa comunidad y a los
sentidos que en ella se forjaron, es aún familiar en tanto alude a un “nosotros”, delimita
un espacio de seguridad y, así, protege al errante de la “no pertenencia”. Del mismo
modo, Perlov no solo describe sus impresiones acerca de la piel de la ciudad, sus rin-
cones y aromas, sino también contrasta la ciudad recordada del pasado con la ciudad
recorrida del presente. En este sentido, se pone de relieve la operación consustancial
al cine de obrar como sustituto de la memoria, en este caso, trayendo al presente la
imagen de una ausencia por medio de su elaboración a través de la palabra, mientras
lo que efectivamente se manifiesta frente a nuestra mirada es la evidencia visible de
aquello que ya no está, o que hoy se ha transformado en otra cosa. En el sexto capítulo
de Diary, Perlov señala:
Durante las vacaciones semestrales, retorno a Sâo Paulo luego de una ausencia de veinte
años. Vuelvo para reconciliarme con la ciudad en la cual crecí y para despedirme. (…).
Regreso a Sâo Paulo para despedirme de mi pasado. Doña Guiomar, mi madrastra negra,
solía advertirme: ‘Nunca vuelvas a desandar tus propias huellas; tus pies podrían que-
marse, y jamás podrás volver a caminar’. Primeros pasos vacilantes en la variante luz de
Sâo Paulo. Mi luz. (…). Me llevan allí, me llevan allá. Esté donde esté, encuentro imágenes
grabadas en mi ser. En la casa de Richard… uno de mis viejos amigos. Es así como nos
llamamos el uno al otro, ‘amigos’. (…) Estamos todos aquí, también Julio. Cuando regre-
so, tarde por la noche, bajo y contemplo las farmacias con sus tan recordados aromas. Es
un mundo completo de cura y de enfermedad, y de todos los sentidos involucrados. (…)
Julio está siempre disponible para llevarme a donde quiera. Comenzamos en el ‘Jardín
América’, donde solía pasearme los domingos para contemplar las elegantes residencias.

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‘Jardín América’, el Jardín de América, Sudamérica. Luego, la avenida Paulista. Ha dejado


de interesarme. Los Bancos reemplazaron a las antiguas mansiones. Antaño, se erguían
aquí palacetes de los dueños de los cafetales. (…) Pero era aquí donde deseaba llegar: el
barrio judío. ‘Bom Retiro’: ‘El buen retiro’. En ese entonces, habían judíos, activismo político,
prostitutas, y, tal vez, aquí y allá, un pequeño convento. Todo ello representaba para mí la
verdad absoluta. (…) A mis 19 años, me trasladé a vivir aquí. Una elección dictada por la
conciencia. (…) Sentía necesidad de una revolución, de un sueño. Miro hacia la próxima
calle, el tren pasaba por encima. El Bar de la esquina aún se encuentra allí. Esta calle se
llamaba ‘La Zona’; el único sitio donde se permitía la prostitución, casi cien metros entre
el Bar y la tienda judía. La calle siguiente, atestada de prostitutas enjauladas. Hoy están
completamente vestidas; venden ropa, no cuerpos. En aquellos tiempos, aquellas sonrisas
eran rígidas, gélidas como témpanos, mercenarias. Sofía, María, La Muda, ¿dónde están
ahora? (…) Julio nació aquí, en Bom Retiro. Al igual que otros judíos, ya no reside aquí,
pero aún se siente atraído por su lugar de nacimiento. Aún viene aquí a comer y trabaja
aquí medio día. (…) Lo mismo de antaño, persiste hoy día. El barrio tenía sus confines, a
los que a veces solía venir. (Diary. Cap. 6).

Un componente relevante para la construcción de la visualidad y la narrativa cine-


matográfica en los diarios de Perlov son las ventanas de los diversos medios de trans-
porte en los que el cineasta se desplaza cartográficamente entre un punto urbano y otro,
ventanas que unen y contraponen distintos espacios y tiempos. “Trenes de Europa,
con todo aquello que simbolizan y los distantes e inolvidables trenes de mi infancia en
Brasil”. (Diary. Cap 1). Siempre que Perlov se encuentra recorriendo las ciudades, fija su
punto de vista al interior del taxi, automóvil, tren o tranvía que lo transporta, filmando
a través de la perspectiva de sus ventanas y a menudo incorporando el marco de éstas
en el encuadre. Desde la ventana y en movimiento, registra aleatoriamente lo que se
va a su encuentro en el transcurso de su línea de avance. Gran parte de los recorridos
exteriores por Sâo Paulo, por ejemplo, los realiza en desplazamientos en coche, eviden-
ciando la presencia de las ventanas ya sea por medio de la incorporación del marco, o
mostrando abiertamente el limpiaparabrisas que sube y baja frente al lente de la cámara,
en días de lluvia. Sus imperfectos pero sumamente expresivos travellings por las dis-
tintas ciudades, países y barrios que visita, le aportan una sensación que se asemeja al
efecto de los road movies a través de itinerarios que, en el caso de Perlov, se acompañan
de sus reflexiones sobre lo que para él evocan tales paisajes, como los significativos
pensamientos que expresa en el último capítulo de Diary, cuando acude a uno de sus
lugares favoritos en el mundo: “Estación de Luz”, la estación de trenes de Sao Paulo,
mientras realiza diversos encuadres que contienen el marco propio de las ventanas de
los trenes, detenidos esta vez.
Finalmente, mi catedral: Estación de Luz. Fue aquí donde llegué desde Belo Horizonte con
mi abuelo. En ese tiempo, el humo era denso, intoxicante. Todo este mundo era mi droga.
Aquí me gustaba concertar mis citas; tenía un techo seguro sobre mi cabeza. (…). Hallo
mi enfoque fácilmente, como en ese entonces. Mis dibujos eran simples, frontales. Solía
sentarme aquí, esperando el tren. Mucha gente caminando y subiendo la escalera de la

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estación de metro. No recuerdo haber visto corbatas en aquellos tiempos; no recuerdo haber
visto sonrisas. Sólo era consciente del resollar de las locomotoras. Aguardaba el tren que
traía refugiados desde la esquina del norte. La hambruna. Consumidos por tuberculosis,
anemia, jadeando sin aliento. Hoy, se dice que ellos construyeron la nueva Sâo Paulo. Gente
sin rostro, siluetas llegando a granel. (…). ¿Habrá sido aquí, contemplando estos encuadres,
donde nació mi amor por el cine? (Diary. Cap. 6).

=La fascinación del cineaste por los tranvías y las estaciones de trenes en la
representación de sus espacios urbanos, se explica porque Perlov vivencia las ciudades
como espacios de exilio, localidades siempre en tránsito. En este contexto, las estaciones de
trenes, representan precisamente bisagras; umbrales que permiten la entrada y salida de
las ciudades, entre cuyas distancias Perlov transita mental y físicamente, impulsado por
la inquietud de su desasosiego, su errancia y su búsqueda por un sentido de pertenencia
que se escapa a todo mapa. Estación de Luz en Sao Paulo; Gare de l’Est y Gare du Nord,
en París; el tranvía de Lisboa, Belo Horizonte y Sâo Paulo. Éste último se relaciona para
Perlov con sus amigos de niñez; con las calles de su barrio. Fue a causa de un accidente
en tranvía que falleció su vecino y compañero de escuela, Miguel, a los 12 años. Fue en
los viajes en tranvía de la escuela al vecindario donde estableció amistad con Fawsi, a
quien visitó en su retorno a Brasil.

Experimentamos muchas vivencias, en las vías del tranvía de casa a la escuela y de regreso,
a mis anchas por todo Sâo Paulo. Le pregunto a Fawsi si recuerda cómo comenzó nuestra
amistad.
-Perlov: ¿Cuándo te dirigí la palabra por primera vez?
-Fawsi: No lo recuerdo.
-Perlov: Te voy a ayudar. Veamos… Solíamos regresar juntos a casa, en tranvía.
-Fawsi: Exactamente.
-Perlov: Cada día nos sentábamos en un asiento diferente del tranvía. Siempre cogíamos el
tranvía que viajaba a nuestro vecindario. Creo que nos interesamos el uno en el otro durante
estos viajes. Sabíamos que los dos estudiábamos en la escuela estatal; éramos compañeros
de clase y los dos vivíamos en el mismo vecindario.

¿Y qué hay del lugar donde el nómada ha resuelto detener su andar errático y ha
decidido establecer, si no un hogar, una residencia? ¿Y si esa tierra no es cualquier
destino sino el hogar que se lleva en la sangre y que por lo tanto es en parte constitutivo
de esa propia identidad diaspórica? Israel, el país de los ancestros que adopta a David
Perlov a sus casi 30 años, pasa a ser la tierra de nadie que atomiza las contradicciones
identitarias e impide cerrar las heridas del despatriado, porque lo sitúa en un escenario
de constante añoranza por los territorios que ha dejado atrás.
La incertidumbre, el tiempo libre en demasía, me privan de la capacidad de amar este país.
Carezco de energía para conducir y visitar de nuevo Safed, el pueblo de mis antecesores.
(…) Un día un amigo me preguntó: ‘¿Por qué no te largas, por qué no haces tus filmes en

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otra parte?’ Le respondí: ‘No, no lo haré. He plantado dos árboles aquí; esta tierra es mía’.
La Cinemateca francesa me invita a presentar una retrospectiva de cine israelí. Viajo vía
Bruselas. Vuelvo nuevamente a París luego de una ausencia de 20 años. En los espacios de
Bruselas evoco mi decisión de aquellos días: dejar Europa para siempre. Todo es predecible.
No cabe lugar a la imaginación. Trenes de Europa, con todo aquello que simbolizan y los
distantes e inolvidables trenes de mi infancia en Brasil. En camino a París, junto con Yael.
(…). Intento ver Europa a través de sus ojos como por primera vez. (Diary, Parte 1).

Tel Aviv vendría a ser, en palabras de Waldman, “un permanente ‘fuera de lugar’,
en un allá/entonces, en contraposición a un acá/ahora. Pero ni siquiera apropiándo-
se del acá/ahora las heridas del desarraigo logran sanar”, o, como enfatiza Adorno:
“Quien ya no tiene ninguna patria, halla en el escribir [en el caso de Perlov, en el
filmar] su lugar de residencia” (Adorno, 1987: 85). La dimensión nomádica de Perlov
-representada como hemos visto en una serie de desplazamientos por las ciudades del
pasado-se repliega mayoritariamente hacia el interior de las paredes de su residencia
y hacia el ensimismamiento como estado de ánimo, cuando se trata de construir una
imagen compleja que logre dar cuenta de lo que significa Tel Aviv para el cineasta.
Además de registrarse desde una estética de lo estático que privilegia la ventana como
mirador desde donde se despliega un punto de vista sobre el mundo urbano -el viaje
continúa, pero en un desplazamiento interior relacionado más con la intensidad del
devenir psíquico que con el movimiento físico–, Perlov incorpora constantemente
matices autorreflexivos que dan cuenta de las operaciones y estrategias estéticas y
formales para elaborar una poética alrededor de la ciudad de Tel Aviv desde la altura
de su departamento.
Lo filmo en color. Arriba, en el 19º piso. Cerca de los pájaros. Cerca del cielo. Regocijarse
con la ciudad a tus pies. El canto brasileño de los pobres que habitan la colina. Los así lla-
mados ‘israelíes bellos’, no quieren vivir en el centro de la ciudad; prefieren los suburbios.
Probablemente desaprueban la mezcla racial. Tal vez por eso el departamento salió barato.
Cerca de la luna, una cálida luna oriental. Miro el paisaje como un campesino desde la
cima de su colina. Es igual a la bahía en Río de Janeiro, sin las montañas, pero con el aero-
puerto. Nuevas oportunidades para el lente, para el ojo. Un descanso para la vista. Solo a
400 mts. de aquí y de los recuerdos. No es una torre de marfil. Como un rico terrateniente,
como en aquellos felices momentos en el kibutz donde por primera vez en mi vida percibí
la naturaleza.

Cuando una memoria subjetiva, ligada al universo íntimo de las emociones es


horadada por el conflicto del desarraigo; ¿Dónde está el origen?, ¿Cuál es y dónde se
ubicaría el auténtico hogar, en tanto espacio de identidad o sentido de pertenencia?, ¿Se
encuentra dentro o fuera del “yo”?, ¿Es “cartografiable” y ubicable en un mapa?, ¿Es este
hogar una dimensión única, fija e inalterable?, ¿Se nombra con un solo idioma?, ¿cuántos
hogares puede tener una vida?.

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LLEGADA
“La ciudad es una página, nunca totalmente en blanco,
sobre la que los cuerpos cuentan sus historias”.
Oliver Mongin, La condición urbana (2006).

Las cartografías que recorre el cineasta de origen brasileño corresponden a paisajes


urbanos, concebidos como espacios transformados por la mirada estética de este pa(i)
sajero, las emociones que los lugares le provocan, asociados a los recuerdos de las
experiencias que vivió en ellos. Una ciudad no es sólo un territorio geográfico delimitado
y representado por fronteras y proporciones exactas ubicadas en un mapa. Una ciudad
es una dimensión existencial compleja, un sitio en el que el individuo vive procesos,
establece relaciones, percibe y performa sus espacios, los observa, los habita, los significa,
los somete a su mirada estética, los convierte en imagen para transmitir y expresar
sensaciones subjetivas. De allí, pues, que las ciudades de Perlov están determinadas por
el modo en que su subjetividad –su cuerpo, sus emociones- ocuparon los territorios y
las geografías urbanas, en un encuentro efectivo y afectivo entre el sujeto y el paisaje.
Valeria de los Ríos explica la noción de ciudad desde una negociación de sentidos,
apoyándose en la idea desarrollada por James Donald (Cfr. Donald, J.,1999):
James Donald define la ciudad como un ambiente imaginado, una abstracción que designa
un espacio “construido”, y no como un territorio preexistente, inmóvil y permanente. (…)
Donald afirma que el “espacio que experimentamos es la encarnación material de una histo-
ria de relaciones sociales” (…). La tesis central de Donald es que el sujeto urbano no solo “lee”
las ciudades, sino que negocia la realidad de ellas imaginándolas”. (De los Ríos, 2013:113).

Las ciudades se transfiguran en espacios imaginados y sus paisajes -descritos


principalmente a través de las imágenes y palabras de Perlov- corresponden antes que
todo a la representación de lugares amados o evocados con dolor, mapas mentales de las
zonas donde han acontecido las experiencias vitales. Existe, entonces, una apropiación
afectiva de los espacios exteriores por parte del cineasta, que se desplazan ahora hacia su
interior, lo que refuerza el carácter íntimo, subjetivo y abstracto de la poética resultante
alrededor de la ciudad, toda vez que no se pretende tanto describir la naturaleza exterior
de su arquitectura urbana, como explorar las formas en que ésta modela los recursos
elaborados por el ojo afectivo de Perlov. El autor complejiza y densifica el imaginario de su
memoria, presentando los paisajes como lugares dinámicos y en conflicto, contenedores
de crisis y dolores y, por lo tanto, desmitificando su presunta pureza y diafanidad. Así,
por ejemplo, Brasil, se percibe como un lugar lleno de contradicciones, donde conviven
grandeza y miseria. En este sentido, el intervalo como espacio de tránsito funciona más
para enlazar estas dimensiones aparentemente opuestas, que para enfrentarlas.
La representación de la ciudad y sus intersticios en la obra de Perlov, complejizan una
imagen elaborada y percibida incorporando las dimensiones reflexivas y emotivas de una
retórica que oscila entre el flujo y el intervalo, para devenir en un tipo de pensamiento
cuyo sentido escapa a la sóla visualidad contenida en la imagen, transportándonos a
experimentar la inestabilidad propia del desarraigo y una identidad fragmentada y
abierta, siempre dinámica y en tránsito.

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REFERENCIAS
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Intimidad. Amaro, Lorena (ed). Santiago: Instituto de Estética, PUC.

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A Voz dos Outros na Voz do Documentário
The Voice of Others in the Voice of the Documentary
Rodrigo Gomes Guimarães1

Resumo: Buscamos compreender os mecanismos pelos quais se torna (im)pos-


sível dar voz a “outros” em documentários engajados em mudanças sociais,
culturais e políticas. O conceito de “voz do documentário” é utilizado como ponto
de reflexões sobre políticas de representação, ética e política do documentário.
Uma amostragem fílmica para essas análises críticas é definida em torno do
conceito do documentário engajado como aquele que busca inserir as vozes de
“outros” a fim de legitimá-las como meios para mudanças. As (im)possibilidades
de representação das vozes de “outros” em documentários serão analisadas em
consonância com as críticas à representação de Derrida, Michel Foucault e dos
pensadores pós-coloniais Homi Bhabha e Gayatri Spivak. Busca-se com essa
pesquisa definir critérios de análise crítica da inserção das vozes de “outros” no
documentário. Relacionamos a produção da voz do documentário às (im)possi-
bilidades de representação das vozes de “outros” subalternos, marginalizados
ou oprimidos, em documentários engajados em mudanças sociais, culturais ou
políticas. A pesquisa inicial mostra uma relação de complementaridade entre
buscar dar voz a outros e as próprias críticas a essa possibilidade que se fazem
necessárias. Conclui-se preliminarmente que dar voz ao outro em documentários
tem que ser uma prática concomitante com a desconstrução da representação.
Palavras-Chave: Documentário. Voz. Outro.

Abstract: We seek to understand the mechanisms by which it becomes (im)pos-


sible to give voice to “others” in social, cultural and politically engaged documen-
taries. The concept of “voice of the documentary” is used as a point of reflection
on the politics of representation, ethics and politics of the documentary. A film
sample for these critical analyzes is defined around the concept of the engaged
documentary as that which seeks to insert the voices of “others” in order to
legitimize them as a means for change. The (im)possibilities of representation of
the voices of “others” in documentaries will be reviewed in line with the critiques
of representation of Derrida, Michel Foucault and post-colonial thinkers Homi
Bhabha and Gayatri Spivak. In this research we seek to define criteria for critical
analysis of the inclusion of the voices of “others” in the documentary. We relate
the production of the documentary voice to (im)possibilities of representation of
the voices of subaltern, marginalized or oppressed “others”, in documentaries
engaged in social, cultural or political changes. Initial research shows a relation-
ship of complementarity between seeking to give voice to others and the proper
critiques of this possibility that are required. It is concluded preliminarily that
to give voice to the other in documentaries has to be a concomitant practice with
the deconstruction of representation.
Keywords: Documentary. Voice. Other.

1.  Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais, USP. rodrigoguim@usp.br

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A Voz dos Outros na Voz do Documentário

Rodrigo Gomes Guimarães

INTRODUÇÃO

M UDAR O mundo, mesmo quando parece impossível, ou quando só possível mui-


to parcialmente ou em pequena escala, sempre foi uma das maiores motivações
dos documentaristas. Um dos processos principais para essas intervenções no
mundo através do tipo de documentário que podemos chamar de engajado em mudanças,
sejam elas sociais, culturais ou políticas, tem sido a busca da (re)produção da voz de
um ou mais “outros” (pessoas, grupos sociais ou comunidades) que de alguma forma
se encontram marginalizados ou oprimidos. O documentário, como um meio de repre-
sentação do mundo e de outros a quem se dispõe muitas vezes ser o porta-voz, tem sido
utilizado justamente nesse sentido (entre outros2) que chamamos aqui de engajado: faz a
crítica de sistemas opressores a partir da representatividade das vozes de sujeitos que
sofrem as condições opressoras. O documentário engajado é um modo de representação
onde busca-se dar voz a outro(s) que acredita-se ter pouco espaço de fala em contextos
sociais, históricos, culturais e políticos. A iniciativa de realizar documentário engajado
pode partir do(s) próprio(s) outro(s) que terão sua voz representada em filme ou por
diretor ou uma equipe de produção. O que faz o documentário engajado um modo de
representação singular é o fato do filme ser tratado como um espaço de afirmação da
voz desse(s) outro(s) que se consideram ou são considerados marginalizados, oprimidos
ou subalternos em relação a outros grupos ou pessoas.

REPRESENTAÇÃO
Há legados de representação que a entendem como re-apresentação da realidade,
numa relação de 1 para 1 entre representante e representado. Esses legados, particular-
mente no ocidente, tem uma forte ancestralidade na tradição metafísica ao menos desde
Platão, onde os objetos do mundo são reproduzíveis por ideias e as ideias por objetos.
Dessa forma, podemos dizer que uma representação é metafísica quando é produzida
para ser um retrato 1:1 da realidade e quando obtém essa interpretação como resulta-
do dominante. Para uma grande parte da história ocidental, a filosofia presumiu que
“coisas em si” poderiam ser conhecidas, que havia um mundo “lá fora” esperando para
ser mostrado, falado, escrito por “o que é”. De Platão a Descartes até Kant, a noção de
independência do mundo das coisas em relação à compreensão humana e cultural foi
fundamental para suas metafísicas, mesmo com diferenças entre esses autores.
Há porém outros legados do pensamento, não-metafísico talvez, que embora não
façam parte da cultura dominante no ocidente, tem certa tradição já estabelecida na
academia e também fora dela. Um dos seus mais fortes expoentes é o pensador Friedrich
Nietzsche, para quem “não há fatos, só interpretações”. Para ele, não há uma possibilidade
de qualquer representação do mundo ser fiel, pois toda representação é falha e é uma
tentativa de fixar o fluxo constante da vida. A realidade é de tal modo intraduzível para
o conhecimento, que toda tentativa de representar a realidade, para Nietzsche, tem de
falhar. Ele ainda aponta para as ligações entre moral e verdade, e diz que quando se
“procura por verdade só para fazer o bem –, pode-se dizer, e eu o sustento, que não

2.  Bill Nichols (2012, p.135), por exemplo, define cinco tipos ou modos de representação do documentário:
expositivo, reflexivo, observativo, participativo, poético e performático.

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A Voz dos Outros na Voz do Documentário

Rodrigo Gomes Guimarães

se pode encontrar nada” (NIETZSCHE, 2001, p.60). Nietzsche foi fundamental para o
pensamento ocidental se desgarrar do pensamento metafísico e representacionista. Ele
influenciou fortemente pensadores como Jacques Derrida e Michel Foucault que nos
mostraram como se pode pensar além da metafísica e do conceito de “verdade” universal.
Ainda assim, dizer a “verdade” –mesmo quando se a sabe como construída- encontra
muitos adeptos e tem seus efeitos que são muito úteis para melhorar a vida dos “outros”
do documentário. Não podemos saber simplesmente ao ver um filme, quais escolhas
foram feitas conscientemente sobre a propagação de “verdades” sobre “outros” ou sobre
os sistemas que os oprimem. Os realizadores de documentários são muitas vezes eles
mesmos parte do grupo oprimido cujas vozes e vidas os filmes representam, o que
dilui a noção de “outro” ao mesmo tempo que não a desqualifica por completo, pois o
realizador sempre produz “outros” de si mesmo.
Enfim, toda representação – incluindo o audiovisual – do que se chama de realidade
é formada por valores parciais, históricos e relações de poder. Sempre que fazemos uma
representação (como num documentário) estamos selecionando o que incluir e o que
excluir, assim como fazem aqueles que são representados em muitos casos. Portanto,
nossa representação é sempre parcial e reflete nossas escolhas, que são antes de tudo
políticas, porque formadas pela nossa constituição específica dentre de redes sociais
de poder, de linguagem, cultura, história, etc. Entender a nós mesmos, nossas histórias,
culturas, políticas, subjetividades, é então um sine qua non do audiovisual que se quer
produzir enquanto um meio para a melhoria da qualidade de vida e para a reconstrução
ou a reprodução de nós mesmos.
No Brasil, dentre os filmes que alcançaram as telas de cinema ou TV nos últimos
15 ou mais anos e que retratam grupos oprimidos são dominantemente realizados
por produtores que não são desses grupos. No entanto, cresce a cada dia a produção
audiovisual de grupos marginalizados ou oprimidos como moradores de favelas por
exemplo. Tanto realizadores não pertencentes ao grupo que desejam retratar, quanto
realizadores pertencentes, se vêem na condição de fazer da voz de “outros” a sua voz
no documentário engajado.

A PESQUISA
Essa pesquisa busca entender os meios utilizados e as relações de poder, saber e
subjetividade que interferem na produção de documentários engajados em mudanças
sociais, culturais ou políticas em nome de “outros” particulares. Esses “outros” junto
aos quais o documentário se engaja, são definidos pelo próprio documentário que em
sua “voz” (NICHOLS, 2012, p.72) busca impulsionar a voz dos “outros” que se encon-
tram “subalternos” (SPIVAK, 1988, p.273), marginalizados ou oprimidos. Essa voz do
“outro”, como mostrou Spivak (idem), é sempre construída, portanto muitos projetos
falham ao querer dar voz a “outros”, justamente por não atentar para essa construção.
Nessa perspectiva, muitos documentaristas querem dar voz a “outros”, mas ao atuarem
podem estar fazendo exatamente o contrário: reproduzindo opressão ou silenciamento.
A pesquisa está direcionada em seus resultados para a capacitação de quem vá se
utilizar do documentário como meio de intervenção crítica no mundo, além de trazer
ao pensamento atual sobre o audiovisual novas possibilidades de relacionar produção

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A Voz dos Outros na Voz do Documentário

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em cinema a legados do pensamento crítico social. Minha preocupação enquanto pes-


quisador e realizador de documentários é tanto proporcionar meios de aprendizagem
e reflexão sobre a produção quanto sobre a atuação de documentaristas como interven-
tores no mundo, pois quando se faz documentários com vistas a melhorar o mundo,
produção, reflexão e ação nesse mundo devem ser um só processo integrado, por mais
que possamos –pois vamos- falhar nesse objetivo volta e meia.
O objetivo dessa pesquisa que estou iniciando é relacionar a produção da “voz do
documentário” às (im)possibilidades de representação das vozes de “outros” subalternos,
marginalizados ou oprimidos, em documentários engajados em mudanças sociais,
culturais ou políticas.
A tentativa de trazer para dentro do documentário as vozes de “outros” é complicada
pelo fato de que o próprio fazer em documentário implica a construção de uma nova
“voz”, pois
os documentários representam o mundo histórico ao moldar o registro fotográfico de algum
aspecto do mundo de uma perspectiva ou de um ponto de vista diferente. Como representação,
tornam-se uma voz entre muitas numa arena de debate e contestação social. O fato de os documen-
tários não serem uma reprodução da realidade dá a eles uma voz própria. Eles são uma
representação do mundo, e essa representação significa uma visão singular do mundo. A
voz do documentário é, portanto, o meio pelo qual esse ponto de vista ou essa perspectiva
singular se dá a conhecer (NICHOLS, 2012, p. 73).

Bill Nichols aponta para a inevitabilidade do documentário ser a produção de uma


nova voz que não estava presente antes de sua produção. Mesmo quando um documentário
busca apenas reforçar vozes pré-existentes a ele, enquanto um novo artefato ele não foge
de ser uma representação da realidade e não a realidade própria.
No que é considerado hoje um texto clássico, Bill Nichols examina a questão da ‘voz’ no
documentário, usando esse termo para indicar o que um documentário está dizendo, que
tipo de comentário sobre o mundo está sendo feito (CORNER; ROSENTHAL, 2005, p. 8,
tradução nossa).

Dessa forma, todo documentário é a colocação em jogo no campo da prática social, cul-
tural ou política, de uma nova “voz” que não estava antes. Ademais, a voz no audiovisual
não é produzida somente como discurso oral ou textual, ela depende de muitos canais:
Se a narração no cinema é sempre resultado da interação entre várias instâncias que se
manifestam através de materiais heterogêneos, simultâneos, o analista tem sempre de
verificar se as várias instâncias (palavra, mise-en-scene, olhar da câmera, montagem, música
extradiegética) se organizam para trabalhar “na mesma direção”, de modo a fazer sentido
em se falar em um ponto de vista da narração. Pode não haver essa conjunção dos canais,
como acontece em muitos filmes modernos onde há disjunção, o filme se fazendo do con-
flito entre as diferenças de posturas associadas aos diferentes canais. (XAVIER, 1997, p.131).

O documentário engajado, ao buscar uma voz que produz o seu posicionamento


sobre questões que vem a tratar, ou seja, ao centralizar sua crítica social, cultural ou
política pela legitimação da voz do “outro” subalterno, marginalizado ou oprimido, tem

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A Voz dos Outros na Voz do Documentário

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que lidar e orquestrar as várias possibilidades de construção dessa voz. As imagens e


sons no filme, sua montagem, tudo se abre para várias possibilidades de interpretação.
Se o documentário não é a realidade, se é apenas mais uma interpretação sobre ela, é
também ao mesmo tempo um produtor de outras interpretações que não pode controlar.
Por mais que a voz do documentário seja construída para produzir efeitos unívocos, ela
sempre falha, pois como “discurso” (FOUCAULT, 1972, p.21) que é, essa voz tem efeitos
múltiplos e contraditórios ao circular na rede social. Uma voz nunca é unívoca. Por ser
ela mesma um processamento de relações de produção de discursos e práticas sociais, a
voz do documentário é desde sempre uma multiplicidade e não pode ser reduzida a uma
unidade: há uma “heteroglossia” (BAKHTIN, 2010, p.291) inerente à voz do documentário.
Essas múltiplas vozes estão sempre presentes, por mais que se procure direcionar a
representação a uma univocalidade. Mesmo assim e contra toda essa multiplicidade de
interpretações possíveis sempre atuantes, o documentário engajado é aquele que busca
imprimir ao menos uma voz como legítima representação da realidade da opressão que
deseja transformar. Essa legitimação da voz do outro na voz do documentário pode ser
apenas uma estratégia do documentarista; pode ser apenas um efeito não-pretendido
pelo documentarista também; pode ser uma estratégia do documentado, entre outras
possibilidades. De todo modo, o conceito de voz do documentário permite uma análise
simultânea dos efeitos da produção e da recepção de filmes.
A recepção da voz do documentário vem trazer mais questões à sua impossibilidade
de efetivação como unívoca. Gayatri Spivak (1988) mostra como as vozes dos sujeitos
subalternos são impossibilitadas de falar e serem ouvidas por conta de estruturas de
inequidade social que impedem os sítios da dominância de ouvir essas vozes. Dessa
forma, quanto mais essas vozes são pré-pautadas por representações dominantes, menos
possibilidades elas tem de ser ouvidas. O subalterno pode até falar, mas dependendo
das condições de sua subalternidade e das condições contrapostas da dominância de
outras vozes, discursos e representações, sua recepção será de uma modulação tal pelos
sítios do poder dominante, que não se pode sustentar sem erros que sua voz é –mesmo
que parcialmente- ouvida.
A busca do documentário engajado por exprimir em sua voz as vozes dos subalternos,
marginalizados ou oprimidos, encontra assim uma dupla dificuldade. Por um lado, a
voz do documentário é desde sempre uma conjugação de multiplicidades: atua como
uma intervenção num cenário sociocultural e político como mais uma voz, sendo que
ele mesmo é uma (re)produção de várias vozes, por mais que tente fixar um sentido
unívoco; trabalha com a inter-relação de imagens e sons num orquestramento que
também não consegue se fechar numa unidade coesa e sem aberturas ou fugas, sem
“heteroglossia” (BHAKTIN, 2010, p.291). Por outro lado, as vozes dos marginalizados ou
oprimidos que um documentário engajado em mudanças sociais, culturais ou políticas
visa apoiar e representar, são elas mesmas processos históricos em construção, com seus
efeitos múltiplos e contraditórios ao circular pelas redes sociais de poder e de saber. A
representação da voz dos “outros” na voz do documentário se apresenta assim como
uma tarefa sempre aberta e sem ponto de chegada. Não é possível uma representação
objetivista ou essencialista do outro pois esse não é unívoco, assim como não é o próprio
documentário. Um caminho de crítica ao essencialismo na construção da voz do “outro”

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A Voz dos Outros na Voz do Documentário

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é buscado por Spivak em Jacques Derrida:


Derrida marca a crítica radical com o perigo de se apropriar do outro por assimilação. Ele lê a
catacrese na origem. Ele clama por uma reescrita do impulso estrutural utópico como forma
de “tornar delirante aquela voz interior que é a voz do outro em nós.” (SPIVAK, 1988, p.315).

Ao nos mostrar o quanto a “voz do outro” é desde sempre uma construção, Derrida,
em seu estudo baseado também em Emmanuel Levinas, aponta para o perigo da pro-
dução de violência –discursiva ou de fato- que vive através dessas representações
(DERRIDA, 1978, p.87). Dentro dessa perspectiva desconstrucionista do “outro” e do
próprio documentário representado por sua “voz” (NICHOLS, 2012, p.72), essa pesquisa
levanta a seguinte questão: O que está implicado ao trazer a voz dos “outros” subalter-
nos, marginalizados ou oprimidos para dentro da voz do documentário e buscar uma
efetividade discursiva em documentários engajados em mudanças sociais, culturais ou
políticas? É a voz do “outro” que está presente no documentário? Como se pode avaliar
onde começa a voz do documentário e onde termina, e onde começa e termina a voz
do “outro” na voz do documentário? Essa busca de “dar voz ao outro” já é problema-
tizada por certos autores (p.ex. TEIXEIRA, 2004, p.66) que questionam a construção de
um “outro” individualizado ou essencialista como um dos efeitos de documentários. É
possível a voz do “outro” estar presente na voz do documentário? Alguns como o autor
citado acreditam que não, e que o documentário engajado seria pura ilusão. Porém, será
que a voz do “outro” não pode mesmo estar na voz do documentário? E se puder estar,
como podemos saber? A possibilidade da presença da voz de “outros” no documentário é
uma questão fundamental tanto para pesquisadores quanto para realizadores de filmes.
Para esta pesquisa ser relevante e efetiva em suas análises críticas, ela precisa deli-
mitar um campo de atuação dentro do campo do que até aqui chamamos de “docu-
mentário engajado”. Se vamos analisar documentários que visam dar voz a “outros”
subalternos, marginalizados ou oprimidos, é pertinente então buscar entre estes docu-
mentários, aqueles que retratam as condições de vida, de justiça e injustiça, de opressão
dos grupos mais marginalizados. Documentários sobre os povos indígenas por exemplo
caberiam muito bem aqui pois são um dos grupos mais marginalizados, oprimidos e
silenciados. Documentários sobre criminalidade, violência, favelas, entre outros temas
geralmente reconhecidos sob o termo “exclusão social” também cabem aqui. Os filmes
que vamos buscar tentam por meio de diferentes estratégias provocar intervenções nos
discursos e práticas sobre marginalidade social, tentam dar voz a “outros” que sofrem
marginalização e opressão, como um meio de intervir para mudanças. Vamos constituir
nossa amostragem fílmica pelo tipo que cunhamos aqui sob o conceito de documentário
engajado, ou seja: documentários que buscam legitimar a voz de “outros” subalternos,
marginalizados ou oprimidos e através dessas vozes lançar seus posicionamentos sociais,
culturais e políticos visando mudanças.
Nossa amostragem fílmica será centrada em documentários que tenham um perso-
nagem central, como por exemplo no estilo de documentário character-driven. Essa redu-
ção da amostragem se justifica por dois motivos. Primeiro, pela questão da dificuldade
de análise do conceito de “voz” em filmes com vozes contraditórias ou opostas entre si.
As vozes seriam muitas e embora o documentário imprima sua voz (NICHOLS, 2012,

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p.72), teríamos muitas questões a resolver e acabaríamos imprimindo nossa própria voz
de pesquisador como aquela que seleciona as vozes e tece suas inter-relações de poder
e de saber. Com a escolha por trabalhar com filmes em que apenas uma voz individual
é central e legitimada (ao menos como um de seus efeitos), com filmes com persona-
gens centrais, escapamos um pouco de uma maior imposição de relações e sentidos
pela nossa voz de pesquisador. Em segundo lugar, ao reduzir a amostragem a filmes
que possuem uma voz central de um personagem principal, estaremos possibilitando
uma análise comparativa entre filmes, com o eixo comparativo sendo o conceito de voz
definida como individual e central ao filme. Deste modo, o conceito central, a “voz do
outro na voz do documentário”, pode ser analisado e discutido em filmes que possuem
seus personagens centrais próprios, todos eles tendo que se encaixar na definição de
“documentário engajado” já definida para este projeto.
Ao buscar sondar como trabalham e que efeitos conseguem atingir os documentários
engajados, essa pesquisa se propõe auxiliar a produção engajada do documentário
lançando as seguintes questões: Quais os critérios que podem definir a relação que se dá
entre quem faz uma representação audiovisual e o “outro” que está sendo representado,
por uma relação de solidariedade? É possível representar com o “outro” representado
participando como mais uma voz? A voz do realizador tende a ter mais poder de
representação porque vai recortar, vai excluir/incluir, vai decidir a história que vai ser
contada e como vai ser contada. Mesmo assim, é possível fazer ouvir a voz do “outro” num
documentário? Produzir documentários exige nossa contínua reflexão sobre os efeitos
de nossas ações, por serem representações do mundo já cheio de outras representações,
e pelo audiovisual ter alcançado um status social de verdade nas sociedades atuais.
A hipótese principal dessa pesquisa é que é possível definir critérios de análise
crítica da inserção das vozes de “outros” no documentário e que tem efeitos práticos
para essas inserções pelos realizadores, mesmo com um grande distanciamento crítico
em relação a formas essencialistas de representação que embasam esses critérios.
O projeto inclui a análise crítica da bibliografia sobre a voz no documentário,
políticas da representação do “outro” e métodos e técnicas em documentários que visam
causar mudanças sociais, culturais ou políticas, e discussões sobre ética e política no
documentário.
Para analisar criticamente os documentários da amostra, vamos utilizar das
perspectivas desconstrucionista (DERRIDA), discursiva (FOUCAULT) e pós-colonial
(BHABBA; SPIVAK) como legados do pensamento social que evitam os dualismos
históricos característicos do pensamento ocidental como verdadeiro/falso, indivíduo/
sociedade, sujeito/objeto e centram-se na análise crítica da operação de narrativas e de
produtos culturais como produtores de verdades, subjetividades e relações de poder.
Homi Bhabha, um importante pensador pós-colonial, utiliza o conceito de hibridismo
para descrever a presença de um espaço de alteridade dentro do processo cultural, da
colonização especificamente. Hibridismo é a diferença sempre presente em qualquer
produção cultural. Para o autor, a resistência à opressão não pode ser reduzida a um
ato de oposição de intenção política. O hibridismo está sempre já presente em qualquer
forma de relação de dominação que envolva discursos e práticas culturais. É assim que
a modificação e multiplicidade de discursos e práticas culturais sempre está operante,

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inclusive pelas ausências e silêncios. Não há possibilidade de um discurso por exemplo


ser fixado de uma vez por todas para além de todas as novas representações e inter-
pretações. Os discursos sobre um “outro” não podem ser fixados para sempre. Como
Bhabha afirma, o significado nunca é simplesmente mimético e transparente, existe o
“Terceiro Espaço da enunciação” (BHABHA, 1994, p.37). Portanto, deve-se esperar que
qualquer discurso de libertação pode também -e de fato devemos esperar que vai- opri-
mir. Para Bhabha, qualquer ato de interpretação é ambíguo, pois a cultura é um híbrido,
há sempre um “no meio” da cultura, iludindo a “política de polaridade” (Idem). Para
ele, qualquer representação é repleta de incertezas, trocas desiguais, diferenciais de
poder, e significantes que significam coisas muito diferentes para pessoas diferentes,
particularmente dentro de diferenças de cultura, história e relações sociais.
Assim como Bhabha, Gayatri Spivak faz críticas contundentes a tentativas essen-
cialistas de representação. Não só por conta de serem construções falidas, muito mais
que isso, pois o essencialismo é um dos instrumentos de poder de relações desiguais.
Ao enquadrar sujeitos em categorias fixas, o discurso essencialista cria o campo do que
pode ser e o que não pode ser para o sujeito. O sujeito construído como essência é sujeito
(no sentido de sujeição) à dominação, à opressão. Spivak não é contra a utilização do
essencialismo, no entanto. Ela fala inclusive na possibilidade do “essencialismo estraté-
gico”: quando se faz uso de representações essencialistas como escolha politizada para
a promoção da resistência à opressão. Ou seja, para Spivak os efeitos da representação
no mundo são mais importantes que a questão de utilizar ou não o essencialismo. A
questão não é decidir qual a representação correta do “outro”, mas sim avaliar quais
os efeitos de representações no mundo social. Outras pensadoras feministas tem nos
desafiado a sermos baseados nos efeitos (sociais, culturais e políticos) e não baseados
no conhecimento (HOOKS, 1992). Essa preocupação maior com os efeitos do que sobre
uma suposta representação final e isenta de relações de dominação, é característica
também de Michel Foucault e Jacques Derrida.
Derrida é útil para nós aqui apesar de seus escritos versarem muito mais sobre textos
do que outras formas de representar. Mas se utilizarmos as ideias dele sobre textos para
produtos audiovisuais, temos como resultado um grande impacto nas formas de pensar
dominantes sobre o ato de representar audiovisualmente. Isto porque, como sempre
relacionais, tanto o audiovisual quanto textos dependem de contextos sociais e culturais
de interpretação, utilização e fixação de significados. Os documentários são desde sempre
socioculturais e sempre reproduzem o contexto de sua formação, em muitos aspectos,
em todas as suas problemáticas. Portanto, com Derrida, o que podemos esperar de um
documentário que faz críticas, é que ele reproduza justamente o que critica, de alguma
forma. Podemos também esperar que um documentário possa ir além disso e provocar
fugas e saídas (mesmo que parciais) para os problemas que ele apresenta. Com Derrida,
temos a impossibilidade de qualquer representação se dizer final, pois há sempre uma
multivocalidade presente, uma impossibilidade de um processo que busca representar
“outros” e o mundo ser fechado em si mesmo.
Michel Foucault mostra em diversos trabalhos como Vigiar e Punir e nos volu-
mes de História da Sexualidade por exemplo, como sujeitos são efeitos de discursos. Em
seus estudos, discursos são o acoplamento das relações de poder com o saber, ambos

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historicamente contingentes e relacionados. Todo sujeito joga com e compreende even-


tos através de formas de representação que são sempre culturalmente, historicamen-
te, politicamente múltiplas. O sujeito não pode ser totalmente consciente das formas
de representação com as quais está lidando. Foucault trabalha em 3 eixos: verdade,
poder e subjetividade. Para ele, a triangulação entre produção de verdade, produção
de subjetividade e produção de relações de dominância e resistência (as quais sempre
coexistem), é o eixo para discutir como se constroem “sujeitos falantes.” O sujeito pode
ser aqui a voz do documentário. Foucault em sua trajetória vai muito além da “análise
de discurso”, campo ao qual ele é comumente ligado, fazendo-nos olhar para aquela
triangulação como central para a compreensão das operações de sistemas de saber e de
poder. Para funcionar, discursos precisam de sujeitos que operam de certas maneiras
e não de outras. A dominância de certas verdades que circulam como tais está então
intimamente ligada à produção de sujeitos (nos dois sentidos da palavra, como sujeitos
de ação e sujeitados). Para Foucault, mesmo os discursos que parecem mais libertado-
res, como o da “liberdade” propriamente, numa certa conjunção podem ser justamente
a prática do retorno da opressão. Ele não se preocupa, portanto, com a “verdade” de
produções culturais tanto quanto se preocupa com seus efeitos.
Por fim, em conjunção com grande parte dos estudos em documentário (p.ex.
NICHOLS, 2012; TEIXEIRA, 2004; MOURAO, 2005; MIGLIORIN, 2010), essa pesquisa
vai aprofundar a discussão sobre ética e política do documentário. Acredito que a esco-
lha temática por documentários que buscam representar a voz do(s) “outro(s)” como
forma de provocar mudanças, é muito adequada para uma discussão da ética e política
do documentário. Como documentaristas, essa pesquisa nos ajudará a refletir sobre
quem ganha mais, quem perde mais, com o tipo de representação que fazemos, pois
não é possível agradar a todos, ao menos não da mesma forma. Também é uma reflexão
sobre os mecanismos de poder que estão em operação em nossa representação. A pes-
quisa nega desde já a possibilidade do conhecimento total, ou do controle total, sobre
a representação. No entanto, valoriza a busca pela reflexão crítica e embasada tanto na
bibliografia e filmografia quanto na própria experiência do pesquisador que também é
realizador de documentários engajados. Essa pesquisa tem em si bases para uma ética
e política da representação, tão fundamental para o documentário.
Não é possível estabelecer de uma vez por todas a verdade de forma absoluta,
pois esta está sempre desfigurada ou refigurada pela particularidade do contexto
histórico-social, cultural, politico, tanto de quem representa quanto do representado.
Assim toda forma de representação é sempre parcial e nunca se chega à verdade total
ou universal. Isso incumbe em nós uma responsabilidade ética no “fechamento” de
nossas representações, porque elas vão trazer indelebelmente a nossa “voz”, mas também
trazem para dentro o “outro”, (re)criado em parte pela própria representação. Nossa
responsabilidade para com o “outro” que estará em nossos documentários é inescapável.
A reflexão sobre o assunto, infinita.
A linha divisória entre a “voz do documentário” e a “voz do outro” pode ser impos-
sível de marcar. Ao mesmo tempo, é nessa linha que o pensamento é necessário e pode
ajudar a nos tornarmos mais éticos e responsáveis do que já somos pelo “outro” em
nossos filmes.

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A Voz dos Outros na Voz do Documentário

Rodrigo Gomes Guimarães

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A construção da identidade e a política de
representação em Olhe pra mim de novo
The identity construction and the
representation in Look at me again
E d u a r d o Pa s c h o a l de Sousa1

Resumo: O presente artigo analisa aspectos da representação e construção


da identidade no documentário Olhe pra mim de novo (Claudia Priscilla e Kiko
Goifman, 2012), que aborda o processo de readequação da personalidade de Sillvyo
Luccio, transexual masculino, no sertão brasileiro. Este estudo busca abordar o
discurso do próprio personagem sobre sua identidade e como ela se constrói no
filme. Trata também da afirmação da identidade e da diferença produzido pelo
formato do filme - elaborado em road movie - o que favorece o encontro com um
outro. Por último, analisa a própria mise-en-scène do personagem, sua relação
com a câmera e a condução de seu processo de identificação, que perpassa a
elaboração da narrativa cinematográfica.
Palavras-Chave: Identidade. Discurso. Cinema. Representação. Documentário.

Abstract: This article analyzes aspects of representation and identity construction


in the Brazilian documentary Look at me again (Claudia Priscilla and Kiko
Goifman, 2012), which approaches the process of Sillvyo Luccio’s personality
readjustment, a transsexual in Brazilian northeast. This study aims to discuss
the character discourse about his own identity and how it is constructed in the
film. It also addresses the identity and difference affirmations produced by the
movie format - a road movie - that favors the meeting with the other. Finally, it
analyzes the own character mise-en-scène, his relationship with the camera and
the conduction of his identification process, which runs through the development
of the film narrative.
Keywords: Identity. Discourse. Cinema. Representation. Documentary.

A IDENTIDADE CULTURAL E A IDENTIDADE DO DISCURSO

A IDENTIDADE CULTURAL de cada indivíduo e como ela se forma sempre foi dis-
cutida e pesquisada por inúmeros estudiosos. Admite-se aqui que a identidade
– assim como a diferença – são construções sociais e culturais e, portanto, alte-
radas com o tempo (HALL, 2013).
Se não há um momento originário da identidade e ela é uma construção individual,
também pode ser modificada a todo instante. Silva (2000) constata que a identidade é

1. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da Escola de Comunicações


e Artes (ECA-USP) na Linha de Pesquisa Cultura Audiovisual e Comunicação, edups@usp.br.

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A construção da identidade e a política de representação em Olhe pra mim de novo

Eduardo Paschoal de Sousa

constantemente criada e recriada, longe de estar ligada a algum momento fundador.


Estamos, a todo instante, afirmando aquilo que somos. Da mesma forma, reiteramos
o que não somos e, por isso, também construímos a identidade a partir da diferença.
Essas elaborações fazem parte de posturas e discursos internos e externos, em um
movimento pessoal e social de identificação e distanciamento, cujos significados são
“posicionais e relacionais, sempre em deslize ao longo de um espectro sem começo nem
fim” (HALL, 2013, p. 36).
A construção da identidade é complexa ao ocorrer no desenrolar natural cotidiano de
cada indivíduo. Quando essa elaboração está inserida também em um outro discurso, na
grande tela do cinema, se torna ainda mais delicada, engendrada, além da identidade e
da diferença, também pelas políticas de representação e pelos recursos típicos do cinema.
É o que acontece com o documentário Olhe pra mim de novo (Claudia Priscilla e Kiko
Goifman, 2012). O filme narra o processo de readequação de identidade de um transexual
masculino, Syllvio Luccio, morador da cidade de Pacatuba, no Ceará. Produzido em
formato de road movie, o longa mostra a relação do personagem com seus amigos e
parentes, o leva a viajar por outras cidades do sertão nordestino e a conhecer pessoas
que, assim como ele, vivem diversos tipos de preconceitos.
Em seu processo de busca por essa identidade, que é construída há anos, o per-
sonagem ressignifica comportamentos que já tinha anteriormente, incorpora outros
discursos e visões e tenta se enquadrar em estereótipos que validem sua nova perso-
nalidade masculina.
No decorrer da obra, é possível perceber que há três diferentes esferas de atuação
do processo de construção da identidade e do plano da representação narrativa. A pri-
meira esfera de representação é o discurso que o próprio personagem construiu sobre
sua identidade, o autorretrato que ele faz de sua condição no processo de readequação
de gênero. Esse retrato é mais evidente nas cenas em que Syllvio Luccio conversa com
amigos e familiares e também naquelas onde fala diretamente para a câmera, em tom
confessional.
A segunda é o posicionamento de afirmação da identidade e negação da diferença,
fruto do encontro com outras pessoas, que é favorecida pelo formato de filme que leva o
personagem a viajar por lugares onde ninguém o conhece. A impressão do contato com
pessoas que nunca o viram é para ele uma análise da forma como sua postura física e
sua personalidade transmitem ou não o que ele busca. Sobre isso, os diretores afirmam:
Nossa proposta, de viajar com o Syllvio em um road-movie, foi a de tirar o personagem de
sua “zona de conforto”. Na pequena cidade de Pacatuba, na qual vive, todos o conhecem e
mesmo com o preconceito existindo, ele é respeitado. Levá-lo em nossa viagem foi abrir o
filme ao desconhecido e ao acaso, aspecto que julgamos fundamental em um documentário.
(GOIFMAN; PRISCILLA, 2012).

Por último, a terceira esfera é a própria mise-en-scène do personagem, sua relação


com a câmera e a condução de sua história por meio das lentes, a identidade construída
pelo próprio filme para o personagem e as escolhas de edição que elaboraram a imagem
dele de uma forma ou outra.

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A construção da identidade e a política de representação em Olhe pra mim de novo

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Para Xavier (2005, p. 14), o cinema é um discurso composto por imagens e sons
e, “a rigor, sempre ficcional, em qualquer de suas modalidades; sempre um fato de
linguagem, um discurso produzido e controlado, de diferentes formas, por uma fonte
produtora”.
A construção de uma identidade, quando retratada em um documentário, está longe
de ser uma reprodução da realidade. E não mais uma identidade apenas do indivíduo,
mas junto dela também se constrói a identidade do discurso. Sobre esse aspecto, Soares
(2010, p. 70) destaca que “o discurso constrói, em um mesmo movimento, sua identidade
e sua relação com outros discursos”. Dessa forma, esse processo tem de ser analisado
também sob o ponto de vista do discurso cinematográfico, além da construção da
identidade individual.
Ainda que haja determinada história e que o personagem realmente leve aquela
vida, no momento em que ele é objeto de uma obra cinematográfica documental, ele
se torna produção do discurso, personagem de uma obra que está longe da isenção ou
da assepsia translúcida da realidade. Ele passa a representar, ainda que represente a si
mesmo. A câmera pode presenciar o acontecimento, mas ele sempre será uma construção:
O documentário sempre foi uma forma de representação, e nunca uma janela aberta para a
‘realidade’. O cineasta sempre foi testemunha participante e ativo fabricante de significados,
sempre foi muito mais um produtor de discurso cinemático do que um repórter neutro ou
onisciente da verdadeira realidade das coisas. (NICHOLS, 2005, p. 49)

É por esse motivo, também, que analisamos Sillvyo Luccio neste artigo como um
personagem de uma narrativa e não um produtor de seu próprio discurso. O cineasta
Eduardo Coutinho, famoso por seus filmes centrados em histórias de pessoas contadas
frente às câmeras, faz o seguinte comentário sobre a relação do documentarista com
seus entrevistados:
A respeito da relação entre pessoa e personagem, ocorre algo interessante. Na filmagem,
encontro-me com uma pessoa durante uma hora, sem a conhecer de antemão, às vezes nunca
mais a vejo depois disso. E na montagem, durante meses, lido com ela como se fosse um
personagem. Ela é, de certa forma, uma ficção, por isso a chamo de personagem, já que ela
“inventou”, numa hora de encontro, uma vida que nunca conheci. (COUTINHO, 2014, p. 175)

A presença de um discurso ordenador que recorta, edita e remonta a mise-en-scène


do personagem, faz com que seja necessário analisar também esse movimento, para
compreender a participação do personagem em um documentário como mais um
elemento na composição de sua identidade.
Este artigo tem como objetivo lançar luz a cada uma dessas esferas, tendo por base
o discurso construído na narrativa cinematográfica e a política de representação desse
contexto. Não se pretende discutir o processo de formação da identidade em casos de
readequação de gênero, ou a questão da identidade de forma mais ampla, mas sim
utilizar como objeto o documentário aqui citado e compreender como essas esferas se
formam nos diversos e complexos planos da narrativa.

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A construção da identidade e a política de representação em Olhe pra mim de novo

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A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DE SILLVYO LUCCIO


O prólogo do filme Olhe pra mim de novo é um plano aberto fixo. O cenário é o
sertão nordestino, com dois grandes cactos na tela. O personagem está mesclado a essa
paisagem, de costas para o público, enquanto sua voz em off discorre sobre a distorção
entre o que ele realmente é do que aparenta ser:
SILLVYO: Olhe pra mim, olhe de novo. O que que você vê? Normalmente a gente vê a carne
e posteriormente vê o espírito. Não, comigo é o oposto. Você vê o espírito do Sillvyo Luccio
para depois perceber que eu não tenho a voz grossa de um homem, que eu não tenho os
músculos de um rapaz de 20, 30 anos, mas eu tenho o comportamento, a postura do homem
que eu sou.

Essa introdução já adianta o que o espectador irá acompanhar dali em diante: o


transexual masculino Sillvyo Luccio em uma jornada pela construção de sua identidade,
enquanto aprende e ensina as pessoas a lidarem com sua atual hibridação, típica da
transição do corpo biológico em que ele nasceu para aquele que ele busca construir.
Essa readequação não é apenas corporal, mas é também a busca por um novo
comportamento, uma postura que seja condizente com os anseios internos do personagem
em se tornar o homem que ele sempre foi. Na visão dos diretores do filme, “Syllvio busca
‘construir um homem’ que não é um ser abstrato, um homem qualquer. Syllvio quer ser
um valente homem do nordeste. Um Macho.” (GOIFMAN; PRISCILLA, 2012).
Essa transição passa pela adequação física, mas também a afirmação interna e para
os outros de sua nova personalidade, que tem de ser condizente, como apontam os
diretores, também com o homem que ele imagina criar. Não é apenas uma construção
de identidade masculina, mas de uma postura específica que leva consigo estereótipos
e noções muito específicas de masculinidade.
Para Hall (2013, p. 49), a identidade cultural está sempre à nossa frente, nunca algo
superado, mas em construção permanente: “Estamos sempre em processo de formação
cultural. A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar”. Por mais
que internamente Sillvyo Luccio já seja esse homem, ele precisa tornar-se também para
as outras pessoas e construir visualmente essa identidade.
Na materialização da identidade, é de extrema importância a readequação do nome
próprio, que será o símbolo de conexão da pessoa com sua identidade. Rancière (2012)
aborda essa ligação entre a imagem e a palavra, a urgência em tornar-se visível:
A palavra é essencialmente em fazer ver, cabe-lhe pôr ordem no visível desdobrando um
quase visível em que se vêm fundir duas operações: uma operação de substituição (que põe
“diante dos olhos” o que está distante no espaço e no tempo) e uma operação de manifes-
tação (que faz ver o que é intrinsecamente subtraído à vista, os mecanismos íntimos que
movem personagens e acontecimentos). (...) Por um lado, a palavra faz ver, designa, convoca
o ausente, revela o oculto. (RANCIÈRE, 2012, p. 123).

No filme Olhe pra mim de novo, Sillvyo Luccio narra esse processo ao lado de amigos
que o ajudaram a conceber sua nova identidade civil e explicitam a configuração de
suas características identitárias. Na cena, eles estão sentados em uma mesa e Sillvyo,
em pé, inicia a explicação:

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SILLVYO: O nome “Sillvyo Luccio” é que surgiu dessa jovem aqui [aponta a amiga Tina]. (...)
Ela se incomodava que eu usava o sobrenome Silva, mas ela achava feio, que ela começou a
dizer “Não, Silva não, Sillvyo”. E eu chegando em casa, conversando com a minha esposa,
ela achou bonito o nome Sillvyo. Conta aí, Tina!

TINA: Em um desses encontros que a gente estava, não que eu me incomodava, assim, mas
como papel de transexual que o Sillvyo queria ser, então ficava feio ele se chamar Nucia,
Nucio, Silva. E Silva para mim não era um nome tanto masculino, então para ficar um papel
mais masculino tinha que ter um nome de homem, então Sillvyo Luccio ficaria melhor. (...)

AMIGO: E aí a gente começou a questionar essa história de o Sillvyo Luccio querer ser cabra
macho sim senhor, como a gente diz aqui no Ceará, com nome de mulher e cabelo grande
ainda, né. E aí a gente começou a construir o Sillvyo, né como é que ele tinha que ser.

Nas palavras do amigo de Sillvyo, é possível perceber que a nova identidade foi
construída, elaborada para corresponder a um anseio do personagem em se tornar
fisicamente aquela pessoa que havia dentro de si. Para Silva (2000), a identidade está
ligada a estruturas discursivas e narrativas e também a sistemas de representação. No
caso de Sillvyo, para que ele alcance sua readequação de gênero, ele também teve de
corresponder à representação social dessa nova condição.
Essa representação social tinha de obedecer ao sistema imagético da verossimilhança.
Do mesmo modo que é comum à narrativa uma busca pela proximidade do real, na
construção da imagem de Sillvyo Luccio também havia a necessidade do realismo. É
como se ele buscasse assumir um papel de acordo com a imagem ideal de homem que há
em sua experiência, referenciando em sua identidade um discurso que já havia ressoado
em sua memória. Rancière (2010) discorre sobre essa verossimilhança necessária às artes
que buscam uma aproximação à realidade:
Verossimilhança não é somente sobre que efeito pode ser esperado de uma causa; ela tam-
bém diz respeito ao que pode ser esperado de um individuo vivendo nesta ou naquela
situação, que tipo de percepção, sentimento e comportamento pode ser atribuído a ele ou
ela. (RANCIÈRE, 2010, p. 79)

O personagem rejeita outro tipo de homem que não seja condizente com as
características e, portanto, não seja verossimilhante àquilo que ele imagina como próprio
dessa identidade.
Nesse processo também há a diferença, a validação da identidade por meio da
negação. Na continuação da cena transcrita acima, há a ilustração desse conceito. Uma
amiga narra a sugestão que deu a Sillvyo, de que seu nome deveria ter “o Y no Sillvyo,
que vai ficar bonito”. Ele rejeitava, porque “falava ‘eu não sou gay’. Eu disse ‘tá vendo
como tu é macho? Nem viado tu quer ser. Quer ser é homem mesmo’”.
Para Sillvyo – cuja grafia acabou sendo adotada conforme a sugestão da amiga –, um
nome escrito diferente do padrão, do que julgava que era o retrato de sua identidade, era
se desviar do seu propósito e se aproximar de outro grupo, vulnerável a preconceitos
naquela sociedade. Silva (2000, p. 75) afirma que a identidade e a diferença estão sempre
conectadas: “As afirmações sobre diferença também dependem de uma cadeia, em geral

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oculta, de declarações negativas sobre (outras) identidades. Assim como a identidade


depende da diferença, a diferença depende da identidade”. Elas são, portanto, inseparáveis
no processo de identificação.
Nesse caso, poderíamos considerar o que Elias e Scotson (2000, p. 26) tratam como o
temor que um grupo socialmente estabelecido tem de se tornar estigmatizado apenas por
se aproximar do grupo outsider, ou deixar de “compartilhar do valor humano superior
que os estabelecidos atribuem a si mesmo”, ou seja, assumir que Sillvyo Luccio não
queira se aproximar de características identitárias de outros grupos por preconceito.
Mas não parece ser a situação, e sim a recusa por determinados comportamentos não
se enquadrarem no espectro daquela identidade que ele constrói.
Temer ser mal interpretado em relação a sua orientação sexual pode parecer ofensivo,
mas há uma coerência para o personagem em assumir essa postura, condizente com o
estereótipo do homem que Sillvyo Luccio almeja se tornar. E esse homem carrega consigo
a visão, os estereótipos e os preconceitos iguais ao homem em quem ele se espelha.
Se enquadrar nessas personalidades pré-estabelecidas é, de certo modo, se normalizar
na identidade. Essa necessidade de classificação está presente em algumas cenas do
documentário. Uma, em especial, em que Sillvyo Luccio expõe, ao lado da esposa, a
dúvida em relação à orientação sexual dela ao se relacionar com ele:
SILLVYO: As pessoas questionam e brincam muito comigo assim “A Widna é lésbica, é
hetero ou é bissexual? Qual a identidade de gênero da Widna?” E eu às vezes eu brinco
com ela: “Widna, tu é o que?”. E ela: “Ah, não tem identidade pra mim ainda não, porque eu
gosto do Sillvyo homem, mas se eu me separasse do Sillvyo eu não ia querer outro homem”.

WIDNA [se voltando a Sillvyo]: Quando eu estou contigo, eu sou hétero, né, porque tu é
homem. Se eu me separar, eu sou lésbica [risos].
Mesmo que haja a vontade de se ter uma identidade já conhecida, há também uma
dificuldade evidente para o personagem em se adequar. Silva (2000, p. 87) afirma que
uma identidade formada a partir do hibridismo, ou seja, cuja origem é marcada por
vários processos de identidade, não é mais integralmente nenhuma das identidades
originais, mesmo que mantenha traços delas.
Além da questão comportamental, no caso de Sillvyo há ainda o dilema físico. Ele
resume esse problema ao constatar que, se não fosse a necessidade de uma transformação
física, ele seria o homem que tanto almeja se tornar: “Eu vestido sou um homem. Eu
de paletó eu sou um homem, caminhando na rua eu sou um homem. Mas quando eu
entro no quarto fazer amor, (...) é como se caísse a máscara”.
A imagem do documentário ajuda o espectador a observar que a construção física
de Sillvyo muito se assemelha ao homem que ele descreve, mas é por meio de seus
depoimentos em caráter confessional à câmera que se podem notar as minúcias desse
processo de transformação.

O ENCONTRO COM A OUTRA IDENTIDADE


No filme Olhe pra mim de novo, é possível perceber que Sillvyo Luccio tem o respeito
de amigos e conhecidos em sua cidade natal e não sofre muitas demonstrações de pre-
conceito, ao menos não aparentes e não para as lentes. Segundo seu próprio depoimento,

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A construção da identidade e a política de representação em Olhe pra mim de novo

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ele é respeitado como é, mesmo que vez ou outra as pessoas tenham curiosidade e
comentem a respeito de sua transexualidade.
Em uma cena em que o personagem está junto de sua antiga companheira, com
quem viveu por cinco anos, ele narra um episódio que ocorreu com um de seus enteados,
que ele considera um filho mesmo após a separação:
SILLVYO: Quando eu vou ao colégio do Breno, lá dentro da sala de aula, a última vez que
eu fui lá conversar com o professor numa reunião, aí ele disse que o coleguinha dele disse
assim “ó, aquele ali é o pai do Breno”, entendeu? Aí o outro disse “não, menino, é a mãe do
Breno!”. Ele “Não, ele é Sillvyo Luccio agora, é o pai do Breno”.

Por mais que a ex-companheira de Sillvyo seja contra uma cirurgia de mudança de
sexo biológico, ela explica sua oposição dizendo que seria muito drástico, em sua idade,
uma intervenção desse tipo. E termina sua justificativa da seguinte forma: “Mexer em
que? Se todo mundo respeita ela como ele”.
A ideia dos diretores de partir com Sillvyo Luccio para uma viagem é deslocá-lo
desse ambiente familiar e levá-lo a outras cidades, “tirar o personagem de sua ‘zona de
conforto’. (...) Uma metodologia de olhar baseada no movimento” (GOIFMAN; PRISCILLA,
2012). A aproximação da personagem com outras pessoas, que não o conhecem e que
também passam, por outras razões, por preconceitos e estigmatizações, faz com que ele
reafirme sua identidade e ponha à prova seu lugar social.
O documentário relata vários encontros, com famílias diversas. Todas estão ligadas
por problemas e questões relacionadas à genética. Esses encontros foram produzidos
pelos diretores do filme, motivados por um desejo de Sillvyo Luccio em ter um filho de
sua atual companheira, unindo seu material genético com o dela em um mesmo óvulo,
que seria fecundado por material de um doador anônimo.
O deslocamento é inicialmente proposto com o objetivo de visitar uma clínica gené-
tica e analisar se a situação imaginada por eles seria possível. Mas é possível perceber
que o caminho foi produzido como um objeto fílmico, elaborado para ser filmado.
Sobre esses fatos que são produzidos apenas para as câmeras, Da-Rin (2004, p. 163)
comenta que só podem ter espaço na própria obra: “É um fato fílmico por excelência,
composto tanto do factual quanto do imaginário, com dimensões tornadas indissolúveis”.
Ramos (2011, p. 170) nomeia esse tipo de encenação, produzida especificamente
para o filme documentário, de “encenação-locação”. Para o autor, essa mise-en-scène não
pode ser definida como completamente encenada, artificial, pois há um desenrolar não-
previsto dos acontecimentos, ainda que sejam provocados em seu início: “A encenação-
locação envolve ações preparadas especificamente para a câmera, mas nela já sentimos
em grau maior a indeterminação e intensidade do mundo em seu transcorrer”.
Mesmo nas cenas que retratam o desenrolar cotidiano do personagem, Ramos
acredita que há uma intervenção, e as classifica como “encenação-direta” ou “encena-
ação” (idem, p. 171), já que “os comportamentos cotidianos surgem modulados pela
intrusão do sujeito que sustenta a câmera”.
Não é possível saber se Sillvyo algum dia se encontraria com aquelas pessoas.
Tampouco se ele teria as mesmas reações, não fosse especificamente para o filme, e

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mesmo se as pessoas com quem interage, longe do foco das câmeras, o tratariam da
mesma forma.
Em um desses momentos de afirmação de sua identidade e manifestação da dife-
rença, ele explica a um grupo de garotos e garotas gays e travestis, reunidos na praça de
uma das cidades que visita: “Eu fui uma lésbica e hoje eu sou um homem”. É interessante
notar que ele está seguro e desenvolto ao esclarecer dúvidas como essas. Esse encontro
talvez só tenha existido em razão e para as câmeras, mas foi por meio do contato com
o outro diferente, desconhecido, mas muito próximo, que a construção da identidade
fica mais evidente.
Sobre a curiosidade constante das pessoas, ele comenta com voz em off, enquanto
as imagens são do personagem chegando a um bar: “Eu entro em um espaço público,
em uma loja, em um shopping, e aí as pessoas olham braguilha, cara, braguilha... Elas
ficam indecisas. Elas não sabem se se dirigem a mim como senhor, como senhora...”.
Em um dos momentos finais do longa, há o encontro entre o personagem e sua filha
(Tereza), concebida ainda na juventude. Sua relação com ela é difícil e durante todo o
filme ele negocia para que esse encontro aconteça frente às câmeras. O diálogo é direto
e difícil. Tereza não compreende o porquê de seu processo de construção da identidade
masculina:
TEREZA: Eu não consigo entender, e eu acho que se eu não entendi até hoje, eu acho pouco
provável que eu vá entender depois, eu não sei. Ela poderia ter a orientação dela, para quê
fazer cirurgia, para quê se vestir dessa forma? Precisa provar algo para alguém? Eu acho
que ela não precisa provar nada para ninguém. Se ela é assim, é assim, tem que ser feliz,
tudo bem.
SILLVYO: Eu não quero passar, me ausentar desta vida, sem que eu consiga ser eu.

Ele deixa claro que não se trata de uma mudança, mas uma adequação a sua real
identidade. Ao continuar a falar sobre sua difícil relação com sua família e como é
problemático esse embate, Sillvyo diz que vê-lo como homem é motivo de tristeza para
sua mãe. Sempre que vai falar de si, em frente à filha, Sillvyo se retrata no feminino. Ele
explica a opção pelos vocábulos femininos para a câmera, dizendo que não pode deixar
de ser a mãe de Tereza e, por isso, é a única pessoa que ele aceita que o trate por “ela”.
Em todas essas cenas, podemos notar que o encontro com o outro, motivado pelo
documentário, produz o embate e a afirmação da identidade no personagem. Gera tanto a
verdade de sua identidade, quanto a verdade do filme, e justifica a opção dos realizadores
pelo deslocamento rumo ao desconhecido, na busca por si mesmo na ótica do outro.

A IDENTIDADE, A CÂMERA E A REPRESENTAÇÃO


Há algumas cenas no longa que apresentam Sillvyo Luccio em tom confessional, se
dirigindo diretamente para a câmera. Em uma delas, ele está passando por uma feira
de rua e faz elogios e gracejos às mulheres que encontra, ou comenta sobre elas com
pessoas da produção.
Não é possível precisar se o personagem reage a essas situações sempre dessa
forma. É correto dizer, no entanto, que isso acontece na narrativa cinematográfica, diante
da câmera. Da mesma forma, não é possível saber ao certo se o personagem foi assim

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durante toda a gravação ou se esses foram momentos selecionados pelos realizadores do


filme exatamente para destacar o comportamento próximo à identidade que gostariam
de reforçar para Sillvyo Luccio.
Rancière (2012) lança luz sobre essa questão quando trata do regime representativo,
no qual está inserido o cinema e, neste caso, o filme documentário. Segundo ele, não se
espera desse regime a tarefa de produzir semelhanças, mas se adequar ao que chama
de “tríplice obrigação”:
Um modelo de visibilidade da palavra que organiza ao mesmo tempo certa contenção do
visível; uma regulagem das relações entre efeitos de saber e efeitos de páthos, comandada
pelo primado da “ação”, que identifica o poema ou o quadro a uma história; um regime de
racionalidade próprio à ficção, que subtrai seus atos de palavras aos critérios normais de
autenticidade e utilidade das palavras e das imagens para submetê-los a critérios intrínse-
cos de verossimilhança e conveniência. Essa separação entre a razão das ficções e a razão
dos fatos empíricos é um dos elementos essenciais do regime representativo. (RANCIÈRE,
2012, p. 130)

A razão da ficção espera uma ordenação de fatos e reações que busquem a veros-
similhança e a tradução em imagens da verdade do discurso, não a realidade em si.
Foucault (1996, p. 48) atribui ao discurso a função de reverberar uma verdade sendo
construída diante dos próprios olhos. No regime representativo, esse discurso age bus-
cando cumprir expectativas: dos realizadores, do espectador e da própria ordenação
da narrativa.
Essas operações, segundo Rancière (2012, p. 14), são relações entre o dizível e o
visível, entre uma visibilidade e uma potência de significação; determinados papeis
das imagens sociais em que há expectativas que vêm preenchê-los. Independente do
retrato que torna Sillvyo Luccio um personagem único, há também o imaginário social
de um transexual masculino, que influencia – intencionalmente ou não – na narrativa.
Ao analisarmos a relação do personagem com o outro, o outro da câmera – como
movimento do próprio do cinema –, e uma terceira relação, do discurso produzido,
notamos o reforço de estereótipos e preconceitos do homem que o personagem busca
construir. Por exemplo, em um trecho do longa em que ele comenta sua relação com
as mulheres e amplia essa relação para todos os homens daquele círculo: “Tem um
termômetro em mim, no nordestino, que é assim, tem um grau de amizade que a gente
vai e faz um lanche, sabe, come a marmita. Tem um grau de amizade que vira irmã”.
Ao se igualar, diante das câmeras, a esse homem e generalizar sua relação com as
mulheres da forma como se dá, Sillvyo Luccio realiza um duplo movimento da identi-
dade: se identificar com o homem que quer ser e se distanciar da mulher que já foi, em
uma construção simbólica da identidade e da diferença.
É impossível precisar como teriam sido os acontecimentos se não houvessem as
lentes da câmera. Da mesma forma que nunca saberemos como seria a postura do
personagem sem a gravação, seleção, edição e montagem dos planos por parte dos
realizadores.

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A construção da identidade e a política de representação em Olhe pra mim de novo

Eduardo Paschoal de Sousa

Como aponta Rancière (2012, p. 33), “as obras são como ícones que atestam um
modo singular da presença sensível, subtraído às outras maneiras como as ideias e as
intenções dispõem os dados da experiência sensível”. Essa exposição frente à lente e
projetada na grande tela é a testemunha de uma “copresença originária dos homens e
das coisas, das coisas entre elas e dos homens entre eles”, um momento de afirmação
de que aquela imagem existe e está ali representada.

REFERÊNCIAS
Coutinho, E.; Xavier, I.; Furtado, J. (2014). O sujeito (extra)ordinário. In: O cinema do real.
Organização de Maria Dora Mourão e Amir Labaki. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
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Foucault, M. (1996). A Ordem do Discurso – Aula inaugural no College de France.
Pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo. Ed. Loyola.
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wordpress.com/visao-dos-diretores>. Acesso em 07 de janeiro de 2015.
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Volume II. São Paulo: Editora Senac.
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Paulo: Paleo TV. Filme, 77 minutos, som, cores.
Ramos, F. P. (2011). “A encenação documentária”. In: PENAFRIA, Manuela (Org.). Tradições
e reflexões: contributos para a teoria e estética do documentário. Covilhã: LabCom Books.
Rancière, J. (2010). O efeito de realidade e a política da ficção. Novos Estudos Cebrap. São
Paulo, n. 86, março de 2010.
_______ . (2012). O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto.
Silva, T. T. (2000). “A produção social da identidade e da diferença”. In: Identidade e diferença.
A perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, (pp. 73-102).
Soares, R. L. (2010). Pequeno inventário de narrativas midiáticas: verdade e ficção em dis-
cursos audiovisuais. In: Significação – Revista de Cultura Audiovisual. ed. 34, julho-dezem-
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Xavier, I. (2005). O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e
Terra, 2005.

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Avenida Brasil: uma leitura da telenovela
sob a luz do melodrama
Avenida Brasil: a soap opera read from
melodrama’s view
Luís Enrique Cazani Júnior1

Resumo: Esta comunicação adentra ao palco do melodrama francês para


vislumbrar as propriedades remanescentes desse gênero dramático na primeira
fase da telenovela Avenida Brasil (2012), escrita por João Emanuel Carneiro. No
quadro teórico de referência são apresentados: a constituição da matriz por Oroz
(1992), as correntes clássica, romântica e diversificada em Thomasseau (2005), a
expansão do gênero como estética em Brooks (2005), a natureza das personagens
e expedientes que integram o caudaloso substrato dessa representação artística:
à parte, monólogo, diálogo, confidência, quadro vivo, balé, canção, peripécia,
reconhecimento, catástrofe e golpe de teatro. O protocolo metodológico foi
estabelecido na análise comparativa dos sete primeiros capítulos da telenovela
com o melodrama clássico Coelina ou a Filha do Mistério, escrita por René Charles
Guilbert de Pixérecourt. Como resultados, destaca-se que a telenovela, uma
reelaboração da matriz melodramática, mantém os fundamentos do gênero,
apresentando um grau acentuado de similaridade. Modifica-se a natureza da
linguagem, permanecendo essa representação cênica no registro audiovisual.
Palavras-Chave: Audiovisual. Telenovela. Melodrama. Avenida Brasil.

Abstract: The article presents the remaining caracterics of the french melodrama
in the first phase of the soap opera Avenida Brasil (2012), written by João Emanuel
Carneiro. It’s contains: the constitution by Oroz (1992), the classical, romantic and
diverse currents by Thomasseau (2005), the expansion of gender as aesthetic in
Brooks (2005), characters and the elements of the voluminous substrate of this
artistic representation: apart, monologue, dialogue, confidential information,
tableau, ballet, song, mishap, recognition, catastrophe and theatrical coup. The
methodological protocol was established in the comparative analysis of the
first seven chapters of the soap opera with the classic melodrama Coelina or the
Mystery Daughter, written by René Charles Guilbert of Pixerécourt. There is a
marked degree of similarity between the structures.
Keywords: Audiovisual. Soap Opera. Melodrama. Avenida Brasil.

1. Bolsista de Mestrado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo com o projeto “Da
veiculação em fluxo contínuo para a disponibilização: o gancho na produção de sentido da telenovela
Avenida Brasil”, processo 2014/10135-3, orientado pelo Dr. Arlindo Rebechi Júnior na Faac/Unesp. E-mail:
cazani.unesp@hotmail.com

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Avenida Brasil: uma leitura da telenovela sob a luz do melodrama

Luís Enrique Cazani Júnior

INTRODUÇÃO

A BREM-SE AS cortinas para esta apresentação acerca do melodrama francês, gênero


dramático considerado matriz fundamental da telenovela. O presente trabalho
objetiva vislumbrar suas propriedades remanescentes no fenômeno Avenida Brasil
(2012) de João Emanuel Carneiro, telenovela dirigida por Amora Mautner e José Luiz
Villamarim, com núcleo de produção de Ricardo Waddington. São apresentadas notas sobre
a constituição do melodrama, suas correntes e elementos, em uma análise comparativa que
contempla Coelina ou a Filha do Mistério, escrita por René Charles Guilbert de Pixérecourt.
Ao estabelecer notas sobre a origem do movimento em um exame acerca do cinema
melodramático latino-americano, Oroz (1992) indica no Renascimento a gênese de seu
substrato. Na leitura da autora, sentimentalismo e musicalidade que o caracterizam
estão presentes na Ópera e Drama Lírico. Contudo, a apresentação disjunta suplanta
a existência da matriz. A modelagem desses elementos em conjunto a posteriori desen-
cadeia a formação do melodrama, emergindo sob a égide clássica na França em 1800.
Além da Ópera e Drama Lírico são indicadas por Oroz (1992) como influências:
Comédia Lacrimosa, Pantomima e Novela Gótica. Na Comédia Lacrimosa empregam-se
temas cotidianos objetivando comover a plateia. Já a Pantomima é uma arte periférica
com processo de significação determinado pela imitação, pela gesticulação e pelos
movimentos corpóreos. Segundo Martín-Barbero (2008), a ausência das articulações
sonoras no teatro popular foi desencadeada por regimentos instituídos para a preser-
vação da arte clássica. Como gênero popular o melodrama assentou-se, dessa forma,
sob a matriz visual.
De acordo com Brooks (1995), o melodrama francês absorveu e recusou elementos da
Novela Gótica. Segundo ele, a novela gótica “preocupa-se com os estados de pesadelo,
os cativeiros, as fugas frustradas e a inocência enterrada viva incapaz de expressar-se e
ser reconhecida” e o melodrama “tende a divergir do romance gótico em seu otimismo,
sua alegação de que a imaginação moral pode abrir as esferas angelicais bem como as
profundezas demoníacas para dissipar a ameaça do caos moral” (Brooks,1995, p.17-18)”2.
Já com relação à Pantomima, o autor destaca a utilização de cartazes e a sua substituição
pelo diálogo, ocasionado pelo analfabetismo do público. Estabelece-se, dessa forma, as
origens do melodrama francês. O gênero segue evoluindo e diversificando.

CORRENTES DO MELODRAMA FRANCÊS


O melodrama emerge na Primeira República Francesa (1792-1884) e atravessa
diferentes momentos políticos: Primeiro Império Francês (1804-1814) sob a égide de
Napoleão I, a Monarquia dos Borbons (1814-1824), a Monarquia de Julho (1830-1848) com
Luís Filipe I, a Segunda República Francesa (1848), o Segundo Império Francês (1852-1870)
e a Terceira República Francesa (1870-1940). Thomasseau (2005), um consagrado crítico
do melodrama francês, distribui as diversas configurações estruturais nas correntes
clássica (1800-1823), romântica (1823-1848) e diversificada (1848-1914).

2.  Segundo ele “it is equally preoccupied with nightmare states, with claustration and thwarted escape,
with innocence buried alive and unable to voice its claim to recognition” e ainda, “it tends to diverge from
the Gothic novel in its optimism, its claim that the moral imagination can open up the angelic spheres as
well as the demonic depths and can allay the threat of moral chaos”.

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Avenida Brasil: uma leitura da telenovela sob a luz do melodrama

Luís Enrique Cazani Júnior

É estabelecido como marco fundador da corrente clássica a encenação em 1800 da


peça Coelina ou a Filha do Mistério, escrita por René Charles Guilbert de Pixerécourt. Na
leitura de Thomasseau (2005), os eventos festivos e espetaculares da Revolução Francesa
incidiram nas elaborações das artes cênicas, construídas visando a fruição prazerosa e
compreensão pelo público inculto. O critico francês elenca como propriedades: a ampla
utilização de balés, de músicas, de monólogos e de personagens cômicas; a divisão da
unidade dramática em três atos do mesmo modo que a Ópera; a manutenção do ideal
proposto pela tradição teatral acerca dos limites das categorias clássicas do drama; a
representação marcada pelo extremo e excesso que demarcam os valores da história; o
emprego do acaso e do mistério; a subordinação das relações amorosas à racionalidade;
e a articulação de valores absolutos e contrários.
A corrente romântica do melodrama francês emerge com a queda do Império na
França. De acordo com Thomasseau (2005), ela assentava-se na movimentação intensa,
na paixão, na miséria, nos vícios, na violência, no sarcasmo, no adultério, nas inovações
tecnológicas e na encenação em cinco atos subdivididos em quadros autônomos, como no
romance-folhetim. O engendramento da peça complexificou-se, proliferando os espaços,
as personagens e as elipses. São utilizados os prólogos nos inícios dos atos para situar a
plateia dos acontecimentos. Supera-se o ideário que buscava a preservação dos limites
das categorias clássicas, além do uso do balé, da música, do monólogo, da personagem
cômica e do desfecho punidor. O estudioso afirma que a reestruturação dos bulevares,
a sua concorrência com vaudeville, a emergência da opereta e dos cafés-concertos redis-
tribuíram o público, levando a decadência da corrente romântica.
Além das correntes clássica e romântica, Thomasseau (2005, p.98) elenca o melodrama
diversificado que compreende as diversas manifestações do período de 1848 até 1914:
“melodrama militar, patriótico e histórico; o melodrama de costumes e naturalista; o
melodrama de aventuras e de exploração; o melodrama policial e judiciário”. Mais que
um gênero de teatro, o melodrama passou a ser considerado uma estética.

A ESTÉTICA MELODRAMÁTICA
Brooks (1995) credita ao vocábulo melodrama a capacidade de representar uma
concepção artística originada na efervescência das revoluções burguesas na Europa.
Ao caracterizá-la, definindo-a como uma estética expressionista centrada no homem e
na moralidade, o autor postula sobre a superação dos limites conferidos pelo gênero de
teatro com a sua extensão a inúmeros produtos culturais.
As conotações da palavra são provavelmente semelhantes para todos nós. Elas incluem: a
indulgência de forte emotividade; a polarização e a esquematização moral; estados, situ-
ações ou ações extremas; vilania com a perseguição do bem e a recompensa da virtude;
expressão extravagante; tramas escuras, suspense e peripécia de tirar o fôlego3 (Brooks,
1995, p.11-12).

3. “The connotations of the word are probably similar for us all. They include: the indulgence of strong
emotionalism; moral polarization and schematization; extreme states of being, situations, actions; overt
villainy, persecution of the good and final reward of virtue; inflated and extravagant expression; dark
plottings, suspense, breathtaking peripety”.

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Avenida Brasil: uma leitura da telenovela sob a luz do melodrama

Luís Enrique Cazani Júnior

Na produção de sentido do melodrama, Brooks (1995) destaca a musicalidade e a


gestualidade, propriedades remanescentes dos gêneros primários. A referência ao som
na origem da palavra atinge a tonalidade, a modulação e o ritmo. A música identifica
as personagens, enfatiza sua entrada em cena, os estados emocionais, a tensão e as
movimentações da história. Na sua leitura, as ações e os sentimentos são externados
de tal forma que a clareza, a hipérbole, o maniqueísmo, a polarização e a exaustão
sensorial tornam-se suas marcas. O emprego da hipérbole torna claro e legível o texto
cênico, acentuando os princípios opostos em debate. O ideário democrático instila essa
necessidade de apreensão do espetáculo por um público diverso. De acordo com Brooks
(1995, p.36), “a polarização é horizontal e vertical: personagens representam os extremos
e passam por situações extremas. O meio termo e a condição mediana são excluídos”4.
A partir do contexto histórico são destacados os movimentos de afirmação e de
recusa da sacralidade. Na interpretação de Brooks (1995), Renascimento postulou a
dessacralização, o Iluminismo a sacralização e o Romantismo a dessacralização. Com
a queda das instituições tradicionais na França voltam-se para as categorias primárias
do homem. O teatro, como um mecanismo social, converte-se em hábil veículo de pro-
moção desses comportamentos. As reversões, revelações, confrontos e reconhecimentos
alimentam o drama. Nos embates atenta-se para a presença das peripécias e dos golpes
de teatro que (re) definem a direção dos polos em ação. A capacidade de surpreender,
comover e promover valores positivos completam a caracterização dessa estética.

ELEMENTOS DO MELODRAMA FRANCÊS


À parte, monólogo, diálogo, informação confidencial, quadro vivo, golpe de
teatro, balé e canção são expedientes da matriz melodramática, conceitos extraídos da
peça Coelina ou a Filha do Mistério e vislumbrados na telenovela Avenida Brasil (2012).
Eles refletem valores, os sentimentos, os pensamentos, as intenções e as reações de
personagens. São acrescentados a peripécia, o reconhecimento e a catástrofe, elementos
da tragédia grega, em um estudo associativo ao golpe de teatro, definindo-os como base
na observação direta.

À parte
À parte ou aparte, do francês à part, é um recurso dramático empregado para revelar
ao público as reações e os posicionamentos da personagem diante de uma ação encenada.
Ao externalizar os sentimentos, os pensamentos e as intencionalidades, esse expediente
promove a clareza no texto cênico. A natureza da revelação deve ser transgressora ou
danosa, manifestando-se por meio de uma breve verbalização. O elemento estabelece
uma relação de cumplicidade com a plateia, tornando a informação anunciada restrita
a ela. Não está implícito a necessidade de romper a ilusão teatral para a sua utilização.
Em Coelina ou a Filha do Mistério há inúmeros à parte. A chegada de Truguelin
angustia a mocinha Coelina que clama aos céus para não afastar-se de seu amor,
Stephany: “Coelina (à parte): Ó Deus, não permita que me separem de quem me quer

4. Para Brooks (1995) “polarization is both horizontal and vertical: characters represent extremes, and they
undergo extremes, passing from heights to depths, or the reverse, almost instantaneously. The middle
ground and the middle condition are excluded”.

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Avenida Brasil: uma leitura da telenovela sob a luz do melodrama

Luís Enrique Cazani Júnior

bem” (Pixerécourt, 1800, p.15). Há, ainda, o anúncio da intervenção do vilão Truguelin
quando Dufour pede que Coelina convença Francisque de permanecer em sua casa:
“Truguelin (à parte): Isso é o que eu vou impedir” (Pixerécourt, 1800, p.17). Por fim,
Truguelin demonstra medo ao deparar-se com um policial em sua fuga: “Truguelin (à
parte e colocando a mão rapidamente no bolso): Estou tremendo” (Pixerécourt, 1800, p.44).
Na primeira fase de Avenida Brasil (2012) há três à parte. O poder de convencimento
exercido por Carminha incita a utilização do elemento para não confundir o público
de suas reais intenções. O elemento revela posturas contrárias às encenadas por ela.
Destaca-se, ainda, que não há a quebra da quarta parede na telenovela. No segundo
capítulo, Carminha está em lágrimas pelo anúncio do falecimento de Genésio e acom-
panha a saída dos policiais. Com a partida, Carminha comemora a notícia: “Dá-lhe,
Carminha. Eu não acredito. Esse foi um gol de placa. Morreu. Morreu”. Ainda, neste
capítulo, após o enterro de Genésio, Carminha é convidada pelo jogador Jorge Tufão
para almoçar numa churrascaria no dia seguinte. Após despedir-se, Carminha deixa
as falsas lamúrias da morte de lado e reage incrédula: “Não tô acreditando. Não estou
acreditando. Será que hoje é meu dia, Meu Deus? Nossa. Dá-lhe, Carminha”. Por fim, no
quinto capítulo da telenovela, Carminha recebe a visita da mãe de Tufão, Dona Muricy.
A vilã recebe bem a futura sogra que a presenteia com um pote de doce e as chaves da
casa de Cabo Frio. Com a saída de Muricy, Carminha despeja o doce no lixo: “Docinho
de mamão caseiro. Ô velha esclerosada. Cê caiu do céu hein? Aqui, na minha mão”.
Diferentemente da matriz melodramática em Avenida Brasil(2012) o elemento torna-se
de uso exclusivo da vilã.

Monólogo
Verbalizações reflexivas, extensas e solitárias são comumente conhecidas na
dramaturgia como monólogos. É natural uma aproximação do conceito com à parte,
já que em ambas as situações não há personagem como interlocutor. Ao compará-los,
detona-se que a métrica e a relação que estabelecem os distinguem. Ao analisar a sua
natureza, Thomasseau (2005, p.31) indica a existência de dois tipos: o recapitulativo é
utilizado “sempre que uma situação emaranhada obrigue a lembrar o sentido da trama”
enquanto o patético “serve para suscitar e manter o pathos, seja o do vilão, que depois de
mentir para todas as outras personagens diz a verdade ao público e traz à luz o negrume
de sua alma ou seus remorsos”.
No início do terceiro ato de Coelina ou a Filha do Mistério há um extenso monólogo
patético ao qual apresenta-se um trecho a seguir. Ocultando sua identidade sob o disfarce
de um camponês, Truguelin lamenta os infortúnios enquanto foge pelas montanhas.
Truguelin: Onde estou? E de quem é essa voz ameaçadora? Céu! Essa ponte...essas rochas...
este rio. Ele é lindo. Lá minha mão criminosa derramou o sangue de um infeliz. Ó terra!
No teu seio, sou monstro indigno de vida. Ó Deus, você me fez tão mal entendido por
tanto tempo. Ver o meu remorso, meu sincero arrependimento derramado sobre mim, este
bálsamo consolador. Pare, desgraçado!(Pixerécourt, 1800, p.41)

Destaca-se que não há monólogos na primeira fase da telenovela Avenida Brasil (2012).

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Avenida Brasil: uma leitura da telenovela sob a luz do melodrama

Luís Enrique Cazani Júnior

Diálogos
O melodrama estabelece-se fundamentalmente na oralidade. O diálogo pressupõe
a existência de, pelo menos, duas personagens no ato comunicativo. A natureza da sua
informação5 pode determinar o curso da ação e instaurar novos percursos na história,
principalmente, quando a informação é confidencial. Ela promove desdobramentos
significativos no drama e envolve uma relação de cumplicidade entre as personagens.
Em Coelina ou a Filha do Mistério, Truguelin confidencia-se com sua empregada
Germain, demonstrando preocupações quanto a presença de Francisque na casa de
Dufour. Essas confidências são ouvidas por Coelina que constata as verdadeiras inten-
ções do vilão. Há, também, a confidência da mocinha com Tienette, revelando sua
paixão por Stephany.
No primeiro capítulo de Avenida Brasil (2012), Rita ouve Carminha tramando um
golpe por telefone. Suas confidências com Max também são ouvidas por Genésio.
No segundo capítulo, Tufão confidencia-se com Monalisa, revelando que atropelou e
matou Genésio. O revelar de ambas as situações promovem alterações significativas: o
desmascaramento de Carminha e o término do relacionamento de Tufão e Monalisa.
Na tessitura da história, as armações de Carminha e Max são reveladas através desse
recurso.

Quadro Vivo
Quadro vivo, do francês tableau vivant, é a forma de sublinhar as emoções e as expres-
sões das personagens, tornando-as estáticas na cena. Em Coelina ou a Filha do Mistério,
o recurso é utilizado tando no ápice da tensão de cada ato quanto na constituição de
momentos de distensão. No primeiro ato, Truguelin ataca Francisque com a ajuda de
Germain: “Truguelin puxa uma adaga de seu seio. Francisque retira uma arma de fogo.
Germain agarra firmemente o braço direito e pega sua arma. Tableau” (Pixerécourt,
1800, p.22). Ha, ainda, o seu emprego durante o romanceio de Stephany e Coelina no
segundo ato, na prisão de Truguelin e no encerramento da peça, ambos no terceiro ato.
O expediente é empregado em Avenida Brasil diante das reações das personagens nas
passagens de cenas, blocos e capítulos da telenovela. Acentua-se os efeitos de sentido
por meio do close e do congelamento da tela no término do capítulo.

Figuras 1 e 2: Encerramento do primeiro e segundo capítulo de Avenida Brasil.

5.  De acordo o padrão clássico narrativo de Vladimir Propp, uma informação pode revelar uma transgressão
a ser utilizada na promoção de danos na situação inicial.

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Avenida Brasil: uma leitura da telenovela sob a luz do melodrama

Luís Enrique Cazani Júnior

Balé e Canção
Apresentações de números musicais e dança são frequentes no melodrama clássico,
situadas nos momentos de distensão dramática. As raízes na musicalidade das matrizes
fundamentais do drama admite naturalmente essa inserção. Em Coelina ou a Filha do
Mistério, há dois momentos em que são encontrados os recursos: no romanceio de
Stephany e Coelina no segundo ato e no encerramento da peça no terceiro ato. Já a
primeira fase de Avenida Brasil (2012) apresenta danças em momentos específicos:
comemoração do título do Campeonato Carioca de Tufão, o samba no seu casamento
com Carminha no Divino Futebol Clube e nas cenas do réveillon. Destaca-se a presença
da dança na abertura da novela e na segunda fase através do gênero charme.

Golpe de teatro: peripécia, reconhecimento e catástrofe


O pensamento aristotélico compreende a peripécia, o reconhecimento e a catástrofe
como elementos do enredo da tragédia grega. Aristóteles (1966, p.80-81) define catástrofe
como “uma ação perniciosa e dolorosa, como o são as mortes em cena, as dores veementes,
os ferimentos e mais casos semelhantes”, a peripécia como “mutação dos sucessos, no
contrário” e reconhecimento como “passagem do ignorar ao conhecer, que se faz para
amizade ou inimizade das personagens que estão destinadas para a dita para a desdita”.
Os três conceitos promovem alterações significativas no drama.
Ao averiguar a presença de catástrofes em Coelina ou a Filha do Mistério, nota-se a
presença de apenas uma ação que pode ser associada ao conceito: Francisque é brutal-
mente ferido por Truguelin em uma emboscada. Já na telenovela há duas catástrofes:
o atropelamento de Genésio e o acidente de ônibus que leva ao aborto espontâneo
de Monalisa, no final do primeiro e do quinto capítulo respectivamente. Ambas as
situações dramáticas promovem a tensão necessária para a interrupção da veiculação
do capítulo.
Reconhecer pressupõe um conhecimento anterior. O conceito denominado reco-
nhecimento envolve, principalmente, questões identitárias, como a constatação de laços
familiares e de relacionamentos. Ao empregar o verbo “ignorar”, admite-se momentos
que revelem a passagem do desconhecido para conhecido. O filósofo grego elenca estig-
mas, as habilidades, os eventos do passado e o silogismo como mecanismos.
No primeiro capítulo de Avenida Brasil (2012), ao retornar à sua casa para pegar
uma boneca, Rita ouve as confidências de Carminha ao telefone. A temática? O golpe
que aplicará em Genésio. A mocinha deixa de ignorar as intencionalidades da madrasta
e parte para revelar as informações obtidas para o pai. Esta situação é similar a uma
cena encenada em Coelina ou a Filha do Mistério. Logo no primeiro ato da peça de teatro,
Coelina ouve as confissões de Truguelin à Germain e promete intervir. Destaca-se que
o reconhecimento mais emblemático ocorre no segundo ato. Em meio aos preparativos
do casamento, uma carta enviada por Truguelin revela que Coelina não é sobrinha de
Dufour. A revelação provoca a expulsão da mocinha e o cancelamento de seu casamento
com Stephany.
No gancho do final do segundo capítulo de Avenida Brasil (2012), Carminha revela
para Max a aproximação de Jorge Tufão após o enterro do marido. Contudo, o ato do
jogador provoca um certo estranhamento para a vilã. A partir de uma série de indícios

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Avenida Brasil: uma leitura da telenovela sob a luz do melodrama

Luís Enrique Cazani Júnior

que são relatados, tais como, a marca do carro indicada no laudo do acidente, equívocos
sobre a localidade da casa ao levá-la e o nome da ex-mulher de Genésio, a vilã conclui
que Tufão pode ter sido o responsável pelo atropelamento que vitimou Genésio.Ainda
que não esteja no período do corpus analisado, destaca-se que no centésimo capítulo,
após encontrar uma foto da moçoila no quarto de Nilo, Carminha descobre que sua
cozinheira Nina é Rita.
É comum encontrar na literatura a associação de peripécia à aventura. Essa situação
dramática que institui uma reação contrária a esperada gera um percurso visando
reequilibrar as forças. Ao debruçar-se sobre esse conceito, destaca-se a tradução de
Gazoni (2006) que ressalta que o conceito não estabelece-se apenas com a alteração de
polos, mas necessita manifestar a imprevisibilidade nos acontecimentos.
Como a mudança de fortuna se dá tanto no enredo simples como no enredo complexo, mas a
peripécia é exclusiva do segundo, forçoso é reconhecer que “a mudança dos acontecimentos
no seu contrário” não se refere à passagem da fortuna (eutukhia) para o infortúnio (dustukhia)
ou vice-versa, preceituada no final do capítulo 7. Como a frase he eis to enantion tôn prattome-
nôn metabolê (“a mudança dos acontecimentos no seu contrário”) é genérica o bastante para
comportar também a mudança de fortuna, faz-se necessário entender hathaper eiretai (“da
maneira como dissemos”) como restrição que limita seu alcance. As traduções, então, ligam
o kathaper eiretai não ao final do capítulo 7 (1451 a 12-15), mas ao trecho final do capítulo 9,
mais precisamente a 1452 a 2-4. Se essa hipótese é correta, como parece, à peripécia sempre
estará associado um elemento inesperado (para tên doxan...) mas que conserva um caráter
causal. (Gazoni, 2006, p.74)

As pontuações do tradutor são importantes no sentido que favorecem uma apro-


ximação do conceito de peripécia com golpe de teatro. Segundo Pavis (2011, p.287), o
golpe de teatro é a “ação totalmente imprevista que muda subitamente a situação, o
desenrolar ou a saída da ação”. A peripécia estabelece-se na imprevisibilidade e na
alteração, do mesmo modo que o golpe de teatro. Contudo, a alteração é no sentido
contrário ao esperado. Catástrofe ou reconhecimento quando imprevistos também são
considerados golpes de teatro. Deve ser imprevisto para personagem ou para perso-
nagem e o público.
Avenida Brasil (2012) admite inúmeras peripécias. No salão de beleza, Monalisa
assiste a uma entrevista concedida por Jorge Tufão. Para sua cliente, Monalisa revela
o relacionamento com o jogador e sua amiga Olenca questiona a seriedade da relação.
Tufão anuncia que irá se casar deixando-a desolada. Admitindo logo no início da cena
a seriedade do relacionamento, o anúncio realizado tem o efeito contrário em Monalisa.
Tufão chega ao Divino para concretizar o pedido realizado pela televisão e é recebido
com descrédito pela namorada, que acredita que ele se casará com outra. Esclarecido o
mal intendido, Tufão pede Monalisa em casamento e ela aceita.
No final do primeiro capítulo, Genésio tenta utilizar seu último sopro de vida para
pedir a penalização da vilã, revelando insistentemente seu nome: Cármen Lúcia Moreira
de Souza. Tufão compreende o gesto como um pedido de proteção a mulher, obtendo
o efeito contrário ao esperado pelo moribundo.

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Avenida Brasil: uma leitura da telenovela sob a luz do melodrama

Luís Enrique Cazani Júnior

No segundo capítulo, Rita esconde-se no telhado de Carminha e Max. Ao ser pega


por Carminha, os policias chegam a casa. Max e Carminha tentam fugir pelo fundo
enquanto Rita leva os policias até o fundo. Carminha não consegue fugir e enfrenta os
policiais. O anúncio do falecimento feito pelos policiais surpreende Rita e Carminha,
que esperavam a prisão da vilã após Genésio desmascará-la. Carminha prepara um café
da manhã para as duas. Rita refuta o convite afirmando que não revelará a localização
do dinheiro. Carminha tenta demonstrar compaixão pela garota e Rita permanece
incrédula. Carminha revela que vai embora, entra na caminhonete com Max e parte.
Rita comemora, volta para a cozinha e come. Posteriormente, Rita vai checar o dinheiro,
sendo surpreendida por Carminha.
A peripécia pode provocar momentos cômicos na trama. No segundo capítulo, ao
deparar-se com Verônica e Noêmia no mesmo restaurante, Cadinho esquiva-se tentan-
do ir embora sem encontrá-las. Ele paga o recepcionista para não revelar que esteve
ali. Contudo, sua expectativa é quebrada quando é reconhecido por um cliente que o
chama em voz alta. Cadinho tenta reverter a situação, levando o cliente para o lugar
mais afastado possível das mesas das esposas. Ao sentar-se à mesa, uma orquestra se
aproxima e leva todo o restaurante a olhar para mesa. Cadinho esquiva-se novamente.
Uma nova ação institui o mesmo efeito: garçom leva o bolo até a mesa e todo restaurante
canta parabéns a mulher do cliente. Cadinho esconde-se e posteriormente consegue ir
embora sem deixar rastros.
Partindo desse pressuposto e admitindo a existência de uma linha tênue entre os
conceitos, define-se peripécia como evento imprevisível que promove a contrariedade
na história, gerando expectativa e resultado opostos. Já o golpe de teatro deve ser
compreendido como mudança imprevista, podendo assumir a forma de peripécia,
reconhecimento ou catástrofe. As alterações promovidas não são triviais; inseridas
na dinâmica da história aproximam ou afastam a personagem de seus objetivos; favo-
recerem desdobramentos, alteram cursos e instituem novos percursos, tornando ágil
o drama.

Personagens
O melodrama é composto prioritariamente por uma tríade de personagens: protago-
nista, antagonista e comediante. O drama apresenta, portanto, duas linhas dramáticas:
tensiva e distensiva. Acrescenta-se ao rol de personagens confidentes ou auxiliares. Em
Coelina ou a Filha do Mistério, Truguelin é o antagonista, tendo Germain como auxiliar.
Coelina é a protagonista e tem Tienette como auxiliar. Coelina é protagonista-vítima e
protagonista-heroína. Na linha distensiva encontra-se Faribole. Em Avenida Brasil (2012),
Rita é Coelina é protagonista-vítima e protagonista-heroína, tendo como auxiliar Mãe
Lucinda. Carminha é a antagonista e tem como confidente Max. Na linha distensiva
encontramos as trapalhadas de Cadinho. Em ambas as histórias há um casal, Coelina
e Stephany – Tufão e Monalisa, além de patriarcas que sofrem algum tipo de dano:
Franscique e Genésio.

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Avenida Brasil: uma leitura da telenovela sob a luz do melodrama

Luís Enrique Cazani Júnior

CONSIDERAÇÕES FINAIS
À parte, monólogo, diálogo, informação confidencial, quadro vivo, balé, canção,
peripécia, reconhecimento, catástrofe e golpe de teatro integram tanto o caudaloso
susbtrato do melodrama francês representado aqui por Coelina ou a Filha do Mistério
quanto Avenida Brasil (2012). A telenovela, como uma reelaboração da matriz melo-
dramática, mantém os fundamentos do gênero, apresentando um grau acentuado de
similaridade. Modifica-se a natureza da linguagem permanecendo essa representação
cênica no registro audiovisual.

REFERÊNCIAS
Aristóteles (1966). Poética. Tradução, prefácio, introdução e apêndices de Eudoro de Souza.
Porto Alegre: Editora Globo.
Brooks, P. (1995). The melodramatic Imagination: Balzac, Henry James, Melodrama and the Mode
of Excess. Yale University Press and New Haven and London.
Gazoni, F. M. (2006). A Poética de Aristóteles: tradução e comentários. Dissertação (Mestrado
em Filosofia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP. Recuperado
em 18 de março de 2015, de: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-
08012008-101252/pt-br.php>
Martín-Barbero, J. (2008) Dos Meios às Mediações- Comunicação, Cultura e Hegemonia. Rio de
Janeiro: Editora da UFRJ.
Huppes, I. (2000). Melodrama: o gênero e sua permanência. São Paulo: Ateliê Editorial.
Oroz, S. (1992). Melodrama: o cinema de lágrimas da América Latina. Rio de Janeiro: Rio F. Ed.
Pavis, P. (2011) Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva.
Pixerécourt, R. C. G. (1800) Coelina, ou l’enfant du mystere. França.
Thomasseau, J. M. (2005). O Melodrama. São Paulo: Perspectiva.

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Representações sociais e rearticulações
discursivas na teledramaturgia brasileira
Social representations and discursive
rearticulations in Brazilian teledramaturgy
Daniel e Gross 1

Resumo: Este artigo busca demonstrar o quanto as enunciações televisivas


reverberam a sociedade em que se encontram, rearticulando os discursos nela
existentes. Assim, se a ficção televisiva, desde Beto Rockfeller (Tupi, 1968) trata
sua enunciação de forma realista (KORNIS, 2000), buscando a verossimilhança
em suas representações, abandonando o estilo grandiloquente e fantasioso que
a cubana Gloria Magadan exercia anteriormente, podemos pensar no quanto
essa intersecção ficção-realidade permite que a televisão colabore na constru-
ção de novas realidades e desejos de consumo (MAURO; TRINDADE, 2012a,
2012b). Partindo do conceito de representações sociais (MOSCOVICI, 2013), tam-
bém pensamos a mídia como lugar de representação da memória e da história.
Buscaremos, assim, por análise fílmica e discursiva, demonstrar tais reverbe-
rações, por meio de três programas –todos veiculados pela Rede Globo – da
teledramaturgia nacional: a série Chiquinha Gonzaga (1999), o seriado Antônia
(2006/2007), e a minissérie Suburbia (2012). Assim, a partir dessas análises,
traremos nossas considerações acerca das representações midiáticas e suas
rearticulações, demonstrando a importância que esses discursos têm em meio
a uma sociedade que tanto valor dá à televisão e sua dramaturgia.
Palavras-Chave: Teledramaturgia Brasileira. Representações Sociais.
Rearticulações Discursivas.

Abstract: This paper demonstrates how the television utterances reverbera-


te society in which they are, rearticulating speeches in that area. Thus, if the
television fiction, from Beto Rockfeller (Tupi, 1968) is a realistically enunciation
(KORNIS, 2000), seeking verisimilitude in their representations, leaving the
grandiloquent and fanciful style that Cuban Gloria Magadan it previously, we
think at this intersection as reality-fiction allows television collaborate in the
construction of new realities and consumer desires (MAURO; TRINDADE, 2012a,
2012b). Based on the concept of social representations (Moscovici, 2013), we also
think the media as a place of representation of memory and history. Seek, so for
film and discursive analysis, demonstrate such reverberations through three -all
programs broadcast by Rede Globo - the national television drama: Chiquinha
Gonzaga series (1999), Antonia series (2006/2007), and the miniseries Suburbia (2012).

1.  Mestre em Ciências da Comunicação (ECA/USP) e doutoranda do PPG-Meios e Processos Audiovisuais,


também pela ECA/USP, danielegross@danielegross.com.br.

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Representações sociais e rearticulações discursivas na teledramaturgia brasileira

Daniele Gross

Thus, from these analyzes, we will bring our considerations about media repre-
sentations and their rearticulations, demonstrating the importance that these
discourses are in the midst of a society that gives much value to television and
his dramaturgy.
Keywords: Brazilian Teledramaturgy. Social Representations. Discoursive
Rearticulations.

INTRODUÇÃO
As representações sociais são entidades quase tangíveis. Elas circulam, se entrecruzam e se
cristalizam continuamente, através duma palavra, dum gesto, ou duma reunião, em nosso
mundo cotidiano. Elas impregnam a maioria de nossas relações estabelecidas, os objetos
que nós produzimos ou consumimos e as comunicações que estabelecemos. Nós sabemos
que elas correspondem, dum lado, à substância simbólica que entra na sua elaboração e, por
outro lado, à prática específica que produz essa substância, do mesmo modo como a ciência
ou um mito correspondem a uma prática científica ou mítica (MOSCOVICI, 1961/1976, p.
40-41 apud DUVEEN, 2013, p. 10).

N OSSA LINGUAGEM e nosso conhecimento de mundo são construídos em cima de


“pacotes” discursivos, ou seja, estereótipos, que preveem certa estabilização desses
discursos. Assim, se não é possível operar sem esses estereótipos, para que estes
sejam passíveis de transformação, é necessário que ocorra uma mudança em uma plata-
forma maior que a que envolve esse estereótipo em si, ou seja, nas Formações Discursivas.
Sobre a complexidade das formações discursivas, Gomes nos traz que “é no interior
de uma formação discursiva que os enunciados são concebíveis, ou melhor, que eles
podem encontrar sua existência. Sua significação é rebatimento de um pré-dado de
caráter cognitivo já inscrito na formação discursiva” (GOMES, 2012, p. 8). E, explicando
uma certa colocação hierárquica entre formações discursivas, discursos circulantes e
enunciações, traz que “um discurso, dimensão mais ampla em que os enunciados se
ajeitam, encontra sua razão de ser numa formação discursiva, também uma dimensão
mais ampla do que a de discurso” (Ibidem, p. 9).
Assim, para exemplificarmos a afirmativa de que para um estereótipo sofrer trans-
formações são necessárias mudanças nas formações discursivas, podemos pensar no
ideal do corpo. Antigamente, as mulheres admiradas e desejadas eram as que tinham
um corpo mais rechonchudo; se pensarmos também o corpo masculino, o homem exibir
barriga, até algumas décadas atrás, era sinal de riqueza, de fartura. Hoje, a estereotipia
física para mulheres e para homens mudou, e a magreza tomou conta dos discursos
circulantes e as enunciações que os compõem, tratando a obesidade não mais como
critério atrativo, mas sim como doença, como algo não admirado, tampouco desejado.
Entretanto, quando falamos de minorias sociais como negros, homossexuais e
mulheres – apesar das mudanças nas práticas sociais –, o que observamos é que essas
novas práticas são determinadas ainda por formações discursivas compostas pelos
discursos dos mesmos grupos hegemônicos de antes: brancos, heterossexuais e homens.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

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Representações sociais e rearticulações discursivas na teledramaturgia brasileira

Daniele Gross

O padrão da sexualidade heterossexual está posto de tal forma na sociedade que


os que pertencem a esse grupo têm essa identidade naturalizada e completamente
inserida e aceita na sociedade em que se encontra. Para Silva (2006, p.83) essa
invisibilidade que os grupos hegemônicos possuem não é a mesma que os negros
reclamam em nossa sociedade. Esses são colocados de lado, com menos chances e
oportunidades, nos mais diversos patamares de nossas sociedades. Já a invisibilidade
do heterossexual é a que é carregada junto ao processo de normalização. Essa é a
sexualidade esperada por todos, assim, não há contestações a seu respeito.
Não estamos, com isso, negando a importância das lutas impetradas pelos
movimentos sociais e das conquistas que esses grupos tiveram ao longo da história.
Apenas buscamos, nas análises que aqui trazemos, demonstrar que apesar dessas
conquistas, o imaginário social desses grupos – mulheres, negros e homossexuais –
ainda é determinado pelos grupos hegemônicos, nos três casos, os formados pelo par
dicotômico, de onde vemos surgir os estereótipos a eles associados.
Tal como Salgado (2008, p. 83), ao debater a produção dos sentidos de um texto, nos
lembra – nas noções da Análise do Discurso Francesa –, os discursos são postos como
“[...] práticas discursivas, isto é, como sistemas de restrições semânticas indissociáveis
das práticas sócio-históricas e verificáveis na matéria linguística” (grifos da autora).
Assim, sendo indissociáveis do contexto social e histórico em que se encontram, estão
diretamente vinculados às Formações Discursivas que Foucault nos traz.
Para Foucault (2008), o que faz uma Formação Discursiva sofrer mudanças é o embate
entre o poder e o saber, visto que o primeiro é sustentado pela produção de um
saber sobre o mundo, que é produzido a partir disso. E quando essa conjugação entre
poder e saber é rearticulada, surgem novas formações discursivas. Inúmeros são os
elementos envolvidos nessas formações – uma rede e um equilíbrio bastante sutis e que
cada pequena alteração afeta a todos – e por isso não são mudanças que possam ser
concretizadas no patamar da individualidade, não são dependentes de uma projeção
voluntarista, não é algo que se possa realizar sozinho.
Dessa forma, a mídia também é envolta por essas formações, sendo lugar de
disseminação dos discursos circulantes, disciplinadores da sociedade e que atuam de
certa forma no inconsciente das pessoas, em um processo que reverbera esse poder
circulante – que para Foucault (2007, p. 103) está em toda parte e não tão centralizado
quanto comumente se pensa. A mídia, então, faz rearticulações desses discursos, mas
não os cria.

TELEVISÃO, MEMÓRIA E HISTÓRIA


Se a ficção televisiva, desde Beto Rockfeller (TV Tupi, 1968) trata sua enunciação
de forma realista (KORNIS, 2000, p. 17), buscando a verossimilhança em suas
representações, abandonando o estilo grandiloquente e fantasioso que a cubana Gloria
Magadan exercia anteriormente, então podemos pensar no quanto essa intersecção
ficção-realidade permite que a televisão colabore na construção de novas realidades
e desejos de consumo (MAURO; TRINDADE, 2012a, p. 93).
Ao rearticular os discursos existentes na sociedade, também podemos pensar a
mídia como lugar de representação da memória e da história. Mesmo as narrativas

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Representações sociais e rearticulações discursivas na teledramaturgia brasileira

Daniele Gross

não-documentais, carregam trechos de memória e história. É o que Napolitano trata


por visão objetivista: aquela que decorre de um “efeito de realidade” que o registro
técnico de imagens e sons denota para o espectador (2005, p. 236). No que concerne
aos filmes históricos, que por sua titulação já carregam em si esse efeito de sentido,
Morettin (1993, p. 252) diz que “[…] os filmes de reconstituição histórica são importantes
pelo que dizem do momento em que foram feitos”.
De certo que uma minissérie televisiva não equivale ao chamado “filme histórico”.
Entretanto, acreditamos que é possível fazer tal correlação junto aos programas que
narram representações de personagens reais, trazendo ao público a reconstrução da
vida da pessoa retratada. Chiquinha Gonzaga é exemplo desses programas que realizam
tais construções, e que, mesmo sendo apresentados como ficção, são construídos em
cima de biografias – obras de não-ficção – e depoimentos sobre essas personalidades,
dando, assim, um efeito de sentido de reprodução de uma realidade, de factualidade.
Além disso, ao escolher contar a vida de uma personagem real, a emissora traz
em seus enunciados reconstruções históricas, rearticulações, do período em que tal
personagem viveu.
Para Kornis “[...] o naturalismo é a palavra de ordem na ficção da TV [...]” (2000, p. 10),
e que, dessa forma, a narrativa fictícia televisual potencializa “a confusão entre narrativa
ficcional e reprodução verdadeira dos fatos” (Ibidem). Esse efeito de naturalismo que Xavier
(2008) denomina por transparência, quando o ‘dispositivo’ é ocultado, buscando um
efeito maior de ilusionismo – em oposição ao que denomina como opacidade, quando
o ‘dispositivo’ é revelado ao espectador, possibilitando um ganho de distanciamento
e crítica, rompendo com o efeito de ilusionismo.
A série Chiquinha Gonzaga (Globo, 1999) é um bom exemplo para pensarmos as
representações sociais e seus efeitos de sentido, tanto no que diz respeito aos de uma
representação fiel dos fatos históricos, quanto aos de valores existentes em nossa socie-
dade, como o mito da democracia racial, que já é dado como existente na época retratada
no programa, mesmo que isso seja contrário ao que se conhece da história do período:
em várias cenas – apesar de algumas carregarem o racismo de alguns personagens e
o preconceito racial existente na sociedade daquela época – a série traz situações de
convívio social pacífico e de forte entrosamento entre brancos e negros.
Assim, em uma sociedade escravocrata como a nossa, tendo sido o último país do
continente a abolir a escravatura, parte da vida da protagonista ainda se dá sob esse
regime: nascida em 1847, Chiquinha vivenciará a abolição pela qual lutou, somente aos
41 anos (1888), sendo que boa parte das cenas que aqui debatemos, se dá na primeira
fase da narrativa, com a maestrina aos 16 anos de idade – no tempo diegético, 1863. Ora,
o que é então a enunciação de uma sociedade racialmente democrática, mesmo durante
seu período escravocrata, se não uma forma de discursar sobre um posicionamento que
permeia o senso coletivo do momento da enunciação (1999), evitando, talvez, maiores
manifestações sócio-políticas e fortalecendo o preconceito velado e tão peculiar de
nossa sociedade?
Sobre identidades e representações, Hall (1996, p. 68, grifos do autor) nos traz que:
“Todos nós escrevemos e falamos desde um lugar e um tempo particulares, desde
uma história e uma cultura que nos são específicas. O que dizemos está sempre ‘em

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Representações sociais e rearticulações discursivas na teledramaturgia brasileira

Daniele Gross

contexto’, posicionado. [...] todos os discursos são ‘localizados’ [...]”. Assim também são
os discursos midiáticos, sejam os da teledramaturgia, sejam os das obras de não-ficção.
Assim, quando analisamos discursivamente essas representações de outra época,
quando um programa fala de um tempo que não é o seu, quando carrega um discurso
historicizado, podemos afirmar que essas enunciações sempre serão carregadas pelas
formações discursivas e pelos discursos circulantes do tempo datado de sua enunciação
e não apenas de sua representação, ou do que se conhece como pertencente ao período
retratado. Em outras palavras, quando a série dá como já existente uma democracia racial
em uma sociedade que sequer tinha aprovado a Lei Rio Branco, popularmente conhecida
como Lei do Ventre Livre –, que considerava livres os filhos de mulheres escravas, que
nasceram a partir da aprovação da medida, em 28 de setembro de 1871 –, corrobora a
afirmativa de que um discurso traz em si enunciações de seu tempo, não importando
o tempo diegético da narrativa.
E se é verdade que as minisséries são apresentadas como um produto de ficção
televisiva, também é verdadeiro afirmar que essa ordem naturalista impetrada a seus
produtos é algo elaborado para manter a audiência próxima, buscando vínculos – tal
como as telenovelas.
Se, na afirmativa de Ferro, o filme “vale por aquilo que testemunha” (1976, p. 203),
o mesmo podemos dizer das narrativas televisuais, que, mesmo fictícias, são pautadas
na verossimilhança, sendo, como já tratado, representantes da sociedade em que estão
inseridas.
Se em nossas enunciações ressoam interferências sócio-histórico-culturais, o
mesmo se dá nas representações criadas, seja em nossos discursos do dia a dia, seja
nas construções existentes na nossa teledramaturgia. “A telenovela também deve ser
entendida como um produto cujo discurso é híbrido por natureza. Ela apresenta uma
mistura de sons, imagens, conversas com outras plataformas midiáticas e um misto de
gêneros” (BARBOSA; TRINDADE, 2007, p. 59-60 apud MAURO; TRINDADE, 2012b, p.
172). Ou, como nos traz Possenti, “[...] um texto é tipicamente heterogêneo” (2009, p. 47).
Visto os programas aqui analisados – ressalvadas suas particularidades – terem
estrutura narrativa semelhante à de uma telenovela, aplicamos o mesmo conceito. Assim,
parafraseando os autores citados, diríamos: a teledramaturgia, em seu contexto geral,
deve ser compreendida como um discurso híbrido – ou heterogêneo – por natureza.
Sobre a importância da telenovela [teledramaturgia], Mauro e Trindade também nos
trazem que
Ao fazer parte do cotidiano e da cultura material da nação, a telenovela [séries/seriados],
enquanto obra artística e cultural, funciona como um discurso social e ideológico que reflete
as ideias e as transformações do contexto em que é produzido, integrando um processo dia-
lógico com a realidade. [...] Desse modo, temos na telenovela [séries/seriados] um discurso
sincrético, heterogêneo, dialógico e também ideológico, que tem a possibilidade de atuar
como transformador social (2012b, p. 170-172).

Acreditamos que as afirmativas de Mauro e Trindade também se aplicam aos outros


produtos da nossa teledramaturgia, interferindo, – bem como sofrendo interferência do
–, no dia a dia do brasileiro.

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Representações sociais e rearticulações discursivas na teledramaturgia brasileira

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CHIQUINHA, ANTÔNIA E SUBURBIA: MULHERES MIDIÁTICAS


Assim, ao pensarmos, por exemplo, nos discursos que aparecem em Suburbia, temos
a problematização tanto do morro quanto do subúrbio cariocas, e as dificuldades e falta
de estrutura que possuem, e também debates acerca de drogas, armas, baile funk – e o
símbolo de poder que esse gênero musical tem nesses lugares –, analfabetismo, entre
outros. Além disso, Suburbia problematiza escravidão, racismo, grupos hegemônicos –
estes em consonância à sua (por eles enunciada) suposta superioridade e a subserviência
a que os negros devem ter diante deles, em um sistema ainda escravocrata – mesmo
em fins do século XX: quando Sylvia atropela Conceição e toma uma criança para ser
sua empregada doméstica e babá de seus filhos; quando o namorado da patroa tenta
estuprar Conceição; ou ainda, quando à procura de emprego, a possível patroa só aceita
alguém que durma no emprego e tenha total disponibilidade para os patrões.
Conceição é personagem bastante complexo. Narrativamente, oscila em suas ações:
quando garota, defende-se arduamente no reformatório diante de uma interna que deci-
de escalá-la como “sua nova mulher”, tendo que cuidar dela como uma “esposa o faria”.
A protagonista simplesmente diz que não irá fazer nada daquilo, e diante do ataque de
sua antagonista, encara a luta, vencendo e se posicionando dentro da instituição. Se a
dançarina se posiciona firmemente em seus desejos e propósitos, também mostra-
-se profundamente frágil. Não é algo que é dado somente em termos verbais, mas
na construção da personagem ao longo da minissérie: em alguns momentos – como
quando aceita ser a rainha do baile funk –, sequer pede a opinião do namorado; em
outros, pede autorização ou atende aos pedidos machistas dele, como quando pede
para que ela não use um shorts tão pequeno ou que não dance tão perto dos dançarinos
que a acompanham nos bailes. Por outro lado, a mulher que dança, exibindo o corpo
em roupas bem curtas e justas, com movimentos bastante sensualizados, carrega um
discurso puritano, se mostrando, muitas vezes, como mulher ingênua, sem malícia, e
que se mantém virgem, para se entregar somente depois do casamento. Assim, se por um
lado Suburbia rompe o estereóripo da mulher funkeira, mostrando, por meio de Conceição,
que o fato de estar-se vinculada ao funk, não a torna, obrigatoriamente, mulher vulgar ou
de poucos valores morais, a minissérie também reitera o ideal da mulher carregado em
nossa sociedade até os dias de hoje, que é valorizada por ser virgem, devendo manter
relações sexuais apenas com o homem que ama e que escolheu para casar.
O terceiro programa aqui analisado, Antônia2 é seriado que traz ao debate tanto
questões da desigualdade social, quanto da luta feminista. O programa conta a história
de quatro amigas de infância, moradoras da Vila Brasilândia, bairro da periferia de
São Paulo, localizado na Zona Norte da capital, que buscam o sucesso profissional,
por meio do grupo de rap formado por elas, e que dá nome ao seriado, o Antônia. Preta
trabalha em um posto de gasolina e é mãe de Emília, e ex-mulher de Hermano, com
quem raramente pode contar na criação da filha. A protagonista também mora com
a mãe, Maria, e com o pai, Tobias. Bárbarah sai em liberdade condicional, depois

2.  Baseado em filme homônimo, Antônia teve duas temporadas (2006/2007), ambas com cinco episódios
cada, sendo apresentados às sextas-feiras, às 23h. Mesmo tendo sido veiculado antes do filme que o
inspirou – curiosamente o longa-metragem teve sua estreia em fevereiro de 2007 –, o seriado é uma
continuação da história apresentada na película, tendo seu tempo diegético dois anos depois da narrativa
daquele. Para este artigo, consideramos apenas os episódios da primeira temporada.

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Representações sociais e rearticulações discursivas na teledramaturgia brasileira

Daniele Gross

de dois anos de total reclusão, inicialmente em regime semi-aberto, mas a partir do


segundo episódio, já não precisa mais voltar para o presídio. É ela quem manifesta
o maior desejo em reunir as amigas e resgatar a formação do grupo. Mayah é garço-
nete e cantora do Tangerina Bar e vive um romance com o agente do grupo, Marcelo
Diamante, com quem também trabalha no bar. E Lena trabalha como panfleteira de
farol. Casada com JP, enfrenta diversas brigas por causa do ciúme dele e também pelas
cobranças dele em relação a casa estar abandonada: “Até parece que não tem mulher
nessa casa”, e que Lena responde: “Mulher tem, JP. O que não tem é empregada”.
Preta é a narradora de quase todos os episódios da primeira temporada, exceto no
quinto, em que a garota Emília ocupa a função. O seriado problematiza questões dos
mais variados âmbitos: trabalho, família, amor, saúde, criminalidade. Quando a garota
Emília está com o pai, para que Preta possa participar de um evento na comunidade,
Hermano aparece com a garota, dizendo que não pode ficar com ela naquele dia, pois
“tem que resolver uma parada”. A “parada” é sua participação aos ataques realizados
pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), na cidade de São Paulo, em maio de 2006.
Em seguida, em outro momento em que está com a filha, Hermano, devido ao ataque ao
ônibus, é capturado pela polícia, indo preso. Emília é levada junto com o pai, esperando
a chegada da mãe à delegacia, entrando em contato com um ambiente socialmente tido
como não apropriado a uma criança.
Pensando nos gêneros televisivos, o que se espera de um programa de ficção é uma
narrativa que traga personagens coerentes, com conflitos que sejam construídos e solu-
cionados ao longo da trama, mas mantendo uma linearidade que acentue a naturalidade
tão presente nesses programas, de forma a prender a atenção do público. Dentro de uma
gama de possibilidades, essas enunciações são dadas de acordo com o tipo de drama
construído em cada programa, variando desde os chamados dramalhões, narrativas em que
a mocinha sofre bastante, até chegar a um final feliz; até outras, carregadas em comédia
– mas que também apresentam conflitos que serão solucionados até o último capítulo.
Posto dessa forma, acreditamos que além das questões do gênero (teledramaturgia) e
seus formatos, quando pensamos nas personagens e suas construções, também podemos
pensar nas cenas de enunciação que são postas na teledramaturgia brasileira: uma história
com um protagonista (às vezes mais de um, como no caso de Antônia) central, que passará
por um ou mais conflitos, que serão solucionados no passar dos episódios – muitas vezes
com novos obstáculos, que também serão vencidos, até se chegar a um encerramento com
final feliz [cf. Propp, 2010]. As cenas de enunciação são, assim, validadas pelas cenografias
construídas ao longo dos episódios/capítulos.
Se em um primeiro momento, poderíamos pensar em Conceição como uma mulher
menos real que Preta ou Chiquinha – afinal uma funkeira com comportamento pudico,
como nos é dado, não é algo que preenche o estereótipo a que estamos acostumados
sobre essas mulheres que frequentam os bailes funks –, por outro podemos encarar
Conceição exatamente como alguém que rompe esse estereótipo.
E se comumente vimos, na teledramaturgia brasileira, negros em situação de
subserviência, ocupando lugares sociais pouco valorizados, como bem demonstra
Araújo (2004) – um quadro que vem mudando nos últimos anos, mas que é reiterado
no seriado –, Suburbia também nos traz outra ruptura estereotípica: uma família negra

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Representações sociais e rearticulações discursivas na teledramaturgia brasileira

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formada por pessoas trabalhadoras e honestas, com pai, mãe, filhos e netos unidos e
felizes. Um perfil bastante divergente do que vimos nas representações da periferia
e/ou favela; um estereótipo familiar, bastante recorrente nas representações midiácias
e que também pode ser visto em Antônia.
Preta é mulher bastante possível fora do aparelho de TV, reiterando a verossimi-
lhança a que estamos acostumados, ao trazer as angústias da mulher que cria os filhos
sozinha, que precisa se endividar para conseguir cobrir as necessidades tanto da casa
quanto da educação e bem-estar de Emília, pouco ou nada podendo contar com o ex-
-marido – reafirmando assim o perfil de mulheres, que diante do abandono do mari-
do, assumem a chefia da casa (algo bastante recorrente na sociedade brasileira). E se
Conceição rompe o estereótipo da típica funkeira, reafirma o das mulheres que “se guar-
dam para um homem decente” que as ame e com quem esperam construir uma família.
A trilha Sonora desses programas também nos traz possibilidades analíticas das
representações sociais constrúidas nessas enunciações. Antônia traz o rap nas vozes
das quatro protagonistas, com letras que problematizam a mulher na nossa sociedade,
bem como questões da favela e da política. O seriado também traz a participação de
outros rappers, como Marcelo D2 e cantores de pagode (sem dar destaque a algum artista
famoso). O feminismo e a luta das mulheres são debatidos na canção Flow, composição
do grupo:
Pra cada ação, uma reação.
O poder da palavra tá na nossa mão.
Bem alto, ressalto:
Mulher, liderando a situação

Em outro momento, quando o quarteto se une a um trio de pagode, e cantam juntos


O som que bate (Antônia) e A favela é um problema social (composição de Noca da Portela e
S. Mosca, também gravada por Bezerra da Silva, em Presidente Caô Caô, 1995; e por Seu
Jorge, em Cru, 2005), temos a seguinte mescla:
O som que bate forte
Move e une a quebrada
Quem só falha
Escuta o som e se desarma
A favela é um problema social
A favela é um problema social

Assim, os discursos dados pelas músicas desses programas nos traz um seriado
(Antônia) em que as canções nele apresentadas debatem questões sociais e políticas. Já
em Chiquinha, a trilha é composta por músicas da maestrina, que transpõe sua ousadia
também para seu estilo musical, quando mescla gêneros musicais tidos como “baixos”,
por estarem presentes em “rodas de negros”, com músicas mais tradicionais, do gosto
da elite da época. Suburbia, por sua vez, traz todo o protagonismo de Conceição marcado
por uma trilha sonora composta por músicas de Roberto Carlos. Mesmo existindo outros
intérpretes e gêneros no seriado, como uma música estilo swing, da década de 1970 na
abertura, e o funk dos bailes (também tocado na casa da família que adota Conceição),

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Representações sociais e rearticulações discursivas na teledramaturgia brasileira

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o protagonismo de Conceição é marcado por esse cantor romântico, de grande sucesso


nacional e famoso por suas canções tanto de amor quanto as carregadas de religiosidade.
Letras tradicionalistas, que mantêm uma representação do feminino, tal como a existente
em nossa sociedade no início do desenvolvimento da televisão no Brasil (anos 1970/1980).
A minissérie também apresenta discursos oníricos – uma égua cega durante o dia,
mas que tudo vê durante a noite; a ressureição de Cleiton, que diante da nova vida, se
torna um homem religioso –, trazendo, inclusive, confusões em seu tempo diegético, mas
não por isso impede que seu enunciado carregue valores sociais desses momentos de
nossa sociedade ou mesmo que rompa com estereótipos do nosso imaginário. Em outras
palavras: mesmo com certas confusões históricas, Suburbia não perde a possibilidade
de representação de discurso histórico – como o faz em relação ao subúrbio e o morro
cariocas e também nas reconstruções de nossa sociedade por meio de gêneros musicais.
Refletir sobre os modos de construção é bastante relevante em quaisquer análises
que aqui traçarmos. Na narrativa ficcional, não importa se seu conteúdo é fantasioso –
como as criações de Luiz Fernando Carvalho, diretor de Suburbia, ou mesmo de Dias
Gomes, conhecido por seu realismo fantástico –, ou se busca uma reprodução mais fiel
dos lugares representados – caso de Antônia e Chiquinha Gonzaga –, mas sim, que sua
narrativa possua uma coerência interna, afinal, como nos traz Maingueneau, os discursos
possuem leis, que devem ser obedecidas.
Tais ‘leis’ que desempenham um papel considerável na interpretação de enunciados são
um conjunto de normas que cabe aos interlocutores respeitar, quando participam de um
ato de comunicação verbal [...] Pelo simples fato de serem supostamente conhecidas pelos
interlocutores, as leis do discurso permitem a transmissão de conteúdos implícitos. [...]
Assim, o leitor será levado a inferir uma proposição implícita, denominada implicatura,
baseando-se no postulado de que as leis do discurso são respeitadas pelo autor [...] (2013,
p. 35-36, grifos do autor).

Ou seja, mesmo sendo uma narrativa onírica, Suburbia tem uma implicatura que carre-
ga em si uma pressuposição de honestidade por parte de seu enunciador. Assim, ser uma
obra de ficção – mesmo quando adaptada de uma obra não-ficção (Chiquinha Gonzaga) –,
carrega uma implicatura de cumprir com o gênero ficcional e não uma obrigatoriedade
de correspondência factual, visto que, apesar de ser “baseado em fatos reais”, ainda é
uma obra de ficção. No caso da programação brasileira, implica em ter um(a) protago-
nista ou um par romântico, que passará por dificuldades e conflitos a serem vencidos
ao longo da narrativa. É isso que o público espera: um programa de entretenimento,
com uma narração que o prenda, dia após dia – característica do romance que Foster
(2005) traz como principal (prender seu público, seja no final de cada capítulo, quando
da construção em livro; seja no final do episódio, quando em folhetim).
Se temos como característica uma teledramaturgia que busca uma narrativa com
verossimilhança ao nosso dia a dia, ou aos períodos representados, esses programas
continuam sendo ficcionais: os contratos estabelecidos com seu público não têm
implicações históricas ou factuais. Podem trazer tais características, mas a não-presença
não implica em ruptura contratual, visto que continuam cumprindo com o acordado,
criando programas de entretenimento e que prendam a atenção de seu público.

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Representações sociais e rearticulações discursivas na teledramaturgia brasileira

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Isso posto, ao analisarmos as possibilidades de reconstrução histórica dessas enun-


ciações, para refletirmos, enfim, sobre as cenografias construídas e as implicações – his-
tóricas ou não – que esses programas carregam, quando pensamos no lugar (topogra-
fia) e no tempo (cronografia) construídos, nos perguntamos: será que representações
de tempos diegéticos contemporâneos aos períodos de suas veiculações tornam mais
fáceis as enunciações dessas cenografias? Será que as representações de outras épocas
sempre correrão o risco de erros históricos – não estamos, com isso, desconsiderando
as rearticulações carregadas dos períodos em que se enunciam? Ou não, uma coisa não
está implicada na outra?
Das análises aqui apresentadas, pensamos que as cenografias de enunciações que
não são construções de outra época são mais fáceis de se rearticular – afinal é menos
complexo falar de um lugar em que se está inserido, em um contexto já naturalizado e
instituído, visto os enunciadores serem também produtos dessas culturas que enunciam,
do que representar um período desconhecido. Além disso, todo discurso carrega em si,
características de seu tempo, como já exemplificamos em Chiquinha Gonzaga.
Ser fantasioso, como já debatido, não anula as características da verossimilhança.
Assim, para que um enunciado tenha incorporação discursiva, basta que tenha coerência
narrativa, não importa se por meio de personagens possíveis, ou por outros que rompam
estereótipos, ou ainda por meio de criações fantasiosas, bastando que tais discursos
correspondam ao imaginário coletivo – do contrário, não poderão ser assimilados. Como
exemplo, por meio do realismo fantástico de Dias Gomes, pensemos as enunciações de
Saramandaia: explodir a dona Redonda, porque esta come muito, não é algo passível
de concretização, mas é temática que está presente em nossa sociedade, recortada por
um padrão de beleza magro, que não vê na obesidade encanto ou sensualidade. Ora,
se é certo que ninguém explode de tanto comer, também é certo que os temores sobre
esse tema foram construídos com bastante linearidade, estando também presentes em
expressões populares como “explodir de tanto comer”. Além do mais, mesmo que a
novela possua outros personagens fantasiosos, tem, verossimilhança, tanto discursiva
quanto cenográfica.
Características também presentes em Suburbia, que apesar de uma narrativa algumas
vezes fantasiosa, traz uma enunciação verossímil, tanto do subúrbio carioca, quanto
das mulheres presentes nesse lugar: a mulher que se converte e se torna religiosa (Vera),
passando a ter uma moral rígida; a típica funkeira (Jéssica), que faz uso de seu corpo para
ganhar poder e destaque social na comunidade em que está inserida; a moça do interior,
que vence a violência impetrada por uma sociedade desigual, mas que mantém a pureza
(Conceição/Suburbia). Verossimilhança também carregada em Cleiton: o garoto que cai
na criminalidade e se salva pela religião – aqui, o seriado também traz em sua enun-
ciação, um valor social bastante recorrente em uma sociedade religiosa como a nossa,
de que a fé e a conversão do pecador operam milagres. Suburbia também apresenta em
seus discursos uma democracia religiosa, bastante recorrente na sociedade brasileira:
Vera professa uma religião pentecostal; seus pais são umbandistas; Conceição é católi-
ca. A minissérie também debate as dificuldades de emprego e estabilidade financeira
(Conceição consegue se estabelecer por meio do funk e do samba, mas tem dificuldade
em conseguir um emprego formal) dos negros na sociedade brasileira e também traz

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Representações sociais e rearticulações discursivas na teledramaturgia brasileira

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bastante verossimilhança ao apresentar a alegria de parte da nossa sociedade (periferia/


subúrbio), ao nos trazer suas músicas e festas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os três programas aqui analisados têm como temas centrais de suas tramas as
angústias e alegrias de dois grupos socialmente minoritários específicos: as mulheres
e os negros. Em Chiquinha Gonzaga, ambas problematizações são explícitas, tanto
pela protagonista, quanto por meio de seus adjuvantes e antagonistas. E se Antônia
debate intensamente as dificuldades das mulheres, problematiza também as questões
da negritude de forma mais indireta, ao colocar as dificuldades sociais que quatro
mulheres negras têm em nossa sociedade, sem, para tal, apresentar discursos explícitos
acerca de racismo e dos preconceitos que homens e mulheres negros enfrentam na
sociedade brasileira. E, em Suburbia, como já tratado, as questões das dificuldades
desse grupo são apresentadas também por discursos não explicitados, mas nem por
isso menos importantes ou pouco problematizados.
A circulação dos discursos midiáticos em nossa sociedade é algo debatido intensa-
mente. A intersecção ficção-realidade existente nos programas da nossa teledramaturgia
permite uma reflexão sobre a importância que esses discursos têm na construção de
novas realidades e desejos de consumo. Ao trazer questões de grupos não-hegemônicos,
a televisão se firma como veículo de debates sociais, podendo tanto ser caminho de
afirmação dos estereótipos, quanto de contraestigmatização dos mesmos.
Temos assim, em Suburbia, uma funkeira (Conceição) que não cumpre com o estereó-
tipo, com uma antagonista (Jéssica) que o faz; em Chiquinha Gonzaga, uma feminista que,
em nome de sua carreira e liberdade, abre mão de estar com seus filhos, frequenta rodas
de dança dos escravos, e vende partituras para comprar a carta de alforria de um garoto;
e em Antônia, mulheres que buscam um lugar na sociedade por meio de suas músicas e
que, nessas tentativas debatem, entre outros temas, o lugar de submissão que a mulher
é colocada, a favela, a dificuldade em se recolocar no mercado de trabalho depois de
ser presa. Programas que, ao trazerem essa intersecção, reverberam a sociedade em que
estão inseridos, seja por meio de representações de fatos reais de nossa sociedade, seja
por meio da criação de outros momentos, mas que por serem ficcionais não são menos
representantes da sociedade em que estão inseridos.

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Representações sociais e rearticulações discursivas na teledramaturgia brasileira

Daniele Gross

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Chiquinha Gonzaga. Série, com 38 capítulos. Direção: Jayme Monjardim. Roteiro: Lauro César
Muniz. Rede Globo de Televisão. Exibição: 12 jan. a 19 mar. 1999.
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Blota: Autoria: Dias Gomes. Exibição: 03 maio 1976 a 30 dez. 1976.
Suburbia. Minissérie, em oito episódios. Direção: Luiz Fernando Carvalho. Roteiro: Luiz
Fernando Carvalho, Paulo Lins e Carla Madeira. Rede Globo de Televisão. Exibição:
01 nov. a 20 dez. 2012.

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Telenovela e midiatização de classe social
Telenovela and social class mediatization
Rosa na M au ro 1

Resumo: Este artigo propõe uma discussão sobre o papel da telenovela brasileira
na midiatização de classe, com o aporte dos estudos de midiatização, comuni-
cação e classe social. O trabalho traz um estudo sobre a representação de uma
parcela da população, que ascendeu financeiramente e tornou-se conhecida
como “nova classe C”, nas tramas Avenida Brasil (2012) e Cheias de Charme (2012),
produzidas a pela Globo. A análise aponta que o discurso dos trechos escolhidos
trouxe aspectos que condizem com o pensamento hegemônico neoliberal sobre
classe social, bem como elementos típicos da telenovela no modo de tratar o
tema, além de características consideradas inovadoras no sentido de represen-
tarem essa parcela da população de acordo com o que os sociólogos discorrem
sobre ela. A partir desses resultados, este trabalho pretende comentar, de forma
sucinta, o papel da mídia e da telenovela no conhecimento social sobre classes
sociais e contextualizar tal estudo no quadro de pesquisas com enfoque similar
no campo da comunicação.
Palavras-chave: Telenovela. Midiatização. Classe social. Nova classe C. Discurso.

Abstract: This paper suggests a discussion about the role of Brazilian telenovela
in the mediatization of social classes, with the contribution of studies of media-
tization, communication and social class. This work brings a study about the
representation of a portion of the population, who rose financially and became
known how “the new C class”, in the telenovelas Avenida Brasil (2012) and Cheias
de Charme (2012), produced by Globo. The analysis points that the discourses of
the chosen scenes indicate characteristics that are related with the hegemonic
social view, as well as elements connected with the own manner of telenove-
la treat the social classes, beyond aspects that are connected with the reality
commented by sociologists and that indicate changes in the usual way of the
telenovelas portray the social differences. From these results, this paper intends
to discuss, briefly, the role of the media and the telenovela in the knowledge
about social classes and contextualize this study in the researches with similar
focus in the communication field.
Keywords: Telenovela. Mediatization. Social Class. The New C Class. Discourse.

1.  Doutoranda do Programa de Ciências da Comunicação da Escola de Comunicações e Artes, Universidade


de São Paulo – USP, Brasil e mestre em Ciências da Comunicação pela mesma instituição. Email: mauro.
rosana@gmail.com.

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Telenovela e midiatização de classe social

Rosana Mauro

INTRODUÇÃO

E STE ARTIGO se originou da dissertação de mestrado Aspectos da midiatização do


consumo e do sentido de classe social na telenovela: a representação da “nova classe C”,
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da
Universidade de São Paulo (Mauro, 2014), que estudou as telenovelas Avenida Brasil
(2012), de João Emanuel Carneiro, e Cheias de Charme (2012), de Filipe Miguez e Izabel
de Oliveira, transmitidas na Rede Globo. Foram i analisados os discursos de três cenas
de cada trama, com metodologia fundamentada na concepção marxista de materialis-
mo histórico e dialética, com a qual estão relacionadas as teorias utilizadas do filósofo
da linguagem Mikhail Bakhtin, da Análise do Discurso Francesa e da Análise do
Discurso Crítica.
O objetivo geral da pesquisa foi averiguar de que forma a chamada “nova classe C”,
ou “nova classe média”, expressão lançada pelo economista Marcelo Neri (2010), estava
sendo representada nas duas teleficções e discutir a validade sociológica do termo “nova
classe C”.
Este artigo irá apresentar a pesquisa realizada, a metodologia e resultados alcan-
çados para, assim, contextualizá-la e discuti-la, trazendo acréscimos de um ponto de
vista posterior à realização do trabalho.

MIDIATIZAÇÃO E CLASSE SOCIAL


De acordo com o projeto Vozes da Classe Média (2012) da Secretaria de Assuntos
Estratégicos (SAE) do Governo Federal em parceria com a Caixa Econômica Federal
(CEF) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), nos 10 anos
anteriores a 2012, 37 milhões de pessoas entraram na classe média – que passou de 38%
da população, em 2002, para 53%, em 2012, somando na época mais de 100 milhões de
brasileiros. Ainda segundo o projeto, dos 37 milhões de pessoas a mais na classe média,
oito milhões resultaram do crescimento natural da população (diferença entre a taxa
de natalidade e a taxa de mortalidade de um determinado local ou país) e 29 milhões
se devem ao processo de ascensão social (Vozes da Classe Média 2012, p.13).
Essa ascensão passou a fazer parte da representação teleficcional, como apontam as
pesquisadoras Maria Immacolata Vassallo de Lopes e Maria Cristina Palma Mungioli (2012),
ao abordar o desejo da “nova classe média” por representação na mídia, de um modo geral,
e especialmente na televisão e telenovela, o que se configurou em desafio para a ficção.
A tomada de decisão por parte das redes em tornar a programação da televisão mais popu-
lar não deve ser entendida como simplificação ou produção de conteúdos mais apelativos,
mas antes como um processo bastante difícil de incluir novas vozes ou demandas nessa
programação. (Lopes; Mungioli, 2012, p. 130).

É pertinente ressaltar que foi a mídia jornalística que atribuiu a Avenida Brasil e
Cheias de Charme os papéis de representantes dessa parcela da população brasileira
que ascendeu financeiramente. Matérias de jornais e revistas abordavam o assunto,
indicando o potencial da telenovela em originar pauta para a imprensa jornalística, como
demonstra a pesquisa de Maria Lourdes Motter (2003), e também gerar determinado
conhecimento sobre o que seria essa “nova classe C”.

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Telenovela e midiatização de classe social

Rosana Mauro

Nesse sentido, o conceito de midiatização é oportuno para discutir a representação


de classe social na teleficção. De um modo amplo, “[…] midiatização é um conceito usado
para analisar criticamente a inter-relação entre mudanças na mídia e comunicações por
um lado, e mudanças na cultura e sociedade, por outro” (Couldry; Hepp, 2013, p. 197).
O pesquisador brasileiro José Luiz Braga (2006) argumenta que estamos vivendo
uma transição entre um processo interacional de referência da escrita para um processo
interacional de referência midiatizado de base tecnológica. De acordo com o autor, a
midiatização pode ser relacionada a processos específicos que passam a se desenvolver
de acordo com a mídia, como política, entretenimento, consumo, e também pode estar
relacionada a um nível maior, no sentido da própria sociedade estar midiatizada. É
possível afirmar que a televisão e a telenovela no Brasil têm papel fundamental nesse
processo.
O trabalho partiu do pressuposto da midiatização com a proposta de analisar como
essa “nova classe” estava sendo representada nas duas tramas. Para isso, em um primeiro
momento, foi preciso discutir teoricamente o conceito de classe social e a validade
sociológica da expressão “nova classe C”.
De acordo com o sociólogo Jessé Souza (2012), os brasileiros que entraram para o
mercado de consumo nos últimos anos não fazem parte de uma “nova classe média”,
e sim de uma nova classe trabalhadora, denominada por ele como batalhadores, situ-
ada entre a classe média e alta e ao que ele chama provocativamente de “ralé” para se
referir aos excluídos. Na visão do autor, a ideia de uma nova classe média faz parte de
um discurso pertencente àqueles que vendem o mundo neoliberal existente como o
melhor e acreditam em um Brasil que está entrando para o primeiro mundo, “[...] onde
as ‘classes médias’, e não os pobres, os trabalhadores e os excluídos, como na periferia
do capitalismo, formam o fundamento da estrutura social” (Souza, 2012, p.20).
O estudioso afirma a existência de outros fatores característicos de uma classe social,
além do poder de consumo. Considerar apenas a renda e o poder de compra faz parte de
um pensamento hegemônico neoliberal que desconsidera as contradições, desigualdades
e lutas de classes na sociedade. Assim, Jessé Souza defende o caráter simbólico na
formação das classes sociais, de acordo com as contribuições do teórico Pierre Bourdieu
(2007), cujas teorias chamaram a atenção para elementos como capital cultural e habitus
de classe. A classe social para este pensador não é definida por uma propriedade, nem
por uma soma de tipos de propriedade, nem por uma cadeia de propriedades, mas pela
estrutura das relações entre todas as propriedades que confere valor a cada uma delas
e aos efeitos que essa relação exerce sobre as práticas (Bourdieu, 2007).
Os argumentos de Souza (2012) encontram respaldo na pesquisa da socióloga e
estudiosa da telenovela Veneza Ronsini (2012). A autora enfatiza a importância do estudo
do sociólogo a respeito da naturalização das desigualdades sociais e frisa, inclusive, que
o exame das telenovelas confirma a tese sobre as alianças simbólicas entre classe alta,
classe média e popular, excluindo aquilo que o autor chama provocativamente de “ralé”.
De acordo com Ronsini, a telenovela reafirma a ideologia do desempenho e meritocrática,
ao desvincular os personagens das vivências de classe e expor que a ascensão social
depende de um esforço próprio, das relações pessoais ou de certa moralidade.

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Telenovela e midiatização de classe social

Rosana Mauro

Antes da análise discursiva, foi possível identificar aspectos comentados por Ronsini
em Avenida Brasil e Cheias de Charme. Mas, era preciso averiguar as especificidades
discursivas das duas tramas. O que seria puramente midiático? Quais aspectos dialogam
com a realidade social discutida pelos sociólogos e com a visão econômica hegemônica?
E quais aspectos discursivos apontariam para mudanças?
Discutir a midiatização do consumo e do sentido de classe social nesse contexto
nos exigiu considerar a mídia dentro do processo histórico-social da qual faz parte
para entendermos o seu papel na sociedade neoliberal hoje. Como argumenta o teórico
Raymond Williams (2011), os meios de comunicação são meios de produção porque a
comunicação e seus meios materiais são intrínsecos às formas humanas de trabalho e
de organização social. Por esse ponto de vista, este estudo retornou ao materialismo
histórico e à dialética marxista para situar socialmente o homem, sua produção e lin-
guagem a fim de e partir, assim, para a análise discursiva.

METODOLOGIA E RESULTADOS
A metodologia adotada utilizou conceitos do filósofo marxista da linguagem
Mikhail Bakhtin (2002, 2003, 2010), como a concepção de gênero e o signo ideológico;
da Análise do Discurso de vertente francesa, AD; e da Análise do Discurso Crítica de
vertente inglesa, ADC.
Da AD o principal autor adotado foi Dominique Maingueneau (2004) com o conceito
de ethos, reformulado do ethos do filósofo Aristóteles. Trata-se do orador, cuja postura
extrapola o texto em si e situa em seu meio circundante a imagem que este orador quer
construir sobre si mesmo frente a um auditório, desencadeando possíveis reações. Para
o autor, o ethos é como um fiador do que é dito, uma espécie de voz que não está explí-
cita no enunciado e por isso mesmo é eficaz. O ethos pode ser construído pelo público
a partir de um conjunto de indícios.
A ADC, que tem Norman Fairclough (2001) como um dos expoentes, foi utilizada
como estrutura de análise. Segundo Fairclough, o discurso é um modo de ação sobre o
mundo e sobre as pessoas, uma prática social não só de representação do mundo, mas
também de significação dele.
O estudioso considera o discurso em uma relação dialética com a estrutura social,
assim como a estrutura social e a prática social, pois a primeira é uma condição e um efeito
da segunda. Segundo o teórico, o discurso contribui para a construção de identidades
sociais e posições de sujeito, para construir relações sociais entre as pessoas e para a
construção de sistemas de conhecimento e crença. Essas três funções são denominadas
pelo autor, respectivamente, como identitária, relacional e ideacional.
Tais definições passam por transformações ao longo dos estudos deste teórico e
são redefinidas como significações identificacional, acional e representacional, como
apontam comentaristas da obra de Fairclough:
O significado acional focaliza o texto como modo de (inter) relação em eventos sociais,
aproxima-se da função relacional, pois a ação legitima/questiona relações sociais; o sig-
nificado representacional enfatiza a representação de aspectos do mundo – físico, mental,
social – em textos, aproximando-se da função ideacional; o significado identificacional

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Telenovela e midiatização de classe social

Rosana Mauro

refere-se à construção e à negociação de identidades no discurso, relacionado-se à função


identitária (Resende; Ramalho, 2005, p. 40).

Além disso, Resende e Ramalho (2005) argumentam que em obra posterior à Discurso
e mudança social (2001), Fairclough faz uma correspondência entre ação e gêneros,
representação e discurso e identificação e estilos.
O protocolo metodológico foi elaborado com base nesses conceitos citados. Assim,
o significado representacional, que gera sistemas de conhecimento e se relaciona ao
discurso, nos foi possibilitado mediante a análise do significado identificacional – no
qual levantou-se o ethos, que pôde ser apreendido pelo estilo do texto – e a análise do
significado acional, no qual se encontram os elementos do gênero, e que constituem
aspectos especificamente discursivos de maneiras de ação (Resende; Ramalho, 2005).
O protocolo metodológico foi construído da seguinte maneira:
• Levantamento de aspectos da prática discursiva, no que se refere à condição de
produção da telenovela, a enunciação: Descrição geral das telenovelas Avenida Brasil
e Cheias de Charme e suas narrativas, principais personagens e acontecimentos.
• Descrição geral das cenas escolhidas, transcrição dos diálogos.
• Análise textual/dos enunciados selecionados e descritos, de acordo com as signifi-
cações e associações realizadas por Fairclough: correspondência entre significação
acional e gêneros, representação e discurso e identificação e estilos (Resende;
Ramalho, 2005).
• As significações foram aplicadas da seguinte forma:
• Significação acional: foram analisados aspectos atrelados ao gênero discursivo, ou
seja, a estrutura da cena, a linguagem verbal e audiovisual, a interação entre os
personagens e, quando se mostrar relevante, a composição do cenário e as roupas
dos personagens em questão.
• Significação identificacional: de acordo com os levantamentos na análise acional,
os ethé discursivos foram delineados, de forma a entender quais são as vozes por
trás da cena.
• Significação representacional: definição dos discursos principais, mediante os
ethé discursivos. Como esses discursos se relacionam com a prática social, as
ideologias por trás da noção de “nova classe C”.

As três cenas de cada teleficção foram selecionadas de forma intencional , de acordo


com a pertinência para o tema, como cenas que aludiam a uma situação de consumo.
Em Avenida Brasil, o foco foi na família do personagem Tufão (Murilo Benício), e em
Cheias de Charme nas três empregadas protagonistas, Maria da Penha (Taís Araújo),
Maria Rosário (Leandra Leal) e Maria Aparecida (Isabelle Drummond).
Passemos, então, para um resumo dos resultados obtidos. Não é objetivo deste artigo,
até mesmo por uma questão de espaço, expor todas as etapas seguidas.
A primeira cena selecionada de Avenida Brasil, intitulada no site oficial da trama de
“Carminha reclama da comida de Janaína”, revela o discurso que pretende mostrar as
contradições de uma família que enriqueceu repentinamente e continua com o mesmo
capital cultural de origem – simples e popular. Essa representação dialoga com a prática

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

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Telenovela e midiatização de classe social

Rosana Mauro

social deduzida das teorias do sociólogo Jessé Souza (2012), que aclara o fato da nova
classe trabalhadora não ter tido acesso ao capital cultural da classe média. Na segunda
cena “Jorginho não se lembra de Cadinho”, o que se sobressai é a demonstração das
disposições sociais no seio familiar. Ou seja, a postura popular e o baixo capital cultural
estão atrelados à herança de família e não dizem repeito a atributos individuais. Em
“Muricy reclama de filme indicado por Nina”, tem-se um discurso que exibe a populari-
dade, por um viés cômico, de um gosto estético atrelado ao consumo de bens e produtos
culturais, desvinculados do julgamento cultural considerado legítimo e dominante,
pois os personagens principais da cena apresentam o capital cultural de sua classe de
origem, não conhecem e não reconhecem a cultura dita legítima e exprimem um modo
próprio de ver a obra de arte, no caso os filmes discutidos.
Em Cheias de Charme, a primeira cena se chama “As Marias fazem um pacto”, cujo
discurso remete ao economicismo dominante discutido por Jessé Souza (2012) e ao
personalismo no modo de tratar as diferenças elucidado por Ronsini (2012). Já no tre-
cho “Penha vibra com a casa reformada”, há um discurso popular que mostra a casa
reformada de uma mulher trabalhadora que conseguiu melhorar de vida, apesar das
adversidades, como a malandragem de seu marido. Uma mulher que se mantêm fiel
às suas raízes, que é popular e feliz em sua comunidade, um lugar simples, humilde,
mas animado. Na cena “Sônia e Máslova ficam horrorizadas com as ironias de Penha”
é nítido o tom romântico, semelhante a um conto de fadas, com a inversão de papéis,
na qual as ex-patroas más servem as ex-empregadas boas. Não há referências ao per-
tencimento de classe, a questão é representada pelo viés das relações pessoais. Assim,
na significação representacional, o discurso dessa cena relaciona-se com a ideologia
meritocrática e do desempenho (Ronsini, 2012), pelo ethé individualista e personalista e
pela ironia da inversão de papéis na loja, transmitida de modo idealizado e romântico,
o que é peculiar ao gênero melodramático de um modo geral.
A análise de Avenida Brasil mostrou a predominância do ethos popular e cômico,
vinculado às disposições de origem da família e a um capital cultural de classe popular.
Houve diálogo, de um modo geral, com o que Jessé Souza (2012) atribui às novas classes
trabalhadoras em sua pesquisa. Apesar disso, percebeu-se a reprodução de posições
hegemônicas de um modo geral, na prática discursiva presente na narrativa. Porém, tal
reprodução não se mostrou relevante no discurso analisado em si. É importante res-
saltar que o aspecto popular transmitido em Avenida Brasil se entrelaça à simulação do
gênero primário – diálogos informais e corriqueiros, que constituem gêneros discursivos
mais complexos, como explica Bakthin (2003) – dentro da telenovela, pois, a conversa
informal, trivial e corriqueira foi recorrente nas três cenas e indicaram a familiaridade
e os modos populares dos personagens. As falas altas e ao mesmo tempo reforçam a
informalidade. Acredita-se que, pelos aspectos levantados, há indicações de inovação
na simulação do gênero primário dentro de Avenida Brasil. Ainda que tal afirmação exija
maior aprofundamento, existe a percepção indicativa e sugestiva de tal dado.
Há indícios de que a telenovela inovou no modo de tratar as desigualdades e a
nova classe trabalhadora, como o fato da maioria dos personagens serem do Divino e a
convivência no bairro suburbano ser bastante explorada na trama. Além disso, houve a
inclusão da classe social chamada por Jessé Souza provocativamente de ralé (SOUZA,

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Telenovela e midiatização de classe social

Rosana Mauro

2012), com a representação do lixão, que coloca em cena os indivíduos que vivem da
ritualização do descarte do consumo alheio como lugar social de significação menor.
A oposição entre ricos e pobres de maneira individualista, fora do contexto social, foi
menos marcada nessa telenovela. O enriquecimento da família de Tufão não se fez
central na narrativa. Houve maior exploração do cotidiano da família e dos costumes
populares dos personagens no contexto de classe.
A trama Cheias de Charme, por sua vez, aponta para um discurso mais tradicional
comum à telenovela na representação de classe, sendo Maria da Penha a única das três
empregadas principais que mostra vínculo com a vivência de classe, reforçado pela
comunidade Borralho, o que se relaciona em determinados aspectos com o que Jessé
Souza (2012) argumenta sobre a nova classe trabalhadora.
Apesar disso, Cheias de Charme trouxe à tona a centralidade do emprego domés-
tico em sua trama, o que não é comum nas telenovelas. Porém, a forma narrativa e as
cenas analisadas trouxeram a predominância do individualismo, da supremacia das
relações pessoais e do moralismo no tratamento das classes sociais, e a reprodução das
desigualdades em um tom humanizado (Ronsini, 2012). Tudo isso embalado por um
tom romântico e idealizado. Esses dados corroboram com o modo característico da
telenovela tratar as desigualdades (Ronsini, 2012) e também com o modo individualista
e economicista de enxergar as diferenças sociais (Souza, 2012).

NOVAS REFLEXÕES
A partir desses resultados é possível pensar e discutir o papel da telenovela nesse
processo de midiatização de classe e apresentar uma pequena contribuição a mais ao
trabalho já realizado.
É importante expor que nas duas telenovelas houve elementos que corroboram
com a visão hegemônica de classe social na sociedade capitalista atual, características
comuns à telenovela na forma de tratar as desigualdades e aspectos que partilham da
visão dos sociólogos sobre o que seriam as classes sociais, o que pode ser considerado
como certa inovação. Temos então a telenovela como reprodutora de um pensamento
hegemônico, no sentido discutido por Gramsci (1971), não de forma engessada, mas
como um espaço de lutas, no qual mudanças também podem ser refletidas.
Sugere-se que, como parte de um sistema midiático, as telenovelas aqui expostas
colaboraram, assim, para um tipo de conhecimento do que seria a nova classe trabalhadora
brasileira. Elas cooperaram para a construção de um conhecimento do brasileiro sobre
ele próprio e sua nação, o que corrobora com a visão de José Braga (2006) acerca da
construção da realidade social por meio dos processos interacionais de referência, que
cada vez mais se concentram na mídia.
Temos na pesquisa de Ana Carolina Escosteguy (2013) indicativos de um tipo de
midiatização na qual a telenovela tem papel importante. A autora aborda a produção de
identidades relacionadas à mídia, por meio de uma pesquisa constituída pela coleta de
relatos biográficos de mulheres trabalhadoras do ramo de embelezamento. Tais relatos,
sem referência direta à mídia, revelaram característica do gênero melodramático, como
o processo de heroização, histórias de superação e desfecho feliz.

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5502
Telenovela e midiatização de classe social

Rosana Mauro

A forma – melodramática, associada, também, ao processo de heroização – como as mulheres


constroem suas narrativas relaciona-se aos modos pelos quais as identidades estão sendo
constituídas, mediante práticas culturais, sobretudo, atravessadas pela ação da mídia. Pois
nesta é reconhecida a presença de distintos formatos baseados no melodrama – seja na ficção
(nas telenovelas, de maneira mais evidente), seja no jornalismo (principalmente, no jorna-
lismo popular, mas não só). Por essa via, relaciona-se o modo das mulheres entrevistadas
contarem suas histórias com a maneira usada pela mídia para produzir distintos relatos,
sem uma menção explícita à mesma. (Escosteguy, 2013, p.152).

No que diz respeito aos estudos de recepção da telenovela com foco nas classes
sociais, o estudo de Veneza Ronsini (2014) é revelador. De acordo a pesquisa da estudiosa
com jovens de diferentes classes sociais, os jovens da classe média tendem a absorver sem
contestação o discurso meritocrático e individualista da telenovela a respeito de classes
sociais; enquanto os jovens da classe trabalhadora apresentam uma leitura mais opositora
nesse sentido, pois tendem a comparar o que é visto com suas próprias vivências e
enxergam, assim, que o discurso dominante da telenovela foge de suas realidades.
É pertinente abordar que outros programas televisivos também podem apresentar,
no Brasil, discursos similares aos quais Ronsini (2014) atribui à telenovela. Na Inglaterra,
há as pesquisas de David Morley (2010) e de Beverley Skeggs (2009). Skeggs aborda
que os reality shows, como os programas femininos de transformação, trabalham no
sentido de universalizar o repertório particular da classe média e desqualificar a classe
trabalhadora. De maneira desconectada com as relações de classe social, o sucesso, do
ponto de vista da classe média, é obtido, no discurso desses programas, por competências
e performances puramente individuais.
A hegemonia do pensamento de classe média poderia ser, no Brasil, uma das expli-
cações para o fato dos jovens da classe trabalhadora da pesquisa de Ronsini (2014)
costumarem contestar determinados elementos da telenovela, quando esses destoam
do seu próprio modo de vida, ao contrário dos jovens de classe média que absorvem
tais mensagens de forma natural.
Seria preciso também, nesse contexto, abordar o papel da televisão no processo de
midiatização de classe, já que estamos tratando de produtos televisivos. Desde o seu
surgimento, a televisão assumiu papel importante como forma de reforçar e difundir
transformações em determinado contexto social, como indica o artigo de Rowan Howard-
Williams e Elihu Katz (2013). Os autores argumentam que o surgimento e a popularização
da televisão no período pós-guerra nos Estados Unidos exerceu papel relevante, de
diferentes formas, no processo de empoderamento feminino.
Os estudiosos discutem que a televisão trouxe imagens e estilos, maneiras de falar
e se comportar que não eram divulgados até então, movendo, de certa forma, assuntos
da esfera pública para a esfera doméstica. O próprio padrão masculino da televisão fez
com que as mulheres se reconhecessem como “minoria” e se engajassem.
A televisão, ao propagar modos de vida e estilos, assim como a telenovela, estaria
em consonância, é pertinente sugerir, com a midiatização indireta discutida por Stig
Hjarvard (2012). O autor aborda dois tipos de midiatização, a direta e indireta. A direta é

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

5503
Telenovela e midiatização de classe social

Rosana Mauro

quando uma determinada atividade passa a ser executada de uma forma diferente devido
à mídia, como, por exemplo, jogar xadrez ou fazer transações bancárias pela internet.
A forma indireta se refere à influência cada vez maior da mídia em uma determinada
atividade, mas que não afeta diretamente o modo como as pessoas executam uma tarefa;
trata-se de uma influência mais sutil.
Um exemplo mais complicado de midiatização indireta é o desenvolvimento do discurso
intertextual entre os meios de comunicação e outras instituições da sociedade. Por exemplo,
o conhecimento dos brasileiros sobre os EUA também se deve às narrativas dos meios de
comunicação (fato ou ficção) sobre o país; como consequência, as discussões políticas brasi-
leiras sobre os EUA também estão entrelaçadas com representações midiáticas da cultura,
dos costumes e da história norte-americanos. (Hjarvard, 2012, p. 67).

Seria interessante, então, para abordar o papel específico da telenovela, averiguar


antes a relevância da televisão no que diz respeito à classe social. Para isso, o teórico
Andreas Hepp (2014) contribui com o conceito de forças de moldagem, que considera
a especificidade de cada mídia dentro do processo de midiatização. “[...] não podemos
presumir um efeito geral ou livre de contexto da mídia específica; entretanto, diferentes
mídias moldam a comunicação de formas diversas.” (Hepp, 2014, p. 51). O autor explica
que a expressão forças de moldagem capta dois processos relacionados à mídia: sua
institucionalização e sua reificação, ou seja, a materialização de aspectos sociais, cul-
turais e humanos, que a midiatização representa. Partindo dessa preocupação, temos
as seguintes perguntas: qual seria o papel da televisão na midiatização de classe de
classe social, e qual seria a especificidade da telenovela em relação a outros programas
televisivos?
É importante ressaltar que a telenovela tem tido destaque nos estudos sobre classes
sociais na comunicação no Brasil, tanto nas pesquisas de recepção quanto nas de
representação, como apresentam os artigos de Fígaro e Grohmann (2013) e Grohmann
(2014). Essa relevância da telenovela nessas pesquisas nos incita a pensar o que esse
destaque tem a dizer na verdade. Teria a telenovela um papel privilegiado em relação
a outros programas televisivos na midiatização de um sentido de classe social? Estaria
ela também mais propensa a absorver mudanças do discurso de classe social, apesar
da reprodução das lógicas dominantes?
Essas são algumas perguntas que este artigo deixa como proposta de reflexão,
embora ainda seja preciso levantar mais cuidadosamente bibliografia sobre o assunto.

CONCLUSÕES
Este artigo apresentou alguns pontos da discussão que empreendemos na dissertação
de mestrado Aspectos da midiatização do consumo e do sentido de classe social na telenovela: a
representação da “nova classe C” (Mauro, 2014). Foram apresentadas a preocupação inicial
do trabalho, a metodologia e os resultados alcançados.
As telenovelas analisadas – Avenida Brasil (2012) e Cheias de Charme (2012) – trouxeram
elementos que corroboram a visão hegemônica de classe social na sociedade capitalista
atual por meio dos discursos em que se observam características comuns na forma de
tratar as desigualdades e aspectos que também apresentam mudanças. Levantamos,

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Telenovela e midiatização de classe social

Rosana Mauro

sucintamente, pesquisas que abordam também um discurso de classe similar ao da


telenovela em outros programas televisivos, como os reality shows na Inglaterra. Também,
procurou-se realçar a importância de abordar o papel da televisão na midiatização de
um sentido de classe, para assim contextualizar a telenovela e a sua especificidade em
relação a outros programas de televisão no Brasil.
O artigo propôs, assim, de forma bastante breve, novas reflexões a partir da dis-
sertação de mestrado explicitada com acréscimos de outros autores, com o intuito de
pensar o papel da telenovela no processo de midiatização de um sentido de classe
social no Brasil. Foram deixados alguns questionamentos como forma de instigar novas
pesquisas, com a consciência de que levantamentos bibliográficos mais precisos devem
ser realizados a respeito do tema.

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5505
Telenovela e midiatização de classe social

Rosana Mauro

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5506
As Telenovelas da Rede Globo
na Cultura da Convergência
The Soap Operas of Rede Globo
in the Convergence Culture
Analú Bernasconi A r ab1

Resumo: A convergência midiática representa uma transformação cultural no


consumo de conteúdos de mídia (JENKINS, 2009). Nessa conjuntura, a narrativa
seriada se elege como a principal forma narrativa de entretenimento (MURRAY,
2003). No Brasil, as telenovelas da Rede Globo se destacaram na produção de
entretenimento televisivo. Acompanhar telenovelas ganhou novos significados
e possibilidades no cenário da televisão transmídia (EVANS, 2011). Este trabalho
pretende mapear as extensões textuais (ASKWITH, 2007) criadas nos sites oficiais
das telenovelas da Rede Globo, entre o período de 2009 a 2013, com o objetivo de
compreender uma parte da complexidade da telenovela mediante ao cenário de
mídia na cultura da convergência. Foi possível se deparar com diversas práticas
que estão além do formato tradicional de broadcast. Há a partir do conteúdo
principal, uma infinidade de conteúdos dispersos pelas diversas plataformas
de mídia, entre eles, uma extensa variedade de extensões textuais.
Palavras-Chave: Convergência Midiática. Televisão Transmídia. Telenovelas da
Rede Globo. Extensão Textual.

Abstract: The media convergence is a cultural transformation in the consump-


tion of media content (Jenkins, 2009). At this juncture, serial narrative is chosen as
the main entertainment narrative form (Murray, 2003). In Brazil, the soap operas
of Rede Globo have excelled in the production of television entertainment. Follow
soap operas gained new meanings and possibilities in the setting of transmedia
television (Evans, 2011). This paper aims to map the textual extensions (Askwith,
2007) created on the official websites of soap operas of Rede Globo, between the
period 2009 to 2013, in order to understand a part of the complexity of the soap
opera by the media landscape in the convergence culture. It was possible to come
across with several practices that are beyond the traditional format broadcast.
There from the main content, infinity of contents dispersed by the various media
platforms, including a wide variety of textual extensions.
Keywords: Media convergence. Television Transmedia. Soap Operas of Rede
Globo. Textual extension.

1.  Mestranda do Programa de Pós-graduação em Imagem e Som da Universidade Federal de São Carlos.
E-mail: analuarab@gmail.com.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

5507
As Telenovelas da Rede Globo na Cultura da Convergência

Analú Bernasconi Arab

TELENOVELA: PRODUTO CULTURAL NACIONAL


DO ENTRETENIMENTO NO BRASIL

A TELENOVELA ESTÁ presente no cotidiano da sociedade brasileira há mais de 60


anos, fixando-se como um hábito na vida de milhares de brasileiros. Entende-
se por telenovela brasileira o produto que passou a ser apresentado no Brasil,
a partir do final da década de 60, cujo marco foi Beto Rockfeller, de Bráulio Pedroso2.
As telenovelas começaram a encenar o ambiente urbano das metrópoles brasileiras, a
linguagem coloquial, as gravações externas, o humor, a ambiguidade na construção
psicológica das personagens e as problematizações da contemporaneidade (LOPES,
2003, p.24). Dessa forma, a telenovela se reconhece como um produto cultural nacional,
como afirma Fernandes (1994, p.21), “a telenovela é sim uma arte brasileira, popular,
como nosso samba e o nosso Carnaval. Capaz de, num curto espaço de tempo, arrebatar
toda uma população (...)”.
A supremacia da telenovela na indústria televisiva brasileira não foi por acaso, sem
dúvida, a Rede Globo desempenhou papel fundamental na concretização desse pano-
rama3. As telenovelas se sobressaíram em relação às outras estruturas seriadas, por seu
desenvolvimento histórico na televisão como um produto pertencente à cultura e iden-
tidade nacional brasileira, na construção dialética entre ficção e realidade. Nas últimas
duas décadas, um novo contexto midiático surgiu influenciando todos os segmentos
do mercado da comunicação e entretenimento. A televisão passou por um processo de
reconfiguração em seu modelo de negócio e nas vertentes de sua atuação, ao mesmo
tempo, uma nova forma de relacionar-se com a produção de ficção seriada surgiu.

TELEVISÃO TRANSMÍDIA E CONSUMO DE NARRATIVA DE FICÇÃO


SERIADA NA CULTURA DE CONVERGÊNCIA
A entrada da TV paga provocou o aumento do número de emissoras e da variedade
de canais e produtos audiovisuais, provocando a segmentação da audiência. A onda da
digitalização, a introdução das tecnologias digitais e o aparecimento da internet como
uma multiplataforma interativa, comunitária e um espaço de troca entre o produtor e o
consumidor, de informação e entretenimento, alteraram a forma de ver e produzir televisão
mediante a convergência dos meios, configurando o fenômeno da televisão transmídia.
Diante da diversidade de canais, da migração de conteúdos pelas mídias e da multi-
plicação das telas em dispositivos móveis, o público vai se tornando cada vez mais autô-
nomo e fragmentado. Ao passo que o modelo de comunicação broadcasting da televisão
perde força, por outro lado, ganha maior abrangência, pois sua presença é assegurada
pela miniaturização e mobilidade das telas móveis. Surgem também as Smart TVs, os
conteúdos televisivos passam também a ser ofertados por demanda, começam a ser

2.  A novela Beto Rockfeller, produzida pela Rede Tupi em 1968, foi a que inaugurou a proposta realista na
produção da telenovela brasileira, contrapondo-se ao estilo fantasioso que dominava a produção dramaturga
até então.
3.  Estratégias adotadas pela Rede Globo entre as emissoras de televisão, a partir da década de 70, foram: a
instauração do modelo norte-americano de exploração comercial, inauguração de sucessivas emissoras em
pontos estratégicos do país, divisão dos horários das telenovelas, modernização no nível técnico, locações
especialmente fabricadas, escritores em tempo integral, contratos milionários, manutenção de uma imprensa
especializada (jornais, revistas, programas televisivos), sucesso na exportação da telenovela brasileira e a
produção de uma dramaturgia na televisão baseada em temas e personagens brasileiros.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

5508
As Telenovelas da Rede Globo na Cultura da Convergência

Analú Bernasconi Arab

produzidos e distribuídos pelas diversas plataformas, conectando usuários nas redes


sociais e permitindo a reconfiguração da experiência de ver televisão juntos, através
dos computadores e dispositivos móveis (FECHINE, 2013, p.2).
Além disso, a relação de produtores e consumidores de mídia como ocupantes
de papéis separados está defasada, podemos agora considerá-los como participantes
interagindo de acordo com um novo conjunto de regras. Hoje, segundo Jenkins (2009,
p.30), os consumidores com acesso às novidades tecnológicas, possuem participação
ativa na produção, manipulação e circulação de conteúdos de mídia, novas experiências
de socialização e significados estão desabrochando na produção e no consumo cultu-
ral4. A forma como as pessoas consomem os conteúdos de mídia está mudando, como
Médola e Caldas (2013, p.127) endossam, o público se vê inserido em um universo onde
há afluência de histórias a serem contadas, de marcas vendidas e se encontram cercados
por múltiplos suportes de mídia. Portanto, há uma tendência de personalização desse
consumo e por diversas plataformas diferentes. Os produtos de narrativa ficção seria-
da conseguem abranger a complexidade da televisão transmídia e, ao mesmo tempo,
atender as demandas no novo modo de consumo cultural.
Murray (2003) foi pioneira ao abordar o futuro da narrativa digital no ciberespaço,
em sua obra Hamlet no Holodeck defendeu (2013, p.237) que a narrativa seriada se tornaria
a principal forma narrativa de entretenimento na fusão entre televisão e internet. Para
isso, desenvolveu o conceito de hiperseriado como um arquivo digital integrado, no
qual as páginas da web fossem associadas aos programas transmitidos pela televisão,
onde haveria a disponibilização de artefatos virtuais do mundo ficcional dos seriados,
ambientes virtuais como extensões do mundo ficcional, conteúdos que explorassem
as lacunas dramáticas entre os episódios com informações complementares, de perso-
nagens e tramas secundárias para dar a sensação de continuidade de vidas em curso,
ainda, realizar transmissões provenientes da televisão sob demanda de episódios já
exibidos, funcionando como uma biblioteca digital da série. A autora parecia já atentar
para os direcionamentos da televisão transmídia e, principalmente, para a produção e
o consumo de ficção seriada inseridos nesse contexto.
Nesse mesmo direcionamento, Evans (2011) no livro Transmedia Television, declara a
internet como um meio de engajamento para produtos audiovisuais dos mais variados
tipos, onde a atual complexidade no consumo de conteúdos torna a televisão muito maior
do que o aparelho ao qual estávamos habituados. As tecnologias, conteúdos e espaços
da televisão são mais numerosos do que eles eram no final do século XX. O conceito de
transmidialidade, utilizado por Evans (2011, p.1), descreve a prática industrial popular
do uso de múltiplas tecnologias de mídia para apresentar informações relativas a um
único mundo ficcional através de um conjunto de formas textuais. Segundo a autora,
as práticas de transmidialidade podem estar relacionadas com a franquia de mídia5,

4. Em vista disso, há práticas de distribuição não autorizada de conteúdos televisivos e de apropriação
informal pela audiência, em contrapartida, a programação da televisão passa a ser ofertada via internet por
meio de downloading ou streaming e aplicativos de segunda tela para dispositivos móveis são desenvolvidos
na tentativa de complementar e sincronizar a programação televisiva.
5. Tal ocorrência se localiza principalmente nos grandes conglomerados de comunicação, os quais operam pela
lógica comercial de franquias de entretenimento e possuem interesse nos produtores de mídia, como o cinema,
a televisão, a mídia impressa e nas mídias sociais. Segundo Jenkins (2009), concomitante com a convergência

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merchandising, adaptações, spin-offs6, sequências7 e marketing. Na obra em questão,


ela se aprofunda em dois exemplos de práticas transmídia, o engajamento/distribuição
transmídia e a narrativa transmídia.
A distribuição transmídia diz respeito ao conteúdo televisivo moldado às interfa-
ces digitais (através do site da emissora, por exemplo) ou por meio de aplicativos para
telefone móvel. Já o engajamento transmídia relaciona-se diretamente com as práticas
do público diante da distribuição transmídia, no qual o público possui a liberdade de
se mover pelas diversas plataformas de mídia para acompanhar seu conteúdo ficcional
predileto. Nesse caso, podem optar assistir o conteúdo por meio do aparelho televisor
na estrutura broadcast, como também pode escolher acompanhar por outras platafor-
mas, por exemplo, pelo seu próprio computador ou telefone móvel (EVANS, 2011, p.40).
Evans (2011) ao problematizar a respeito de narrativa transmídia, embasada em
Jonathan Gray (2010), o qual defende que as práticas transmídia podem se referir à nar-
ração de histórias ao longo de múltiplas plataformas, considera o termo impróprio. Em
função disso, a autora procurou problematizar o conceito em diversos autores, por meio
do estudo da série britânica Doctor Who8, chegando à diferenciação do uso termo histórico
e contemporâneo. No primeiro caso, o termo transmídia foi primeiramente relacionado
para descrever práticas de merchandising, adaptações, sequências e franquias de mídia
e marketing. Até mesmo em algumas análises na relação entre televisão e novas plata-
formas de mídia, encontrou-se a associação entre textos transmídia ao marketing e às
práticas comerciais. Já na utilização do termo contemporâneo de narrativa transmídia, o
mais difundido se insere na obra de Henry Jenkins (2009), onde a experiência oferecida
ao público é feita de forma coerente e integrada em diversas plataformas de mídia.
O conceito de narrativa transmídia discutido por Jenkins (2009) no contexto da
indústria do entretenimento implica no desdobramento de histórias pelas diversas
plataformas de mídia, onde cada um delas propicia uma compreensão aditiva do
universo ficcional. Contar histórias passa a ser a arte de construção de mundos, onde
o universo ficcional não se esgota em uma única obra ou mídia. Nesse sentido, cada
plataforma concebe o que faz melhor, podendo uma história se iniciar em uma mídia
e ser expandida por outras plataformas. Independentemente da mídia acessada pelo
público, deve ser autônoma e oferecer novos níveis de revelação e experiência ao
universo ficcional. A narrativa transmídia é, dessa forma, uma das manifestações da
televisão transmídia.
Askwith (2007) explica que a definição tradicional de televisão está expandindo para
descrever uma forma de conteúdo que se espalha através de múltiplas tecnologias e
plataformas de mídia. Devido a isso, surgem uma gama de ofertas de conteúdo, produtos

tecnológica, esses conglomerados exploram um produto sinergicamente por suas diferentes empresas,
concretizando um fluxo cross media de consumo por meio de produtos provenientes da franquia de mídia.
6.  Quando um conteúdo é derivado de outro conteúdo original dando mais detalhes de uma parte específica.
Como exemplo, pode-se citar a série norte-americana Joey, a qual mostrava a personagem Joey Tribbiani
(Matt LeBlanc) da série original Friends tentando consolidar sua carreira de ator em Los Angeles.
7.  A sequência (ou follow-up) é uma narrativa que continua a história de, ou expande, alguns trabalhos
anteriores. Pode estar relacionada com filmes, literatura, teatro, cinema, televisão, música, jogos, entre outros.
8.  Inaugurada em 1963, é ainda uma série em produção, tendo intervalos dentre o período de mais de 50 anos.
A escolha por essa série não foi arbitrária, já que ela apresentou na análise de Evans (2011) exemplificações
da utilização do conceito transmídia em seu uso histórico e contemporâneo.

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e atividades, que exploram novos modelos de negócios e oportunidades. Na televisão, a


atividade de consumir o conteúdo está cada vez mais se tornando uma prática ativa de
participação e interação. O autor elaborou um quadro inicial que categoriza uma série
de produtos, recursos, atividades e oportunidades em função de novos componentes
que começaram a emergir como um novo conteúdo televisivo, os quais reposicionam
a televisão como um meio de engajamento para outras plataformas. O conjunto de tal
componentes da televisão constitui o que o autor denomina de conteúdo de televisão
expandido, conceito similar com o que Evans (2011) considera como televisão transmídia.
Na convergência midiática, a ficção seriada toma novas formas em sua produção e
consumo na televisão transmídia. A produção de diversos conteúdos ligados a uma ficção
seriada da TV passou a se desdobrar no mundo virtual, em sites, blogs, mídias sociais,
aplicativos dispositivos móveis e, em outras plataformas, como livros e produtos audio-
visuais. Elas podem ou não proporcionar a expansão da narrativa e, consequentemente,
se inserir no fenômeno da narrativa transmídia descrita por Jenkins (2009). Em vista
disso, as emissoras de televisão passaram a articular seus conteúdos com as diversas
plataformas de mídia e criar diferentes oportunidades de interatividade, participação e
engajamento para o público. A Rede Globo, aos poucos, vem se preparando para oferecer
uma estrutura cada vez mais abrangente dos seus produtos de ficção seriada.

AS TELENOVELAS DA REDE GLOBO NA CULTURA DA CONVERGÊNCIA


Ao longo de sua trajetória, a Rede Globo manteve a supremacia em relação às outras
emissoras, a telenovela sempre esteve entre as campeãs de audiência de sua programação,
conquistando o título de maior produtora brasileira de ficção. Em março de 2000, foi
criado o portal Globo.com9, o qual hospeda todo conteúdo institucional da TV Globo
e dos outros componentes do conglomerado de mídia Organizações Globo10. A partir
de 2006, cada produto de ficção seriada foi ganhando uma página própria na internet,
organizada a partir de um menu básico com links para capítulos, personagens, notícias,
vídeos, fotos, bastidores, entre outros. Nos últimos anos, a Globo vem adotando novas
estratégias de inserção de suas telenovelas no cenário da televisão transmídia, a fim de
intensificar a experiência do público com o conteúdo de entretenimento que consomem
e aumentar as oportunidades de engajamento para a audiência fragmentada e dispersa
em diversas plataformas de mídia.
Em 2007, foi criado na Globo o cargo de produtor de conteúdo transmídia, em 2008,
com a implementação do DGE (Diretoria Geral de Entretenimento), uma nova estru-
tura de internet foi estabelecida, possibilitando a implantação de ações transmídias11.
Ainda em 2008, foi feito um projeto piloto de expansão na internet para a série juvenil
Malhação, que serviu de modelo para a implementação dos produtos de ficção seriada
da emissora. A primeira telenovela a apresentar estratégia transmídia foi Três Irmãs,

9.  Disponível no link: < http://www.globo.com/>. Acesso em: 24/08/2014.


10.  Organizações Globo é o maior conglomerado de mída do Brasil, possui empresas que atuam em diferentes
mercados, como rádio, mídia impressa, TV aberta, TV a cabo, websites, indústria fonográfica, cinema e etc.
Há centenas de sites no portal, dentre eles com temas que variam entre notícias, esportes, entretenimento,
tecnologia e vídeos.
11. Transmídia, nesse caso, se refere às ações no contexto da televisão transmídia e não no conceito de
narrativa transmídia, cunhado por Jenkins (2009).

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com o game Surfínia12, atualmente utilizado pelo portal Globo Esporte13. (MEDEIROS,
GONTIJO, 2013, p. 347).
Durante o ano 2010 foi implantada uma nova estrutura de internet, a Globo pro-
duziu o site de todas as suas telenovelas, séries e minisséries. O site Gshow14 é o que
hospeda todo conteúdo relacionado com a programação da TV Globo, incluindo os
sites oficiais das telenovelas. No mesmo ano, os sites das duas principais telenovelas da
Rede Globo, Caminho das Índias e Viver a Vida, “incorporaram diversos blogs, inclusive
de personagens, e opções de interatividade criativa e colaborativa por parte do usuário,
como a produção de vídeos”. (LOPES, 2010, p.170).
Para se inserir no mercado de conteúdo on demand, em 2012, a Organizações Globo
lançou o aplicativo Globo.tv, nele é possível acessar o conteúdo da TV Globo e dos canais
da Globosat. De forma gratuita, oferece a programação disponibilizada em formato de
trechos de vídeos. Para assinantes, oferece a opção de assistir programas prediletos na
íntegra. Já em 2013, outro aplicativo foi lançado com intuito de proporcionar interação
social, o Globo com_vc. Ele oferece informações sobre a grade da programação, notifica-
ções dos programas favoritos e o usuário tem a opção de conectar-se com redes sociais,
como Facebook e Twitter. Essas interações sociais permitem que o usuário convide
amigos para assistir atrações com ele e se comunique com outros usuários do aplicativo.
Como pode ser observado, acompanhar uma telenovela, hoje, ganhou novos sig-
nificados e possibilidades com a televisão transmídia. Neste artigo, pretende-se mape-
ar algumas práticas realizadas pela Rede Globo em suas telenovelas na convergência
midiática. Por se tratar de um cenário extenso, evidentemente, não é possível registrar
todas as ações realizadas, portanto, é necessário um recorte. Ele será delimitado pela
produção de extensões textuais, citadas e incluídas no conceito de conteúdo de televisão
expandido, defendido por Askwith (2007).

EXTENSÕES TEXTUAIS DA TELENOVELA


Askwith (2007) definiu as extensões textuais dentro de uma categoria maior, na qual
ele chamou de conteúdo auxiliar, esta categoria se refere a todo e qualquer conteúdo
que fornece ao público informações que estão além do que foi transmitido no formato
broadcast. Para Askwith (2007, p.60), as extensões textuais “extend the core text itself,
providing further narrative developments and plots, and providing interested view-
ers with additional access to the world and/or characters of the television program15”.
Askwith (2007) diferenciou as extensões textuais em duas subcategorias: as extensões
narrativas e as extensões diegéticas. As extensões narrativas se referem ao conteúdo nar-
rativo adicional, relacionando novas histórias que não são descritas na narrativa central
do programa de televisão. Por sua vez, as extensões diegéticas fornecem esclarecimentos,

12.  Surfínia foi um game desenvolvido para a telenovela Três Irmãs. O jogo possui como cenário, seis
praias da ilha, os jogadores podem participar de campeonatos de surfe, responder perguntas sobre a trama
em forma de desafios, ter acesso a conteúdo exclusivo e ganhar prêmios de acordo com seu desempenho.
13.  Disponível no link: <http://surfinia.globoesporte.globo.com/>.
14.  Disponível no link: <http://gshow.globo.com/>.
15.  Estendem o próprio texto principal, proporcionando mais desdobramentos narrativos e enredos,
fornecendo para os espectadores interessados, acesso adicional para o mundo e/ou personagens do
programa de televisão (tradução nossa).

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informações ou conteúdo narrativo adicional. No entanto, se apresentam como artefatos


diegéticos, ou seja, são elementos que estão inseridos no universo ficcional do programa.
Elas podem ou não anteceder eventos narrativos do programa, mas sua função principal é
propiciar aos espectadores a sensação de imersão no universo ficcional. Ao interagir com
tais artefatos, a audiência simula interagir com objetos de dentro na narrativa ficcional.
O mapeamento das extensões textuais tem como objetivo exemplificar as práticas
das telenovelas da Rede Globo no cenário da convergência midiática e da televisão
transmídia. O período de análise se encontra entre 2009 a 2013, abrangendo as teleno-
velas das faixas horárias das 18hrs, 19hrs e 21hrs e aos seus respectivos sites oficiais16.
As telenovelas veiculadas no período de análise que não apresentaram práticas que
se inserem no conceito de extensões textuais, não estarão inseridas no mapeamento a
seguir. Na tabela 1, temos as extensões textuais das telenovelas entre 2009 a 2013.
Tabela 1. Extensões Textuais Telenovelas entre 2009 a 2013.

Telenovela Extensões Textuais Descrição


Caminho O personagem Indra (André Arteche) utilizava o blog para falar sobre os costumes
das Índias17 Blog do Indra18 indianos e interagir com o público.
Blog Caminho das
A trama era o fio condutor das postagens.
Índias19
Viver a Blog Sonhos de A personagem Luciana (Alinne Moraes) fica tetraplégica após um acidente, incenti-
Vida20 Luciana21 vada pela irmã, cria um blog para falar sobre suas dificuldades e superações.
Vídeos com cenas O destaque no site oficial da telenovela coube aos vídeos com versões estendidas
Passione22 bônus das cenas exibidas na televisão.
Trazia as novidades do mundo fashion, e hospedava a coluna sentimental da perso-
Ti-ti-ti23 Moda Brasil
nagem Marcela (Isis Valverde).
A personagem Stela (Mila Moreira) posta em seu blog sobre o mundo da moda, sua
Blog da Stela
carreira e vida pessoal.
Blog da Marcela Marcela recebia dúvidas e dava conselhos amorosos em seu blog.
As matérias e notícias típicas de revistas e sites de fofocas. Remetiam aos eventos
Drix Magazine
do universo ficcional como também informações de celebridades do mundo real.
Jacques Leclair (Alexandre Borges), estilista, usa seu blog para fazer comentários
Blog de Jacques
pessoais direcionados aos eventos ocorridos anteriormente ou posteriormente à
Leclair
trama.
Blog de Victor Victor Valentim (Murilo Benício), estilista, usa seu blog para expor sua opinião pesso-
Valentim al, funcionando da mesma maneira que o anterior.
A personagem Beatrice M. (Clara Tiezzi) abordava desfiles, fofocas, mundo da moda
Blog da Beatrice M.
e entrevistas com celebridades do mundo ficcional e real.
Insensato Blog da Nathalie A personagem Nathalie Lamour (Deborah Seco) abastecia seu blog com os relatos
Coração24 Lamour pessoais, no entsnto, havia pouco conteúdo adicional.

16.  No ano de 2009 surgem os primeiros exemplos de extensões textuais nos sites oficiais das telenovelas.
17.  Disponível no link: < http://caminhodasindias.globo.com/>. Acesso em 24/08/2014.
18. Disponível no link:< http://gshow.globo.com/programas/geral-com/blogdoindra-indra/platb/>. Acesso
em 24/08/2014.
19. Disponível no link:< http://gshow.globo.com/novelas/caminho-das-indias/finais/platb/category/maya-
-raj-e-bahuan>. Acesso em 24/08/2014.
20.  Disponível no link: http://viveravida.globo.com/. Acesso em 24/08/2014.
21.  Disponível no link: http://tvg.globo.com/novelas/viver-a-vida/sonhos-de-luciana/platb/. Acesso em
24/08/2014.
22.  Disponível no link: http://gshow.globo.com/novelas/passione/index.html. Acesso em 24/08/2014.
23.  Disponível no link: <http://gshow.globo.com/novelas/passione/index.html>. Acesso em 24/08/2014.
As extensões textuais foram retiradas do site da telenovela, funcionando apenas o link para home page
do site oficial da telenovela.
24. Disponível no link: <http://gshow.globo.com/novelas/insensato-coracao/index.html>. Acessado em
24/08/2014.

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Telenovela Extensões Textuais Descrição


Site institucional, com receitas de alguns personagens e informações sobre os músi-
Bar do Gabino
cos que faziam parte da roda de samba.
Site institucional da empresa In Design, elemento do universo ficcional, traz informa-
In Design
ções adicionais sobre o escritório.
Site institucional da boate Barão da Gamboa disponibilizava a agenda da programa-
Barão da Gamboa.
ção, com fotos do estabelecimento e dos personagens se divertindo por lá.
O blog era abastecido com informações a respeito da paleontologia, a personagem
Morde e Blog Caçadora de
Júlia (Adriana Esteves) na trama era paleontóloga e era a dona do blog, no entanto,
Assopra25 Dinossauros
não remetia aos acontecimentos da trama.
O site institucional fictício do Spa Preciosa, onde era possível consultar orientações
Spa Preciosa
nutricionais.
Blog Som e Sabor O blog também representava um local ficcional da trama, sendo abastecidos por
Café receitas e cardápio para ser consultado.
Cordel Documentário da Quem acompanhava o site teve a oportunidade de assistir na íntegra o documentá-
Encantado26 Penélope rio sobre o cangaço produzido pela personagem Penélope (Paula Burlamaqui).
Livro virtual de Como a telenovela tratava de elementos da cultura popular do Nordeste, foi disponi-
xilogravuras bilizado um livro virtual contando a história do Reino de Seráfia.

Fina A personagem Vilma (Arlete Sales), taxista e adepta ao jornalismo-cidadão28, fazia


Blog da Vilma alusão ao seu blog e às postagens que realizava. Pelo site o usuário tinha acesso aos
Estampa27
conteúdos completos que eram mostrados parcialmente nas cenas exibidas.
Site Site de relacionamento Tasozinhopqquer.com, onde o adolescente René Júnior
Tasozinhopqquer. (David Lucas) passava horas navegando. Era permitido ao usuário criar seu próprio
com perfil. O site contou com mais de 30 milhões de usuários cadastrados29.
A extensão narrou em três episódios o sequestro do protagonista Rodrigo (Gabriel
Amor Eterno Websérie Repórter
Braga Nunes) quando ainda era criança e mostrou o retrato falado de Elisa (Mayana
Amor30 Investigativo
Neiva), que também teria desaparecido.
A personagem Monalisa (Heloísa Périssé), dona de um salão de beleza na trama, uti-
Avenida Blog Dicas da lizava o blog para postar truques e dicas de beleza para cabelos e unhas. Ainda, o
Brasil31 Monalisa blog serviu como propaganda para a linha especialmente desenvolvida para a per-
sonagem da marca Embelleze.
O site era abastecido com gifs animados das cenas exibidas e disponibilizava espaço
Site Oi Oi Oi
para comentários.
O site oficial foi utilizado para a divulgação na íntegra de todos os clipes musicais
que fizeram parte da trama. Além disso, também foram disponibilizados os vídeos
Cheias de
Site Oficial em que as Empreguetes (Isabelle Drummond, Taís Araujo e Leandra Leal), Chayene
Charme32
(Cláudia Abreu) e Fabian (Ricardo Tozzi) fizeram participações em programas da pró-
pria emissora e em shows de artistas nacionais.
No site do fã clube oficial das Empreguetes, foram depositados vídeos de persona-
Empreguetes Fã
gens da trama pedindo que as empreguetes voltassem com o grupo e vídeos de
Clube Oficial
artistas brasileiros fazendo o mesmo pedido.
O empresário Tom (Bruno Mazzeo) publica notícias e informações sobre as Empre-
Blog Estrelas do guetes, Fabian e Chayene. Além disso, o blog hospedou duas ações realizadas pe-
Tom dindo a participação de fãs por meio do envio de vídeos próprios, o Concurso de
Passinhos do Tom e Empreguetes da Internet.
Lado a Fique por Dentro - Vídeos disponibilizados no site e que não foram exibidos no formato broadcast.
Lado33 Cenas Bônus

25. Disponível no link: <http://gshow.globo.com/novelas/morde-e-assopra/index.html>. Acessado em


24/08/2014.
26. Disponível no link: <http://gshow.globo.com/novelas/cordel-encantado/index.html>. Acessado em:
24/08/2014.
27.  Disponível no link: <http://gshow.globo.com/novelas/fina-estampa/index.html>. Acessado em
24/08/2014.
28.  Prática colaborativa de usuários para a produção e distribuição de notícias por meio das tecnologias
digitais de captação e edição de som e imagen.
29.  Disponível no link: <http://tasozinhopqquer.parperfeito.com.br/>. Acessado em: 24/08/2014.
30. Disponível no link: <http://gshow.globo.com/novelas/amor-eterno-amor/index.html>. Acessado em
24/08/2014.
31.  Disponível no link: < http://gshow.globo.com/novelas/avenida-brasil/index.html>.
32. Disponível no link: <http://gshow.globo.com/novelas/cheias-de-charme/index.html>. Acessado em
25/08/2014.
33. Disponível no link: <http://gshow.globo.com/novelas/lado-a-lado/index.html>. Acessado em 25/08/2014.

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Telenovela Extensões Textuais Descrição


Informações históricas a respeito da época em que a trama se passava, sempre rela-
Naquele Tempo
cionadas com cenas que haviam sido exibidas.
O usuário tinha a oportunidade de conhecer a cidade de Lado a Lado e algumas
Cidade Virtual
curiosidades sobre o Rio de Janeiro do início do século XX.
O público podia visualizar a revista que fazia parte do universo ficcional, com notí-
O Bonde
cias sobre espetáculos, alta sociedade, hábitos e artistas.
Guerra dos Blog o Sexo O blog mostrava as diferenças entre homens e mulheres por meio da utilização de
Sexos34 Oposto? memes, frases e matérias
A personagem Analú (Raquel Bertani) usava o espaço para postar a respeito de mo-
Blog da Analú
da, beleza e desabafos de sua vida pessoal.
O usuário tinha acesso a todas as notícias relacionadas com Charlô (Irene Ravache),
Universo Charlô´s
sua família e a loja de departamentos de sua propriedade.
Salve Blog Comunidade Sidney (Mussunzinho), morador do Complexo do Alemão e blogueiro, postava sobre
Jorge35 no Mundo assuntos relacionados com a comunidade.
Websérie Pela websérie, público ficava sabendo a versão do Candinho (José Loreto) de sua
Flor do
Candinho e o história de aventura com um disco voador.
Caribe36
Disco Voador
Bar Flor do Caribe Site institucional com vídeos contendo os shows que eram feitos no local da trama.
O site apresentava notícias a respeito da trama, incluindo seções interativas, como
Vila dos Ventos da cantora Cristal que pertence à trilha sonora da trama e dos elementos que com-
põem o cenário da Vila dos Ventos.
Sangue Site institucional do Bar Cantaí com fotos e informações do local e uma breve
Cantaí
bom37 descrição da equipe e do cardápio.
O site é dedicado à empresa de eventos Para Sempre com informações a respeito
Para Sempre
de casamentos.
Site do programa de televisão da trama, trazendo informações sobre moda, beleza
Luxury
e notícias de celebridades.
O site se propõe a cobrir os acontecimentos do mundo da fama e das celebridades
OMexerico.com de dentro da narrativa ficcional. A personagem Brunettý (Ellen Rocche), a cantora
de funk Mulher Mangaba, tem todos seus clipes musicais publicados no site.
A personagem Salma (Louise Cardoso), cozinheira do Bar Cantaí, coloca receitas de
Blog da Salma
sua especialidade.
A personagem Socorro (Tatiana Alvim) fã de Amora (Sophie Charlotte), abastece o
Blog da Socorro
blog com fotos e informações da modelo
A personagem Lara Keller (Maria Helena Chira), apresentadora do programa Luxury,
Blog da Lara Keller abastece o blog com dicas de moda, beleza, notícias de famosos (do mundo ficcio-
nal) e um pouco sobre sua vida pessoal.
A personagem Sueli Pedrosa (Tuna Dwek). As postagens são feitas também em
Blog Sueli Pedrosa formatos de vídeos com a apresentadora cobrindo os bastidores, fofocas e notícias
do mundo das celebridades.
Amor à Websérie Histórias Mostram casos de pessoas que viveram dramas e alegrias bem próximas aos assun-
Vida38 de Amor à Vida tos da trama.
BBB em Amor à Retratou a participação da personagem Valdirene (Tatá Werneck) no programa BBB,
Vida a participação aconteceu realmente.
Hospital San O site institucional do universo ficcional, com informações sobre suas instalações,
Magno equipe e uma seção especial para as pessoas enviarem as fotos de seus bebês.
Cabaré Pacheco
Joia Rara239 Leão
Espaço dedicado às notícias e assuntos correspondentes a esse universo ficcional.

Livro virtual A Vida


Seção especial destinada ao tema.
de Buda

34. Disponível no link: <http://gshow.globo.com/novelas/guerra-dos-sexos/index.html>. Acessado em


25/08/2014.
35.  Disponível no link: <http://gshow.globo.com/novelas/salve-jorge/index.html>. Acessado em 25/08/2014.
36.  Disponível no link:<http://gshow.globo.com/novelas/flor-do-caribe/index.html>. Acessado em
25/08/2014.
37. Disponível no link:<http://gshow.globo.com/novelas/sangue-bom/index.html>. Acessado em 25/08/2014.
38.  Disponível no link: <http://gshow.globo.com/novelas/amor-a-vida/index.html>. Acessado em
25/08/2014.
39.  Disponível no link: <http://gshow.globo.com/novelas/joia-rara/index.html>. Acesso em: 25/08/2014.

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Telenovela Extensões Textuais Descrição


São contados os fatos históricos mais marcantes do Governo Provisório ao Estado
Naquela Época
Novo.
Websérie Na Era Conta a história da representação desse veículo no país e, ainda, foi disponibilizada
do Rádio a radionovela Presídio de Mulheres em quatro capítulos.
Dossiê dos Mis- O usuário tinha acesso às fichas criminais de alguns dos antigos moradores da
térios mansão Hauser e às cenas selecionadas de seus crimes.
Imigração Era permitido explorar a origem de alguns personagens da trama.
Websérie Histórias
Além do
Além do Horizonte Retratou as lendas da Amazônia.
Horizonte40
e da Imaginação
O que você sonha Vídeos interativos com o depoimento das personagens sobre o que elas acreditam
encontrar Além do encontrar além do horizonte. Ainda, foi requisitado ao público que enviassem seus
Horizonte vídeos respondendo a mesma questão como ação de engajamento.
Site Sabores da A personagem Heloísa (Flávia Alessandra) ganhou um espaço onde receitas eram
Helo depositadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como se pode observar, qualquer que seja a produção de conteúdo de entreteni-
mento terá que sobreviver perante a convergência das mídias e a mudança de compor-
tamento em seu consumo. As narrativas de ficção seriada são as candidatas a se tornar
o conteúdo predileto nesse novo contexto midiático de fusão entre TV e internet, pois
se adequam e atendem às novas demandas do consumo do entretenimento na cultura
da convergência. A digitalização da TV e a sua articulação com outras plataformas
desembocaram o fenômeno da televisão transmídia. Assistir e acompanhar telenovela
não se limita mais ao formato broadcast oferecido pela mídia tradicional da televisão.
Há, a partir do conteúdo principal, uma infinidade de conteúdos dispersos pelas diver-
sas plataformas de mídia. O objetivo aqui foi exemplificar parte dessa complexidade
pelo ponto de vista das extensões textuais das telenovelas em seus sites oficiais. No
entanto, não se pode afirmar que todas as extensões cabem no conceito contemporâneo
de narrativa transmídia de Jenkins (2009) e, sim, fazem parte do complexo cenário da
televisão transmídia.

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5516
As Telenovelas da Rede Globo na Cultura da Convergência

Analú Bernasconi Arab

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5517
O sitcom e a claque: as origens do formato e uma reflexão
sobre o desuso do som das risadas da audiência
Sitcom and the laugh track: the origins of the format and a
reflection on the disuse of the sound of audience laughter
Fe r na n da M a n zo C e r e t ta 1

Resumo: o presente artigo resgata as origens do formato sitcom e suas


características mais tradicionais, como o esquema de câmera three-headed
monster e a claque, que pode ser considerada o maior índice do formato sitcom.
O formato permaneceu, grosso modo, imutável durante décadas, até o século
XXI, quando o sitcom conheceu um momento de atualização de alguns de seus
aspectos primordiais. Utilizando como principal corpus da presente pesquisa
o sitcom The Office, será possível compreender o que significa o recente desuso
da claque em algumas produções e como a linguagem do formato resolveu esta
ausência para manter sua comicidade.
Palavras-Chave: Sitcom. Claque. The Office.

Abstract: this article captures the origins of the sitcom format and its more
traditional features, such as the three-headed monster cameras and the laugh
track, which can be considered the major indication of the sitcom format. The
format remained roughly unchanged for decades, until the twenty-first century,
when the sitcom experienced a moment of upgrade of some of its key aspects.
Being The Office the main corpus of this research, it is possible to understand
what the recent disuse of the laugh track in some productions means and how
the format solved the absense to keep its comic intentions
Keywords: Sitcom. Laugh track. The office.

INTRODUÇÃO

A COMÉDIA ESTEVE presente na leva dos primeiros gêneros a serem televisionados.


Em 1950, o formato mais popular era o comedy-variety show, definido como “um
vaudeville eletronicamente transmitido” (LITTLE, 2006) e também conhecido como
vaudeo, uma abreviação de vaudeville e vídeo. Entre as emissoras, estavam presentes 25
comedy-variety shows. Programas como The Colgate Comedy Hour (1950-1955) e Cavalcade
of Stars (1950-1952) traziam uma miscelânea de atrações que incluíam música, dança e,
em destaque, sketch comedies: pequenos quadros ficcionais de comédia com início, meio
e fim, como os dos programas de rádio da época.

1.  Doutoranda e Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Docente na Universidade Anhembi Morumbi. fmceretta@gmail.com

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O sitcom e a claque: as origens do formato e uma reflexão sobre o desuso do som das risadas da audiência

Fernanda Manzo Ceretta

Ainda em 1950, as redes norte-americanas NBC, CBS e ABC apresentavam no total


mais 11 sitcoms, uma modalidade de comédia que, com o passar dos anos, tornou-se a
mais popular da televisão. Já a partir de 1951, o sitcom tornava-se a modalidade de show
de comédia mais volumosa e bem-sucedida na televisão norte-americana, e essa marca
se mantém até os dias atuais.
A situation comedy, mais conhecida pela abreviação sitcom, torna-se popular no
rádio e, posteriormente, na televisão como uma conjunção dos formatos de comédia já
existentes em music halls e vaudevilles (MILLS, 2005, p. 37). Trata-se, inicialmente, de uma
conjunção de propostas já consolidadas, além de uma reciclagem de atores e artistas
que já haviam conquistado o público naqueles outros meios.
Segundo Bonaut e Grandío (2009, p.759), podemos apontar como principais
características dos sitcoms tradicionais:
Tabela 1. Principais características do sitcom segundo pesquisa de Bonaut e Grandío.

Repetição

O sitcom é um produto audiovisual de entretenimento cuja narrativa de cada episódio apresenta introdução, desen-
volvimento e conclusão, categorizando-a como fechada. Possui curta duração (cerca de 22 minutos). Geralmente
rodado em interiores e com a presença de um público, utilizando cores vivas em uma única locação dividida em
vários cenários fixos que se repetem ao longo de todos os episódios.

Claque

O formato se caracteriza principalmente pela claque, ou seja, o som da reação da audiência, que enfatiza os momen-
tos de humor.

Estrutura

A estrutura narrativa e decupagem: o sitcom tradicional possui sua estrutura em três atos, ficando claras as divisões
entre eles através dos intervalos comerciais. Existe geralmente uma trama principal e uma ou duas tramas adjacen-
tes. Faz-se uso de teaser, um prólogo que, com uma pequena cena, pretende segurar a audiência após o primeiro
corte publicitário e exibição da abertura. Também utiliza-se o tag, pequena cena que acompanha os créditos finais e
traz um último momento cômico do episódio.

Decupagem

Sobre a captação, são usadas três ou mais câmeras, com poucos movimentos, geralmente limitados a plano/contra
plano.

Roteiro

A construção do humor através de piadas por diálogos, imagens e som: é frequente a utilização de técnicas como
a surpresa, o mal-entendido verbal, a mudança de papéis, o engano e a confusão. As personagens falam mais do
que atuam e, sendo assim, a comicidade constrói-se comumente baseada em diálogos. E, finalmente, pela temática
tradicional e personagens baseadas em estereótipos: originalmente a maioria dos sitcoms era centrada em uma
família, como em Father Knows Best (NBC, 1954). Aos poucos, o local de trabalho também ganhou espaço, como em
Mary Tyler Moore Show (CBS, 1970). Os sitcoms foram, através das décadas, moldando a personalidade e a profissão
de suas personagens em referência à cultura da época.

A serialidade de transmissão também pode ser apontada como algo determinante


para o formato. Estando o aparelho de televisão dentro das residências, foi possível
contar com a formação de um hábito entre os espectadores e pensar em produções que
estimulassem e ao mesmo tempo favorecessem a ação de ligar a TV em determinados
dias e horários.
A comédia surge, portanto, como uma das maiores favorecidas do formato seriado,
pois ajuda na construção de uma familiarização dos espectadores com as personagens
(MILLS, 2009, p. 17), o que auxilia na identificação com os espectadores e potencializa
os momentos cômicos.

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O sitcom e a claque: as origens do formato e uma reflexão sobre o desuso do som das risadas da audiência

Fernanda Manzo Ceretta

A serialidade dos sitcoms difere de acordo com os programas. Algumas produções


apresentam textos fechados, ou seja, os acontecimentos de um episódio dificilmente
interferem nos seguintes. Já o conteúdo seriado aberto aproxima-se do que é visto em
telenovelas: os episódios trazem acontecimentos mais complexos que desenvolvem-
-se no decorrer de toda a série e ultrapassam as barreiras do episódio enquanto uni-
dade. Sendo assim, a narrativa fechada favorece o espectador casual, que não pode
ou não procura assistir TV nos mesmos horários, enquanto que a narrativa aberta
demanda maior dedicação por parte do espectador, dado o seu caráter de continuidade
(SAVORELLI, 2010, p. 17-18).
Os sitcoms nem sempre estão categorizados exatamente como seriados abertos ou
fechados. É bastante comum que a primeira temporada apresente as narrativas mais
fechadas. Se o programa sobreviver na emissora e for acordada a produção de uma
segunda temporada, geralmente observa-se tendência à maior abertura das narrativas.
Ainda que não seja um “sitcom tradicional”, como veremos em breve, The Office (NBC-
2005-2013) ainda mantém esta característica. The Office retrata acontecimentos inusitados
em uma fábrica produtora de papel nos Estados Unidos, cujo chefe tem métodos bastante
peculiares de se relacionar com seus funcionários. Na primeira temporada, o sitcom
ressaltou as características de cada personagem e trabalhou acontecimentos isolados
dentro do escritório. Já na segunda temporada, os criadores passaram a construir o
progressivo romance entre Pam e Jim, a secretária do escritório e um dos vendedores,
tratando-se do primeiro dos conflitos que passaria a evoluir no decorrer dos episódios do
sitcom. Relacionamentos amorosos são recorrentemente os principais traços de abertura
das séries que inicialmente apresentam episódios mais fechados.
Parte das características presentes no sitcom tradicional desde a década de 1950
até a atualidade foi resultado das influências culturais e da conjuntura encontrada
por produtores no início da transição rádio-televisão. A mudança do meio apresentou
problemas para o sitcom, principalmente no que tange ao aspecto visual.
Adaptar a comédia a um novo meio representava um problema, uma vez que ela
tinha longa tradição em apresentações teatrais, na literatura, na música e outros. Talvez
por isso o sitcom televisivo não tenha abandonado a característica teatral na forma como
se organiza para a apresentação ao público. Segundo Mills (2009, p. 14), a configuração
que se tornou a práxis do sitcom por tantas décadas pode ser considerada um híbrido
teatral, pois trata-se de uma tentativa de passar para o público em casa a sensação de
uma apresentação humorística teatral ao vivo, o que fica bastante claro nas reações
expansivas dos atores (que precisariam ser vistos até nas últimas fileiras de um teatro)
e nas claques, que, entre outras contribuições, traz uma sensação de apreciação coletiva.
As câmeras de televisão na época de shows como Amos n’ Andy (1951-1953) eram
pesadas e difíceis de transportar, o que fez com que produtores evitassem externas e
construíssem a narrativa dentro dos limites de uma locação interna (estúdio). Os sitcoms
adotam um formato simplificado, caracterizado por produções baratas com a utilização de
locações e cenários amplamente explorados por diversos episódios (DUARTE, 2003, p. 30).
Foi I Love Lucy (1951-1957) o sitcom que instituiu muitos dos recursos de linguagem
encontrados até hoje no formato, através das criações do diretor e fotógrafo Karl Freund.
Freund, após fotografar clássicos como Metropolis (1927), de Fritz Lang, e Dracula (1931),

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O sitcom e a claque: as origens do formato e uma reflexão sobre o desuso do som das risadas da audiência

Fernanda Manzo Ceretta

de Tod Browning, acompanhou os sete anos de I Love Lucy no ar. Entre suas criações
está uma iluminação específica que possibilita o uso de câmeras simultâneas sem que
haja diferença de luz entre os diferentes ângulos de captação. Esse jogo de (muitas) luzes
permite o uso do Three-Headed Monster, ou “monstro de três cabeças”, uma alusão às
três câmeras estrategicamente posicionadas à frente do cenário que capturam o diálogo
entre dois ou mais atores, possibilitando o uso de três enquadramentos na edição: um
plano mais aberto, mostrando o conjunto dos atores e duas opções de plano americano
ou fechado, em parte das personagens ou em um ator específico. Essa configuração
mostra que a importância do plano de quem fala é equivalente à importância do plano
de quem reage ao que é dito. Uma piada seguida de reação traz duas possibilidades: a
de deixar clara a estranheza e, portanto, a comicidade do que foi dito e a de gerar duas
risadas em vez de uma (MILLS, 2009, p. 39).

A CLAQUE
É possível reconhecer um sitcom tradicional imediatamente na televisão ao
detectarmos a presença da claque. Esta talvez seja sua característica mais marcante. O
som da risada não é importante apenas porque é a finalidade do gênero, mas também
porque, através do uso da reação do público presente no estúdio e também das risadas
enlatadas, pode-se dizer que o riso faz parte do texto do sitcom (MILLS, 2005).
A claque é considerada por alguns teóricos o substituto eletrônico para a experiência
coletiva (MEDHURST; TUCK, 1982), alinhando o público presente nas gravações com a
audiência em casa. A voz coletiva reage dentro de uma gama de risadas mais discretas,
interjeições de surpresa, gargalhadas e algumas poucas outras opções.
Em Burns and Allen Show (1950-1958), o programa era gravado com duas câmeras
cruzadas, de modo que, em um diálogo entre duas personagens, cada câmera enfatizava
a reação de uma delas. Após a gravação, o episódio era então mostrado a uma audiência
para a gravação das claques. Essa apresentação determinava a edição: se a piada fazia
os espectadores rirem, a segunda câmera mostrando a reação da outra personagem
entrava na edição. Caso contrário não havia o corte e a audiência permanecia vendo o
ator que fez a piada.
Já nos primórdios do sitcom televisionado, a risada “enlatada” também era utilizada.
Gravações contendo o áudio de plateias em reações diversas eram inseridas, em processo
de pós-produção, para forjar a presença de um público presente no espaço por trás
das câmeras, a quarta parede cuja visualização não era permitida aos telespectadores.
Bancos de dados contendo esses áudios são utilizados por produtores até os dias atuais.
Em entrevista para o site On the Media, Joe Adallian, colunista de TV da New York
Magazine, comenta que o motivo pelo qual os produtores passaram a optar pelas risadas
previamente gravadas é que, durante as filmagens, por vezes era necessário refazer a
mesma cena. É bastante comum haver algum erro por parte dos atores, algum imprevisto
técnico ou qualquer outro fator que os fizesse ter que repetir a ação. O público, após
assistir à mesma piada mais de uma vez, não tinha a reação desejada.
As risadas enlatadas, em contrapartida, soam artificiais. Era comum a repetição dos
mesmos áudios em diferentes shows, por décadas. Segundo Adallian, claques gravadas
nos anos 1950 ainda eram utilizadas nos anos 1960 e 1970. Alguém com uma percepção

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O sitcom e a claque: as origens do formato e uma reflexão sobre o desuso do som das risadas da audiência

Fernanda Manzo Ceretta

mais aguçada poderia até pensar: “acho que conheço essa risada!”. Provavelmente já a
ouvira antes mesmo. Produtores brincavam entre si com o fato de que muitas pessoas
já mortas estariam rindo em seus programas.
Na década de 1970, acreditava-se que, se não houvesse o som de risadas, os
telespectadores não iriam rir. Por serem vistas como algo tão primordial na fórmula
dos sitcoms, as claques estavam presentes até mesmo quando não havia um espaço
adequado no texto. Os criadores de M.A.S.H. eram contra o uso das claques, mas foram
vencidos pelas determinações da emissora. É possível perceber, nesse caso, que a inserção
da claque parece inadequada, tanto pelo humor diferenciado do texto quanto pelo
fato de o programa não ter as configurações tradicionais de um sitcom, a começar pela
ambientação, um cenário de guerra. Apesar disso, M.A.S.H foi muito bem-sucedido.
Quando possui claque, o foco do espectador costuma manter-se na história contada,
e o riso cria uma atmosfera cômica, sem que o espectador preste atenção em todos os
momentos em que é possível ouvi-la. A importância da claque na construção do humor
remete a hábitos de consumo de comédia em ambientes anteriores à televisão, como os
teatros. Vladimir Propp procurou entender, em sua obra Comicidade e riso, o porquê de
o riso ser algo contagiante. Para ele, nós rimos quando transferimos nossa atenção do
caráter espiritual para as formas exteriores de manifestação, que por sua vez revelam
os defeitos daqueles que observamos. “O riso é um sinal sonoro desse deslocamento
de atenção” (PROPP, 1992, p. 181). Assim que esse sinal é percebido por outras pessoas,
elas também podem deslocar o olhar, ver o que antes não percebiam e começar a rir.
Sobre o teatro de comédia, Ivo Bender diz: “De fato, o riso coletivo confere ao gênero
a qualidade de celebração ruidosa em que a alegria e a convivência feliz são as marcas
distintivas” (BENDER, 1996, p. 18). Propp afirmava, no entanto, que “o autor não deve
nos transmitir o objetivo do seu relato através de artifícios como uma linguagem que
revele que a intenção é fazer rir” (PROPP, 1992, p. 206). Ou seja: o riso viria da plateia e
contagiaria a própria plateia, sendo um artifício gerado do público para o próprio público.
A claque de sitcoms contraria essa afirmação de Propp, sinalizando o que é engraçado na
cena. Mas a claque funciona há décadas, apesar de novos sitcoms conseguirem provar
que ela não é indispensável para o formato.
Através das décadas, o sitcom mostrou tendências diferentes. O foco do texto transitou
por temas como família, ambiente de trabalho, ascensão feminina, universos fantasiosos
etc. Em contrapartida, suas principais características mantiveram-se as mesmas.
Na década de 1990, o sitcom vivia um de seus momentos mais frutíferos desde o
surgimento da televisão. Programas como Frasier (NBC, 1993-2004) e Friends (NBC, 1994-
2004) consolidaram-se como grandes sucessos e símbolos culturais da época (BONAULT;
GRANDÍO, 2009, p. 47). São apenas dois exemplos que mostram a força e a influência
do gênero no século XX. Quando esses e outros grandes títulos da década de 1990 já
haviam encerrado ou exibiam seus episódios finais, revistas especializadas decretaram
a morte do sitcom. “Não existe nenhum sitcom entre os 10 programas mais assistidos
nos Estados Unidos”, atestava o Daily Telegraph (PILE, 2004). Apesar disso, na mesma
publicação, Robert Thompson, professor de Estudos de Cultura Contemporânea e Mídia
da Syracuse University de Nova York, afirma a resiliência do Gênero:

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O sitcom e a claque: as origens do formato e uma reflexão sobre o desuso do som das risadas da audiência

Fernanda Manzo Ceretta

Quando um meteoro atingir o planeta, duas coisas vão sobreviver: baratas e sitcoms. Quando
estivermos todos em Marte, posso garantir que estaremos assistindo a sitcoms. É uma unidade
gramatical básica da TV norte-americana. Televisão é uma forma artística em um espaço
doméstico, e sitcom é o programa mais amigável aos espectadores de todos os tempos. Você
pode apreciá-lo se estiver meio adormecido ou meio morto. (PILE, 2004, tradução nossa)

O motivo pelo qual os sitcoms perdiam força na época era principalmente a


popularidade dos reality shows. O forte apelo frente ao público e a grande conveniência
na produção desses títulos fizeram com que a reality TV tomasse conta de horários
tradicionalmente ocupados por sitcoms. “Se as emissoras produzem apenas quatro novos
sitcoms em um ano e apenas um a cada oito é um sucesso, então existe apenas meia chance
por ano de surgir um sitcom que dure várias temporadas” (PILE, 2004, tradução nossa).

A EXCLUSÃO DA CLAQUE EM ALGUNS SITCOMS


O caráter comercial das emissoras norte-americanas pode ter sido um dos motivos
pelos quais o sitcom ficou, durante tanto tempo, sem inovações mais significativas,
partindo-se do princípio de que toda inovação representaria um risco, alterando o que
funcionava há décadas.
Isso não significa que o sitcom jamais tivesse experimentado mudanças em relação
à práxis tradicional na história da TV anteriormente. Programas como Seinfeld (NBC,
1989-1998) e M.A.S.H. (CBS, 1972-1983) são dois exemplos de rompimento que antecedem
as reviravoltas comerciais da televisão nos anos 2000. M.A.S.H. era um híbrido de
gêneros, o que tornava sua classificação enquanto sitcom um pouco confusa, levando a
denominações alternativas como dramedy (drama + comédia). Além disso, não organizava
sua decupagem como os sitcoms tradicionais.
A crise na comédia televisiva no começo do século XXI levou a uma abertura maior
para a tentativa de repaginar o sitcom nos Estados Unidos. Essa mudança foi impul-
sionada por dois motores: o sucesso de emissoras como HBO, TNT e Showtime, com
seus novos programas de temática polêmica e linguagem audiovisual mais sofisticada,
apresentando requintes cinematográficos; e os reality shows, com a utilização de práti-
cas documentais. “As origens desse novo tipo de comédia foram motivadas por razões
industriais e por transformações televisivas derivadas da hibridização de formatos”
(BONAULT; GRANDÍO, 2009, p. 38).
Um grande volume de novos títulos com mudanças expressivas em relação ao sitcom
tradicional passou a integrar as grades de programação: Extras (BBC-HBO, 2005-2007),
Spaced (Channel 4, 1999-2001), Curb your Enthusiasm (HBO, 2000-), Scrubs (NBC, 2001-2008)
(ABC, 2008-), Arrested Development (Fox, 2003-2006), 30 Rock (NBC, 2006), entre outros. Em
termos de ruptura, cada programa possui suas especificidades, mas os dois diferenciais
mais marcantes certamente são a exclusão da claque e a invasão da diegese por parte da
câmera, semelhante às práticas cinematográficas, contando também com movimentos
de grua, steadycam, travelling e câmera na mão. Além disso, a maior mudança de cenas
e locações intensificou o ritmo da narração, e os temas abordados ficaram mais polê-
micos, havendo também uma maior abertura para o humor politicamente incorreto e
o nonsense, ou absurdo.

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O sitcom e a claque: as origens do formato e uma reflexão sobre o desuso do som das risadas da audiência

Fernanda Manzo Ceretta

“A maioria dos sitcoms atualmente não possui claques, com exceção das produções
da CBS” (ADALLIAN, 2012). Os produtores de Two and a Half Men, Big Bang Theory e
2 Broke Girls afirmam que a claque é proveniente de uma audiência presente no estú-
dio, sem recursos para incrementar essas reações. A única de suas produções que
admite o uso de risadas enlatadas é How I Met your Mother, que, diferentemente das
demais produções de comédia citadas, possui uma maior variação de locações e usos
mais variados de câmera. E este apresenta risadas abrandadas em relação às encon-
tradas nos programas que contam com a audiência presente. How I Met your Mother
é um sitcom que traz inovações sobretudo no que diz respeito ao roteiro, contando
a história a partir de vários pontos de vista (apesar de o ponto de vista do pai, Ted,
ser o principal) e fazendo um intenso jogo com o tempo, rompendo diversas vezes a
cronologia dos fatos.
Mesmo sem admitir as manipulações nas reações do público através da captação,
é possível mudar a percepção dos espectadores em casa, seja com posicionamento de
microfones em relação a plateia ou em relação ao que é dito pelos atores. O quanto
esses ou outros recursos são utilizados na CBS, como diria o próprio Adallian, “apenas
a cabeleireira do estúdio sabe ao certo”. Essa discussão é evitada pelos produtores, pois
pode sugerir que o programa não é engraçado, tornando-se uma espécie de tabu.
Um rompimento ainda maior surgiu com as séries que flertam com a linguagem
documental e de reality shows. The Office, já mencionado no presente artigo, é considerado
um marco dessa hibridização na televisão. Originalmente produzido pela BBC, emissora
britânica, o formato do programa chamou a atenção de produtores norte-americanos
que, sob algumas adaptações, passaram a exibir uma versão estadunidense da série na
NBC em 2005.
Emissoras públicas, tanto da Inglaterra quanto da Austrália, trouxeram novas
propostas de sitcom para suas grades de programação antes dos Estados Unidos. Talvez
pelo fato de não serem tão dependentes de audiência e publicidade, elas possam ter
testado novos formatos com maior liberdade. E não seria apenas o sucesso de The Office
na BBC uma justificativa suficiente para a adaptação do título para televisões norte-
americanas, já que os dois públicos diferem em hábitos e preferências. A afinidade do
formato com o apresentado pelos reality shows que encantavam os norte-americanos
seria uma garantia a mais de que The Office, com uma adaptação textual, pudesse atrair
a audiência.
Michael Schur, co-criador de The Office, ressalta como os programas com decupagem
estilo “câmera única” têm um jeito particular de fragmentar a narrativa. Constantemente,
em outros programas de TV, quando uma personagem, em diálogo, refere-se a algum
evento passado, acontece um corte para um flashback e testemunhamos o evento como
uma inserção. Após o flashback, o plano anterior, ou seja, o tempo presente da narrativa,
é retomado. É comum também que a voz da personagem assuma o caráter de voz over
enquanto o flashback é mostrado. Segundo Schur, essa é a forma pela qual esses shows
contam uma história e dão uma deixa para a risada da audiência em shows como Family
Guy e 30 Rock (VANDERWERFF, 2011). Já em sitcoms como The Office, essa fragmentação
acontece nos confessionários, quando vemos o depoimento das personagens para a

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O sitcom e a claque: as origens do formato e uma reflexão sobre o desuso do som das risadas da audiência

Fernanda Manzo Ceretta

câmera, ou para supostos entrevistadores. Esse rompimento pode ser utilizado para fazer
uma piada, para auxiliar em elipses temporais na história, explicando o que acontece,
ou para mostrar o que uma personagem realmente sente sobre algo, ou finge sentir.
Evidenciar as reações das personagens pode ser encarado, sob determinado
prisma, o substituto para a claque. Se as risadas da plateia procuravam uma conjunção
com o momento do riso nas casas dos espectadores, a reação das personagens, em
sitcoms que utilizam códigos de linguagem factuais, passa a ser o momento em que a
estranheza/surpresa/etc. de quem está na diegese corresponde a uma reação emocional
do espectador, muitas vezes risível. É a pausa narrativa para a “digestão” do momento
cômico ou dramático que acabamos de acompanhar.
No sitcom tradicional, a inserção das risadas de uma audiência (presente ou não) nos
estúdios, dividindo a quarta parede com aqueles que assistem aos programas em casa,
é a proposta de uma experiência coletiva. Bergson afirma que “Não desfrutaríamos do
cômico se nos sentíssemos isolados. O riso parece precisar de eco. [...] algo começando por
um estalo e para continuar ribombando, como o trovão nas montanhas” (BERGSON, 1983,
p. 28). Em The Office, durante a ação, os olhares dos espectadores cruzam com o de uma
personagem em cena. Ela nos olha como quem quer nos dizer “você viu isso?” ou “vê o
que eu tenho que aguentar?”. Além disso, há o privilégio de enquadrar essa personagem
em um canto e ouvir, com exclusividade (em relação às demais personagens), seus
sentimentos e reflexões, em confessionários. Mais à frente, em sua obra “O riso”, Bergson
diria: “o riso oculta uma segunda intenção de acordo, diria eu quase de cumplicidade
com outros galhofeiros, reais ou imaginários” (BERGSON, 1983, p. 28). Esse estilo de
decupagem aproxima o espectador das personagens de tal forma que é possível rir
com eles, ou deles, pois há uma forte identificação com a personagem, sendo que esses
sitcoms possuem a premissa de uma invasão de privacidade. Aqui o cômico fica, portanto,
ligado à familiaridade, à conexão cultural. A responsável por construir essa conexão é
a câmera e o novo papel que ela agora adquire nas comédias televisivas.
Além disso, o ato de espionar alguém, ligado à proposta dos reality shows que
inspiram sitcoms como The Office, costuma ser uma atividade solitária. O privilégio
voyeur de quem vê algo íntimo e exclusivo, no caso o espectador, é incompatível com a
ideia de uma presença coletiva compartilhando os sentimentos e as risadas.
Ao pensar em uma transposição dessa nova forma de fazer sitcom para a tradicional,
é possível perceber que o áudio das risadas e as reações em geral da audiência (claque)
entrariam na montagem no momento em que a personagem esboça uma reação para
a câmera, ou até mesmo quando o enquadramento ressalta uma reação sem que a
personagem enderece à câmera, como também é comum. Ou seja: em vez de uma plateia
– legítima ou não – reagir à piada com os espectadores, uma personagem reage. São
duas formas de trabalhar o mesmo mecanismo desse tipo de comédia. A questão é que a
forma utilizada pelos novos sitcoms parece bastante ligada a linguagem de reality shows.
A reação também é uma das ferramentas de atração que fundamenta o ápice cômico
de situações em inúmeros realities, como Extreme Makeover (ABC) e Queer Eye for the
Straight Guy (NBC). Annete Hill, pesquisadora de audiências da mídia na University
of Westminster, comenta a importância da reação dos participantes em reality shows:

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

5525
O sitcom e a claque: as origens do formato e uma reflexão sobre o desuso do som das risadas da audiência

Fernanda Manzo Ceretta

A essência dos programas baseados em estilo de vida é o envolvimento de pessoas comuns e


de seu lazer comum (jardinagem, culinária, moda, decoração) com experts que transformam
o ordinário em extraordinário. Geralmente, a transformação de pessoas ou lares é relacio-
nada a uma competição, só que ganhar não é o que conta e sim o momento da surpresa, a
revelação, quando pessoas ordinárias respondem aos resultados finais. (HILL, 2005, p. 22,
tradução nossa)

O desuso da claque em alguns títulos é a mudança mais significa para os sitcoms,


sobretudo porque esta representou, durante décadas, a característica sonora não-diegética
e de linguagem em geral mais marcante do gênero.
O recente abandono da claque por muitos dos sitcoms (particularmente na Grã-Bretanha)
tem um grande significado. A combinação de um estilo visual diferente da estética teatral
tradicional e a remoção da claque resultam em textos que precisam sinalizar suas intenções
cômicas de uma forma diferente, ou lidar com a possibilidade de a audiência não apenas
perder as piadas, mas não perceber que se trata de um sitcom. [...] O abandono da claque
representa a evolução mais significativa no gênero. (MILLS, 2005, p. 51, tradução nossa)

Ao descaracterizar o gênero de tal forma, os produtores parecem ter enfrentado


dificuldades para encontrar outro elemento que substituísse a leitura que a claque
permitia. Sitcoms como The Middle (ABC, 2009-), entre muitos outros, aboliram a claque
mas utilizam exageradamente a trilha musical para guiar o espectador: em momentos
emotivos ouve-se uma melodia doce; em momentos engraçados, ouve-se uma música
debochada, divertida. É como se esses títulos tivessem recorrido a uma linguagem de
programas de TV infantis ou novelas mexicanas, sendo dois expoentes desse tipo de
uso da trilha musical, para sinalizar os momentos cômicos e dramáticos.
Outro gênero que utiliza a música para guiar a leitura é a reality TV. Sobretudo
por não trabalhar com atores ou com grandes acontecimentos, muitas vezes a trilha
musical ajuda a construir o teor das cenas e a quebrar a monotonia dos diálogos e
ações dos participantes. Como a premissa desses programas é a de ausência de ensaio
e participação de pessoas “comuns”, uma pós-produção mais trabalhada não costuma
quebrar a confiança dos espectadores de que trata-se, em algum nível, de reality.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O sitcom tradicional foi criado para ser um entretenimento familiar. O posicionamento
das câmeras, simulando uma audiência, estava ligado ao fato de que, nas casas, famílias
estariam reunidas diante da TV. A claque seria a reverberação da risada de uma audiência
no mesmo lugar dessas pessoas, rindo com elas ou por elas, dando a sensação de uma
experiência coletiva dentro dos lares.
Já sitcoms como The Office, são de um humor voyeur. Adotar características tradicionais
do sitcom, como a claque, não faria sentido, pois o ato de espionar algo ou alguém é uma
experiência geralmente solitária ou bastante exclusiva. Muito do que fazemos na internet,
principalmente nas redes sociais, está ligado a uma forma de espionagem, a um desejo
voyeur. Através de um dispositivo, vemos fotos, vídeos e textos a uma distância segura,
geralmente em anonimato, o que nos deixa confortáveis para espionar ainda mais. Tanto

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

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O sitcom e a claque: as origens do formato e uma reflexão sobre o desuso do som das risadas da audiência

Fernanda Manzo Ceretta

nos reality shows quanto nos sitcoms mencionados, o anonimato da equipe de filmagem
se confunde com o nosso próprio anonimato.
A ousadia dos produtores de The Office e demais sitcoms que excluiram a claque
representou uma renovação na comédia televisiva e abriu portas para tantas outras
produções que figuram entre as de maior audiência atualmente. Isso acontece,
provavelmente, pela sua maior sintonia com o contexto cultural atual, dada a importância
da identificação para a geração de risadas.

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articles/michael-schur-walks-us-through-parks-and-recreatio,59372/1/

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

5527
Humor e Qualidade na TV Brasileira:
um contrassenso?
Humour and Quality in Brazilian Televison:
a contradiction?
Gabriel a Borges1

Resumo: Este trabalho apresenta um breve panorama que destaca algumas


produções humorísticas de qualidade da TV brasileira e discute os parâmetros
de qualidade relacionados aos gêneros humor-ficção e humor-jornalismo na
análise dos programas CQC (2008) da TV aberta e Sensacionalista (2010) da
TV por assinatura. Problematiza o conceito de qualidade no desenvolvimento
do gênero humorístico na televisão brasileira indagando, por um lado, se a
representação utilizada para gerar o riso promove a diversidade e amplia o
horizonte do público, não reforçando estereótipos e, por outro lado, se há alguma
forma de experimentação com a linguagem televisiva. Sendo assim, os modos
de representação utilizados pelo humor e a experimentação da linguagem
audiovisual são os elementos-chave na análise dos programas televisivos.
Com isso, apresenta alguns resultados do projeto Observatório da Qualidade
no Audiovisual desenvolvido na UFJF com financiamento da Fapemig.
Palavras-Chave: Qualidade. Televisão. CQC. Sensacionalista. Observatório da
Qualidade no Audiovisual

Abstract: This paper presents a brief outlook on Brazilian TV quality humoristic


productions giving particular highlight to some of the latter, and discusses
quality parameters related to humour-fiction and humour-journalism genres
through an analysis of programmes CQC (2008) on open TV and Sensacionalista
(2010) on cable TV. The papers seeks to contextualize the concept of quality in the
development of the humoristic genre in Brazilian television questioning if, on
the one hand, the representation used to generate laughter promotes diversity
and expands public horizon, without resorting to stereotypes and, on the other
hand, if there is any form of experimentation in television language. As such, the
modes of representation used by humour and experimentation of audiovisual
languages are key elements in the analysis of television programmes. The paper
also presents some of the findings of the Audiovisual Quality Observatory
project developed at UFJF with Fapemig funding.
Keywords: Quality. Television. CQC. Sensacionalista. Audiovisual Quality
Observatory.

1.  Doutora em comunicação e Semiótica, Universidade Federal de Juiz de Fora, gabriela.borges@ufjf.edu.br.

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Humor e Qualidade na TV Brasileira: um contrassenso?

Gabriela Borges

O HUMOR NA TELEVISÃO

A PARTIR DOS anos 1980, a TV Globo exibiu diversos programas humorísticos que
se diferenciaram do panorama audiovisual, tais como Armação Ilimitada (1985),
TV Pirata (1988), Casseta & Planeta, Urgente (1992), entre tantos outros. Estes pro-
gramas foram responsáveis, por um lado, pela renovação do humor que era feito na TV
e, por outro lado, pela inovação no uso dos recursos técnico-expressivos da linguagem
audiovisual. Segundo Júnior (2001, p. 168), Armação Ilimitada se caracteriza pela superva-
lorização das imagens e pela linguagem do cinema e videoclipe, explorando os recursos
gráficos das histórias em quadrinhos. O programa estava muito bem sintonizado com
o momento pelo qual o rock brasileiro estava passando, inclusive incorporando o tra-
balho de várias bandas nas suas emissões. TV Pirata prima pela substituição do humor
radiofônico pelo jornalismo de brincadeira, utilizando os atores cômicos que estavam
brilhando no teatro besteirol e as charges de Laerte e Glauco. Os quadrinhos foram um
traço forte do programa. O programa procurou trazer um novo humor para a televisão,
cujos expoentes eram Chico Anysio e Jô Soares, que trabalhavam mais com a paródia
televisiva. Neste sentido, TV Pirata também incorporou a paródia à linguagem televisiva,
brincando com os clichês e com o que normalmente se fazia na televisão.
Apesar do gênero humorístico na TV ter como herança o rádio e o teatro, Arraes
(apud Junior, 2001, p. 182) relata que o humor que faziam naquele momento ressaltava o
visual, muito mais do que o texto. Eram paródias visuais, pois os humoristas cresceram
assistindo televisão e estavam acostumados a contar histórias com imagens. E Arraes, por
outro lado, foi influenciado pelas chanchadas de Sílvio de Abreu e Carlos Manga. Como
diretor, juntamente com Jorge Fernando, Arraes abrilhantou um pouco as chanchadas
trazendo as suas características estéticas para as novelas de humor do horário das 19h
na TV Globo. Arraes (apud Junior, 2001, p. 179-181) afirma que estava preocupado em
experimentar com a linguagem na produção destes programas nos anos 1980.
Parte dos humoristas que se tornaram redatores de TV Pirata depois formaram o
grupo Casseta & Planeta, levando para a televisão o que consideravam o método editorial
adotado para produzir o jornal nanico que os projetou. A idéia era simples: um deles
contava uma piada, se os outros rissem, a proposta era trabalhada coletivamente.
(Fechine, 2008, p. 34)
Fechine (2008, p. 28), ao estudar a qualidade na produção audiovisual de Guel Arraes,
sugere que a intenção do grupo formado por atores, diretores, redatores e roteiristas
era “desconstruir modelos de representação vigentes no teatro, no cinema, no vídeo,
no jornalismo e na própria televisão, tendo o humor como anteparo crítico e irônico”.
Neste sentido, Fechine (2008, p. 24) enfatiza que Programa Legal e Brasil Legal são dois
dos formatos mais inovadores do Núcleo de Criação do diretor pernambucano, mistu-
rando documentário e jornalismo, humor e ficção. Em 1990 Casseta & Planeta estréia com
a cobertura ao vivo do carnaval carioca e a seguir o grupo escreve e atua em esquetes
cômicos do programa Dóris para Maiores, uma revista eletrônica que mistura humor,
jornalismo e ficção, dirigido por Guel Arraes e José Lavigne. Em 1992 estreia Casseta &
Planeta Urgente!, que foi concebido a partir do teatro besteirol e do “jornalismo mentira,
humorismo verdade” que já era praticado no Planeta Diário e na Casseta Popular. (Fechine,
2008, p. 44)

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Humor e Qualidade na TV Brasileira: um contrassenso?

Gabriela Borges

Nos anos 1990 e 2000 os canais da televisão por assinatura, com destaque para o
Multishow, também investiram na produção de programas humorísticos que mesclavam
a ficção, o jornalismo e o humor e, um pouco mais tarde, começaram a estabelecer um
diálogo bastante profícuo com os humoristas que estavam surgindo nos canais de humor
do Youtube ou nos blogs e vlogs.
Nesta pesquisa fizemos um levantamento de sessenta programas humorísticos
dos canais da televisão aberta e por assinatura no período de 1960 a 2014. No que
diz respeito à TV aberta, observamos que a maioria dos programas encontrados foi
exibida na Rede Globo, mas não só. Entre eles, destacamos na categoria humor-ficção
Praça da Alegria (1960), Chico Anysio Show (1960), Os Trapalhões (1969), Casseta & Planeta
Urgente (1992), Comédia da Vida Privada (1995), Sai de Baixo (1996), Hermes e Renato (1999),
A Grande Familia (2001), Os Normais (2001), Sexo Frágil (2003), A Diarista (2003), Sob Nova
Direção (2004), Minha Nada Mole Vida (2004), Os Aspones (2004), Minha Nada Mole Vida
(2004), O Sistema (2007), Toma Lá Dá Cá (2007), Quinta-Categoria (2008), Dicas de um
Sedutor (2008),15 minutos (2008), Norma (2009), Decamerão – A Comédia do Sexo (2009),
Legendários (2010), Comédia MTV (2010), Tapas & Beijos (2011), Família Trapo (1960), Divã
(2011), Pé na Cova (2013). Na categoria humor-jornalismo destacamos Netos do Amaral
(1990), Dóris Para Maiores (1991), Programa Legal (1991), Brasil Legal (1995), Vida ao Vivo
Show (1998), CQC (2008) e Furo MTV (2009).
Na TV por assinatura destacamos os seguintes programas na categoria humor-ficção
Cilada (2005), Os Buchas (2009), De Cara Limpa (2010), Na Fama e na Lama (2010), Morando
sozinho (2010), Desenrola aí (2010), Os Gozadores (2010), Vendemos cadeiras (2010), Adorável
Psicose (2010), Barata Flamejante (2011), Será que Faz Sentido? (2011), Ed Mort (2011), Muito Giro
(2011), Olívias na TV (2011), Os Figuras (2011), Estranha Mente (2012), Vida de Estagiário (2013),
Surtadas na Ioga (2013), Três Teresas (2013), Vai que Cola (2013), Agora Sim (2013), Se Eu Fosse
Você (2013), As Canalhas (2013), Amor Veríssimo (2014). E na categoria humor-jornalismo
ressaltamos Sensacionalista (2011), Até que Faz Sentido (2011) e Zona do Agrião (2012).

A QUALIDADE NO HUMOR TELEVISIVO


O tema da qualidade na televisão vem sendo debatido desde os anos 1980 por
acadêmicos e críticos e vem sendo incorporado na legislação da mídia de diversos países,
principalmente europeus, como tentamos demonstrar em estudo publicado recentemente
(Borges, 2014). No que diz respeito à televisão brasileira, encontramos uma lacuna no
estudo dos programas humorísticos sob a perspectiva das discussões sobre a qualidade.
Este é um conceito controverso, como já discutimos em outros estudos (Borges, 2008),
porém defendemos que pode ser articulado metodologicamente a fim de contribuir
com a reflexão sobre a análise de produções audiovisuais. Para definir a amostra e
operacionalizar a análise, categorizamos o gênero humorístico na televisão em humor-
jornalismo e humor-ficção. O Humor-Jornalismo se caracteriza pela reprodução de fatos
reais e de interesse público de forma bem humorada (se valendo de traços do humor,
como a ironia, o grotesco ou a sátira); pela apropriação da estética jornalística, seja com
o intuito de desconstruir o discurso jornalístico ou de aproveitar a forma de levar “fatos
reais” culturalmente conhecidos pela sociedade para mostrar suas idiossincrasias através
de relatos fictícios. O Humor-Ficção requer a criação de situações ou cenas ficcionais. São

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Humor e Qualidade na TV Brasileira: um contrassenso?

Gabriela Borges

programas que possuem um enredo com um conjunto de personagens principais que


têm um desenvolvimento ao longo da trama. São normalmente programas verossímeis,
como os sitcons, com situações bem humoradas do dia-a-dia. Essas situações podem
tanto ser de comédia quanto de humor, uma vez que podem provocar o riso imediato e
despreocupado (uma queda, algum ocorrido inusitado), ou podem apresentar caricaturas
e paródias, gerando um riso ambíguo e a reflexão sobre a realidade.
Sendo assim, foram criados parâmetros de qualidade para a análise dos programas
humorísticos dos canais da televisão aberta e por assinatura. Estes parâmetros estão
articulados a partir de dois conceitos: modos de representação e experimentação. Os
modos de representação estão relacionados à criação e desenvolvimento dos persona-
gens, na medida em que estes podem ser tanto caricatos, grotescos ou satíricos, inde-
pendentemente das duas categorias estudadas. Estão ligados à reflexão sobre o papel
desempenhado pelos personagens humorísticos na nossa sociedade, isto é, indagamos
se reafirmam estereótipos e lugares-comuns; se criam bordões que se perpetuam; se
criticam os costumes e/ou fazem algum tipo de crítica social; enfim, se contribuem para
quebrar tabus e promover a diversidade em suas diversas acepções. Nosso interesse é
perceber se a criação dos personagens humorísticos contribui de alguma forma para
pautar temas relevantes socialmente e para deslocar a atenção da banalização social que
a televisão reitera incessantemente na maioria dos seus programas.
A experimentação está relacionada com a utilização dos recursos técnico-
expressivos característicos da linguagem audiovisual de forma inovadora e criativa. Isto
é, investigamos se os programas humorísticos criam propostas audiovisuais originais
ou apenas reciclam formatos já existentes; se os recursos técnico-expressivos contribuem
para a construção de narrativas que promovem a diversidade e o debate de ideias e de
pontos de vista. Além disso, discutimos também a forma como o programa incentiva a
participação do público e dialoga com outras plataformas, principalmente na internet.
Os programas foram analisados utilizando a metodologia semiótica por meio da
reflexão sobre os planos da expressão e do conteúdo e a mensagem audiovisual. Os
aspectos considerados na análise do Plano da Expressão foram os seguintes: Produção
de sentido a partir dos elementos estéticos; Uso dos recursos técnicos expressivos (áudio,
vídeo, edição grafismo); Atuação dos pivôs, personagens, apresentadores, entrevistados,
comentadores. Sendo assim, a análise caracterizou os elementos estéticos do programa
nos seguintes códigos: Visuais (câmera, iluminação, cenário, atuação do elenco, guarda-
roupa e maquiagem, qualidade técnica da imagem); Sonoros (tipos de áudio, qualidade
técnica do áudio); Sintáticos (edição, ritmo do programa) e Gráficos (vinheta inicial,
grafismos, rodapés, vinheta final).
A análise do Plano do conteúdo foi realizada a partir da definição dos indicadores
de qualidade. São eles: Relevância: refere-se à pertinência da escolha e ao tratamento
dos temas e dos pontos de vista apresentados no programa de televisão. Estímulo ao
pensamento e ao debate de ideias: refere-se à apresentação de propostas que sejam, por
natureza, polêmicas, contraditórias e férteis no sentido em que farão os telespectadores
refletirem sobre aquilo que assistem num programa de televisão. Ampliação do hori-
zonte do público: refere-se à apresentação de temas que podem contribuir para ampliar
o repertório cultural do público, dando a conhecer novas problemáticas e pontos de

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

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Humor e Qualidade na TV Brasileira: um contrassenso?

Gabriela Borges

vistas, ajudando assim a promover a integração e a combater preconceitos, por exemplo.


Promoção da conscientização política e/ou social dos cidadãos: analisa a escolha e a abordagem
dos temas, contribuindo para a construção de valores éticos. Oportunidade: escolha e
abordagem de temas relevantes e pertinentes numa dada conjuntura nacional e inter-
nacional. Verossimilhança: avalia se a caracterização dos personagens e das cenas são
credíveis na construção narrativa. Diversidade de pontos de vista: se há uma perspectiva,
por parte do programa, em incluir diferentes pontos de vista em relação a um mesmo
assunto. Diversidade de sujeitos representados: se o programa apresenta diferentes sujei-
tos sociais, respeitando as idiossincrasias e especificidades. Diversidade temática: se o
programa busca trazer diferentes temas para serem discutidos. Diversidade geográfica:
escolha de sujeitos de diferentes regiões do pais e também do mundo. Nesse sentido, é
importante observar a utilização (ou não) de diferentes sotaques. Diversidade política: o
programa contempla diferentes opções políticas. Diversidade sócio-econômica: o programa
abrange, de forma plural, distintas classes sócio-econômicas na escolha de persona-
gens e situações. Diversidade cultural: a escolha de diferentes personagens, situações e
abordagens culturais. Diversidade étnica: a escolha de personagens de diferentes etnias.
Diversidade religiosa: a escolha de personagens, situações ou abordagens de diferentes
religiões, seitas ou doutrinas. Diversidade de gênero: a abordagem plural e positiva de
gênero e manifestações sexuais. Estereótipo: se apresenta representações limitadas e
distorcidas de determinados sujeitos e grupos sociais.
No que diz respeito à mensagem audiovisual, os indicadores de qualidade são os
seguintes: Inovação/Experimentação: em que medida o programa apresenta um formato
diferenciado e ideias novas que surpreendem o público. Originalidade/Criatividade: em
termos do formato e da apresentação e abordagem dos temas. Qualidade artística: da
proposta do programa, presente nos códigos visuais, sonoros, sintáticos e gráficos. Apelo
à curiosidade: a proposta do programa apela aos sentidos visuais e auditivos, assim como
aos processos cognitivos de significação dos espectadores. Clareza da proposta: exposição
audiovisual clara dos objetivos do programa. Redundância: repetição dos temas, das
escolhas dos convidados, das abordagens e das imagens. Solicitação da participação ativa
do público: os mecanismos usados para estimular a participação ativa do público. Diálogo
com outras plataformas: a capacidade do programa de se adaptar à convergência midiática,
possibilitando uma interação em diferentes tipos de plataformas.
Portanto, os modos de representação utilizados pelo humor e a experimentação da
linguagem audiovisual são os elementos-chave na análise dos programas televisivos
Custe o que Custar – CQC e Sensacionalista.

Custe o que Custar – CQC


O programa Custe o que Custar estreou na Bandeirantes em 2008 e é uma franquia
do formato argentino Caiga Quien Caiga, produzido pela Eyeworks. O programa mescla
humor e jornalismo, sendo apresentado por Marcelo Tas, Oscar Filho e Marco Luque,
que vestem terno preto, gravata e óculos escuros, como uma espécie de MIB, Homens
de preto. O cenário é composto por uma bancada, onde ficam os apresentadores, e pela
platéia. O logo da empresa patrocinadora do programa, Kaiser ou Ford, aparece ao lado
de cada um dos apresentadores.

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Humor e Qualidade na TV Brasileira: um contrassenso?

Gabriela Borges

Marcelo Tas foi um dos pioneiros do humor jornalismo na TV brasileira, tendo


criado juntamente com Fernando Meirelles o programa Ernesto Varela, o Repórter (1983-
86) que foi exibido na TV Gazeta, SBT e TV Record, MTV e Globo. O repórter fictício
ironizava personalidades políticas da época da abertura e, na maioria das vezes, dei-
xava os entrevistados em uma situação embaraçosa. É célebre a entrevista que fez ao
Paulo Maluf no dia do aniversário do político, em que, depois de cantar Parabéns pra
você pergunta: “Deputado, muitas pessoas não gostam do senhor, dizem que o senhor
é corrupto, ladrão. É verdade isso, deputado?”. Na verdade, podemos dizer que este
personagem foi o precursor do Repórter Vesgo de Pânico TV (2003-11) e seus traços
continuam presentes nas entrevistas do CQC.
Os repórteres do CQC utilizam abordagens satíricas com políticos, celebridades
e demais fontes entrevistadas. O programa apresenta uma grande rotatividade entre
seus participantes. Até o final da temporada de 2014, quem integrava a bancada e fazia
as entrevistas eram os atrapalhados Marcelo Tas, Marco Luque, Dani Calabresa, Oscar
Filho, Felipe Andreoli, Maurício Meirelles, Naty Graciano, Ronald Rios e Guga Noblat.
No final de 2014 Marcelo Tas pede demissão do programa.
É de destacar os quadros Proteste já, para o qual os telespectadores podem enviar
denúncias ou reclamações, pautando assuntos que tenham interesse e Top Five da Televisão,
que tem caráter metalingüístico, escolhendo gafes e erros de emissões, principalmente
ao vivo, que deixam apresentadores muitas vezes em situações constrangedoras, mas
tudo isso sempre de forma bem-humorada. Estes intercalam com as reportagens e as
entrevistas. Os apresentadores também conversam na bancada, comentando sobre o
que foi mostrado, geralmente fazendo comentários irônicos sobre o tema.
São utilizados muitos elementos gráficos que aparecem abruptamente na tela para
mostrar informações, mas também para gerar o riso (como caricaturas, imagens de
marreta, nariz de palhaço, etc.). Com cores fortes, os elementos gráficos chamam a
atenção do telespectador. As legendas utilizadas satirizam os entrevistados. A câme-
ra possui um comportamento atípico, movendo-se bastante e focando determinados
elementos de forma brusca. É importante destacar que existem anúncios publicitários
dos patrocinadores durante a exibição do programa, todos estrelados por integrantes
do programa.
Nas emissões estudadas, foi possível perceber uma grande variedade de temas
abordados, sendo que muitos deles foram pautados por estarem sendo discutidos na
mídia de um modo geral, o que caracteriza dois dos indicadores avaliados, diversi-
dade temática e oportunidade. A política é assunto recorrente, com piadas e ironias a
respeito da presidente Dilma, e da atuação dos políticos de modo geral e a cobertura
bem-humorada das eleições. Assuntos polêmicos também fazem parte da pauta, como
casamento e parada gay, descriminalização das drogas, denúncias sociais como bullying
e mortalidade infantil e temas culturais, como lançamento de filmes, torneios esportivos
e festivais de música.
Os indicadores de Qualidade do Conteúdo e da Mensagem Audiovisual aferidos
podem ser verificados nas tabelas 1 e 2 abaixo:

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Humor e Qualidade na TV Brasileira: um contrassenso?

Gabriela Borges

Tabela 1. Indicadores de Qualidade do Conteúdo CQC.

Tabela 2. Indicadores de Qualidade da Mensagem Audiovisual CQC

Com a análise dos dados, é possível afirmar que o programa CQC prima pela
criatividade na abordagem de temas relevantes, misturando humor com informação
de forma irônica e bem-humorada. Os indicadores de qualidade do conteúdo que mais
se destacam são diversidade temática, conscientização social e política e também a

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Humor e Qualidade na TV Brasileira: um contrassenso?

Gabriela Borges

ampliação do horizonte do público e estimulo ao pensamento e debate de ideias, pois


de modo descompromissado o programa consegue propor a reflexão sobre assuntos
importantes que estão sendo debatidos na sociedade. Porém, também aborda assuntos
da cultura massiva e assim acaba por abranger variados temas. Como se baseia num
formato comercializado no mercado internacional, não podemos dizer que seja inovador
ou original, mas experimenta com a linguagem, de modo criativo. Os recursos técnico-
-expressivos agregam valor à produção, que explora grafismos, movimentos de câmera,
atuação dos apresentadores e edição para criar um programa diferenciado, que não toma
partidos, mas que tenta trazer à tona discussões muitas vezes polêmicas. Neste sentido,
o programa promove o humor inteligente na televisão, porque com uma abordagem
inusitada faz com que o público reflita sobre temas relevantes.

Sensacionalista
O programa exibido no canal Multishow desde 2009 é protagonizado por Betina
Kopp, Márcio Machado, Anderson Freitas, Cristiane Pinto, Elizardo Silva, Larissa Chiben,
Leonardo Luzes. Com um formato que se assemelha a um telejornal, o programa cria
notícias fictícias com tom de verdade. Os âncoras informam as notícias que parecem
reais por serem elaboradas de modo sério e credível, isto é, posicionam-se do mesmo
modo diante da câmera, apresentam a mesma entonação de voz; e as imagens são
editadas do mesmo modo que em um telejornal, intercalando informação no estúdio
e reportagem nas ruas. A/O jornalista faz uma pergunta séria, que é respondida de
modo sério pelo entrevistado e a reportagem é toda construída de forma linear e bem
editada, com a diferença que o assunto tratado é totalmente inverossímil, ou inusitado. O
cenário se assemelha à bancada dos telejornais brasileiros. Dois computadores, um para
cada apresentador. O fundo mostra as pessoas que trabalham nos bastidores do jornal.
Cores em tons de azul e cinza. Os figurinos dos apresentadores também se remeterm
aos figurinos dos âncoras dos telejornais diários.
O nome do programa, Sensacionalista, e o slogan um jornal isento de verdade remete
ao sensacionalismo que é característica cada vez mais marcante do telejornalismo da
TV brasileira, ao mesmo tempo em que subverte este sentido, ao afirmar que é isento
de verdade. O jogo de palavras que propõe desconstrói o sentido do que poderia ser
um jornalismo que se ancora na realidade, mesmo que a espetacularize. Além disso, o
sensacionalismo na chamada imprensa marrom é associado ao grotesco e ao jornalismo
mal feito e de gosto duvidoso, mas o programa apresenta uma estética muito semelhan-
te ao telejornalismo convencional que legitima uma dada representação da realidade.
Neste sentido, podemos afirmar que o Sensacionalista apresenta uma paródia do
telejornal. Para Hutcheon (1989), a paródia é uma imitação cômica de um texto ou
obra artística que inverte o sentido e transgride as normas e convenções sociais. É
concedida certa licença poética ao texto paródico para que possa transgredir os limi-
tes da convenção, mas apenas temporariamente e dentro dos limites autorizados pelo
próprio texto, ou seja, as pessoas precisam ter conhecimento das regras e normas a
serem quebradas, ou cujos significados serão invertidos para que a representação seja
considerada uma paródia.

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Humor e Qualidade na TV Brasileira: um contrassenso?

Gabriela Borges

A principal característica da inversão paródica é o riso cômico que, com uma pitada
de deboche, critica uma concepção de mundo, ao mesmo tempo em que renova e permite
o desenvolvimento da narrativa. Neste sentido, a paródia se processa quando subverte
os clichês e lugares comuns da sociedade midiatizada, tais como os fatos vazios que se
transformam em notícias, e também ao se apropriar dos signos constituintes do tele-
jornalismo que possuem convenções próprias e reconhecidas pelo público. A paródia
expõe as convenções da linguagem televisiva e explicita os seus mecanismos por meio
de um diálogo entre os seus códigos. Este diálogo possibilita novas produções de sentido
que surpreendem o público e promovem um distanciamento crítico entre aquilo que é
produzido e consumido diariamente na televisão e as novas obras que o incorporam.
A ambigüidade da paródia gera elementos que podem contribuir tanto para criticar,
quanto para inovar a produção de obras no panorama audiovisual contemporâneo, que
carece de novas experimentações estéticas.
Na análise dos indicadores da qualidade do conteúdo do programa Sensacionalista,
ressaltamos a escolha dos temas, que são completamente banalizados e inúteis, no
sentido em que não acrescentam nenhuma informação à vida das pessoas. Porém,
fazem parte das pautas dos telejornais diários, mas não com este grau de banalidade.
Alguns dos temas abordados, a título de exemplo, são: Nova profissão vai resolver a difi-
culdade dos casais para terminarem relacionamentos: o finalizador de relacionamentos. A boa
notícia é que já tem no Brasil. Pesquisa divulgada: “avião sempre balança mais quando serve
a refeição”. Todas as escolas do Ensino Fundamental e Médio da capital federal terão aulas de
dança da chuva devido às secas que assolam Brasília. Doutora Aparecida Santos afirma que
tomar até o meio dia 1 litro de cachaça faz bem... para os produtores de cana, de acordo com o
instituto de pesquisa Nupal. O casal sensação da novela das nove Marcelo Pratiasso e Gisele
Rerckman, que namoram dentro e fora das telas, foram vistos ontem atravessando a rua na
Zona Sul do Rio de Janeiro.
Destacamos também a verossimilhança, pois as notícias são exibidas como se
fossem verdadeiras, ou seja, o tom dos jornalistas, a participação dos entrevistados e a
edição de imagens imitam um telejornal convencional. Portanto, apesar dos absurdos
que são ditos, o formato do telejornal é respeitado, fazendo justamente com que a
inversão paródica funcione completamente. Do mesmo modo, o inusitado das notícias
pode levar os telespectadores a refletirem sobre o sensacionalismo presente nos tele-
jornais e no jornalismo de modo geral. Neste sentido os indicadores de diversidade
geográfica e cultural também foram bem pontuados, uma vez que são abordados
temas variados em diversas regiões do país e no exterior. Por outro lado, encontra-se
também certa insistência na abordagem de fatos ocorridos em Portugal que têm como
pressuposto o ponto de vista discriminatório de que o português é burro. Em três
das emissões estudadas Portugal é evocado, sendo que não há referência a nenhum
outro país nas cinco emissões estudadas. Esta observação está relacionada ao indi-
cador estereótipo, que temos percebido nesta pesquisa que é um recurso bastante
utilizado pelos humoristas para que as piadas tenham graça, porque contam com o
reconhecimento do público.
Abaixo, nas tabelas 3 e 4 podem ser verificados os indicadores de Qualidade do
Conteúdo e da Mensagem Audiovisual.

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Humor e Qualidade na TV Brasileira: um contrassenso?

Gabriela Borges

Tabela 3. Indicadores de Qualidade do Conteúdo Sensacionalista.

Tabela 4. Indicadores da Mensagem Audiovisual Sensacionalista.

Na análise dos indicadores de qualidade da mensagem audiovisual ressaltamos


a originalidade e a experimentação do formato do programa, que copia o formato de
um telejornal em toda a sua composição estética alterando justamente o conteúdo e
trazendo assim novas camadas de significação ao produto audiovisual. Este formato
apresenta uma proposta clara e, sem dúvidas, gera a curiosidade do público, que fica

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Humor e Qualidade na TV Brasileira: um contrassenso?

Gabriela Borges

atento à próxima notícia improvável de ser real, mas que foi estruturada de acordo com
os critérios da narrativa jornalística.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O humor na televisão brasileira é um tema ainda pouco estudado, haja vista a
escassa bibliografia existente. Neste sentido, esta pesquisa tem encontrado resultados
surpreendentes sobre os produtos audiovisuais analisados sob a perspectiva da
qualidade. Embora a referência aos estereótipos seja freqüente, muitas vezes com o
intuito de gerar o riso fácil, pois conta com o reconhecimento do público, encontramos
muitas propostas que se diferenciam pela experimentação com a linguagem audiovisual,
como tentamos demonstrar neste trabalho com as análises dos programas de humor-
jornalismo CQC e Sensacionalista. Os dois programas apresentam propostas estéticas
diferenciadas, que experimentam com a linguagem televisual e ampliam o horizonte do
público, promovendo a reflexão. As análises realizadas até o momento neste projeto nos
levam a crer que a relação entre o humor e a qualidade na TV não é um contrassenso,
muito pelo contrário, pois encontramos produtos humorísticos de qualidade e que se
diferenciam no panorama audiovisual brasileiro.
Para finalizar, é importante ressaltar que este trabalho apresentou alguns resultados
do projeto Observatório da Qualidade no Audiovisual, que conta com a participação dos
bolsistas de iniciação científica Danilo Terra, Guilherme Freire Montijo, Hugo Queiroz,
Larissa Garcia, Luma Perobeli, Monalisa Lima, Samantha Anacleto, que fizeram o
levantamento e a sistematização da análise dos dados. O projeto é financiado pela
Fapemig e pela UFJF.

REFERÊNCIAS
Bezerra, J. F. & Maldonado, W. (2013) Inverdades ditas com humor revelam verdades nada
engraçadas: Uma análise sobre o programa “Sensacionalista”. Anais XV Congresso de
Ciências da Comunicação Região Nordeste 2013. Disponível em http://portalintercom.org.
br/anais/nordeste2013/resumos/R37-1110-1.pdf Acesso em 20 mar. 2015.
Borges, G (2014) Qualidade na TV pública portuguesa. Análise dos programas do canal 2:. Juiz de
Fora: Ed. UFJF.
______ (2008) Discursos de qualidade: a programação da A 2: português (pp. 155-78) In
G. Borges& V. Reia-Baptista (org.) Discursos e práticas de qualidade na televisão, Lisboa:
Livros Horizonte.
Fechine, Y. (2008) Núcleo Guel Arraes: formação, influências e contribuições para uma TV
de qualidade no Brasil. In A. Figueroa & Y. Fechine (Ed.), Guel Arraes. Um inventor no
audiovisual brasileiro (pp.17-88). Recife: CEPE Editora.
Hutcheon, L. (1989) Teoria da paródia. Lisboa: Edições 70.
Júnior, G. S. (2001) País da TV. A história da televisão brasileira contada por Gonçalo Silva Júnior.
São Paulo: Conrad Editora do Brasil.
Multishow. Sensacionalista. Disponível em Março, 20, 2015 http://globosatplay.globo.com/
multishow/v/2452101
Youtube. CQC. Disponível em Março, 20, 2015 https://www.youtube.com/watch?v=pgBsQEO0HR0

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Porta dos Fundos, a TV e as tecnicidades
audiovisuais contemporâneas
Porta dos Fundos, TV and contemporary
audiovisual technicalities
T h i a g o E m a n o e l F e rr e i r a dos Santos1

Resumo: O presente artigo analisou o canal de humor Porta dos Fundos na


articulação com a linguagem televisiva e com as novas tecnicidades audiovisuais,
características do contexto contemporâneo. Isto significou observar de que
maneira este programa articula especificidades da linguagem televisiva e da
produção audiovisual disponibilizada no youtube. Para isso, recorremos ao
conceito de gênero televisivo como categoria cultural e ao mapa das mediações
formulado por Martín-Barbero (2008). Concluímos que este produto, ao convocar
possibilidades próprias oferecidas pelo youtube, tensiona a linguagem televisiva,
ao adotar esquetes com duração de dois minutos e edição mais ágil, por exemplo,
e a convoca, ao manter as estruturas de esquete, um dos formatos que configuram
o gênero humor televisivo no Brasil.
Palavras-Chave: Tecnicidades. Porta dos Fundos. Gênero Televisivo. Humor
Televisivo. Internet

Abstract: This paper analyzed the mood channel Porta dos Fundos in conjunction
with the television language and the new audiovisual technicalities, contemporary
context characteristics. We observe how this program articulates specific
language of television and audiovisual production available on youtube. For
this, we used the concept of television genre as a cultural category and the map
of mediations made by Martín-Barbero (2008). We concluded that this product,
to convene own possibilities offered by youtube, tensions the television language,
adopting skits lasting two minutes and more responsive editing, for example,
and the summons, to keep the skit structures, one of the formats that set the
mood television genre in Brazil.
Keywords: Technicalities. Porta dos Fundos. Television Genre. Television Mood.
Internet.

A SOCIEDADE BRASILEIRA contemporânea é marcada, desde o final da década de


1980, pelo desenvolvimento de um modelo neoliberal na economia, acompanhado
de uma articulação com a globalização. Isto favoreceu, a partir dos anos 2000,
um incremento na velocidade da internet – em que pesem velocidades menores e preços

1.  Thiago Ferreira é mestre e doutorando em Comunicação e Cultura Contemporâneas, vinculado ao


Grupo de Pesquisa em Análise de Telejornalismo do Póscom-UFBA. E-mail: thiagoemanoel87@gmail.com

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Porta dos Fundos, a TV e as tecnicidades audiovisuais contemporâneas

Thiago Emanoel Ferreira dos Santos

mais caros, em comparação a outros países –, após a política de privatizações do governo


Fernando Henrique Cardoso. A linguagem televisiva que vem sendo desenvolvida, no
Brasil, desde a criação da TV enquanto indústria, em 1950, tem passado por diversas
modificações neste novo contexto, por conta das novas possibilidades tecnológicas,
sendo articulada em outros espaços como a internet.
Estas transformações implicam em mudanças na forma que entendemos a televisão.
“A televisão programada por hora ficará como parte do dinossauro que só precisa de
tempo para morrer, porque com a tevê digital vamos poder ter tudo no computador. É uma
mudança de tempo [...]” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 10). Passamos por uma mudança
de tempo que nos insere em novos desafios para compreendê-lo. Compreendemos
como Martín-Barbero (2009) que os gêneros estão sendo transformados nesta relação
da televisão com a internet, gerando aquilo que ele denominou como “formas mestiças
da comunicação” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 2). Ele indaga:
Como assumir então a complexidade social e perceptiva que hoje reveste as tecnologias
comunicacionais, seus modos transversais de presença na cotidianidade, desde o trabalho
até o jogo, suas intrincadas formas de mediação tanto do conhecimento como da política,
sem ceder ao realismo do inevitável produzido pela fascinação tecnológica, e sem deixar-
-se apanhar na cumplicidade discursiva da modernização neoliberal – racionalizadora do
mercado como único princípio organizador da sociedade em seu conjunto – com o saber
tecnológico, segundo o qual, esgotado o motor da luta de classes, a história teria encontrado
seu substituto nos avatares da informação e comunicação? (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 9).

Defendemos, a partir deste questionamento, que as transformações tecnológicas


sejam pensadas de um ponto de vista cultural. Uma visão, portanto, que procure escapar
de uma discussão tecnicista, classificada por Martín-Barbero de “fascinação tecnológica”,
e de uma perspectiva determinista economicamente, como se mudanças tecnológicas
fossem sempre conquistas inerentes ao capitalismo e ao neoliberalismo, provocando o
apagamento das diferenças de acesso e usos das possibilidades tecnológicas. É neste
cenário que surgem diversos produtos audiovisuais online, como o que aqui será
analisado: o Porta dos Fundos.
O Porta dos Fundos é um site e canal no youtube, criado por um grupo de humoristas
liderado por Fábio Porchat, Antônio Tabet, Gregório Duvivier, Ian SBF e João Vicente
de Castro em 2012. Nestes três anos, os vídeos dos humoristas ultrapassam, em média,
os dois milhões de visualizações cada um. Além de ter se tornado um dos fenômenos
audiovisuais da internet mais comentados, o humor explorado pelos integrantes da Porta
dos Fundos tem sido marcado pela contestação de valores hegemônicos da sociedade
brasileira, como a religiosidade enquanto espaço de conservadorismo moral, e fortes
críticas à postura repressiva da polícia e à classe política, vistos como lugar da corrupção
e do patrimonialismo, além da ironia relacionada a episódios da vida cotidiana. No dia
14 de outubro de 2014, o canal fechado Fox estreou o Porta dos Fundos na TV, com uma
seleção dos vídeos disponibilizados pelo grupo na internet.
O presente artigo busca compreender as transformações da linguagem televisiva
neste novo contexto contemporâneo, a partir da análise do Porta dos Fundos. Procuramos
entender de que forma especificidades do gênero humor televisivo brasileiro se articulam

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Porta dos Fundos, a TV e as tecnicidades audiovisuais contemporâneas

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com formas de ver e fazer que caracterizam a produção audiovisual online do Brasil.
Partimos do conceito de tecnicidades, formulado por Martín-Barbero (2008), em que
ele os apresenta como sendo “[...] menos assunto de aparatos do que de operadores
perceptivos e destrezas discursivas” (MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 18). Ou seja, ao nos
referirmos a tecnicidades estamos falando de características dos aparatos tecnológicos,
deste novo contexto citado anteriormente, mas nos preocupamos majoritariamente em
como estas tecnologias têm sido operacionalizadas em percepções e discursos por parte
de produtores e consumidores. Estamos sendo ainda mais específicos, já que estamos
nos referindo às tecnicidades audiovisuais contemporâneas nas análises.
As análises das tecnicidades audiovisuais contemporâneas articuladas às discussões
acerca do gênero televisivo são realizadas aqui a partir de dois conceitos metodológicos,
ou seja, que além de caracterizar, pressupõem procedimentos de análise: gênero como
categoria cultural e o mapa das mediações. Apresentamos no tópico a seguir os dois
conceitos e como eles são utilizados neste artigo para que pensemos tanto as tecnicidades
quanto o gênero humor televisivo no Porta dos Fundos. Nosso corpus é composto por 11
vídeos e um especial de Natal, produzidos pelo grupo em dezembro de 2014. A data
foi escolhida de maneira aleatória.

I. GÊNERO TELEVISIVO COMO CATEGORIA CULTURAL


E O MAPA DAS MEDIAÇÕES
Conforme dissemos anteriormente, compreendemos os gêneros televisivos enquanto
categorias culturais. Afirmar isso significa entendê-los não apenas por aquilo que está
nos textos, mas também por aqueles elementos e discursos que os circundam, que
estão no contexto. Mittell (2001, p. 6) afirma que os gêneros “[...] emergem somente das
relações intertextuais entre textos múltiplos, resultando em uma categoria comum”2.
Eles precisam de práticas culturais, seja da produção, seja da recepção, para serem
colocados em relação e serem constituídos. Diz Mittell (2004):
Especificamente, eu argumento que o gênero televiso é melhor compreendido como um
processo de categorização que não é encontrado dentro dos textos midiáticos, mas que opera
através das esferas culturais das indústrias midiáticas, das audiências, da política, da crítica
e dos contextos históricos (MITTELL, 2004, introdução)3.

Portanto, considerar o gênero humor televisivo enquanto uma categoria cultural


nos faz abordá-lo a partir da articulação entre os textos midiáticos – o que aparece nos
programas – e nos discursos que a indústria, as audiências e a crítica fazem sobre ele.
Mais um ponto da definição que Mittell dá aos gêneros deve ser destacada. Ele afirma
que os contextos devem ser levados em consideração na categorização e análise dos
gêneros. Isto significa, portanto, que o gênero não deve ser tomado como uma instância
estável e imutável ao decorrer dos anos. O humor televisivo de hoje não é o mesmo do

2.  “Genres emerge only from the intertextual relations between multiple texts, resulting in common
category” (MITTELL, 2001, p. 6).
3.  “Specifically, I contend that television genre is best understood as a process of categorization that is not
found within media texts, but operates across the cultural realms of media industries, audiences, policy,
critics, and historical contexts” (MITTELL, 2004, introdução).

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Porta dos Fundos, a TV e as tecnicidades audiovisuais contemporâneas

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início do gênero no Brasil, ainda que permaneçam alguns dos elementos daquele tempo
histórico. Mittell (2004) afirma que os gêneros, por conta disso, podem ser definidos
como uma “estabilidade em fluxo”. Ou seja, ainda que possuam características estáveis
que permitam que eles sejam definidos, eles estão inseridos em um fluxo histórico que
faz com que eles ganhem diferenciações.
Mittell (2004) afirma que seu objetivo ao analisar os distintos discursos sobre
os gêneros não é chegar a uma “[...] definição, interpretação ou avaliação própria do
gênero, mas explorar as formas materiais em que os gêneros são operacionalizados
culturalmente” (MITTELL, 2004, p. 14)4. O que pretendemos aqui, portanto, é explorar
os discursos sobre o gênero humor televisivo na articulação com as novas tecnicidades
contemporâneas. Compreender de que forma este gênero é tensionado, neste primeiro
momento, a partir dos discursos da indústria, dos realizadores do Porta dos Fundos.
Vale ressaltar que fazer esta análise dos discursos não significa abrir mão da análise
dos elementos textuais do Porta dos Fundos, na sua relação com estas novas formas de
ver e fazer.
Problematizamos essa discussão do gênero como categoria cultural, articulando-o
às proposições de Martín-Barbero (2008) sobre o mapa das mediações. Martín-Barbero
propõe um mapa para a análise cultural que ultrapasse uma discussão centralizada
nos meios e que leve também em consideração as mediações. Este mapa deve operar
em dois eixos: o diacrônico – ou histórico de longa duração – e o sincrônico. O primeiro
é estabelecido entre as matrizes culturais (MC) e os formatos industriais (FI), sendo
um espaço de
(...) complexos entremeados de resíduos (Williams) e inovações, de anacronismos e moder-
nidades, de assimetrias comunicativas que envolvem, da parte dos produtores, sofisticadas
“estratégias de antecipação” e, da parte dos espectadores, a ativação de novas e velhas
competências de leitura (MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 17).

O eixo diacrônico é estabelecido na relação entre os elementos residuais e as


inovações, na tensão que se estabelece entre os formatos industriais – os programas –,
e aqueles elementos que servem como referência histórica e que atuam na definição do
que é a cultura hoje: as matrizes culturais. O segundo eixo – sincrônico – é estabelecido
entre as Lógicas de Produção (LP) e as Competências de Recepção (CR). As primeiras se
referem às práticas referentes à indústria e as segundas às formas com que a audiência
assiste e se relaciona com estes produtos, interferindo no processo de produção.
Há no mapa formulado por Martín-Barbero (2008), além dos dois eixos citados
acima, mediações que se estabelecem em torno das Matrizes, dos Formatos, das Lógicas
de Produção e das Competências de Recepção. Entre as MC e as LP está a mediação da
institucionalidade. Ela aponta para os processos de institucionalização dos elementos
das matrizes culturais pelas lógicas de produção empresariais. A tecnicidade medeia
a relação entre as LP e os FI, ressaltando a capacidade de inovação dos formatos que as
empresas têm, ao convocarem novas percepções e discursividades. “Porque a tecnicidade

4.  “Our goal in analyzing generic discourses is not to arrive at a genre’s “proper” definition, interpretation, or
evaluation, but to explore the material ways in which genres are culturally operative” (MITTELL, 2004, p. 14).

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é menos assunto de aparatos do que de operadores perceptivos e destrezas discursivas”


(MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 18).
Reiteramos que o principal objetivo deste artigo é analisar a articulação das
tecnicidades audiovisuais contemporâneas – as formas de fazer e ver deste novo contexto
midiático, com a presença de diversos programas na internet, com especificidades
próprias – ao gênero televisivo. Ainda que continue sendo importante para pensar
as tecnicidades a relação com as matrizes culturais, as competências de recepção e os
formatos industriais, que também serão observados nesta análise.
A mediação da socialidade estabelece-se entre as MC e as CR, sendo gerada nas
relações cotidianas, onde, segundo Martín-Barbero (2008), está ancorada a práxis
comunicativa. Com isso, Martín-Barbero ressalta os usos coletivos de comunicação que se
estabelecem no momento em que as matrizes se articulam às formas que a recepção lida
com elas. Nesse processo, Martín-Barbero (2008) afirma que “as MC ativam e moldam os
habitus que conformam as diversas Competências de Recepção” (MARTÍN-BARBERO,
2008, p. 17). A ritualidade medeia os FI e as CR, convocando os seguintes aspectos:
Em sua relação com os FI (discursos, gêneros, programas e grades ou palimpsestos), as
ritualidades constituem gramáticas da ação (grifo do autor) – do olhar, do escutar, do ler –
que regulam a interação entre os espaços e tempos da vida cotidiana e os espaços e tempos
que conformam os meios. (...) Vistas a partir das CR, as ritualidades (idem) remetem, de
um lado, aos diferentes usos sociais dos meios (...) De outro lado, as ritualidades (ibidem)
remetem às múltiplas trajetórias de leitura (ibidem) ligadas às condições sociais do gosto (...)
(Martín-Barbero, 2008, p. 19).

Colocamos o gênero televisivo no centro do mapa das mediações a fim de


problematizar sua relação com as matrizes culturais, os formatos industriais, as lógicas
de produção e as competências de recepção. O que propomos aqui é analisar as mudanças
no televisivo a partir do mapa das mediações, na análise do Porta dos Fundos. Entretanto,
nesta primeira atividade exploratória, objetivo deste artigo, nos centraremos à análise
do eixo diacrônico – a relação entre as MC e os FI – e às tecnicidades, na relação entre
as LP e os FI, deixando para um outro momento, a análise das outras mediações e do
eixo sincrônico (entre as LP e as CR), ainda que levemos em consideração os comentários
postados nos vídeos do programa no youtube, a fim de problematizar o gênero televisivo
enquanto uma categoria cultural. Ressaltamos que pensar o gênero televisivo dentro do
mapa das mediações implica “[...] um olhar que efetivamente procure compreender os
elementos de distintas temporalidades e origens que configuram o processo cultural”
(GOMES, 2011, p. 126-127).

II. GÊNERO HUMOR TELEVISIVO E PORTA DOS FUNDOS


NO MAPA DAS MEDIAÇÕES
Conforme dissemos anteriormente, analisamos todos os vídeos produzidos pelo
Porta dos Fundos em dezembro de 2014. O mês foi escolhido de maneira aleatória. O que
podemos perceber é que este produto convoca diversas características do que podemos
considerar como matrizes culturais do gênero humor televisivo no país. Dos 11 vídeos
analisados, nove abordam situações da vida cotidiana no Brasil, elemento que está

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Porta dos Fundos, a TV e as tecnicidades audiovisuais contemporâneas

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presente em humorísticos televisivos desde um dos programas considerados pioneiro


no gênero: Faça Amor, Não Faça Guerra, apresentado por Jô Soares e Renato Corte Real.
Este programa tinha como inspiração o americano Laugh In, programa de esquetes
transmitido pela NBC entre 22 de janeiro de 1968 e 14 de maio de 1973.
O programa americano, assim como seu similar brasileiro, também era apresentado
por dois atores: Dan Rowan e Dick Martin. O foco das piadas era a sociedade americana, o
movimento hippie, entre outros elementos. Aqui, Jô Soares e Renato Corte Real criticavam
o jeitinho brasileiro5, a representação de que brasileiros gostam de tirar vantagem dos
outros. Estes elementos que ganham força nos tipos caracterizados por estes dois
humoristas irão marcar, ainda que com algumas variações, a forma pela qual se faz
humor no Brasil nas décadas seguintes. Antes, a referência vinda fortemente do cinema
era de, assim como Mazzaropi e outros, se restringir à caricatura de tipos brasileiros
como o sujeito interiorano preguiçoso, como o personagem Jeca Tatu.
Um exemplo desta marca do gênero humor televisivo pode ser visto no vídeo
intitulado “Eu vou embora”6, veiculado no dia 1º de dezembro de 2014. Em vez da
crítica a um comportamento característico da nossa cultura política – o jeitinho – o objeto
é o término do relacionamento de um casal. Nele, o homem (Gregório Duvivier) diz que
vai embora da casa, criando pretextos para ser parado pela namorada (Letícia Lima) que,
entretanto, nada faz para o impedir. Vemos a vida cotidiana sendo ironizada, mas há
uma mudança: sai-se da crítica de uma característica mais ampla da sociedade e entra-se
na esfera privada, acompanhando uma mudança dos meios de comunicação, que têm se
voltado para a cobertura da vida privada das pessoas, principalmente das celebridades.
Além de uma mudança nos meios de comunicação, essa ênfase na vida cotidiana, na
esfera privada, também é objeto dos humoristas do stand-up comedy. Um dos criadores
do canal humorístico, Fábio Porchat, é um dos pioneiros no stand-up no Brasil. Além do
conteúdo, há uma aproximação com a forma, já que os textos dos espetáculos da comédia
em pé são caracterizados por piadas curtas, abordando episódios que, supostamente,
teriam acontecido com os atores. Outro elemento comum entre o stand-up e o Porta dos
Fundos é a utilização de poucos figurinos, com quase nenhuma caracterização.
Apesar desta aproximação pelo conteúdo, há uma série de afastamentos. Se em
Faça Amor, Não Faça Guerra e em outros programas de humor visto como dominantes no
Brasil, como Zorra Total e A Praça é Nossa, o que predomina é a gravação em estúdio, com
uma câmera estática, em plano geral, e uma sucessão de esquetes e quadros, no Porta
dos Fundos, a edição é dinâmica, em qualidade HD, com planos e contra-planos, uma
forma de filmagem que não é comum no que entendemos como dominante do subgênero
humor televisivo7. Cada vídeo produzido pelo Porta dos Fundos é disponibilizado

5.  Sérgio Buarque de Holanda oferece em Raízes do Brasil uma explicação sobre o jeitinho brasileiro a
partir da discussão em relação ao fato de “[...] em toda a vida social, sentimentos próprios à comunidade
doméstica, naturalmente particularista e antipolítica, uma invasão do público pelo privado, do Estado pela
família” (HOLANDA, 1995, p. 82).
6.  A íntegra do vídeo pode ser vista no link: http://www.portadosfundos.com.br/eu-vou-embora/ (Acesso
em 29 de fevereiro de 2015)
7.  Referimo-nos a programas como Zorra Total, da TV Globo, e A Praça É Nossa, do SBT. Ambos estão entre
os programas de humor que há mais tempo estão no ar e que priorizam uma forma de filmagem estática,
sem muitos cortes, como acontece no Porta dos Fundos e mesmo em programas posteriores a ele como o Tá
no Ar: a TV na TV, da TV Globo.

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Porta dos Fundos, a TV e as tecnicidades audiovisuais contemporâneas

Thiago Emanoel Ferreira dos Santos

individualmente, três vezes por semana. Cada plano dos vídeos dura cerca de dois
segundos. Abaixo um dos planos, em que podemos ver o enquadramento com um ator
no plano e uma atriz no contra-plano:

Figura 1. Gregório Duvier no enquadramento e Letícia Lima no contra-plano.

É importante destacar que vídeos de alta qualidade na internet só podem ser vistos
atualmente por causa da expansão da tecnologia em banda larga. Outra característica
comum em vídeos de humor na internet, no Brasil, é a sua duração – em torno de três
minutos – que, por outro lado, remete aos esquetes dos programas televisivos. Isso ficou
ainda mais evidente com o programa do Porta dos Fundos na TV, quando diversos vídeos
do grupo foram exibidos, como se fossem esquetes sucessivos. Estamos nos referindo a
decisões técnicas que estão articuladas com formas de olhar da recepção, com operadores
perceptivos, portanto tecnicidades, e com alterações tecnológicas e contextuais.
Por vezes, o humor escrachado do Porta dos Fundos se aproxima de outro programa
que pode ser considerado uma matriz cultural do humor televisivo brasileiro: a TV Pirata.
A ironia, a crítica e a edição mais dinâmica do que a realizada pelos programas que
citamos anteriormente – ainda que inferior ao utilizado pelo programa aqui analisado –
são formas de aproximação entre estes programas. Entretanto, diferentemente daquela,
o Porta dos Fundos não tem como única abordagem temática a ironia com a produção
televisiva, ainda que haja vídeos em que eles a ironizam, mas que não fazem parte do
corpus deste artigo.
Os humoristas que compõem o Porta dos Fundos, reiteradamente, ressaltam a
liberdade que a internet possibilita na hora de criar seus vídeos, tanto do ponto de
vista da forma quanto do conteúdo8. Este é um discurso sempre presente em quem
produz na internet, por não possuir, a priori, constrangimentos comerciais. Entretanto,
há outros tipos de constrangimentos, sejam de linguagem, sejam econômicos. O Porta
dos Fundos tem uma parceria com a cervejaria Itaipava que exibe os vídeos produzidos
pelos humoristas um dia antes da exibição no site. Em entrevista publicada no dia 23 de
maio de 2014, no Uol, Gregório Duvivier, um dos criadores da Porta dos Fundos, afirmou
o seguinte sobre a estreia do programa do grupo no canal a cabo Fox: “A proposta da
Fox foi a melhor porque eles não vão alterar em nada nosso conteúdo. Vão exibir tudo

8.  A íntegra da entrevista está disponível em http://televisao.uol.com.br/noticias/redacao/2014/05/23/a-


liberdade-continua-diz-duvivier-sobre-serie-do-porta-dos-fundos-na-fox.htm (Acesso em 14 de outubro
de 2014).

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Porta dos Fundos, a TV e as tecnicidades audiovisuais contemporâneas

Thiago Emanoel Ferreira dos Santos

na íntegra. Eles só pediram exclusividade. Nossa liberdade e nosso conteúdo continuam.


Nossa liberdade é o que temos de mais precioso”.
Ainda que façamos a ressalva em relação à liberdade defendida pelos criadores do
Porta dos Fundos, temos que reconhecer que, pelo menos, em um sentido ela é vista: nos
vídeos sobre religião. Este é um tema que não era objeto prioritário de piada de humoristas
– com exceção das religiões de matriz africana – e que aparecem recorrentemente neste
produto. O alvo principal é a fé cristã. Passagens bíblicas são ironizadas e até Deus foi
matéria de um dos vídeos. Isso fez com que o grupo fosse alvo da crítica de diversos
religiosos. “Será que isso é humor? Ou é intolerância religiosa travestida de humor?
Péssimo mau gosto!”, escreveu o cardeal Dom Odilo Scherer em seu twitter9.
O humorista Renato Aragão, um dos criadores dos Trapalhões, principal grupo
humorístico do país entre os anos 1970 e 1990, também criticou: “Eu nunca passei por
esse temor de fazer piada sobre religião, não precisa usar a religião para fazer humor.
Eu acho que até agride, coisa que agride é você criticar a religião da pessoa; muçulmana,
católica, evangélica, tudo”. Nos dois casos, integrantes do Porta dos Fundos defenderam,
evocando a liberdade de expressão e a necessidade de desmistificar as religiões10. As
críticas problematizam os supostos limites do humor – dados contextualmente e com
articulação nos textos –, mas não mudou a forma de atuação do programa analisado neste
artigo. No corpus selecionado, um dos 11 vídeos analisados (Testemunha de Darwin11,
veiculado no dia 29 de dezembro de 2014) mais um especial de Natal12 (publicado no dia
24 de dezembro de 2014) brincam com as religiões. Abaixo trechos do especial de Natal:

Figura 2. Trechos do Especial de Natal

Neste especial, podemos ver uma forma de edição que difere dos outros vídeos:
diversas esquetes contando a história do Velho Testamento. Além disso, o tempo total
são 22 minutos e 32 segundos e os esquetes possuem aproximadamente três minutos,
a mesma duração dos outros vídeos do grupo. Antes de cada um deles, aparece um
título (como no quadro acima – “Deus Meu”) e, além disso, inseriram na edição uma

9.  Leia mais em “Grupo de Humor Porta dos Fundos enfrenta ira de religiosos por especial de Natal”:
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/01/1395628-grupo-de-humor-porta-dos-fundos-enfrenta-
ira-de-religiosos-por-especial-de-natal.shtml (Acesso em 03 de março de 2015)
10.  A reportagem aponta a resposta de Gregório Duvivier sobre a polêmica com Renato Aragão. Disponível
em http://noticias.gospelmais.com.br/renato-aragao-critica-polemico-video-porta-fundos-60555.html
(Acesso em 03 de março de 2015)
11.  Este vídeo pode ser visto em http://www.portadosfundos.com.br/testemunha-de-darwin/ (Acesso
em 28 de fevereiro de 2015)
12.  Este vídeo pode ser visto em http://www.portadosfundos.com.br/especial-de-natal-2014/ (Acesso em
28 de fevereiro de 2015)

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Porta dos Fundos, a TV e as tecnicidades audiovisuais contemporâneas

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entrevista com Inri Cristo, um religioso que diz ser a reencarnação de Jesus Cristo (e
cuja legenda utilizada pelo Porta dos Fundos identifica como tal). Ficou a cargo dele
explicar as questões em relação a passagens da Bíblia. Do ponto de vista da linguagem
utilizada por eles, entretanto, não houve grande variação na edição dos esquetes, com
planos e contra-planos, edições agéis. A única diferença foi uma presença maior de
externas, como também mostra o quadro “Deus Meu” da figura acima.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise do programa Porta dos Fundos nos permite afirmar que o gênero humor
televisivo está em constante transformação. Para percebermos esta mudança, é necessário,
entretanto, compreender o gênero televisivo como uma categoria cultural, algo que é
definido pelos textos, mas não apenas por eles, também pelos discursos construídos
pela indústria, pela audiência e pela crítica. Esta análise dos diferentes discursos em
torno do Porta dos Fundos nos permite dizer que ele tensiona o gênero aqui analisado,
tanto do ponto de vista da forma, com suas edições mais ágeis, enfatizando o jogo de
planos e contra-planos, menores, quando do ponto de vista do conteúdo, com a inclusão
de ironias e críticas em relação à religião e à esfera privada da vida das pessoas.
Problematizar o gênero humor televisivo enquanto categoria cultural articulando-o
ao mapa das mediações de Martín-Barbero (2008) nos permitiu afirmar que neste
tensionamento, o Porta dos Fundos convoca programas que caracterizam matrizes culturais
deste gênero no Brasil, como a Faça Humor, Não Faça Guerra e o TV Pirata, mas, por outro
lado, se aproxima de algumas inovações do gênero, como o stand-up comedy, forma de
fazer humor que surgiu no teatro e desde os anos 2000 tem ficado mais presente na
televisão brasileira. Estas inovações convocam novas competências da recepção para dar
sentido à rapidez do humor utilizado pelo grupo. O eixo diacrônico reforça compreender
o gênero televisivo enquanto uma “estabilidade em fluxo” (MITTELL, 2004).
Considerar o gênero televisivo como uma categoria cultural nos permite vê-lo
enquanto lugar de disputas. É o que se percebe na discussão em torno dos limites do
humor a partir dos vídeos do Porta dos Fundos em relação a temas religiosos. É ou não
é humor falar de religião? Não nos cabe dar uma resposta a esta questão, mas evidenciar
que o debate em torno dela explicita a compreensão de que o gênero é também definido
pelos discursos de críticos e da audiência. E a resposta dos produtores também entra
nessa disputa, quando os humoristas evocam a liberdade de expressão e a necessidade
de desmistificar as religiões.
Vincular a liberdade de expressão à internet é uma das maneiras de observar
as tecnicidades, já que este é um discurso que parece estar presente em muitos dos
textos de produtos online. Além disso, formas de fazer e ver produtos audiovisuais
na internet – vídeos de aproximadamente três minutos, edição ágil, uso de câmeras
de alta qualidade – também aparecem no Porta dos Fundos, permitindo afirmar que
possibilidades tecnológicas presentes no Brasil mais fortemente desde os anos 2000,
com a internet banda larga, têm sido operacionalizados de formas específicas pelos
produtores na relação com a audiência. Ou seja, são transformações tecnológicas, mas
também culturais.

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Porta dos Fundos, a TV e as tecnicidades audiovisuais contemporâneas

Thiago Emanoel Ferreira dos Santos

REFERÊNCIAS
FOLHA DE S. PAULO. Grupo de Humor Porta dos Fundos enfrenta ira de religiosos por especial de
Natal. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/01/1395628-grupo-
-de-humor-porta-dos-fundos-enfrenta-ira-de-religiosos-por-especial-de-natal.shtml
(Acesso em 03 de março de 2015).
GOMES, I. M. M. Gênero televisivo como categoria cultural: um lugar no centro do mapa
das mediações de Jesús Martín-Barbero. Revista FAMECOS. Porto Alegre, v. 18, n. 1, p.
111-130, 2011.
GOSPEL MAIS. Renato Aragão critica o polêmico vídeo do “Porta dos Fundos” e afirma que “humor
não precisa usar religião”. Disponível em http://noticias.gospelmais.com.br/renato-aragao-
-critica-polemico-video-porta-fundos-60555.html (Acesso em 03 de março de 2015).
HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
MARTÍN-BARBERO, J. Jesús Martín-Barbero: As formas mestiças da mídia. Entrevista à
revista Fapesp. Revista Fapesp, edição 163. São Paulo: setembro de 2009. Disponível em
http://revistapesquisa.fapesp.br/2009/09/01/as-formas-mesticas-da-midia/ (Acessado
em 13 de setembro de 2014).
MARTÍN-BARBERO, J. Dos Meios às Mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de
Janeiro: Ed. UFRJ, 2008.
MITTELL, Jason. A Cultural Approach to Television Genre Theory in EDGERTON, Gary R.
& ROSE, Brian G. Thinking Outside the Box: A Contemporary Television Genre Reader.
The University Press of Kentucky, [2001]2005, 3-22.
MITTELL, Jason. Genre and Television: From Cop Shows to Cartoons in American Culture.
Nova York e Londres: Routledge, 2004;
VEJA. Inovação no Ar. Edição 1023. 13 de abril de 1988.
VEJA. Edição 1018. 09 de março de 1988.
VEJA O Humor Refeito. Edição 97. 15 de julho de 1970.
VEJA. As Feras do Humor. Edição 69. 31 de dezembro de 1969.

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O desafio de “Viver a Vida”: a questão dos estigmas
sociais na novela em que a deficiência é protagonista
“Seize the Day”: the Challenge: social stigmas in
a soap opera with disabilities as main character
Leandro Carabet1

Resumo: Com esta pesquisa, pretende-se analisar os aspectos de linguagem


utilizados para construir as cenas da novela, inclusive, levando-se em conta os
aspectos próprios do discurso audiovisual, como enquadramento, trilha sonora
e edição de imagens, relacionando-os a aspectos integrantes da análise do
discurso (em suas relações contextuais). Com isso, procura-se identificar de
que discursos a trama se valeu para revelar as diversas matizes dos estigmas
sociais e preconceitos, que refletem nas atitudes dos indivíduos da sociedade
diante da pessoa com deficiência.
Palavras-Chave: telenovelas, deficiência, estigmas sociais, Análise do Discurso,
Viver a vida.

Abstract: In this research, we intend to analyze aspects of the language used to


build the scenes of “Seize the day”, observing the aspects of audiovisual speech
as well, such as framing, soundtrack and image editing. We also intend to relate
them to some aspects of Discourse Analysis (regarding its relationship to the
context). In doing that we expect to identify speeches present the given soap
opera’s plot in order to bring out the shades of social stigmas and of prejudices,
which are emerge in society’s attitudes in face of the person with disabilities.
Keywords: Brazilian soap opera, disabilities, social stigma, Discourse Analysis,
Seize the day.

O DESAFIO DA PESQUISA

E STA PESQUISA é fruto da observação constante de como se dá a tematização dos


estigmas sociais relacionados às pessoas com deficiência pelas mídias.
Em um primeiro momento, observamos que programas televisivos de humor,
como Comédia MTV e Pânico na TV recorriam, com insistência, ao rebaixamento das
pessoas com deficiência, para encontrar a motivação de suas piadas no reforço dos
estereótipos. Em um caminho diametralmente oposto, em programas como o Teleton
(SBT), identificamos uma certa ultra-valorização destas pessoas. Assim, buscamos um
recobrimento que propusesse um rumo que tentasse desvendar as relações que envol-
vem a pessoa com deficiência e a sociedade.

1. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da Escola de Comunicações


e Artes da Universidade de São Paulo. Email: leandro.carabet@usp.br

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O desafio de “Viver a Vida”: a questão dos estigmas sociais na novela em que a deficiência é protagonista

Leandro Carabet

Encontramos respostas a essas inquietações em um formato televisivo bastante


enraizado na cultura brasileira: a telenovela. Na base formadora das novelas, aparecem
tanto a abordagem do cotidiano, como a questão da permanência dos temas, dada a longa
duração das obras. Ao longo dos anos, personagens com deficiência foram inseridos nas
tramas de diferentes formas e perspectivas.
Assim, ao atrelar essa capacidade de produção de sentidos das telenovelas com os
processos de projeção e identificação que a experiência com a ficção audiovisual suscita
em seus espectadores, definimos a telenovela como nosso objeto de estudo. A pesquisa
se definiu quando selecionamos a obra central de análise, em torno da qual orbitariam
observações sobre as outras produções: “Viver a vida”, de autoria de Manoel Carlos,
exibida em 2009 pela Rede Globo, cuja protagonista era tetraplégica.
Segundo nossa constatação inicial, “Viver a Vida” teve um diferencial, principal-
mente, em relação à questão dos estigmas sociais: a deficiência não recebeu a carga de
condenação e, ainda por cima, recebeu o destaque do protagonismo. Dois elementos que
ainda não haviam sido conjugados em uma mesma produção do horário nobre. Houve,
assim, um esforço da narrativa para que a deficiência deixasse de ser vista pelo público
como uma doença e passasse a ser encarada como condição de vida.
Além disso, lembrando que Luciana não volta a andar no final da trama, podemos
associar a cadeira de rodas da personagem à função da narrativa do “estigma” (Propp,
1984). Esta função, para Propp (1984), corresponde a um sinal, do qual o herói não pode
se livrar. Quando este volta da guerra, traz uma marca que o singulariza e confirma
sua presença no combate, intensificando sua heroicidade.
A escolha acadêmica foi trabalhar com elementos da teoria da narrativa, da análise
do audiovisual e da análise de discurso para a observação do material coletado.

O TRABALHO EM “PLANO GERAL”


Como, porém, havia poucas referências bibliográficas relacionando o tema da defici-
ência às produções de teledramaturgia ao longo do tempo, realizamos também a análise
detalhada de algumas sequências de outras doze produções telenovelísticas anteriores:
“Sol de Verão”, “Mulheres de areia”, “Éramos seis”, “História de amor”, “Chiquititas”,
“Malhação”, “Coração de estudante”, “América”, “Caras e bocas”, “Paraíso”, “Páginas da
vida” e “Aquele beijo”. Nessas análises, procuramos estabelecer um diálogo comparativo
com “Viver a vida”, tendo a questão dos estigmas sociais como eixo central.
Em seguida, à medida que caminhávamos em nossas leituras sobre a expressividade
de novelas no âmbito cultural, como emanação de realidade e a questão dos estigmas
sociais, criamos um banco de cenas e/ou reportagens de cada uma das novelas para
análise, sempre com o intuito de elencar elementos comparativos com a nossa obra
central, “Viver a vida”. Nossa preocupação na captação, em nenhum momento se deu na
seleção de todas as cenas em que o personagem com deficiência aparecia, pautamo-nos
pela expressividade e articulação do tema em cada sequência.
Para essa tarefa, tivemos que mobilizar todos os recursos disponíveis para obter,
gravar e editar as cenas. Algumas foram obtidas por meio das gravações originais dos
capítulos, outras, por meio da retransmissão de determinadas novelas no vespertino

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

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O desafio de “Viver a Vida”: a questão dos estigmas sociais na novela em que a deficiência é protagonista

Leandro Carabet

“Vale a pena ver de novo”, da Rede Globo e no canal de reprises “Viva”, da Globosat. Outras
sequências foram obtidas nos sites das próprias novelas, no canal online “Globo Vídeos”
ou então na própria rede de compartilhamento de vídeos, o Youtube. Dependendo da
relevância de algumas das novelas, assistimos ao conteúdo em sua totalidade e de outras,
conferimos apenas alguns trechos.
Sendo assim, criamos um banco de dados com 185 sequências, visando tanto com-
preender cada uma das produções, como também fornecer um banco de dados para as
pesquisas futuras que venham a trabalhar com o tema. Algumas dessas cenas foram
escolhidas para serem comentadas neste relatório e aparecem no decurso do texto para
justificar o percurso televisivo realizado. À medida que as sequências são citadas, os links
para visualizá-las na íntegra aparecerão logo abaixo das imagens2 das cenas dispostas no
relatório. As demais cenas estão mantidas no banco de dados, apresentado após a biblio-
grafia do relatório, servindo como elemento de compreensão de algumas das passagens.
Como dissemos, nosso método de pesquisa na primeira parte da pesquisa se pautou
pela horizontalidade. Não poderíamos singularizar e sublimar “Viver a vida” sem antes
constituirmos o longo percurso que a representação e a representatividade da pessoa
com deficiência ocuparam nas telenovelas ao longo dos anos.
Sendo assim, nossa primeira apuração baseou-se na comparação dos aspectos gerais
das produções selecionadas na Tabela 1.
Neste quadro montado ao lado, foram assinalados com a cor vermelha os aspectos
das demais produções que se diferenciam da forma como “Viver a vida” lidou em relação
ao tema da deficiência e a sua inserção na narrativa.
Essa demarcação nos permite verificar que, em pelo menos um aspecto, as outras
novelas de nosso panorama agiram de forma diferente de “Viver a vida”. Porém, consi-
deramos este esquema comparativo pouco suficiente e superficial.
Partimos, então, para a análise detalhada de algumas das sequências de cada uma
das outras produções, sempre procurando estabelecer um diálogo comparativo, rela-
cionando-as à questão dos estigmas sociais como eixo central. Para isso, não pudemos
deixar de considerar também os aspectos relativos ao merchandising social e suas varia-
ções, tão em voga atualmente nas novelas e, em certa perspectiva, o compromisso social
que este produto televisivo vem assumindo ao longo das décadas.
Como esclarecemos desde o início, nossa intenção, em nenhum momento, visou
ao esgotamento, nesta pesquisa, da abordagem de todas as telenovelas que trataram o
tema da deficiência nos últimos tempos, mas sim, uma investigação que permitisse a
constituição de um panorama sobre o tema.

O TRABALHO EM “PLANO APROXIMADO”


Durante o envolvimento com determinadas telenovelas nos períodos de coleta de
dados e de cenas, alguns de seus elementos específicos instigaram-nos a investigar ainda
mais algumas implicações da presença do assunto na trama e da perspectiva utilizada
na narrativa, são elas: “América” (2005), “Páginas da vida” (2006) e “Viver a vida” (2009).

2.  As imagens de cenas das novelas que aparecem neste relatório são reproduções e foram capturadas com
recurso de computador e têm a exclusiva finalidade acadêmica.

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O desafio de “Viver a Vida”: a questão dos estigmas sociais na novela em que a deficiência é protagonista

Leandro Carabet

Tabela 1. Tabela comparativa das características das produções

A trama deu a O personagem O personagem


O personagem entender que contribuiu para O persona- movimentou Em qual faixa da
termina a a deficiência mostrar uma a mídia programação
Telenovela gem era pro-
trama sem a foi adquirida nova forma significativa- a novela foi
tagonista?
deficiência? como espécie de de lidar com a mente em exibida?
castigo? deficiência? torno de si?

Sol de Verão 20h – horário


Sim Não Sim Não Sim
– 1982 nobre
Mulheres de
Não Não Sim Não Sim 18h
areia – 1993
Éramos seis –
Não Não Não Não Não 19h45
1994
História de
Não Não Sim Não Sim 18h
Amor – 1995
Chiquititas –
Sim Não Sim Não Não 19h
1997
Malhação –
temporada Não Sim Sim Não Não 17h
de 2000
Esplendor –
Não Sim Não Não Não 18h
2000
Coração de
Na primeira fase
estudante – Não Sim Não Não 18h
sim, depois não
2002
Como uma
Sim Não Não Não Não 18h
onda – 2004
América – 21h – horário
Não Não Sim Não Sim
2005 nobre
Páginas da 21h – horário
Não Não Sim Não Sim
Vida – 2006 nobre
Malhação –
temporada Sim Sim Não Sim Não 17h
de 2008
Caras e bocas
Não Não Sim Não Não 19h
– 2009
Paraíso –
Sim Não Não Sim Não 18h
2009
Viver a vida – 21h – horário
Não Não Sim Sim Sim
2009 nobre
Aquele Beijo
Sim Não Não Sim Não 19h
– 2011

Assim, nesta segunda etapa, procuramos compreender de modo mais aprofundado


a questão dos efeitos de sentido que uma produção telenovelística é capaz de gerar.
Para isso, lembrando que o discurso é sempre constituído a partir de um debate com
a alteridade, pretendemos considerar também de que forma ele opera a construção dos
sujeitos sociais, sejam esses sujeitos os próprios personagens da trama, como também
os telespectadores, envolvidos no processo de produção e diluição da ansiedade, que
percorrem toda a trajetória de uma narrativa teledramatúrgica.
No trabalho de seleção e edição de cenas que ocupou parte significativa de nosso
percurso, duas produções, além de “Viver a vida” propriamente, chamaram-nos a atenção
e tiveram um grande número de sequências coletadas: “América”, com um total de 23
cenas obtidas e “Páginas da Vida”, com 62. Optamos por analisá-las com mais especi-
ficidade e detalhamento, pelo fato de as duas, assim como “Viver a vida”, constituírem
produções recentes, exibidas no horário nobre da emissora de maior audiência do país,

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O desafio de “Viver a Vida”: a questão dos estigmas sociais na novela em que a deficiência é protagonista

Leandro Carabet

a Rede Globo, e por terem sido responsáveis por trazerem o assunto da deficiência com
relevo aos demais recobrimentos midiáticos, em sua diversidade.
Apontamos ainda que nossa observação identificou diferenças constitutivas nessas
três novelas. Assim, ao comparar “América”, “Páginas da vida” e “Viver a vida”, levantamos
os pressupostos a seguir:
1) “América” é a produção, em que a presença da deficiência, mais parece se inserir
na categoria do “merchandising social”, pela sua configuração explícita como campanha
e ação sócio-educativa.
No campo referencial, a novela teve resultados expressivos, já que destacou as
dificuldades encontradas pelos deficientes visuais para circular livremente com seus
cães-guias, apesar do decreto-lei que regulamenta a entrada desses animais em espa-
ços públicos; apresentou ao público o “golbol”, jogo de futebol para deficientes visuais;
discutiu a importância dos semáforos luminosos sonoros e divulgou o projeto Dosvox
– programa para a utilização de computadores por cegos, desenvolvido pelo núcleo de
computação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); e popularizou exposições,
danças e balés para deficientes visuais.
Porém, nos perguntamos se, no aspecto teledramatúrgico, a novela foi igualmente
bem sucedida, já que algumas das cenas de Jatobá e Maria Flor tinham uma forte apro-
ximação com a linguagem documental, sobretudo pela presença da voz explicativa que
se sobrepõe à sequência de imagens. Além disso, percebemos que o núcleo da deficiência
destoava muito da ideia central de “América” que, como o próprio nome diz, é direcio-
nada ao drama da personagem Sol (Deborah Secco), que tenta entrar nos Estados Unidos
como imigrante ilegal. O segundo espaço onde mais se davam as ações em “América”
era o ambiente dos rodeios, onde o par romântico de Sol disputava campeonatos. Essas
ambientações, ao que tudo indica, parecem reforçar o aspecto deslocado e descolado
que a localização de Jatobá-Flor-Islene, o subúrbio do Rio de Janeiro, tinha na história.
2) Diferentemente disso, “Páginas da vida” e “Viver a vida” inseriram o assunto no
núcleo protagonista. Porém, a consulta a alguns dos conceitos da bibliografia permitiu-
-nos apontar que o encaminhamento das narrativas, ao revelar a relação entre o perso-
nagem com deficiência e os demais personagens, evidencia mais, em “Páginas da vida”,
os aspectos relativos aos processos de preconceito e estereótipo e, em “Viver a vida”, os
relacionados ao estigma social da deficiência.
Nesse sentido, em “Páginas da vida”, setores da sociedade discriminam e excluem a
personagem Clara de modo bastante evidente e claro. Ela é evitada do convívio à escola
por determinadas diretoras, professoras e até mesmo por outros pais. A trama já começa
com o preconceito da própria avó, Marta (Lília Cabral), que sem ter visto a própria neta,
diz que não a levaria consigo por conta da síndrome de down.
Em “Viver a vida”, a discriminação parece se dar de uma maneira mais indireta.
Luciana, com suas feições de modelo e seus status privilegiado, cria um certo impedi-
mento para que as ações de discriminação por parte dos outros se deem de maneira
explícita. Mas, ao mesmo tempo, o ambiente inadaptado da cidade e, sobretudo, os
olhares de “dó”, “pena” e “compaixão” que os outros lançam sobre ela, sem nada dizer,
parecem lhe exercer uma exclusão psicológica, que desconforta, em um evidente pro-
cesso de estigmatização.

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O desafio de “Viver a Vida”: a questão dos estigmas sociais na novela em que a deficiência é protagonista

Leandro Carabet

Além disso, durante os contatos mistos (...), é provável que o indivíduo estigmatizado sinta que está
“em exibição”, e leve sua autoconsciência e controle sobre a impressão que está causando a extremos
e áreas de conduta que supõe que os demais não alcançam. (Goffman, 1978, p. 24).

3) Outro aspecto de comparação entre “América” e “Viver a vida” nos permitiu


observar que, se em América, a presença da deficiência foi alardeada antes da estreia,
para justificar o aspecto de “merchandinsing social”, em “Viver a vida” o tema não foi utili-
zado como chamariz de uma pretensa responsabilidade social da produção. Analisamos
a propaganda exibida pela emissora, apresentando Luciana ao público e não houve
qualquer indício de que a temática pudesse emergir na narrativa.
Observamos também as capas sequenciais das revistas de novelas do grupo Abril,
e a revista “Minha novela” só veio a antecipar o anúncio da tetraplegia da personagem
na 3a edição (25/09/2009) após a estreia de “Viver a vida” e a revista “Ti-ti-ti”, apenas na
4a edição (02/10/2009), como está reproduzido a seguir:

Figura 1. A capa da edição 525 da revista Minha Novela traz a manchete: “Luciana fica tetraplégica”

Figura 2. A capa da edição 580 da revista Ti-ti-ti traz a manchete: “Tetraplégica,


Luciana luta pela vida ao lado do verdadeiro amor: Miguel”.

4) Outro aspecto tem a ver com o fato de Luciana não ser a protagonista original
de “Viver a vida”. Ela seria mais uma, dentre as várias histórias de “superação”, o tema
da novela, que viriam a aparecer na trama, como a reviravolta da anorexia alcóolica da
personagem Renata (Bárbara Paz) ou ainda, a reestruturação da médica Ariane (Christine
Fernandes), após sua viuvez precoce.
Tradicionalmente, na obra de Manoel Carlos, quem ocupa o lugar máximo de des-
taque na novela são as personagens de nome Helena, em seus conflitos e envolvimentos

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amorosos, isto ocorreu nas novelas “Baila Comigo” (1981), “Felicidade” (1991), “História de
amor” (1995), “Por amor” (1997), “Laços de família” (2000), “Mulheres apaixonadas” (2003) e
“Páginas da vida” (2007). Porém, em “Viver a vida” a personagem Helena, de Taís Araújo,
perdeu progressivamente o destaque do espaço central para Luciana. Tanto que até hoje,
a novela é relembrada como a história do casal “Luciana & Miguel” e não a de “Helena
& Marcos (José Mayer)” ou “Helena & Bruno (Thiago Lacerda)”.
Um indicativo para responder a esta questão também pode se encontrar no fato de
Alinne Moraes, no ano de exibição de “Viver a vida”, ter recebido o prêmio de melhor
atriz, no programa “Melhores do Ano”3 exibido no programa “Domingão do Faustão”.
Alinne Moraes disputou o prêmio com as atrizes da Rede Globo, Juliana Paes e
Lília Cabral. Juliana Paes interpretara a personagem Maya na trama de “Caminho das
índias” (2009), produção antecessora de “Viver a vida”. Como se sabe, a novela “Caminho
das índias”, de autoria de Glória Perez, foi vencedora do Emmy Internacional de 2009
na categoria de “melhor novela”.
A outra concorrente, Lilia Cabral, intérprete de Tereza, mãe de Luciana em “Viver
a vida” também foi indicada ao Emmy Internacional de 2010 e ao Troféu Imprensa na
categoria de “melhor atriz”, sendo premiada no segundo.
Esses aspectos confirmam que a crítica especializada em televisão nem sempre
caminha junto à opinião do grande público. Como se sabe, a votação do Emmy e do
Troféu Imprensa se dão por especialistas e, no “Melhores do ano”, os vencedores são
escolhidos por votos do público obtidos por telefone e pela internet. Desse modo, o fato
de Alinne Moraes ter conseguido vencer as outras atrizes reconhecidas pela crítica,
uma vez mais reforça a pregnância e a penetração de Luciana na memória afetiva das
pessoas em geral.
Não à toa, ao receber o prêmio (imagem ao lado), a atriz discursou fazendo uma
associação a uma reconhecida história do imaginário das pessoas, com uma atualização:
“É muito bacana ver que 15% da população tá muito feliz e tá sendo retratada, [...] pela “Cinderela
da cadeira de rodas”, que é a Luciana.”. Isso reflete a fala de Eco (1994, p. 131) “Quando se põem
a migrar de um texto para outro, as personagens ficcionais já adquiriram cidadania no mundo
real e se libertam da história que as criou”.

AUTORES SOCIAIS
Ao realizarmos, em nossa pesquisa, um apanhado geral das obras mais significativas
de cada um dos autores da Rede Globo, pudemos observar, pelas comparações entre as
produções, que o grau de realismo das tramas é um aspecto que varia substancialmente
de um para outro. Em uma primeira análise, podemos considerar que Aguinaldo Silva é
o que mais se distancia dessa demanda excessiva pelo real, criando personagens, muitas
vezes, caricaturizados. Em uma postura diametralmente oposta, aparece Glória Perez,
que cria histórias impregnadas de elementos do jornalismo e da linguagem documental.
Um certo discurso referencial mistura-se à estrutura da ficção, geralmente, destacando
temáticas sociais, problemas urbanos ou a realidade de minorias.

3.  “Melhores do ano 2009” foi exibido em 29/03/2010. O vídeo da premiação de melhor atriz pode ser
conferida no seguinte link: http://goo.gl/bYv2n

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O desafio de “Viver a Vida”: a questão dos estigmas sociais na novela em que a deficiência é protagonista

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Nesse aspecto, podemos dizer que Manoel Carlos associa-se à Glória Perez no sen-
tido de fazer abordagens próximas às problemáticas do cotidiano. Em Manoel Carlos,
porém, não se notam tão evidentes os elementos de um certo discurso de campanha e
engajamento social que são vistos nas tramas da autora.
Assim, na realização teledramatúrgica de Glória Perez, tem se notado que a temática
social sobrepõe-se muitas vezes à narrativização da trama. Ou seja, em suas produções,
o assunto social selecionado para a abordagem é tão extensivamente propagado, mes-
mo antes de a telenovela começar a ser exibida, que, muitas vezes, não dá chances de
o espectador naturalmente criar um vínculo com a telenovela e envolver-se com suas
histórias. Isto pode, inclusive, servir de barreira para o interesse na história, afinal,
como comentávamos no capítulo anterior, o estigma social é aquela marca que consegue
chamar mais a atenção do interlocutor do que a própria pessoa. A partir do momento
que se enfatiza que a novela abordará tal tópico, reforça-se a ênfase à marca e não à
tentativa de revelar o estigma.
Para citar um exemplo que distancia Manoel Carlos dessa postura, selecionamos
uma das chamadas exibidas antes da estreia de “Viver a vida”. Chamadas de estreia
de uma novela alternam-se ao longo da programação e, geralmente, são variadas. Há
uma central que aborda a história como um todo e os personagens protagonistas e há
outras que comentam outros núcleos para trazer um panorama.
Escolhemos analisar, a seguir, a chamada veiculada que descrevia a personagem
Luciana. Vale enfatizar, uma vez mais, que no momento inicial ela ainda não era a pro-
tagonista da trama, nem se esperava isso dela:
Narrador: Luciana vive a vida sem medo de arriscar
Luciana: Eu vou chegar lá, você vai ver!
Narrador: Uma linda modelo que está conquistando as passarelas
Helena: E de repente a mocinha virou mulher, a aspirante tá virando uma modelo profissional
Narrador: Ela tem uma relação tumultuada com Jorge, seu namorado de muitos anos
Tereza: Uma hora dizem que vão casar, outra hora dizem que se odeiam
Narrador: E não consegue aceitar que seu pai esteja apaixonada por Helena, sua grande
concorrente
Luciana: Você sabe que eu li em algum lugar que se a mulher não pensa no seu marido ou
namorado a cada hora, não está realmente apaixonada
Narrador: Dia 14, estreia a nova novela das 8, de Manoel Carlos, “Viver a vida”

A observação da sequência que apresenta Luciana ao público em nenhum momento


adianta a tetraplegia da personagem, logicamente deve ter sido um recurso para reforçar
o suspense e surpreender o espectador em outro momento da narrativa.
Luciana é apresentada como todas as outras personagens: com suas qualidades e
aspirações. Não há também qualquer sinalização, por parte da produção e do processo
de edição da chamada, que tente reforçar ou destacar a personagem sobre as demais,
num esforço indireto de chamar a atenção para ela para que a temática que será inserida
por sua personagem ganhe fôlego na sociedade.

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Figura 3. Sequências do teaser que anunciava a personagem Luciana

Mesmo sabendo que sobre ela recairá um papel de relevância social, não há também
um cuidado excessivo para a personagem parecer excessivamente correta e coerente, tanto
que defeitos de Luciana são prontamente citados. Além disso, ela é apresentada como
alguém que tem uma “grande concorrente”, que é justamente a protagonista da novela.
Ou seja, com a trajetória de Luciana, não houve um excesso de zelo desde o início
para sublimá-la à condição de agente do merchandising social, fechando-a em uma redoma
de comportamentos “politicamente corretos”, essa atitude contribuiu para a fluidez da
narrativa e para o menor truncamento e desconfiança com o representante “diferente”.
A ficção fica menos, por assim dizer, “forçada”.
Em geral, ao dizer algo sobre certas características identitárias de algum grupo cultural,
achamos que estamos simplesmente descrevendo uma situação existente, um “fato” do mun-
do social. O que esquecemos é que aquilo que dizemos faz parte de uma rede mais ampla
de atos linguísticos que, em seu conjunto, contribui para definir ou reforçar a identidade
que supostamente apenas estamos descrevendo. (Silva, 2000, p. 93).

Após todo esse processo de proximidade e torcida por Luciana que o envolvimento
com a sua jornada de heroína criaram nos espectadores, cabe-nos concluir este relatório
mostrando como as cenas finais das trama foram fundamentais para consolidar o pro-
cesso de revelação de estigmas sociais para o qual a trama se encaminhou.
No dia 1o de fevereiro de 2009, o ator Mateus Solano, intérprete de Miguel, partici-
pou da gravação do programa “Mais você”, apresentado por Ana Maria Braga. Em dado
momento, a apresentadora lhe pergunta se Luciana voltará a andar no final da trama,

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ao que o ator responde: “Acho particularmente, como pessoa, que ela não voltará a andar. Essa
seria a grande lição da Luciana. De ser feliz na condição que ela está”.
De fato, o roteiro seguiu por essa direção e Luciana continuou usando cadeira de
rodas no capítulo final, reforçando o status de deficiência como condição de vida e não
doença. Luciana retorna às passarelas desfilando em um cadeira motorizada. Mesmo
com a deficiência, Luciana faz a mesma expressão firme de quando desfilava antes do
acidente, o que revela que, para si, ela está esclarecida e bem resolvida com sua situação.
Como aponta-se entre as funções da narrativa, o herói sempre retorna da batalha
trazendo consigo uma marca que reafirma sua presença no combate e distingue sua
heroicidade. O nome desta etapa? Estigma.

Figura 4. Trecho do último capítulo de “Viver a vida”

Outro indício de que Luciana assume a deficiência como condição própria e não
como um acessório que em algum dia será removido, dá-se em outra cena que mostra
Luciana regressando da Lua de Mel com Miguel. Ao chegar ao aeroporto, Luciana diz:
Luciana: Sabe o que eu acho? Pra ser feliz completamente só precisava de um favor, só de
um favorzinho de Deus, do destino e de você também que é meu marido...
Miguel: E qual é o favor?
Luciana: (pausa) Engravidar. Se eu puder te dar um filho, não vai me faltar mais nada
nessa vida.

Figura 5. Trecho do último capítulo de “Viver a vida”

Enquanto se cria a expectativa de que Luciana desejará que lhe seja possível voltar
a andar, ela faz um outro pedido. Ou seja, o maior desejo de Luciana que se lhe for
realizado, fará com que ela se sinta plena, independe da deficiência e sobrepõe-se a ela:
a gravidez.
Para concluir, mostraremos a sequência que encerra o último capítulo antes da
exibição do último depoimento. Este trecho traz uma série de fotos que são “tiradas”
de cada um dos núcleos da novela.

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O desafio de “Viver a Vida”: a questão dos estigmas sociais na novela em que a deficiência é protagonista

Leandro Carabet

Na página a seguir, reproduzimos cada uma dessas imagens que mostram os rela-
cionamentos formados durante a novela em suas mais diversas variedades: inter-raciais
(Bruno e Helena), com diferença de idade e etnia (Maradona e Dora), envolvendo viu-
vez (Jorge e Ariane), reconsiderando filhos que tinham se separado da família (Edite e
Sandrinha) e outros casos. Desses destacam-se Luciana e Miguel que, na composição
da foto, para evitar qualquer desalinhamento, apareceram os dois juntos na mesma
posição: sentados.

Figura 6. Trecho do último capítulo de “Viver a vida”

Para finalizar, como esta pesquisa teve seu ponto de partida a partir de um ques-
tionamento, gostaria de encerrá-la também com uma reflexão:
Muito provavelmente, em uma próxima novela, a presença de uma personagem com
alguma deficiência que venha a ocupar o lugar central durante toda a narrativa pode
ser um fato difícil de se repetir, por parecer imitação de “Viver a vida” ou denotar falta
de originalidade. Sendo assim, daqui a alguns anos, de que forma a deficiência poderá
retornar ao protagonismo na mídia televisiva?

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Leandro Carabet

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A Atmosfera Televisual em Filhos do Carnaval
The Televisual Atmosphere in the Show Sons Of Carnival
L i h e m m A . P. F a r a h L e ã o 1

Resumo: Este artigo pretende analisar de que maneira a ênfase visual e estilística
a neotelevisão e a televisão estilo promovem, principalmente a partir dos anos
1980, um direcionamento da ficção televisiva para conteúdos mais “atmosféri-
cos”, os quais levariam a TV a uma experiência e uma espectatorialidade mais
imersiva, e resultaria em um público cada vez mais absorto na representa-
ção. Tais transformações no texto, na linguagem visual e nos demais aspectos
formais, especificamente, da ficção seriada têm aberto possibilidades autorais
bastante importantes, como é o caso da série brasileira Filhos do Carnaval, de
Cao Hamburguer, que este trabalho se propõe a analisar.
Palavras-chave: Televisualidade. Atmosfera. Imersão. HBO.

Abstract: This article intends to analyze the visual and stylist emphasis that neote-
levision and the televisuality promotes, mainly from the 1980s, and how it guides
television through an atmospheric concept and to immersive strategies inside tele-
vision Drama. Those transformation on screenwriting, visual language and moreo-
ver, others formal aspects, just as the case of Brazilian TV Show Sons of Carnival,
from Cao Hamburguer, has increasingly opened new authorship possibilities.
Keywords: Televisuality. Atmosphere. Immersion. HBO.

1. INTRODUÇÃO

A CONSTRUÇÃO DE uma atmosfera visual (e sonora) e espectatorial, assim como a


experiência da percepção e da sensação que imagem e som promovem a partir
da imersão, são discussões que pululam de muitas formas e são constantemente
atualizadas nos estudos cinematográficos, especialmente nas análises fílmicas. Esse traço
é apoiado nas próprias características do dispositivo cinematográfico e suas formas de
expectação- a sala escura, a tela grande, a inclinação nas cadeiras, o som surround, etc.
Entretanto, no cinema, a experimentação por um vies mais sensorial foi menos difundido
durante muito tempo, particularmente do ponto de vista de certa hegemonia e tradição
da narrativa clássica2. Não obstante, o cinema foi crescentemente atualizando as estra-
tégias do cinema de vanguarda e bebendo de estratégias sensoriais que se difundiram
em outros meios, como a videoarte e o videoclipe musical que foi criado pela televisão.

1. Aluna de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense,


faz parte do Grupo de Pesquisa ENTELAS.
2.  O cinema começou mais abstrato e sensorial, no cinema dos primórdios, e foi assumindo a importância
de formas mais textuais e narrativas. Ao passo que sofisticava as estratégias de imersão através de sua
forma e da tecnologia do dispositivo cinematográfico.

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A Atmosfera Televisual em Filhos do Carnaval

Lihemm A. P. Farah Leão

Essa última, na contramão da imersão por um viés perceptivo individual e


internalizado, foi concebida a partir de uma chave espectatorial coletiva, pela própria
natureza do dispositivo- aparelho que habita um espaço doméstico com confluência de
trânsitos e de outras atividades, assim como focos de atenção paralelos – e pela forma
de expectação – a existência da grade de programação, do zapping3 a partir do controle
remoto, das pausas publicitárias, das conversas e trocas sobre o conteúdo assistido.
Entretanto, a televisão vem experimentando para além da promoção de estímulos
sensoriais e de sensações rítmicas uma ênfase na construção de atmosferas, e do uso
de estratégias de imersão que apontam para um consumo mais individualizado.
Neste artigo, partir-se-á de uma atmosfera geral que constitui a atmosfera televisual
para então debruçar a análise nos elementos que contemplam a atmosfera plástica. O
conceito de atmosfera aqui abordado, é originário da discussão de Inês Gil (2005) e será
melhor aprofundado adiante, para estabelecer um diálogo com os componentes formais
de uma série televisiva de ênfase estilística e visual, que é o caso de Filhos do Carnaval.
Essa discussão se dará à luz de conceitos discutidos principalmente nos textos
Picture Theory: Essays on Verbal and Visual Representation (1994), de W. J. T. Mitchell, e
Televisuality: Style, Crisis, and Authority in American Television, de John Caldwell (1995), A
Atmosfera no Cinema: o Caso de A Sombra do Caçador de Charles Laugthon entre o Onirismo
e Realismo, de Inês Gil (2005), Arte Virtual: da Ilusão à Imersão, de Oliver Grau (2007) e A
Imersão Televisiva e o Retorno da Imagem Estereoscópica, de Felipe Muanis (2012).
Outros conceitos serão levantados e atualizados, ainda que secundariamente,
a partir de teóricos da televisão e da imagem, no audiovisual e também em chaves
mais transversais, como as artes visuais. Essas considerações conceituais se ligam no
sentido de fundamentar uma análise televisual pautada em elementos de linguagem
audiovisual, mas que sopesa o uso de seus elementos formais a partir do entendimento
de um contexto predominantemente neotelevisivo. Nesse sentido, contrapor o que o
autor Umberto Eco (1993) chamou de paleotelevisão4, conceito que foi aprofundado por
Francesco Casetti e Roger Odin (1990) ao discutir os conceitos paleo e neotelevisão,
torna-se premente no tocante de uma fundamentação e situação das chaves televisivas
de análise da série Filhos do Carnaval.
Assim, o presente artigo propõe uma análise dos elementos formais e técnicos que
direcionam para uma atmosfera bastante presente por meio da ênfase visual e sonora
no drama televisivo a ser discutido.
Os elementos manifestos e latentes na série, por sua vez, corroboram os conceitos
de televisualidade ou televisão-estilo5 e com o que será reatualizado a patir da virada

3.  O zapping é justamente o que aprofunda a relação espectador-televisão, já que o público pode assim
percorrer a todos os canais, na ordem em que quiser e acabar por assistir a nenhum programa integralmente,
se assim o desejar. O referido dispositivo reforça a ideia de consumo individual da neotelevisão, além de
dar ao espectador a liberdade de personalizar a experiência da programação televisiva.
4.  Este constitui um período em que a TV tinha um caráter notavelmente pedagógico, marcado pelo
dirigismo da grade e dos programas e pela verticalização da comunicação com o espectador – a televisão
assume um papel de “professor”, em um cenário em que os espectadores seriam alunos. Esse modelo de
comunicação pedagógica é a primeira característica que a neotelevisão vai modificar.
5.  A partir dos anos 1980, a TV vai amplificar o estilo, a abordagem estética e o uso de técnicas e modos de
produção novos. Nesse momento, televisualidade muda a aparência e a visualidade da TV e esse marco se rela-
ciona diretamente com as marcas estilísticas das séries da HBO e a visualidade atmosférica que será discutida.

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A Atmosfera Televisual em Filhos do Carnaval

Lihemm A. P. Farah Leão

imagética6 na televisão. A referida abordagem identifica, na série dramática em questão, a


construção de uma atmosfera televisual e dramática, bem como o uso de estratégias imersivas
em um conteúdo de ficção seriada para televisão. Ainda, as aproximações aqui pontuadas
reiteram o crescente uso de “estratégias de imersão”, já apontadas por Felipe Muanis
(2012), na televisão contemporânea, além da evocação indireta ao espectador através do
apelo de uma sensorialidade, mais ou menos afetiva.

2. HBO: ÊNFASE VISUAL, AUTORIA E ESTILO


Filhos do Carnaval é uma série dramática produzida pela HBO Brasil com a produtora
paulista O2 Filmes. Foi criada por Cao Hamburguer, que também assina a direção
geral, e pela roteirista Elena Soarez. A série estreou em 2006 e foi exibida por duas
temporadas, a primeira com seis e a segunda com sete episódios, em ambos os casos,
com 50 minutos de duração.
A HBO, além de estabelecer uma forte aposta na autoria e no estilo, vem investindo
na expansão comercial. Essa expansão encontra potencial na América Latina onde, além
de exibir filmes e séries produzidas pela HBO estadunidense, o canal passa a produzir
séries produzidas em cada país, como Epitácios (2004), na Argentina, ou Prófugos (2011),
no Chile. A HBO Brasil, nesse contexto, começa a produzir séries nacionais a partir de
2005, como Mandrake (2005), Filhos do Carnaval (2006) e Preamar (2012), todas realizadas
em parcerias estabelecidas com produtoras independentes audiovisuais brasileiras. A
vocação para a programação original é uma das bandeiras do grupo, que nas últimas duas
décadas tem investido maciçamente em novos projetos de ficção televisiva, especialmente
séries dramáticas. Não seria diferente nos canais segmentados por países.
Com relação aos conteúdo, vale dizer, assim como a HBO americana, a HBO Brasil
também pretende se diferenciar das demais produções de séries dramáticas brasileiras
pelo orçamento, pela complexidade das tramas narrativas e pela imagem cujo tratamento
estético e alta definição as aproximam das produções cinematográficas. Suas séries,
ainda que produzidas em parceria com produtoras radicadas no Brasil, mantém marcas
de estilo que não pretendem distanciá-las do suposto “selo HBO de qualidade” ou do
efeito HBO. Esse aspecto pode ser observado desde as aberturas dos programas, até os
formatos estabelecidos para seus conteúdos.
Sem aprofundar muito a discussão nas estratégias de marca da HBO refletidas
na série Filhos do Carnaval, o que é premente relacionar com a estratégia televisual, no
tocante do conteúdo, são os riscos que o canal assume ao se permitir abordagens mais
cruas ou explícitas de algumas temáticas que costumam ser evitadas – ou retratadas
com conservadorismo – em séries de outros canais.7 Não se trata somente de plots
que envolvam violência, erotização e temáticas polêmicas. Claro que esse traço da sua
programação é um atrativo comercial importante, mas a inovação está, principalmente,

6.  Neste artigo, o conceito cunhado pelo trabalho de Mitchell (1994) será atualizado de modo a tratar de
um momento em que se estabelece um discurso visual e que este começa a se distanciar da necessidade
de dependência a um discurso textual, mas a partir das especificidades de um conteúdo narrativo para
TV, em que imagem, forma e texto estão atrelados a uma história.
7.  Fato este que remete a todo um histórico do canal HBO com quebra de tabús, ao retratar personagens
violentos, cenas de nudez e sexo, e desfechos polêmicos ou “imorais” para conflitos dos protagonistas das
séries.

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A Atmosfera Televisual em Filhos do Carnaval

Lihemm A. P. Farah Leão

na forma com que estes temas controversos são tratados dentro das tramas principais
e secundárias das séries.
Tais características que singularizam sua programação, especialmente de ficção, foco
desta análise, normalmente residem mais no campo textual do que imagético. Mas elas
estão, sim, claramente ligadas a estratégias de imersão a partir de elementos plásticos
e construção de uma atmosfera visual que deem mais densidade ao universo pictórico,
seja na promoção de afetos e emoções no espectador, ou de experiências sensoriais.
Ambas as abordagens são recursivas e visíveis em Filhos do Carnaval, tanto para tratar
das contravenções envolvendo drogas e jogo do bicho, quanto as cenas de nudez ou de
exploração sensorial da sexualidade.
Um dado importante na análise da série brasileira em questão, no que diz respeito
à sua espectatorialidade, é que, assim como as demais séries da HBO, não há pausas
comerciais entrecortando os atos, ou seja, a leitura do espectador é mais contínua. Não
há inserções publicitárias ou imagens que estabeleçam uma quebra de clima, contrução
de narrativas paralelas ou distanciamento do universo imagético e dramático de Filhos
do Carnaval. E, ainda que a forma de consumo da série seja outra que não a TV a cabo
– DVD, computador, etc – a ausência das marcas dá fluidez à leitura visual e apoia a
imersão8 do espectador.
Essas características singulares à HBO, somadas às especificidades da série Filhos
do Carnaval, conduz esta análise para uma lugar mais situado nos elementos pontuais
da série no que diz respeito às suas estratégias neotelevisivas e suas especificidades
imersivas.

3. A NEOTELEVISÃO E A IMERSÃO: NOVAS FORMAS


DE ASSISTIR FICÇÃO NA TV
Do ponto de vista neotelevisivo, a construção dos personagens em Filhos do Carnaval,
seus universos específicos e as atmosferas dramáticas9 que deles emergem são ímpares
para o entendimento das estratégias televisuais que marcam esse momento da TV, tanto
visual (e sonora) como textualmente. Para tais estratégias, nota-se na série a evocação
de uma atmosfera quase sempre latente, passiva, fundamentalmente ritmada e plástica
para a criação de sensações e afetos, de construção de expectativa, de formas mais ou
menos imersivas10, para o espectador em relação à representação.
Como concepção, a TV não tem propriamente uma característica imersiva, mas apre-
senta possibilidades de imersão, dentro de sua especificidade técnica, visual e sonora. Os
avanços em tecnologia vêm sendo responsáveis, ao longo da história das transformações
na televisão, por possibilitar novas visualidades e contornos formais e estéticos à mes-
ma. E se a partir dos anos 1980, especialmente, o desenvolvimento técnico da imagem
televisiva se soma a novas formas de enquadramento, luz, cenários e marcas, e fluxo
neotelevisivo como predominância; as novas tecnologias têm possibilitado outras marcas

8.  Ver Oliver Grau, Arte virtual: da ilusão à imersão, São Paulo: Unesp, 2005.
9.  O uso do termo “atmosfera” aqui se relaciona muito com seu uso no trabalho de Inês Gil (2005).
10.  Por imersão, nesta colocação, estou trabalhando formas de espectatorialidade nas quais a imagem, o
conteúdo televisivo ou, ainda, a representação absorvem o espectador de modo a borrarem os limites entre
universo real e universo pictórico.

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pictoriais e estratégias crescentemente sensoriais que, segundo Muanis (2013, p.7), cami-
nham para uma visualidade imersiva, em possibilidades que serão tratadas logo adiante.
Ainda com relação aos aspectos técnicos, os equipamentos que amplificam os efeitos
imersivos da televisão estão cada vez mais acessíveis e não somente no que diz respeito
às imagens com cada vez melhor definição11. O som tem cada vez mais preenchido um
crescente número de espaços, acompanhando as imagens dentro do enquadramento,
mas preenchendo também as sonoridades que vêm de fora do quadro e das zonas
acusmáticas12; além disso, o design das caixas de som espalhadas lateralmente também
corroboram a impressão de imersão.
Essa estrutura acústica remonta a experiência das salas de cinema em um âmbito
doméstico e, ao mesmo tempo, se relaciona com as experiências imersivas que a tele-
visualidade possibilitou a partir da década de 1980. A imersão é aqui analisada epelo
viés da sensorialidade e pelo enevoamento do espaço físico que divide espectador e
representação, por isso ela está tão intimamente relacionada à construção de atmosferas.
As novas tecnologias que a televisão vem crescentemente adotando e integrando,
através de diferentes plataformas, evidenciam passos cada vez mais significativos no
sentido de um realismo integral, experimentado através de ferramentas próprias da
imersão na representação e apagamento das linhas que limitam a percepção da atmosfera
onírica. O óculos 3D é uma delas, e pode ainda agregar novas possibilidades imersivas
com o uso de tecnologias cada vez mais avançadas (como operar com um espaço fora do
quadro) – mas cada vez mais vem se buscando a imersão na representação e a criação
de novas possibilidades espectoriais, muitas vezes apoiadas em uma ênfase visual, em
constante transformação, mas perceptível desde a televisualidade.
A televisão nasceu como uma experiência coletiva e vem se tornando por um lado mais
individualista a partir da proliferação dos canais segmentados e dos vídeos sob demanda.
Contudo, por outro lado, reforça sua grade e seu aspecto comunitário, com as novas tecno-
logias digitais e o zapping midiático, reforçado por espectadores que utilizam a internet e
as redes sociais para produzir os discursos terciários em grande volume e durante a própria
transmissão. Ao analisar, entretanto, o caminho pelo qual a imagem televisiva deve seguir,
com os óculos que devolvem e aprofundam as possibilidades do estereoscópio, a televisão
reforça também um aspecto de individualidade, como demonstra o próprio vídeo promocio-
nal da empresa que os fabrica, em que o espectador aparece solitário, deitado e absorto em seu
aparelho, como se estivesse sonhando ou experimentando um transe. (MUANIS, 2013, p. 11)

Muanis ao tratar de imersão televisiva, pontua certa contradição existente na imer-


são, que é atravessada por experiências bastante diferentes. Se por suas singularidades
enquanto meio, especialmente compreendendo as características da neotelevisão com
relação ao conteúdo, a televisão promove uma imersão de natureza mais coletiva –
entende-se aqui marcas da televisão como a grade de programação, o zapping e demais
elementos de formas de espectatorialidade menos individualizada. Por outro lado, a
imersão através de uma sensorialidade televisiva, em que som e imagens são pensados

11.  Me refiro aqui ao desenvolvimento tecnológico dos aparelhos de TV.


12.  O acusma se relaciona a uma alucinação auditiva em que se ouvem sons de vozes ou instrumentos.

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de modo a criar um mergulho na representação, essa, marca uma experiência cada vez
mais individual.
A discussão de Muanis (2013) reatualiza o conceito que insere o conteúdo como
elemento integrante do movimento “para dentro da representação”, sendo este composto
por diferentes agentes da expectação – aqui, conteúdo, imagem e som. Essas ferramentas
imersivas da televisão corroboram com outra característica do consumo neotelevisivo
que é a leitura e espectatorialidade marcada por uma experiência mais individual do
que uma experiência conjunta; tal traço é ainda mais enfatizado pelo predomínio das
características neotelevisivas.
No caso da HBO, o drama televisivo utiliza sempre a imagem cinemática, algo que
John Caldwell (1995) considera uma imagem elaborada e característica da televisão estilo,
ao contrário da televisão de intensidade zero, que é uma característica da paleotelevisão.
Essa imagem cinemática, que amiúde assume traços videoclípticos, também está pre-
sente nas produções da HBO Brasil e em Filhos do Carnaval.
Com relação ao texto e à teledramaturgia, Filhos do Carnaval constroi um jogo de
poder que tem como eixo central o personagem de Anésio Gebara (Jece Valadão) que,
dono de escola de samba e banqueiro do jogo do bicho, quer passar os negócios da
família para Anesinho (Felipe Camargo), seu sucessor natural. No entanto, a morte de
Anesinho, ainda no primeiro capítulo da primeira temporada, deixa em aberto qual
dos outros três filhos ficará no lugar do pai. Sucessão familiar em jogos de poder é um
conflito relativamente recorrente em dramas que se aproximam ao mobster13, mas quando
somadas às aproximações com o melodrama familiar e com uma atmosfera psicológica
através do hiperreal, seu universo ganha uma especificidade interessante, a ser mais
detalhado adiante.
Tal explicação acerca do universo dramático da série é metodológico, no contexto
das predominâncias neotelevisivas na evocação ao público e aos dramas do homem
comum, uma vez que o drama familiar tem um enfoque significativo, especialmente
na primeira temporada. Reside neste enfoque, uma abordagem que retoma a vontade
de fidelização de um público que poderá se identificar com personagens à medida que
consegue projetar neles alguns de seus conflitos particulares.
Filhos do Carnaval constroi um Anésio fragilizado com a morte do filho e assombrado
por medos que beiram a paranoia. Mas, trata-se aqui de um banqueiro do jogo do bicho,
uma importante organização criminosa que faz parte do imaginário popular brasileiro,
com problemas e fantasmas ordinários, comuns. Ou seja, há aqui a construção de um
referencial com a vida e os problemas do público expressos através desse homem do
cotidiano. Esse é um traço determinante da neotelevisão, como estratégia para atrair o
público e dar a ele uma experiência de pertencimento.14
Os autores Francesco Casetti e Roger Odin (1990), nesse sentido, categorizam essa
programação da neotelevisão entre os referentes espacial e temporal, tendo o cotidiano
dos espectadores como referencial máximo. O referente espacial pretende aproximar o

13.  Narrativas com temática de contravenções, organizações criminosas organizadas e máfia, popularizadas
com histórias que tratavam da máfia italiana nos Estados Unidos.
14.  A evocação direta ou indireta do espectador e do universo doméstico é característica que predomina
em talk shows e programa de entrevistas, mas pode ser encontrada também na ficção televisiva.

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espaço dentro da tela da TV aos espaços do cotidiano dos espectadores, como uma sala de
estar ou um café. Ainda, essa referência pode ser temporal, associando a temporalidade
cotidiana dos espectadores à dos programas de TV. Isso se dá, por exemplo, quando
um canal insere conversas de jantar justamente na programação da noite, mantendo os
espectadores na frente da televisão na hora das refeições.
Essa estratégia cria uma aproximação entre o universo pictórico e o cotidiano do
público que assiste aos programas.15
No caso de Filhos do Carnaval, esse referencial se soma a atmosferas não tão natura-
listas e que diversas vezes transbordam o realismo através de recursos estilísticos e de
uma atmosfera visual e sonora mais abstrata, uma vez que a trama é naturalista mas o
tratamento e a linguagem flertam com o fantástico.
Em dita instância, a série se aprofunda nas fraquezas e nas falhas de caráter dos
personagens e no crime organizado, a partir de chaves de linguagem e pressupostos
do gênero policial – a atmosfera concreta aqui é manifesta16, a tensão está no som do tiro,
no carro que acelera, no uso de um contracampo que acentua o suspense, mas todos
os elementos estão dados e muito amarrados ao discurso textual da série, somados aos
componentes visuais e de imersão.

4. ATMOSFERA PLÁSTICA, LEITURA VISUAL E IMERSÃO


Inês Gil (2005) fala da atmosfera como uma força capaz de gerar sensações e afetos
nos receptores, que é o que dá à representação um aspecto de realidade. Na cena que abre
o episódio piloto17 de Filhos do Carnaval, há o uso de uma profusão de imagens-símbolo,
que são usadas como leitmotiv18 e detonante de uma superstição ou medo que pode ou
não se confirmar. O gato preto que surge na tela, inicialmente tem ligação com a narrativa
somente pelo nome do episódio, afastado da diegese. A imagem da lápide aparece como
a visão de um pesadelo e que se repete na vida do personagem, não apenas no sonho.
A tinta preta que escorre pelos ombros de Anésio o veste de uma atmosfera sombria e
mórbida. Tudo construído em tom surreal, mesmo quando Anésio acorda do pesadelo.
Contudo, o gato, a tinta preta que escorre, e até o som da cuíca que entrecorta as
ações, só adquirem essa tonalidade sombria porque partem de um investimento em um
olhar subjetivo no espaço. A atmosfera criada nessa cena, tanto por seus elementos como
pela forma ritmada com que foram dispostas, enunciadas, se concluem na instância do
afeto. Esses elementos, isoladamente, poderiam conter tantas outras significâncias – visto

15.  A neotelevisão se coloca como espaço do cotidiano, que estaria integrado com o espaço de sociabilidade
que se constitui no entorno do consumo televisivo. Mas a sociabilidade para esse espectador acaba por
estabelecer uma relação que é, sobretudo, um consumo individualizado, ainda que posteriormente aconteça
em grupo, coletivamente. Ou seja, mesmo quando o espectador assiste a um programa em grupo, a sua
relação com o conteúdo não permite que a interação se dê de forma conjunta, ela é particular e pautada
pelas percepções individuais da imagem e do som.
16.  Atmosfera que expressa uma semântica marcada, preponderante. Inês Gil (2005) classifica as possibi-
lidades atmosféricas, na análise de uma atmosfera no cinema, a partir do entendimento de que esses são
conceitos que permeiam alguma flexibilidade dentro das muitas possibilidades de expressão, apesar de
defini-los e organizá-los em um quadro objetivo. Ver Ines Gil, A Atmosfera no Cinema: o Caso de A Sombra do
Caçador de Charles Laugthon entre o Onirismo e Realismo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p.37-38.
17.  Me refiro aqui ao primeiro episódio da primeira temporada de uma série.
18.  O uso aqui se refere a elementos usados como figuras de repetição que detonam uma alusão, ou sensação
ou acionam epígrafes narrativas.

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que a atmosfera é percebida a partir de critérios pessoais projetados na tela – ainda que
os simbolismos respeitem a alguns códigos previamente estabelecidos em um lugar,
uma cultura, uma língua, etc.
De volta ao gato preto, que surge em diversos momentos do episódio piloto19,
este funciona como elemento de ligação sem função textual atrelada a uma construção
diegética. Ele remete a um imaginário simbólico, um mau presságio para a família
Gebara, e imprime sensações enquanto código, mas também provoca a perceção enquanto
textura, enquanto cor, a partir do movimento da câmera que o acompanha, do entorno
a ele enquadrado e por seu caráter de insert, que promove um tipo de leitura específico.
Desta maneira, se constituiria uma “atmosfera plástica”, a partir da concepção de
que os seus estímulos vão além dos domínios da representação para se completar nos
“espaços” psíquicos e afetivos, ou seja, na percepção20 do espectador. Nesse espectro,
atmosfera é entendida, de um lado por sua tangibilidade material e, de outro, pela
intangibilidade do imperceptível, a partir de uma esfera abstrata e subjetiva. Em outras
palavras, transformações no uso dos elementos formais na série de TV, apontam para
uma televisão cada vez mais sensorial.
Esse comentário pontua a percepção como subjetiva e objetiva. Ela engloba uma
margem de variabilidade de indivíduo para indivíduo, mas contém componentes que
estruturam seu conjunto. A atmosfera perpassa um processo perceptível de diferentes
pequenos estímulos de afeto que é de natureza individual.21
Outrossim, a série brasileira mescla características visuais que flertam com uma
imagem menos narrativa, autorreferente, mas, em geral, essa abordagem surge como
um adorno. De fato, ela apresenta uma estética bem marcada, ritmada, arrisca outras
experiências temporais, mais rápidas ou mais lentas. Contudo, ainda que ela aposte
no ritmo, abuse de inserts imagéticos e sonoros, especialmente em sua primeira tem-
porada, o faz sem se afastar muito de sua estrutura narrativa. O uso da narração como
recurso narrativo é modelar nesse sentido, já que é a voz e o texto que orquestram as
imagens ritmadas.
A premissa para esta discussão é que, mesmo em dispositivos totalmente narrativos,
a imagem e o som podem ser explorados de outras formas. Em Filhos do Carnaval, a
natureza dos conflitos e das personagens é pouco a pouco revelada através do ponto de
vista do personagem Nilo, com o recurso da voice over que narra alguns acontecimentos e
imprime opiniões. Nesses momentos, é comum o uso de imagens e sons não narrativos,
com um ritmo que é ditado tanto pela música de fundo quanto pela fala da personagem.
O quarto episódio da primeira temporada traz momentos específicos de montagem mais
acelerada que o resto do episódio, mesclando imagens com função narrativa e outras
que propõem uma construção mais visual e independente. Há sucessão de planos que

19.  Episódio intitulado “Gato: O Bicho Das 7 Vidas”. Todos os episódios da primeira temporada jogam com
os animais do Jogo do Bicho, tanto no título de seus episódios como na construção de suas atmosferas gerais.
20.  Tradição filosófica até o século XX distinguia a sensação da percepção a partir de seu grau de
complexidade. A partir deste entendimento dos dois conceitos, a sensação é o que nos dá qualidades
exteriores e inferiores, isto é, qualidade dos objetivos e os efeitos internos dessas qualidades sobre nós.
21.  Falar de uma atmosfera televisiva recai na discussão sobre como um meio de apelo comunitário por
seu conteúdo e transmissão possa estar se utilizando de estratégias imersivas e de criação de atmosferas
que se dão por processos intensos de um só observador e, logo, são individuais.

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passam pela rotina de uma manhã de Joel (Jorge Coutinho), pai adotivo de Nilo, e do
próprio Nilo; imagens de cobertura do Rio de Janeiro; meninos jogando bola; uma
urna, com números do jogo do bicho, girando. Essas imagens são ritmadas pela música
pulsante, sons ambientes e inserções sonoras não-diegéticas.
Os enquadramentos e os movimentos de câmera, especialmente nestes voices over,
criam um tipo de imersão22 muito específico, sinuoso, mas a partir de uma chave de
representação23 que não é muito naturalista. Que situar-se-ia, talvez, em uma chave de
hiperrealismo, especialmente no uso de efeitos sonoros- inclusive na voz.
Ou seja, mesmo em epígrafes nas quais o discurso textual predomina para dar anda-
mento à narrativa, a partir de uma atmosfera ativa24, a imagem tem muita força na leitura
do espectador e os elementos que compõem a atmosfera plástica tem grande importância
na experiência sensorial e afetiva da série. A saturação das imagens, o uso planos menos
convencionais, os movimentos de câmera que causam desconforto ou vertigem e o uso
de uma iluminação dramática constroem uma série de ênfase atmosférica, e de grande
impacto visual e sonoro. A imersão e a construção de afeto, visualmente, se dão muito
a partir de, sob um aspecto, da criação da tensão e ritmo a partir de um diálogo forte
entre o campo e o fora de campo, e, sob outro ponto de vista, a partir da imagem cinemática
e com profundidade de campo.
O tratamento imagético da série propõe uma estética mais sombria do que se poderia
esperar de ambientes familiares aos espectadores, como a cidade do Rio de Janeiro ou
uma quadra de escola de samba. O som de cuíca que se repete e é usado quase como
dispositivo de transição entre cenas é uma figura de ligação ou leitmotiv, que assume
uma natureza sombria e cósmica, como um prenúncio mórbido.
No primeiro episódio da primeira temporada de Filhos do Carnaval, o público assume
a perspectiva do sonho de Anésio, sombria e tensa. Porém, a morte anunciada acompanha
não apenas os diálogos do restante do episódio, ela está presente em imagens cheias de
simbolismos, além de extremamente ritmadas, e inserções sonoras que extrapolam a
estética do real e deixam o público esperando a confirmação de um presságio mórbido.
No final do episódio, a atmosfera visual e sonora que compõem o universo do samba
e do carnaval são amarradas a partir de uma musicalização que já insurgia em diversos
momentos da série. Ainda que as imagens fossem narrativas, seus cortes e seu ritmo
obedeciam ao compasso da música, a suas subidas e descidas, e orquestravam uma
atmosfera de ansiedade latente no espectador, que sabe que aconteceu alguma tragédia
e é envolvido na tensão criada pela atmosfera dramática do episódio até que se revele

22.  Assim como o cinema, a televisão também caminha no sentido de uma experiência cada vez mais
imersiva, mas através de estratégias próprias da televisão que, a partir de suas singularidades, oferece ao
espectador novas formas e experiências imersivas.
23.  A televisão tem possibilidades de quebra de diegese limitadas, uma vez que seria necessário apagar
a imagem da sala, ou do quarto, ou de algum outro cômodo em que se faça uso de um aparelho de TV,
e do limite de enquadramento do suporte que exibe a imagem. No cinema, a tela grande e o controle de
ambiente da sala escura, diminuem a visão daquilo que está entre o observador e a imagem. No mesmo
sentido, os óculos 3D com protetores laterais impedem a visão periférica e favorecem a imersão no filme.
Entretanto, a televisão tem incorporado ferramentas imersivas que já são utilizadas no cinema, como o
óculos 3D em alta definição.
24.  Atualizo o cunho “atmosfera ativa”, de Gil (2005), para tratar de uma atmosfera visual que faz avançar
a trama narrativa, neste caso, da série analisada.

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A Atmosfera Televisual em Filhos do Carnaval

Lihemm A. P. Farah Leão

o seu desfecho.25 Nesse momento, a atmosfera latente é quebrada e a mesma se torna


manifesta, na atmosfera concreta da série, expressa em seus códigos semânticos.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Umas das marcas da neotelevisão é a agilidade e o ritmo que se dá não apenas
pelo fluxo e pelos cortes rápidos, mas pela sensorialidade da experiência televisiva.
Na paleotelevisão a comunicação transcorria através de um espaço de conhecimento
e afetividade, onde a televisão era uma experiência de socialização em que as pessoas
aprendiam e vibravam. A referida experiência se dava através de uma comunicação
pedagógica em que a televisão representava uma instituição que tinha a função de
ensinar. Já na neotelevisão, a percepção visual e sonora, eloquente e ritmada, cumpre um
papel de energização que conduz a um consumo individualizado, assim como o fazem
as estratégias de imersão que borram os limites da representação e a ênfase atmosférica
que modula sensações e afetos nos espectadores.
Ainda, a riqueza de detalhes favorece a leitura do texto nas imagens em movimento.
Mas, através de diferentes estratégias imersivas os realizadores podem dar mais destaque
ao que querem que seja primeiramente apreendido pelo público. Do mesmo modo,
uma aposta em uma obra visualmente mais desprendida do discurso textual, ainda
que dentro de um conteúdo narrativo, reatualiza pressupostos da virada imagética de
Mitchell (1995) para a ficção televisiva, estratégia que pode ser percebida na série Filhos
do Carnaval e permite que o espectador perceba mais detalhes da imagem e seja mais
estimulado por elas, a partir de sua vibração subjetiva causada por aquilo que vê e escuta.
Esse mergulho na representação que a televisão tem possibilitado e construído,
especialmente nos conteúdos ficcionais, se dá a partir de uma imagem de cada vez
melhor definição, menos chapada e com mais profundidade de campo, além de todo
um campo de experimentação autoral recém-redescoberto. Essas transformações que
se refletem na atmosfera televisual, a partir de sua imagem, muda a forma como seus
conteúdos são produzidos e demanda um olhar mais atento dos estudos da imagem aos
seus componentes plásticos e de linguagem, e é esse debate que este artigo pretende,
ainda que sumariamente, fazer emergir.

REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. Image, Music, Text. London: Fontana Press. 1977.
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d’Água, 1991.
CALDWELL, John Thornton. Televisuality: style, crisis, and authority in American Television.
New Jersey, Rutgers, 1995.
CASETTI, Francesco; ODIN, Roger. Da Paleo à Neotelevisão: abordagem semiopragmática.
Tradução Henrique Ramos Reichelt. Ciberlegenda. 2012
CHION, Michel. A Audiovisão. Som e Imagem no cinema. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2008.
ECO, Umberto. Tevê: a transparência perdida. In: Viagem na Irrealidade Cotidiana. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

25.  A descrição é ainda da cena do episódio piloto, quando o suposto suicídio de Anesinho é evidenciado
por seu corpo morto estirado no chão.

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5570
A Atmosfera Televisual em Filhos do Carnaval

Lihemm A. P. Farah Leão

GIL, Inês. A Atmosfera no Cinema: o Caso de A Sombra do Caçador de Charles Laugthon


entre o Onirismo e o Realismo. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação par
a Ciência e a Tecnologia, Ministério da Ciência e do Ensino Superior, 2005.
GRAU, Oliver. Arte virtual: da ilusão à imersão. São Paulo: Unesp, 2005.
MITCHELL, W. J. T. Picture theory. Chicago: University of Chicago, 1995.
MUANIS, Felipe de Castro. As Metaimagens na Televisão Contemporânea: Rede Globo, MTV e
suas vinhetas. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. 2010.
________ . A imersão televisiva e o retorno da imagem estereoscópica. In: XXII ECONTRO
ANUAL DA COMPÓS. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2013.

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Análise da Fusão de Linguagens em American Splendor
Analysis of the Fusion of Languages in American Splendor
E d g a r A u g u s t o Va s c o 1
R a f a e l Ta s s i Te i x e i r a 2

Resumo: O presente trabalho tem por objeto abordar as características não-


verbais da linguagem presentes na adaptação fílmica American Splendor (Shari
Springer Berman e Robert Pulcini, 2003). Ainda, estabelecer relação entre o
filme e a obra homônima impressa, de Harvey Pekar. Conceitos do cinema e
da comunicação de Will Eisner, David Bordwell, Christian Metz, Umberto Eco
e Robert Stam serviram como base para a elaboração do referencial teórico. A
pesquisa é teórico-empírica, delineada estudo de caso, dicotomizada em: a)
referencial teórico com ênfase em cinema e história em quadrinhos (HQ); b)
seleção de cenas específicas do filme; c) identificação e análise das estratégias e
resultados obtidos na adaptação fílmica; d) elaboração das considerações finais.
O desenvolvimento do trabalho está sistematizado em dois grandes tópicos: 1)
considerações teóricas e 2) a análise da adaptação fílmica. Os resultados revelam
que é possível expressar por meio do cinema diversas linguagens e estilos, como
os de outras mídias e artes, contemplando suas especificidades.
Palavras-Chave: Análise de discurso cinematográfico. Cinema e HQ. American
Splendor.

Abstract: This work approaches characteristics of non-verbal language, seen


in American Splendor (Shari Springer Berman and Robert Pulcini, 2003), a
filmic adaptation. Connections were established between the movie and the
homonymous printed work of Harvey Pekar. The elaboration of the theoretical
framework was based on concepts of cinema and the communication of
Will Eisner, David Bordwell, Christian Metz, Umberto Eco and Robert Stam.
This research is theoretical-empirical, case study type, dichotomized into: a)
theoretical framework with emphasis on cinema and comics; b) selection of
specific scenes from the movie; c) identification and analysis of the strategies and
results obtained in filmic adaptation; d) final considerations. The development
of the work is systematized into two main topics: 1) theoretical considerations
and 2) analysis of filmic adaptation. The result shows that it is possible to express
through cinema movies other languages and styles, even from other medias and
arts, contemplating its specificities.
Keywords: Analysis of cinematographic speech. Cinema and comics. American
Splendor.

1.  Mestrando em Comunicação e Linguagens (PPGCOM/UTP), edrox83@hotmail.com.


2.  Doutor do Programa em Mestrado e Doutorado em Comunicação e Linguagens (PPGCOM/UTP),
rafatassiteixeira@hotmail.com.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

5572
Análise da Fusão de Linguagens em American Splendor

Edgar Augusto Vasco • Rafael Tassi Teixeira

INTRODUÇÃO

A FUSÃO DE linguagens não verbais, a partir da adaptação fílmica verificada em


American Splendor (Shari Springer Berman e Robert Pulcini, 2003), tema do pre-
sente trabalho, propõe-se investigar a estética do referido filme, com suporte em
conceitos do cinema e da comunicação trabalhados por Will Eisner, David Bordwell,
Christian Metz, Umberto Eco, Robert Stam, dentre outros.
Delimitou-se o corpus da investigação às cenas específicas do filme supracitado para
possibilitar uma análise mais aprofundada, realizada com base nos referenciais teóricos
anteriormente mencionados, acrescidos de contribuições de outros autores que tratam
da dimensão estética do objeto de estudo.
No decorrer da revisão de literatura, percebeu-se a relevância de avançar na inves-
tigação da capacidade do cinema em expressar temas artísticos, próprios de outras
mídias. Graças a essas contribuições as considerações teóricas estendem-se aos parâ-
metros estéticos concebidos ao longo da história do cinema, tais como: a busca por uma
representação realista, a complexidade e a composição dos planos, a fotografia e outras
técnicas cinematográficas utilizadas pelos diretores.
A partir dos propósitos mais abrangentes desta investigação delinearam-se os
objetivos específicos do presente trabalho, assim definidos: 1) Identificar as estratégias
empregadas na adaptação fílmica por meio da estética, da composição dos planos e
dos recursos disponíveis durante a pós-produção, adotadas pelos autores das obras.
2) Reunir reflexões acerca das especificidades midiáticas do cinema e das histórias em
quadrinhos, estimulando o desenvolvimento de novas linguagens não-verbais para as
futuras adaptações.
Nesta perspectiva, do ponto de vista metodológico, definido e delimitado o tema, os
objetivos gerais e específicos e delineada a revisão de literatura, procedeu-se à análise
da adaptação fílmica de American Splendor considerando suas características estéticas
com base nos conceitos teóricos do cinema e da comunicação.
O desenvolvimento do trabalho, seguido da conclusão, será sistematizado em dois
grandes tópicos desdobrados em sub-tópicos. No primeiro, tratar-se-á das considerações
teóricas referenciais e no segundo, será abordada a análise da adaptação fílmica.

1. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS REFERENCIAIS


1.1 Especificidades do cinema e da HQ:
Tanto as HQs quanto o cinema lidam com o entretenimento por meio das imagens
sequenciais e das palavras. Ao analisar a adaptação de American Splendor, esses elementos
foram considerados fundamentais. Dando prioridade ao elemento visual, não foi
descartado o emprego comunicacional das palavras, conforme afirma Eisner (1999)
sobre as HQs:
A história em quadrinhos lida com dois importantes dispositivos de comunicação, palavras
e imagens. Decerto trata-se de uma separação arbitrária. Mas parece válida, já que no mundo
moderno da comunicação esses dispositivos são tratados separadamente. Na verdade, eles
derivam de uma mesma origem, e no emprego habilidoso de palavras e imagens encontra-
-se o potencial expressivo do veículo (Eisner, 1999, p. 13).

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

5573
Análise da Fusão de Linguagens em American Splendor

Edgar Augusto Vasco • Rafael Tassi Teixeira

Segundo descreve Metz (1980), é preciso desvendar as possibilidades semânticas


da linguagem verbal e não-verbal do cinema:
No caso do cinema, esta extensão indefinida do tecido semântico resulta de duas causas
distintas cujo efeito se acumula: por um lado, o cinema engloba um código – a língua, nos
filmes falados – cuja simples presença bastaria para autorizar informações semânticas dos
mais variados tipos; em segundo lugar, os outros elementos do texto fílmico, e, por exemplo,
as imagens, são eles próprios linguagens cuja matéria do conteúdo não tem limites precisos
(Metz, 1980, p. 252).

Neste sentido, comparando o cinema com a produção literária, acerca da


complexidade, da heterogeneidade do material expressivo e da sutileza na descrição
de pensamentos e sentimentos, Stam (2009, p. 26) afirma que “a natureza audiovisual
e as cinco pistas de registro do cinema permitem uma combinação infinitamente mais
rica de possibilidades semânticas e sintáticas”.
Para compreendermos as mensagens contidas em ambas as versões de American
Splendor convém decifrarmos, em especial, cenas selecionadas conforme a relevância das
funções sígnicas, contemplando o pensamento de Eco (1997, p. 170) acerca do iconismo,
onde “produzir um sinal, que enquanto tal deverá posteriormente ser correlacionado a
um conteúdo, é produzir uma função sígnica: as maneiras pelas quais uma palavra ou
uma imagem são correlatas ao seu conteúdo não são as mesmas”.
Acerca da função sígnica, destacando as principais diferenças entre a mídia impressa
e o cinema, enquanto sala onde o filme é projetado na tela, cerifica-se que esta exibição
audiovisual hoje conta com os efeitos proporcionados pelo som, pela ilusão do movimento
e das imagens que esteticamente são mais realistas, além de ser tradicionalmente exibido
de forma contínua, não permitindo que o público assista o filme em uma sequência
diferente daquela previamente determinada pelo diretor. Nas HQs é possível que o leitor
percorra livremente as imagens na sequência, no tempo e da forma como ele desejar.
Em cinema, quanto ao sequenciamento dos planos, para Bordwell (2008, p. 50) “a
lógica da continuidade espacial é o que organiza a encenação, a filmagem e a edição”.

1.2 Realidade e ficção no diálogo cinema e HQ:


Nos quadrinhos de American Splendor, Harvey Pekar apresenta-nos o próprio
cotidiano como uma forma de desabafo, onde ele expressa o seu desapego ao American
Way of Life, com alusões à natureza humana. As histórias são fragmentos da realidade
vivida por Pekar e seus amigos.
Acerca das mudanças culturais nas sociedades contemporâneas, para Crane (2011,
p. 25) “estão desaparecendo as culturas urbanas em que, no passado, os criadores da arte
e da moda floresciam como membros de redes de inovadores ou nos campos culturais
dos pequenos negócios”.
Williams (2000) relaciona as definições de cultura com a forma como as pessoas
vivem. Aborda as práticas culturais como processo social:
...ha’ uma certa convergência pra’tica entre os sentidos antropolo’gico e sociolo’gico de cul-
tura como ‘modo de vida global’ distinto, dentro do qual percebe-se, hoje, um ‘sistema de

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Análise da Fusão de Linguagens em American Splendor

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significações’ bem definido não so’ como essencial, mas como essencialmente envolvido
em todas as formas de atividade social e o sentido mais especializado, ainda que tambe’m
mais comum, de cultura como ‘atividades arti’sticas e intelectuais’, embora estas, devido à
ênfase em um sistema de significações geral, sejam agora definidas de maneira muito mais
ampla, de modo a incluir não apenas as artes e as formas de produção intelectual tradicio-
nais, mas tambe’m todas as ‘pra’ticas significativas’ – desde a linguagem, passando pelas
artes e filosofia, ate’ o jornalismo, moda e publicidade – que agora constituem esse campo
complexo e necessariamente extenso (Williams, 2000, p. 13).

A temática proposta por Pekar, quando é levada às telas do cinema, vai na direção
oposta aos estudos que abordam o surgimento da sétima arte, como afirmam Lipovetsky
e Serroy, (2009, p. 11) “o ecrã foi não apenas uma invenção técnica constitutiva da sétima
arte, foi também aquele espaço mágico onde se projetaram os desejos e os sonhos das
massas”.
Tanto o filme pode ser classificado como uma adaptação da HQ American Splendor,
como a história pode ser analisada pelo teor documental da realidade retratada. Apesar
de Pekar ser interpretado no filme pelo ator Paul Giammatti, ele mesmo é filmado como
o locutor de suas próprias experiências.
Inclusive, quando o filme exibe as suas entrevistas no programa Late Show With
David Letterman, é apresentada a gravação original com o Pekar verdadeiro.
Quanto à possibilidade de classificar o gênero de American Splendor pelo viés
documental, acerca das delimitações dos diferentes estilos fílmicos do gênero
documentário, vale lembrar que para Nichols (2005, p. 50) “todo filme e’ uma forma de
discurso que fabrica seus pro’prios efeitos, impressões e pontos de vista”.
Harvey, na maior parte do tempo, narra a história em um estúdio. O fundo infinito
branco utilizado para as cenas em que Pekar está presente, novamente como personagem
dele mesmo, se assemelha ao papel e ao plano de fundo dos quadrinhos. A própria
disposição dos objetos cenográficos lembra as ilustrações das HQs.
Acerca da complexidade dos planos, Bordwell (2008, p. 44) destaca que diretores
talentosos dos anos 1910 “intuíram que o poder de tudo ver não teria sentido sem que,
em certos momentos, apenas as coisas essenciais pudessem ser observadas”.
É nesse momento que o filme documenta novos detalhes íntimos e reais de Pekar,
quando o cartunista e sua esposa Joyce relatam, na forma de depoimentos, algumas de
suas reflexões pessoais.
Quanto ao estilo fílmico, a versão audiovisual também dialoga com a versão da
HQ quando alterna o ator Paul Giammatti com o Harvey Pekar real, pois assim como
ocorre no filme, na HQ o personagem também é representado por olhares de diferentes
desenhistas.
Ainda sobre o estilo fílmico, Bordwell (2008) afirma que:
Sem interpretação e enquadramento, iluminação e comprimento de lentes, composição e
corte, diálogo e trilha sonora, não poderíamos apreender o mundo da história. O estilo é
a textura tangível do filme, a superfície perceptual com a qual nos deparamos ao escutar
e olhar: é a porta de entrada para penetrarmos e nos movermos na trama, no tema, no

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Análise da Fusão de Linguagens em American Splendor

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sentimento – e tudo mais que é importante para nós. E já que os diretores são extremamente
cuidadosos no aperfeiçoamento dos meandros de seu estilo, nós nos sentimos compelidos
a mergulhar nos detalhes. Uma discussão completa sobre um filme não pode se deter só
no estilo, mas este deve ser alvo de minuciosa atenção (Bordwell, 2008, p. 58).

2. ANÁLISE DA ADAPTAÇÃO FÍLMICA


2.1 Critérios de Escolha do Filme:
A temática proposta para este projeto poderia ser desenvolvida com a análise de
diversos filmes adaptados a partir de HQs. Entre os títulos de maior relevância, podemos
citar 300 (2006), de Zack Snyder, e Sin City (2005), de Frank Miller.
Ambos os filmes são adaptações que proporcionaram ao cinema novas experiências
estéticas, porém a procura era por um filme cuja intenção do autor não priorizasse
agregar a estética dos quadrinhos ao cinema, valendo-se predominantemente, para tanto,
da fotografia e da computação gráfica na composição estética dos planos. Comparando
literatura e cinema, Xavier (2008) descreve as vantagens do cinema:
Por outro lado, a simplicidade extrema com que se organiza uma sequência cinematográfica,
onde todos os elementos são, acima de tudo, figuras particulares, requer apenas um esforço
mínimo de decodificação e ajuste, para que os signos da tela adquiram um efeito pleno de
emoção (Xavier, 2008, p. 294).

Outros títulos ganharam destaque: V de Vingança (2005), de James McTeigue, que foi
adaptado mantendo a estética tradicional do cinema e American Splendor. A escolha pelo
filme de Berman e Pulcini aconteceu devido à participação do Pekar real nas filmagens,
narrando a sua própria história.
Vale lembrar que, além de contribuir para o gênero das adaptações pelos motivos
sobreditos, o filme retrata em sua montagem as etapas de criação das HQs. Essa mistura
de estilos e linguagens utilizada pelos autores, ainda que a utilização de efeitos em pós-
produção seja menos intensa em American Splendor, revela outro grande desafio para as
futuras obras cinematográficas. Segundo Lipovetsky e Serroy (2009):
Em menos de meio século passamos da tela-espetáculo à tela-comunicação, de uma tela ao
tudo-tela. Por muito tempo a tela de cinema foi a única e a incomparável; agora ela se funde
numa galáxia cujas dimensões são infinitas: chegamos à época da tela global (Lipovetsky;
Serroy, 2009, p. 11 - 12).

2.2 Apresentação Sintética da HQ:


American Splendor é uma HQ que conta com as ilustrações de Robert Crumb em sua
primeira edição. Contemplativa, a revista registra o mundo suburbano pelas ilustrações
de diferentes quadrinistas.
De origem americana, mesmo sofrendo alteração nos desenhos de cada cartunista,
possuía, no geral, traços fortes e contrastes bem determinados.
A diagramação é simples e geralmente está dividida em duas colunas verticais e
três linhas horizontais. Há oscilações no tamanho de alguns quadros que passam a
ocupar áreas de dois ou mais quadros.

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Análise da Fusão de Linguagens em American Splendor

Edgar Augusto Vasco • Rafael Tassi Teixeira

Percebe-se no filme que essa oscilação estética dos quadrinhos em alguns momentos
é representada pelos enquadramentos e movimentos de câmera: travelling, panorâmica
e tilt.

2.3 O Filme:
A adaptação fílmica de American Splendor mantém as características referentes à
autobiografia das HQs de Harvey Pekar.
O filme conta a história do escritor, interpretado por Paul Giammatti, que descobriu
que possuía talento para escrever suas histórias pessoais na forma de HQs, graças ao
convívio com seu amigo e cartunista Robert Crumb e à sua intolerância a certas atitudes
humanas.
Ao longo de sua vida tornou-se pessimista, mas conquistou o sucesso e a admiração
do público dos quadrinhos.
Conforme a história se desenvolve, ao longo do filme Harvey narra os fatos em
depoimentos gravados em um estúdio de cinema.
Ao lado de Robert Crumb e outros cartunistas Pekar transforma suas histórias nas
séries American Splendor e Our Cancer Year.

2.4 Personagens Principais:


Harvey Pekar: Melancólico, Harvey é um arquivista empregado em um hospital, que
coleciona discos antigos, revistas e gibis. Personagem de físico oposto aos estereótipos
dos galãs e dos heróis, vive uma vida sem luxo, sem grandes sonhos ou pensamentos
otimistas. Sincero, Pekar procura retratar em HQs a sua vida cotidiana, por meio do
humor que encontra nos fatos inesperados.
Joyce Brabner: Após escrever algumas cartas ao ídolo, Brabner deixou de ser apenas
uma admiradora para ser também a companheira de Pekar. Inteligente e participativa,
Joyce é a terceira esposa do cartunista.
Robert Crumb: Inspiração para a carreira de Harvey, ficou amigo do então arquivista
devido ao interesse de ambos pelos gibis. Crumb foi o primeiro quadrinista de Harvey.

2.5 Análise Técnica:


A presença dos balões, os textos inseridos nas bordas do quadro em off, ou ainda
a forma de percorrer com a câmera a animação gráfica, simulando o olhar de quem lê
uma revista de HQ, são apenas alguns dos recursos em pós-produção utilizados no
filme American Splendor, para referenciar a linguagem característica dos quadrinhos.
Existe uma forte sintonia na linguagem não-verbal do filme e da HQ retratada pelas
expressões faciais, pela escolha do negativo desbotado, simulando a coloração da tinta
que ilustram as páginas dos quadrinhos, assim como nas sarjetas e nas aparições do
Pekar representado pela computação gráfica.
Até mesmo as tradicionais onomatopeias presentes nos quadrinhos ganharam
destaque no filme, por meio da inserção do efeito de reverberação no áudio dos diálogos.
No supermercado, enquanto Harvey (Giammatti) tenta se acalmar e aguardar a sua
vez de ser atendido no caixa, a autorreflexão do personagem incorporada ao filme por
meio da animação gráfica comprova a sintonia entre as linguagens do cinema e dos gibis.

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Análise da Fusão de Linguagens em American Splendor

Edgar Augusto Vasco • Rafael Tassi Teixeira

Mais adiante, durante a cena do desmaio de Pekar, já com o câncer, acontece o


inverso: é o ator que invade o ambiente bidimensional das HQs.
Quando o filme apresenta ao espectador as semelhanças entre os planos dos
quadrinhos e os planos da filmagem, percebe-se a importância das linhas, talvez como
signos intercambiantes, para a localização espacial dos componentes das cenas e das
perspectivas adotadas, tanto nos planos do filme quanto nos gibis. Comparando essas
características encontradas na obra audiovisual ao caráter icônico dos traços presentes
nos quadrinhos, recorda-se dos chamados clipoemas, segundo Guimarães (2008):
Os chamados clipoemas são obras multimidiáticas, que podem apresentar os signos verbais
em sequências e/ou fragmentos programados pelos poetas de hoje – designers do espaço
da tela – em linhas retas e curvas, espirais, elipses, geometrismos e ainda uma infinidade
de formas, todas elas geradoras de sentidos que se agregam aos significados dos vocábulos
integrados a imagens, cores e sons (Guimarães, 2008, p. 76).

A aparição desse possível storyboard nas telas dos cinemas ilustra a necessidade dos
traços referenciais, que orientam as perspectivas na construção espacial dos quadrinhos,
assim como determinam a representação fiel dos quadrinhos nos planos do filme, muitas
vezes trazendo algum sentido.
Fica claro em American Splendor, assim como nas outras adaptações fílmicas aqui
citadas, que o cinema é capaz de se expressar e de expressar linguagens propostas
inicialmente para outras mídias, rompendo com algumas especificidades de outras artes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após a elaboração do referencial teórico focado nas áreas do cinema e da comunicação,
e seguindo a metodologia proposta para este estudo, a análise da adaptação fílmica
American Splendor revelou que, entre semelhanças e diferenças existentes nas versões do
cinema e das HQs, é possível expressar por meio do cinema as linguagens e os estilos
oriundos de outras mídias e artes, sem prejuízo das especificidades das mesmas.
A análise revela que, mesmo sem ser considerado um cidadão americano exemplar,
Harvey Pekar pode ser destacado como um herói, por possuir um grande número
de seguidores que reconhecem a nobreza de suas obras, encontrando nos fatos mais
simples do cotidiano de um único personagem, de um certo esplendor, a identidade
de uma nação.
As análises realizadas a respeito das especificidades midiáticas do cinema e das
histórias em quadrinhos, referentes ao caso do filme American Splendor, indicam a
possibilidade da utilização de novas linguagens não verbais a serem utilizadas em
futuras adaptações. Da mesma forma, considerando a riqueza e complexidade da
temática das especificidades, sugere-se que mais investigações sejam realizadas.
Os objetivos propostos neste artigo foram tentativamente alcançados, visto que
foram citadas diferentes formas de adaptação fílmica por meio da estética, da composição
dos planos e dos recursos disponíveis durante a pós-produção.
Foram abordados aspectos relacionados à interação do cinema com diferentes mídias,
tendo em vista inclusive as transformações decorrentes da tecnologia e os processos de
significação do texto cinematográfico.

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Análise da Fusão de Linguagens em American Splendor

Edgar Augusto Vasco • Rafael Tassi Teixeira

Foi possível compreender alguns dos efeitos socioculturais do filme, por meio da
interpretação da produção cinematográfica, considerando as diferentes classificações
da obra.
Foram investigadas, também, algumas especificidades do cinema e dos quadrinhos,
que podem contribuir para novos estudos envolvendo o tema.

REFERÊNCIAS
Berman, S. S. (Diretor), & Pulcini, R. (Diretor) (2003). American splendor [DVD]. Brasil: HBO
Films.
Bordwell, D. (2008). Encenação e Estilo. In: Figuras traçadas na luz. Campinas: Papirus.
Crane, D. (2011). Ensaios sobre moda, arte e globalização cultural: Maria Lúcia Bueno (org.) ;
tradução Camila Fialho, Carlos Szlak, Renata S. Laureano – São Paulo: Editora Senac.
Eco, U. (1997). Tratado Geral de Semiótica. São Paulo: Perspectiva.
Eisner, W. (1999). Quadrinhos e arte sequencial. São Paulo: Martins Fontes.
Guimarães, D. (2008). Comunicação tecnoestética nas mídias audiovisuais. Porto Alegre: Sulina.
IMDb. (2012). Anti-herói americano. Acessado em 25 de fevereiro de 2012 em http://www.
imdb.com/title/tt0305206/?ref_=fn_al_tt_1
Lipovetsky, G. & Serroy, J. (2009). A Tela Global. Porto Alegre: Sulina.
Metz, C. (1980). Linguagem e Cinema. São Paulo: Perspectiva.
Nichols, B. (2005). A voz do documenta’rio. In: RAMOS, Fernão Pessoa. (Org.). Teoria
Contemporânea do Cinema: documenta’rio e narratividade ficcional. São Paulo: Editora
Senac.
Stam, R. (2009). Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus.
Williams, R. (2000). Cultura. Tradução de Lo’lio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz
e Terra.
Xavier, I. (2008). A Experiência do Cinema. São Paulo: Graal.

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Teorias dos cineastas: o pensamento de Jean Rouch
Theories of filmmakers: the thought of Jean Rouch
E d u a r d o Tu l i o B a g g i o 1

Resumo: O objetivo deste trabalho é apontar e sistematizar aspectos do


pensamento de Jean Rouch enquanto aporte teórico para o cinema. Busco a
compreensão do pensamento deste cineasta enquanto proposições teóricas
capazes de incrementar os estudos fílmicos em complemento a outras tradicionais
linhas de pesquisa. Abordo o pensamento de Jean Rouch exclusivamente a partir
de fontes diretas do autor, sejam textos, entrevistas etc. Trata-se de um objeto
particularmente interessante porque pode revelar pressupostos muito próprios
das intenções – alcançadas ou não – de um dos diretores mais importantes da
história do cinema. A análise de diversos textos e entrevistas do autor aponta
para algumas das suas preocupações centrais, como a importância do estar
fenomenológico da câmera nos ambientes filmados, um método simples de
realização e a dedicação aos intervenientes dos seus filmes.
Palavras-Chave: Teorias dos Cineastas. Jean Rouch. Realização Cinematográfica.

Abstract: The objective of this paper is to show and systematize aspects of the
thought of Jean Rouch as a theoretical contribution to cinema. My intention
is to understand the thought of this filmmaker while theoretical propositions
capable of increasing the film studies in addition to other traditional lines of
research. I approach the thought of Jean Rouch exclusively from the author
direct sources, such as texts, interviews etc. This is a particularly interesting
object because it can reveal assumptions of intentions - realized or not - one of
the most important directors in film history. The analysis of several texts and
author interviews show some of its key concerns, such as the phenomenological
character of the camera on the set, a simple method of filmmaking and dedication
to the characters of his films.
Keywords: Theories of Filmmakers. Jean Rouch. Filmmaking.

1 TEORIAS DOS CINEASTAS

P ROPOR ESTUDOS sobre o pensamento dos cineastas é uma tentativa de compreen-


são do cinema em uma de suas amplas possibilidades. Possibilidades que envolvem
processos artísticos, culturais, econômicos, políticos, comunicacionais, entre outras
correlações. Trata-se, em grande medida, de investigar as ideias de quem realiza filmes.

1.  Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, professor do Curso de Bacharelado em Cinema e
Vídeo da FAP/UNESPAR, baggioeduardo@gmail.com.

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Teorias dos cineastas: o pensamento de Jean Rouch

Eduardo Tulio Baggio

Portanto, muitas questões colocadas nessa investigação podem ser recorrentes, mas as
respostas surgem de fontes normalmente pouco exploradas.
Tradicionalmente, os estudos cinematográficos tomam como fonte preponderante
os filmes já constituídos, ou seja, trantam-se de estudos que voltam-se para os discursos
fílmicos isoladamente ou organizados em grupos. São relativamente poucas as pesquisas
cinematográficas que tomam como material de pesquisa observações, indícios e
informações oriundas do fazer dos filmes.
O fazer cinematográfico está envolto, necessariamente, por ideias e conceitos que o
cineasta carrega consigo e na forma como ele passa esses valores para os filmes. Talvez
seja possível imaginar que alguns cineastas não pensem, não concebam o que é o cinema
e o que ele representa ao fazerem seus filmes, mas como disse Claude Chabrol: “Um
cineasta só merece esse nome a partir do momento em que sabe o que está fazendo.”
(CHABROL apud AUMONT, 2004, p. 7)
Alguns importantes pesquisadores já se debruçaram sobre o pensamento dos
cineastas, seja na forma de organização dos textos escritos por eles, como fez Ismail
Xavier em seu livro A Experiência do Cinema, que contém reflexões de vários cineastas
como Dziga Vertov, Stan Brakhage, Sergei Eisenstein, Andrei Tarkovski, entre outros
(XAVIER, 1983). Ou em um caso mais específico, o trabalho de Jacques Aumont em As
Teorias dos Cineastas, que apresenta a sistematização do pensamento de vários cineastas
sobre uma série de aspectos delimitados pelo autor (AUMONT, 2004).
Essa dedicação ao pensamento de realizadores do cinema é um caminho muito
pertinente e permite novos olhares sobre os estudos cinematográficos. Mas, de maneira
alguma, tal dedicação surge como proposta substitutiva ou de evolução, trata-se apenas
de mais um percurso que pode ser seguido e que não deve ser negligenciado. É uma
ação no intuito coletivo do aprofundamento constante dos estudos de cinema.
Aumont destacou que “o cineasta que se considera um artista pensa em sua arte
para as finalidades da arte: o cinema pelo cinema, o cinema para dizer o mundo. É essa
obsessão que me pareceu estar no centro da teoria dos cineastas.” (2004, p. 8) Portanto,
o foco desta pesquisa, assim como propôs Aumont, é investigar o pensamento de um
cineasta em suas opções artísticas e em sua relação com o mundo. Também recorro ao
que propôs Aumont quanto à forma de acessar as ideias dos cineastas, pois segundo
ele, todo cineasta pode ser considerado um teórico, mesmo que nunca tenha escrito
uma linha sobre sua arte, no entanto, considera que a melhor opção é se dedicar aos
que escreveram ou emitiram suas ideias verbalmente.
Optei por me limitar à parte verbal da teoria dos cineastas, sem dissimular para mim mes-
mo a arbitrariedade de tal opção. Quando escreve um artigo, participa de uma entrevista,
escreve sua correspondência, um cineasta fornece a si para reflexão a ferramenta mais
comum: a língua. (Aumont, 2004, p. 10)

Na proposição de Aumont, as teorias dos cineastas deveriam ser teorias dos diretores.
Neste sentido, tendo a acreditar em algo mais amplo, pois creio que cineastas são todos os
que participam do fazer fílmico com aportes criativos. Desta forma, roteiristas, diretores
de fotografia, atores, montadores, diretores de arte, entre outros, têm perfil de cineastas.
Porém, no caso desta pesquisa, meu foco é em um diretor, Jean Rouch, que por muitas

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Teorias dos cineastas: o pensamento de Jean Rouch

Eduardo Tulio Baggio

vezes agiu também como fotógrafo e montador, entre outras atividades fílmicas, diante
do reduzido número de integrantes de suas equipes de filmagem.
As equipes pequenas são uma característica comum na realização de filmes docu-
mentários. E esse é outro foco deste estudo, a compreensão do pensamento de Jean Rouch
a partir do entendimento de sua obra prioritariamente como cinema realista documental.

2. O PENSAMENTO DE JEAN ROUCH


Recortar aspectos ligados ao realismo e ao cinema documentário na obra e nas
ideias de Jean Rouch é uma escolha metodológica de pesquisa, já que é amplamente
conhecido o fato de que este diretor mesclava processos documentais com ficcionais em
vários de seus filmes. Sobre Jaguar (1967) Rouch diz que a “realidade e a ficção estiveram
continuamente misturadas” (2011c, p. 102). E deixa ainda mais clara sua posição ao dizer:
“Para mim, cineasta e etnógrafo, praticamente não existe nenhuma fronteira entre o
filme documental e o filme de ficção.” (2011c, p. 127). Em seguida afirma que o cinema
é a “arte do duplo” e que por isso já é uma passagem do real para o imaginário. Assim,
Rouch trabalha a partir da ideia de que o cinema é representação, seja documentário
ou ficção, mas sua obra cinematográfica é essencialmente realista.
Entretanto, como no caso de vários outros cineastas que trabalham em relação
mais estreita com a realidade, há no pensamento de Rouch um aporte muito especial
para a questão ética. Não que não exista ou não deva existir preocupação ética em
filmes ficcionais, mas há uma questão específica do realismo documental quanto ao
relacionamento com quem se filma e como estes são representados.

2.1. Realidade e ética da representação


Muitos documentaristas vão fundamentar seus filmes em preceitos éticos que
acabam determinando desde a escolha dos temas, até como abordar os temas, ou como
escolher os procedimentos de realização e o tipo de relação com os espectadores. Ao
ponto de que Jean Rouch, perguntado se o cinema é uma verdadeira língua, respondeu:
“Não é uma língua. É uma ética, é uma moral.” (2010, p. 48)
Rouch esperava que sem manipular – especificamente sem a montagem – pudesse
ter um grau mais elevado de verdade sem seus filmes.
Não obstante, tanto para o quebequense Michel Brault como para mim ou para o americano
Leacock, existe uma armadilha da montagem, isto é, a verdade manipulada... É mesmo
uma armadilha, já que a priori a única prova de que as coisas são verdadeiras... é a nossa
boa fé! (Rouch, 2011a, p. 55)

Jean Rouch chegou a formular um termo, um conceito, que diz respeito ao seu
relacionamento com o mundo que aborda, com as pessoas que filma. Trata-se da
faculdade da ‘distância íntima’ com o mundo e com os homens, essa faculdade que tão bem
conhecem os antropólogos e os poetas, e que me permitiu ser tanto o observador entomolo-
gista e o amigo dos Maîtres fous, o animador e o primeiro espectador de Jaguar... mas sempre
com a condição de não fixar nunca os limites do jogo cuja única regra é filmar quando os
outros e você mesmo têm realmente gana de fazer.2 (Rouch, 1998, p. 156)

2.  No original: facultad de ‘distancia íntima’ con el mundo y los hombres, esa facultad que tan bien conocen

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Teorias dos cineastas: o pensamento de Jean Rouch

Eduardo Tulio Baggio

Ao colocar como uma regra única a ideia de que deve haver a vontade de ambos
os lados, de quem filma e de quem é filmado, Rouch estabelece um pressuposto ético
muito forte e determinado, deve haver uma coincidência – ainda que inicial – de valores
para o ato do filme entre os que estão envolvidos na realização do filme. Esse é um
conceito que Rouch traz da etnografia, ciência à qual dedicou boa parte de seus estudos,
e é justamente por isso que ele vai enaltecer o trabalho de Robert Flaherty, no que diz
respeito à dedicação deste ao conhecimento dos homens e mulheres que filmou. “Desde o
começo, Flaherty se propôs um intento que, desgraçadamente, foi pouco imitado depois.
Cria que para filmar alguns homens pertencentes a uma cultura estrangeira, primeiro
era necessário conhece-los.”3 (ROUCH, 1998, p. 157) Essa é a ética de Rouch, a ética da
“distância íntima”. E para Rouch é fundamental que esse princípio ético seja mantido
quando o filme está finalizado, por isso ele defende fortemente a exibição do filme para os
intervenientes, e que eles devem ser o primeiro público. “É essa procura de participação
total, por muito idealista que seja, que me parece hoje moral e cientificamente a única
atitude possível para um antropólogo; (...)” (ROUCH, 2011b, p. 78). Talvez por deixar claro
que pensa isso como antropólogo, Rouch se afaste do pensamento de outros cineastas,
pois parte de uma outra matriz de pensamento, se bem que esta também é fundamental
ao cinema documentário.

2.2. O quê e como filmar?


O que chama a atenção dos cineasta que se dedicam à realidade? A definição de um
tema pode ir muito além de um simples interesse particular. Quando Erik Barnouw, em
sua teoria sobre o cinema documentário, descreve as funções dos documentaristas, está,
pelo menos em parte dessas funções, determinando que tipo de temas interessavam
para alguns dos documentaristas que analisou. Funções como “promotor industrial”,
ou “etnógrafo”, ou “repórter de guerra”, já pressupõem alguns temas (BARNOUW,
1983, p. 29-30).
Jean Rouch, quando se refere aos precursores Flaherty e Vertov, em certa medida
também os vê em funções específicas.
Um é geógrafo-explorador, o outro poeta futurista, mas ambos são cineastas ávidos da
realidade: um faz sociologia sem o saber, é o soviético Dziga Vertov; o outro faz etnografia
igualmente sem o saber, é o americano Robert Flaherty. (Rouch, 2011b, p. 64)

Outros documentaristas vão tratar de suas ideias para filmes como necessidades,
pois suas visões de mundo os impõem certos temas. Rouch é um dos que afirmam essas
necessidades, diz, por exemplo, que Eu, um Negro (1959) lhe apareceu em uma noite de
janeiro de 1957, em uma festa de jovens, quando ele percebeu que a vida em Treichville,
na Costa do Marfim, era ao mesmo tempo o paraíso e o inferno (ROUCH, 1998, p. 156).

los antropólogos y los poetas, y que me ha permitido ser a la vez el observador entomólogo y el amigo
de los Maîtres fous, el animador y el primer espectador de Jaguar… pero siempre con la condición de no
fijar nunca los límites del juego cuya única regla es filmar cuando los demás y tú mismo tenéis realmente
ganas de hacerlo.
3.  No original: “Desde el comienzo, Flaherty se propuso un intento que, desgraciadamente, fue poco
imitado después. Creía que para filmar a unos hombres pertenecientes a una cultura extranjera primero
era necesario conocerles.”

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Teorias dos cineastas: o pensamento de Jean Rouch

Eduardo Tulio Baggio

Alguns importantes cineastas entendem negativamente os filmes que dão foco a um


certo grupo de pessoas como bons ou maus, como explorados ou exploradores. Porém,
outros grandes realizadores assumiram pra si a necessidade de estabelecer essas medi-
das em suas escolhas, de julgar um tipo ou outro de cultura em função da História e
de seus pressupostos ideológicos. Jean Rouch deixa isso claro ao dizer: “É esse um dos
temas essenciais de todos os meus filmes: como é que as culturas podem sobreviver e
continuar a ser transmitidas quando estão em contacto com uma cultura tão predadora
como a nossa?” (2011c, p. 95). Há nessa afirmação uma negação de um tipo de observação
que tenta não julgar previamente, se é que isso é possível. Rouch vê nesse tipo de posição
um espécie de visão puritana, despolitizada, que já estava em Flaherty e que ele critica.
Flaherty supôs que o mundo é maravilhoso, e que os seres humanos são maravilhosos.
Isso porque ele era um irlandês metodista, ou algo parecido! Uma criação de Deus não
poderia dar errado. Por eu nunca ter tido uma revelação divina, e pela minha experiência
durante a guerra, eu sempre tive a sensação de que o mundo poderia ser maravilhoso, só
que infelizmente não é.4 (Rouch, 2003a, p. 144)

Logicamente, com essa forma de se relacionar com as ações envolvidas no mundo


que filmava, Flaherty se mantinha distante. Essa distância era como um pecado na
abordagem documental para Jean Rouch. Este dizia que usava a “câmara de contacto”
ou as “objectivas de contacto” para dizer que usava lentes grande-angulares para estar
muito perto das pessoas. (ROUCH, 2011c, p. 89). Essa diversidade, que pode parecer para
alguns que seja apenas uma divergência técnica, resulta em abordagens absolutamente
diferentes e talvez explique as fortes críticas de Rouch para esse aspecto do cinema
de Flaherty e seus seguidores, pois estes seriam muito distantes das pessoas e dos
ambientes que filmam.
Quando a técnica progrediu, esse cinema se dividiu em duas vertentes. De um lado, sob
a influência de Flaherty, e apesar dele, surgiu um cinema ‘exótico’, um cinema baseado no
sensacionalismo e na estranheza dos homens estrangeiros, um cinema racista sem querer.
De outro, do lado da etnografia, e sob o impulso de Marcel Mauss, o cinema se aventurou
por um caminho não menos estranho, o da investigação total.5 (Rouch, 1998, p. 159)

Apesar das críticas que Rouch faz ao distanciamento de Flaherty no ato das
filmagens, ele reconhece como mérito original deste a abordagem no local e com os
habitantes do local. Rouch chama essa abordagem de “câmara participante de Flaherty”
e diz que foi inspirado nesse processo que filmou Caça ao Hipopótamo (1950) (2011c, p.
93). Posteriormente, Rouch vai defender uma abordagem que mesclava o que ele entendia
serem os méritos de Flaherty e Vertov.

4.  No original: “Flaherty supposed that the world is wonderful, and human beings are wonderful. That
was because he was an Irish methodist, or something like that! God’s creation could not go wrong. Because
I have never had any divine revelation, and because of my experience during the war, I have always felt
that the world could be wonderful, but that unfortunately it isn’t.”
5.  No original: “Cuando la técnica progresó, este cine se dividió en dos ramas. De un lado, bajo la influencia
de Flaherty, y a pesar de suyo, nació el cine ‘exótico’, un cine baseado en el sensacionalismo y en la extrañeza
de los hombres extranjeros, un cine racista sin saberlo. De otro, del lado de la etnografía, bajo el impulso
de Marcel Mauss, el cine se aventuró por un camino no menos extraño, el de la investigación total.”

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Teorias dos cineastas: o pensamento de Jean Rouch

Eduardo Tulio Baggio

Para mim, a única maneira de filmar é andar com a câmera, conduzi-la aonde ela for mais
eficaz e improvisar para ela um outro tipo de bailado onde a câmera se torne tão viva como
os homens que filma. É a primeira síntese entre as teorias vertovinianas do ‘cine-olho’ e a
experiência da ‘câmera-participante’ de Flaherty. (Rouch, 2011b, p. 72)

A câmera na mão passa a ser para Rouch algo fundamental, “pois permite adaptarmo-
nos à ação em função do espaço, penetrar na realidade em vez de deixá-la acontecer
diante do observador. (2011b, p. 71). Para ele, quem deixava a realidade acontecer sem
penetrar nela eram os seguidores de Flaherty. Portanto, entre críticas e elogios a Flaherty,
Rouch procura usar a abordagem da “câmera-participante”, mas unida ao “cine-olho”.
Ou seja, ele defende que se esteja no local, com os habitantes, mas também que se
valorize o potencial da câmera de cinema de percorrer os ambientes, de estar presente.
“A câmara, se tu quiseres, é, para mim, aquilo que me permite entrar em todo lado ou
que me permite seguir qualquer pessoa. É uma coisa com a qual podemos viver ou fazer
o que não faríamos se não existisse nenhuma câmara” (ROUCH, 2011c, p. 89).
A partir dessas ideias Rouch teorizou o “cine-transe”, que trata da forma como ele
interagia com seus intervenientes, com proximidade e em plano-sequência produzindo
um tipo muito particular de abordagem. “É sem dúvida por isso que eu não consigo
explicar este tipo de mise-en-scène sem ser pela expressão enigmática ‘cine-transe’.”
(ROUCH, 2011c, p. 128). Esta é uma explicação para o que aconteceu nas filmagens de
Tambores do Passado (1971), filme de onze minutos e apenas dois planos, sendo que um
é um plano-sequência de dez minutos no qual Rouch adentra em um ritual de possessão
na Vila de Simiri, em Zermanganda, na Nigéria.
Rouch argumenta que a abordagem do “cine-transe” só é possível porque já na época
em que passou a usá-la, entre o final dos ano 1960 e início de 1970, todas as pessoas que
ele filmava já estavam
familiarizadas com a câmara, sabem o que ela é capaz de ver e de ouvir e assistiram às
projecções sucessivas dos filmes durante a sua montagem. Reagem perante esta arte do
reflexo visual e sonoro como fazem face à arte pública da possessão ou da arte privada da
magia e da feitiçaria. (Rouch, 2011c, p. 126)

O entendimento de que o contato com os ambientes e intervenientes filmados deve


ser longo e constante é outra pedra basal do pensamento rouchniano. “O cinema, arte
do instante e da instantaneidade é, na minha opinião, a arte da paciência e a arte do
tempo.” (ROUCH, 2011c, p. 85).
Rouch propunha também que fossem feitas tomadas únicas: “A minha regra de
ouro é ‘take one’, um só take por cada plano, e a rodagem por ordem cronológica.” (2011c,
p. 128). Desta forma, além de preconizar os longos tempos de imersão, ele defende que
na filmagem não se deve repetir planos, ou seja, não se deve filmar mais de uma vez a
mesma ação, pois o que interessa é o que ocorreu no momento filmado e que os planos
devem seguir a ordem cronológica dos acontecimentos (ROUCH, 2011b, p. 69). Isso
implica em adaptar-se ao que estiver ocorrendo. “Na maioria dos casos, na maioria das
sequências que começo a filmar, nunca sei onde é que a coisa vai acabar, logo não me
aborreço. Sou forçado a improvisar para o melhor e para o pior.” (ROUCH, 2011c, p. 84).

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Teorias dos cineastas: o pensamento de Jean Rouch

Eduardo Tulio Baggio

Aí encontramos outra divergência com Flaherty, que planejava muito suas filmagens e
que filmava várias e várias vezes a mesma ação. Essa divergência remonta ao ponto já
descrito da diferença das filmagens próximas de Rouch e das filmagens distantes de
Flaherty.

2.3. Imagens diretas, em planos longos e em cores


Sobre Crônica de um Verão (co-diração de Edgar Morin, 1960) Rouch diz: “Com
o cine-olho e o cine-ouvido, gravávamos pela imagem e pelo som um cine-verdade,
o Kinopravda de Vertov, que não quer dizer o cinema da verdade mas a verdade do
cinema.” (2011c, p. 105) O termo cinema-verdade ser tornaria amplamente ligado ao
trabalho de Rouch, mas ele mesmo propôs uma substituição.
O cinema directo, termo introduzido por Mario Ruspoli e por mim para substituir a expres-
são equívoca de cinema-verdade, reflecte uma forma de cinema em ligação directa com a
realidade. É um cinema do olhar, logo, um cinema sobretudo de imagens. (Rouch, 2011a, p. 55)

E Rouch passou a considerar que o ideal era trabalhar com imagens em planos
longos, ou mesmo planos-sequência, possibilitados por câmeras leves a partir dos
anos 1960. Substituir os “planos muito curtos” por um “plano-sequência que dura dez
minutos” é uma grande vantagem para o cinema dele. “O tempo é real” (ROUCH, 2011c,
p. 124). Esse encantamento está relacionado à possibilidade de demonstração do tempo
vivido, do paralelo cinematográfico com a vida em curso.
O nosso sonho com o cinema directo era conseguir a exigência do plano-sequencia, isto é,
pôr em cena elementos da vida real, que tivessem um princípio e um fim, passando-se isso
em menos de dez minutos: a unidade de tempo imposta pela bobina! (Rouch, 2011a, p. 55-56)

Rouch propunha que o cinema poderia, em seu uso como descrito acima, fazer o
espectador compreender um língua desconhecida, sentir-se presente em uma cerimônia
estranha, ou reconhecer paisagens nunca vistas antes (ROUCH, 2011b, p. 67). Isso porque
entendia que o grau de presença possibilitado pelo “cinema direto”, com as filmagens
in loco e com os longos planos, era enorme e sem precedentes.
Esse milagre só o cinema pode produzir, mas sem que qualquer estética particular possa
fornecer o seu mecanismo, sem que qualquer técnica especial possa provocá-lo: nem o sábio
contraponto de uma planificação nem o emprego de um cinerama estereofónico causam
tais prodígios. (Rouch, 2011b, p. 67)

Rouch teve a experiência de filmar Crônica de um Verão com Richard Leacock, que
fez a direção de fotografia, mas que é também um importante diretor do documentarismo
em cinema direto norte-americano. Para Rouch o trabalho deles tinha similaridade, mas
também uma profunda diferença quanto à abordagem, porque em Crônica de um Verão,
Rouch e Morin estavam “na frente da câmera, falando com as pessoas, provocando todos
que encontravam. Nos filmes de Leacock, ele segue seus temas, ao invés de envolvê-los.
Assim, ele permanece fora.”6 (ROUCH, 2003a, p. 144)

6.  No original: “in front of the camera, speaking to the people, provoking everyone he met. In Leacock’s

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Teorias dos cineastas: o pensamento de Jean Rouch

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A imagem, enquanto linguagem, passa por uma questão recorrente e muito importan-
te em filmes realistas, que diz respeito ao uso da cor ou de preto e branco. Essas escolhas
são significativas e, ao mesmo tempo, interferem na ideia de asserção sobre a realidade.
Jean Rouch, apesar de ter feito filmes em preto e branco, quando pôde passou a usar cores
e dizia que “a cor é a vida. O mundo é a cores. Suprimir a cor é sermos o branco que se
refugia por detrás dos seus escritos...” (ROUCH, 2011c, p. 94). Há nas palavras de Rouch
o sentido de o mundo ser visto naturalmente em cores e nada mais óbvio, para ele, do
que filmes que buscam um tipo de ligação estreita com a realidade optem pelas cores.

2.4. Filmes com músicas diegéticas


Jean Rouch relata que ao exibir Bataille Sur le Grand Fleuve (1950) para os pescadores
que aparecem no filme, foi muito criticado. Segundo ele, disseram-lhe: “‘Quando e
onde é que tu ouviste música durante uma caçada ao hipopótamo?’”. O diretor tinha
se inspirado na “velha tradição dos westerns” e no momento de ápice dramático tinha
colocado uma música de exaltação. “Mas os pescadores disseram ‘sim, é verdade, mas
o hipopótamo que está dentro da água, tem um ouvido muito apurado, se nós tocamos
música, ele foge...’” (ROUCH, 2011c, p. 93)
A partir disso Rouch passou a considerar a música não diegética como “uma
convenção totalmente teatral e obsoleta: a música envolve, adormece, faz passar maus
raccords, dá um ritmo artificial a imagens que não o têm nem nunca o terão, em suma,
é o ópio do cinema (...)” (2011b, p. 75).
A questão do mau uso das trilhas musicais já tinha aparecido para Rouch em seu
primeiro filme, Au Pays Des Mages Noirs (1947), mas não tinha sido por uma escolha
própria, mas por condições de exibição impostas pela Actualités Françaises, que comprou
o filme e o reduziu de trinta para dez minutos, e, “por não ter som ambiente, meteram-
lhe uma música absolutamente idiota e um comentário lido pelo comentador de ciclismo
da Volta a França, com sua voz característica.” (ROUCH, 2011c, p. 98)
Entretanto, Rouch faz questão de ressaltar que a música registrada pelo som direto, a
música presente nos ambientes filmados, essa deve ser enaltecida. (ROUCH, 2011b, p. 76)

2.5. Procedimentos de realização


Nem sempre os cineastas gostam de escrever sobre seus procedimentos. Como
qualquer outro realizador criativo, falar dos procedimentos é difícil porque muitas
vezes envolve perceber o que no dia-a-dia não se percebe, ou tentar organizar algo que
naturalmente não é organizado.
Para mim, fazer um filme é uma coisa tão especial que as únicas técnicas aludidas são as
próprias técnicas do cinema: a tomada de imagens e de sons, a montagem de imagens e as
gravações. Assim, me resulta realmente difícil falar, e acima de tudo, escrever sobre esse
tema. Nunca escrevi nada antes de começar um filme, e quando, por motivos administrativos
e financeiros, me vi obrigado a escrever um roteiro, uma escaleta, ou uma sinopse, jamais
realizei os filmes que correspondessem a eles.7 (Rouch, 1998, p. 155)

films, he follows his subjects, rather than engaging them. So he remains outside.”
7.  No original: “Para mí hacer un film es una cosa tan especial que las únicas técnicas aludidas son las

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Teorias dos cineastas: o pensamento de Jean Rouch

Eduardo Tulio Baggio

Rouch, a despeito da dificuldade de falar dos seus próprios procedimentos, teceu


importantes comentários sobre os procedimentos de outros documentaristas. Elogiava
muito a coragem de Flaherty por este montar um laboratório na Baia de Hudson, durante
as filmagens de Nanook do Norte (1922), processando as películas lá mesmo, secando
ao vento e tendo que usar um buraco na parede da cabana para ter luz solar, a única
suficiente no local para processar as películas. (1998, p. 157-8) Segundo Rouch, proceder
dessa forma permitiu a Flaherty um incrível contato com os habitantes do local, pois
não precisava sair de lá. Ele também elogiava Vertov por utilizar a câmera na rua, por
ir ao mundo e se propor a todo tipo de aspectos possível do cotidiano. (1998, p. 159)
Jean Rouch foi um dos maiores entusiastas das câmeras com película de 16mm (1998,
p. 160), difundidas após a Segunda Guerra Mundial e aperfeiçoadas nos anos 1950. Elas
substituíam as câmeras de 35mm com menor custo (ROUCH, 1998, p. 162), muito mais
versatilidade e menor necessidade de pessoas na equipe. Perdia-se qualidade de imagem,
algo que não agradava o Studio System, por exemplo, mas que não era um problema
para cineastas como Rouch, interessados em poder filmar mais e com mais mobilidade.
Paralelamente a essas novas câmeras surgiram também sistemas de gravação de
som sincrônico, que permitiram filmes como Crônica de um Verão (ROUCH, 1998, p. 163).
É o novo avanço técnico resultante da guerra que irá permitir a ressurreição do filme etnográ-
fico: a chegada do formato reduzido do 16mm. As câmaras leves que os exércitos americanos
utilizavam em campanha já não eram os monstros de 35mm, mas ferramentas precisas e
robustas, diretamente provenientes do cinema amador. (Rouch, 2011b, p. 67)

Essa revolução técnica veio muitos anos depois de Rouch ter descoberto por acidente
que poderia abrir mão de estabilizar constantemente a câmera e obter resultados que
lhe agradecem mais. Ele relata que quando fazia seu primeiro filme, em 1947, no rio
Níger, perdeu o tripé depois de duas semanas e pensou que as filmagens não iam dar
em nada, “porque não se podia filmar sem tripé.” Era um padrão que ele aprendeu a
questionar: “Todas essas ideias, fui continuamente obrigado a revê-las, se calhar porque
simplesmente não tinha aprendido a fazer cinema.” (ROUCH, 2011c, p. 82)
Para Rouch, a aventura cinematográfica “se baseia nessa ideia bastante simples de
que o cinema é uma arte que se pode fazer com um mínimo de recursos.” (2010, 52)
Com a passagem das câmeras de 35mm para as câmeras de 16mm houve um ganho
muito importante para o documentarismo, relacionado à diminuição das equipes para
as filmagens. Isso propiciou diminuição de custos, mas também, e mais importante, deu
agilidade, maior capacidade de interação e permanência nos ambientes de filmagem.
“Foi essa a minha descoberta dos anos 60: de repente podia fazer-se um filme com duas
pessoas em vez de sete.” (ROUCH, 2011a, p. 57).
Pessoalmente, sou – exceto em caso de força maior – violentamente contra a equipe. As
razões são múltiplas. O operador de som tem absolutamente de compreender a língua das
pessoas que se está a registrar: por isso é indispensável que ele pertença à etnia filmada e

propias técnicas del cine: la toma de imágenes y de sonidos, el montaje de la imagen y las grabaciones. Así
que me resulta realmente dificilísimo hablar y sobre todo escribir sobre este tema. Nunca he escrito nada
antes de comenzar un film, y cuando, por motivos administrativos o financieros, me he visto obligado a
redactar un guión, una escaleta o una sinopsis, jamás se han realizado los films correspondientes.”

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Teorias dos cineastas: o pensamento de Jean Rouch

Eduardo Tulio Baggio

que a seguir seja minuciosamente preparado para esse trabalho. Por outro lado, nas técnicas
atuais do cinema direto (som sincrônico) só o realizador pode ser o operador. E quanto a
mim, só o etnógrafo é que pode saber quando ou como filmar, isto é, realizar. Por fim, e é
sem dúvida o argumento decisivo, o etnógrafo passará muito tempo no terreno antes de
empreender a mais pequena filmagem.” (Rouch, 2011b, p. 69)

Ele complementa dizendo que os longos tempos de imersão são incompatíveis com
os salários de uma equipe de técnicos.
Rouch só relativiza sua negação para com equipes quando pensa na possibilidade
de equipes formadas por habitantes dos locais de filmagem, porque só com “equipas
maioritariamente compostas por indígenas das regiões em que nos fixamos (bastam
quinze dias de treino) é que os autênticos cineastas podem realizar documentos válidos.”
(ROUCH, 2011d, p. 27)

2.6 Pós filmagens e os espectadores


Mesmo para Jean Rouch, um cineasta que afirma fundamentalmente em suas
ideias o momento da filmagem em seu “cine-transe”, há na montagem algo de essência.
Rouch diz que o momento em que está com o olho no visor da câmera é um privilégio
relacionado com o estar no mundo que aborda.
Para mim, o segundo momento, que é o momento da verdade, é quando estou na mesa de
montagem e que, sem a ter avisado, a montadora, diante do pequeno ecrã, pára, volta atrás
e vê outra vez. Eu sei que a montadora se colocou a mesma questão que eu me coloquei no
visor da minha câmara, sei que ocorreu bem e que podemos avançar. (Rouch, 2011c, p. 87-8)

Para que essa relação com quem monta o filme corra da forma como Rouch descreve,
ele diz que o montador nunca deve participar da filmagem: “Resulta que a montagem
entre o autor subjetivo e o montador objetivo é um diálogo duro e difícil, mas do qual
depende o filme.” (2011b, p. 73). É uma maneira de encarar o montador como alguém
que não seja envolvido emotivamente pelo momento da filmagem e que possa agir de
forma crítica no processo de montagem.
Jean Rouch apresenta ainda uma compreensão muito particular do próprio ato de
filmar, pois entende que a partir do momento que “começaram a construir câmaras com
um bom visor” ele passou a ser “o primeiro espectador” do seu próprio filme. Portanto
ele dizia que se ele próprio se “aborrecia nas filmagens, os espectadores a quem o iria
mostrar também se iriam aborrecer.” (2011c, p. 84). Coerente com sua valorização do
momento da filmagem, da interação com o ambiente e intervenientes, chega a dizer que
“o realizador-operador do cinema direto é o primeiro espectador e que quando improvisa
gestualmente na filmagem acaba por ser como uma montagem na filmagem.” (2011b, p. 72)
E após a montagem, os primeiros espectadores deveriam, necessariamente, ser os
intervenientes do filme. Rouch passou a voltar para os locais onde filmava, normalmente
na África, levando um equipamento de 16mm para projetar os filmes aos intervenientes
que foram filmados, por vezes mesmo antes do filme estar terminado. “Algumas vezes
eles diziam que aquilo não valia nada, e se de fato não valia nada, recomeçávamos.”
(ROUCH, 2010, p. 49)

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Teorias dos cineastas: o pensamento de Jean Rouch

Eduardo Tulio Baggio

Ele relata o caso da primeira projeção do Bataille Sur Le Grand Fleuve (1950), para os
intervenientes, em 1953:
Os aldeões, naturalmente, sentaram-se em redor do projector e do gerador. Esperávamos
pela noite. Depois quando se começou a projectar, toda a gente se aproximou da luz do
projector. Em seguida apareceu uma imagem, não no meio deles, mas à distância, no len-
çol. Eles voltaram-se e em vinte segundos, não mais, perceberam a linguagem do cinema.
(Rouch, 2011c, p. 92)

Nesse sentido, Rouch crê que os aldeãos tiveram tal interação com o filme que não
o julgavam como tal, mas como um poderoso relato de suas próprias ações. Isso era
totalmente diferente de quando ele entregou seus textos, em especial a tese, para os
aldeões: “Lembro-me muito bem da reacção do chefe dos pescadores, a quem eu tinha
oferecido minha tese: arrancara cuidadosamente as fotografias para as colocar nas
paredes da casa, o resto era papel, que usava para o que precisava...” (ROUCH, 2011c,
p. 93).
Rouch muitas vezes evidenciou partes do processo de realização como uma forma
de deixar claro para os espectadores que se tratava de um discurso organizado por
alguém, criando uma relação que acreditava ser mais honesta para com os espectadores
que não estavam envolvidos com o fazer do filme.
Para esses espectadores, Rouch considera que um forte fator de atração são as
informações presentes em um filme realista. Em um de seus primeiros trabalhos, relata
que a sua inexperiência com o cinema e o ato de filmar não o permitiam imaginar o
interesse que um filme que mostrava algo desconhecido poderia causar. Durante a
expedição de descida do Rio Níger, entre 1946 e 1947, que foi a primeira a navegar todo
o curso do rio, uma das filmagens centrou-se na caça do hipopótamo, algo novo para o
público europeu e, mesmo que não tenha sido feito pensado para esse público, chamou
muita atenção, em grande parte pelo que trazia de informações.
O filme sobre a caça ao hipopótamo, por exemplo, tinha começado por ser um registro
de trabalho destinado a utilização futura, nossa e de alguns etnógrafos. Mas esse filme
tecnicamente pouco seguro, com fotografia muito imperfeita, acabou por revelar um valor
documental que o tornava interessante para um grande público. (Rouch, 2011d, p. 26)

Rouch fala que gradativamente foi tendo mais informações e conhecimentos sobre os
Dogons – povo africano que vive em uma remota região no interior da África Ocidental,
ao leste do Rio Níger – e que assim conseguiu evoluir em seu acesso à cultura desse
povo que passou a recebe-lo melhor. Desta forma, ele passa a mostrar, na sequência de
filmes sobre os Dogons, mais informações sobre estes, como os segredos do ritual Sigui,
presente no quarto filme, Sigui 1970 – Les clameurs d’Amani (1970). Portanto a sequência
desses filmes apresenta uma evolução no acesso a informações por parte de Ruch que
as coloca nos filmes e apresenta aos seus espectadores. (ROUCH, 2011c, p. 112)
O cinema de Jean Rouch sempre teve, para as plateias europeias e do restante do
mundo, esse impacto do relato realista dos que estão distantes, dos povos africanos. E
para com estes, sempre foi um cinema de diálogo, de relação com o outro em busca dos
momentos que o “cine-transe” pode propiciar.

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5590
Teorias dos cineastas: o pensamento de Jean Rouch

Eduardo Tulio Baggio

3. REFERÊNCIAS
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________ (2003a) Entrevista para Lucien Taylor: A Life on the Edge of Film and Anthropology.
In: In: Feld, S. (ed.) Ciné-ethnography / Jean Rouch. Minneapolis/EUA : University of
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Rouch. Minneapolis/EUA: University of Minnesota Press.
________ (2009) Sobre Alberto Cavalcanti e Jorge Bodansky. Revista Devires, Belo Horizonte,
v. 6, n. 1, pp. 34-39, jan-jun.
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________ (2011b) A câmera e os homens. In: Costa, J. M. & Oliveira, L. M. (org.). Catálogo Jean
Rouch. Lisboa: Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, pp. 61-80.
________ (2011c) Conversa entre Jean Rouch e o professor Enrico Fulchignoni. In: Costa, J. M.
& Oliveira, L. M. (org.). Catálogo Jean Rouch. Lisboa: Cinemateca Portuguesa – Museu
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________ (2011d) Meditações de um explorador solitário. In: Costa, J. M. & Oliveira, L. M.
(org.). Catálogo Jean Rouch. Lisboa: Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, pp. 25-27.
Xavier, I. (org) (1983). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal.

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5591
As memórias e a espacialidade em Seguindo em Frente
The memories and spaciality in Walking
Mari Sugai1

Resumo: Pretendemos, neste trabalho, analisar a obra cinematográfica Seguindo


em frente (2008), realizada por Hirokazu Koreeda. Investigaremos como a questão
da memória está atrelada não somente ao enredo da película, mas também
se encontra representada no lugar físico/ cenográfico (residência familiar dos
personagens) em que a história toma parte, além do modo como os planos
“mortos” as registram através dos enquadramentos de câmera. Para tal
finalidade, o referencial teórico será baseado nas obras de Gaston Bachelard e
Shuichi Kato no que se refere ao espaço, Maurice Halbwachs para a temática
da memória, Kiju Yoshida e Denilson Lopes Silva para os planos. Eles servirão
para nos auxiliar a concluir que as lembranças estão presentes nos cômodos e
objetos cenográficos do lar dos protagonistas do longa-metragem, e as imagens
enquadradas pelos planos “mortos” possuem função narrativa e não somente
de conexão entre uma cena e a seguinte.
Palavras-Chave: Memória. Espacialidade. Seguindo em frente. Análise fílmica.
Linguagem cinematográfica.

Abstract: We intend in this work to analyze the feature film “Walking” (2008),
directed by Hirokazu Koreeda. We will investigate how the issue of memory is
linked not only to the film plot, but it is also represented in the physical / scenic
place (the family residence of the characters) in which the story takes part, in
addition how the “pillow shots” are filmed and how camera frame them. For
this purpose, the theoretical framework will be based on the works of Gaston
Bachelard and Shuichi Kato with regard to space, Maurice Halbwachs on the
theme of memory, Kiju Yoshida and Denilson Lopes Silva for the camera shots.
They will serve to help us to conclude that the memories are present in the
rooms and props that are present in the home of the protagonists of the film,
and the images framed by the “pillow shots” have narrative function and not
only serve of connection between one scene and the following.
Keywords: Memory. Spatiality. Walking. Film analysis. Film language.

INTRODUÇÃO

A TÉ O momento, o diretor japonês Hirokazu Koreeda produziu dezenove obras


audiovisuais (entre as lançadas ou em fase de finalização, ficcionais ou docu-
mentais, para televisão ou cinema) que frequentemente possuem a morte, a vida

1.  Graduada em Cinema pela FAAP (1998); Mestre pela USP (FFLCH – Cejap [2010]); Doutoranda da UFPB.
Docente efetiva na UnP (2011) e substituta na UFRN, produtora de eventos culturais e projetos audiovisuais
(Cinema, Publicidade e TV). E-mail: msugai@gmail.com

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familiar, o cotidiano e a memória como temáticas presentes em enredos intimistas,


focados nos dramas de pessoas comuns e suas rotinas do dia a dia.
Dentre os seus longas-metragens, desejamos investigar as questões da memória e
espacialidade, e como são mostradas na película Seguindo em frente2. Para nossa análise
fílmica, utilizaremos como embasamento teórico o trabalho de Maurice Halbwachs
para a temática da memória; Gaston Bachelard e Shuichi Kato para as referentes ao
espaço, Kiju Yoshida e Denilson Lopes Silva para as relacionadas aos enquadramentos
de câmera.
O enredo da obra cinematográfica acima mencionada trata do encontro anual das
três gerações dos membros da família Yokoyama (avós, filhos e netos) para lembrar a
memória do filho mais velho que faleceu afogado ao salvar um garoto no mar, evento
ocorrido quinze anos atrás.
A reunião se dá na residência dos avós, o mesmo espaço em que seus três filhos,
Ryota, Chinami e Junpei (o filho morto) cresceram e passaram parte de suas vidas. Os
dois primeiros chegam acompanhados de suas respectivas famílias. Ryota apresenta
sua nova esposa, que antes de sua chegada, já é desaprovada pela avó, devido ao fato
de Yukari possuir um filho do primeiro casamento.
A temática de Seguindo em frente apresenta como trama principal o cotidiano familiar,
que no caso desta obra, se desenvolve sem grandes reviravoltas narrativas, pertencente
a uma tendência do cinema contemporâneo (que possui elementos em comum com as
películas asiáticas, iranianas, argentinas, e algumas nacionais), e que segundo Mauro
Baptista e Fernando Mascarello:
[...] Os roteiros são tirados da vida, da deles [realizadores] ou de amigos. As histórias são
principalmente urbanas. A câmera é móvel, muitas vezes no ombro. A impressão é de que
as imagens são feitas ao vivo, que são roubadas. Esses filmes se tornam a concretização de
uma urgência: a de filmar esses destinos, a de tomar a palavra em nome dos contemporâ-
neos. Essa nova corrente não se inscreve no esteticismo [...], e sim em um cinema humanista
e documental [...]. (BAPTISTA; MASCARELLO, 2008, p. 280, grifo nosso)

O filme objeto de nosso texto apresenta alguns dos pontos acima citados, como por
exemplo, o já mencionado cotidiano, que no cinema japonês possui um nome específico
para este gênero, conhecido por shomingeki3; além da impressão do espectador participar
como um voyeur ou um convidado que presencia a intimidade dos Yokoyama; bem
como possuir uma linguagem próxima ao documental, cuja estética pode ser consi-
derada como notada também pela utilização de planos “mortos” e tatami (conforme
explanaremos abaixo).
O filme tem a duração de pouco mais de um dia, e se passa em grande parte nas
áreas internas e externas do lar dos Yokoyama, localizado em Yokosuka (província de
Kanagawa), cidade beira mar próxima à Tóquio. A película não situa em qual época
a história se passa, informa somente que acontece em dias quentes do verão nos dias
contemporâneos.

2.  Título original: ARUITEMO ARUITEMO. Direção: Hirokazu Koreeda. 2008.


3.  Categoria também chamada de shoshimingeki caracterizada pelos dramas realísticos sobre pessoas comuns,
cidadãos trabalhadores da classe média.

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A ESPACIALIDADE E A MEMÓRIA EM SEGUINDO EM FRENTE


O longa-metragem de Koreeda possui sequências em áreas externas e internas,
estando elas concentradas em sua maior parte, nos cômodos da residência dos Yokoyama.
As casas japonesas são conhecidas pelos seus espaços reduzidos, e a da película não é
diferente, apesar de ser composta por diversos ambientes como genkan4, sala de estar,
sala de jantar, cozinha, banheiro, quartos, antigo consultório médico do avô, e um andar
superior, e ainda é possível encontrar o engawa5 e o jardim interno. Segundo Gaudreault e
Jost (2009), o espaço é um componente essencial que não deve ser desprezado quando se
trata da narrativa, pois a maioria desenvolve-se em um. E os de nossa análise são ainda
mais relevantes por estarem repletos de memórias dos personagens em seus cômodos,
corredores, e nos objetos cênicos.
Uma das cenas iniciais de Seguindo em frente tem abertura com o diálogo na cozinha
entre a avó e a filha enquanto preparam a refeição para o restante da família. Ouvimos
suas conversas através do recurso narrativo e audiovisual off sobre fatos banais do dia
a dia em meio aos alimentos que são lavados, cortados, e cozidos na panela.
Com a chegada do filho caçula, Ryota, e sua “nova” família, todos se reúnem para
degustar o tradicional prato da avó, tempurá de milho, e relembrar antigas histórias.
É no almoço, refeição seguinte, que os atritos, antes discretos, têm maior repercussão
entre Ryota e seu pai Kyohei (que continuam a ocorrer em outros momentos durante a
película). A partir deste momento, não só as lembranças agradáveis são relembradas,
mas também as decepções, antigas cobranças, desejos e sonhos não concretizados.
Os indícios que haviam sido apresentados anteriormente na película (como o azulejo
do chão do banheiro necessitando de reparos, que será analisado a seguir), parecem
se concretizar. Pais e filhos por vezes não se comunicam, porquanto existem velhos
ressentimentos e, muitas vezes, o que não é dito, o interdito, o que fica subentendido, é
mais importante do que aquilo que é verbalizado.
A este respeito, Maurice Halbwachs afirma:
No próprio círculo de nossos pais, nossos avós deixaram sua marca. Não percebíamos outro-
ra, porque éramos, sobretudo, sensíveis ao que distinguiria uma geração da outra. Nossos
pais caminhavam a nossa frente, e nos orientavam para o futuro. É chegado um momento
em que eles se detêm e nós os ultrapassamos. Então, devemos nos voltar para eles e parece
que no presente foram envolvidos pelo passado e que são confundidos agora por entre as
sombras de outrora [...]. (HALBWACHS, 1990, p. 69)

Este é o panorama apresentado pelo filme. Enquanto na fase infantil e juvenil, os


pais servem como guias; na adulta, os filhos “criam asas” e naturalmente desenvolvem
a sua independência; enquanto que os avós, de certo modo, estagnam, ficando envoltos
somente pelo passado e recordações, enquanto que Ryota e Chinami seguiram com suas
vidas, independente da fatalidade que os atingiu.
Certamente o tema mais recorrente dos diálogos dos personagens é a respeito do
filho mais velho e sua trágica morte. Sobre esta temática, Halbwachs menciona que a

4.  Localidade interna, edificada dentro do ambiente fechado da residência, próxima à porta de entrada
onde se deixa o sapato e coloca-se o chinelo (seja em espaços residenciais como em alguns profissionais),
entretanto é também considerada uma extensão do espaço exterior.
5.  Local referente à varanda no ocidente, intermediário entre o interior e exterior da casa.

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lembrança “dentro dos períodos de tensão ou de crise – e lá, às vezes, ela torna-se “mito”
(HALBWACHS, 1990, p. 14), o que no caso desta obra fílmica, pode ser considerado
como o falecimento do integrante da família. Outro conceito que o autor trata é o da
memória como um “ponto de referência” (HALBWACHS, 1990, p. 14), que serve como
um marco de partida para nos situar na experiência coletiva histórica, sendo neste caso,
referente aos protagonistas. Em Seguindo em frente, um destes desdobramentos seriam os
assuntos familiares pendentes, como o “abandono” do lar por parte de Ryota, quando,
na juventude, muda para Tóquio e decide estudar Artes, sendo que, consequentemente,
não deu prosseguimento à carreira de seu pai, ademais as inevitáveis comparações entre
ele e o primogênito, resultando em situações de conflito.
É notável que em algumas sequências, o avô, que se mostra incomodado em meio
à invasão bárbara que tomou conta de sua casa, encontra refúgio em seu antigo local de
trabalho, que parece preservado desde a época em que ali funcionava o seu consultório
médico. Sobre estes recintos, Gaston Bachelard (2008, p. 145) menciona: “Todo canto de
uma casa, todo ângulo de um quarto, todo espaço reduzido onde gostamos de encolher-
nos, de recolher-nos em nós mesmos, é para a imaginação, uma solidão, ou seja, o germe
de um quarto, o germe de uma casa”.
Esta área trata-se, portanto, do espaço em que Kyohei se recolhe, permanecendo
à parte das pessoas e do que ocorre no restante da casa, e cuja permanência de outros
personagens neste local só ocorre a partir de sua devida autorização.
Paul Ricoeur (2007) cita o termo dos “testemunhos não escritos”, “que dependem
igualmente da observação histórica, a saber, os ‘vestígios do passado’ que fazem a
felicidade da arqueologia: os cacos, as ferramentas, as imagens pintadas ou esculpidas, o
mobiliário, os objetos funerários, os restos de moradias, etc.” (RICOEUR, 2007, p. 181). Para
Seguindo em frente podemos pensar não somente no espaço de atividade profissional do
avô, mas na predominância contida na casa em si, nos objetos pessoais dos personagens,
que não se tratam ou apresentam valor de documentos oficiais, entretanto possuem sua
relevância a partir do momento em que validam e contam a história da família.
Sobre a incapacidade de se separar destes materiais, Halbwachs cita:
Por que nos apegamos aos objetos? Por que desejamos que não mudem, e continuem a nos
fazer companhia? Afastamos toda consideração de comodidade ou de estética. Nosso entorno
material leva ao mesmo tempo nossa marca e a dos outros. Nossa casa, nossos móveis e a
maneira segundo a qual estão dispostos, o arranjo dos cômodos onde vivemos, lembram-nos
nossa família e os amigos que víamos geralmente nesse quadro. (HALBWACHS, 1990, p. 131)

No caso dos protagonistas de Koreeda, esta questão está atrelada ao apego do


passado que eles guardam, e a significância principalmente para os avós, que perma-
neceram vivendo na casa. Ambos recordam-se do filho preferido, agora morto, das
memórias de todos juntos no “ninho”, das diversas histórias e situações que viveram.
Após os filhos terem deixado a casa, tudo o que lhes restam, além da companhia de
um ao outro, são as recordações, e os objetos trazem para o tempo atual, a antiga
familiaridade que resta.
Enquanto que para o avô, reflete especificamente na sua ligação com seu reduto, na
sua recusa em aceitar a chegada da idade, dos limites físicos, como se tivesse perdido

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sua utilidade por não ser mais o provedor da família, e sim requisitado somente para
as aquisições de produtos de consumo doméstico.
O pensador Bachelard (2008) aponta os “objetos-sujeitos”, em que alguns móveis
como o armário e suas prateleiras, escrivaninha e suas gavetas, o cofre e seu fundo
falso são portadores de nossa vida secreta, portanto objetos mistos, já que permitem
certa intimidade, além de não se abrirem para qualquer pessoa e conterem os nossos
tesouros que serão dados para outras pessoas, ou seja, “O passado, o presente, um
futuro nele se condensam” (BACHELARD, 2008, p. 97), trazendo o passado desgastado
e a temporalidade impregnada.
Os armários são um dos objetos cênicos enquadrados com destaque na obra cine-
matográfica, dentre eles, o de remédios no consultório do avô, que em uma das cenas
são observados atentamente pelo “novo” neto; e do aparato que a avó retira uma das
gavetas, da cena da sequência mencionada a seguir. Este móvel, de acordo com Bachelard:
[...] Só um pobre de espírito poderia guardar uma coisa qualquer. Guardar uma coisa qualquer,
de qualquer maneira, em um móvel qualquer, indica urna enorme fraqueza da função de habi-
tar. No armário vive um centro de ordem que protege toda a casa contra uma desordem sem
limite. Nele reina a ordem, ou antes, nele a ordem é um reino. A ordem não é simplesmente
geométrica. A ordem recorda nele a história da família [...]. (BACHELARD, 2008, p. 91, 92)

O autor corrobora com o que vemos no filme. Os remédios podem possuir um


significado irrelevante para os demais personagens, e até mesmo para o público, porém
encontram-se guardados e organizados no armário de sua clínica. E lá se encontram não
somente parte das suas ferramentas, utensílios e móveis de trabalho, como também sua
trajetória e história profissional e pessoal, do qual ele sente orgulho, e ao mesmo tempo
frustrado pela descontinuidade de seu trabalho que seria herança para um dos filhos.
Ainda sobre memória e armários, apesar de Halbwachs (1990) citar que uma ou várias
pessoas reunidas lembrando suas memórias, possam descrever fatos que vivemos ao mes-
mo tempo em que elas, sem que não necessariamente nos lembremos de todos os fatos,
no filme objeto de nossa análise, ocorre o inverso. No momento em que a avó, Yukari,
Chinami estão reunidas na sala de estar, vasculhando a gaveta (de memórias) retirada
do armário que a primeira trouxera, Toshiko está certa que um certo acontecimento foi
realizado por Junpei, quando na verdade, Ryota foi o protagonista deste episódio.
Um dos objetos contemplados neste momento é o álbum de fotografias da família,
cuja função pode ser considerada como o objeto que personifica as lembranças, e mais
um exemplo de “testemunho não escrito”. Estes registros fotográficos não são mostrados
pela câmera, mas sim relatados verbalmente pelas personagens de tal maneira que se
tem a impressão de que podemos chegar a visualizá-las.

OS PLANOS “MORTOS”
Alguns objetos cênicos são visualizados em destaque durante Segundo em frente,
como o assoalho quebrado do chão do banheiro (Fig. 1), o armário e a gaveta faltante
(Fig. 2), e um ramo de flor em um vaso (Fig. 3). Trata-se de planos sem a presença de um
personagem, conhecidos como planos “mortos”, ou seja, caracterizados pela ausência
de atores no cenário diegético.

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Figura 1 - Plano “morto” do chão do banheiro


Fotograma de Seguindo em frente

Figura 2 - Plano “morto” do armário


Fotograma de Seguindo em frente

Figura 3 - Plano “morto” de um ramo de flores


Fotograma de Seguindo em frente

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Estes “cantos” despedaçados, desarmonizados, e esquecidos do lar, enquadrados


pelos planos “mortos” são momentos que não dispõem somente da funcionalidade de
servir como transição de uma cena para a seguinte, mas também permitem momentos
de contemplação e reflexão para o público, e para a narrativa. Pode-se considerar que
possuem participação como personagens do enredo, como afirma Denilson Lopes Silva:
[...] O vazio em Ozu não fala da ausência da presença humana, de uma falta angustiante,
mas o espaço e objetos quase se tornam protagonistas como os personagens que passam
pela tela. É apenas um momento de escape ou de descentramento de uma lógica que se cris-
talizou desde a perspectiva renascentista, centrada no olhar humano, mas sem se perder no
informe, no inumano que tanto interessa às experiências das vanguardas. Dizendo de outra
forma, a maior intimidade pode estar numa vivência de exterioridades, não num mergulho
no inconsciente, nas confissões, como vemos em tantos planos em que os personagens de
Ozu estão lado a lado, ao invés da postura de campo e contracampo, de confronto direto.
Os personagens são mais pontos no quadro do que o seu centro. (SILVA, 2011, p. 5)

Apesar de o autor fazer referência ao trabalho de Yasujiro Ozu, a citação pode igual-
mente ser aplicada ao filme corpus de nosso texto, pois apesar destes espaços internos
estarem “vazios”, os do filme estão “contaminados” pelo passar do tempo, seus desgas-
tes físicos e por reterem e conservarem as histórias dos personagens que ali viveram e
vivem , além de servirem de testemunha para estas situações.
Esta relação com o trabalho de Ozu não está presente somente no plano “morto”.
Em alguns momentos, a fotografia do filme de Koreeda faz uso da herança do realizador
conterrâneo e seu plano tatami6 (imagem abaixo). A respeito deste campo de visão da
câmera presente na obra do diretor de Era uma vez em Tóquio7, Lucia Nagib e André
Parente (1990) destacam a câmera baixa8, praticamente imóvel, uma lente objetiva de 50
mm9, e pouco uso de close-up10.

Figura 4 - Composição de Ozu


Fotograma de Era uma vez em Tóquio

6.  Trata-se de um tipo de “tecido” de palha entrelaçada, usado como tapete ou revestimento no piso em
alguns cômodos dos lares japoneses.
7.  Título original: TOKYO MONOGATARI. Direção: Yasujiro Ozu. 1953.
8.  Tipo de enquadramento próximo ao chão.
9.  Lente de câmera cujo campo de visão é a mais próximo do olho humano
10.  Plano que enquadra o rosto do personagem.

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Figura 5 - Composição de Koreeda


Fotograma de Seguindo em frente

O recurso do posicionamento angular em posição inferior, utilizado por Ozu a 40


ou 50 cm do chão (conforme visualizado nas imagens acima), pode-se considerar que
esteja na altura do nível dos olhos de um japonês quando sentado sobre o tatami. Existem
diversas leituras feitas por estudiosos a respeito da posição deste enquadramento. Sobre
elas, Kiju Yoshida afirma que:
Deve ter provocado boas gargalhadas no diretor a interpretação que muitos vinham fazendo
de que a composição da câmera em posição baixa era derivada de um sentido estético peculiar
aos japoneses e expressava uma perfeita harmonia com um espaço arquitetônico – o olhar
que parte de uma pessoa sentada num tatami. Para ele, não passava de uma explicação óbvia
que essas cenas se mostrassem como uma expressão tipicamente japonesa, e isso nada sig-
nificava. Esse tipo de truísmo era veementemente refutado por ele. (YOSHIDA, 2003, p. 140)

Ozu deve, possivelmente, considerar esta leitura óbvia por estar inserido nesta
tradição, diferente dos praticados no ocidente. Ainda sobre as semelhanças entre ambos
os cineastas, outro ponto regularmente apontado por críticos e estudiosos é o uso do
cotidiano familiar11 como a temática principal de seus filmes.
Retomando o objeto central de nosso texto e as imagens anteriormente apresentadas
(figuras 1 e 2), durante o filme, os Yokoyama apresentam também momentos de conflito
e desgaste nas relações. O azulejo quebrado, que pelo diálogo entre os personagens,
encontra-se neste estado há certo tempo, não é consertado pelo avô, e nem pelo genro que
sempre promete fazê-lo a cada visita, mas acaba esquecendo. O armário fica com uma
das gavetas vagas após a avó retirá-la para mostrar fotos e outros objetos que remetem
à infância dos filhos. É a casa que necessita de manutenção, mas tal qual as resoluções
das relações intrapessoais, vão sendo postergadas. Conforme afirma Merel van Ommen
(2014), os filmes de Koreeda encorporam o tempo que se passa no esquecimento, e o
modo como os protagonistas tentam parar ou alterar esse processo fazendo uso das
lembranças e de desejos. O próprio diretor reforça quando menciona que:

11.  Era uma vez em Tóquio trata da visita que os pais fazem aos filhos que vivem na capital japonesa, além
de outras obras do cineasta abordarem o mesmo assunto.

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Durante todo o dia de Seguindo em frente existem pequenos sinais: o azulejo que está quebra-
do, a dobradiça no banheiro. Você vê sinais do que vai acontecer no futuro. Você vê sinais
de morte, do processo de envelhecimento. Eu sabia desde o começo que queria retratar uma
situação cotidiana. Não há eventos, nada muda, nenhum dos personagens cresce ou sofre
alterações. O motivo pelo qual não é chato de assistir é porque, naquele dia muito comum
você pode ver os resultados de coisas que aconteceram no passado, e você também pode
ver “premonições” das coisas que acontecerão no futuro. E acho que isso é o que a vida
cotidiana é. (KOREEDA apud REICHERT12)

Através da citação acima, Koreeda fornece informações sobre a relação entre a


espacialidade e o reflexo dos ambientes no enredo da obra fílmica, além da “desdrama-
tização”, permitindo que possamos compreender seu objetivo como realizador do filme.
Ainda sobre as imagens dos planos “mortos” (figuras 1, 2 e 3), elas são compostas
de fotogramas (imagens estáticas) em movimento, ou seja, da captação de “naturezas
mortas”, que, quando colocadas em sequência, resultam na impressão de que se mexem.
Em Seguindo em frente, estas passagens tomam parte no ambiente residencial, em que
a câmera não se desloca, e não há figura presente no quadro (e nem a fala do narrador
ou diálogo de personagens), conforme citação abaixo:
Ninguém pode saber13, Air Doll14 e Seguindo em frente contém “naturezas-mortas fílmicas”,
que tiram drasticamente o filme de movimento (e da passagem do tempo). Em um enqua-
dramento de alguns segundos, um quadro sem vida (ou imortal) de, por exemplo, sapatos,
brinquedos ou lembranças são capturados. Em contraste com as nuvens e o mar, esses objetos
são atemporais. As naturezas-mortas são, por assim dizer, locais fora da diegese e fazem o
tempo esmorecer. Estritamente falando, isso traz a dinâmica do filme de volta para a estática
da fotografia e parece haver um conflito entre a ideia de que as inovações técnicas controlam
o estilo fílmico (Bordwell) e a convenção do movimento nos filmes. (OMMEN, 2014, p. 25)

Estes planos de “natureza-morta” representam, portanto, momentos de “quebra”


do fluxo fílmico. Segundo David Bordwell (1992), eles possuem como finalidade
desdramatizar as histórias.
Sobre a ligação entre os planos “mortos” e as “naturezas mortas”, Silva menciona
que o cotidiano das famílias de Ozu e Koreeda é mostrado pelos cineastas através dos
enquadramentos de câmera já mencionados anteriormente
[...] chamados pillow shots (BURCH, 1979, p.160) ou planos de tempos mortos em que os objetos
e espaços não ocupam um sentido muito explícito no desenrolar da ação não funcionam
tanto como contextualização da cena, nem são apenas momentos de suspensão, paisagens
ou naturezas-mortas a serem contempladas, eles apontam para um olhar que não é nem dos
personagens mergulhados em sua interioridade nem do narrador onisciente, mas de “um
olhar objetal ausente, invisível e caótico” (YOSHIDA, 2003, p. 196), de um olhar qualquer
sem que os objetos e espaços adquiram demasiada autonomia nem a câmera se coloque em
cena criando algum tipo de metalinguagem. (SILVA, 2011, p. 6)

12.  Disponível em: <http://archive.today/5ilxV#selection-171.4-171.17>. Acesso em: 17/3/15


13.  Título original: DAREMO SHIRANAI. Direção: Hirokazu Koreeda. 2008
14.  Título original: KUKI NINGYO. Direção: Hirokazu Koreeda. 2009.

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Nas duas primeiras imagens (figuras 1 e 2) é possível verificar a relação entre os


personagens, e seus estados emocionais refletidos nos recintos internos da casa: o azulejo
quebrado no chão do banheiro, e o armário com uma das gavetas faltando. Enquanto
que a figura 3, que no filme aparece na penumbra, ao final do primeiro dia da história,
pode vir a representar a aproximação de um novo dia, e não somente dele em si, mas
também de esperanças renovadas para os personagens, indicando talvez uma certa
trégua nas divergências familiares.
Talvez seja válido acrescentar o conceito japonês de tatemashi e referenciá-lo nestas
cenas em que Koreeda dedica atenção aos planos detalhes destas sequências, pois:
[...] O sistema tatemashi que vai das partes para o todo, [...] não tem relação com o tamanho
do espaço a ser organizado. A maçaneta é parte do fusuma15; o fusuma e a estante são partes
do gabinete de estudo, shoin; o gabinete de estudo é parte do edifício; e o edifício é parte
do jardim. A relação entre as partes e o todo é onipresente, e as partes são prioritárias ao
todo — os detalhes independem do todo e mostram as suas próprias formas e funções [...].
(KATO, 2012, p. 214)

Ou seja, tal qual o conceito de unidade e todo utilizado na arquitetura japonesa,


em Seguindo em frente existem os elementos separados, mas que estão conectados e fun-
cionam em conjunto como um todo. As partes são apresentadas como se estivessem de
certo modo deslocadas, interrompendo um certo ritmo da película, porém, não deixam
de fazer parte do conjunto completo.

CONCLUSÃO
Koreeda parece ter predileção por histórias “sem drama” e personagens comuns. Em
seus longas-metragens, podemos identificar os protagonistas, todavia, não o tradicional
antagonista, podendo este ser os fatos corriqueiros da própria vida.
Durante a duração de pouco mais de um dia, os personagens percorrem espaços
internos (lar) e externos da residência (jardim da residência, ruas, pontes, escadarias
e outros), e através de diálogos, da relação dos Yokoyama com os espaços exibidos, e
do manejo de objetos cênicos, acabam por fornecer ao espectador, informações sobre o
passado, memórias e desejos dos integrantes da família em questão.
O que deveria ser um encontro para lembrar a morte do parente morto, o foco se dá
nas lembranças, desejos não realizados, e antigas cobranças. As lembranças e memórias
s são trazidas à tona fazendo uso somente do diálogo e da interação com objetos cênicos,
já que se trata de materiais que marcaram as vidas destes que os manipulam.
A direção de fotografia de Seguindo em frente faz uso dos planos “mortos”, e a apre-
sentação destas imagens “vazias” não têm como função principal servir de conexão para
a próxima cena, como normalmente aconteceria e o público assim poderia compreender,
entretanto, remetem a um significado mais relevante, até mesmo de um “personagem”
presente no enredo.
Seguindo em frente faz uso “minimalista” de recursos cinematográficos, e apre-
senta nos detalhes cenográficos a complexidade das relações familiares e lembranças

15.  Porta corrediça de madeira, feita de papel decorado e grosso.

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rememoradas por intermédio de um álbum de fotos, do preparo de uma refeição ou


até mesmo de um ramo de flor em um vaso, tornando desnecessária a quebra do enre-
do cronológico para fazer uso, por exemplo, de flashback para ilustrar os momentos de
recordações que estivessem ocorrendo em um diálogo, por exemplo, entretanto, ele não
faz uso de nenhum, preferindo se ater ao momento da história do filme.

REFERÊNCIAS
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Lica Hashimoto, Junko Ota, Luiza Nana Yoshida. São Paulo: Cosac & Naify.

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As memórias e a espacialidade em Seguindo em Frente

Mari Sugai

SEGUINDO em frente. Direção: Hirokazu Kore-Eda. Produção: Yoshihiro Kato, Satoshi


Kôno, Hijiri Taguchi, e Masahiro Yasuda. Intérpretes: Hiroshi Abe, Yui Natsukawa,
You, Shohei Tanaka, Kirin Kiki, Yoshio Harada e outros. Roteiro: Hirokazu Kore-Eda.
Música: Gonchichi. Tóquio: Bandai Visual Company, Cinequanon, Eisei Gekijo, Engine
Film, e TV Man Union, c2008. 1 bobina cinematográfica (115 min.): Dolby digital, cor,
35mm. Produzido por: Tóquio: Bandai Visual Company, Cinequanon, Eisei Gekijo,
Engine Film, e TV Man Union.

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Mitologia Trash: Um estudo das transposições
cinematográficas de H.P. Lovecraft
Trash Mythology: A study of H.P. Lovecraft’s
cinematographic transpositions
Yu r i Ga r c i a 1

Resumo: Desde seus primórdios o cinema se utiliza da literatura como uma de


suas principais fontes de inspiração. Dentre os incontáveis casos que podemos
apontar de diálogos entre ambas as mídias, encontramos um que desperta
interesse particular entre os demais para esse estudo: a obra de H.P. Lovecraft no
cinema. O autor, que fora conhecido em seu passado como um escritor medíocre,
é visto atualmente como um dos maiores mestres do gênero do horror e tomado
no âmbito acadêmico como figura digna de importantes trabalhos. Todavia,
suas incursões cinematográficas são emblemáticas e famosas por figurar entre
obras de terror “trash”. Seria essa apenas uma fase em que esse autor que já se
provou alvo de releituras mais profundas está passando? Ou um eterno estado
em que sua mitologia, tão famosa na cultura pop (e atualmente encontrando
seu espaço na chamada “cultura erudita”) está engessada? O presente trabalho
procura fazer uma análise das transposições lovecraftianas para o cinema
e tentar compreender sua ligação com o cinema de horror trash. Em outras
palavras, iremos investigar de que modo a estruturação narrativa dos contos
de Lovecraft e suas apropriações no audiovisual se estabelecem.
Palavras-Chave: Lovecraft . Transposição cinematográfica. Cinema. Literatura.
Trash.

Abstract: Since its beginning, cinema uses literature as one of its main source of
inspiration. Within the uncountable cases of dialogues between these mediums
which we can point, we find one that raises particular interest among the others
for this study: the work of H.P. Lovecraft in films. The author, who has been
known in his past as a mediocre writer, is seen nowadays as one of the greatest
masters of the horror genre and taken in the academic field as a figure worthy
of important works. However, his cinematographic incursions are emblematic
and famous for appearing often in pieces of “trash” horror. Would this be just
a phase that the author that has already proved to be capable of more profound
rereading is passing? Or an eternal state in which his mythology, so famous in
pop culture (and nowadays finding its space in the so-called “erudite culture”)
is plastered? The present paper intends to make an analysis of the lovecraftian
transpositions to cinema e try to understand its connection with trash movies.
In other words, we will try to understand how the narrative structuring of
Lovecraft’s tales and its audiovisual appropriations are established.
Keywords: Lovecraft. Cinematographic transposition. Cinema. Literature. Trash.

1.  Doutorando em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ


e-mail: yurigpk@hotmail.com.

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Mitologia Trash: Um estudo das transposições cinematográficas de H.P. Lovecraft

Yuri Garcia

INTRODUÇÃO
“Atmosphere, not action, is the great desideratum of weird fiction.”
H. P. Lovecraft

N ASCIDO EM 20 de Agosto de 1890, na cidade de Providence, Rhode Island, H. P.


Lovecraft morreu em 15 de Março de 1937, precisamente num momento em que
parecia atingir sua maturidade intelectual e literária, ensaiando um início de
reconhecimento que apontava para seu ápice como escritor.
Lovecraft não foi um autor de grande repercussão ou sucesso em vida. Mesmo assim,
possuía fiéis seguidores do seu trabalho, que contribuíram para fazer algumas de suas
últimas obras chegarem às prensas. Não muito tempo após sua morte, as histórias do
autor começam a se firmar no cenário da literatura de horror, destacando-o como um dos
principais nomes do gênero e conquistando legiões cada vez maiores de admiradores
entre nichos de públicos específicos.
O escritor nos apresenta seres indescritíveis e cria universos que ultrapassam
os limites da racionalidade. Seu mundo imaginário representa o ser humano como
criatura abandonada em um cosmos indiferente à sua existência, dando forma a uma
peculiar mitologia não (ou mesmo anti) antropocêntrica. Espécies alienígenas muito
superiores teriam dominado a Terra em um passado remoto e aguardam adormecidas
seu retorno em um futuro apocalíptico2. Dessa forma, o autor nos apresenta um conceito
de divindade que prescinde dos homens e habita outra(s) dimensão(ões), possuindo
noções de tempo e espaço muito além da capacidade da compreensão humana.
“HPL exitosamente toma a noção da insignificância humana relacionada a um
universo mecânico não consciente e o localiza na vida de um dado personagem ficcional.”
(TAYLOR, 2004, p.54)3
O Cthulhu Mythos aponta um destino cruel para a humanidade, contudo, sublinha
um paradoxo ao pensarmos como tal mitologia consegue se estabelecer de forma
tão pregnante na cultura contemporânea. Quanto mais aterrador e anti-humano
é determinado aspecto do mito, mais nos sentimos atraídos por ele. E essa atração
não se dá somente em um plano da curiosidade sobre sua obra, mas também através
da propagação e contínua reelaboração desta. Mesmo se pensarmos no conceito de
apropriação desenvolvido por Roger Chartier (1996), que aponta para a pluralidade nas
possibilidades interpretativas de leitura, dificilmente concluiríamos que a perspectiva
pessimista que Lovecraft aponta para o futuro da humanidade possa ser compreendida
em grande escala como um diagnóstico otimista e esperançoso para o homem.
Ou seja, mesmo percebendo que o destino da humanidade para Lovecraft é
apocalíptico e que nós nos encontramos em uma posição inferior aos poderosos
habitantes extraterrestres do planeta (“the Old Ones”), nos sentimos atraídos por essa

2.  Nesse sentido, é possível especular que seu impacto na cultura contemporânea (por exemplo, em formas
de literatura esotérica popular ou na vertente de “Eram os Deuses Astronautas”, de Erik Von Däniken) foi
ainda maior do que se poderia pressupor à primeira vista. Ver a curiosa tese de Jason Colavito “The Cult
of Ancient Gods: H. P. Lovecraft and Extraterrestrial Pop Culture” (2005).
3.  “HPL succeeds in taking the notion of humanity’s insignificance relative to a nonconscious mechanic
universe and localizing it in the life of a given fictional character.” (TAYLOR, 2004, p.54)

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Mitologia Trash: Um estudo das transposições cinematográficas de H.P. Lovecraft

Yuri Garcia

concepção4. Não satisfeitos, reproduzimos essa mitologia dando vida a essa ficção e
criando novos produtos midiáticos baseados no imaginário Lovecraftiano.
Desse modo, ao abordarmos essa relação de permanência, devoção e reprodução
do mito de Lovecraft, nos deparamos com múltiplas questões que valem ser destacadas.
Inicialmente, percebemos que, após sua morte, inaugura-se um processo que muito se
assemelha às fan-fictions tão popularmente manifestadas na contemporaneidade. Aqui,
nos deparamos com um novo paradoxo. Em Lovecraft, o fenômeno “cult”5 atinge toda
sua potência, manifestando-se como uma adoração divina do autor e do tratamento
de sua obra como escritura sagrada, porém essa obra sagrada é continuada por seus
seguidores que tentam superar a original (num processo que talvez até mesmo extrapole
os mecanismos da “angústia da influência” de Harold Bloom6).
Entretanto, o foco aqui seria um recorte mais específico, preocupando-se com o
diálogo que sua obra tem com o cinema. Mais especificamente, suas transposições
cinematográficas que se iniciam na década de 60 e atingem seu ápice na década de 80 com
as produções de Stuart Gordon. Atualmente, o fenômeno de apropriação da literatura
lovecraftiana para o cinema continua forte, principalmente se pensarmos que vivemos
um momento em que cada vez mais filmes estão sendo feitos. A necessidade de grandes
investimentos e grandes indústrias por trás da criação fílmica está sendo substituída por
uma realidade em que a facilidade de produção se destaca7. No entanto, é interessante
perceber, que mesmo após mais de 60 anos de transposições cinematográficas, Lovecraft
continua figurando entre um nicho mais específico de produções. Nesse caso, o principal
interesse deste trabalho é tentar compreender o porquê de sua relação com o cinema
ocorre em um âmbito tão marcado pela cultura “trash” e por filmes B.

DIÁLOGOS INTERMIDIÁTICOS
Para pensarmos nessa relação intermidiática estabelecida entre as obras do autor
e seu diálogo com outras mídias, podemos compreender o fenômeno da Cauda Longa
(ANDERSON, 2006) como um importante agente ao possibilitar um crescimento da
produção de produtos considerados mais de nicho, assim como também podemos evocar
o termo “Remediation” cunhado por Jay Bolter e Richard Grusin (2000) para refletir sobre
as novas versões baseadas nos escritos de Lovecraft e de sua mitologia.

4.  A esse respeito, ver o ensaio de Michel Houllebecq “H. P. Lovecraft: Against the World, Against Life”
(2005) sobre o inventor do mito de Cthulhu.
5.  O termo possui uma significação muito ampla, porém nesse estudo adotaremos a obra de JANCOVICH;
et al. (2003) como referência.
6.  A “angústia da influência” é uma teoria desenvolvida pelo crítico literário Harold Bloom, segundo o
qual todo autor “tardio” (belated) sente o peso de seus precursores e assim se vê obrigado a confrontar-se
com sua obra “deslendo-a” (misreading) e reelaborando-a. Para mais detalhes ver: Bloom, 2002.
7.  Embora não sejam exemplos de filmes extremamente fáceis de produzir, com pouco custo e pouca
propaganda, a entrega do Oscar de 2014 (ocorrida em Março de 2015) foi marcada por uma enorme
quantidade de filmes independentes entre os concorrentes à melhor filme (“Birdman”, “Grande Hotel
Budapeste”, “Boyhood”, “A Teoria de Tudo”, “O Jogo da Imitação”, “Whiplash” e “Selma”) sendo apenas
“Sniper Americano” um filme feito por um grande estúdio (Warner Bros).
Ainda reforçando tal idéia, possuímos uma série de filmes feitos com um custo realmente baixo nos últimos
anos sendo responsáveis por lançar grande diretores. Podemos pegar como exemplo “El Mariachi” (1992) de
Robert Rodriguez; “O Balconista” (1994) de Kevin Smith e “Following” (1998) de Christopher Nolan. Outros
diversos filmes de baixo orçamento também povoam o cinema com mais freqüência a cada dia que passa,
todavia não iremos nos ater ao assunto citando aqui filmes mais desconhecidos e/ou de menos repercussão.

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Mitologia Trash: Um estudo das transposições cinematográficas de H.P. Lovecraft

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O livro de Bolter e Grusin possui o subtítulo “Understanding New Media” que ape-
nas reforça a inspiração McLuhaniana de que as novas mídias trazem elementos (não
só em sua gramática e linguagem como também nos produtos) de mídias anteriores
ao prestar uma homenagem ao seu mais famoso livro “Understanding Media” tradu-
zido como “Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem” (2007). No livro
“Estendendo McLuhan: da Aldeia à Teia Global” (2011) de Vinícius Andrade Pereira,
o autor destaca “[...] um meio porta um outro meio no seu interior, como maneira de
se apresentar e se traduzir para um usuário” (p.142) e discute a relação entre ambas
as obras no item 7.2 e 7.3.4 do capítulo 7. Pereira refere-se mais à questão gramatical
mesmo, entretanto uma parte da obra de Bolter e Grusin é destinada aos conteúdos,
tomando como exemplo uma onda de transposições fílmicas de obras de Jane Austin
já a partir da década de 90.
Dessa forma, como um suporte teórico inicial para pensarmos as transposições
cinematográficas Lovecraftianas, percebemos que o diálogo em si é algo extremamente
comum com todas as mídias, sobretudo o cinema. Entretanto, podemos sublinhar aqui
que a própria mudança de suporte já traz por si só um problema de adequação que faz
com que algumas alterações sejam feitas. Talvez a linguagem do autor, suas criações,
suas narrativas estejam destinadas a apropriações para o cinema “trash”. Obviamente
não podemos tomar como uma regra definitiva ou desenvolver uma equação matemática
(Lovecraft + cinema = filmes “trash”), contudo podemos perceber que a maioria de suas
incursões se enquadra nesse padrão. O autor, ainda, traz uma mitologia que é altamente
consumida em nossa cultura contemporânea de forma indireta.
Atualmente, não apenas encontramos suas obras adaptadas para diversas mídias
como cinema, histórias em quadrinho e videogames, mas também é possível detectar
a penetração de elementos da sua complexa mitologia em ambientes midiáticos. Que
baste, por hora, mencionar as referências ao célebre tratado ficcional “Necromicon”,
referenciado em filmes como “Evil Dead” (Sam Raimi, 1981), ou o “Asilo Arkham”, parte
integral do universo de quadrinhos da DC. Ou seja, além de a literatura Lovecraftiana
povoar a cultura “pop” atravessando diversas plataformas e veículos, a mitologia criada
pelo autor se faz presente na forma de citações e reelaborações, bem ao gosto de uma
estética pós-moderna.
Lovecraft produziu uma profunda reformulação da noção tradicional de mito,
elaborando um panteão de deuses monstruosos inteiramente indiferentes ao homem
(Cf. LUDUEÑA, 2013). Esse conjunto de mitos e narrativas, que, além de tudo, poderia
ser qualificado como uma espécie de trabalho colaborativo nos moldes da atual cultura
digital, recebeu de August Derleth a designação de Cthulhu Mythos. “Criando suas visões,
então, Lovecraft estabeleceu as lendas de Cthulhu, uma de suas mais famosas e mais
populares criações imaginárias.” (KUTRIEH, 1985, p.41)8 Dessa forma, o autor traz a
ideia de mito na modernidade com uma nova face, a do horror inumano. Seus mitos
estão muito distantes das clássicas narrativas de esperança e salvação que Deus (ou os
deuses do politeísmo) costumavam prometer à humanidade. Em vez disso, a Lovecraft

8.  Todas as traduções nesse texto, quando não apontadas o contrário são de nossa autoria. “In creating his
visions, then, Lovecraft has established the Cthulhu legends, one of the best-known and most popular of
his imaginative creations.” (KUTRIEH, 1985, p.41).

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Mitologia Trash: Um estudo das transposições cinematográficas de H.P. Lovecraft

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pode provavelmente ser creditada a invenção da primeira mitologia legitimamente


pós- ou anti-humanista (LUDUEÑA, 2013).
Lovecraft traz a possibilidade de um novo mundo, um mundo não humano que
nos apresenta uma alteridade radical. Essa mitologia que o autor cria nos envolve de
forma que consumimos seus produtos mesmo sem notar. A franquia “Alien” possui uma
premissa muito similar à ideia proposta pelo Cthuhu Mythos. O recente filme de Ridley
Scott “Prometheus” (2012) seria uma prequel9 para “Alien, o Oitavo Passageiro” (1979), do
mesmo diretor. A ideia em “Prometheus” deixa mais explícita a influência da mitologia
de Lovecraft e chegou a desanimar o diretor Guillermo Del Toro a dar continuidade
ao seu antigo projeto de adaptar o conto “At the Mountains of Madness” para o cinema10.
O projeto de Del Toro (que não sabemos se será concretizado ou não) se apresen-
ta, de certa forma, como pioneiro nas adaptações fílmicas de Lovecraft. Seria uma
primeira vez que veríamos um conto do autor sendo transposto em uma produção de
alto orçamento com um diretor renomado tanto no meio mais mainstream quanto nos
meios mais cult.
Nesse caso, a relação de Lovecraft com o cinema “trash”, filmes de baixo orçamento
e filmes B é emblemática. Não podemos compreender isso como uma regra geral, pois,
inegavelmente, encontramos produções baseadas em sua obra que não se encontram
nessas classificações, como os filmes produzidos pela H. P. Lovecraft Historical Society –
“The Call of Cthulhu” (2005) e “The Whisperer in Darkness” (2011) – que possuem um caráter
mais artístico, tendo sido feitos em preto e branco e mudo, de forma a ficar mais parecido
com produções da década de 1920. Por outro lado, ao fazermos um breve mapeamento
de suas adaptações, percebemos os filmes dos diretores Stuart Gordon “Re-Animator”
(1985), “From Beyond” (1986), “Castle Freak” (1995), “Dagon” (2001) e Daniel Haller de “Die,
Monster, Die!” (1965), “The Dunwich Horror” (1970) entre as mais famosas, se enquadrando
perfeitamente nas categorias apontadas acima. Podemos mencionar diversos outros
filmes, mas quase todos se enquadram no mesmo padrão, porém com menor alcance de
público, menor retorno financeiro e críticas menos favoráveis. Os citados acima talvez
sejam os principais até então, exceto por um curioso caso que é, na verdade, a primeira
transposição de um conto de Lovecraft.
A primeira aparição de um conto de Lovecraft no cinema é digna de uma nota
especial. Em 1963, o diretor Roger Corman, famoso por suas parcerias com Vincent Price
e por suas inúmeras versões audiovisuais dos contos de Edgar Alan Poe, assim como
suas releituras, homenagens e citações, traz “The Haunted Palace”, traduzido como “O
Castelo Assombrado”. A película é baseada no conto “The Case of Charles Dexter Ward”,
escrito em 1927, porém publicado apenas em 1941 após a morte do autor. O filme se

9.  Utilizamos aqui a palavra “prequel” em inglês devido a uma ausência de uma palavra que possua o mesmo
significado e seja usado da mesma forma no vocabulário cotidiano no português. A palavra “prequela”
serviria inicialmente, porém é utilizada no português lusitano e não possui registro no site da Academia
Brasileira de Letras (site: http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=23). Outras
possibilidades seriam as palavras “prólogo”, “prelúdio”, “prefácio”, “preliminar”, “preâmbulo” e “proêmio”,
contudo são frequentemente utilizadas na música, teatro, literatura e esportes, ficando marcadas pelas suas
utilizações mais comuns. “Introdução”, embora mais simples, não abarca exatamente a ideia necessária.
10.  Ver: <http://www.deltorofilms.com/wp/forum2/viewtopic.php?f=4&t=454> e <http://omelete.uol.com
.br/nas-montanhas-da-loucura/cinema/nas-montanhas-da-loucura-guillermo-del-toro-diz-que-
prometheus-matou-projeto-de-adaptacao/#.Uh544dJ_7AI>

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Mitologia Trash: Um estudo das transposições cinematográficas de H.P. Lovecraft

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enquadra perfeitamente nos moldes das diversas outras produções feitas pela parceria
Price/Corman e é considerado um bom filme de horror para a época (com uma nota 6,8
no internet movie database11 e 71% de aprovação no Rotten Tomatoes12, dois dos principais
sites de filmes da internet). Não é exatamente parte do cinema “trash”, mas o interessante
dessa obra não é tentar avaliá-la como uma possível (ou não) exceção de transposição
lovecraftiana que não faça parte dessa gama. Aqui vale destacar que, embora seja baseado
em um conto de Lovecraft, foi vendida como mais uma adaptação de uma obra de Edgar
Alan Poe e até hoje é assim conhecida.

Figura 1. The Haunted Palace (Cartaz 1)

Figura 2. The Haunted Palace (Blu-ray) Figura 3. The Haunted Palace (Cartaz 2)

11.  http://www.imdb.com/
12.  http://www.rottentomatoes.com/

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Mitologia Trash: Um estudo das transposições cinematográficas de H.P. Lovecraft

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Os motivos que permeiam essa decisão? Por que alimentar tal farsa? Por que
vender um produto que pode ser facilmente desmascarado? E por que a insistência em
manter isso mesmo em um momento em que Lovecraft é reconhecido por seu talento e
está impregnando a cultura midiática de uma forma mais massiva do que Poe? Talvez
algumas sejam perguntas sem respostas que apenas acrescentam o ar de estranheza
ao universo lovecraftiano, todavia o que se sabe é que a decisão veio da produtora
American International Pictures contra a vontade do diretor e também produtor Roger
Corman. Segundo a Wikipédia o motivo seria para dar uma idéia de continuidade à
série de filmes sobre obras de Poe13.
Podemos levantar uma possibilidade de não querer se associar ao nome de Lovecraft
em uma época em que não possuía o mesmo prestígio que atualmente e realçar que
atrelar o filme hoje em dia a seu nome poderia atribuir uma caráter “trash” não desejado
às obras de teor um pouco mais clássico feitas pela dupla Vincent Price e Roger Corman
(necessário destacar que tal possibilidade serviria apenas para os dois artistas juntos,
pois separados já haviam se envolvido com alguns filmes B). Porém essa hipótese seria
meramente especulativa, ainda que sirva para sublinhar a ligação de Lovecraft com
o cinema “trash”. Dessa forma, utilizamos aqui apenas como uma remota (ou não?)
possibilidade de explicação para um fato estranho e curioso.
Se o nome de Lovecraft poderia causar má publicidade ou não ao filme de Corman
não esta em cheque, o fato é que a partir daí, suas transposições têm sido mais associadas
ao cinema “trash”. Mas haveria algum motivo para isso ocorrer? Seriam seus contos feitos
quase “sob medida” para esse nicho específico? Sim e não. Na verdade, não foi possível
(pelo menos não por enquanto) encontrar uma resposta satisfatória. O que podemos é
pensar na obra e no autor e tentar evidenciar algumas possibilidades.
O especialista na vida e obra do autor, S. T. Joshi publicou a biografia de Lovecraft
intitulada “A Dreamer and a Visionary: H. P. Lovecraft in his Time” (2001). A tradução para
português foi feita sob o pobre título “A Vida de H. P. Lovecraft” (2014), entretanto nos
mostra que o autor foi um pequeno gênio desde seus primeiros anos de vida. Sua paixão
por leitura e poesia, seu grande conhecimento científico (para a época), seus estudos
sobre mitologia e suas fortes opiniões sobre os mais variados assuntos nos apresenta
um intelectual que deveria figurar como um importante personagem da chamada
“cultura erudita”14. O autor cria um mundo de extrema complexidade e é influenciado
por diversos autores, filósofos e até cientistas e demais acadêmicos. Mesmo assim, sua
obra não fora devidamente reconhecida durante muito tempo.
Devemos nos lembrar, no entanto, que mesmo que uma complexidade mitológica e
filosófica possa ser encontrada em sua obra, o autor foi um escritor amador e publicou a
maior parte de seus contos em revistas “pulp”, um gênero que era, no início do século XX,
próximo aos filmes de baixo orçamento, “trash” e B em que vemos suas transposições.
Além disso, o gênero do horror e do fantástico dialoga com o “pop” e “trash”, prin-
cipalmente no período em que Lovecraft escrevia seus contos. O autor também possuía

13.  http://en.wikipedia.org/wiki/The_Haunted_Palace
14.  Esse trabalho não possui a menor intenção de retornar aos antigos moldes dicotômicos entre cultura
Erudita e Cultura de Massa, a utilização de tais termos serve apenas para ilustrar a aceitação do autor e
sua influência na cultura.

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Mitologia Trash: Um estudo das transposições cinematográficas de H.P. Lovecraft

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como principal característica de sua escrita, um excesso de adjetivos e de tentativas de


torná-la mais rebuscada. Esse seu estilo narrativo acabou fazendo-o ser considerado
um escritor medíocre pelos críticos durante muito tempo e fez com que suas criações
(monstros, cidades perdidas etc) beirassem complexidades enormes. Assim, os seres
de Lovecraft são mais indescritíveis do que realmente assustadores. Em sua literatura,
seu caráter indescritível nos causa certo mal estar e uma impossibilidade de conseguir
imaginar o que nos é descrito. No audiovisual o impacto se aproxima mais de criaturas
toscas que nos dão impressão de serem perfeitas para os filmes em que as encontramos.
Lovecraft é um autor paradoxal. Suas criações transitam na atualidade entre o “trash”,
o “pop” e o “erudito”. Ao focarmos em suas transposições fílmicas, nos deparamos com
uma variedade enorme de filmes Bs. Entretanto, podemos nos surpreender ainda com
futuras transposições.

CONCLUSÕES
Esse artigo é o início de um projeto mais ambicioso sobre o autor. Aqui, tentamos nos
ater apenas às suas transposições fílmicas. Contudo, Lovecraft nos traz cada vez menos
respostas e apenas acresce nossas dúvidas. Podemos aproximá-lo de um pensador que
nos fornece material para percebermos que nossa ignorância é maior do que imaginamos.
Nesse sentido, pensar sobre Lovecraft nos coloca na posição de seus heróis que acabam
enlouquecendo. De um trabalho iniciado com algumas perguntas, fechamos com poucas
respostas e mais perguntas.
O que é possível concluir com esse trabalho é que a fronteira entre “trash” e erudito
é mais tênue do que achamos. Na verdade, podemos perceber que talvez ela não exista
de fato, seja apenas mais uma dicotomia que nossa cultura ocidental insiste em instaurar.
Lovecraft pode ter sido também nesse sentido, um visionário, como o título original
de sua biografia destaca. Um messias (para podermos utilizar uma palavra de cunho
religioso para um mitógrafo inovador) que deturpa as clássicas polarizações entre o
popular e o erudito através de obras que complexificam tais barreiras.
A mitologia trash de H. P. Lovecraft é uma mitologia altamente refinada, filosófica e
poética. Sua obra apresenta tudo misturado e nos profetiza um futuro para a humanidade.
Os deuses irão despertar e aniquilar a espécie humana, reinando em um mundo onde
nossas dicotomias não existam.

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Mitologia Trash: Um estudo das transposições cinematográficas de H.P. Lovecraft

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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

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O audiovisual nas mídias sociais: a centralidade
do protagonismo e do mundo compartilhado
M au ro Wi lton de Sousa1

Resumo: O presente texto se coloca no cenário contemporâneo de reconhecimen-


to do protagonismo crescente de atores individuais e coletivos conectados em
redes audiovisuais expressando mediações, desde a hegemonia de questões pes-
soais, através de debates, demandas e mobilizações na esfera política e cultural,
assim como na objetivação de diferentes formas de tornar efetiva sua concretude.
O texto pontua indagações e referências críticas sobre mediações sociais que
têm despertado sentido e motivação crescentes à emergência e consolidação
do protagonismo no âmbito da comunicação social, a acentuada presença do
compartilhar, a necessidade de sua publicização e consequente atuação política
através de inúmeras comunidades virtuais.
Palavras chaves: protagonismo, audiovisual, espaço público, mundo comum,
compartilhar.

INTRODUÇÃO

O S PESQUISADORES e estudiosos das práticas de recepção mediática durante


décadas buscaram olhares interpretativos que pudessem ultrapassar a visão e as
práticas destes mesmos receptores dentro do dualismo que os via como objetos
de captura instrumental ou apenas como expressão reificada da dominação política
ideológica (Martin Barbero, 1995; Crary, 2014). São ainda marcantes as demandas e
indagações sobre o sujeito oculto nessas mesmas práticas (Sousa,1995). Evidente que a
disponibilidade técnica de uso cada vez mais generalizado dos meios audiovisuais, espe-
cialmente desde o rádio e a televisão, bem como do contexto cada vez mais acentuado
da vida no meio urbano industrial, contribuíram com o advento de um ritmo e uma
velocidade surpreendentes para a emergência e rápida consolidação da comunicação
verticalizada, instalando-se de vez “uma moderna tradição” da industria cultural.Nessa
expansão se desenvolveu a perspectiva de um receptor cada vez mais dependente das
grades de programação televisiva e radiofônica numa sintonia que os caracterizava
sob diversas formas e razões sob a dominação e a domesticação de valores e práticas
simbólicas de subordinação mediática e o surgimento de uma comunicação massiva.
No âmbito da comunicação social contemporânea a expressão do sujeito protago-
nista ou mesmo de um sujeito-ator em rede, se não é recente, e ainda se desenvolve sob
diversas acepções, surpreende e se coloca sob diferentes olhares de indagação sobre
quais mediações lhe dão em tão pouco tempo um status há longo tempo buscado,
não só nas práticas comunicacionais como nas condições interpretativas que lhe dão

1.  Universidade de São Paulo.

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O audiovisual nas mídias sociais: a centralidade do protagonismo e do mundo compartilhado

Mauro Wilton de Sousa

suporte.Não é difícil então indagar se há apenas uma renovação de odres reproduzindo


uma compreensão da recepção desde modos antigos de sua compreensão ou se de
fato há indicadores de um processo social e cultural, um vinho novo que alicerça a
construção de negociações de valores, na maturação social e política do tecido social
onde se dá o processo comunicacional: o protagonismo como processo em comuni-
cação de fato em construção ou uma marca que se presta a rosto de valores de um
dualismo conhecido.
Reconheça-se que o protagonismo em comunicação social nos dias atuais muitas
vezes se associa à imagem de um produto mediático novo e acabado, a súbita emergência
de um renascido receptor-ator, uma reconfiguração potencializada por todo um novo
arsenal de tecnologias que lhe são disponibilizadas como que tornando-o finalmente
liberto em sua consciência e nos valores de condução de práticas de vida. Com novo
modo de convivência individual com as tecnologias, agora a um só tempo verticais e
horizontais, e na instigante e sedutora convergência dos espaços das redes sociais e
do mundo virtual, pode ter sido criado um sujeito graças apenas à mediação atuali-
zada de dispositivos técnicos, um sujeito ator tecnico no mundo virtual. Essa imagem
de protagonismo em comunicação social pode confundi-lo como produto mediático e
mercadológico individual e padronizado na contraposição de um outro olhar, na sua
qualificação no âmbito político e cultural, na potencialidade histórica de superar desi-
gualdades que podem de fato possibilitar construir mais do que consumir identidades,
reflexão que aqui se aponta.
O uso generalizado do termo e da importância do protagonismo perpassa hoje
diferentes âmbitos da vida política e social, ora na perspectiva fundadora e histórica de
movimentos e grupos sociais e políticos, mas agora também no âmbito da organizações
produtivas e mercadológica, das empresas e organizações como um ideário de sua
sustentabilidade e produtividade.
Cohn (2004, p.22) ao abordar a evolução histórica dos movimentos sociais no
Brasil indica que o tema do empoderamento da comunidade subentende que ela seja
protagonista de sua própria história envolvendo o processo de mobilização que as
impulsione, mas se refere também à busca de integração de excluídos, perspectiva
política e cultural que se realiza no espaço público: uma dimensão política.
No contexto da sociedade urbano industrial pós-moderna o protagonismo tam-
bém se confunde com um novo cenário prospectivo da atualidade do prazer de viver,
espraiando-se não só para práticas de organização do trabalho e dos objetivos de pro-
dutividade mas para um cenário que o configura como eixo de um ideário do novo
modo de ser e de viver em sociedade, do estar junto conectado, da superação de limites
e que se manifesta inclusive nas praticas mais imediatas da vida esportiva, religiosa,
político partidária.
Mais do que objetivar o direcionamento de sentidos que sustentam e que motivam
o ideário do compartilhar a busca de um possível mundo comum, ou seja, a direção
mesma prevista e desejada do protagonismo em suas atuais diferentes expressões na
contemporaneidade, aqui se aponta o modo como se dá a confluência de dinâmicas que
como mediações envolve essa mesma centralidade do protagonismo e da perspectiva
de um mundo compartilhado, dinâmica que lhe atribui um poder simbólico, que lhe é

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dado mais do que conquistado, dinâmica que lhe é assegurada sob diversos ângulos:
ora pela multiplicidade e pluralidade de dispositivos técnicos disponibilizados, ora
pelo reconhecimento de seu lugar e atuação simbólica na criação de novos mecanismos
da interação social e de comunidades, ora pela sua presença no espaço público social
mais do que no político, proporcionando razões para fazer da visibilidade da imagem
técnica e dos dispositivos audiovisuais expressão de consolidação de um certo mundo
comum. Essa dinâmica possivelmente pode ajudar a compreender como uma utopia
em desenvolvimento se dá em seu tempo histórico e contextual, politico-cultural atual
a um só tempo articulando mundos em construção inovadora.

1. VIRTUALIDADE REAL E REALIDADE VIRTUAL


Na afirmação acima, Castells ( Werneck,2014) aponta a contextualidade que desafia
a compreensão do lugar da técnica na contemporaneidade e que não só possibilita a
hegemonia da virtualidade real, mas que se insere na interação social como dimensão
política de um direito que passa a existir na vida social, como que responsabilizando-a
pela emergência de um novo espaço, ou mesmo o espaço por onde essa mesma interação
social hoje se potencializa como realização necessária.
Entende-se a oportunidade das observações de Monteiro (1996, p.104) quando adverte
sobre essa dimensão política da técnica e de seu lugar social:
“A reivindicação (e o reconhecimento) de direitos supõe, em principio, que os atores sociais se sintam
parte de uma sociedade política mais abrangente do que aquela definida pelo seu pertencimento à
rede de sociabilidades primárias (família, etnia, religião, etc.).Talvez esteja aí um dos nós górdios da
questão da democracia do mundo contemporâneo: o enfraquecimento da capacidade dos sistemas
democráticos de gerar sentimento de pertencimento a coletividades mais abstratas organizadas em
torno de reconhecimento de direitos”.

A interação social mediada pelos dispositivos técnicos, desde a escrita e das


possibilidades da fala, tem hoje na internet, bem como pelo agregar da imagem técnica
em seus diferentes aportes técnicos, a oportunidade de construção de um mundo, se não
ambivalente e dual e de múltiplas opções, por onde o protagonismo dos atores sociais
pode se resumir à capacidade de se conectar apenas para experimentar e vivenciar essa
mesma diversidade de espaço e tempo.
Marcondes Filho (2012, p. 198) entende que enquanto processo interativo não há
como compatibilizar dois fenômenos que são estranhos um ao outro:
“A tecnologia irá aprimorar cada vez mais suas máquinas de reprodução do real.A tela nos trará bre-
vemente não apenas o texto da pessoa com quem conversamos mas também sua voz e sua imagem, em
tempo real e em alta definição, igual a que temos no contato físico e direto, ou ainda melhor do que ela.
Mas a variável tecnologia ainda estará presente e continuará a criar uma relação diferente entre mim
e o outro.Isso porque o componente da experiência comunicacional deixa de estar presente: a cena,a
atmosfera, o clima, o espaço entre a dimensão invisível mas operante do terceiro elemento, espaço de
jogo de energias, de fluxos, espaço de circulação de fantasmas. A eletrônica limpa tudo isso, remove a
mística do encontro e nos permite a fala sem mediações metafísicas.Ela torna o mundo um encontro
asséptico, purificado, livre mas seguramente menos rico e enigmático que a comunicação interpessoal”.

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O audiovisual nas mídias sociais: a centralidade do protagonismo e do mundo compartilhado

Mauro Wilton de Sousa

O debate sobre o lugar da técnica tem inúmeros pontos de vista que se reportam
ao advento do rádio e da televisão, indicando a não autonomia desses suportes mas
destacando seu poder de regulação, não apenas no tempo e no espaço interativo na vida
cotidiana, mas exercendo de fato um poder disciplinar, propiciando um isolamento e
neutralização dos indivíduos e a consequente indisponibilidade para uma interativi-
dade não regulada pela mesma técnica.O advento e uso generalizado dos dispositivos
que possibilitam a internet e as redes sociais na contemporaneidade romperia com esse
confinamento em múltiplas dimensões, indicando o potencial do agente protagonista,
seu poder de escolha e uma individualidade compartilhada, uma experiência de uma
sociabilidade mediada pela técnica e perpassando a virtualidade sem fronteiras de um
conflito necessário desses mundos da realidade. Crarys (2014, p.130) reconhece o que
tantos outros já indicaram, ou seja, que as fases do capitalismo neoliberal contempo-
râneo estão desde sempre associando técnica e sociedade pelo viés da comunicação,
elementos que interpõem e que são fundamentais para se considerar a não autonomia
da técnica, mas também dos atores que se colocam como receptores mediáticos desde
sua conectividade, mas adverte:
“ Se o objetivo é a transformação social radical, as mídias eletrônicas em sua forma atual, amplamente
disponíveis, não são inúteis, mas apenas quando são subordinadas a lutas e encontros que ocorrem em
outros lugar. Se as redes não estão a serviço de relações já existentes, forjadas a partir de experiências
compartilhadas, apenas reproduzirão e reforçarão as segregações, a opacidade, as dissimulações e o
interesse próprio inerentes a seu uso. Qualquer turbulência social cujas fontes primárias estejam no
uso de mídias sociais será de modo inevitável, historicamente efêmera e inconsequente”.

Traduz-se aqui a relação que hoje se coloca visível e conflituosa desde a rua e o
mundo virtual, as formas de interação envolvendo não mais a diluição de fronteiras
entre o público e o privado, o individual e o coletivo, o comum e a comunidade, onde o
protagonismo não confunde mais esses mundos e não se limita mais ao ato de escolha,
mas à perda do medo de si mesmo e de sua objetivação e de que fala Castells (apud
Werneck, 2014): “ internet é a liberdade, o medo de perdermos o medo juntos... Viver
na internet tem um perigo: nós mesmos”.
Essas advertências vêm em abono de uma informação já consagrada em tantos
estudos indicando que a não autonomia do processo comunicacional social não significa
delimitá-lo dependente da técnica, ou limitá-lo a um processo artificial de preenchimento
do vazio do ser humano (Flusser, 2007, p.88).

2. O COMUM COMPARTILHADO
O tema do compartilhamento, o ato mesmo de compartilhar, em acepções que
perpassam o ato de dividir, repartir, comungar está presente mais do que nos espaços
publicitários, e se introduz como uma marca conceitual distintiva que busca situar e
propor para as pessoas para além de uma individualidade confinada em sí mesma ou
no uso dos mídias, ou mesmo nas organizações e no consumo, a busca de uma atua-
ção que se confunde com o pressuposto de um comum que aglutina e que se traduz
em comunidades.Termos e conotações advindos das ciências sociais e revisados ou
aplicados hoje de forma generalizada têm em suas diversas acepções o pressuposto do

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O audiovisual nas mídias sociais: a centralidade do protagonismo e do mundo compartilhado

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estar juntos, motivados por ideais e causas aglutinadores, ainda que não materializados
necessariamente no espaço de territórios físicos, mas em uma territorialidade simbólica
passível de articulação de materialidades e valores de referência.
Quéré (1991, p.76-77) na perspectiva da ação social advoga a comunicação como
um processo de de publicização voltado à construção de um mundo comum ou seja:
“atividade conjunta de construção de uma perspectiva comum, de um ponto de vista compartilhado,
base de inferência e de ação...definição que se aplica tanto à comunicação habitual como à comunicação
social no cenário público ( ou a construção de uma perspectiva comum sobre os acontecimentos é o
objeto de uma ação coletiva).

Esse posicionamento conceitual faz inferir um rigoroso critério para se justificar


o protagonismo não circunscrito ao ato mesmo de conectividade técnica, ainda que
individual, mas atento a uma relação aglutinadora de um valor que se torna comum
e que deriva em participação e compromisso. A territorialidade física presente como
componente da comunidade em sua acepção antropológica original se desloca aqui para
uma territorialidade simbólica que seja capaz de ser enraizada na pratica virtual e que
se expresse como valor que agregue e possa transitar, dir-se-ia, entre rua e o virtual.
Mais do que apenas na materialidade do mundo da informação e do entretenimento, o
protagonismo se coloca como dimensão política de inserção no tecido social,de um valor
buscado coletivamente, independente de intenções individuais, e diria ainda Quéré, “a
incorporação institucional de “voir comme” ou um “compter pour”.Uma comunidade,pois,
não enquanto comunhão mas enquanto um acontecimento político, para além de uma
dimensão apenas fatual de circunstancias.
Rancière (2009,p.15) ao tratar da junção entre práticas estéticas e práticas políti-
cas indica de modo semelhante o peso do que denomina de evidências sensíveis para
dar conta dessa intencionalidade voltada para o comum, para efetiva realização do
compartilhado:
“Denomino partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo,a
existência de um comum dos rewcortes que nele definem lugares e partes respectivas.Uma parti-
lha do sensível fixa portanto, ao mesmo tempo, um comum compartilhado e partes exclusivas.Essa
repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha de espaços,tempos e tipos de atividade que
determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros
tomam parte nessa partilha.

Se na proposição de Quéré o mundo comum tem na necessidade de que seja parti-


lhado em sua construção o seu elemento definidor, uma ação coletiva resultante desse
partilhar, não enquanto convergência de pontos de vista, pensamentos e opiniões, mas
de criação conjunta desse mesmo espaço relacional a ser vivido, em Rancière, ainda que
sob outros pressupostos, a efetiva ação do comum tem na partilha, nos recortes e partes,
mas especialmente em espaços, tempos e atividades formas e modos como “um comum
se presta à participação e como uns e outros tomam parte nesta partilha.”
Preconiza-se assim que essa construção social da realidade assim buscada se rea-
liza como uma organização do coletivo no espaço público envolvendo os indivíduos,
suas ações e estados emocionais, as entidades e suas referências de classes, nações e

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O audiovisual nas mídias sociais: a centralidade do protagonismo e do mundo compartilhado

Mauro Wilton de Sousa

mentalidades (Quéré,1991.p.86), e tanto quanto espaços, tempos e atividades mas não se


funda em um lugar como pressupõe a comunidade (Rancière,2009.p.15).

O ESPAÇO PUBLICO COMO ACONTECIMENTO POLÍTICO E SOCIAL


Quéré (2005, p.71) entende o acontecimento como “um palco de encontro, intera-
ção, confrontação e determinação recíproca” propiciando a objetivação consequente de
espaços de negociação e de superação da realidade.Essa dimensão política do aconte-
cimento, buscando equacionar como que a poética que sustenta o ruído entre o visível
e o invisível se traduz em práticas diversas, diria Quéré, de manifestações estéticas,
comunicativas e políticas.O comum então se manifesta como resultante construído, é
um acontecimento político.
Ainda que sob outro olhar pode-se ver o acontecimento como essa atividade de
reação transformadora, nos âmbitos social e político, na perspectiva de Beaud (1985) ao
centralizar a análise do pertencimento na constatação de que na sociedade contempo-
rânea o social vem encontrando sua autonomização, força e secularização.À medida
que aumentam as demandas sociais e à medida que o Estado se mostra incapaz de
atendê-las, não só os atores institucionais vivem o conflito das demandas propostas e
não atendidas, como toda a estrutura do político passa a depender desse conflito gera-
do a partir do social, salientando-se a necessidade da estratégia da negociação.É a esse
processo entre o social e o político que Beaud denomina de ampliação de fronteiras: o
social permeia o político ao mesmo tempo que o cultural, e se expressa como constituinte
da esfera pública ao mesmo tempo que da esfera privada e familiar indo até as novas
formas de socialização e que se colocam como a própria expressão do conflito, base da
democracia.(apud.Sousa ,in Sousa e Corrêa, 2014, p. 281).
As observações de Floris (1995, p.125) na identificação das marcas mediadoras do
espaço público possibilitam a identificação do protagonismo como inserção política no
espaço público:
“1°, Ele é o campo da formação simbólica de uma opinião pública através de todas as formas de comu-
nicação existentes na sociedade; 2ºEle é um campo de formação democrática de uma vontade politica
por meio do sufrágio universal, do parlamento e dos partido; 3° Ele é uma esfera de mediação entre o
Estado e a sociedade civil; 4° O espaço público não é um lugar abstrato do consenso democrático ideal,
é um espaço conflitivo exprimindo relações sociais de desigualdade e de dominação.”

Entende-se então a afirmação de Toro & Werneck, (apud Mafra. 2006, p.34): Essa
perspectiva política do protagonismo como um processo de negociação de valores, para
além de apenas uma inserção pontual em grupos e comunidades físicas e virtuais, se
traduz no consequente envolvimento participativo, de mobilização e atuação por aquilo
que como causa e valor justifica o estar junto nessa dimensão mesma de comunidade.
“mobilização social é muitas vezes confundida com manifestações, com a presença da pessoas em uma
praça, passeata. concentração.A mobilização ocorre quando um grupo de pessoas, uma comunidade ou
uma sociedade decide e age com um objetivo comum, buscado quotidianamente, resultados decididos
e desejados por todos”.

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O audiovisual nas mídias sociais: a centralidade do protagonismo e do mundo compartilhado

Mauro Wilton de Sousa

Mafra (2006, p. 34) aprofunda essa proposição salientando que a mobilização pode
ser reconhecida como um ato de comunicação, porque envolve o compartilhamento de
discursos, visões e informações, e, por isso, exige ações de comunicação em seu sentido
amplo. “Convocar vontades” e compartilhar “sentimentos, conhecimentos e responsa-
bilidade” pressupõe conversa, troca, partilha intersubjetiva, interação”
O protagonismo em comunicação se delineia, pois, como atividade e estratégia polí-
tica de negociação da presença participativa no universo simbólico e cultural mediado
também pelos mídias , uma atividade político-cultural.Tem sentido as observações de
Castoriadis ( apud Miège 2009,p.9)“Mas o conjunto técnico ele mesmo está privado de
sentido, técnico ou qualquer que seja se o separamos do conjunto econômico e social”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Mafra, Rennan.2006. Entre o espetáculo, a festa e a argumentação – mídia,comunicação estraté-
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xeologique. Rev.Reseaux, nº46/47, Paris. France.
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contemporâneo. Ed.Paulus. São Paulo.
Sousa, Mauro Wilton. 1995. Sujeito,o lado oculto do receptor. Ed. Brasiliense, São Paulo.
Werneck, Paulo. 2014. Somos anjos e demônios na internet, diz sociólogo. Folha de S.Paulo,
12 de junho, Caderno Ilustrada.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

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Interatividade na TV Brasil: vivenciando o Dango Balango
Interactivity in TV Brasil: experiencing Dango Balango
Sa maisa dos A n j o s X av i e r H e n r i q u e 1

Resumo: O trabalho busca discutir o conceito de qualidade na programação


audiovisual destinada ao público infantil e, mais especificamente, problematizar
a relação das crianças com a proposta de interatividade dos programas.
Analisando junto com um grupo de crianças o programa Dango Balango,
transmitido pela TV Brasil, a pesquisa reitera a importância de que os programas
deem espaço para as vozes e experiências das crianças, permitindo assim que
elas contribuam com a construção simbólica dos produtos para elas destinados.
Assim, a participação das crianças nos debates e projetos da programação infantil
pode ter papel central na construção da qualidade dos produtos audiovisuais
aos quais esse público tem acesso cada vez mais cedo e de forma intensa.
Palavras-Chave: Audiovisual. Infância. Qualidade. Interatividade.

Abstract: This article discuss the concept of quality in audiovisual programming


intended to children’s audience and, specifically, analyse the relation of
children with interactivity proposed by the television programs. Analysing
along with group of children the Dango Balango program, broadcasted by TV
Brasil, the research reaffirms the importance of the programs make available
the participation of the children talking their experiences and allowing
their contribution for the symbolic construction of the products intended for
them. So, the participation of the children in the discussions and projects of
the children’s programming may have central role in the development of the
quality of audiovisual products, which this public has access at an earlier age
and intensively.
Keywords: Audiovisual. Childhood. Quality. Interactivity

1. INTRODUÇÃO

A TELEVISÃO NÃO domina mais em posição isolada a atenção das crianças e ado-
lescentes como o era há alguns anos, no entanto, mesmo com o desenvolvimento
e a rápida absorção da internet na vida moderna, o que traz para o assunto os
jogos eletrônicos, as redes de relacionamento e as brincadeiras online, a telinha continua
presente na maioria dos lares brasileiros, onde se torna parte do cotidiano familiar e
elemento importante para o

1.  Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará (UFC).


samaisa.anjos@gmail.com

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

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Interatividade na TV Brasil: vivenciando o Dango Balango

Samaisa dos Anjos Xavier Henrique

cotidiano de muitas crianças. A relação desenvolvida de maneira intensa com


diversas mídias possibilita o acesso, cada vez mais cedo, a um mundo de significados
imagéticos e sonoros, valores e sonhos, frequentemente inacessíveis à realidade social,
econômica e cultural das crianças. Para se pensar sobre como as crianças se relacionam
com os conteúdos midiáticos produzidos para elas, há de se levar em conta, a importância
que essas vivências alcançam no presente e futuro delas. Se, como argumentou José Juan
Ortiz Brú, representante da UNICEF em Cuba, na apresentação no livro Audiovisual y
la niñez (2008, p. I, tradução livre), “o audiovisual é um dos caminhos mais importante
para formar consciência e fomentar uma cultura de paz, uma cultura de direitos2”, é
necessário que os olhos de pesquisadores e interessados no desenvolvimento da infância
também se voltem para o audiovisual e para a maneira como os conteúdos e formas nele
tematizados dizem respeito ao mundo e as experiências do público infantil.
Em diversos encontros que abordaram a temática da infância e mídia ao longo dos
anos, houve oportunidades de ouvir as crianças, tanto sobre a sub-representação que
a imprensa institui em seus meios tradicionais como sobre aquilo que gostariam de
ver e ouvir na mídia para e sobre elas. É sobre isso que Feilitzen e Butch (2002, p. 71)
tematizam ao indicar que:
Além das imagens das crianças mostradas na programação infantil, em livros, etc., um
padrão geral vigente para a mídia como um todo é o de as crianças serem fortemente sub-
-representadas. Elas raramente são vistas, suas vozes raramente são ouvidas e os adultos
da mídia raramente falam sobre crianças.

Diante disso, o que as crianças esperam encontrar na mídia? Segundo Feilitzen


e Butch (2002, p. 128), exemplos mostram que “muitas vezes querem encontrar seus
próprios sonhos cotidianos e sua própria realidade e cultura local, social e étnica na
mídia”. Como uma maneira de aprofundar essa descrição de quereres, podem-se citar
também os desejos elencados na Carta sobre Televisão para Crianças (1995)3:
1. As crianças deverão contar com programas de alta qualidade feitos especificamente
para elas, e que não as explorem. Além de diverti-las, deverão permitir que as crianças se
desenvolvam física, mental e socialmente até o seu potencial máximo.
2. As crianças deverão ouvir, ver e expressar a si próprias, a sua cultura, a seu idioma e a
suas experiências de vida por meio de programas de televisão que afirmem seu senso de
si mesmas, de sua comodidade e de seu lugar.
3. Os programas infantis deverão propiciar a consciência e o apreço por outras culturas, e
paralelamente por seu próprio meio cultural.
4. Os programas infantis deverão ser diversificados em termos de gênero e conteúdo, sem,
entretanto, conter cenas gratuitas de violência e de sexo.
5. Os programas infantis deverão ser levados ao ar em blocos regulares, nos horários em
que as crianças possam assistir a eles, e/ou distribuídos através de outros meios e tecno-
logias de acesso amplo.

2.  El audiovisual es una de las vias más importantes para formar conciencia e fomentar una cultura de
paz, que es decir uma cultura de derechos.
3.  A Carta sobre Televisão para Crianças foi apresentada por Anna Home, Diretora de Programação Infantil
da BBC Television, na Primeira Cúpula Mundial sobre Televisão e Crianças, realizada em Melbourne, na
Austrália, em março de 1995. A Carta foi revista e adotada em Munique, em maio de 1995.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

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Interatividade na TV Brasil: vivenciando o Dango Balango

Samaisa dos Anjos Xavier Henrique

6. Verbas suficientes deverão estar disponíveis, para que esses programas tenham o melhor
padrão de qualidade possível.
7. Os governos e as organizações de produção, distribuição e financiamento deverão reco-
nhecer tanto a importância quanto a vulnerabilidade da televisão para as crianças indígenas,
e tomar medidas no sentido de protegê-las.

E a Lista de Desejos exposta no encerramento do Encontro Asiático sobre os Direitos


da Criança e a Mídia (1996) vem para reiterar esses quereres:
1. Queremos programas de alta qualidade feitos só para nós – programas que não nos usem
como sujeitos para vender produtos ou ideias. Queremos aprender e nos divertir!
2. Queremos expressar nossas ideias nestes programas. Queremos falar sobre nossas famí-
lias, amigos e comunidades. Queremos partilhar o que sabemos sobre nós mesmos e sobre
os outros.
3. Queremos saber o que as outras crianças estão fazendo – que jogos elas estão jogando, que
canções estão cantando, que problemas estão tendo que resolver em suas partes do mundo.
4. Queremos programas que nos deixem confiantes, de forma que possamos lidar com o
processo de crescimento – sem cenas de sexo ou violência, por favor!
5. Queremos programas que mostrem consideração pelas nossas necessidades como crianças
em crescimento, a que possamos assistir em períodos regulares de tempo.
6. Queremos o apoio de todos para que esses programas sejam os melhores possíveis.
7. Escutem-nos. Levem-nos a sério. Apoiem estes programas e protejam nossos direitos!

Ouvir tais quereres, levá-los a sério e incluí-los nos debates, na constituição de


projeto, de roteiros e de conceitos acerca da programação infantil é elemento essencial
para a constituição da qualidade em tais produções.

2. DISCUTINDO QUALIDADE
A relação intensa que as crianças, cada vez mais em sua tenra idade, estabelecem com
as mídias disponíveis em seu contexto social despertou e continua a despertar o olhar
para que tipo de mídia é essa e como é o desenrolar dessa relação, que permite trocas,
que favorece o imaginário, a associação de palavras, gestos, situações, valores. Um dos
pontos importantes sobre essa relação é a qualidade que essa mídia, seja ela expressa
em produtos audiovisuais, sonoros, impressos, se dispõe a ter e efetivamente demonstra
ter para chegar às mãos, ouvidos, olhos e emoções das crianças. Entretanto, a definição
de qualidade escapa por entre os dedos, se moldando à cultura, as normas e hábitos
midiáticos da população do país em que é pesquisada, ao momento histórico-social,
aos parâmetros de quem julga. Mulgan (apud MACHADO, 2000), após enumerar sete
acepções diferentes para a palavra qualidade, que incluíam conceitos como diversidade,
mobilização popular, compreensão das demandas da sociedade e a técnica, ressaltou que
a riqueza e a ambiguidade dessa palavra podem ser “uma virtude e não um problema”.
Assim, para Machado (2000, p. 25), uma televisão de qualidade, levando-se em conta
a amplitude de tal conceito, definido como elástico e complexo, “deve ser capaz de
equacionar uma variedade muito grande de valores e oferecer propostas que sintetizem
o maior número possível de ‘qualidades’”.

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Interatividade na TV Brasil: vivenciando o Dango Balango

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Viñes (2003), ao apresentar os principais estudos realizados em três países sobre


a qualidade dos conteúdos audiovisuais dirigidos à infância, especificou, por exem-
plo, que o programa infantil na Austrália é considerado como aquele realizado sob a
perspectiva do público infantil e que possua uma alta qualidade de produção, com o
adendo de não precisar ser didático ou educativo, pois “didática sem entretenimento
não tem sentido4” (VIÑES, 2003, tradução livre). Já no Brasil, o Manual da Classificação
Indicativa (2006) indica a valorização de programas que apresentem comportamentos
desejáveis, que “ressaltem atitudes que contribuam para transformar crianças e ado-
lescentes em indivíduos
mais harmônicos com o restante da sociedade e respeitadores dos direitos humanos”5.
Assim, de acordo com a Classificação Indicativa, alguns dos elementos adequados para
uma programação voltada para as crianças e adolescentes seriam: comportamentos
cooperativos, solidários e de ajuda aos demais; que denotam responsabilidade; que
valorizam a honestidade, o respeito, a capacidade de resolução de conflito; conteúdos
que valorizem as habilidades cognitivas da criança, o conhecimento, os cuidados com
o corpo, habilidades manuais/ motoras, que respeitem e estimulem a diversidade e que
promovam uma cultura de paz; possibilite o desenvolvimento de habilidades sociais
e emocionais; contenha menção dos direitos humanos de forma positiva; opiniões/
informações divergentes e plurais, regionalização da programação e produções indepen-
dentes6. É preciso analisar não somente o conteúdo, mas a maneira como esses valores
são tematizados, assim como as mediações que acontecem a partir deles.
Para Cotera (2008, p. 202), ao falar sobre os filmes para crianças, aqueles produtos
considerados bons eram os que elas “possam reconhecer seu próprio mundo ou
seguir seus sonhos e anseios, em que são levadas a sério e não ajustados para uma
existência futura como adultos7”, partindo do princípio primordial de que “um filme
para crianças deve se orientar primordialmente pelos interesses e necessidades deste
grupo de espectadores8” (2008, p. 202, tradução nossa). Levando-se em conta que a
diversidade deve estar além dos conteúdos, mas também em gêneros, tipologias e estilos,
a diversidade de linguagens e ofertas é mais uma faceta da relação que se estabelece com
esse vasto público (RICHERI & LASAGNI, 2006). Assim, podemos dizer que a inovação, a
experimentação, o jogo com a rica e fluida linguagem televisiva está inserida na ideia de
diversidade. Entre tantos direcionamentos sobre a qualidade dos programas televisivos,
concordamos quando Feilitzen e Butch (2002. p. 69) comentam que não existe fórmula
pronta para um programa ou conteúdo de mídia bom, pois:
As crianças são ativas e curiosas, e elas se orientam no ambiente de maneira a construir
significados. Elas querem aprender, se divertir, construir relações sociais e criar sua própria

4.  Didáctica sin entretenimiento no tiene sentido. Texto disponível em: <http://web.ua.es/es/
comunicacioneinfancia/documentos/doc-grupo-invest/articulos/indicadores-de-calidad-en-los-contenidos-
audiovisuales-en-televisi-n-dirigidos-a-la-infancia.pdf>.
5.  Manual da Classificação Indicativa, 2006. Página 26.
6.  Ibid. Páginas 27 a 29.
7.  Pueden reconocer su propio mundo o seguir sus sueños y anhelos, son tomados en serio y no ajustados,
y amaentrados para la futura existencia de adultos.
8.  Cualquier filme que resulte inteligible e interesante para los ninõs, es un buen filme infantil. Un filme
para ninõs ha de orientarse primordialmente en los intereses y las necesidades de esta clase de espectadores

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Interatividade na TV Brasil: vivenciando o Dango Balango

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identidade – também por meio da mídia. O que as crianças precisam, então, não é apenas
prazer e identificações imaginárias visando ao mero entretenimento. Elas também querem
aprender e construir seu sentido de pertencer a uma sociedade – muitas vezes, por meio de
conteúdos de mídia dramáticos. Além disso, elas muitas vezes querem se identificar com
crianças que sejam semelhantes a elas.

E, como a televisão é “o meio que mais tem produzido para o público infanto-juvenil
ou que, pelo menos, mais visibilidade e mais impacto tem gerado a esse nível” (PEREIRA,
2009, p.24), é necessário que em seus programas, as crianças encontrem o que querem,
o que precisam. E sejam ouvidas sobre esses quereres e necessidade. E levadas a sério.

3. TV BRASIL E O DANGO BALANGO


A TV Brasil, em seus documentos e diretrizes, é definida como uma televisão
pública, nacional, independente e democrática, que busca complementar o sistema
privado, possibilitando o acesso a uma programação mais plural, tanto para o público,
como para os produtores audiovisuais independentes. Criada em 2007 e gerida pela
Empresa Brasil de Comunicação (implantada pelo Congresso através da Lei 11 652/2008),
a TV Brasil é uma experiência ainda recente de canal público no país e surgiu, entre
muitos outros interesses, de um movimento envolvendo vários setores da sociedade no
Fórum da TV Pública. Em abril de 2010, a TV Brasil lançou a faixa “Hora da Criança”,
programação dedicada exclusivamente para o público infantil, incluindo onze programas
novos à programação que já contava com dez. Seriam mais de 35 horas semanais “com
produções nacionais e internacionais, que divertem, informam e educam as crianças e
adolescentes com inteligência, criatividade e cidadania9”. No que se refere ao público
infantil e juvenil, a TV Brasil reitera a tradição das TVs públicas mundiais com uma
programação baseada nos indicadores de qualidade, com ênfase na formação de valores,
na pluralidade e nos conteúdos nacionais (site TV Brasil).
Entre os programas ofertados na grade da programação da TV pública, está o Dango
Balango, uma parceria do Grupo Giramundo e da Rede Minas, de Minas Gerais. A
escolha por esta produção se deu por ser um programa que anunciava em seus objetivos
a não pretensão em ensinar, utilizando o lúdico, o entretenimento, além de um cuidado
com a estética, propondo a participação das crianças na narrativa dos episódios, através
de vídeos sobre elementos cotidianos, do compartilhamento de brincadeiras e ideias.

3.1. Construção e interatividade


O Dango Balango pode ser classificado como um programa híbrido, pois utiliza
elementos ficcionais e reais dentro dos quadros apresentados, que levam ao público
narrativas com personagens através de bonecos manipulados, intercaladas por quadros
que contam com a participação de crianças em seus diversos contextos cotidianos,
seja na escola, em passeios, em jogos com os amigos. Os episódios possuem, em sua
maioria, temáticas relacionadas ao cotidiano, com as vivências dos personagens em

9.  Trecho do Boletim publicado no dia 6 de abril de 2010 no site da TV Brasil anunciando a “Hora da Criança”.
Disponível em : <http://tvbrasil.org.br/novidades/?p=439>.

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Interatividade na TV Brasil: vivenciando o Dango Balango

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suas relações de amizade, por exemplo, contando também com aventuras e assuntos
relacionados à natureza. Entre os quadros do programa (alguns foram sendo modificados
ou substituídos ao longo das temporadas), destacamos:
- Ares e Lugares: Crianças apresentam em vídeo com técnica caseira (mas acom-
panhados de uma câmera com qualidade técnica maior) algum lugar, hábito da
sua vida cotidiana.
- Mil e uma coisas: Quadro em que um processo é mostrado, por exemplo, a sepa-
ração de cartas nos Correios, como acontece o tratamento da rede de esgoto, etc.
- É só brincadeira: Crianças explicam como se faz uma brincadeira específica. Uma
criança é destacada para dar explicações práticas (quantas pessoas precisam,
quais são as regras), enquanto imagens do grupo brincando são exibidas.
- Risque e Rabisque: Artistas desenham, pintam em frente às câmeras até chegar
ao resultado final.
- As sombras são: Teatro de sombras brinca com as formas e com os sons.
- Troca de truques: Mágicos realizam truques com lenços, flores, cartas, sem
narração.
- Charadas: o personagem Charada propõe adivinhas para o público.
- Pílulas: momentos em que crianças respondem às perguntas (que não são ouvidas)
relativas ao tema tratado no episódio.

Um destaque que chamou a atenção desde o início da pesquisa com o programa


Dango Balango foram as produções das crianças que são exibidas nos episódios. Para
além de programas que pensam conteúdos para o público infantil, existe a proposta
de que o público faça parte da construção da narrativa. Esse elemento está presente,
principalmente, nas “Pílulas” e nos quadros “Ares e Lugares”, “É só brincadeira”. Em
quadros como o “As sombras são” e “Risque e Rabisque”, a possibilidade de acompa-
nhar os processos da construção do produto final também são potenciais na relação
com as crianças. A compreensão da maneira como se constrói a relação que o programa
propõe do público ser o protagonista, com quadros conduzidos pelas crianças, assim
como perceber como se dá o estímulo a imaginação e principalmente a criatividade, só
poderia se tornar real dentro da pesquisa com o apoio, o contato e a troca com crianças,
afinal é a elas que o programa quer chegar.

4. VIVÊNCIA DO PROGRAMA COM AS CRIANÇAS


Oferecer um espaço para as crianças, propor atividades e acompanhar o processo que
surgiria desse conjunto foi o caminho escolhido para ser percorrido para esta pesquisa,
ressaltando o que Kastrup (2008, p. 466) aponta como “o caráter de produção coletiva do
conhecimento”, pois, “conhecer não é representar uma realidade pré-existente, mas é um
processo de invenção de si e do mundo”. Ao usar o conceito de que a cartografia é sempre
um coletivo de forças (KASTRUP, 2008), há de se chamar para o território da pesquisa os
movimentos que se apresentam, suspendendo as expectativas que as vivências anterio-
res ao processo estabeleceram, partindo do ponto firme e distante da observação para
confirmar interesses, passando para a atenção concentrada e aberta. Assim, a pesquisa
ganhou forma de acordo com as vozes, ações e reações, risadas e costas viradas para

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Interatividade na TV Brasil: vivenciando o Dango Balango

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a TV que as crianças, participantes imprescindíveis do percurso, demonstraram. Ao


longo das cinco oficinas e da vivência com o grupo de crianças de cinco anos de uma
escola da rede particular de ensino em Fortaleza (que teve, em média, seis participantes)
formou-se um palimpsesto de cenas, falas, sentimentos, impressões, olhares e silêncios
que iam construindo possibilidades diversas, indicando novos caminhos e assinalando
momentos que retornariam em diálogo da pesquisa. Nosso foco eram os episódios,
entretanto, com o decorrer dos encontros, a maioria das ações e reações, dos diálogos,
das relações estabelecidas a partir de um ponto não era diretamente sobre o programa,
como era proposto, mas sobre as vivências cotidianas a que determinados trechos dos
episódios diziam respeito, a maneira como resignificavam aqueles conteúdos para suas
vivências nos diversos espaços: em casa (principalmente), na escola, nos locais de lazer,
na relação com os pais, irmãos, amigos.

4.1. Participação e construção do programa


Um exemplo da presença das crianças nos episódios do Dango Balango são os
momentos que a produção denomina “Pílulas”, vídeos em que elas falam algo sobre o
conteúdo do programa, como já comentado neste trabalho. Durante os episódios exibidos
para o grupo, as crianças aparecem comentando sobre o que querem ser quando crescer,
se já receberam cartas, quando ouvem rádio, detalhes sobre a família, o que acontece
quando se gasta água, por exemplo. Segundo Hudson Viana, ex-diretor do programa,
um dos objetivos do quadro era “dar voz a criança do jeito que tiver de ser”, indicando
que o planejamento era mínimo e a produção pretendia que “as crianças reagissem da
maneira mais natural possível, sem muitas mediações e filtros”10. No universo do Dango
Balango, um quadro que busca se aproximar dessa proposta de autoria das crianças é o
“Ares e Lugares”, também já descrito neste trabalho. Durante os episódios exibidos para
o grupo participante das oficinas, os vídeos do quadro mostraram crianças passeando
por um museu, um menina apresentando os amigos e seus cachorros, um menino e uma
menina falando sobre as atividades de uma escola e uma menina no Parque Municipal,
onde o avô e o bisavô trabalharam.
Em dois dos episódios exibidos, as crianças do grupo participante da oficina não
estabeleceram uma relação de curiosidade com o quadro, olhando-o rapidamente.
Entretanto, na 3ª oficina, a presença de uma criança com a faixa etária deles os toca de
uma maneira diferente, pois muitos param e ficam em frente à TV, querendo saber o
que ela estava falando. Algo parecido aconteceu na 4ª oficina, em que um colégio era
mostrado, pois as crianças sabiam que, naquele dia, faríamos um vídeo na escola e o fato
do programa abordar uma situação semelhante fez com que parassem para ver o que e
como falavam. Mais uma vez, a experiência surgia a partir do momento que o assunto
tinha relação com as vivências das crianças. Algo que foi percebido durante a oficina com
o grupo de crianças participantes e poderia surgir em conversas com outros grupos, foi
a identificação, o encantamento, o interesse coletivo por quadros específicos. O grupo
construía uma relação diferente com quadros que iam se constituindo, ganhando forma
durante a exibição, como “Risque e Rabisque”, “As sombras são” e “Troca de Truques”.

10.  Hudson Viana (ex-diretor do programa Dango Balango) [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por
<samaisa.anjos@gmail.com.br> em 27 de maio de 2011.

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Logo, o olhar da pesquisa nutriu uma atenção maior para o momento em que esses
quadros eram exibidos e as reações das crianças se davam de forma mais intensa. As
tentativas de adivinhar o que aconteceria, quais as imagens estavam surgindo eram
acompanhadas de muita animação e conversas sobre experiências próprias com tru-
ques de mágica, desenhos, brincadeiras de montar peças coloridas e objetos diferentes.
Durante as oficinas, a relação das crianças com os quadros que propunham uma cons-
trução crescente do produto final, assim como de cenas em que havia uma proximi-
dade com as vivências cotidianas, os assuntos corriqueiros do público específico dos
encontros foi se constituindo e fortalecendo. A cada parada em frente ao equipamento
televisivo para ouvir e interagir com os personagens e, especialmente, com as outras
crianças que participavam dos quadros com narrativas pessoais, os participantes das
oficinas demandavam atenção para as próprias histórias que tinham para contar, para
a possibilidade de serem ouvidos – neste caso pela pesquisadora – com atenção pelo
que viviam, pensavam, queriam. Assim, detalhes sobre a casa, a família, os momentos
de lazer, a ida à escola eram organizados em narrativas que dialogavam com os temas
dos episódios vistos.
Um ponto interessante a ser percebido e, posteriormente, aprofundado é a relação
das crianças com dispositivos como smartphones, computadores, câmeras. Apesar de
afirmarem usar os equipamentos dos pais, irmãos em casa, a curiosidade em usar para
produzir algo – como os vídeos que as crianças dos quadros do Dango Balango faziam,
excitava a turma de meninos e meninas de cinco anos. Dessa demanda, surgiu a desti-
nação de um dos encontros para que elas usassem a câmera e gravassem vídeos falando
e mostrando o que quisessem. Assim, durante a 4ª oficina, foi proposto ao grupo, que era
composto por seis crianças naquele momento, que gravassem o que quisessem na escola.
Ao escolher locais fora do prédio da escola, como o parquinho, a piscina, a horta, a rua
(ou o limite entre a escola e o lado de fora), as crianças indicavam como os momentos de
lazer, de vivência fora da sala de aula tinham importância dentro do ambiente escolar e
do universo que constituíam para si mesmas. Durante os vídeos, a maioria das crianças
olhava diretamente para a câmera, explicando com clareza aquilo que estava mostrando,
algumas se apresentavam no começo (assim como as crianças do quadro “Ares e Lugares”
fazem), outras queriam participar do vídeo dos colegas.
Um aspecto que tocou a mim e, possivelmente, às crianças durante os poucos
minutos que passaram com a câmera em punho pelo espaço de passagem e de lazer da
escola foi o olhar do outro, daqueles que estavam do lado de fora da nossa atividade,
do espaço de convivência que havíamos estabelecido ao longo dos encontros. Assim, a
chegada da coordenadora incita uma das crianças a informar que eles estavam fazendo
um filme. O modo com que os pais que ali passavam para buscar os filhos observavam
a cena de crianças de cinco anos com câmeras de vídeo nas mãos, falando para a tela de
modo desenvolto e o olhar das crianças de outras classes (tanto maiores, quanto menores
do que eles) que misturava curiosidade e vontade de participar chamou a atenção para o
papel que o grupo estava tomando para si, como uma afirmação da participação naquele
processo, parte do percurso de construção de si mesmo naquele ambiente cotidiano
que ganhava novos elementos. Após o manuseio da câmera, a fala diante da lente, o
olhar através do visor, as crianças do grupo queriam ver o resultado. Ao exibir o vídeo,

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Interatividade na TV Brasil: vivenciando o Dango Balango

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todas as crianças e a professora foram chamadas para assistir, permitindo que aquele
momento fosse compartilhado por aqueles que convivem diariamente e constroem
juntos cotidianamente uma relação de cooperação. A atenção silenciosa voltada para o
aparelho de televisão é rapidamente substituída por risadas, braços ansiosos apontando
os colegas e dizendo quem estava aparecendo a cada segundo.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entendemos, diante da experiência de pesquisa e vivência com as crianças, o pro-
grama e os processos de relação e produção com dispositivos como a própria TV e a
câmera, que há de se voltar a atenção para a produção de programas que em seus conte-
údos constituam um espaço de convivência para as vivências das crianças, legitimando
sua voz, suas experiências, suas opiniões, possibilitando a promoção do respeito por
si mesmo e pelos outros, permitindo que a educação aconteça, sem precisar cair nos
conteúdos didáticos ou que respondem ao conteúdo programático da educação formal.
Entende-se que a proposta do programa Dango Balango tem potencial para dialogar
com a educação pensada na convivência, na cooperação, pois a presença de crianças
em seus espaços de convivência diários, como escolas, parques, praças e ruas, assim
como a escuta de suas opiniões e experiências permite que se estabeleça uma em que
a criança também se torna coautora do conteúdo do programa, em uma cooperação.
Como explicam Feilitzen e Butch (2002, p.80), as razões, o quê e como as crianças vivem
o processo de construção de sentido e resignificação a partir de como usam a mídia,
dependem “de suas necessidades, intenções, experiência própria, filiação grupal, idade,
gênero, etnicidade, estilo de vida, origem sociocultural, contexto de vida e da situação
específica de recepção”. Assim, entender o contexto e as demandas, desejos e caminhos
que essas crianças articulam para si são pontos essenciais para a produção responsá-
vel e consciente. Conhecer e perceber realidades diferentes daquelas que vivem é um
processo essencial para que a criança se respeite, podendo assim respeitar seus pares,
legitimando-os e abrindo o espaço para a convivência.
A experiência de produzir conteúdo com uma câmera e um discurso construído a
partir do local de convivência diária, a possibilidade de compartilhar o que faz parte
do cotidiano vivenciado durante as oficinas ressaltou itens já citados da Carta sobre
Televisão para Crianças (1995) e da Lista de Desejos (1996), em que são abordadas as
necessidades de que as crianças se expressem, falem sobres suas experiências de vida,
comunidades, famílias e que possam saber o que as outras crianças estão fazendo. A
Lista de Desejos (1996) ainda termina com uma frase que une a proteção dos direito
das crianças, presente no discurso de diversos pesquisadores que abordam o tema
da qualidade televisiva, mas deixa claro a necessidade de olhar e escutar aqueles que
estão envolvidos como parte integrante e essencial no assunto: as crianças com suas
vozes e olhares, suas vontades, necessidades e diferenças culturais, suas inteligências
e vivências: “7. Escutem-nos. Levem-nos a sério. Apoiem estes programas e protejam
nossos direitos” e desejos.
A partir das experiências com o grupo participante das oficinas, podemos enaltecer
a necessidade da realização de pesquisas com os públicos-alvo seja repensada, princi-
palmente pelas TVs públicas, pois tal processo contribui para a compreensão de como

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o programa, seus conteúdos e formas se relacionam com o cotidiano das pessoas. Um


feedback não somente de adultos que pesquisam a temática, mas de crianças para quem
essas produções se destinam a criar espaços onde manifestem suas ideias, seus desejos
suas inquietações. Alderson (2005) já apontou que ao se contar com a colaboração de
crianças como pesquisadoras, há uma ampliação da abrangência do estudo, uma vez
que as crianças são a fonte primária sobre suas experiências, seus quereres, seja para
a mídia, seja para as outras áreas cotidianas. Tal indicação está atrelada a importância
de escutar as crianças sobre os seus anseios, levando a sério suas contribuições, per-
mitindo que eles tracem indicadores sobre os conteúdos que querem ver, os assuntos
que as tocam, tornando o momento de assistir TV uma experiência de convivência, de
construção de conteúdos, de potencialização do senso de criticidade.

6. REFERÊNCIAS
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pação sobre a metodologia de pesquisa. Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 419-442,
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MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. 3. ed. São Paulo: Editora SENAC São Paulo. 2000.
MATURANA, Humberto. Uma nova concepção de aprendizagem. Dois pontos, v. 2, n. 15, 1993.
OTONDO, Teresa Monteiro. TV Cultura: la diferencia que importa In: RINCÓN, Omar.
Televisión pública: del consumidor al ciudadano. Buenos Aires: La Crujía, 2005, p 233-262.
PASSOS, Eduardo. KASTRUP, Virginia. ESCÓSSIA, Liliana da. (Orgs) Pistas do método da
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PEREIRA, Sara. Por detrás do ecrã: televisão para crianças em Portugal. Porto: Porto Editora,
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RICHERI, Giuseppe; LASAGNI, Maria Cristina. Televisión y calidad: el debate internacional.
1. ed. Buenos Aires: La Crujía, 2006.
ROMÃO, José Eduardo; CANELA, Guilherme e ALARCON, Anderson. Manual da nova
classificação indicativa. Brasília: Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Justiça.
Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação, 2006
SALGADO, Raquel G., RIBES Pereira, Rita Marisa e JOBIM E SOUZA, Solange. Pela tela,
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vol. 25, n. 65, p. 9-24, jan./abr. 2005. Disponível em: <http://www.cedes.unicamp.br>.
Acesso em: 19 mai. 2011.

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Interatividade na TV Brasil: vivenciando o Dango Balango

Samaisa dos Anjos Xavier Henrique

VIÑES, Victoria T. Indicadores de calidad en los contenidos audiovisuales en televisión diri-


gidos a la infancia. V Foro de Investigación en Comunicación Madrid, nov. 2003. Disponível
em: <http://web.ua.es/es/comunicacioneinfancia/documentos/doc-grupo-invest/arti-
culos/indicadores-de-calidad-en-los-contenidos-audiovisuales-en-televisi-n-dirigidos-
-a-la-infancia.pdf>. Acesso em: 14 fev. 2011.

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Segunda Tela na TV Digital Brasileira:
um estudo dos processos midiáticos interativos
Second Screen on Brazilian Digital TV:
a study of interactive media processes
Gleice Bernardini1
Maria Cristina Gobbi2

Resumo: A pesquisa analisa as possibilidades de utilização da interatividade na


ferramenta Segunda Tela. A TV Digital brasileira trouxe com ela a viablidade
do espectador interagir com o conteúdo televisivo através de tablets, mobile e
outros dispositivos tecnológicos, sejam em apps (aplicativos móveis), platafor-
mas de conteúdos para navegação ou redes sociais. Assim, muitos estudiosos
denominaram as novas experiências como Segunda Tela e TV Social. Mas, por
muitas vezes devido estarem agregadas conjuntamente ao conteúdo televisional
digital, são confundidas como uma plataforma única. Através de uma pesquisa
transmetodológica, com um levantamento bibliográfico documental, procura-
mos debater questões a fim de proporcionar um aprofundamento do estudo
que servirá de base para uma possível definição dos conceitos e estabelecer de
forma clara as diferenças e semelhanças entre as duas tecnologias.
Palavras-Chave: Comunicação. Televisão Digital. Interatividade. Tecnologias
Digitais. Segunda Tela.

Abstract: The article analises the possibilites of using interactivity as a Second


Screen tool. The Brazilian digital TV brought the feasibility of the viewer inte-
ract with TV content through tablets, mobile and other technological devices,
wheter in apps (mobile applications), content platforms for navigation or social
networks. Thus, many scholars named these new experiences as Second Screen
and Social TV. But, for many times due to the fact that they are connected to a
digital TV content, they are mistaken with a single plataform. Through a trans-
methodological research, with a study in bibliographical documents, issues
are discussed in order to provide an in-depth study that will be the base for a
possible definition of the concepts and establish , clearly, the differences and
similarities between both techonologies.
Keywords: Communication. Digital Television. Interactivity. Digital Technologies.
Second Screen.

1.  Mestranda do Programa de Pós Comunicação – Mestrado Acadêmico em Comunicação, da Universidade


Estadual Paulista – UNESP, Câmpus Bauru, São Paulo, Brasil. Bolsista Capes. Especialista (Lato Sensu) em
Linguagem, Cultura e Mídia e Jornalista, pela mesma instituição. E-mail: gleicebernardini@hotmail.com
2.  Livre-docente pela Unesp, Vice-coordenadora do Programa Pós-Graduação Televisão Digital e professora
do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, ambos da Unesp de Bauru. Diretora Administrativa da
Socicom. Orientadora da Dissertação. E-mail: mcgobbi@terra.com.br.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

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Segunda Tela na TV Digital Brasileira: um estudo dos processos midiáticos interativos

Gleice Bernardini • Maria Cristina Gobbi

1. INTRODUÇÃO

A POPULARIZAÇÃO DA internet e seu crescente uso originaram modificações sig-


nificativas na forma como os telespectadores assistem televisão. Muitos jovens
deixaram de consumir o conteúdo televisivo para navegar no ciberespaço. A
conexão banda larga, trouxe a praticidade, rapidez e eficiência para que esse cenário se
ampliasse, mas a popularização dos dispositivos móveis, como os smartphones e tablets,
ocasionou uma reaproximação das duas mídias, internet e televisão, criando uma expe-
riência inovadora: a segunda tela.
A esses fatores acrescenta-se a interatividade, um termo antigo que ganha novos
ares e definições com a internet. A rede mundial de computadores agora em conjunto
com a TV Digital, como seu canal de retorno, em seu atual modelo de transmissão, traz
novas possibilidades de uso para a tecnologia.
O sinal digital brasileiro, que vem sendo implantado no país desde 2007, é segundo,
diversos estudiosos, um modelo melhorado do padrão de televisão digital japonês.
Ainda que não haja uma cobertura total do sinal em todo o território nacional, a TV
Digital Terrestre avança a passos largos no país, com a prometida cobertura total até
20183. Embora ainda existam diversos problemas quanto às faixas de transmissão,
número de equipamentos, produção de conteúdo, recepção e, até mesmo dificuldades
relacionadas ao canal de retorno, ao modelo de negócios, ao set-top-box (conversor de
sinais), entre muitos outros, que acabam por gerar custos excessivamente altos para o
uso dessa tecnologia pela população, entre outros.
E é cada vez maior o número de pessoas que assistem televisão com algum dispositivo
móvel nas mãos, estando conectados na rede mundial de computadores e fazendo outra
atividade em conjunto. Através destes aparatos tecnológicos a comunicação pode ser
estendida para além da sala de estar, e para mais pessoas do que aquelas presentes
ao seu redor. As chamadas segundas telas ganharam espaço e caíram no gosto de
telespectadores e internautas que não querem ser apenas receptores, mas buscam atuar
no processo comunicacional em todas as suas etapas, quer consumindo, produzindo
ou interagindo. As conversas e mensagens trocadas ampliam laços sociais e fazem
multiplicar o interesse de novos agentes na produção de conteúdo nesse setor.
Com esse novo cenário, outras formas de comunicação e ferramentas surgem, além
de novos desafios para sua implantação e utilização. Considerando o conceito defendido
por alguns autores que definem a interatividade como uma interação mediada por um
dispositivo4, esta deve ser estudada para compreensão dessa comunicação no cenário
atual das tecnologias comunicativas. O ponto central de análise do desenvolvimento da TV
Digital terrestre (TVD) deve abranger, igualmente, quais os entraves para a disseminação,
instalação e utilização da TVD em sua plenitude, tais como o custo dos equipamentos,
set-up-box, tablets e outros, como também a falta de incentivo governamental que mesmo
com programas que visam à implantação da TVD no país ainda há uma baixa demanda
de produção de aplicativos pelas empresas e governo, bem como baixo consumo, o
não acesso a tecnologia, falta de treinamento e procura de informações por parte da

3.  Prazo dado pelo Governo Federal para o switch-off, ou desligamento do sinal analógico no país.
4.  As características da interatividade podem ser consultadas no artigo “Interatividade: um conceito além
da internet”, publicado na Revista GEMInIS, ano 4, n.2, v.1.

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população brasileira nesse panorama.


Também consideramos as soluções que as segundas telas podem fornecer, ao não
mais espectador e receptor, mas agora também produtor de conteúdo, ao agregar os
meios de comunicação neste processo, e aos agentes do setor comunicacional que podem
se utilizar desse novo perfil de público como mão de obra, auxiliando na produção e
disseminação de conteúdos.

2. TV DIGITAL NO BRASIL
A televisão no Brasil, como veículo de comunicação, surge em 1950, pelas mãos de
Assis Chateaubriand, fundador da TV Tupi, um dos maiores nomes da imprensa no
país5. Depois dele, outras personalidades das empresas de telecomunicação vieram
construindo e ampliando o setor televisivo brasileiro, tais como Paulo Machado de
Carvalho, da TV Record; Roberto Marinho, da TV Globo; Silvio Santos, do SBT etc.,
se somaram a um contingente enorme de pessoas que ajudaram a criar o que é hoje o
veículo de maior alcance no país, com 97% das residências cobertas pelo sinal, segundo
pesquisa de domicílios (Pnad) do IBGE de 20116.
Para os brasileiros, a televisão não é apenas um meio de comunicação utilizado
para se informar, mais igualmente para entreter, divertir, fazer companhia etc., estando
presente nas residências, perfazendo mais de 191 milhões de aparelhos em todo o país7.
A TV que sempre foi vista como meio agregador, por proporcionar uma experiência
coletiva no simples ato de ver televisão, agora se reinventa, porém mantem essa
característica de integração social.
Gobbi (2010) afirma que com o advento das novas tecnologias, ocorre um proces-
so de mudanças significativas para o ato de “assistir televisão”, alterando a forma de
comunicação, entre meio e público, especialmente nos grupos mais jovens, pois, as
gerações anteriores estavam acostumadas com uma aparente passividade. Muitas vezes,
considerado como o momento de não fazer nada, de não pensar, mas de simplesmente
“vegetar” e “descansar” o cérebro, o ato de assistir televisão passa agora por alterações
e ganha espaços para interagir, trocar, produzir e participar.
Podemos dizer que essa mudança no cenário, com a valorização dos espectadores,
agora consumidores ativos (e participativos) de informação, aumenta a qualidade da
audiência e atrai novos setores para a mídia. Há necessidade, não só de novos produtores
midiáticos, mais também de criação de novos meios, aplicações e formatos para a
programação, de maneira que se possa abastecer essa crescente demanda. Ainda que
em diferentes graus de participação e influência, os telespectadores configuram um
novo tipo de consumidor, ativo e participante, interessado em não mais apenas receber
um fluxo de notícias e informações, mas em ter outras experiências, como novas formas
de recepção e construção de conteúdo. Porém algumas questões ainda precisam de
respostas, como por exemplo, se a população brasileira está pronta e possui conhecimento

5.  MORAIS, F. (1994). CHATÔ, o Rei do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras.
6.  Pesquisa nacional por amostra de domicílios (Pnad) 2011, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), Volume Acesso à Internet e Posse de Telefone Móvel Celular para uso Pessoal.
7.  Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Pesquisa nacional por amostra de
domicílios 2012, Volume Brasil. (Rio de Janeiro, IBGE, 2012)

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e renda necessários para essas mudanças que já integram o cotidiano da sociedade e


do processo comunicativo, como também se o governo e as empresas estão fazendo os
investimentos imprescindíveis para essa realidade.
Neste cenário as emissoras de televisão tiveram que tomar medidas para manter
o interesse do público e não perder audiência, visto que o modelo de televisão aberta
predominante no Brasil é o comercial, sendo financiado pelos anunciantes das
publicidades veiculadas nas propagandas.
Desta forma, a atualização do padrão de sinal televisivo surgiu como uma chance de
reconquistar o público perdido, pois a convergência e a interatividade possível através da
TVD permitiram que o atual modelo de negócio, baseado no número de espectadores,
ainda se mantivesse sem alterações significativas. O que não quer dizer que ele atenda
as novas demandas que estão sendo gestadas pelas empresas de comunicação.
Os vários modelos de TV Digital terrestre existentes foram estudados por empresas
escolhidas pelo governo, para que a mudança fosse pensada com base na realidade
brasileira, mas a escolha do padrão japonês, claro que incorporando algumas modificações,
transformando-o em um padrão nipo-brasileiro, de código aberto se deu mais por
acordos políticos do que por questões estruturais do país, como pontos geográficos
e status econômico da população de modo geral. E esta escolha está influenciando
negativamente no dia a dia da população que agora sofre pressão de ter que gastar
com a compra de um novo modelo de televisor, que deve vir com conversor de sinal
digital, ou aguardar a decisão do governo sobre como será feita a distribuição desse
equipamento para a população, especialmente as de baixa renda ou, o que é pior, correr
o risco de ficar com o aparelho às escuras assim que o switch-off ocorrer.
O Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre, mais conhecido pela sigla
SBTVD-t, é uma modificação do sistema japonês Integrated Services Digital Broadcasting
Terrestrial8 (ISDB-t). Com código aberto e middleware próprio, o chamado Ginga, o
SBTVD possibilita a transmissão digital em alta definição de imagem e som – High
Definition Television (HDTV) –, simultaneidade de recepção do sinal fixo, móvel e portátil,
interatividade e permite a multiprogramação, mesmo que liberada somente para as
empresas de canais públicos. O novo padrão advém pelo Decreto nº 4.901, de 26 de
novembro de 2003 e é regulamentado por meio do Decreto nº 5.820, de 29 de junho
de 2006. Ele visa à inclusão social e cultural, o acesso à tecnologia, a criação de uma
rede universal de ensino a distância, a convergência tecnológica, democratização da
informação, para citar algumas possibilidades.
Mas as melhorias apresentadas pelo novo padrão vão além da melhor definição de
imagem e som, essas trouxeram possibilidades de uso de novas ferramentas, agregando
outros meios como é o caso da possibilidade de uso da segunda tela, que utiliza a TV
Digital e da interatividade produzida por ela em seu canal de retorno, a Internet.

3. SEGUNDA TELA: MAIS DO QUE UMA NOVA MÍDIA


Assistir televisão sempre foi uma experiência social, podendo ser dividida com
amigos, familiares e vizinhos. Com a popularização dos aparelhos de TV e o surgimento

8.  Serviço Integrado de Transmissão Digital Terrestre.

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de outros aparatos tecnológicos esta experiência compartilhada, contrariando a previsão


de muitos céticos, fez crescer o número de pessoas que utilizam esses aparelhos para
consumir o conteúdo televisivo, ao invés de promover uma fuga para a internet, como
se acredita inicialmente.
Embora com uma amplitude geográfica significativa, no Brasil o número de pessoas
com acesso a TV cresceu consideravelmente nos últimos anos, contando com a presença
do aparelho em 9 de cada 10 residências no país, segundo o IBGE (2011). A possibilidade de
consumir televisão em conjunto a outros dispositivos, tem permitido que a programação
seja um elemento agregador do processo comunicativo e pauta constante de conversas,
nos mais variados locais e meios sociais.
Tal evidência é confirmada por Finger e Sousa (2012, p. 384), quando salientam
que “[...] com o avanço da internet e a popularização de outras telas, essas conversas
perderam qualquer tipo de limitação física, imposta por longas distâncias, por exemplo”,
e o que era apenas item da pauta da conversa de botequim, ganhou amplitude com a
rede mundial de computadores, sendo assunto nas redes sociais, tais como o Twitter.
Embora a TV mantenha sua característica integradora e motor do desenvolvimento
social, o ato de “ver TV” apresenta agora novas possibilidades, se considerado o telespec-
tador. Neste sentido Finger e Sousa (2012) definem que o fato do sujeito assistir televisão o
integra ao imenso grupo de outros indivíduos também na mesma posição, destacando que
esta é uma característica marcante do meio, sendo “[...] a experiência em comum dessas
pessoas em torno da TV é o que os une num espaço coletivo, mesmo que virtual” (p. 386).
Os autores ainda destacam que “[...] a televisão é atualmente um dos principais
laços sociais da sociedade”, devido ser a única atividade que pode ser compartilhada
por todas as classes sociais e todas as idades.
E com a segunda tela, e a possibilidade de interatividade através do uso da internet
como canal de retorno da TV digital, a experiência de assistir TV fica mais atraente,
provocando novos comportamentos nos telespectadores. As conversas sobre a progra-
mação vão para as redes sociais e novos aplicativos são disponibilizados oferecendo
mais informações para ampliar ainda mais essa conversação. Esse fenômeno foi bati-
zado, em 2010, de TV Social por Marie José Montpetit, pesquisadora do Media Lab, do
Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), um dos principais centros de pesquisa
em novas tecnologias.
Já o conceito de segunda tela pode ser entendido como qualquer dispositivo que
permita o acesso à internet, como os smartphones e tablets, sendo utilizados de forma
simultânea à programação da TV através de aplicativos específicos para o conteúdo
televisivo. Tais aplicativos oferecem, também, conteúdos complementares ao veiculado
na tela da TV, disponibilizando ferramentas para interação entre pessoas e as redes
sociais, possibilidades de e-commerce, entre outras. Diversas pesquisas apontam que as
pessoas adquiriram o hábito de utilizar outro dispositivo enquanto assistem à televisão,
Finger e Sousa (2012) ratificam isso,
Uma pesquisa da empresa americana de tecnologia Ericsson realizada em 13 países, inclusive
no Brasil, aponta que mais de 60% das pessoas com acesso a internet tem o hábito de navegar
na rede enquanto assistem TV. Quarenta por cento dos entrevistados usam plataformas de
redes sociais simultaneamente à TV. (FINGER; SOUSA, 2012, p. 385)

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Esses novos hábitos estão sendo acompanhados por empresas de telecomunicações e


emissoras de TV. Abre-se um leque muito grande de oportunidades para os produtores
e novas fontes de renda podem ser geradas com o uso simultâneo desses dispositivos,
inclusive possibilitando a produção de conteúdos diferenciados para atender as
especificações dessa portabilidade.
A segunda tela integra o ato de assistir TV com navegar na internet, mas dentro de
um aplicativo, app, específico, que mantem o espectador ligado à programação dentro
deste ambiente virtual, evitando a fuga da audiência para a rede.
Muitas características da TV foram reforçadas com esta nova ferramenta, tais como
a valorização do ao vivo, o caráter do imediatismo, a produção em fluxo do conteú-
do televisivo, como a organização da programação em uma grade, destaca o caráter
de agrupamento dos telespectadores, facilitando as medições de audiência e ações na
segunda tela.
O “Ao vivo” volta a ganhar destaque entre os espectadores, que fazem questão de
acompanhar as transmissões em tempo real, além de debaterem e levantarem questio-
namentos em outros meios, sobre o que estão vendo na “tela grande”. Os novos espec-
tadores não são mais passivos, assistem televisão com seus dispositivos sincronizados
em aplicativos e redes sociais, buscando mais informações e socializando com outras
pessoas, informações e opiniões sobre o programa assistido. Essa ampliação do ato de
ver TV causa uma maior repercussão sobre o que é veiculado e faz com que, muitas
vezes, a própria programação televisiva seja influenciada. Essa tendência é explicada
por Finger e Sousa (2012), quando afirmam que “[...] é o empoderamento do telespec-
tador que pelo que diz leva outros a mudarem de canal e até ligar a TV para compre-
enderem o que está sendo comentado e discutido. (p. 387)”. Essa transformação pode
ser observada, por exemplo, com a possibilidade de mudança no padrão de poder de
decisão sobre a grade de programação, que poderá passar das emissoras para as mãos
dos telespectadores. Embora ainda restrita a programação gravada, o telespectador
pode montar sua própria grade a partir da programação disponibilizada pela TV, para
assistir em horários mais atraentes para ele, inclusive combinando uma diversidade
de programas e canais.
Podemos dizer que esse câmbio no cenário, de valorização dos espectadores, agora
consumidores ativos de informação, aumenta a qualidade da audiência e atrai novos
setores para a mídia. Há uma necessidade, não só de novos produtores midiáticos,
mais também da criação de outros meios, processos, formatos, aplicações e programas,
incluindo nesse mote o entretenimento, para abastecer essas novas demandas. Ainda
que em diferentes graus, de participação e influência, os telespectadores partem para
um novo modelo de consumidor, ativo e participante, interessado em não mais apenas
receber um fluxo de notícias e informações, mas em ganhar diversas experiências e
construir novas formas de recepção e de produção de conteúdo.
Não é tema deste artigo a análise sobre as mudanças desse novo espectador, mas
é necessário assinalar a importância dessa mudança para o entendimento sobre o uso
da segunda tela não somente pelo surgimento e popularização da internet, mas com as
possibilidades de interatividade e a liberdade de escolha e consumo da informação por
parte dos seus usuários. Pode-se agregar a esse cenário também a ampliação do acesso

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à tecnologia móvel, e programas de incentivo ao acesso e a conexões rápidas, como 3G


e LTE9, mais conhecida como 4G10.
No Brasil essas experiências ainda são novas e muitos aplicativos ainda estão em
fases de testes. Várias emissoras possuem seus apps, como a Segunda Tela da Band, da
Rede Bandeirantes de Televisão, que traz informações sobre toda a programação, como
por exemplo, os jogos transmitidos, com número de faltas, cartões, curiosidades sobre os
times e jogadores. A Rede Globo inicialmente lançou seu aplicativo como uma TV Social,
onde o telespectador pode saber os horários da programação e utilizar as redes sociais
para enviar mensagens e compartilhar o que esta assistindo. Porém, enquanto a Rede
Bandeirantes centralizou em seu app toda a programação do canal, a TV Globo preferiu
criar diversos aplicativos específicos para determinados programas que integram sua
grande de programação diária.
A primeira TV não comercial a lançar sua plataforma de segunda tela foi a TV
Cultura, da Fundação Padre Anchieta. Porém, muito se questiona sobre a classificação
dessa ferramenta como uma experiência de segunda tela, já que foi disponibilizada ao
telespectador uma página da internet onde são enviados diversos links com material
sobre os entrevistados e as reportagens do programa Jornal da Cultura.
O especialista de mídia digital da Mark Comunicações e Marketing Reinam Ribeiro,
em matéria publicada no site do jornal O Fluminense11, explica que,
A Segunda Tela permite estender ao público informações relevantes sobre um programa.
Cria um ambiente de cumplicidade e coparticipação. O indivíduo tem a percepção de saber
mais detalhes da programação, do roteiro, de como será o desfecho da trama e do passado
dos personagens. (RIBEIRO, 2013, web)

Segundo o especialista, o envio de conteúdo extra para o espectador através da


segunda tela não é invasivo, pois na maior parte do tempo o público deseja receber
este tipo de informação. Para ele, “[...] a exibição de propagandas e ferramentas de
engajamento social para sites de redes sociais, bem como outras estratégias, assumem
um formato de oferta” (2013, web), e pode ser definida segundo as preferências do
consumidor. Assim como a interação social que ocorre dentro do aplicativo com as
ferramentas de compartilhamento e acesso as redes sociais, especialmente em torno do
conteúdo, que tende a ser ampliada e mais bem aceita pelo público:
Existe o público, tecnologia e conteúdo. É hora de aproveitar as oportunidades que o engaja-
mento com o telespectador oferece. No caso de séries de TV, o conteúdo fica em cauda longa
de reexibições, e esses conteúdos de segunda tela poderiam, por exemplo, ser atualizados para
apontar ligações entre os episódios das temporadas atuais e passadas. (RIBEIRO, 2013, web)

Empresas de telecomunicações e de produção de softwares estão investindo em


aplicações e tecnologias que facilitem a sincronização e que mantenha a atenção do

9.  LTE é sigla de Long Term Evolution (em português “Evolução a em Longo Prazo”) cujo significado se refere
a uma tecnologia de telefonia móvel também conhecida como 4G (quarta geração).
10.  Quarta Geração  (em inglês: Fourth Generation) de telefonia móvel, amplia a velocidade, permite a
mobilidade e mantém a qualidade do sinal.
11.  Disponível em < http://www.ofluminense.com.br/print/134899>, acesso em mar de 2015.

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espectador nas duas telas, sem que ele se perca com o fluxo de informações e nem se
desinteresse pelo programa que está sendo exibido na TV, abandonando a experiência.
Pesquisas mostram que quando a experiência é pensada levando em conta a parte
comunicacional e tecnológica da segunda tela, a aplicação se torna um diferencial,
conquistando usuários.

3.1. Novas possibilidades


Para se buscar novas possibilidades de uso da segunda tela precisa-se, antes de
tudo, compreender as atuais formas de transmissão. A TV aberta trabalha em sua
totalidade com a programação em fluxo, que é produzida para grandes telas. Neste
tipo de produção e transmissão, a preocupação vai desde a pauta, captação das imagens,
desenvolvimento da narrativa, edição, pós-produção e a apresentação do conteúdo.
Com fluxo contínuo, o espectador é levado a ver aquilo que a emissora transmite, com
pouca, ou baixa interatividade e opção de escolha. O que pode ser benéfico para alguns,
quanto ao ineditismo e a não preocupação em escolher o conteúdo, para muitos, os novos
espectadores, esse tipo de veiculação não agrada mais.
O conteúdo on demand permite maior liberdade de escolha, pois pode trabalhar
com a vontade do espectador de procurar e oferecer o conteúdo através de push, avisos
e alertas sobre preferências e conteúdo extra ou exclusivo. O espectador pode assinar
um canal ou mesmo conectar sua televisão a internet e assim conseguir escolher o que
quer assistir, quando quer e por quanto tempo. Algumas empresas de TV por assinatura
ou mesmo canais fechados já disponibilizam seu acervo para que o espectador acesse
e compre a programação.
Assim, uma alternativa viável para o uso da tecnologia é a criação de aplicativos
para envio de conteúdos on demand ou de fluxo nos dispositivos de segunda tela. Desta
forma, o espectador pode acessar ao conteúdo da televisão de qualquer dispositivo,
seja tablet ou smartphone, em situações de espera, como no ponto de ônibus, ao viajar de
metro, taxi ou trem, acompanhando as novidades e se informando através da televisão.
O sistema de televisão digital brasileiro, SBDTV, permite a mobilidade do sinal,
tornando possível a recepção em novos suportes. O conteúdo pode vir através de uma
antena de recepção de sinal de TV integrada ao aparelho, ou mesmo pela internet, em
pacote de dados. Há um grande espaço para essa tecnologia, visto que abre uma demanda
de maior veiculação de programas, variando os locais de acesso.
Com base nas novas plataformas de acesso, representadas por smartphones e tablets,
e do fluxo de informação no sistema on demand, destacamos algumas características
possíveis de um aplicativo para segunda tela, associado à conexão a internet, para receber
conteúdo televisivo via pacote de dados: disponibilidade de conteúdo 24h, podendo ser
acessado no app mesmo após o término do programa televisivo, possibilitando maior
visibilidade da programação e criação de conteúdo off-line, ampliando o espaço de
discussão sobre a temática ou produzindo maior repercussão, expandindo o alcance
e a audiência, ou acesso restrito a ser liberado somente no período de transmissão da
programação, mantendo a característica de “acompanhamento da grade televisiva”,
realizações de promoções através da publicidade de produtos e serviços, ou mesmo

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de compartilhamento nas redes sociais da preferência do espectador-interativo pela


programação, distribuição de brindes para os espectadores mais engajados e interativos,
entre outras possibilidades.
A criação de um aplicativo pode gerar um novo modelo de negócios para as emissoras,
ao mesmo tempo em que ampliaria a divulgação de seus produtos, aumentando a
audiência e consequentemente a renda obtida com publicidade.
Mas, a potencialidade do aplicativo, para que seja aceito pelo público e utilizado,
gerando conteúdo, retorno para a emissora e mantendo a audiência, deve ser algo
inovador e sobre tudo interativo. Desta forma, segundo a definição utilizada por Renato
Cruz em seu livro TV Digital no Brasil (2008), tal ferramenta deve ser classificada como
killer app, em tradução livre aplicativo matador, “[...] que mostra aos consumidores por
que aquele serviço é essencial”. (p. 75), incentivando seu uso.
A disponibilização dos conteúdos poderia ser fracionada ou integral, mediante
pagamento ou não, com base em cadastro inicial, gerando um banco de dados de
espectadores que poderia ser utilizado pela emissora ou pela empresa de telecomunicação
que subsidiaria a entrega do conteúdo através da internet.
Mas, ainda há alguns problemas para que tal prática seja utilizada de forma a
conquistar o espectador, sendo o mais comum a adequação do conteúdo para essas
plataformas. Muitas vezes não há um planejamento e estudo do público e das tecno-
logias, e acaba-se simplesmente deslocando partes de conteúdos televisivos, inserindo
informações não relevantes, excesso de notícias, com textos extensos e pouca interação
para a ferramenta, fazendo com que o usuário perca o interesse na aplicação. Porém,
os diversos obstáculos encontrados para essa expansão podem ser resolvidos com um
estudo do público ao qual se quer atingir, adequação do conteúdo para telas menores,
que muitas vezes ficam cortadas ou pequenas demais para serem vistas nos smartphones
e a inserção de ferramentas interativas na aplicação.
Essas são apenas algumas possibilidades de desenvolvimento e aplicação da segunda
tela. Não buscamos ditar receitas ou fórmulas de obtenção de renda, mas apenas elucidar
o tema destacado.
Atualmente, tanto na internet como na televisão, o espectador pode ficar conectado
e informado, desde que haja vontade, e cabe a nós comunicadores e especialistas na
área, criar essa oportunidade.
É cada vez maior a queda registrada da audiência e o interesse dos espectadores em
ver comerciais (propaganda) tradicionais. Assim, as emissoras perdem receitas e tentam
buscar formas de elevar seus índices de faturamento e manter a conta em dia. Neste
contexto, apostar nas experiências de segunda tela aliadas a TV social para conseguir
público e aumentar o faturamento pode ser uma boa saída. Aplicativos ligados ao futebol
e que oferecem as redes sociais, como Twitter e Facebook para compartilhamento de
imagens e mensagens são os mais utilizados pelas emissoras brasileiras como uma
forma de se criar o hábito de falar sobre TV na internet, atraindo novos espectadores.
Porém, aplicativos de conteúdo e e-commerce, ainda são raros.
Disponibilizar um conteúdo criativo e atrativo aos espectadores deve ser o
diferencial das emissoras para manter seus espectadores.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa buscou compreender as mudanças que acontecem no setor televisivo e
comunicacional, potencializando a interatividade recorrente na segunda tela, demons-
trando como a TV Digital e seu canal de retorno, a internet, podem trazer diversas
possibilidades, renovando as audiências, ampliando o faturamento das emissoras e
modificando de vez a forma de se interagir com a televisão através dos novos disposi-
tivos móveis e da segunda tela.
Espera-se que essa nova forma de comunicação integrada, entre televisão e internet,
resulte numa TV que acentue o caráter democrático desse meio de comunicação de
massa e reforce o vínculo social da própria televisão, levando mais informação para os
espectadores de forma a mais atender esse público participante.
Porém, fica o alerta de que não podemos somente criar aplicativos e tecnologias
surpreendentes, mas como poucas funcionalidades ou complicadas no quesito usabili-
dade. As tecnologias existem citando, por exemplo, imagem de alta definição ou em 3D,
multiprogramação, televisão em fluxo ou on demand, aberta ou por assinatura de pacotes,
mobilidade de ver televisão no carro, no trem, no ônibus. Assim, como dispositivos
que permitem carregar a televisão no bolso, acessar a internet e estar conectado com
as novidades, comentários dos amigos, compartilhamento de informações e sincroni-
zação de programas através da segunda tela. O que falta é a aplicação, a produção de
conteúdo, de novos modelos e estudos para desenvolver outras experiências para este
espectador atuante e desejoso de novidades. Modelos de negócios, estudos de recepção
e de experiências sensoriais com as tecnologias são os melhores caminhos para que
consigamos criar novas maneiras de ampliar a audiência e consequentemente manter
os meios produtores. O novo espectador tem o poder, de opinar, de divulgar, de criar e
de manter, nós, temos as ferramentas, basta saber utiliza-las.

5. REFERÊNCIAS
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2014, de http://www.jusbrasil.com.br/diarios/57137355/dou-secao-1-30-07-2013-pg-1/
pdfView.
BRASIL. (2013). Decreto n.º 8.061 de 29 de julho de 2013. Recuperado em 30 de novembro 2013,
de (http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2013/Decreto/D8061.htm.
CRUZ, R. (2008). TV Digital: Tecnologia versus política. São Paulo: Editora Senac.
ÉPOCA NEGÓCIOS. (2013). O Ginga perdeu o rebolado. Recuperado em 30 de dezembro, 2013,
de http://epocanegocios.globo.com/Informacao/Resultados/noticia/2013/09/o-ginga-
-perdeu-o-rebolado.html.
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En: Revista FAMECOS: mídia, cultura e tecnologia, 19 (2), 373-389.
FIDLER, R. (1997). Mediamorphosis – understanding new media. California: Pine Forge Press.
GOBBI, M. C. (2010). Nativos Digitais: Autores na Sociedade Tecnológica. IN: GOBBI, M. C.;
KERBAUY, M. T. M. (orgs.). Televisão Digital: informação e conhecimento [online]. São
Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura acadêmica. Recuperado em 10 de março,
2013, de http://books.scielo.org.
OSTERWALDER, Alexander (2011). Inovação em Modelos de Negócios - Business Modelle
Generation. Rio de Janeiro: Alta Books.

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Sobre novas formas de manipulação do tempo na televisão
(ou Redefinindo a noção de TV “ao vivo” via redes sociais)
On new forms of manipulation of time on television
(or, Redefining the concept of ‘live’ TV via social networks)
C a rl o s E d u a r d o M a r q u i o n i 1
C a r o l i n e C ava l c a n t i de Oliveira2

Resumo: O uso da Internet definitivamente não matou a televisão: pode-se


dizer que esse uso tem tornado o meio mais vivo do que nunca. Enquanto, no
passado, o uso das tecnologias de gravação habilitou a capacidade de “re-viver”
(Scannell) conteúdos, estabelecendo uma espécie de manipulação do tempo pelas
emissoras e pela audiência, na contemporaneidade o uso de redes sociais digitais
complexificou o “re-viver” televisual, parecendo instaurar novos “efeitos de ao
vivo” (Fechine) em uma espécie de transformação da experiência televisual. O
artigo aborda tal fenômeno analisando postagens no Twitter durante a veiculação
do reality show MasterChef Brasil: são propostas reflexões acerca de uma possível
redefinição da noção de TV ‘ao vivo’.
Palavras-Chave: Televisão. Redes sociais. Decodificação. Aspecto de ‘ao vivo’.
Experiência televisual.

Abstract: The use of the Internet definitely did not kill the television: it can be
said that this use has made the medium livelier than ever. In the past the use
of recording technologies enabled the ability to “re-live” (Scannell) contents,
establishing a kind of manipulation of time by both broadcasters and audience.
On the other hand, in the contemporaneity the use of digital social networks has
complexified the televisual ability to “re-live” contents, making it possible to infer
a potential new “live effects” (Fechine) – maybe including a transformation of
televisual experience. The article discusses such phenomenon analyzing posts
on Twitter during the airing of the reality show MasterChef Brazil, suggesting
reflections related to a possible redefinition of ‘live’ TV concept.
Keywords: Television. Social networks. Decodification. ‘Live’ aspect. Televisual
experience.

1.  Doutor. Docente do Programa de Mestrado e Doutorado em Comunicação e Linguagens da Universidade


Tuiuti do Paraná; participa do grupo de pesquisa INCOM – Interações comunicacionais, imagens e culturas
digitais (PPGCOM UTP/Curitiba). e-mail: cemarquioni@uol.com.br.
2.  Doutoranda no Programa de Mestrado e Doutorado em Comunicação e Linguagens da Universidade
Tuiuti do Paraná; participa do grupo de pesquisa INCOM – Interações comunicacionais, imagens e culturas
digitais (PPGCOM UTP/Curitiba). e-mail: carocavalcanti@gmail.com.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

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Sobre novas formas de manipulação do tempo na televisão (ou Redefinindo a noção de TV “ao vivo” via redes sociais)

Carlos Eduardo Marquioni • Caroline Cavalcanti de Oliveira

INTRODUÇÃO

N ESTE ARTIGO considera-se que a experiência de televisão é resultado3 de dois


elementos chave do sistema televisual: do (i) “fluxo” (WILLIAMS, 2005, p. 89-90)
planejado e do (ii) aspecto de ‘ao vivo’ da TV. Neste cenário, tais elementos
constituiriam uma espécie de ethos televisual4, que possibilitaria analisar redefinições/
reconfigurações culturais que remetem aos modos de assistir televisão na longa dura-
ção. O presente trabalho aborda o que os autores consideram uma reconfiguração na
experiência de TV ‘ao vivo’, associada ao uso das redes sociais digitais concomitan-
temente ao ato de assistir TV5. Entende-se, assim, que a referida espécie de ethos é
afetada – justificando uma breve explicação inicial acerca dos dois elementos chave
que o constituiriam.
Em relação ao (i) “fluxo” planejado, ele “corresponde à sequência de conteúdos
proposta e exibida pela emissora” (MARQUIONI, 2012, p. 32). A relevância do “fluxo”
no ato de ver TV pode ser constatada pelo fato de que “falamos em ‘ver televisão’ [...],
referenciando a escolha geral ao invés de uma experiência específica [um programa
veiculado em particular]” (WILLIAMS, 2005, p. 89-90). O resultado do “fluxo” é não
apenas a organização da grade de programação, mas também uma espécie de gestão
de hábitos da sociedade. O segundo fator, referenciado como (ii) aspecto ‘ao vivo’, é
inerente à TV e presente em toda e qualquer veiculação televisiva (inclusive naquelas
que fazem uso da tecnologia do videoteipe). Para compreender a afirmação é possível
partir inicialmente de uma explicação mais técnica, segundo a qual
tudo o que se vê na TV é visto em ‘tempo real’ (crônico), ou seja, tudo o que vejo quando
ligo a TV é dado por uma transmissão de sinais eletromagnéticos que estão sendo recebidos
pelo meu monitor de TV no momento mesmo em que estão sendo enviados de uma estação
transmissora e distribuídos através de satélites. Assim como a própria transmissão do sinal,
a programação da TV está, a rigor, acontecendo a cada momento (FECHINE, 2008, p. 27-28).

Avançando para além desse aspecto técnico da transmissão, há que se observar


também que, ao ligar a TV, tipicamente a audiência pode assistir a situações do cotidiano
sendo veiculadas, provocando – ainda que com consciência de se tratar de um recorte
– uma experiência de ‘ao vivo’: os conteúdos veiculados remetem à vida (ordinária ou
extraordinária, eventualmente) das pessoas – como se essa vida estivesse ocorrendo
‘ao vivo’ para quem acompanha o “fluxo” (independente de se tratar de uma imagem
previamente gravada). O presente artigo adota, então, perspectiva distinta da que se

3.  O termo ‘resultado’ não é usado para sugerir que a experiência televisual esteja sedimentada ou seja
estável. De fato, por ser constituída culturalmente, tal experiência está permanentemente em reconfiguração.
O termo é utilizado, então, para indicar relação de efeito, mas não de conclusão.
4.  O ethos aristotélico seria “produto do hábito” (Livro II, 1, p. 67), e não uma virtude moral “engendrada
pela natureza” (Livro II, 1, p. 67). Ao afirmar a potencial existência de uma espécie de ethos televisual os
autores procuram indicar que o ato de assistir TV, culturalmente estabelecido e vinculado ao “fluxo” e ao
aspecto de ‘ao vivo’, definiria a experiência mesmo enquanto hábito da audiência. As citações a Aristóteles
referenciam o livro e o capítulo em que o trecho é apresentado em Ética a Nicômaco (ARISTÓTELES, 2009).
5.  Entende-se neste artigo que o (ii) aspecto de ‘ao vivo’ é uma característica própria do meio (conforme
argumentação a seguir). A exposição da audiência a essa característica, em conjunto com o “fluxo”, proporciona
a experiência de TV, particularmente de ‘ao vivo’: é esta experiência que passa pela reconfiguração abordada
no presente trabalho.

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tornou “habitual, nos estudos de mídia, [de] pensar [conteúdos] gravados como o oposto
de ‘ao vivo’” (SCANNEL, 2014, p. 95). A redefinição experiencial tratada no presente
trabalho em relação à TV remete particularmente a como a experiência de ‘ao vivo’ é
adaptada com o uso das tecnologias digitais, independente de artifícios tecnológicos
utilizados no passado para “instaurar efeitos de ‘ao vivo’ tanto numa transmissão direta
quanto numa gravada” (FECHINE, 2008, p. 26)6.
Para organizar as análises, este artigo é dividido em duas seções, além desta
Introdução e das Considerações Finais. Tal divisão foi elaborada procurando evidenciar
que o uso das redes sociais digitais, concomitantemente ao ato de ver TV, constitui uma
adaptação na experiência, mas não caracteriza a ‘morte’ da televisão: efetivamente a TV
“não está ‘batendo na’ ou ‘perdendo para’ novas mídias em uma batalha cósmica de
tecnologia; ao invés disso, a televisão é uma parte intrínseca das ‘novas’ mídias” (GRAY;
LOTZ, 2012, p. 03). A seção Vivendo e re-vivendo a vida ‘ao vivo’ na TV (ou breves reflexões
culturais acerca do ‘ao vivo’ na TV) apresenta um breve panorama dos usos e possibilidades
resultantes dos recursos, habilitados a partir do videoteipe, que confeririam à gravação
uma experiência ‘ao vivo’. A seção As redes sociais digitais e a transformação do conteúdo vivo:
o caso MasterChef Brasil ilustra como o uso das redes sociais na Internet tem influenciado
o fazer e o ver televisão, particularmente promovendo transformações na experiência
de ‘ao vivo’, usando como objeto empírico a primeira temporada da edição brasileira da
franquia do reality show MasterChef, veiculada pela Rede Bandeirantes (Band) durante
o segundo semestre de 2014.

1 VIVENDO E RE-VIVENDO A VIDA ‘AO VIVO’ NA TV


(OU BREVES REFLEXÕES CULTURAIS ACERCA DO ‘AO VIVO’ NA TV)
As imagens transmitidas na TV possuem uma característica factual, que parece
inicialmente associada ao aspecto ‘ao vivo’ mencionado anteriormente. Se até a invenção
do videoteipe, tanto os programas de TV quanto os comerciais eram efetivamente
veiculados através de transmissão direta7, o uso da tecnologia do videoteipe alterou
apenas parcialmente este cenário, no sentido em que, a rigor, o conteúdo (mesmo que
gravado), no momento da transmissão, quando efetivamente é inserido no “fluxo”,
é objeto de procedimentos operacionais que remetem ao ‘ao vivo’. Esse fator parece
também contribuir com o estabelecimento de uma espécie de “sensação de real”
(MARQUIONI, 2012, p. 198) – ou de acesso à realidade proporcionada pela janela a partir
da qual é possível esperar por mensagens do mundo lá fora (MARQUIONI; BARBOSA,
2013, p. 67-69): a transmissão direta costuma ser considerada como o “recurso técnico-
expressivo mais eficaz para propor ao espectador a experiência de, em frente à tela da
TV, sentir-se diante do mundo ‘real’” (FECHINE, 2008, p. 23).

6.  No entendimento dos autores deste artigo, aquilo que Fechine chama como “efeitos de ‘ao vivo’”
corresponderia à noção de ‘ao vivo’, englobando tanto o aspecto ‘ao vivo’ (que é inerente ao meio) quanto a
experiência (a sensação) resultante no público.
7.  “O que é uma transmissão direta na televisão? [...] antes de mais nada, um fato técnico. Trata-se de uma
operação que permite a produção, a transmissão e a recepção de um programa de modo simultâneo. Para
os profissionais de TV, tudo o que é levado ao ar através de um procedimento operacional como esse é,
sem distinção, chamado de ‘ao vivo’” (FECHINE, 2008, p. 26).

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Avançando em relação à característica factual das imagens de TV, outro fator que
parece contribuir para essa percepção talvez seja o fato de que a captação das imagens
tende, via de regra, a ser realizada a partir de situações do cotidiano: a relação que a TV
permite estabelecer com elementos da vida ordinária (corriqueira) é evidente. De fato, “a
instauração do ‘ao vivo’ na TV depende do modo como os discursos se organizam para
produzir determinados efeitos de sentido. Daí ser possível a instauração de efeitos de
‘ao vivo’ tanto numa transmissão direta quanto numa gravada” (FECHINE, 2008, p. 26).
Mas vale destacar que o cenário pode ser complexificado: ocorre que as tecnologias
de gravação, por um lado, não limitam a experiência de ‘ao vivo’ – inclusive em função
do uso de recursos que podem eventualmente ‘ofuscar’ as marcas de continuidade que
tipicamente permitem ao público constatar, durante a transmissão, se está assistindo a
uma transmissão direta ou gravada, fazendo com que em alguns casos seja “praticamente
impossível para o espectador, apenas a partir do que vê na tela, dizer se aquilo que
está assistindo na TV é ou não uma transmissão direta” (FECHINE, 2008, p. 34). Em
contrapartida, o videoteipe habilita o estabelecimento de uma sofisticada memória
televisual, no sentido em que não apenas possui a capacidade de ser re-vivida, ao ser
gravada e posteriormente transmitida, mas também assume aspecto de ‘ao vivo’ ao
ingressar novamente no “fluxo”, conforme argumentação do aspecto de ‘ao vivo’ inerente
à TV abordado anteriormente.
Desta forma, apesar de a noção de ‘ao vivo’ ser “entendida como especialmente
relacionada a tecnologias que permitem a transmissão e a gravação de eventos,
performances, discursos, música no exato momento de sua enunciação, o momento
vivo no qual se manifestam” (SCANNELL, 2014, p. 42), entende-se ser necessário reiterar
que uma transmissão gravada não deveria ser considerada simplesmente como o oposto
de outra ‘ao vivo’, uma vez que o recurso tecnológico do videoteipe “grava a vida e
tempos do presente, preservando-os em uma cápsula do tempo [...]. Os arquivos do
rádio e da televisão estão agora começando a ser vistos e entendidos como o que são, um
arquivo” (SCANNELL, 2014, p. 54). Particularmente no caso do Brasil, que historicamente
enfrentou dificuldades (evidentemente ainda não superadas) relativas ao letramento por
alfabetização, é fato que é proporcionada, a partir de “arquivos privados das emissoras,
nos quais se guarda especialmente a memória da TV brasileira, [...] boa parte da memória
nacional” (KILPP, 2008, p. 105).
Enquanto o aspecto do acesso posterior ao conteúdo televisual confere caráter de
registro histórico, é importante destacar ainda que o mesmo acesso aos conteúdos
dos programas gravados habilitou, a partir da disponibilização de dispositivos para
gravação doméstica8, a possibilidade de a audiência manipular o tempo em função do
“fluxo” planejado, inclusive proporcionando uma forma de pertencimento através do
reconhecimento e compartilhamento de conteúdos com indivíduos próximos. Este uso
teria auxiliado, então, no estabelecimento de “comunidades imaginadas” (ANDERSON,
2011) a partir dos conteúdos veiculados – ainda que eventualmente tais conteúdos
não estivessem sendo assistidos simultaneamente, em “fluxo”. Assim, mesmo que na

8.  Como exemplos de tecnologias para gravação doméstica podem ser citados a fita de videocassete, os
DVDs graváveis e, mais recentemente, recursos técnicos utilizando set up boxes.

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perspectiva das emissoras “as gravações de som e imagem tenham sido procuradas
não para substituir a transmissão ‘ao vivo’, mas para dar-lhe maior flexibilidade”
(SCANNELL, 2014, p. 176), a rigor o uso dessa tecnologia permitiu estabelecer registros
históricos e auxiliou com uma sensação de pertencimento.
A possibilidade de estabelecer uma forma de “‘[r]essurreição – repetidas vezes –
[...] [e ainda] jogar com o tempo, com o passado-presente-futuro do agora imediato em
qualquer momento instantâneo” (SCANNELL, 2014, p. 96-97) não teria ferido, então, a
espécie de ethos televisual mencionado anteriormente (apenas reconfigurado a experiência
televisual); a rigor, teria possibilitado “re-viver o momento vivido, através da combinação
do caráter ao vivo da emissão televisiva e suas tecnologias de suporte para gravação”
(SCANNELL, 2014, p. 164).
Em outros termos, o uso de alguns recursos tecnológicos por parte das emissoras
permite pensar na criação de uma espécie de tempo de terceira ordem9, e as tecnologias
de gravação doméstica habilitam ainda outra forma de tempo (mas que também pode
ser considerada como de terceira ordem10). Nesse cenário, o que tem sido possível
observar com o uso das redes sociais digitais é o estabelecimento de uma nova forma
de temporalidade, na qual mesmo conteúdos efetivamente gravados (e que são facilmente
percebidos como gravados) são tratados (tanto pela audiência quanto pelas emissoras)
como quase-‘ao-vivo’, em uma espécie de transformação que redefine a experiência
televisual. Trata-se de variação aparentemente sem precedentes. É desta transformação
que trata a próxima seção.

2. AS REDES SOCIAIS DIGITAIS E A TRANSFORMAÇÃO


DO CONTEÚDO VIVO: O CASO MASTERCHEF BRASIL
Foi relativamente recorrente durante alguns anos a afirmação de que a Internet
iria “matar” a televisão. Decorridos alguns anos, constatou-se que “a Web e a televisão
estão se complementando e não competindo entre si. […] A Internet não matou a TV;
de fato, ela se tornou sua melhor amiga” (PROULX; SHEPATIN, 2012, p. 03). Metáforas
à parte, na perspectiva dos autores deste artigo, o que ocorre é uma reconfiguração
na experiência televisual acionada pelo uso concomitante da televisão e da Internet
– reconfiguração essa motivada pelo fato de que tal uso influencia os dois aspectos
apresentados anteriormente como associados à espécie de ethos televisual: o “fluxo” e o
aspecto ‘ao vivo’ das transmissões.
Visando minimizar o risco de simplificações analíticas, é relevante destacar que
o uso concomitante TV/Internet possui relação direta com alguns fatores de ordem

9.  O uso dos recursos parece constituir um tempo que não é aquele efetivamente vivido pela audiência
(o que se considera aqui o tempo de primeira ordem) uma vez que se refere – por exemplo no caso da
veiculação de um conteúdo gravado –, ao tempo no qual a imagem foi capturada (e que constituiria um
tempo de segunda ordem). Seria, então, de terceira ordem, por ser efetivamente constituído como associado
aos outros dois em função da veiculação (a partir do momento no tempo em que o conteúdo é assistido,
articulado com o momento em que o conteúdo foi gravado).
10.  Neste caso, valem as mesmas observações da nota anterior, apenas com a ressalva de que o tempo no
qual o conteúdo é assistido difere daquele no qual houve a veiculação em “fluxo” – o que, eventualmente,
constituiria ainda um novo momento/tempo que necessita ser articulado para compreensão do ato de
acompanhar o conteúdo ao qual se assiste.

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técnica/tecnológica e social11: tais fatores, articulados, contribuíram para uma redefinição


de ordem cultural que vai culminar com a adaptação na experiência televisual, com a
espécie de transformação de conteúdos e manipulação do tempo abordados neste trabalho.
Mas o fato é que, no Brasil – provavelmente em função da relevância cultural que a
TV possui no país, inclusive no sentido de estabelecimento de sentimento de nação
–, mesmo com acesso à Internet, as pessoas não deixaram de assistir TV, optando por
migrar para a Web. Parte da audiência passou a assistir televisão enquanto usa a Rede12,
e “tem utilizado as redes sociais para compartilharem suas experiências de TV assim
como seus programas favoritos” (PROULX; SHEPATIN, 2012, p. 14), estabelecendo o que
pode ser considerado “um assistir em conjunto – ainda que virtual – em escala massiva”
(PROULX; SHEPATIN, 2012, p. 60, grifo nosso).
Se o compartilhamento de conteúdos habilitou o estabelecimento de “comunidades”
entre os membros da audiência que assistem aos mesmos programas, o uso das redes
durante o ato de assistir TV indubitavelmente potencializa o fenômeno, uma vez que “as
mídias sociais amplificam o sentimento de estar conectado e ser parte de algo maior
enquanto assistindo televisão” (PROULX; SHEPATIN, 2012, p. 14). Trata-se, de fato, de
uma expansão do modo de assistir TV com, e as redes sociais acabam constituindo um
local para a audiência comentar os programas assistidos13.
Mas é possível analisar o ato de ver TV conectado à Internet como ultrapassando
a realização de comentários enviados pela audiência, e estabelecendo relações mais
complexas entre emissoras e público, no sentido de reconfiguração experiencial,
particularmente em relação à TV ‘ao vivo’. Para ilustrar a afirmação, utiliza-se a seguir
o programa de entretenimento MasterChef Brasil: trata-se de um programa que foi quase
totalmente gravado antes de ser veiculado (apenas cerca dos doze minutos finais no
último episódio da primeira temporada teve transmissão efetivamente ‘ao vivo’) – o
que pode ser facilmente observado pela audiência, por exemplo, através da ausência de
“‘marcas’ de continuidade” (FECHINE, 2008, p. 31)14.

11.  A rigor, a popularização das redes sociais digitais, o uso de dispositivos móveis e o aumento do acesso
à Rede no Brasil constituem os fatores tecnológicos, ainda que esse último também tenha um viés social
associado, como é o caso do aumento do acesso aos dispositivos em função de um período recente de
crescimento econômico e aumento do potencial de compra por parte da população com menor poder
aquisitivo no país.
12.  Há que se observar que não se trata de fenômeno exclusivo no Brasil. A menção explícita ao país é
relativa ao fato de que as análises realizadas no artigo são limitadas ao sistema de TV brasileiro. Vale o
destaque, no entanto, de que o que foi observado pelos autores constitui um fenômeno global (conforme
abordado pelo quadro teórico utilizado neste artigo).
13.  Este artigo aborda, em seguida, tal redefinição na experiência considerando o uso da rede social Twitter
durante a veiculação do programa MasterChef Brasil, particularmente o uso concomitante daquela rede
enquanto a audiência acompanha a veiculação do programa na TV. Contudo, é importante destacar que a
redefinição na experiência não é limitada a programas de entretenimento e ao Twitter, assim como também
não se restringe ao uso das redes sociais digitais no momento em que um programa está sendo veiculado.
Como exemplo pode ser citado o caso do perfil no Facebook do telejornal diário Jornal Nacional, veiculado
pela Rede Globo – a referida página na rede social continua recebendo comentários por parte da audiência
inclusive depois que o programa encerra sua transmissão diária. Trata-se, então, do estabelecimento de um
complexo sistema operando de forma integrada que permite classificar como simplificadora a suposição
de que a Internet ‘mataria’ a TV: os usos são mais complexos do que meras decisões binárias (como acessar
a um ou outro ambiente, em relação de exclusividade mútua).
14.  Há vários ‘cortes’ muito evidentes no programa: como exemplos podem ser citados a incompatibilidade
entre a duração da veiculação e o tempo de preparo dos pratos e os depoimentos dos participantes,
intercalados em ambiente distinto daquele no qual ocorre a preparação dos pratos designados, mas enquanto

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Um primeiro aspecto que pode ser observado associado à variação experiencial em


MasterChef Brasil é relativo à forma como ocorrem os convites para a participação da
audiência. Diferente dos convites diretos à interatividade15 do passado recente, no caso de
MasterChef Brasil os convites ocorrem durante toda a transmissão, mas de forma que
poderia ser considerada como indireta – optou-se por nomear como de forma indireta
aqueles convites à interatividade realizados através da indicação, no monitor de TV, de
hashtag (#) e/ou do ‘endereço’ no Twitter ou Facebook para que participação da audiência
ocorra (conforme pode ser observado na Figura 1, em relação ao programa, e na Figura
2, para referenciar um participante específico).

Figuras 1 e 2. Hashtag/endereço e solicitação de participação16.

Outra forma de convite indireto observável é associada à apresentação de enquetes


ou possibilidades de votação (ainda que, em termos práticos, ela não influencie nos
resultados do programa), conforme ilustrado nas Figuras 3 e 4. Esta última forma de
participação interessa especialmente a este artigo: ora, ainda que a dinâmica da franquia
MasterChef pressuponha tipicamente a eliminação de um participante/candidato a chef
a cada episódio veiculado, são os chefs/jurados do programa que realizam essa elimi-
nação17 (sem interferências de votação por parte da audiência). Ainda, especialmente
por se tratar de programa gravado previamente, a participação da audiência ‘votando’
em quem seria eliminado, ‘ao vivo’, durante a veiculação do programa na grade da
emissora assume um caráter, no mínimo, curioso – e que merece análise complementar
futura. Especialmente porque parece caracterizar o núcleo da variação experiencial e
da transformação de conteúdo gravado em conteúdo quase-‘ao vivo’.

ocorre a preparação dos pratos (neste último caso, a não continuidade fica evidente pois o mesmo indivíduo
deveria estar em dois lugares simultaneamente).
15.  Um dos autores do artigo analisa o que vem chamando de convites diretos à interatividade em programas
de TV aberta no Brasil, considerando que ocorre um convite direto à interatividade quando um apresentador
de TV informa oralmente, durante a veiculação de um programa, a possibilidade da audiência interagir com
o conteúdo. Enquanto anteriormente era tipicamente referenciado um número telefônico para interação,
especialmente a partir dos anos 2000 os convites diretos passaram a indicar o site na Internet do programa
em exibição como alternativa para interatividade.
16.  Todas as imagens utilizadas neste artigo foram obtidas na Internet através dos websites <youtube.com>
ou <entretenimento.band.uol.com.br/masterchef> – acessos entre 02 jan. 2015 e 19 fev. 2015.
17.  Para informações em relação à dinâmica geral do programa, consulte (MARQUIONI; OLIVEIRA, 2014).

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Figuras 3 e 4. Apresentação de enquete e possibilidade de votação.

A transformação de conteúdo gravado em quase-‘ao vivo’ pode ser observada também


através da torcida da audiência para participantes que, a rigor, podem inclusive já ter sido
eliminados no momento em que o programa é veiculado na TV (conforme constatado
pelos autores do presente artigo durante acompanhamento presencial das gravações, o
cronograma de produção apresentava significativa antecedência à exibição dos episódios).
As Figuras 5 e 6 ilustram a torcida da audiência no momento da transmissão em “fluxo”.

Figuras 5 e 6. Momentos de manifestação da torcida da audiência.

Na contemporaneidade, a audiência possui efetivo interesse em participar: o apelo


à participação do público enquanto ele assiste ao programa caracteriza uma alternativa
“usada pela TV para demonstrar [...] simultaneidade entre a produção e a transmissão”
(FECHINE, 2008, p. 31). Nesse sentido, os convites à participação poderiam ser analisados
enquanto recurso que instauraria certa intensidade de “sentimento de ao vivo” (FECHINE,
2008, p. 82) para o programa. Mas essa certa intensidade poderia ser considerada baixa no
caso de MasterChef uma vez que, conforme mencionado anteriormente, é relativamente
fácil para a audiência constatar se tratar de programa gravado. Por outro lado, há que
se considerar que os convites para participação da audiência remetem eventualmente

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a uma possibilidade de “decodificação” (HALL, 2006)18 do “gênero” (BAKHTIN, 1997)19


televisual sendo veiculado. A possibilidade analítica é associada ao fato de que reality
shows foram popularizados no Brasil (particularmente as produções locais veiculadas em
emissoras de TV aberta) a partir das edições brasileiras da franquia Big Brother, veiculada
pela Rede Globo. Pode-se considerar, então, que Big Brother Brasil, em certa medida,
estabeleceu o padrão cultural para reconhecimento do gênero para a audiência brasileira
de televisão aberta. Uma vez que MasterChef Brasil é um reality show com características
significativamente diferentes20, uma eventual dificuldade de reconhecimento seria, assim,
minimamente solucionada com a participação do público, eventualmente facilitando
a “decodificação”.
De fato, é evidente que a audiência utiliza o Twitter para participação; assim, enquanto
é possível observar que o programa habilita o estabelecimento de sensações de afeto
(MARQUIONI; OLIVEIRA, 2014), contadores das postagens realizadas que são exibidos
ao longo da veiculação do programa indicam quantitativamente essa participação.
As Figuras 7 e 8 ilustram os poucos minutos do programa que foram transmitidos
efetivamente ‘ao vivo’, possibilitando constatar grande quantidade de tweets quando
do encerramento do último episódio da primeira temporada21.

18.  Parte fundamental da proposta do modelo de processo comunicativo sugerido por Stuart Hall (no-
meado Codificação/Decodificação), que concebe tal processo “em termos de uma estrutura produzida e
sustentada através da articulação de momentos distintos, mas interligados” (HALL, 2006, p. 365). O modelo
foi elaborado a partir de analogia com o processo de trabalho proposto por Marx ainda na Introdução [à
Crítica da Economia Política] e, posteriormente, n’O Capital, e considera que o “consumo ou a recepção da
mensagem da televisão é, [...] também ela mesma um ‘momento’ do processo de produção no seu sentido
mais amplo” (HALL, 2006, p. 368). Assim, em “um momento ‘determinado’, a estrutura [uma emissora de
TV, por exemplo] emprega um código [um gênero televisual estabelecido] e produz uma ‘mensagem’ [realiza
uma codificação]; em outro momento determinado, a ‘mensagem’ desemboca na estrutura das práticas
sociais pela via de sua decodificação” (HALL, 2006, p. 368). Em linhas gerais, a codificação constitui então
o momento no qual a mensagem é gerada, enquanto a decodificação corresponde ao momento no qual
ela é recebida e, em uma situação ideal, compreendida conforme o esperado no momento da codificação.
Tal compreensão é evidentemente condicionada por estruturas de sentido e referenciais de conhecimento
pela audiência que possibilitem um entendimento ao menos próximo daquele desejado no momento da
codificação da mensagem – o entendimento esperado constitui uma “leitura preferencial” (HALL, 2006, p.
352). Assim, uma referência anterior pode ser útil no sentido de possibilitar minimizar incompreensões
em relação a um conteúdo veiculado.
19.  Os gêneros são considerados neste artigo como uma forma de definir “tipos relativamente estáveis de
enunciados” (BAKHTIN, 1997, p. 279, grifo no original; negrito nosso).
20.  A jornalista e apresentadora da primeira temporada de MasterChef Brasil, Ana Paula Padrão (2014), em
entrevista concedida aos autores deste artigo comentou, de forma didática, o que considera como diferenças
gerais entre MasterChef e Big Brother: “os programas são incomparáveis. A única semelhança entre eles é
que são realities [reality shows]. Não, nem isso: um é um reality [show], o outro é um talent [show]. Um reality
é um programa onde as pessoas ficam confinadas, seguidas por câmeras o tempo inteiro. Um talent é uma
competição: eles não estão confinados, eles saem daqui [...], não têm câmera atrás deles o tempo inteiro”.
MasterChef seria o representante de um “formato que, para os parâmetros atuais do entretenimento na TV
aberta brasileira é inocente. [...] Quem está ali cozinhando, está ali para cozinhar”. Finalmente, em relação
ao formato MasterChef, mencionou que se trataria de “um produto que é novo e ninguém conhecia [sic]
no Brasil, na [TV] aberta”. De fato, é provável (em função de a franquia ter sido veiculada anteriormente
exclusivamente em canais de TV por assinatura) que apenas parcela da audiência de TV aberta no Brasil
conhecesse o programa antes do início da veiculação da edição brasileira pela TV Bandeirantes.
21.  No momento em que iniciou a transmissão ‘ao vivo’ do último episódio da primeira temporada, o
contador indicava a realização de 257.188 mensagens postadas no Twitter; ao final do programa (cerca de
12 minutos depois), este número era de 299.814.

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Figuras 7 e 8. Início da transmissão ‘ao vivo’ e último frame da final de MasterChef Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A reconfiguração do ato de assistir TV é um fato; associadas a ele, mudanças na
experiência de ‘ao vivo’ evidentemente podem ser constatadas ao acompanhar o “fluxo”
televisual de um programa que pressupõe uma audiência que use as redes sociais, e
reitera esse pressuposto ao realizar convites à interatividade via esse ambiente.
Ao enviar ao programa comentários via redes sociais – no caso de MasterChef Brasil,
especificamente através do Twitter –, o público está reproduzindo em relação à TV um
comportamento adotado previamente nos ambientes virtuais. No momento em que o
espectador/internauta, habituado ao formato de interação no Twitter, não apenas retwe-
eta textos de contas que segue, como registra os próprios apontamentos sobre os mais
diversos temas, e, do mesmo modo, opina livremente sobre textos, imagens e links com-
partilhados no Facebook, por exemplo, ocorre uma espécie de transferência dessa conduta
própria das redes sociais para o “fluxo” televisual. Desse modo, pode-se perceber que, de
fato, a reconfiguração no ato de assistir TV – dada com a simultaneidade de seu uso com
a Rede – evidencia a relevância do meio, ao contrário do que se supôs com o advento da
Internet. A rigor, se “a comunicação não fosse reduzida à técnica, se fossem levadas em
conta suas dimensões sociais e culturais, ninguém pensaria que as novas tecnologias
pudessem conduzir ao desaparecimento da televisão” (WOLTON, 2003, p. 129).
Evidentemente, por se tratar de uma reconfiguração que tem características culturais,
não é possível identificar um momento axial no qual a adaptação ocorrera: de fato, ela
vem se constituindo na longa duração. Em termos de programas televisuais, no caso do
Brasil, pode-se considerar que quinze edições da franquia Big Brother (veiculadas pela
emissora de TV aberta com maior audiência no país, até o momento em que esse texto
é escrito) proporcionaram ao público certo entendimento do formato da reality television
(especialmente a pressuposição de participação do público para o desenvolvimento
do programa). Complementarmente, a facilidade de manuseio proporcionada pelos
dispositivos móveis, e mais especificamente, os usos praticados com esses dispositivos
durante o ato de assistir TV, constituem elementos que devem continuar provocando
novas adaptações na experiência televisual – possivelmente ainda modificando a noção
do ‘ao vivo’ na TV.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

5650
Sobre novas formas de manipulação do tempo na televisão (ou Redefinindo a noção de TV “ao vivo” via redes sociais)

Carlos Eduardo Marquioni • Caroline Cavalcanti de Oliveira

REFERÊNCIAS
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Padrão, A. P. (2014, 20 de setembro) Entrevista presencial concedida pela jornalista e apresenta-
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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

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O culto no universo fandom: dinâmicas afetivas e
sociais em comunidades de fãs no ciberespaço
Cult in fandom universe: affective and social
dynamics in communities of fans in cyberspace

A d r i a n a C o rr ê a S i lva P o r t o 1

Resumo: A proposta deste artigo é mostrar os caminhos e os resultados da


pesquisa de conclusão do curso de mestrado da autora, apresentado em 2014
na UERJ, e que investigou a dinâmica afetiva e social que envolve o culto de
fãs em uma plataforma digital, assim como as motivações e desdobramentos
de tal prática. O trabalho é um estudo de caso realizado a partir de um fórum
de discussão na Internet, sobre a série audiovisual americana Game of Thrones.
Amparados pelos estudos da recepção, observamos alguns resultados, como a
interferência dos suportes materiais na compreensão da história e a afetação
dos fãs ao se depararem com o inesperado na narrativa. Em um ambiente de
divergências e disputas por capital social, as mensagens indicam que os fãs
buscam mais do que consumir a obra, desejam vivenciá-la, revelando uma
dinâmica que é, em suma, um micro indicador de fenômenos sociais.
Palavras-Chave: Culto. Fãs. Comunidade. Ciberespaço. Recepção.

Abstract: The purpose of this article is to show the ways and search results
completion of the Masters Course author, presented in 2014 at UERJ, and
investigating the affective and social dynamics surrounding the cult of fans on
a digital platform, as well as motivations and consequences of such a practice.
The work is a case study from a discussion forum on the Internet, on the
american audiovisual series Game of Thrones. Supported by the reception studies,
we observed some results, such as the interference of material supports in
understanding of plot and the behavior of fans when faced with the unexpected
in the narrative. In an environment of differences and disputes over social
capital, messages indicate that fans seeking more than consuming the story,
they want to live it, revealing a dynamic that is, in short, a micro indicator of
social phenomena.
Keywords: Cult. Fans. Community. Cyberspace. Reception.

1.  Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da Universidade do Estado do


Rio de Janeiro (UERJ) e professora do curso de Comunicação Social da Faculdade Salesiana Maria
Auxiliadora, em Macaé, Rio de Janeiro. E-mail: acporto@ymail.com.

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O culto no universo fandom: dinâmicas afetivas e sociais em comunidades de fãs no ciberespaço

Adriana Corrêa Silva Porto

INTRODUÇÃO

D URANTE TODA a história da humanidade, narrativas fantásticas encantam e


inspiram pessoas de diferentes gerações, culturas e classes sociais. Considerando
que essas histórias possuem alguns elementos estruturais comuns, encontrados
universalmente em contos de fadas, mitos, lendas, sonhos, livros, filmes e séries de TV
(VOGLER, 2006), buscamos analisar a recepção dos fãs de uma narrativa ficcional que
propõe a alteração de tais padrões. Conhecido como Jornada do Herói, este modelo ficou
famoso após ser incorporado aos moldes hollywoodianos, na tentativa de ajudar rotei-
ristas, produtores e diretores a diminuir os riscos da história não agradar o público,
assim como os gastos intelectuais para desenvolver a obra.
Essa tecnologia narrativa é baseada no trabalho do mitólogo Joseph Campbell2,
que observou que os mitos continham padrões universais, dos quais as pessoas se ali-
mentavam de diferentes formas. E, baseado nesses padrões ocultos da mitologia, seria
possível contar qualquer história de infinitas maneiras, seguindo o mesmo esquema
estrutural. Por isso, o modelo da Jornada do Herói é tido como universal e presente em
todas as culturas e épocas. Pois as narrativas em geral, conscientemente ou não, seguem
os antigos padrões dos mitos, e todas as histórias podem ser entendidas nestes termos
(VOGLER, 2006, p.33).
Conforme observado por Vogler (2006), alguns filmes que se utilizavam deste recur-
so – como Guerra nas Estrelas3, por exemplo – atraíam uma legião de fãs, que o assistiam
repetidamente, na busca por uma experiência quase religiosa. No caso da série de TV
americana Game of Thrones não é diferente. Produzida e veiculada pela emissora HBO,
canal por assinatura com transmissão para 50 países, a obra possui um exército de
aproximadamente 5,5 milhões de fãs, segundo dados da empresa de monitoramento e
análise de redes sociais SocialBakers4.
Mas o que atrai tanto os fãs? O que os torna fiéis ou devotos à narrativa? Com o
objetivo de encontrar respostas para estas perguntas, demos início a uma investigação.
Partimos da hipótese, levantada pelos próprios fãs da série em um fórum virtual, de
que o rompimento com a clássica Jornada do Herói pode ser decisivo para o recrudesci-
mento do culto e o fortalecimento das comunidades fandom5. A partir daí, analisamos o
culto desses fãs à esta obra audiovisual contemporânea e a sua relação com as inovações
inauguradas pela narrativa.

2.  Saiba mais no livro CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Cultrix, 1992.
3.  A série teve início com Star Wars, lançado em 25 de maio de 1977. A seguir vieram duas sequências,
The Empire Strikes Back, lançada em 21 de maio de 1980, e Return of The Jedi, lançada em 25 de maio de
1983. Dezesseis anos depois da exibição do último filme, teve início uma nova trilogia, mais uma vez
lançada em intervalos de três anos. Em 2008, a soma da bilheteria arrecadada pelos seis filmes Star
Wars totalizava aproximadamente U$ 4,41 bilhões, fazendo desta a quarta série cinematográfica com
maior bilheteria de todos os tempos. A franquia toda soma mais de 30 bilhões de dólares, o que faz dela
a franquia mais lucrativa da história. A série ainda tem previsão de expandir-se com o lançamento do
Episódio VII, com lançamento anunciado para 2015 pela The Walt Disney Company.
4.  Disponível em: <http://oglobo.globo.com/blogs/emcartaznaweb/posts/2013/04/05/brasil-o-segundo-
pais-com-mais-fas-de-game-of-thrones-492315.asp>. Acesso em: 23 jun. 2013.
5.  Palavra de origem inglesa (Fan Kingdom). Refere-se ao conjunto de fãs de um determinado programa
de televisão, pessoa ou fenômeno em particular.

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O culto no universo fandom: dinâmicas afetivas e sociais em comunidades de fãs no ciberespaço

Adriana Corrêa Silva Porto

Para observar a recepção da série Game of Thones pelos espectadores, selecionamos


o fórum Ice and Fire, no qual se discutem os aspectos da série cultuados pelo público e se
expõem as sensações e afetos dos fãs. Nesse espaço virtual, é possível observar o visível6
e o enunciável7. A opção pelo http://forum.iceandfire.com.br/ se deve ao fato de este ser
um espaço aberto e gratuito, bastando apenas se cadastrar para participar e interagir
com os demais membros. Além disso, é o primeiro fórum brasileiro sobre a obra Song
of Ice and Fire8, fundado em 17 de novembro de 2010 – conforme informa o próprio site.
Outro ponto considerado na seleção foi a quantidade de membros e postagens, assim
como a diversidade de contribuições dos usuários e tópicos com assuntos relacionados.
O objetivo deste trabalho é fornecer subsídios para o conhecimento e a compreensão
das formas de recepção e apropriação das narrativas fantásticas, assim como avançar
nos estudos da dinâmica social e afetiva em que operam as comunidades de fãs no
ciberespaço. Acredita-se que, dessa maneira, será possível vislumbrar o que leva os
fãs a dispensarem tempo e afeto em torno de alguns objetos culturais. Paralelamente,
pretende-se ainda revelar de que modo os elementos envolvidos agem e afetam a comu-
nidade virtual, nos levando a uma compreensão mais ampla dos processos em curso.

PROPOSTA METODOLÓGICA
A proposta metodológica consiste em descrever os elementos analisados dentro de
suas próprias dinâmicas, apropriações e lógicas, delimitando amostras e observações
a fim de fornecer um recorte mais preciso do objeto de estudo. Sob a perspectiva da
internet como artefato cultural, buscamos observar a inserção da tecnologia na vida
cotidiana, assim como suas interferências nos modos de recepção e apropriação dos
indivíduos. Assim, a rede de relacionamentos tecida nas comunidades virtuais é consi-
derada um elemento da cultura e não uma entidade à parte. Nesta visão, o objeto pode
ser compreendido como um local de interseção, onde as fronteiras entre o online e o
offline são fluidas e atuam uma sobre a outra (FRAGOSO, 2011).
Para fazer um recorte mais preciso, delimitamos como atores os usuários das comu-
nidades de fãs, os suportes tecnológicos eleitos por eles para o contato com a narrativa
– especialmente a internet e a televisão – e o próprio espaço no qual interagem sob a
mediação do computador. São analisadas as conexões expressas dentro dos tópicos de dis-
cussão sobre a série audiovisual, divididos por temas e episódios, propostos pelos próprios
participantes. A pesquisa foi realizada durante a exibição dos episódios finais da terceira
temporada da série de TV – etapa em que observamos um aumento no engajamento dos
fãs e da participação no fórum de discussão. A intenção era obter maior quantidade e
diversidade de material para o estudo. A partir desta análise, tentamos identificar de que
maneira esses elementos sensibilizam o público e contribuem para alterar costumes e
crenças na comunidade, além de confirmar ou refutar a hipótese da pesquisa.

6.  Aquilo que é dizível em um enunciado discursivo (DELEUZE, 1992).


7.  Aquilo que é visível e invisível em um discurso. O que inclui também o que é observável em enunciados
não discursivos. Conjunto de lógicas que regem o que está sendo visto ou mostrado. O que podemos apreen-
der do dito e do não dito, a partir de um tipo de organização e/ou modo de distribuição (DELEUZE, 1992).
8.  Traduzido para o português como As Crônicas de Gelo e Fogo e publicado no Brasil em 2010 pela editora
LeYa. Esta série de livros do escritor e roteirista norte-americano George R. R Martin deu origem à obra
audiovisual Game of Thones, que atualmente está em sua quarta temporada e é exibida pela HBO.

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O culto no universo fandom: dinâmicas afetivas e sociais em comunidades de fãs no ciberespaço

Adriana Corrêa Silva Porto

Para a análise das subcomunidades do fórum Ice and Fire, elegemos a netnografia –
etnografia aplicada a ambiente digitais – e a observação participante (PERUZZO, 2006, p.
136). Para obter acesso integral à ação dos usuários no fórum em questão, foi necessário
ao pesquisador tornar-se membro da comunidade. Contudo, nunca houve a pretensão de
interferir nas discussões observadas. A intenção era investigar, por meio da observação,
o tipo de relação estabelecida com os elementos de culto na narrativa fantástica, a fim de
compreender como eles são percebidos e em que medida fomentam novas apropriações
e usos sociais da mídia. Para garantir uma consistência à pesquisa, foi realizado ainda
um levantamento bibliográfico prévio sobre os temas a ela relacionados.
A pesquisa ainda levou em conta a perspectiva dos Estudos Culturais, que situa o
conceito de cultura “no espaço social e econômico dentro do qual a atividade criativa
é condicionada” (ESCOSTEGUY, 2010, p.156). Fazemos uso desta abordagem, por acre-
ditar que o estudo da cultura integrado aos das realidades sociais nas quais existem e
se manifestam, pode nos ajudar a refletir sobre o papel dos meios de comunicação na
constituição de identidades e lançar luz sobre as motivações e usos sociais oportunizados
pelos produtos de entretenimento contemporâneo.
Presumindo que “quando uma tecnologia surge com novas possibilidades impor-
tantes, sempre gera alguma reestruturação na sociedade” (SHIRKY, 2011, p.183), estudar
de que forma esses fenômenos ocorrem pode ser útil para compreender o estabeleci-
mento de novas formas de sociabilidade e organizações sociais (RECUERO, 2009). Sua
relevância social está ligada a compreensão do processo de recepção e apropriação, a
partir do uso de meios materiais e imateriais de comunicação. Da mesma forma, o estudo
da narrativa – um dos nossos mecanismos cognitivos primários para a compreensão
do mundo (MURRAY, 2003) – determina um dos modos fundamentais pelos quais nos
organizamos e construímos comunidades.
Ao longo do trabalho, a perspectiva material se fez presente, influenciando as aná-
lises e os recortes realizados. A ideia era pensar a narrativa levando em conta a sua
forma física, já que a sua assimilação e interpretação está condicionada a aquilo que
conseguimos apreender por meio de uma dada estrutura material. Um bom exemplo
disso são as diferentes interpretações que os usuários do fórum fazem de um mesmo
acontecimento da história, quando leem o livro e assistem a cena audiovisual.
Importa-nos destacar neste contexto, como o uso de diferentes mídias cria novas
composições de relações interpessoais, alterando a sua expressividade conforme a mate-
rialidade. Certamente, quando a narrativa muda de suporte, ela também se transforma.
Abrem-se portas e surgem interferências de origens diversas (os atores, a direção da
cena, a trilha sonora, a direção de arte, a fotografia, a linguagem empregada e outros),
que atingem os interlocutores de diferentes formas. Essa maneira de consumo que requer
cada vez mais habilidades (cognição requerida para acompanhar jogos e narrativas
complexas) e oferece “poderes”, na medida em que uma nova fronteira em uma dada
mídia narrativa é ultrapassada, chama a nossa atenção enquanto pesquisadores. A este
respeito, interessa-nos de forma especial a dinâmica criada pelos atores em ação e as
novas práticas sociais que emergem da interação entre eles.

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O culto no universo fandom: dinâmicas afetivas e sociais em comunidades de fãs no ciberespaço

Adriana Corrêa Silva Porto

ANÁLISE DA PESQUISA
De 20 de maio a 10 de junho de 2013, período no qual concentramos os esforços desta
pesquisa, analisamos a troca de mensagem entre os usuários que se manifestaram em
quatro tópicos ou salas de discussão: Valar Dohaeris (episódio 1), Seconds Sons (episódio
8), The Rains of Castamere (episódio 9) e Mhysa (episódio 10). Os quatro versam sobre
episódios da terceira temporada da série audiovisual. O fórum Ice and Fire possui cinco
grandes divisões temáticas: Gelo e Fogo; Série Game of Thrones; Livros; Fan Área e
Off Topic. Apesar de considerarmos a sua estrutura e as informações como um todo,
delimitamos a área ‘Série Game of Thrones’ como foco da pesquisa.
Durante o período da pesquisa, foram contabilizadas 109 postagens de 30 usuários
diferentes. A maior parte dessas manifestações (40,36%) é sobre o episódio nove: The
Rains of Castamere ou O Casamento Vermelho. Este foi o elemento surpresa da temporada,
que alterou mais uma vez e, drasticamente, os rumos da série audiovisual, obrigando
os espectadores a repensarem o que já haviam visto até então. Isso porque a morte
dos principais representantes da Casa Stark – até então os favoritos na preferência do
público e que estiveram em primeiro plano no enredo – e a pulverização dos demais
membros da família, que passaram a integrar novos núcleos, forçaram alguns fãs a
redirecionarem a sua torcida a outros personagens que continuam na disputa pelo
domínio dos sete reinos.
Sobre esse aspecto, observamos alguns fenômenos. Por exemplo, o fato de o episódio
nove ser o alvo das discussões de significativa parcela dos fãs, que se manifestaram
neste período, indica que o ato de ser surpreendido ou ter que lidar com o inusitado,
a revira-volta narrativa, ocasionada pelo rompimento do modelo da Jornada do Herói,
os afetou de alguma maneira. Por sua vez, essa afetação pode oscilar a intensidade
conforme o receptor e o contexto e, ainda, ser de ordem positiva ou negativa.
Neste período, encontramos 21 spoilers indicados como tais nas mensagens anali-
sadas – conforme orienta o fórum. O que equivale a dizer que em 19,26% das postagens
havia antecipação de algum acontecimento da série de TV, geralmente realizada pelos
leitores dos livros. No entanto, também verificamos spoilers sem identificação, ou seja,
fora das caixas que devem mantê-los ocultos até que o usuário, ciente do que se trata,
decida ler. Segundo os administradores do site, a sinalização do spoiler é obrigatória.
Essa norma possibilita que somente aqueles que queiram, leiam a antecipação dos
acontecimentos, eliminando o risco de alguém ser surpreendido contra a vontade. A
observância deste fato revela que as regras do espaço não são integralmente cumpridas
por todos, tampouco os administradores conseguem vigiar e punir os infratores. Essas
observações nos mostraram ainda que o número de spoilers é superior ao indicado na
pesquisa. Entretanto, não é possível dimensionar a quantidade exata sem conhecer o
universo literário que deu origem à produção televisiva9.

9.  Palpites, hipóteses e antecipações de acontecimentos (spoilers) nem sempre são colocados de forma clara.
Por esse motivo, embora a intenção inicial fosse apenas observar o desenrolar dos acontecimentos da
trama relacional que investigamos, fomos levados a participar de algumas discussões, com o propósito
de esclarecer o conteúdo de determinadas mensagens e o contexto das interações. Os breves momentos de
participação do pesquisador não incluíram a defesa de qualquer ponto de vista e serviram, estritamente,
para compreender o sentido das mensagens e o uso de siglas, gírias e expressões típicas do universo
cultural dos fãs de GOT.

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O culto no universo fandom: dinâmicas afetivas e sociais em comunidades de fãs no ciberespaço

Adriana Corrêa Silva Porto

Observamos ainda a antecipação de alguns eventos presente nos livros, – que


supostamente serão revelados na quarta ou quinta temporada da série de TV – sem a
indicação de que se trata de um spoiler. Mediante a esta conduta, um fã reclama do não
cumprimento da norma interna: “Esse monte de palpite de como deveria terminar a
temporada não deveria estar em spoiler? Se alguem que so ve [sic] o seriado entrar aqui,
vai estragar o final da temporada pra ele” (Baraz Gundu, 4 jun. 2013, via fórum)10. A
mensagem revela também divergência entre os fãs, na qual um chama a atenção para
uma atitude de outro que o primeiro desaprova. Frequentemente, essas manifestações
vêm revestidas de disputas por reputação, hierarquia e capital subcultural. Uma prova
disso são as 52 postagens (47,70%) que refletem embates de pontos de vista, enfrentamen-
tos diversos e especulações sobre o seriado. São discussões sobre o futuro da produção,
dos personagens e opiniões sobre diferentes aspectos da trama.
Nesta competição entre argumentos válidos, os fatos são construídos coletivamen-
te. Ou seja, é a comunidade que chancela o que é ou não aceito, tido como padrão ou
verdade, concedendo maior ou menor capital social a cada membro. Por conseguinte,
os fatos não são objetos já definidos, uma vez que estão constantemente se tecendo ou
por tecer. É nesse sentido que Latour (2000, p.70) afirma: “a construção de um fato é um
processo tão coletivo que uma pessoa sozinha só constrói sonhos, alegações e senti-
mentos, mas não fatos”. Isso significa que um fato só existe se for sustentado por uma
rede de atores11 e que o factual não remete à sua natureza em si, mas aos seus colegas
e à rede que o constitui como tal.
Dessa forma, uma afirmação vai se constituindo e se transformado à medida que
passa de mão em mão (FREIRE, 2006). Esse processo depende ainda do que Latour
(2000, p.178) chama de tradução ou translação: “interpretação dada pelos construtores
de fatos aos seus interesses e aos das pessoas que eles alistam”. As cadeias de tradução
referem-se ao trabalho pelo qual os atores modificam, deslocam e transladam os seus
diversos interesses. A partir da ação desses atores, novas interpretações de interesses
e pessoas são canalizadas em diferentes direções (FREIRE, 2006). No desenrolar desta
dinâmica, uma ação desencadeia outras, que podem sofrer desvios e interferências dos
demais usuários. Alguns mudam de posição após confrontarem suas opiniões; outros
voltam a defender o seu ponto de vista, mas são levados a reprogramar suas estraté-
gias; enquanto há quem se mantenha impassível às interações por longo tempo. Nesse
ínterim, proliferam-se as hipóteses e são apresentadas as diferentes soluções para as
questões apresentadas.
Dentro deste contexto, comportamentos e conteúdos compartilhados conferem
capital social aos participantes, na medida em que são aceitos, considerados relevantes
ou proveitosos pelo grupo. Por isso a argumentação na defesa de um ponto de vista é
importante, pois pode repelir ou atrair adeptos. Essas disputas estão presentes em quase
metade das manifestações, o que revela que o prazer dos fãs não está apenas em fazer

10.  Disponível em: http://forum.iceandfire.com.br/showthread.php?2255-Episódio-03X08-Second-Sons/


page6. Acesso em: 29 jan. 2014.
11.  Para Latour, ator é tudo que age, deixa traço, produz efeito - independente da sua natureza –, podendo
se referir a pessoas, instituições, coisas, animais, objetos, máquinas, etc. Ou seja, ator aqui não se refere
apenas aos humanos, mas também aos não-humanos, sendo por esse motivo sugerido ainda pelo autor o
termo actante.

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O culto no universo fandom: dinâmicas afetivas e sociais em comunidades de fãs no ciberespaço

Adriana Corrêa Silva Porto

previsões, elaborar teorias e desvendar os mistérios por trás da obra, mas também em
confrontar ideias que podem levá-los a se destacar na comunidade.
É possível visualizar isso nos relatos disponíveis no fórum. Ao discutir a morte de
Robb e Catelyn Stark no episódio nove, uma fã compartilha a teoria de que “o Casamento
Vermelho foi, provavelmente, a eliminação de personagens que se tornaram problemá-
ticos e redundantes pra desatar o ‘nó górdio’ da narrativa” (Estrelisia, 9 jun, 2013, via
fórum) 12. O comentário é seguido por outros13 que contestam a validade dos argumentos
apresentados.14 As postagens dos fãs refletem disputas por prestígio, que são travadas
com a demonstração de conhecimento e a capacidade de análise dos participantes. Isto
é, quanto mais conhecimento você demonstra, melhor será a sua reputação na comuni-
dade. O mesmo vale para a acuidade intelectual, a originalidade e a clareza nas análises,
que são valorizadas pelo grupo. Vale mencionar que não verificamos nas discussões
ofensas e desrespeito entre os usuários. Em todo caso, segundo as regras do fórum, os
participantes que se comportarem de tal maneira terão a postagem ofensiva retirada do
ar e poderão ser suspensos pelos administradores do site. Em caso de recorrência, pode
haver exclusão do perfil e bloqueio do e-mail utilizado para acessar o fórum.
Sobre a linguagem, podemos observar que não há uma preocupação rígida com o
emprego da ortografia e gramática correta da língua portuguesa. No geral, os membros
expressam preocupação com o conteúdo das mensagens, mas não com a forma como
elas são escritas. A linguagem da internet e do próprio universo de GOT são visíveis
nas postagens. Abreviações, gírias e linguagem coloquial são amplamente utilizadas.
Sob o amparo do internetês15, ainda encontramos um usuário que opta por não fazer
uso de qualquer tipo de acento gráfico em suas mensagens – fato que não implica,
necessariamente, que ele tenha uma imagem negativa dentro do grupo.
Prosseguindo na análise da pesquisa, encontramos quatro links externos (3,66% das
mensagens), que redirecionam o internauta a outros sites com informações e notícias
relacionadas ao seriado. Há ainda referência direta à série de livros em 44 comentários,
o que equivale a um resgate à obra original em 40,36% das postagens. A maioria delas
são comparações de cenas, personagens e eventos da história nos dois suportes – livro
e televisão.
Nas manifestações dos usuários, intuímos uma frequente busca pela coerência da
história e da trajetória dos personagens. Falhas e lacunas são identificadas e apontadas,
oferecendo oportunidade a todo o grupo de participar da discussão. Os que encaram o
embate de ideias e argumentos e se mostram mais atentos, bem informados e críticos,
recebem em troca respeito e credibilidade da comunidade fandom. Tal prática é reflexo
da complexificação do entretenimento, ensejado pelas recentes tecnologias digitais. É

12.  Disponível em: http://forum.iceandfire.com.br/showthread.php?2265-Epis%F3dio-03X09-The-Rains-


-of-Castamere/page4. Acesso em: 30 jan. 2014.
13.  Disponível em: http://forum.iceandfire.com.br/showthread.php?2265-Epis%F3dio-03X09-The-Rains-
of-Castamere/page4. Acesso em: 30 jan. 2014.
14.  Disponível em: http://forum.iceandfire.com.br/showthread.php?2265-Epis%F3dio-03X09-The-Rains-
-of-Castamere/page4. Acesso em: 30 jan. 2014.
15.  Neologismo que designa a linguagem utilizada no meio virtual (Internet + sufixo ês). Refere-se a
utilização da abreviação de palavras e a dispensa da pontuação e da acentuação. Caracteriza-se ainda pela
preferência pelo uso da fonética em detrimento da etimologia, com uso restrito de caracteres e desrespeito
às normas gramaticais.

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O culto no universo fandom: dinâmicas afetivas e sociais em comunidades de fãs no ciberespaço

Adriana Corrêa Silva Porto

sob esta ótica que também nos parece factível a ideia do entretenimento como lingua-
gem, segundo a qual diversão, envolvimento emocional, prazer, informação, geração
de experiências e ativação de sentidos se misturam em um processo comunicacional
lúdico (PEREIRA, 2013).
Dentro desta lógica, os meios materiais podem interferir na compreensão da história,
nas experiências vividas a partir da narrativa, no envolvimento, na imersão e até na
empatia com a obra ou algum dos seus aspectos em particular. É o que percebemos no
relato do usuário que destaca sua falta de empatia por um personagem do livro, mas
que a série audiovisual foi capaz de mudar no episódio The Rains of Castamere. “Quanto
ao episodio, gostaria de ressaltar a excelente atuaçao da Michelle Fairley, eu odeio a Cat
dos livros, mas não tem como nao se impressionar com a atuaçao dela [da atriz que faz
a personagem na TV], transmitando sua dor e emoçao com a perca de tudo que mais
ama” [sic] (Ironborn, 6 jun. 2013, via fórum) 16.
Ainda comparando a história nos diferentes suportes, os fãs demonstram o seu
favoritismo por uma família ou personagem: “O Casamento Vermelho não chegou a ser
impactante como o do livro até porque sou time Lannister na série, mas mesmo assim
não deixei de me sentir emocionado pela morte da Cat e pelo que o CV representa (...)”
(Ferraro 7 jun. 2013, via fórum) 17. Eles também comemoram as conquistas e sofrem as
adversidades impostas aos seus ‘eleitos’: “Eu quase fechei o arquivo do episódio para
não ver o final. Até hoje eu só li o POV da Catelyn, que contém o Casamento Vermelho,
uma vez. É traumático demais para mim.” (Luder 3 jun. 2013, via fórum)18. Na sequ-
ência, outro usuário comenta: “vi ontem mesmo e ainda não consigo escrever sobre o
episódio, nem ler o que a galera postou. cara, que sofrimento” [sic] (Estrelisia, 4 jun.
2013, via fórum)19. A devoção aos personagens e famílias está presente ao longo do
desenvolvimento do fórum e concentra-se nas três principais casas: Stark, Tagaryen e
Lannister. Nesta dinâmica em que os atores se deslocam e são deslocados, impactando
uns aos outros e a rede como um todo, buscamos entender como se dão os fenômenos
relacionados ao culto e de que forma eles são conduzidos ao longo da trajetória analisada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao refletirmos sobre os avanços desta pesquisa, chegamos à conclusão de que há
mais fatores capazes de interferir no fenômeno culto do que supúnhamos inicialmente.
A combinação desses fatores, de um certo modo e em um determinado contexto, é o
que parece desencadeá-lo. Porém, a ativação e o recrudescimento do culto não tem uma
trajetória única que possa ser reproduzida da mesma maneira independente do tempo
ou do contexto. Ao longo da investigação que empreendemos, constatamos que a imersão
na história, a experiência material, a estratégia narrativa e a quebra das convenções

16. Disponível em: < http://forum.iceandfire.com.br/showthread.php?2265-Epis%F3dio-03X09-The-Rains-


-of-Castamere/page1>. Acesso em: 6 fev. 2014.
17.  Disponível em: < http://forum.iceandfire.com.br/showthread.php?2265-Epis%F3dio-03X09-The-Rains-
-of-Castamere/page4>. Acesso em: 6 fev. 2014.
18. Disponível em: < http://forum.iceandfire.com.br/showthread.php?2265-Epis%F3dio-03X09-The-Rains-
-of-Castamere/page2>. Acesso em: 29 fev. 2014.
19. Disponível em: < http://forum.iceandfire.com.br/showthread.php?2265-Epis%F3dio-03X09-The-Rains-
-of-Castamere/page2>. Acesso em: 29 fev. 2014.

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O culto no universo fandom: dinâmicas afetivas e sociais em comunidades de fãs no ciberespaço

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têm papel importante neste processo. Também são fundamentais neste panorama as
comunidades virtuais, a cultura fandom e as formas de interação e organização que se
formam no interior destas. No entanto, nenhuma dessas ocorrências, sozinhas, surtem
o mesmo efeito sobre o fenômeno cult. Logo, é um conjunto de fatores, em um dado
contexto, o responsável por dar contornos visíveis ao culto.
Já sabemos que a manutenção do culto não está condicionada a vida útil da obra
cultuada20, tampouco ao sucesso da mesma junto ao grande público21, mas estas podem
contribuir para a continuidade e ampliação do fenômeno. Diante disso, a pergunta que
nos fazemos é: qual dentre os fatores que incidem sobre a prática do culto tem maior
peso ou importância? A pesquisa nos revelou que não há uma resposta precisa para
essa pergunta, uma vez que trata-se de uma dinâmica. Isto é, o contexto22 muda a cada
momento, assim como os demais atores envolvidos e as ações destes uns sobre os outros.
Contudo, o que chama a atenção nesta conjuntura é justamente este movimento, o
fluxo, as mudanças em curso, não o que ou quem as desencadearam. Tal como a ideia
de rede, presente no pensamento de Latour (2012), algo que suporta diversos pontos de
vista e, por isso, é considerada complexa e intrincada. Queremos dizer com isso que
a dinâmica afetiva e social, criada pelos inúmeros atores em questão, nos parece ser
o caminho para esmiuçar as nuances desse fenômeno. Porque é ela quem organiza,
expande, relaciona, ou seja, movimenta a rede que sustenta a prática do culto.
Enfatizando agora os avanços da pesquisa, chegamos a confirmação de que a quebra
das convenções narrativas pode aumentar o culto em torno de uma obra. Todavia, o
estudo de caso nos revelou também que este acontecimento depende de outros elementos
concomitantes. Associados, eles formam a dinâmica social e afetiva na qual a prática do
culto se desenvolve. Cada um desses elementos age como conector para outros eventos
e interagentes, que vêm de diferentes tempos e espaços (LATOUR, 2012). Quanto aos
impactos provocados pela ação dos atores observados, a pesquisa apontou que estão
relacionados às formas de recepção e apropriação da narrativa. A recepção depende do
repertório individual de cada espectador (experiências, grau de conhecimento, visão
de mundo, crenças, preferências e etc.) e daquilo que nos é dado a compreender através
dos meios materiais e da habilidade/afinidade com cada uma dessas mídias. Já a apro-
priação observamos na incorporação de fotos e/ou do nome do personagem favorito no
perfil do usuário (completo ou parte dele) 23, também por meio de fanfictions e fanarts
disponíveis no fórum e do relato de cosplays24 e encontros presenciais de fãs da série.
Ainda observamos apropriações na defesa apaixonada de um personagem ou família

20.  Como exemplo, podemos citar a obra Harry Potter, que, mesmo tendo o seu último filme lançado em 2011,
ainda hoje mantém uma dezena de fóruns em língua portuguesa dedicados às histórias dos personagens
de Hogwarts – mesmo que em menor número na atualidade do que dois anos atrás.
21.  Neste caso, podemos citar os longas metragem Flyboys (2006), Eragon (2006) e Clube da Luta (1999) -
fracassos de bilheteria que encontraram um público de fãs cativos. Entre as séries de TV, temos The Fallen
(2007), da HBO, e Alcatraz (2012), da FOX.
22.  Entenda como contexto aquilo que fazem os atores comportarem-se de determinada maneira e, ao
mesmo tempo, aquilo que está sendo feito pela resposta do ator (LATOUR, 2012, p. 245).
23.  Há diversos membros do fórum que adotam o nome ou sobrenome de um personagem da série. Como
exemplo podemos citar os usuários: Adriano Baratheon, Felipe Stark, Gabb Lannister, Eddard, Aryan,
Maethyus Targaryen, Rachel Snow, Edmyn Tully e Sandor Clegane, entre outros.
24.  Refere-se à atividade lúdica de disfarçar-se ou fantasiar-se de algum personagem real ou ficcional, na
tentativa de interpretá-los.

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O culto no universo fandom: dinâmicas afetivas e sociais em comunidades de fãs no ciberespaço

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ficcional e na busca por experiências que os aproximem do universo retratado. Todas


essas ações provocam transformações que não podem mais ser consideradas mero
passatempo de fãs25.
Ao que nos parece, estamos diante de uma época em que a necessidade da vivência,
da experiência empírica, está constantemente presente no relacionamento com a obra.
Sob este horizonte desponta a produção de conhecimento concreto, o entendimento de
micromundos e a cultura material, na qual gostos e experiências são construídos social-
mente e objetos participam ativamente do curso das ações. O culto segue um percurso
similar, relacionando-se com a experiência material de forma mais ou menos intensa,
conforme o contexto histórico, cultural, tecnológico e social em que a obra está inserida.
O que nos permite dizer que a materialidade pode não ser o fator determinante para o
culto da obra mantido pelos fãs, mas, sem sombra de dúvida, provoca deslocamentos e
transformações importantes que contribuem para a ativação dessa dinâmica e que, por-
tanto, devem ser consideradas e aprofundadas no âmbito dos estudos da comunicação.
Como possibilidade de estudos futuros incluímos a metodologia para esse tipo de
pesquisa, isto é, a problematização da netnografia ou etnografia em ambientes digitais.
Outra opção é estudar a recepção dos fãs de maneira mais focada, aos moldes do que
ocorreu no episódio nove da terceira temporada.26 A possibilidade de aprofundar a pes-
quisa sob a perspectiva material também é uma caminho interessante para avançarmos
na compreensão de como os suportes afetam o processo de recepção e fomentam – ou
limitam – as interações entre os fãs. As consequências e implicações do impacto material
das mídias no cotidiano desses consumidores multimidiáticos ainda é algo que merece
ser examinado com maior atenção e rigor aos detalhes.

REFERÊNCIAS
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comunidade on-line. Contemporânea (UFBA. Online), v. 10, p. 474-489, 2012. Disponível
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Janeiro: E. 34, 1992.
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Luiz C. e FRANÇA, Vera Veiga (Org.). Teorias da Comunicação: Conceitos, escolas e
tendências. Petrópolis: Editora Vozes, 2010.

25.  Há diversos casos em que a ação dos fãs cria possibilidades de negócios, mobiliza pessoas e fomenta
ações inovadoras. Como exemplo, podemos citar os torneiros de quadribol pelo mundo, que chegaram
inclusive ao Brasil. A prática esportiva dos bruxos representados nos livros e nos filmes da série Harry Potter
ganharam até um torneio internacional. Disponível em: http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2011/07/
quadribol-dos-trouxas-esporte-da-serie-harry-potter-tem-adeptos-no-rio.html. Acesso em: 5 mar. 2014.
Sobre esse assunto, vale destacar ainda o caso do livro Cinquenta tons de cinza, inspirado em uma fanfiction
que imaginava os personagens da saga Crepúsculo em situações picantes. Posteriormente, foi trabalhado pela
autora E. L. James na forma de uma série de livros originais (2011), alcançando grande sucesso no mercado
editorial. É possível conferir esse e outros casos de apropriação dos fãs no endereço: http://natelinha.
ne10.uol.com.br/colunas/2013/10/14/nt-internacional-o-poder-dos-fas-nos-rumos-dos-programas-pelo-
-mundo-67100.php. Acesso em: 4 mar. 2014.
26.  Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=78juOpTM3tE>. Acesso em: 4 mar. 2014.

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O culto no universo fandom: dinâmicas afetivas e sociais em comunidades de fãs no ciberespaço

Adriana Corrêa Silva Porto

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Produto audiovisual televisivo em diálogo com o ambiente
digital: repercussões de Once upon a time na internet
Audiovisual product of television in dialogue with digital
environment: Once upon a time repercussions on the internet
Fernanda Elouise Budag1

Resumo: Apresentamos um estudo de um produto audiovisual televisivo em


diálogo com as tecnologias digitais. Ou melhor, em diálogo com as práticas que
a audiência opera no ambiente digital. O produto audiovisual se refere à série de
TV norte-americana Once Upon a Time, que estreou na rede ABC em 2011 e está
hoje na quarta temporada. Ou seja, estamos falando de um produto audiovisual
global, mas que tem suas apropriações locais e, assim, interessa-nos compreender
exatamente a conversa que ele estabelece com o digital e as expressões de atores
sociais aí compartilhadas. Aqui, conversando com o tema central do evento, nosso
objeto de estudo são, efetivamente, as práticas e apropriações que a audiência da
série opera no ambiente digital – nas redes sociais. Para tanto, empreendemos
uma observação do ambiente online com o intuito de mapear essas práticas e, a
partir de uma análise transversal, procuramos fazer uma leitura, categorizando-
as; caracterizando um exercício de abordagem netnográfica aos moldes da
metodologia proposta por Kozinets (2014). Entre os resultados, identificamos
práticas agrupadas em três categorias centrais: (1) de reprodução de conteúdo,
(2) de criação de novo conteúdo e (3) de exaltação dos atores.
Palavras-Chave: Comunicação. Narrativa audiovisual. Digital.

Abstract: We present a study of an audiovisual product of television in dialogue


with digital technologies. Or rather, in dialogue with the practices that the
audience operates in the digital environment. The audiovisual product in question
refers to the series of US TV Once Upon a Time, which debuted on ABC in 2011
and is now in the fourth season. In other words, we are talking about a global
audiovisual product, but which has its local appropriations and, therefore, we
are exactly interested in understand the conversation it has with the digital and
the expressions of social actors shared online. Here, talking to the central theme
of the congress, our object of study are, effectively, practices and appropriations
that the audience of the series operates in the digital environment – social
networks. Therefore, we undertook an observation of the online environment
in order to map these practices and, from a cross-sectional analysis, we have
read and categorized them; featuring an exercise of netnography approach like
the methodology proposed by Kozinets (2014). Among the findings, we have

1.  Doutoranda em Ciências da Comunicação, USP – Universidade de São Paulo, fernanda.budag@gmail.com.

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Produto audiovisual televisivo em diálogo com o ambiente digital: repercussões de Once upon a time na internet

Fernanda Elouise Budag

identified practices grouped into three main categories: (1) reproduction of


content, (2) creation of new content and (3) exaltation of the actors.
Keywords: Communication. Audiovisual narrative. Digital.

INTRODUÇÃO

O PRODUTO AUDIOVISUAL que compõe nosso objeto de estudo nesta investigação,


a série de TV norte-americana Once upon a time, é objeto de estudo de tese de
doutorado em andamento que propõe empreender uma compreensão sobretudo
narrativa da série. No presente contexto, na tentativa de promover um diálogo entre o
escopo da Divisão Temática ao qual este trabalho foi submetido com o tema central do
evento, propusemos um recorte diverso do executado na tese, que possibilita novo olhar,
complementar, ao estudo. Se originalmente estamos interessados somente no produto em
si, em sua construção e seu reflexo no cotidiano, neste espaço nosso foco é a audiência
desse produto e, mais, os desdobramentos que essa audiência opera no ambiente digital.
Assim, nosso objeto de estudo são, efetivamente, as práticas e apropriações que a
audiência da série opera no ambiente digital – nas redes sociais. O que fazem exatamente
no ambiente online a partir do conteúdo mainstream da série? Sobre o que comentam?
Que conteúdos produzem? Essas são nossas questões-chave que compõem nosso pro-
blema de pesquisa concreto. E para captar tais expressões da audiência, empreendemos
uma observação do ambiente online com o intuito de mapear essas práticas e, a partir
de uma análise transversal, procuramos fazer uma leitura, categorizando-as; caracte-
rizando um exercício de abordagem netnográfica aos moldes da metodologia proposta
por Kozinets (2014) – que explicamos mais a frente.
Para tanto, em termos de fundamentação teórica, construímos uma base conceitual
sobre o audiovisual e séries televisivas com autores como Arlindo Machado (2005)
e François Jost (2012), complementada por referências sobre fãs na era digital, com
Freire Filho (2007) e sobre metodologia de pesquisa no ambiente digital, com Robert
Kozinets (2014).
Iniciamos nosso percurso por uma apresentação da narrativa da série Once upon a time,
com uma breve imersão também em reflexões sobre séries televisas. E aí já abordamos o
contexto da cultura digital em que estamos inseridos, marcada pelas produções por parte
da audiência, fãs, produtores de conteúdos – os chamados oncers como se autointitulam
os fãs de Once upon a time –, que potencializam-se com as plataformas digitais interativas.
Na sequência, apresentamos todo o processo metodológico inspirador e, por fim, os
resultados alcançados, amarrados nas considerações finais.

AS SÉRIES FICCIONAIS TELEVISIVAS E ONCE UPON A TIME


O produto midiático que compõe nosso objeto de estudo, como já mencionado,
consiste em série ficcional televisiva norte-americana chamada Once upon a time, que
estreou na rede de televisão ABC em outubro de 2011 e está atualmente em sua quarta
temporada. Sua narrativa é construída a partir do uso de inúmeras referências de anti-
gos contos de fada, ao mesmo tempo em que opera uma transposição desse repertório
encantado para o contexto do mundo real e atual. Seu título tem a tradução literal “Era

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Produto audiovisual televisivo em diálogo com o ambiente digital: repercussões de Once upon a time na internet

Fernanda Elouise Budag

uma vez”, a clássica frase inicial de contos de fada, justamente porque adota como uni-
verso ficcional o Reino Encantado, integrando personagens e elementos icônicos: Grilo
Falante, Gepeto, Pinóquio, Bela, Chapeleiro Maluco, Caçador, Chapeuzinho Vermelho
e a Vovozinha, maçã envenenada, entre tantos outros. Ou melhor, a narrativa inicia aí
no Reino Encantado, com o casamento de Branca de Neve e Príncipe Encantado, mas
uma maldição da Rainha Má transporta os personagens para um lugar onde suas vidas
e lembranças seriam roubadas, sem mais finais felizes: o Mundo Real. Assim sendo,
estão todos presos em uma cidade chamada Storybrooke e aí a estória se desenrola pelo
intercalar dos dois mundos e a batalha contra a maldição.
Assumimos aqui serialização enquanto “[...] um conjunto de sequências sintag-
máticas baseadas na alternância desigual: cada episódio repete um conjunto de elemen-
tos já conhecidos e que fazem parte do repertório do receptor, ao mesmo tempo em
que introduz algumas variantes ou até mesmo elementos novos (VILCHES, 1984 apud
MACHADO, 2005, p. 89, grifo do autor)
Serialização – tanto em blocos quanto em capítulos/episódios – que é, por sua vez,
adotada pela televisão em virtude de uma variedade de fatores (MACHADO, 2005, p.
85-87), como: (1) as condições de produção – para alimentar continuamente a grade de
programação da TV ela se viu obrigada a adotar um modelo industrial que permite a
serialização e a repetição – ; (2) as condições de recepção – a TV, estando no ambiente
domiciliar, concorre a atenção com inúmeras outras atividades, exigindo a serialização
para que o receptor a acompanhe adequadamente –; (3) as razões, obviamente, de
ordem econômica – o intervalo comercial que reparte surge em função da necessidade
de financiamento da televisão; e também (4) por exercer uma função de natureza
organizativa, permitindo, ao receptor, um tempo de absorção do conteúdo e, ao produtor,
uma exploração de momentos de tensão.
Seccionando o relato no momento preciso em que se forma uma tensão e em que o especta-
dor mais quer a continuação ou o desfecho, a programação de televisão excita a imaginação
do público. Assim, o corte e o suspense emocional abrem brechas para a participação do
espectador, convidando-o a prever o posterior desenvolvimento do enredo. (MACHADO,
2005, p. 88)

Machado (2005), ao estudar a televisão e seus produtos audiovisuais, passa pelas


questões da narrativa seriada, explorando os diferentes tipos de serialização – a série
cuja história iniciada no primeiro capítulo se desenrola até o fim da série, a série com
estrutura de episódios independentes, mantendo-se a mesma temática, com ou sem os
mesmos personagens –, e, principalmente, três grandes modalidades, ou tendências, de
narrativas seriadas: “[...] aquelas fundadas nas variações em torno de um eixo temático,
aquelas baseadas na metamorfose dos elementos narrativos e aquelas estruturadas na forma
de um entrelaçamento de situações diversas” (MACHADO, 2005, p. 90, grifos do autor).
Naturalmente, essas três modalidades de narrativas seriadas nunca ocorrem, na prática, de
uma forma “pura”: elas todas se contaminam e se deixam assimilar umas pelas outras, em
graus variados, de modo que cada programa singular, se não for estereotipado, acaba por
propugnar uma estrutura nova e única. A riqueza da serialização televisual está, portanto,

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Produto audiovisual televisivo em diálogo com o ambiente digital: repercussões de Once upon a time na internet

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em fazer dos processos de fragmentação e embaralhamento da narrativa uma busca de


modelos de organização que sejam não apenas mais complexos, mas também menos pre-
visíveis e mais abertos ao papel ordenador do acaso. (MACHADO, 2005, p. 97)

Mesmo que não de forma genuína, podemos ver uma prevalência em Once upon a time
da terceira tendência das narrativas seriadas, pois a série trabalha várias tramas paralelas
com uma extensa quantidade de personagens – só na primeira temporada, identificamos
a entrada de um novo personagem quase que praticamente a cada novo episódio. E se
considerarmos o fato de cada um desses personagens (ou a maioria deles) ter uma vida/
personalidade no Mundo Real e outra no Reino Encantado, duplicamos a quantidade de
papéis, complexificando ainda mais a trama central. E mais, para figurar concretamente
como a terceira tendência, observamos ainda em Once upon a time a interligação entre
os vários personagens: se não estabelecem relações num mesmo mundo (seja Real ou
Encantado), interligam-se entre os mundos (por intertextualidade, um personagem em
um mundo faz referência a outro em outro mundo). E assim podemos defender que Once
upon a time vai inovando ao instituir uma construção narrativa sua, ímpar.
Jost (2012) realiza um exame da produção ficcional televisiva que nos ajuda a pensar
sobre suas narrativas e o porquê de seus êxitos. No geral, o autor se questiona sobre os
benefícios simbólicos que os telespectadores encontram nas séries americanas. Segundo
o pesquisador, apreciamos séries que nos são familiares. Familiares em termos de mobi-
lizarem, não necessariamente de forma extremamente fiel, elementos que fazem parte
de nosso universo. E um dos recursos citados para que a ficção torne-se familiar que
queremos destacar é o que Jost chama de “universalidade antropológica” (2012, p. 30), que
se refere ao fato de que, mesmo uma série trabalhando com fatos que não pertencem à
concretude do cotidiano de uma maioria dos telespectadores, os problemas sentimentais
dos personagens os aproximam desses sujeitos da audiência.
O sucesso das séries resulta da abrangência de dois desejos discordantes: explorar
um novo continente, mas ao mesmo tempo encontrar nele a familiaridade de nossa
realidade (JOST, 2012, p. 32)
A força das séries americanas advém da contemplação de duas aspirações contraditórias: o
desejo de explorar o novo continente, de ir rumo ao desconhecido, de descobrir o estrangeiro
e, ao mesmo tempo, de encontrar nesses mundos construídos a familiaridade reconfortante
de uma atualidade que é também a nossa, as contradições humanas que conhecemos e,
enfim, os heróis que, como o telespectador, chegam à verdade mais pela linguagem do que
pelo contato direto. (JOST, 2012, p. 32)

Aliás, uma narrativa do tipo realista tem um discurso marcado não pela exatidão
do mundo, mas pela impressão que causa. “[...] realismo é um tipo de discurso que obe-
dece a regras estritas, não se pautando pela exatidão ou a conformidade com o nosso
mundo, mas pela impressão que causa de ser proferido por um narrador que conhece
o seu ofício (JOST, 2012, p. 42)
Portanto, deparar-se com um modo de narração com o qual o sujeito se identifique –
com o qual já esteja familiarizado –, mais do que uma reprodução exata e rigorosa do real
é o que o fascina em relação às séries. De qualquer forma, as séries ficcionais de estilo

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Produto audiovisual televisivo em diálogo com o ambiente digital: repercussões de Once upon a time na internet

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mais realista respondem a uma aspiração dos sujeitos por saber. Sobretudo pelo “saber-
-ser” (JOST, 2012, p. 45), pois abastecem-nos com conhecimento sobre os comportamentos
possíveis em certas situações da vida particular e social. E, portanto, a “[...] impressão de
aprender com a realidade cotidiana [...]” (JOST, 2012, p. 47) explicaria a atração.
Enfim, entre suas conclusões, Jost defende que “o sucesso das séries explica-se
menos pela sua capacidade de refletir de forma realista sobre o nosso mundo do que
por suas condições de fornecer uma compensação simbólica.” (2012, p. 69). Ou seja,
os sujeitos procuram numa série elementos da realidade, sim, mas mais do que isso,
buscam outras possibilidades para além da realidade, para equilibra-la. E talvez a
narrativa de Once upon a time seja feliz nesse sentido, pois mescla o universo realista
com o universo fantástico.

A CULTURA DIGITAL E A AUDIÊNCIA


Estamos hoje – já há algum tempo – vivendo um momento de avanço de novas tec-
nologias, entre as quais destacamos as tecnologias de comunicação (TIC), que acabam
fazendo emergir, consequentemente, novas práticas de consumo de mídia. Especialmente
nos referimos ao digital, que dá existência a toda uma “nova” esfera para atuação dos
sujeitos e automaticamente abre as portas para uma grande gama de práticas que podem
aí ser gestionadas – ou ao menos podem partir daí e então extrapolar esse universo
digital, pois não podemos mais atualmente separar o online do offline. E todo esse
cenário modifica, pois, o polo da recepção dos produtos midiáticos – entre eles as séries
televisivas ficcionais –, que passa a ser efetivamente também produção.
Referindo-se a um “tipo” especial de receptor, o fã, Freire Filho (2007) investiga
as novas formas de produção e autoria empreendidas por eles facultadas pelos
ambientes digitais interativos. No senso comum, os fãs são caracterizados por seus
“hábitos excessivos” e “[...] comportamento intensamente emocional e fervorosamente
ritualizado [...]” (Freire Filho, 2007, p. 3). E mesmo na academia, por muito tempo, o fã
foi encarado como um sujeito doente, o “outro patológico” como se refere Freire Filho
(2007, p. 4). Esse cenário mudou com a emergência dos estudos culturais britânicos
que, trabalhando um sentido antropológico de cultura, entendem todas as práticas
socioculturais como legítimas, portanto, e dignas de estudo. E, assim, lançam um novo
olhar também sobre o fã.
[…] a nova geração de pesquisadores redefiniu o fã como um consumidor astuto, capaz de
construir seus próprios sentidos e elaborar um conjunto variado de práticas, identidades e
artefatos a partir da apropriação criativa de produtos de circulação massiva. Em vez de ser
representada como uma forma de escapismo individual ou histeria coletiva, a condição de
fã passou a ser enaltecida como uma maneira eficaz de expressar resistência a normas e
hierarquias sociais e culturais opressivas e superar sentimentos de subordinação e impo-
tência. (Freire Filho, 2007, p. 4)

O fã é concebido, não mais como doente, mas como receptor ativo – fazendo menção
aos estudos de recepção. Uma grande parcela dos fãs, de fato, limita-se ao consumo;
porém temos uma parcela deles que vai além e produz conteúdos a partir do que a
mídia propaga. O autor então defende a noção de “fã-artista” (FREIRE FILHO, 2007, p.

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Produto audiovisual televisivo em diálogo com o ambiente digital: repercussões de Once upon a time na internet

Fernanda Elouise Budag

6), termo que tem relação com fãs que criam novas histórias para produtos midiáticos
oficiais ou novos personagens para universos ficcionais já existentes. “Os fãs-artistas
confeccionam desenlaces distintos da conclusão conhecida de filmes, histórias em
quadrinhos ou romances, inventam personagens, criam um passado para aqueles já
existentes e elaboram situações totalmente novas” (FREIRE FILHO, 2007, p. 6).
Ou seja, estamos no terreno das fan fictions, produções ficcionais produzidas por
fãs. Entre elas, Freire Filho (2007) explora mais os chamados fan films que, segundo
o pesquisador, [...] constituem, provavelmente, a forma mais elaborada que os fãs
possuem para expressar tudo que imaginam ao consumir um artefato da indústria do
entretenimento” (Freire Filho, 2007, p. 6).
Geralmente sem fins comerciais, essas produções de fãs mostram-se como
grandes investimentos de tempo, de emoção e, por ventura, de recursos monetários.
E se anteriormente à evolução digital já existiam essas produções, hoje elas têm muito
mais alcance – ou ao menos têm a possibilidade para tal. A internet “[...] aumentou
exponencialmente a facilidade, a velocidade e a visibilidade da produção e difusão das
intervenções criativas dos fãs” (FREIRE FILHO, 2007, p. 14).
A propósito, os fãs foram precursores em descortinar todo o potencial das plataformas
interativas emergidas com a internet, que viabilizariam, enfim, um relacionamento mais
ativo de sua parte com o objeto de admiração.
Graças ao notório empenho afetivo para usufruir de um maior controle sobre o seu objeto
de admiração, as comunidades de fãs são apontadas como principais catalisadoras e grandes
beneficiárias desta emergente sociedade da interatividade (essencialmente democrática, não-
-hierárquica, descentrada, favorável ao diálogo e à participação) (FREIRE FILHO, 2007, p. 2-3).

Interatividade compreendida como capacidade de um sistema de comunicação –


como as redes sociais – caracterizada pelo colaborativo e pela participação democrática,
em que o receptor é também mais do que nunca produtor de conteúdo, ou ao menos
hoje tem um espaço em que suas produções podem ser disponibilizadas e, sendo
compartilhadas, ganham visibilidade.
E são justamente os produtos “alternativos” que resultam nessas práticas no
ambiente digital que acabamos de mencionar, derivados da recepção mainstream, que nos
interessam mais de perto e que nos propusemos a observar, analisar e categorizar. Desse
modo, a seguir, introduzimos as bases da abordagem metodológica que procuramos
empreender para a coleta e análise dos dados.

A ABORDAGEM METODOLÓGICA
Conforme já situamos, nossa inspiração metodológica vem de Kozinets (2014) e
suas diretrizes metodológicas para a realização de netnografia. Convém situarmos,
primeiramente, que a pesquisa netnográfica – ou a netnografia – corresponde à
apropriação da etnografia para a esfera da cibercultura. Antes de ser uma metodologia,
ou uma abordagem, a netnografia é uma postura do pesquisador para entender o
comportamento do consumidor na internet, ou o comportamento das pessoas mediado
pela internet. Tal postura está preocupada, pois, em estudar as práticas sociais virtuais
procurando marcadores verbais e não verbais na internet.

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Produto audiovisual televisivo em diálogo com o ambiente digital: repercussões de Once upon a time na internet

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Kozinets (2014) defende um modo de se fazer netnografia correspondendo a uma


sistematização de procedimentos em seis etapas, não necessariamente sequenciais, que
explicamos agora neste espaço para evidenciar nossa inspiração metodológica.
Tendo como base os preceitos de imersão e observação da etnografia, cunhada na
antropologia, Kozinets (2014) defende, para o uso de sua perspectiva do método net-
nográfico, a observação de grupos que correspondam a comunidades online, ou seja,
não agrupamentos de pessoas aleatórias, e sim agrupamentos de sujeitos com algum
laço em comum.
As seis etapas desenhadas por Kozinets (2014, p. 62) são exatamente: (1) planejamen-
to do estudo; (2) entrada; (3) coleta de dados; (4) interpretação; (5) garantia de padrões
éticos; e (6) representação da pesquisa. A primeira e a segunda fases correspondem
ao início da pesquisa e mapeamento das comunidades de interesse, em que devemos
identificar as mais densas levando em consideração alguns critérios propostos pelo
autor, como: relevância do conteúdo partilhado com o tema da pesquisa; interativi-
dade; riqueza de informações e heterogeneidade. Devemos verificar se esse grupo
identificado corresponde de fato a uma comunidade online investigável; conclusão
que se consegue da combinação de alguns critérios sugeridos por Kozinets (2014):
familiaridade entre os membros; comunicações não-anônimas; linguagens, símbolos
e normas; e comportamentos de manutenção da comunidade. A terceira e a quarta
fases correspondem, como os próprios nomes deixam evidente, ao momento de coleta
de dados e consecutiva análise. Temos aqui três qualidades de dados possíveis de
serem obtidos: dados arquivais; dados extraídos e dados de notas de campo. A quinta
fase diz respeito a uma postura ética do pesquisador que deve perpassar por todas as
etapas, mas culminar num momento em que o pesquisador deve ter uma espécie de
consentimento da comunidade investigada. Por fim, a última das etapas diz respeito a
normas de validação da qualidade da pesquisa.
Dessa forma, a metodologia netnográfica proposta por Kozinets (2014) correspondeu
para nós uma sugestão procedimental para as linhas gerais de um exercício de obser-
vação e mapeamento de práticas e produções que a audiência de Once upon a time tem
operado no ambiente digital – nas redes sociais, sobretudo no Facebook. Efetuando uma
análise transversal dessas práticas, traçamos categorias principais que apresentamos
na sequência.

O MAPEAMENTO DIGITAL DE ONCE UPON A TIME


A partir das diretivas metodológicas traçadas por Kozinets (2014), empreendemos
procedimentos afins. Iniciamos identificando e validando uma comunidade online que
nos pareceu mais representativa (ONCE, 2015). Selecionamos então um período para
observação de posts (janeiro a março de 2015) e, paralelamente a isso, já fomos coletan-
do os que foram nos chamando a atenção, ou seja, os mais relevantes para o objetivo
desta pesquisa. De posse desse corpus, analisamos todo o material e o distribuímos
em categorias mais recorrentes; as quais, em nosso caso, correspondem a gêneros dis-
tintos de práticas, cada um com um tipo de envolvimento menor ou maior por parte
dos fãs, consumidores da série Once upon a time. Feito isso, empreendemos uma etapa
opcional, de retorno à comunidade para nova observação na busca de novos posts que

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Produto audiovisual televisivo em diálogo com o ambiente digital: repercussões de Once upon a time na internet

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se encaixavam nas categorias estabelecidas e que poderiam ter passado despercebidos.


Esse retorno tem potencial para revelar aspectos e perspectivas que o pesquisador pode
não ter percebido anteriormente.
Para a análise geral do corpus, levamos em conta o pressuposto de que “a netnografia
envolve uma abordagem indutiva da análise de dados qualitativos. [...] o exame detalhado
de um todo, decompondo-o em suas partes constituintes e comparando-as de diversas
formas” (KOZINETS, 2014, p. 113). E assim chegamos a resoluções finais da investigação.
Nossa intenção, de acordo com o já exposto, foi mapear as apropriações e expressões
engendradas pela audiência de Once upon a time – os oncers – no ambiente online,
reconhecendo e distinguido gêneros dessas produções. Nesse sentido, entre os resultados
obtidos, identificamos práticas agrupadas em três categorias centrais: (1) de reprodução
de conteúdo, (2) de criação de novo conteúdo e (3) de exaltação dos atores.
Na primeira categoria, “reprodução de conteúdo”, observamos a postagem e
compartilhamento de imagens e textos sem um trabalho criativo por parte dos oncers
e, sim, expostos conforme coletados a partir de publicações de uma mídia oficial, como o
canal da ABC. Exemplos para fotos de bastidores (de locações ou de cenas), ou publicações
divulgando eventos relacionados à série, como a 1a Convenção de Once upon a time a ser
realizada no Brasil (Figura 1). Destaque, para a postagem de sneak peeks da série – termo
empregado para denominar vídeos que dão prévias de um novo episódio.

Figura 1. Exemplo de reprodução de conteúdo (Fonte: ONCE, 20152)

2.  ONCE upon a time – série (2015). Recuperado em 21 de março, 2015, de: https://www.facebook.com/
OnceSerie/photos/a.247490775320757.53906.247448465324988/771003109636185/?type=1&theater.

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Produto audiovisual televisivo em diálogo com o ambiente digital: repercussões de Once upon a time na internet

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Entre as manifestações da segunda categoria, “criação de novo conteúdo”, localizamos,


como o nome leva a entender, produções (autorais ou não) de oncers a partir do conteúdo
oficial. Situam-se nesse caso uma variedade de práticas. Desde produções mais simples,
como montagens de fotos com cenas dos personagens (Emma Swan, Mary Margaret
Blanchard, Regina Mills etc), passando por trabalhos como teste para descobrir “qual
vilão de Once upon a time é sua alma gêmea”, e culminando em obras mais complexas,
como fanarts, desenhos feitos por fãs (a exemplo de uma fanart representando a Rainha
Má – Figura 2).

Figura 2. Exemplo de criação de novo conteúdo (Fonte: ONCE, 20153)

Na terceira categoria, “exaltação dos atores”, situamos imagens e textos que


supervalorizam os atores e atrizes da série. O que encontramos de mais representativo
gira em torno de Lana Parrilla e Jennifer Morrison, protagonistas. Sobre Lana, que
interpreta tanto a personagem Regina Mills, prefeita de Storybrooke, quanto a Rainha
Má no Reino Encantado encontramos manifestações como essa: “25 minutos para ver essa
perfeição”, acompanhada de foto da atriz em cena da série. E sobre Jennifer Morrison,
que protagoniza a heroína Emma Swan em Storybrooke e a filha homônima de Branca de
Neve no Reino Encantado, as manifestações vão na mesma linha, como: “PERFEITA!!!!!!!”
e “Jennifer é ou não é o ser humano mais lindo, com uma mochila nas costas, enquanto
passeia pela Disneyland? <3”, também acompanhadas de fotos da atriz (Figura 3).

3.  ONCE upon a time – série (2015). Recuperado em 21 de março, 2015, de: https://www.facebook.com/
photo.php?fbid=898101433562367&set=a.579259812113199.1073741829.100000875565861&type=1.

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Produto audiovisual televisivo em diálogo com o ambiente digital: repercussões de Once upon a time na internet

Fernanda Elouise Budag

Figura 3. Exemplo de exaltação dos atores (Fonte: ONCE, 20154)

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Fechando nossas análises, o que verificamos em termos das categorias de práticas
e produções levantadas apresentam-se com graus diferentes de trabalho produtivo e
criativo da audiência. Mais ou menos na linha como conclui Gitlin (2003), ao tratar do fã
enquanto postura adotada frente a produtos da cultura da mídia e defender que temos
variações de envolvimento de um fã:
Interesse cultural compartilhado não é a mesma coisa que profundo compromisso. Um
fã não é um servo, um empregado nem um seguidor. Estrelas não são líderes ciumentos.
Você pode ser fã de mais de uma estrela, ao mesmo tempo ou em série. Você pode ser um
fã moderado ou volúvel. Você pode ficar um pouco excitado ao ver uma estrela na rua, mas
logo seguir em frente (GITLIN, 2003, p. 181).

E em nosso universo pesquisado, esses diferentes níveis de envolvimento valem


tanto para o conteúdo das postagens da página observada quanto para os comentários
a elas.
Tendo em vista a proeminência do digital no contexto social contemporâneo – que
tem levantado pistas sobre novas práticas de recepção de produtos midiáticos –, procu-
ramos empreender um mapeamento do que a audiência está promovendo no ambiente

4.  ONCE upon a time – série (2015). Recuperado em 21 de março, 2015, de: https://www.facebook.com/
OnceSerie/photos/a.513847325351766.1073741907.247448465324988/769843309752165/?type=1.

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Produto audiovisual televisivo em diálogo com o ambiente digital: repercussões de Once upon a time na internet

Fernanda Elouise Budag

digital sobre a Once upon a time para ampliarmos nosso ponto de vista em relação à
série que é nosso objeto de estudo em tese de doutorado em andamento estritamente
focada na parte da construção narrativa dessa obra audiovisual. E as contribuições
desta nossa inserção no ambiente digital, observando o polo da recepção, de fato ser-
virão para (re)pensar, posteriormente, novas abordagens para a pesquisa concentrada
no polo da produção.

REFERÊNCIAS
FREIRE FILHO, J. (29/ago a 2/set, 2007) Convergências e divergências midiáticas: fãs, indús-
trias do entretenimento e os limites da interatividade. Trabalho apresentado ao NP
Comunicação e Culturas Urbanas, do VII Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom
no XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Santos/SP.
GITLIN, T. (2003) Mídia sem limites: como a torrente de imagens e sons domina nossas vidas.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
JOST, F. (2012) Do que as séries americanas são sintoma? Porto Alegre: Sulina.
KOZINETS, R. V. (2014) Netnografia: realizando pesquisa netnográfica online. Porto Alegre:
Penso.
MACHADO, A. (2005) A televisão levada a sério. São Paulo: Senac.
ONCE upon a time – série (2015). Recuperado em 21 de março, 2015, de: https://www.face-
book.com/OnceSerie.

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A tecitura temporal na minissérie “A Teia”
The weaving time in “A Teia” miniseries
L e t i c i a P a s s o s A ff i n i 1

Resumo: O artigo aborda questões relativas à construção da temporalidade na


narrativa complexa. O estudo aponta, de modo ensaístico, as divergências entre
os recursos técnico-expressivos do código televisual e o jogo de imbricamento
entre personagem, espaço e tempo, característico da narrativa complexa. Para
tal, selecionou-se como corpus a minissérie “A Teia”, realizada e veiculada pela
Rede Globo de Televisão.
Palavras-Chave: Televisão. Ficção. Série. Narrativa Complexa.

Abstract: The article discusses the construction of temporality in the complex


narrative. The study was made on essayistic mode, the differences between the
technical and expressive resources of televisual code and the game between
character, space and time of complex narrative. To do this, was selected the
miniseries “A Teia”, held and conveyed by Globo TV.
Keywords: Television. Fiction. Serie. Complex Narrative.

INTRODUÇÃO

A LINGUAGEM TELEVISUAL é resultado da hibridização de diferentes meios e


referências estéticas: cinema, teatro, rádio, quadrinhos, publicidade, circo, caba-
rêt, internet, grafismo, jornais, revistas, fotografia, animação, literatura, e artes
plásticas. Como decorrência das convergências dos meios, a televisão passa, no cenário
contemporâneo, por um processo de transição e adequação ao novo ecossistema midiático
comunicacional. A trajetória percorrida pela televisão ao redor do mundo está direta-
mente relacionada ao modelo político e econômico de cada país. No Brasil, predomina
o modelo de televisão aberta e generalista, no qual as emissoras procuram estabelecer
um padrão de programação hegemônico que agregue audiência massiva e garanta lucro.
Assim, experimentos pontuais estão sendo produzidos no Brasil como, por exemplo:
site de novela e série, aplicativo jornalístico para segunda tela, blog de personagem,
spoiler ou antecipação de ações narrativas, perfil de personagem e programa nas redes
sociais, aplicações em Ginga BR com informações adicionais sobre personagens, tabela
de campeonato de futebol e etc. Enfim, ações que visam manter a audiência e instaurar
a participação do receptor.

1.  Doutora, Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho, affini@faac.unesp.br.

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A tecitura temporal na minissérie “A Teia”

Leticia Passos Affini

Nesse contexto, todos os conteúdos, inclusive as narrativas ficcionais nos seus


diversos formatos, passam por modificações, dadas pela sofisticação da linguagem.
SIMONS (2008), a partir do agrupamento dos conceitos de “forking-path narratives”,
“mind-game films”, “modular narratives”, “multiple-draft films”, “database narratives”,
“puzzle films”, “subjective stories”, e “network narratives”, propõe o conceito de narrativa
complexa, que pode ser entendida como uma forma diferenciada de narrar, na qual
destaca-se a estrutura narrativa através da manipulação do tempo, espaço, causalidade
e ponto de vista. Para a realização do presente artigo, selecionou-se a obra audiovisual
“A Teia”, baseada na vida de Marcelo Moacir Borelli, roteirizada por Bráulio Mantovani
e Carolina Kotscho, com dez episódios de, aproximadamente, 42 minutos, produzida
e exibida pela Rede Globo de Televisão, veiculada no período de 28 de janeiro até 1º de
abril de 2014. Classificada como minissérie, “A Teia” apresenta características de narrativa
complexa e, no entendimento da presente pesquisa, vislumbra uma aproximação com
as séries estadunidenses veiculadas por canais de televisão a cabo.
A narrativa seriada goza de grande sucesso junto ao receptor. Trata-se de um for-
mato televisivo que deriva da fragmentação do romance em pequenas doses diárias
publicadas nos jornais do século XIX, conhecidas como narrativa de sensação, ou seja,
o folhetim. Aos poucos, a serialização foi incorporada pelo cinema, rádio, quadrinhos,
literatura e televisão. Aparece no cinema com a releitura de filme, o remake, a segunda e
terceira parte, personagens imortais como Spiderman, Batman, franquias e homenagens.
Na televisão, a série encontrou solo fértil, está presente na grade de programação, em
horário nobre, na telelvião aberta, a cabo e sob demanda.
A narrativa seriada desenvolve-se atingindo uma complexidade que é caracteriza-
da por tramas, nas quais as personagens apresentam a mesma intensidade narrativa,
e não há personagem principal ou secundária. Os temas tratados fundamentam-se em
referências históricas recentes, fatos do contemporâneo, inclusive com série que utiliza
imagens jornalísticas, ou seja, imagens que retratam o “real” e que foram captadas por
empresas de informação. Tem-se a ficção trabalhando o “real”, a esfera política está inse-
rida no contexto narrativo, mantendo o nível de verossimilhança do momento histórico
da trama – é uma história que considera o sistema social, em que está inserida, em toda
a sua complexidade. A linha divisória entre ficção e não ficção passa a ser tênue e a área
de interseção entre elas aumenta, podendo ser entendida como um conto do cotidiano.
Outra característica da narrativa complexa é dada pela utilização do flashback (FB)
e do flashforward (FF); estes, multiplicam o número de tramas paralelas, constroem labi-
rintos narrativos que imprimem ritmo à ação, aproxima-se assim, da leitura não-linear
característica do ciberespaço. A edição, montagem baseada na utilização do FB e FF,
realiza uma espécie de zapping narrativo, saltando entre as ações de modo anacrônico. A
narrativa volta no tempo e apresenta um novo dado, uma nova informação ao receptor;
este passa a elaborar toda a trama a partir dessa informação, em um processo ativo de
ressignificação.
O presente estudo objetiva analisar a construção temporal apresentada pela minis-
série “A Teia” por meio do mapeamento temporal das ações dos personagens, a fim de
compreender como uma produção audiovisual brasileira, baseada em fatos reais recentes,
propõe uma história de ficção televisiva. Aponta-se, de modo ensaístico, as divergências

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A tecitura temporal na minissérie “A Teia”

Leticia Passos Affini

entre os recursos técnico-expressivos do código televisual e o jogo de imbricamento


entre personagem, espaço e tempo, característicos da narrativa complexa.
Para investigar a narrativa ficcional, Bordwell (1996) propôs uma estrutura de inves-
tigação em três coordenadas: personagem, espaço e tempo. A personagem é a figura
humana imaginada pelo autor da obra de ficção, que guia o receptor pela história; pode
ser plano ou redondo, ou seja, previsível ou complexo e este apresenta reações diferencia-
das que surpreendem o receptor. O espaço é o ambiente em que se desenvolve a história,
ou seja, o lugar onde a ação acontece. O tempo é o modo como os acontecimentos são
expostos, subdividido em outras três categorias, a saber: ordem, duração e frequência. A
ordem é dada pela organização dos eventos em uma determinada sequência, a duração
pode ser compreendida como a sugestão de espaço de tempo de uma cena e a frequência
é o número de vezes que determinado evento ocorre na trama.
O tempo narrativo é determinado pela sistematização de três elementos: ordem,
frequência e duração. A ordem é formulada pelo encadeamento das ações durante a
narrativa, sendo que uma construção é definida como cronológica ou linear quando
as ações estabelecem uma relação de causa e efeito. Ao inverter-se essa relação, tem-se
uma ordem narrativa não-linear, que se movimenta entre o presente, acontecimentos
passados e/ou futuros, ou mesmo apresentando primeiro os efeitos das ações de um
personagem. Para identificar os elementos do tempo narrado, houve a desconstrução
da estrutura do episódio em dois níveis: macro, o episódio, e micro, as sequências
da narrativa do episódio, para, em seguida, construir uma linha narrativa temporal
cronológica da minissérie inteira nos dez episódios. Quanto ao segundo elemento da
coordenada temporal, trata-se da frequência, ou seja, quantas vezes uma ação aparece
na construção narrativa. O terceiro elemento é a duração, o tempo que a minissérie
levou para se desenvolver, nos três níveis: o contexto da história, a narrativa específica
e o produto audiovisual elaborada para o meio.

RESULTADOS
A Rede Globo de Televisão veiculou a minissérie “A Teia” uma vez por semana, às
terças-feiras, durante dois meses e meio, o que totalizou, aproximadamente, sete horas de
exibição. A história foi construída a partir de três tramas essenciais. A trama principal
da minissérie foi a conduzida por Macedo, no decorrer da investigação do assalto até a
prisão de Baroni. As outras tramas entrelaçam-se, expondo a vida pessoal do policial
Macedo e apresentando detalhes da trajetória de Baroni e sua quadrilha.
Cada episódio tem uma duração média de 42 minutos, divididos em: vinheta de
abertura, resumo dos episódios anteriores, episódio, resumo do próximo episódio e
vinheta de encerramento com os créditos. Essa composição só não foi observada no
primeiro episódio, pois não havia resumo dos episódios anteriores, e no último, já que
não haveria resumo do próximo episódio. As vinhetas de abertura e enceramento foram
as mesmas e tinham a duração de 28 segundos. A vinheta de abertura foi exibida em
seis episódios (3º, 6º, 7º, 8º, 9º e 10º), depois do resumo dos episódios anteriores; o 4º e
5º episódios anteciparam o resumo; e no 1º e 2º foi apresentada no meio do episódio.
O resumo do episódio anterior apresenta, em ordem cronológica, as principais ações,
facilitando-se, assim, a compreensão da trama.

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A tecitura temporal na minissérie “A Teia”

Leticia Passos Affini

A partir disso, identificou-se que no início de cada episódio ocorre um breve


deslocamento temporal, flashforward ou flashback, para, em seguida, iniciar a história
que era desenvolvida no episódio. Na estreia da minissérie, a sequência inaugural
apresenta um avanço temporal de três meses, nos quais Baroni, Celeste e Ninota, em
um caminhão, furam uma barreira montada pela Polícia Federal num pedágio. A
perseguição termina no capotamento do caminhão e na fuga de Baroni com Ninota.
Celeste, inconsciente, é encontrada por Macedo. Na sequência seguinte, a narrativa
retorna ao dia do assalto bem-sucedido ao avião, no aeroporto de Brasília, ou seja, ao
tempo presente da história, e passa a contar as ações desenvolvidas pelos personagens,
cronologicamente. Entre essas duas sequências não há qualquer diferença estética que
marque a troca de tempo.
Assim, a marca da temporalidade aconteceu por meio de uma legenda no início
da segunda sequência. Essa construção narrativa no primeiro episódio da minissérie
faz com que o dia do assalto configure-se como o ponto de origem da trama polícia-
bandido, ou primeiro marco-zero. Desse ponto em diante, a trama polícia-bandido segue
em ordem cronológica até repetir a sequência do flashforward, quando há um segundo
marco-zero, no final do 9º episódio, já que o último se inicia com um novo flashforward.
Já os deslocamentos temporais, no inicio do 2º ao 9º episódios, foram flashbacks e estavam
associados à trama de Baroni e sua quadrilha. A marcação da temporalidade ocorria no
início da primeira sequência do episódio, assim como no início da segunda sequência.
A segunda sequência do episódio sempre retornava ao tempo presente da trama
polícia-bandido.

DISCUSSÃO
O processo de narrativa proposto pela minissérie centraliza-se na manipulação
do tempo, principalmente na ordenação diferenciada das ações para cada uma das
três tramas, que se combinam e entrelaçam-se em uma história. Segundo Bordwell
(2005), há esquemas cognitivos edificados pelas narrativas audiovisuais que condu-
zem o receptor pela história. O modelo mais difundido e aceito é o do cinema clássico
hollywoodiano, no qual a ordem das ações na história oferece possibilidades narra-
tivas óbvias, já que apresenta as condições causais para, em seguida, desenvolver ou
projetar um conjunto de efeitos sobre os acontecimentos desencadeados pela trama,
em ordem cronológica.
A minissérie “A Teia” começa, no entanto, quebrando esse padrão ao inverter a
relação de causa-efeito proposta pelo modelo clássico na trama polícia-bandido. Logo
na abertura, é apresentado ao público um efeito de causas que serão narradas com
o andamento da minissérie. Expôs-se o efeito por meio de um flashforward e, assim,
alteraram-se os pressupostos de uma narrativa linear. Bordwell (1996) aponta que essa
ruptura com o modelo clássico instiga a curiosidade e o suspense no telespectador,
forçando-o a avaliar cada nova informação apresentada sob a perspectiva dos
acontecimentos previamente exibidos. Por isso, a trama polícia-bandido passa, a partir
da segunda sequência do primeiro episódio, a apresentar as causas, cronologicamente,
até no final do nono capítulo, quando reapresenta a sequência que abre a minissérie.

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A tecitura temporal na minissérie “A Teia”

Leticia Passos Affini

O início do tempo presente da história, ou primeiro marco-zero, é o dia do assalto


ao avião, quando começa a se apresentar a trama de Baroni e quadrilha e de Macedo e
sua vida pessoal para, após o crime, a trama polícia-bandido instaurar-se. O processo
narrativo dessa trama constrói-se conforme a investigação a Macedo e quadrilha avança
– na medida em que as descobertas sobre o crime ocorrem, a narrativa apresenta novas
evidências e acontecimentos. Desse modo, o telespectador vai tomando conhecimento
do crime, dos seus participantes e da complexidade e profundidade que envolvem a
história. O assalto e seus desdobramentos são esclarecidos no final, no oitavo episódio,
quando a investigação termina. No nono, a polícia segue à captura dos bandidos e monta
uma barreira policial no pedágio. Por isso, entre a apresentação do “efeito”, a narração
das causas e sua reexibição, houve um intervalo de dois meses, o que comprometeu a
eficácia da proposta pretendia com o recurso de flashforward no processo narrativo, já
que não foi feito nenhum gancho nesse período.
Essa estratégia narrativa foi, novamente, utilizada pela minissérie na trama policia-
bandido, no décimo capítulo, ao iniciar com um novo flashforward. Como na proposta
anterior, após o avanço temporal a trama retorna ao tempo presente da narrativa, dez
horas antes, quando são descritos os acontecimentos após a fuga do bandido. Porém,
nesse caso, a reexibição da sequência “futura” ocorre dentro do próprio episódio, 20
minutos depois da sua exibição, aguçando a curiosidade e o suspense no telespectador.
O enredamento na trama policia-bandido, a trama da vida pessoal do policial,
segue um processo narrativo clássico. Já a trama do personagem Baroni e dos seus
comparsas se constrói utilizando a inserção de flashback, no inicio dos episódios de 02
a 09, como um recurso para complexificar a trama de Baroni e servir “(...) principalmente
para justificar la ocultación o la revelación de información argumental en un momento especí-
fico.” (BORDWELL, 1996, p.91). Desse modo, os episódios se iniciam com um flashback,
recuperam um acontecimento para, na sequência seguinte, retornar ao tempo presente
da narrativa e, dessa maneira, continuar a progressão dos acontecimentos apresentados
no episódio anterior.
El juego de la película con el orden, pues, nos introduce en un proceso de curiosidad y
suspense que implica no solo la manipulación de la historia por parte del argumento, sino
también el propio funcionamiento del argumento. (...) La narración se convierte en abier-
tamente omnisciente, alternativa ente comunicativa y supresiva, y autoconsciente en un
grado muy alto (BORDWELL, 1996, p.93).

Os recursos da linguagem audiovisual, flashforward e flashback, presentes no início


dos episódios apresentaram os acontecimentos prévios ou anteriores das tramas “(...) como
si estuvieran corriendo en el momento, en representación directa.” (BORDWELL, 1996, p.77),
ou seja, fez uso da escanificação. Essa ferramenta exigia a atenção do telespectador no
princípio do episódio, já que o tempo narrativo era anunciado por meio de legenda nesse
momento, pois não havia diferenciação estética entre os tempos. Caso o telespectador
perdesse a marcação temporal em que a sequência estava localizada na trama por alguns
momentos, haveria um choque na compreensão da história por falta de referência ou
indícios temporais, criando, assim, uma ambiguidade.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

5678
A tecitura temporal na minissérie “A Teia”

Leticia Passos Affini

Para mantener claras la líneas principales de la acción y asegurarse de que se emiten hipóte-
sis adecuadas, la narración de bereiteirar las coordenadas causales, temporales y espaciales
más importantes de la historia. La repetición puede elevar la curiosidad y el suspense, abrir
o cerrar lagunas, dirigir al espectador hacia las hipótesis más probables o hacia las menos
probables, retardar la revelación de soluciones y asegurar que la cantidad nueva información
sobre la historia no es excesiva (BORDWELL, 1996, p.80).

Para a frequência temporal evidenciar-se na minissérie, reapresentam-se os


elementos das tramas por meio de flashbacks, relatos dentro da trama polícia-bandido
em todo episódio, até mais de uma vez. Esse flashback apresentou uma estética visual
em preto e branco, cadenciada pelos lampejos das provas e evidências encontradas e
descritas por uma voz over, que sugeriam a linha de investigação adotada pela polícia.
Por isso, se a narrativa causou no receptor “(...) un efecto de sobrecarga que puede ser
exactamente lo que la narración requiera en atención” (BORDWELL, 1996, p.?); com o uso
desse recurso, a minissérie organizava para o telespectador as informações que a polícia
havia descoberto até o episódio em exibição e fazia a iteração dos pontos importantes,
de forma a conduzir o telespectador pela lógica do Macedo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A narrativa complexa ocupa cada vez mais espaço na programação televisiva; o
receptor está saturado de assistir histórias previsíveis, nas quais predomina a estrutura
narrativa clássica. No contexto contemporâneo, o “como contar a história” passa a ser
mais importante do que a história contada. No presente objeto de estudo, a utilização da
disjunção temporal, através do Flashback e do Flashforward, imprimia à história destaque
no aspecto estético do discurso televisual. Apesar de a narrativa não ser original, a
recombinação, sua reelaboração por meio das ações no tempo da fabulação, transforma
a sua aparência em algo novo, aprimorando o senso estético do receptor.
Destaca-se o desenvolvimento de novas formas narrativas, onde associações
conotativas simbólicas substituem a lógica da causalidade. Assim, o autor roteirista
seleciona as ações mais relevantes e as organiza de modo anacrônico dentro do tempo
da fabulação, cabendo ao receptor preencher as lacunas resultantes da complexidade
textual, caracterizada por linhas narrativas entrelaçadas, reviravolta, desvio e retrocesso
na progressão da personagem.
A narrativa é construída a partir do salto no tempo diegético. Tem-se, assim, um
ponto fundante e, a partir dele, toda a narrativa passa a ser construída, as linhas narrati-
vas se cruzam e se alteram, culminando em um conjunto formal estruturado. A mesma
cena ou sequência tem seu significado alterado, dependendo da cena ou sequência que a
sucede. O significado está na sequência, e não na ação em si, no que acontece posterior-
mente à cena, ou seja, na cena subsequente. Assim, o significado é construído a partir
da ligação entre duas ações.
Conclui-se que a atenção dedica à narrativa complexa é muito maior do que a
habitualmente dedicada à televisão. Fecha-se a análise com a resposta à questão: será
que a televisão aberta é o veículo ideal para o consumo de narrativa complexa? Não,

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

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A tecitura temporal na minissérie “A Teia”

Leticia Passos Affini

seu consumo está mais próximo da televisão paga ou sob demanda. Sabe-se que a
redundância e a iteração são características da linguagem televisual, uma vez que o
consumo de televisão “(...) se dá em espaços domésticos iluminados, em que o ambiente
circundante concorre diretamente com o lugar simbólico da tela pequena, desviando a
atenção do espectador” (MACHADO, 2000, p. 87). Na narrativa complexa, o receptor é
convocado a participar ativamente do processo de construção do sentido; para tal, deve
dedicar atenção redobrada ao conteúdo. As informações são dadas em pequenas doses,
o receptor tem que estar atento, associa-las e ressignificá-las em um consumo ativo.

REFERÊNCIAS
Bordwell, D. (1996) La narración en cine de ficción. Paidos.
_______ . (2005) O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos. Senac.
Carrión, J. (2011) Teleshakespeare. Errata Naturae.
Simons, J. (2008). Complex narratives. New Review of Film and Television Studies, 6(2), 111-126.
Martin, B. (2014) Homens Difíceis: os bastidores do processo criativo em Breaking Bad, Família
Soprano, Mad Men e outras séries revolucionárias. Aleph. 2014.
Machado, A. (2000) A televisão levada a sério. Senac, 2000.
_______ . (1980) A arte do vídeo. Editora Brasiliense.
Scolari, C. (2008). Hipermediaciones: elementos para una teoría de la comunicación digital
interactiva. Editorial Gedisa.
_______ . (2013) Narrativas Transmedia: cuando todos los medios cuentan. Deusto.

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A caracterização das personagens
masculinas na minissérie Capitu
The male characterization of characters miniseries Capitu
R a fa e l a B e r na r da z zi1

Resumo: Este trabalho objetiva analisar a produção de sentido na narrativa visual


da minissérie Capitu (Globo, 2008) por meio do estudo do figurino da personagem
Bento e Escobar. Busca-se analisar a caracterização das personagens ao longo da
obra audiovisual, identificando a paleta de cores das vestimentas e as caracte-
rísticas do figurino apresentado no decorrer da trama. Autores como Newcomb
(2010), Leite e Guerra (2002) auxiliam este estudo ao abordarem o vestuário como
artifício de comunicação. Compreende-se a percepção das cores e seus efeitos
fisiológicos e psicológicos quando inseridas no contexto audiovisual. Hirsch
(2011), e Bastos, Farina e Perez (2011) amparam o estudo das sensações visuais
e experiência cromática. A análise leva em consideração a missérie completa
com a intenção de observar a construção da narrativa e seus sentidos a partir
da articulação das estratégias narrativas constituídas tanto pelo figurino e suas
cores quanto pelo discurso verbal. O estudo dos discursos leva em consideração
os trabalhos de Bakhtin sobre linguagem.
Palavras-Chave: Figurino. Ficção Seriada. Minissérie Capitu.

Abstract: This paper aims to analyze the production of meaning in visual nar-
rative miniseries Capitu (Globo, 2008) through the study of the costume of the
character Bento and Escobar. Seeks to analyze the characterization of characters
along the audiovisual work, identifying the color palette of the garments and
costumes characteristics presented in the course of the plot. Authors such as
Newcomb (2010), Leite e Guerra (2002) assis to address this study clothing as
device communication. It is understood the perception of colors and their phy-
siological and psychological effects when inserted in the audiovisual context.
Hirsch (2011), and Bastos, Farina and Perez (2011) support the study of visual
sensations and chromatic experience. The analysis takes into account the full
miniseries with the intention of observing the construction of narrative and
your senses from the articulation of narrative strategies constituted by both the
costume and its colors as the verbal discourse. The study of discourse takes into
account the Bakhtin’s work on language.
Keywords: Costume Design. Serial fiction. Miniseries Capitu.

1.  Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, Escola de Comunicações e


Artes, da Universidade de São Paulo – ECA-USP. E-mail: rafaelaleite@gmail.com

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A caracterização das personagens masculinas na minissérie Capitu

Rafaela Bernardazzi

INTRODUÇÃO

O PRESENTE ARTIGO aborda aspectos da pesquisa que venho desenvolvendo no


Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade de
São Paulo. Resumidamente, trata-se de um estudo sobre as relações entre forma
e conteúdo expressas tanto nos figurinos quanto nos discursos das personagens com o
intuito de observar a produção de sentido propiciada pela minissérie Capitu. Trata-se de
um enfoque que entende a linguagem e o discurso televisual como espaço privilegiado
para a compreensão dos processos de comunicação mediados pela televisão. Dessa
forma, o artigo pretende analisar a linguagem televisual e a construção da narrativa da
minissérie Capitu a partir da produção de sentido dos elementos que compõem a cena
e caracterizam os protagonistas masculinos do produto audiovisual de ficção seriada,
Bento e Escobar, observando os cinco episódios da minissérie.
A partir da atribuição de novos significados por meio da produção de sentido
ampliada pela indústria audiovisual e literária, Capitu apresenta uma integração entre
diversas linguagens e artes provenientes do cinema, televisão, teatro, dança contempo-
rânea, rádio e literatura. A minissérie, dirigida por Luiz Fernando Carvalho foi escrita
por Euclydes Marinho, com colaboração de Daniel Piza, Luís Alberto de Abrei e Edna
Palatnik. Nos últimos anos, as minisséries dirigidas por Luiz Fernando Carvalho, tem
chamado atenção pelo emprego de uma linguagem audiovisual de elevado nível de
produção técnica e estética. Alguns exemplos de trabalhos com características autorais
de Carvalho são Os Maias2, a duas jornadas de Hoje é dia de Maria, A Pedra do Reino,
Capitu, Afinal o que querem as mulheres?3, Suburbia4 e Meu Pedacinho de Chão5. Capitu foi
exibida de 09 a 13 de dezembro de 2008, tendo sido veiculada no ano do centenário de
morte do escritor Machado de Assis como uma forma de homenagear um dos maiores
escritores brasileiros.
Levando em consideração a perspectiva diacrônica dos trabalhos realizados por
Carvalho na Globo, sobretudo no que se refere ao formato minissérie, passamos a
observar a minissérie Capitu não como obra isolada, mas como uma obra que integra
a linha autoral do diretor, e acima disso, uma obra televisual de criação coletiva.
Apesar disso, cabe ressaltar que, mesmo nessa perspectiva, consideramos essencial que
compreendamos Capitu, assim como os outros produtos da indústria televisiva como
resultante das injunções oriundas da industria cultural que opera “(...) entre dois pares
antitéticos: burocracia-invenção, padrão-individualidade” (Morin, 2005, p. 25-26). Trata-
se de um trabalho que busca suplantar o paradoxo padronização-inovação, discutido
por Morin (2005), inerente aos trabalhos na indústria cultural.
Tentando compreender esse paradoxo, consideramos que os trabalhos de criação na indús-
tria cultural envolvem o trabalho coletivo numa perspectiva um pouco diferente daquela
geralmente entendida como industrial. O trabalho, de certa maneira, coletivo numa obra

2.  Minissérie exibida em 2001 pela Rede Globo, autoria de Maria Adelaide Amaral e colaboração de Vincent
Villari e João Emanuel Carneiro.
3.  Minissérie exibida na Rede Globo, em 2010, com roteiro de João Paulo Cuenca, Cecília Giannetti e Michel
Melamed.
4.  Minissérie exibida na Rede Globo, exibida em 2012, autoria de Paulo Lins.
5.  Telenovela exibida na Rede Globo, exibida em 2014, uma novela de Benedito Ruy Barbosa.

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A caracterização das personagens masculinas na minissérie Capitu

Rafaela Bernardazzi

artística, mesmo na industria cultural, não pode basear-se na homogeneização; ao contrário,


sua marca identitária reside na diferenciação, uma vez que se sustenta sobre os pilares da
criatividade dos diversos profissionais (figurinistas, cenógrafos, músicos, iluminadores,
maquiadores) envolvidos nas várias etapas de produção. Trata-se de um trabalho que se
caracteriza pela aglutinação, pela interação de diversos artistas envolvidos na produção de
um trabalho artístico regido, como já se disse, pelas implacáveis leis da indústria cultural.
Leis que punem deslizes de diretores, atores e atrizes com o esquecimento rápido e que
fazem sucumbir, às vezes, também por pequenos deslizes, mesmo aqueles que tenham sido
alçados à categoria de ídolos (MUNGIOLI, 2006, p. 148).

Nesse processo de produção, cada profissional traz seu conhecimento e sua arte
para um grande projeto feito a várias mãos. “São notórios os benefícios que uma equipe
bem afinada pode trazer para a organização. Primeiro, porque uma equipe é formada de
pessoas, que trazem consigo histórias de vida e competências diferentes, mas que se rela-
cionam” (Mariano & Abreu, 2008, p. 6). A minissérie apresenta-se como uma aproximação
do texto original Dom Casmurro6, escrito em 1899. Cabe ainda ressaltar que a minissérie
integrou o projeto Quadrante7, cuja premissa era buscar a valorização do imaginário e
da cultura como fatores imprescindíveis para o fortalecimento da identidade brasileira.

COMPOSIÇÃO DE PERSONAGEM
A composição dos figurinos das personagens de obras audiovisuais atua como
instrumento da narrativa, sendo pensadas desde o a concepção do roteiro ou construção
base das personagens, refletindo como vão se comportar, suas nuances de personalidade,
suas evoluções ao longo da narrativa. A intenção é fazer com que o espectador tenha
informação mesmo quando não há diálogo verbal, como afirma Newcomb (2010).
É verdade, obviamente, que a descrição e a narração na prosa trazem consigo um peso ideoló-
gico similar. Mas a força das mídias visuais está no fato de que num único quadro podemos
encontrar camadas de conteúdo ideológico apresentados instantaneamente com as relações
situadas, antes de que a ação ou o som comecem a sugerir as respostas (Newcomb, 2010, p. 372).

O planejamento do uso das cores no figurino, por exemplo, se concretiza estetica-


mente lançando mão de um repertório ideológico e de um universo simbólico construído
sócio historicamente. Nesse sentido, vale lembrar as palavras de (Bakhtin, 2011), que
discutindo acerca das relações imbricadas na composição do objeto estético:
Integram o objeto estético todos os valores do mundo, mas com um determinado coeficiente
estético; a posição do autor e seu desígnio artístico devem ser compreendidos no mundo
em relação a todos esses valores. O que se conclui não são palavras, nem o material, mas o
conjunto amplamente vivenciado do existir; o desígnio artístico constrói o mundo concreto
(Bakhtin, 2011, p. 176).

6.  O romance Dom Casmurro é uma obra de Machado de Assis publicada em 1899. A história começa a ser
contada em 1857 e é ambienta no Rio de Janeiro durante Segundo Império no Brasil.
7.  Idealizado por Luiz Fernando Carvalho com propósito de adaptar obras da literatura brasileira para
a televisão, o Projeto Quadrante selecionava obras literárias de escritores e produzia uma releitura para
a televisão a partir de produções realizadas no estado de origem do em que o autor da obra escolhida.

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A caracterização das personagens masculinas na minissérie Capitu

Rafaela Bernardazzi

A linguagem empregada pelo diretor/autor alargou conceitos da linguagem tele-


visual brasileira, integrando ao discurso narrativo da minissérie uma linguagem
híbrida na qual os elementos se unem no âmbito da linguagem e trabalham ao longo da
trama como complementares. Sem esquecer que a polissemia do signo nas telenovelas
torna quase impraticável o controle da interpretação e significação “uma vez que as
relações entre signo e sociedade ocorrem entre interlocutores e não entre emissor e
receptor” (Motter & Mungioli, 2007-2008, p. 163), a partir do conceito bakhtiniano no
qual interlocutor é constituído nas relações de comunicação em que a significação se
apresenta no texto criado a partir da relação entre interlocutores (Motter & Mungioli,
2007-2008).
Os elementos que compõem o quadro fílmico, tais como cenografia, iluminação,
figurinos, fazem parte da construção de uma narrativa visual. Cabe ressaltar que
elementos como esses são responsáveis também pela construção da personagem,
influenciando em como suas ações afetam diretamente a produção sentido da tra-
ma e a construção dramática das personagens. O espaço cênico na qual a trama irá
ser retratada deve contextualizar as personagens “delinear condições psicológicas e
existenciais dos personagens, esboçar caracteres de identificação histórico-contextual,
constituir uma atmosfera plástica de poder sugestivo no interior de uma narrativa”
(Bulhões, 2009, p. 88-89).
O figurino por sua vez deve ser considerado por uma variedade de objetos cênicos. Pois se
ele tem uma função especifica, a de contribuir para a elaboração do personagem pelo autor,
constitui também um conjunto de formas e cores que intervêm no espaço do espetáculo, e
devem, portanto integrar-se a nele. (Roubine, 1998, p. 146).

As personagens ficcionais funcionam, em sua maioria, como a forma mais comum


para desenvolvimento do enredo. Sua construção pode ser explanada na obra a partir de
narração, descrição de outros personagens, a partir de sua própria fala e atuação, porém
em todos os casos elementos como figurino, cenário, maquiagem terão valor fundamental
para a compreensão da obra como um todo. “A atribuição de traços físicos, os do ator,
seu traje, sua maquiagem, seus traços psicológicos e morais significados por seus atos
e suas falas, seus gestos e seu comportamento” (Aumont & Marie, 2003, p. 226) devem
ser levados em consideração no momento de construção de uma personagem, pois estes
irão auxiliar na formação, pois “sendo as personagens seres ficcionais elas não são reais,
todavia devem ocasionar a sensação de realidade com porções de verossimilhança e
algumas veracidade. (Comparato, 2009, p. 67). Dito de outra forma, “cada personagem
representa, então, uma linguagem e cada linguagem representa uma inflexão ideológica
relacionada à contínua negociação social” (Newcomb, 2010, p. 372).

CORES
As formas de classificar as cores são diversas, mas para iniciar esse estudo é preciso
diferenciar as possíveis fontes de cor. As cores-luz são formadas na natureza ou por
fontes de luz artificiais. São cores aditivas, ou seja, ao se encontrem elas se mesclam e
adicionam uma a outra e ao misturar as cores primárias de síntese aditiva a cor obtida é a
luz branca. Suas cores primárias são: vermelho, verde e azul (RGB). Já as cores pigmento

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A caracterização das personagens masculinas na minissérie Capitu

Rafaela Bernardazzi

são as substâncias, a mistura de suas cores primárias (vermelho, amarelo e azul) gera
uma cor próxima ao cinza escuro, aproximando-se do preto. Focamos nossos estudos na
síntese aditiva, formada pelas cores básicas vermelho, verde e azul, por serem cor-luz. Os
três elementos identificados na percepção das cores são: tom ou matiz, a luminosidade
ou brilho e a saturação ou pureza da cor. Em softwares de edição de imagem é possível
achar a sigla HSL (hue, saturation e lightness) para designar esses três elementos. Tom ou
matiz seriam as cores (vermelho, laranja, amarelo, verde etc.), são definidas a partir do
comprimento de onda (Aumont, 1993, p. 25) de cada uma. O brilho ou luminosidade é
medido pela presença de luz no matiz, quanto mais luz mais próximo do branco estará
a cor, quanto menos presença de luz estará mais próximo do preto. Saturação ou chroma
pode ser designada como a intensidade da cor ou sua pureza. A intensidade da cor é
maior quanto mais pura ela for. “Quanto mais estreita a faixa dos comprimentos de
onda, mais pura a cor. Forte, cores vivas são referidas como cores saturadas. [...] Quando
diferentes comprimentos de onda estão presentes, diz-se que a tonalidade é mais fraca,
ou não saturada” (Hirsch, 2011, p. 8, tradução nossa8).
Conhecida também como densidade e concentração da cor, a saturação está ligada
com a pureza da cor. Os estudos de Farina, Bastos e Perez (2011) apontam que a saturação
ocorre “quando em uma cor não se adiciona nem o branco, nem o preto, mas ela está
exatamente dentro do comprimento de onda que lhe corresponde no espectro solar”
(Farina; Bastos; Perez, 2011, p. 71). A partir da variação da saturação na imagem haverá
a alternância da vivacidade e da pureza das cores. As imagens saturadas apontam
uma maior expressividade e criam uma sensação de maior realidade. A partir dessa
contextualização iniciamos o desenvolvimento da análise das personagens Bento e
Escobar ao longo da narrativa da minissérie.

BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA


Antes de começar a análise, é preciso situar o momento histórico no qual a trama
está inserida. A história narrada no livro se passa no século XIX, pelos dados fornecidos
por Machado de Assis entende-se que Bento teria nascido na década de 1840. Nesse
momento o Brasil passava por conta das mudanças iniciadas com a chegada de D. João
V e de sua Corte ao Rio de Janeiro. Com sua chegada do imperador D. João há a abertura
dos portos brasileiros, “áreas – artística, cultura, científica, arquitetônica, comercial e
outras –, começam a ocorrer uma febre de novos projetos, construções, inaugurações e
importações das últimas novidades da moda europeia” (Chataignier, 2010, p. 75).
Com as influências internacionais entrando no Brasil a “colônia passiva, sem vida
própria, inteiramente dependente da metrópole, passa a ser o centro de decisão de todo
o império português” (Chataignier, 2010, p. 75-76). Nesse momento a moda francesa era
a principal fonte de tendências no vestuário. Em 1822 é decretada a independência do
Brasil, dessa maneira o território possuía emancipação política de Portugal. “A miscigena-
ção cultural que temperou o vestuário com influências mouras, portuguesas, indígenas
e africanas [...]. Pode-se dizer que houve um casamento com a tradição, o exotismo e a

8. Texto original: “The narrower the band of wavelengths, the purer the color. Strong, vivid hues are
referred to as saturated colors. […] When different wavelengths are present, the hue is said to be weaker,
or desaturated” (Hirsch, 2011, p. 8).

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A caracterização das personagens masculinas na minissérie Capitu

Rafaela Bernardazzi

sensualidade” (Chataignier, 2010, p. 76). Nesse período há mudanças não somente no


Brasil, mas como também na Europa. Há a “centralização, internacionalização e, para-
lelamente, democratização da moda” (Lipovetsky, 2009, p. 85). A partir desse panorama
temos a produção da minissérie Capitu, ambientada no Rio de Janeiro do século XIX.

BENTO
A personagem Bento que será analisada no presente artigo não é o narrador Bento
Santiago, também nomeado de Dom Casmurro, da obra literária, mas sim a personagem
que ganha vida na minissérie. Nossa análise o acompanha desde sua fase adolescente,
quando aparece como Bentinho, até a sua fase adulta, quando se casa com Capitu e,
posteriormente, torna-se pai.
Cronologicamente, a primeira aparição de Bento, como personagem e não como
o narrador Dom Casmurro, na minissérie é uma lembrança do dia de seu casamento,
ao lado de sua recém-esposa, Capitu. Bentinho é apresentado pelo narrador ainda na
infância, com roupas claras e um sorriso inocente no rosto. O primeiro episódio da
minissérie é utilizado para apresentação da situação e personagens. Assim, o principal
foco é o início do romance entre Capitu e Bentinho. Destaca-se nesse episódio a promessa
que sua mãe fizera para que ele se tornasse padre e, por conseguinte, a não aceitação
por parte da família do amor entre os dois jovens. É a partir da primeira aparição da
personagem que o público começa a localizá-lo na narrativa e a construir sua significação.
Tanto a atuação quanto o cenário e a caracterização fazem parte dessa construção inicial.
Nesse quadro “o figurino caracteriza mais do que somente o visual, ajuda a construir
o caráter e a identidade dos personagens numa esfera muito mais ampla em termos de
localização do espaço e tempo” (Wajnman & Arruda, 2008, p. 6). Entre os principais
elementos da caracterização da personagem nesse momento da história são os calções
bege, e coletes com derivações do azul. A gravata também varia entre cores claras como o
bege e marrom claro. Os sapatos na parte da infância são brancos e há uma medalhinha
presa na gola do colete. Observamos calções e meias até o joelho juntamente com sapatos
brancos, “os calções até os joelhos continuaram sendo usados, conservando a mesma
forma haviam tido em 1790” (Köhler, 2009, p. 482).

Figura 1. Paleta de cores da personagem Bentinho no primeiro episódio.

Esse episódio é marcado pela aproximação de Bento e Capitu, há a confissão


de amor entre os dois e também a obrigação imposta pela mãe de Bentinho para o
filho se tornar padre. Nesse primeiro episódio observamos a presença marcante de
vestimentas claras na paleta de cores do figurino. Por ser a fase de apresentação de
uma personagem jovem e inocente que começa a sentir as primeiras manifestações
do sentimento amoroso.

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A caracterização das personagens masculinas na minissérie Capitu

Rafaela Bernardazzi

No início do segundo episódio, Bentinho já se encontra envolvido com Capitu, mas


ameaça de ser mandado para o seminário continua a ameaçar o amor entre ambos. Em
seguida dá-se início à sequência que mostrará o primeiro beijo do jovem casal. Nela os
trajes de Bentinho apresentam uma variação de cores maior. Seu calção é de pano e de
cor marrom claro, assim como uma gravata de lenço que usa na gola da camisa, seu
colete tem um tom mais forte de azul e por baixo veste uma camisa branca até os punhos.
A personagem ainda não aparenta mudança direta após o acontecimento de “se
tornar um homem”. Até o final do segundo episódio Capitu e Bentinho vão aproveitar
a descoberta do amor e a aproximação amorosa. Contudo Bentinho, apesar de sua
falta de vocação para o celibato, não consegue escapar de estudar no seminário e, ao
final do episódio, a personagem introduz uma nova vestimenta que estará presente,
principalmente no terceiro episódio, a batina do seminário e a roupa para entrar e sair
do seminário. Um figurino completamente preto – sapatos, calça, terno, colete e gravata
–, apenas com uma camisa branca por baixo do colete. Com a despedida da família se
encerra o momento de despedida e Bentinho se encaminha para o seminário.

Figura 2. Paleta de cores da personagem Bentinho no segundo episódio.

Assim, no segundo episódio há um Bentinho que vive o amor pela primeira vez e
se torna homem, as cores se tornam mais presentes em sua paleta de cores. A derivação
do azul é muito presente nos coletes, as calças derivam entre bege e branco, muitas
vezes as colorações entre esses matizes ocorrem por causa da iluminação e tratamento
das cenas. Há também a presença do marrom e no final o preto aparece pela primeira
vez de maneira tão intensa, marcado por uma exigência de um uniforme do seminário.
O terceiro episódio se inicia com a apresentação de Escobar, que no futuro irá se
tornar confidente e melhor amigo de Bentinho. O figurino, a partir desse momento da
história, terá a presença marcante o uso da batina no seminário de São José, no qual
Bentinho está estudando. As vestes são formadas por uma peça única preta que cobre
seu corpo por inteiro, a batina, por baixo é possível ver uma blusa branca de mangas
longas. Cabe ressaltar que a batina é uma veste religiosa e por si só já é um “figurino”,
pois caracteriza uma pessoa em meio a uma estrutura religiosa e hierárquica. “Nas
cerimônias religiosas ou místicas, a vestimenta dos participantes cumpre o papel de fio
condutor por onde passa o transcendente. O traje induz à incorporação de “personagens”
dentro do círculo ritual” (Leite & Guerra, 2002, p. 62).

Figura 3. Paleta de cores da personagem Bentinho no terceiro episódio.

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A caracterização das personagens masculinas na minissérie Capitu

Rafaela Bernardazzi

O episódio termina com Bentinho vestindo a batina iluminado por uma luz ver-
melha. A presença da personagem no seminário faz com que a paleta de cores desse
episódio seja maior. A cor preta, principalmente, aparece com maior frequência. Em
casa, contudo, Bentinho continua usando um traje com derivações do bege e do azul.
No começo do quarto episódio, ainda em tons de bege e azul, Bentinho escuta um
pedido de desculpas de Capitu por causa de seu ciúme com a amada. Os principais
adereços em seu traje são a medalhinha na lapela do colete e uma correntinha de prata
que guarda no bolso. Ao retornar ao seminário Bentinho veste novamente batina preta
com camisa branca. Nessa sequência Bentinho troca confidências com Escobar e conta
sobre seu romance com Capitu, assumindo que não tem pretensão de se tornar padre.

Figura 4. Paleta de cores da personagem Bentinho no quarto episódio.

Pouco tempo depois a personagem volta a visitar a família, usando trajes da saída
do seminário. Um terno e calças pretas, com colete e gravata também pretos. Uma carac-
terística das mangas na época é que “eram tão justas quanto possível, mas chegavam
somente aos punhos. A abertura das longas e estreitas abas começava no meio do peito,
de tal modo que o casaco não mais podia ser abotoado” (Köhler, 2009, p. 502).
Graças à manobras de José Dias, um agregado de sua família, Bentinho não se orde-
na padre, saindo do seminário com pouco mais de 17 anos de idade, quando a família
decide que ele deve estudar Direito, em São Paulo. Bentinho continua usando roupas
escuras. Na linha narrativa é sua última aparição como jovem. Aos 22 anos de idade se
torna bacharel em Direito, e ficamos sabendo que mesmo com o problema da distância
entre Rio e São Paulo, ele não deixou de se comunicar com Capitu por meio de cartas.
Ao retornar ao lar, Bentinho se apresenta com caracterização diferente. Trajado com
roupas escuras cobertas por uma capa longa, pouco abaixo da cintura, e com cabelos
mais curtos. Quando pediu licença, a sua mãe, para casar com Capitu, Bentinho vestia
cinza e usava uma gravata com matiz azulado. Outro elemento que se fará presente
nessa nova fase de Bento é a cartola, na mesma cor da capa que traz nos ombros. Em
seguida a cartola volta a aparecer nas vestimentas de Bento. Sua caracterização mostra
elementos mais escuros como o smoking, cartola e colete pretos. Na gola da camisa
branca um lenço branco completa o figurino.
Observa-se que diferentemente de parte da infância na qual os ternos era justos
ao corpo, agora a costura da casaca aparece mais reta, essa “chegou aos poucos a sua
posição natural, e ainda que por algum tempo o casaco se tenha conservado justo, as
concepções de conforto da classe média terminaram por triunfar” (Köhler, 2009, p. 499).
A última cena do quarto episódio mostra Bento indo visitar José Dias com Capitu. O
colete estampado ainda com a cor azul, o terno cinza aparenta uma coloração marrom
por causa da iluminação amarelada.

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A caracterização das personagens masculinas na minissérie Capitu

Rafaela Bernardazzi

O quinto episódio começa com Bentinho e Capitu, já casados há dois anos. Bentinho
tem vestimentas cinza claro e o casal aparenta felicidade na união. A cena seguinte
mostra Bentinho e Capitu em um baile – para a ocasião Bento veste um smoking preto
com blusa, gravata, luvas e colete brancos. De acordo com Köhler (2009, p. 512), “nos
bailes e nas grandes ocasiões os homens usavam gravatas de cetim branco. Para o dia-
a-dia, eram feitas de tecido mais escuro e barato e não tinham laço na frente”.
Diferente das roupas claras de infância que usava, Bento agora se veste constan-
temente com terno e colete preto e seu sentimento de ciúme e desconfiança aumenta.
A primeira cena em que aparece com o filho, Bento volta a usar um traje mais claro.
Trata-se de um terno cinza com gravata em tons de azul e roxo. No entanto, logo em
seguida, a próxima cena já o traz novamente em um terno preto com gravata cinza. Os
cortes são rápidos, mas percebe-se a troca de figurinos entre as cenas. Em seguida há
a cerimônia de batizado de Ezequiel, Bento e Escobar estão juntos na cena. O terno de
Bento é cinza e a gravata cinza.
Nesse momento da história há um salto de cinco anos na narrativa. Ezequiel já está
crescido e Bento brinca com o filho usando trajes semelhantes aos vistos na sequência
anterior – terno preto com gravata cinza e sapatos e meias pretas. Na sequência,
observamos um Bento que volta a usar a cor azul, repetindo um colete azul estampado
usado em sua volta de São Paulo.
Pouco tempo depois da cena anterior, Bento recebe a notícia que Escobar havia
afogado e falecera. No velório do amigo, Bento aparece usando um colete com tons
azulados e gravata cinza. Já na sequência, ocorre o enterro de Escobar, no qual Bentinho
veste preto, com exceção da camisa, tem um colete preto estampado, gravata larga preta,
capa e cartola também pretas. Nessa cena, a tristeza de Capitu à beira do caixão faz com
que o ciúme de Bento aflore novamente. Após a morte do amigo, Bento volta a alimen-
tar a ideia da semelhança entre Ezequiel e Escobar, e isso afeta sua relação tanto com
Capitu quanto com o filho, imaginando que o filho seja fruto da traição de Capitu com
seu melhor amigo. Bento passa a ser frio e mal humorado a ponto de Capitu perguntar
sobre seu comportamento arisco. Nessa etapa do episódio, Bento usa tons escuros de
azul e cinza. Bento e Capitu acabam brigando e ela vai morar na Europa com o filho.
Esse fato seguido da morte de sua mãe faz com que a personagem mantenha a paleta
de cores nos tons escuros.

Figura 5. Paleta de cores da personagem Bentinho no quinto episódio.

Próximo ao fim da história, Bento fica cada vez mais parecido com o narrador, Dom
Casmurro, mas apesar das desconfianças continua usando a aliança de casamento na
mão esquerda. Desse momento até o final da narrativa Bento vai se tornando Dom
Casmurro, recolhido da vida social. Ezequiel retorna da Europa para visitar o pai, Bento
se apresenta com roupas pretas e gravata com tons azulados e ao final se transforma
definitivamente no Dom Casmurro, o narrador.

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A caracterização das personagens masculinas na minissérie Capitu

Rafaela Bernardazzi

ESCOBAR
Escobar é uma personagem que não faz parte da narrativa desde o início do enredo.
Ele entra na história a partir do momento que Bentinho passa a estudar no seminário.
Sua apresentação na trama acontece na primeira cena do terceiro episódio da minissérie.
Filho de comerciante, Escobar é três anos mais velho que Bentinho.
Seu figurino é o mesmo do usado pelos colegas de seminário, uma batina preta
de mangas longas. A veste tem uma fileira de botões, segundo a tradição católica 33
botões, e uma camisa branca por baixo da peça única. O detalhe de sua caracteri-
zação é uma pulseira no braço direito e o cabelo dividido para o lado. “A batina de
Escobar [...] tem uma saia com diâmetro propositalmente maior – equivalente a uma
saia feminina – para tornar os movimentos do personagem mais sedutores na visão
de Bentinho. Para fazer prevalecer a unidade da obra, foi abolido o ângulo reto nas
roupas” (Memória Globo9).

Figura 6. Paleta de cores da personagem Escobar no terceiro episódio.

Nas cenas seguintes Escobar visita Bentinho em sua casa e aparece de terno e calça
cinza claro, blusa branca e sapato e capa preta. “A capa longa não era mais fechada na
frente com uma ou duas fileiras de botões e casas; em vez disso, largas faixas de tecido,
presas nas extremidades dianteiras da capa, traziam, de um lado, os botões e, do outro,
as casas” (Köhler, 2009, p. 514-515). O detalhe de seu figurino é a gravata a cor vinho,
elemento que irá se repetir em diversos momentos da caracterização dessa personagem.
“Um simples acessório pode fazer muito por um personagem e, sutilmente, pontuar
momentos decisivos em sua trajetória” (Memória Globo, 2007, p. 23).
Escobar aparece novamente na minissérie no quarto episódio, quando Bentinho
retorna ao seminário. Durante uma breve conversa, os dois trocam confidências e Escobar
relata que também não tem intenção de se tornar padre, sua verdadeira paixão seria o
comércio. A amizade dos dois se fortalece e Escobar volta a visitar a casa de Bentinho.
Novamente percebe-se a presença do elemento em cor vinho na gravata, enquanto o
restante do traje é uma derivação do cinza. Enquanto Bentinho vai estudar Direito,
Escobar se torna negociante de café. Em uma visita a Dona Glória, mãe de Bentinho,
Escobar veste roupas escuras com uma gravata vinho e capa preta.

Figura 7. Paleta de cores da personagem Escobar no quarto episódio

9.  Fonte: <http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/minisseries/capitu.htm>.

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A caracterização das personagens masculinas na minissérie Capitu

Rafaela Bernardazzi

O traje masculino segue influências da formação cultural e econômica da época


pós Revolução Industrial e formação da classe média. Os trajes masculinos tornam-se
discretos e neutros. “O traje masculino neutro, escuro, austero, traduziu a consagração
da ideologia igualitária como ética conquistadora da poupança, do mérito, do trabalho
das classes burguesas” (Lipovetsky, 2009, p. 105). Ao final do quarto episódio observamos
que mesmo com a mudança de idade, a caracterização em figurinos escuros escolhidos
para Escobar se mantém.
Escobar teve uma filha com sua esposa, contudo havia a suspeita ter tido uma
amante. No batizado de Ezequiel, filho de Bento com Capitu, Escobar volta a usar o
colete vinho, com uma gravata larga preta e um terno preto brilhoso. A cena seguinte
faz referência à morte de Escobar que morre afogado no ano de 1871. No momento do
afogamento Escobar estava caracterizado com um traje de nado listado branco e ver-
melho escuro. O comprimento do traje ia até a altura dos joelhos e não cobria os braços.
“O mar de ressaca em que Escobar se afoga foi feito pelo movimento de um enorme
plástico balançado pelos próprios atores” (Memória Globo10). Seu enterro aparece na
sequência da cena. Assim como na maior parte das cenas anteriores o elemento vinho
se apresenta na gravata.

Figura 8. Paleta de cores da personagem Escobar no quinto episódio.

Desde o enterro de Escobar, onde Capitu chorou por sua morte, Bento havia voltado
com as suspeitas de traição de sua esposa com seu amigo. A convivência com seu filho
Ezequiel o fez questionar a paternidade, pois o achava cada dia mais parecido com
Escobar. Agora em seus pensamentos imaginava o falecido amigo sempre que pensava
em na possibilidade de infidelidade. Trajando as mesmas vestes de seu enterro, Escobar
aparece nas visões de Bento. Anos depois, quando Ezequiel vai visitar o pai, Bento volta
a ter visões do amigo falecido, sendo essa a última aparição de Escobar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da análise realizada, foi possível identificar o uso das cores das vestimentas
como elementos que se articulam na construção de uma narrativa audiovisual complexa
que alia elementos de diversas linguagens para contar a história de um dos maiores
clássicos da literatura brasileira, o romance Dom Casmurro.
Observa-se que ao longo da narrativa a caracterização das personagens se altera
conforme a história se desenha, na infância e na vida adulta as personalidades se
modificam, assim como o figurino. Por exemplo, a figura 9 organiza todas as vestimentas
apresentadas na sua ordem cronológica, dessa maneira vê-se que do primeiro ao quinto
episódio as vestimentas de Bento vão escurecendo e perdendo as cores.

10.  Fonte: <http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/minisseries/capitu.htm>.

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A caracterização das personagens masculinas na minissérie Capitu

Rafaela Bernardazzi

Figura 9. Paleta de cores da personagem Bento Santiago ao longo dos cinco episódios.

Já a paleta de cores da caracterização de Escobar (figura 10) se mantém praticamente


estável, por sua personalidade misteriosa e o ponto de vista do narrador de que Escobar
teria sido amante de sua esposa. Um ponto de destaque para essa personagem é o uso
da cor vinho em diversos elementos ao longo da narrativa.

Figura 10. Paleta de cores da personagem Escobar ao longo dos três últimos episódios.

Dessa maneira, consideramos o produto audiovisual é criado e desenvolvido com


auxílio de áreas diversas que convergem na produção de uma mesma peça audiovisual
carregada de conteúdo. Profissionais com repertórios variados e especialidades distintas
traduzem palavras, signos ideológicos, em imagens, elas também prenhes de signos
ideológicos. Convergindo áreas e linguagens em uma obra audiovisual produtora de
sentido complexo.

REFERÊNCIAS
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Aumont, J. Marie, M. (2003). Dicionário teórico e crítico de cinema. Campinas, SP: Papirus.
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A caracterização das personagens masculinas na minissérie Capitu

Rafaela Bernardazzi

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A telenovela brasileira e a
crítica-processo de Artur da Távola
The Brazilian soap opera and the
critical-process of Artur da Távola
M a r i a I g n ê s C a rl o s M a g n o 1

Resumo: Considerando os processos sociais e os meios de comunicação em que


as produções eram veiculadas, e pensando que simultaneamente às produções
literárias e cinematográficas a telenovela se consolidava a partir dos anos de
1963/64 como parte significativa da cultura brasileira, pretendo apresentar um
estudo sobre a crítica de telenovela no Brasil, especialmente a crítica produzida
por Artur da Távola. O foco da pesquisa é a produção ficcional e a crítica pro-
duzida no período de 1970-1990. Os resultados esperados são os de colaborar
com os estudos da crítica na área da comunicação audiovisual, em especial a
crítica de telenovela.
Palavras-chave: Crítica. Telenovela Brasileira. Comunicação Audiovisual.

Abstract: Considering the social processes and the media in which the produc-
tions were conveyed, and thinking that, simultaneously to literary and film pro-
ductions, the soap opera was consolidated from the year 1963/64 as a significant
part of Brazilian culture, I intend to present a study on the soap opera criticism
in Brazil, especially the criticism produced by Artur da Távola. The focus of
the research is the fictional production and criticism produced in the 1970-1990
period. Collaborate with the critical studies in the area of audiovisual media,
particularly the soap opera criticism, are the expected results of this research.
Keywords: criticism, Brazilian soap opera, audiovisual communication.

A TELENOVELA BRASILEIRA NOS ANOS 1960-1970.

O S ANOS de 1960/70 foram particularmente importantes para a televisão e a tele-


novela no Brasil. A partir dos anos 1960 tanto a televisão brasileira como as
telenovelas tomam novos rumos. A telenovela que até aqueles anos não tratava
de temas ligados à realidade brasileira, encontrava sua gramática própria ao se libertar
das influências cubanas, argentinas e mexicanas. Como dizia Ismael Fernandes (1987), a
realidade brasileira não passava pelas telas da TV e o que se via eram temas centrados
nos problemas dos escravos antilhanos, sem nenhuma referência ao processo escravo-
crata brasileiro. A televisão “foi-se constituindo com o tempo no mais importante dos

1.  Doutora; Universidade Anhembi Morumbi (UAM); unsigster@gmail.com.

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A telenovela brasileira e a crítica-processo de Artur da Távola

Maria Ignês Carlos Magno

meios de comunicação. Hoje, ela é presença obrigatória, no mais das vezes considera-
da indispensável, em todas as classes sociais” (BACCEGA, 2000:37), e a telenovela se
transforma no que Ortiz, citado por Freire (2005:30) chamou de um “produto prime-time
para onde convergiam todas as atenções (de melhoria do padrão de qualidade e dos
investimentos)” (ORTIZ, 1988:45). A partir dos anos 1960, a televisão se torna o “suporte
do discurso, ou dos discursos, que identificam o Brasil para o Brasil” (BUCCI, 2000:104)
e a telenovela se torna um lugar possível para mostrar e discutir questões e problemas
suscitados numa época em geral e no Brasil em particular.
A título de exemplos: entre 1965/66 a telenovela trouxe novos e diferentes sujeitos e
temários. Sob o ponto de vista temático, as telenovelas investiram no humor, no desquite,
no aborto. No tocante aos sujeitos, apareceu pela primeira vez a figura do imigrante
representado pelo Cara Suja de Walter George Durst e Somos Todos Irmãos de Benedito
Ruy Barbosa. Nesse período houve também um deslocamento dos eixos geográficos
e de interesses. A cidade, os grandes centros urbanos passaram a ser os cenários e,
embora as lutas de classes não fossem o centro das tramas seriadas, os problemas e os
espaços dessas classes foram. Já os anos de 1967/68/69 se destacaram dos anteriores e
a telenovela discutiu o momento histórico, as experiências e os problemas das classes
sociais. A classe operária, a classe média e uma fração da burguesia e a figura do
empresário apareceram pela primeira vez na ficção seriada. Como classes protagonistas
ou paralelas, ainda que dentro da estrutura narrativa em que o amor e do ódio eram
os fios condutores das histórias, estes sujeitos e temários entraram nas casas e levaram
para dentro das salas, questões de ordem política e de um cotidiano aparentemente
distante, situado fora daqui e de mim.
Quatro telenovelas merecem destaque nesse período: O Morro dos Ventos Uivantes,
de Lauro César Muniz; A Operária de Walter George Durst; Os Rebeldes de Geraldo
Vietri e Beto Rockfeller, de Bráulio Pedroso. Em O Morro dos Ventos Uivantes, por exemplo,
os personagens assumem verdades relacionadas à história do Brasil e a ascensão do
personagem principal era o retrato das classes desfavorecidas ameaçando a aristocracia.
Durst trouxe uma operária como foco da trama, enquanto o português Antonio Maria
aparecia na figura do empresário que, naqueles anos, despontava como um dos principais
sujeitos da história e do Brasil. A classe média foi discutida sob dois aspectos e enfoques:
nos rebeldes estudantes e no ser-não-ser do vendedor Beto da rua Teodoro Sampaio
travestido do milionário Rockfeller na rua Augusta. A primeira, ao fazer da sala de
aula o espaço para debater os problemas de uma história e geração, foi censurada e teve
seu final apressado. A segunda revolucionou a estrutura da telenovela e desnudou os
conflitos de uma classe sem identidade e sem projeto.
Com abordagens diferentes, as classes sociais protagonizaram e abriram
possibilidades para novas reflexões sobre a ficção e a realidade. Basta pensarmos que,
no final dos anos 60, os historiadores estavam às voltas com os estudos e análises sobre
o papel da classe operária como condutora do processo histórico. A avaliação de sua
atuação e significado era o centro das discussões na esquerda no sentido de tentar
compreender sua derrota na conjuntura de 1964. Fechando os anos 60, Geraldo Vietri
e Dias Gomes investiram no personagem Nino, o Italianinho e mudaram radicalmente
o discurso na telenovela. Em 1969, Dias Gomes, sob o pseudônimo de Stela Calderón,

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A telenovela brasileira e a crítica-processo de Artur da Távola

Maria Ignês Carlos Magno

alterou o rumo de A Ponte dos Suspiros, transformando-a numa via de acesso para
apresentar e debater os problemas do Brasil.
Os anos de 1970 precisam ser buscados e apreendidos numa outra perspectiva. O
Estado se apresentava como sujeito único e condutor máximo do processo histórico.
Sendo que, a partir de 1975, o Estado passa a interferir diretamente na produção cultural.
Quanto à produção seriada, o que encontramos é uma situação aparentemente
contraditória. Enquanto a ficção prendia o espectador para ver a luta e a vitória do bem
contra o mal, no Brasil dos generais, o Estado e as emissoras proporcionaram à televisão
e à telenovela um alto padrão tecnológico. Como gênero, a telenovela ganhou contornos
inesperados e ricos na medida em que percebeu e trouxe em textos e imagens, sujeitos e
temários nascidos ou aprofundados no processo iniciado em 1964. Entre tantos títulos,
podemos tomar alguns significativos exemplos da produção seriada: o garimpo em
Irmãos Coragem e a cidade fictícia que foi destruída por um temporal e se transformou
em notícia de jornal. A luta pelo poder em: Os Deuses Estão Mortos, quando monarquistas
e republicanos lutam pelo poder e mostram a sociedade em crise com a abolição da
escravatura. O novo rico do regime em O Cafona; o bicheiro em Bandeira 2; a ilusão e
as angústias nos grandes centros urbanos com O Espigão. Em Fogo Sobre Terra, a figura
invisível de um Estado, que através da construção de obras faraônicas, impunha seu
domínio, bem como seu preço social e ecológico foram os focos centrais na ficção de
Janet Clair. Em O Homem Que Deve Morrer a trama e o personagem Ciro Valdez, alegoria
da figura de Cristo, que enfrentava Otto Von Muller, vilão de estilo nazista, foram
totalmente censurados.
A censura foi outra personagem constante em muitos momentos das telenovelas
produzidas na década de 70. Em 1973, por exemplo, a telenovela de Walter Negrão Cavalo
de Aço, teve vários capítulos censurados. Primeiro, a questão da reforma agrária e em
seguida o problema da droga. Em 1975, a telenovela Escalada de Lauro César Muniz
teve uma sequência inteira proibida: o encontro de A. Dias e o governador Ademar de
Barros na chegada a Brasília. O nome do Juscelino Kubitschek não podia ser mencionado.
Outro exemplo de censura ocorreu com a novela O Rebu de Bráulio Pedroso. A novela
não podia fazer críticas à polícia, as cenas de homossexualismo foram censuradas, os
finais de cada capítulo deviam ser positivos para o delegado que investigava o caso.
Entre outras censuras sofridas, os atores tiveram que regravar o final. Por ordem do
DCDP – (Divisão de Censura de Diversão Pública), o final foi alterado (CIMINO, 2014)
Como foi censurada a telenovela O Berço do Herói, de Dias Gomes. Peça teatral de sua
autoria, “dez anos depois sob o nome de Roque Santeiro essa novela viria a ser uma das
maiores audiências dos anos de 1980” (REIMÃO, 2004:24). A telenovela, que desde o
início dos anos 70 encarou o Brasil, seus personagens e problemas, teve a censura como
sua mais fiel espectadora. A partir de 1975 a censura estabeleceu os seus padrões para
a produção seriada.
Esses foram alguns exemplos de telenovelas em que podemos perceber nas temáticas
apresentadas as inter-relações entre a produção ficcional e a realidade. Exemplos trazidos
para entendermos o crítico Eugênio Bucci quando dizia: “Às vezes, tenho a sensação de
que, se tirássemos a TV de dentro do Brasil, o Brasil desapareceria” (2000, p:105) e Maria
Aparecida Baccega quando nos explica porque:

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A telenovela brasileira e a crítica-processo de Artur da Távola

Maria Ignês Carlos Magno

Nesse discurso narrativo, nesse contar histórias, ficção e realidade se mesclam. Telejornais
e documentários, teoricamente o lugar dos discursos sobre o real, utilizam-se de procedi-
mentos de narrativa ficcional para conquistarem a atenção do telespectador, enquanto as
telenovelas e seriados, lugar da ficção, trazem o cotidiano vivido para a discussão no universo
ficcional. Mais do que isso, essa inserção da realidade na ficção passa a constituir-se como
uma das características da telenovela brasileira desde final dos anos de 1960, chegando ao
que já foi denominado de “novela intervenção”, como é o caso de Rei do Gado, de Benedito
Rui Barbosa, veiculada pela Rede Globo, no horário das 20h 30min, de 17 de junho de 1996
a 15 de fevereiro de 1997 (2000:49).

Maria Aparecida Baccega recupera dois outros críticos de televisão e de telenovela


para exemplificar como essa mescla ficção e realidade ocorrem: Helena Silveira e a crítica:
Eutanásia, problema na mão do espectador sobre a novela Os Gigantes de Lauro César Muniz
(1979) e Gabriel Priolli sobre a produção de Dias Gomes a quem chama de Teledramaturgo
social (1999), em necrológico de 21 de maio de 1999. Não quero nesse momento recuperar
o teor das críticas, mas chamar a atenção para o fato de que essa mescla e a produção
novelística eram analisadas por críticos e teóricos da televisão e da telenovela. Portanto, a
crítica de televisão e de telenovela, igual às críticas literárias, teatrais e cinematográficas,
existia. E é essa produção crítica que me interessa nesse estudo.

A CRÍTICA DE TELENOVELA E A CRÍTICA


PROCESSO DE ARTUR DA TÁVOLA.
A crítica de televisão e de telenovela, igual às críticas literárias, teatrais e cinema-
tográficas existia, ainda que não de forma sistematizada, desde os anos 1960. Entre os
estudiosos de televisão podemos destacar algumas falas sobre a situação da telenovela
e da crítica de telenovela. De acordo com pesquisas realizadas por Denise de Oliveira
Freire (2005, p:68/72), Costa (1994:109), por exemplo, afirmava que a telenovela brasi-
leira, era “um dos gêneros mais importantes da produção cultural brasileira, sofre de
permanente ausência de documentação e registro”. Ortiz dizia que a telenovela “não
desfruta de um grande prestígio no mundo acadêmico, mas não deixa de ser discutida e
analisada em artigos de jornais e revistas de publicidade, ou mimeografados de órgãos
de cultura” (ORTIZ, 1989:7). Ismael Fernandes afirmava que “é muito difícil levantar
dados sobre novelas antigas” (VIVEIROS, 1994) e que a “imprensa só começou a se
dedicar ao assunto em 1965, quando encontrou recortes de O direito de nascer na revista
O Cruzeiro”. Para Fernandes, segundo a pesquisadora, uma das razões que pode ser
apontada por essas dificuldades de levantar dados sobre novelas antigas é a perda de
grande parte dos arquivos pelas emissoras no decorrer dos anos. Sendo assim, “a crítica
é para o estudo da telenovela um dos meios mais eficientes para a recuperação dos fatos
e acontecimentos relativos a essa programação televisiva” (COSTA, 1994:109).
Com o surgimento da telenovela os críticos de televisão passaram a criticar também
a telenovela. E Helena Silveira é apontada como uma das primeiras pessoas a desenvolver
uma crítica sistemática da telenovela. Para a pesquisadora Denise de Oliveira Freire,
do ponto de vista histórico, “é impossível desassociar os escritos de Helena Silveira
do desenvolvimento da crítica de telenovela no jornalismo especializado brasileiro.

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A telenovela brasileira e a crítica-processo de Artur da Távola

Maria Ignês Carlos Magno

Trabalhando sem parâmetros, na incipiência do gênero no Brasil, acabou por instituir


os cânones da crítica de telenovela” (FREIRE, 2005:246).
Outro crítico considerado como fundamental para o entendimento da crítica de
televisão e de telenovela no Brasil foi Artur da Távola. Em entrevista concedida a Denise
Freire (25/11/2004), Gabriel Priolli disse que Artur da Távola foi decisivo na história da
crítica de TV no Brasil. Ele foi o “precursor da linha de crítica que pensa o fenômeno
social da TV, ao invés do programa. Isso nos anos 80. Eu segui essa linha, e muitos
outros seguiram, como o Eugênio Bucci e Maria Rita Kehl” (FREIRE: 65-66). Ismael
Fernandes, Eugênio Bucci, Maria Rita Kehl e o próprio Gabriel Priolli se iniciaram no
exercício da crítica de TV e de telenovela nos anos de 1980. Duplo exercício porque ao
mesmo tempo em que produziam as críticas, discutiam sua função. Esther Hamburger
e Fernando de Barros e Silva também podem ser destacados como críticos de TV e de
telenovela durante os anos de 1990 até os dias atuais. Importante lembrar o poeta e
crítico Décio Pignatari que escreveu críticas de televisão e telenovela entre outubro de
1978 a abril de 1980 no Jornal da Tarde/OESP, mais os jornalistas Pedro Maia, Felipe
Fortuna e Marcelo Coelho, apenas para citar alguns que atuam no cenário da crítica
de televisão e de telenovela no Brasil. Além dos autores citados, outros nomes que se
destacam nos dias atuais são Nilson Xavier, Maurício Stycer, Keila Jimenez, Cristina
Padiglione, entre outros.
Especificamente sobre a crítica de telenovela, embora a academia estivesse se
interessando pelas telenovelas desde meados dos anos 1970, grande parte das discussões
sobre a crítica de televisão e de telenovela se dava nas páginas dos jornais. Exemplo
disso pode ser acompanhado na crítica escrita de Artur da Távola em 1976 para o jornal
O Globo cujo título era: Existe mesmo a crítica de TV? Nessa crítica Artur da Távola
discutiu o conceito de crítica e afirmava que o que fazia era crônica aplicada e não e
não crítica porque “em televisão o cronista vê junto com o público. Testemunha com
ele. Isso muda tudo”. O crítico/cronista expunha também o que entendia como ofício
do crítico e, principalmente, onde se dava a inovação da crítica de televisão. Dizia: “O
crítico de teatro influi sobre o público, a quem orienta. Mas a obra, que é alvo de sua
crítica já está montada, encenada, concebida e dirigida. O crítico de cinema, idem. O
filme já está aprisionado no celuloide. Idem o literário. O livro está escrito, impresso,
distribuído, etc.” [...] “Na televisão o crítico pode influir. Mesmo que não queira ele
participa do processo de criação da estratégia geral. Este sim é um ponto inteiramente
diferente, novo e revolucionário na história gênero que se chama crítica”. Especialmente
sobre a crítica de telenovela diz: “A própria dramaturgia televisada (a novela) vai sendo
feita enquanto está no ar (é obra aberta, há influências). Na televisão, é muito, muito,
incomensuravelmente mais intensa, a mútua influência do trinômio: público, centro
produtor, polos de repercussão (crítica)”. O texto e a discussão que faz são bem mais
amplos, mas o que me fez recuperar esses trechos para iniciar o estudo de sua produção
crítica é o dado novo: o do crítico “influir sobre o processo criativo” e a possibilidade que
ele abre no estudo da crítica em geral, e na crítica de televisão e telenovela em especial,
ou seja, entendê-la como uma crítica-processo ou ainda tentar entender como a crítica
pode ser criativa no sentido dado por Oscar Wilde nesse gênero e meio. Esse é um dos
desafios nessa pesquisa. Outro desafio é compreender no âmbito da linguagem crítica

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A telenovela brasileira e a crítica-processo de Artur da Távola

Maria Ignês Carlos Magno

que relações podemos estabelecer entre a crítica de telenovela com as discussões que
ocorriam nas demais áreas do conhecimento no período de 1970/1990.
Mário Pedrosa (1957) alertava para o fato de que, se no esforço de dar às obras um
sentido e significado no mundo, o crítico engendra uma série de atos intelectuais capazes
de distinguir, discriminar qualidades, estabelecer escalas de valores, esses mesmos atos
estão ligados à experiência do crítico. Portanto, a linguagem crítica não é uma, mas
aquela que a época lhe propõe. Nessa perspectiva, interessa acompanhar, mesmo que
não na sua totalidade, o fazer crítico de Artur da Távola.
A partir das questões levantadas por Artur da Távola sobre a existência e a função
da crítica de TV, escolhi para esse encontro, as telenovelas: O Rebu (1974), de Bráulio
Pedroso; Gaivotas (1979), de Jorge Andrade; Água Viva (1980), de Gilberto Braga e Manuel
Carlos, e Cobras e Lagartos (2006), de João Emanuel Carneiro e Antonio Pellegrino, para
mostrar como o crítico olhava para as obras e estruturava suas análises.
Sob o título: O Rebu. Um convite para o debate, escrito no jornal O Globo (1974), Artur
da Távola inicia a crítica com uma provocação: “Não aguento mais” receber tantas
cartas, pareceres, palpites, ibopes, telefonemas, e observações sobre a novela O Rebu.
Eram cartas e observações sutis e inteligentes retornos sobre a trama. “Particularmente
as cartas e alguns papos pessoais, a mostrar que Bráulio conseguiu atingir o ideal de
tirar o telespectador de sua passividade fruidora e digestiva e jogá-lo a participar critica-
mente de uma obra”. Para o crítico, isso era um mérito porque o autor tinha conseguido
sacudir o gênero. Dizia ainda que apesar da audiência ter caído porque muitas pessoas
não conseguiam entender a história, Bráulio devia estar satisfeito porque “o verdadeiro
Rebu estava se dando entre os telespectadores, ouriçadíssimos com sua obra”. Após
o relato das manifestações dos telespectadores sobre a novela, o crítico apresenta as
suas indagações. Para ele, o que estava efetivamente em questão na obra de Bráulio
Pedroso era “se o andamento tradicional das novelas em capítulos de três partes diá-
rias, bem como sua estrutura de duração, gera um “tempo dramático” que se coaduna
com o “tempo” do gênero policial suspense”. E a outra questão colocada pelo crítico se
referia à ação externa. Perguntava: “É ou não é passível telenovela apenas com ritmo
interior, sem acontecimentos expressos através da ação física dos personagens? É? Não
é?”. Em vista a tudo que o Rebu provocou, o crítico propõe um debate com “os meninos
da Globo” (Bráulio Pedroso, Daniel Filho, Homero Sanches e o diretor Jardel Mello), o
público e a imprensa. Colocava-se como mediador porque acreditava que “um debate
assim mostraria definitivamente a enorme importância cultural da telenovela (apesar
de lhe negarem status) e contribuiria para esclarecer muita coisa”. O mais importante
para o crítico ao propor esse debate era o fato de estarem inaugurando uma prática
saudável e cultural.
A crítica da telenovela Gaivotas (1979), escrita por Jorge de Andrade e exibida pela
TV Tupi é outro exemplo interessante da análise realizada por Artur da Távola. E aqui
vale recuperar a sinopse da trama para entender o olhar e a escolha do crítico para
sua análise. A trama é a seguinte: a personagem Daniel, reúne trinta anos depois
seus amigos de colégio em sua mansão, com o intuito é desvendar os mistérios que
envolveram tragicamente a formatura de 1949, onde ele saira como principal suspeito
e fora humilhado pelos colegas de classe, acusado de ser o responsável pela morte de

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A telenovela brasileira e a crítica-processo de Artur da Távola

Maria Ignês Carlos Magno

uma professora. O antigo menino pobre que estudou de graça num externato para ricos
tornou-se um dos maiores milionários do estado de São Paulo. Trinta anos depois, como
estarão seus amigos? O suspense ronda a trama pelo desconhecimento dos reais motivos
que levaram Daniel a querer reunir os amigos de colégio. Seria amor, ódio, vingança, ou
apenas vontade de tentar ensinar a eles como subir na vida, o que aconteceu com ele?
A novela contava com 31 personagens, mas o crítico escolhe a personagem Lídia,
vivida por Cleide Yaconis para analisar. Sob o título: “Não são agradáveis as verdades
ensinadas pela Lídia de Cleide Yaconis!”,publicada na Revista Amiga, em 08 de agosto de
1979, Artur da Távola elabora uma reflexão sobre o ato de envelhecer, ou melhor, sobre
a consciência do ato de envelhecer. Nessa crítica, o autor inicia o texto com a frase:
“Envelhecer é uma dor que só pode ser entendida por quem envelhece”. Depois fala sobre
a novela em si e a mudança dos padrões que a obra de Jorge de Andrade representava
para a TV Tupi naquele momento. Em seguida, passa a analisar a personagem Lídia.
Na novela Lídia era uma coroa com mais de sessenta e tantos anos, cheia de plásticas
que lutava contra o envelhecimento, e principalmente, contra o tempo. Casou-se quatro
vezes, ficou sozinha e curtia jovens e motos. Escrevia ele sobre a personagem e atriz:
essa personagem salta da tela e invade a vida de todos nós na qual as máscaras do teatro,
a significar, em suas expressões extremas, a íntima relação entre a comédia e a tragédia de
viver. Por isso, aliás, o teatro é simbolizado por duas máscaras com reações extremas. A
máscara é o símbolo da representação humana. E cada pessoa em sua vida real vai formando
uma carapaça de defesas que funcionam sobre o seu verdadeiro eu como uma máscara. É o
eu extremo também chamado persona, expressão que deu origem à palavra personagem,
isto é, a representação externa do indivíduo, aquela com a qual ele se defende do mundo
e tenta enganar a todos os demais, a começar por ele próprio, que acaba acreditando que
é o que representa ou que representa o que é. Entre rir e chorar divide a sua preipécia de
viver. Para morrer. (Távola, 1979)

Na sequência, direciona sua análise para a atriz Cleide Yaconis, a composição e a


realização da personagem por ela interpretada, e afirma: “quando ocorre haver uma atriz
de força, mérito, sensibilidade e profundidade, ela vai buscar o apecto mais mascarado
do ser e o representanta em estado extremo [...]”. Para Artur da Távola, essa personagem
saída do talento de Jorge de Andrade, “vem somar a tantas outras criações de diversos
dramaturgos que pintaram tipos assim desesperados diante do envelhecer”. O crítico
retoma as reflexões iniciais sobre a consciência e a dor de envelhecer, enfatiza uma vez
mais a precisão da atriz e o ensinamento que realiza, porque para o crítico:
a reflexão vem de refletir e quando a atriz, em sua grandeza, reflete de maneira violenta a
reação do ser humano diante da morte e da velhice, ela nos ensina a encontrar a verdadeira
juventude e a verdadeira velhice que se escondem, brincalhonas, dentro de cada idade e de
cada fase da vida.(Távola, 1979)

A crítica da novela Água Viva (1980), de Gilberto Braga escrita em colaboração com
Manuel Carlos ganhou o seguinte título: Mais que água, um elenco em carne viva, publicada
no Jornal O Globo (10-08-1980). Diferentemente da crítica anterior quando o crítico faz
uma leitura intimista da personagem, em Água Viva, a construção do elenco é o foco

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A telenovela brasileira e a crítica-processo de Artur da Távola

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central de sua análise. Nessa crítica, analisa os três tipos de personagens existentes na
novela: os atores solos, os atores que chama de elenco de apoio e aquelas personagens
que ficam na memória do público. Para Artur da Távola, não se deve efetuar uma análise
crítica de atores em função apenas dos solos, brilhantes ou dramáticos, mas também
em relação a capacidade de levar adiante o cotidiano da telenovela, no qual a criação e
a vivência profunda de um personagem passam a ser tão importantes quanto os solos
de maior intensidade. Outro grupo que merece estudo segundo o crítico, é o elenco
de apoio, que chama de elenco sacrificado, e um terceiro, que independe de qualidade
de interpretação, ou de “Criação”, são as personagens que ficam na memória. Essa
permanência, dizia, não é razão direta da qualidade da criação ou da interpretação,
mas está ligada ao outro polo da comunicação: o telespectador. Chama a atenção do
espectador para a falta de tempo “para ensaios e ritmo industrial de gravações”, para o
esforço de cada uma das personagens na trama e a “difícil tarefa de transformar seres
de ficção em seres de carne vida”, e inicia sua análise propriamente dita. E o foco é a
criação da personagem, “a base, o dia a dia, o carregar o piano da telenovela. Cenas
enormes, intensas, diárias, “quilômetros” de instantes no ar, tudo dentro da criação da
personagem”. Base que é tão importante como a presença, ou os grandes solos isolados,
e que quase nunca é levada em conta pela crítica, argumenta o autor. Dito isso, analisa
todas as personagens e como foram se constituindo no dia a dia, no cotidiano da novela.
Destaca ainda o que chama de presença, ou “uma forma de classificar certas atuações
que tanto se destacaram nos solos dramáticos como na carga intensa levada pelo ator ao
personagem ainda que em momentos distantes dos grandes solos”. Finaliza sua análise
falando da antipresença, especialmente, da magnifica criação da atriz Aracy Cardoso
no papel apagado da mãe de Janete (Lucélia Santos), e sua “capacidade de se anular
em cena” para engrandecer a personagem. Em Água Viva, em oito parágrafos, o crítico
ensina como efetuar uma análise crítica de elenco.
Para fechar esses exemplos da crítica praticada por Artur da Távola, elegi uma
crítica de 2006 sobre a novela Cobras e Lagartos, escrita por João Emanuel Carneiro com
a colaboração de Antonio Pellegrino. A escolha se deu por dois motivos: as telenovelas
apresentadas datam dos anos 1970-80, portanto, um momento específico da televisão e
das telenovelas brasileiras, e, o outro, está exatamente na possibilidade de acompanhar,
as mudanças ocorridas nas temáticas e formatos das telenovelas, e o olhar do crítico
sobre esses novos formatos e produtos.
O crítico, como quase sempre, inicia sua análise fazendo uma introdução ao tema
e a abordagem que fará da novela. Com Cobras e Lagartos não foi diferente, diferente foi
o teor da introdução. Começa falando da sua função de crítico e analista de telenovelas
em jornais e revistas, de seus estudos sobre televisão e comunicação e sobre seu livro
específico sobre a telenovela brasileira. Escreve, em seguida, que nesses quarenta anos
(desde 1968), “tentando entender o fenômeno, analisar, aprofundar o olhar crítico e até
realizar uma semiologia dessa mídia, até hoje nenhuma telenovela fundiu a minha cuca
mais do que Cobras e Lagartos. [...] confesso meu fracasso”. Exposto o espanto que a novela
lhe causou, inicia a análise crítica. E aqui o foco primeiro foi o gênero telenovela. Para ele,
Cobras e Lagartos não tinha nada do gênero. Podia ser conto de fadas, chanchada, besteirol,
psicodrama de hospício, mas uma coisa ele tinha certeza, era “uma obra corajosa e

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A telenovela brasileira e a crítica-processo de Artur da Távola

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renovadora, fábula, gozação nos espectadores”. Ou então “um marco na história do


gênero no Brasil”, daí a estranheza. Mas, e, também, para seu espanto, gostou da obra.
Considerou a obra uma crítica “implacável à ambição humana, seus valores, todos
niilistas, baseados na total descrença na condição humana”, a moral da história era o
fato de que nesse mundo só existe a ambição. Entendendo-a como a mais alucinada e
inverossímil história apresentada na televisão brasileira, finaliza a primeira parte de
sua análise dizendo: “nenhum clichê do gênero ao lado de todos os clichês do gênero”.
A segunda parte da crítica recai sobre as personagens e a verossimilhança. Apesar
da loucura e dos delírios, diz que “os atores conseguiram dar verossimilhança a delírios”.
Confessa que gostaria de citar alguns prodígios feitos pelos autores, mas precisaria de
“outra crônica para citar todos”. Aplaudia todos os atores pela proeza de conseguirem
“dar credibilidade àquele despautério de manicômio e às mais absurdas situações”. Aqui
um dado merece destaque na sua análise, a observação que faz sobre o autor da trama,
sobre a invenção das personagens e sobre a qualidade dos diálogos. A ressalva crítica
que faz se refere ao fato de a direção não ter ficado no humor e insistido em tranformar
o que já era cômico em palhaçadas, “bastava ficar no humor, que já seria ótimo”. Na
parte final da análise, confessa novamente sua derrota e traz uma questão: “ou alí se
estreou uma nova forma pós-moderna e livre de fazer novela e constituiu um marco na
história da TV, ou foi uma chanchada tão louca, mas tão louca, que acabou por agradar,
pois lá em seu manicômio diário conseguiu sacudir os clichês do gênero”, permitindo-
se ficar com a última impressão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Retomando as quatro telenovelas analisadas e a maneira como o crítico estruturava
suas críticas ou crônicas como preferia dizer, e recuperando o alerta de Mário Pedrosa
(1957) para o fato de que, se no esforço de dar às obras um sentido e significado no mundo,
o crítico engendra uma série de atos intelectuais capazes de distinguir, discriminar
qualidades, estabelecer escalas de valores, esses mesmos atos estão ligados à experiência
do crítico, gostaria de chamar a atenção para alguns aspectos de sua crítica sempre
em diálogo com o meio, com o público e principalmente com a obra. Na crítica de O
Rebu a preocupação com o gênero, com o fato de a obra ter provocado discussões entre
telespectadores, mesmo quando produzida para um meio de grandes audiências, como
a televisão, esse o verdadeiro rebu para o crítico. A preocupação teórica com a estrutura
dramática, com a ação dramática no formato das telenovelas da época, e o que entendia
como crônica, porque o cronista vê junto e podia interferir, no caso, chamar para um
debate público, os autores, o público e a imprensa, porque entendia o debate sobre uma
obra uma atitude saudável, e essencialmente porque o produto telenovela tinha um
significado fundamental na cultura brasileira.
Em Água Viva como apontei, entre outros aspectos, é a fala do crítico para os críticos,
ou, sobre a necessidade do crítico de ampliar seu olhar para a telenovela em si, e em
especial, para a formação do elenco e a construção das personagens no cotidiano de
uma telenovela. Cobras e Lagartos merece destaque não só a autocrítica do cronista sobre
seu próprio exercício, mas sua atualização. Apesar do susto e por causa do susto que o
formato lhe causou tanto na estrutura narrativa, como na construção de personagens e

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A telenovela brasileira e a crítica-processo de Artur da Távola

Maria Ignês Carlos Magno

roteiro, considerou a telenovela uma obra pós-moderna. Mesmo tendo preferido ficar com
a sua segunda hipótese, se dermos uma busca na classificação do gênero, encontramos:
comédia, drama, romance. Esse não é o único aspecto de sua crítica que merece nossa
atenção, mas um deles para pensarmos.
A crítica da telenovela Gaivotas foi deixada para o final desse estudo inicial sobre
a crítica de Artur da Távola porque, a meu ver ele realiza, nessa crítica, uma síntese de
todas as suas preocupações e análises. Em Gaivotas o crítico não escolheu a temática
da telenovela, mas elege um tema específico e uma personagem da trama: o tema do
envelhecimento e a recusa desse envelhecer, representado na trama pela personagem
Lídia e interpretado pela atriz Cleide Yaconis. Sobre o tema e a forma como Jorge de
Andrade trouxe para a telenovela, o crítico diz que, além de Jorge ter marcado uma
mudança no padrão da Rede Tupi, “há uma personagem, a Lídia, representada por essa
grande atriz Cleide Yaconis, que nos traz e joga na cara todo o absurdo de envelhecer”.
E por meio dessa personagem, o crítico tece sua análise sobre construção de personagem,
explicando não só sua verossimilhança ou adequação na história, mas a importância
da escolha da atriz que pudesse compor a personagem e, principalmente, a busca da
profundidade que a personagem requer para mostrar a “íntima relação do teatro com
a vida, a arte de representar com a arte de ser. E a mistura profunda dos dois planos, o
da representação e o da realidade”. E aqui finalizo o texto com mais uma observação:
essas e outras reflexões do crítico foram escritas nas páginas do Jornal O Globo e na
Revista Amiga, nada mais popular na época. Relendo esses textos nos dias atuais, fica a
vontade de “ver de novo” as telenovelas, agora com outros olhos.

REFERÊNCIAS.
BACCEGA, Maria Aparecida. (2000). Crítica de televisão. In: MARTINS, Maria Helena (Org).
Outras Leituras. São Paulo: Senac/Itaú Cultural
BUCCI, Eugênio.(2000). A Crítica de televisão. In: MARTINS, Maria Helena (Org). Outras
Críticas. São Paulo: Senac/Itaú Cultural
COSTA, Alberto Coelho Gomes. (2005). Telenovela e os dramas cotidianos. In: FREIRE,
Denise de Oliveira, A Crítica de Telenovela. Apontamentos para uma história. Monografia
apresentada em Jornalismo Cultural do Programa de Comunicação Jornalística da
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
FERNANDES, Ismael. (1987). Telenovela Brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense.
FREIRE, Denise de Oliveira. (2005). A Crítica de Telenovela. Apontamentos para uma histó-
ria. Monografia apresentada em Jornalismo Cultural do Programa de Comunicação
Jornalística da Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
PRIOLLI, Gabriel. (2005). Crítica da Televisão. In: FREIRE, Denise de Oliveira, A Crítica
de Telenovela. Apontamentos para uma história. Monografia apresentada em Jornalismo
Cultural do Programa de Comunicação Jornalística da Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo.
REIMÃO, Sandra. (2004). Livros e Televisão. Correlações. Cotia, São Paulo: Ateliê Editorial.
TÁVOLA, Artur da. (1975, 07 de dezembro) O Rebu. Um convite para o debate. In: Jornal O
Globo.
_______ . (1976, 29 de outubro). Existe mesmo a crítica de TV? In: Jornal/Revista: O Globo.

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A telenovela brasileira e a crítica-processo de Artur da Távola

Maria Ignês Carlos Magno

_______. (1979, 08 de agosto). Não são agradáveis as verdades ensinadas pela Lídia de Cleide
Yaconis. In. Revista Amiga, Rio de Janeiro, n. 481.
_______ . (1980,10 de agosto). Mais que água, um elenco em carne viva. In: Jornal O Globo.
VIVEIROS, Virgínia. (2005). A TV Não se esquece. In: FREIRE, Denise de Oliveira, A Crítica
de Telenovela. Apontamentos para uma história. Monografia apresentada em Jornalismo
Cultural do Programa de Comunicação Jornalística da Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo.

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Era uma vez Windeck: apropriação do modelo brasileiro
de narrativa de telenovela na teleficção angolana
Once upon a time Windeck: appropriation of the Brazilian
model of soap opera narrative in the angolan fiction
A n a Pa u l a G u e d e s 1

Resumo: A proposta deste trabalho é analisar como os roteiristas da telenovela


angolana Windeck utilizaram as estratégias narrativas criadas pelos dramatur-
gos brasileiros como modelo estrutural para contar uma história que acontece
num contexto diferente do latino-americano. Assistiu-se a todos os capítulos,
selecionando os que possuíam merchindising social e cenas sobre a realidade
angolana. Foram criadas tabelas para identificar e separar os diferentes enre-
dos de modo que fosse possível perceber a estrutura da narrativa em pequenas
células com os perfis das personagens e suas respectivas relações familiares\
afetivas e o tema social. Windeck segue o esquema narrativo das telenovelas
brasileiras, com múltiplos enredos desenvolvidos em paralelo à trama principal,
de forma independente e interdependente; também utiliza o merchindising
social e resoluções comuns às produções brasileiras.
Palavra-Chave: Telenovela. Modelo. Roteiro. Brasil. Angola

Abstract: The purpose of this study is to analyze how the writers of the angolan
soap opera Windeck used the narrative strategies created by Brazilian playwri-
ghts as structural model to tell a story that takes place in a context of Latin
American. There has been all chapters, selecting those that had social merchin-
dising and scenes on the angolan reality. Tables were created to identify and
separate the different scenarios so that it was possible to see the structure of
the narrative in small cells with the profiles of the characters and their family
relationships \ affective and social theme. Windeck follows the narrative scheme
of Brazilian soap operas, with multiple plots developed in parallel to the main
plot, independently and interdependently; also uses the social merchindising
and common resolutions to Brazilian productions.
Keywords: Soap opera. Model. Screenplay. Brasil, Angola.

INTRODUÇÃO

N O FINAL de 2014, os media brasileiros anunciaram pela primeira vez a exibição


de uma telenovela africana na televisão nacional. O ineditismo da informação
não era a genialidade do roteiro ou a inovação na linguagem da teledrama-
turgia e sim o fato de um folhetim angolano ser veiculado na terra da telenovela, da

1.  Doutoranda em Ciências da Comunicação na Universidade de Coimbra-PT, anaguedes30@gmail.com

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Era uma vez Windeck: apropriação do modelo brasileiro de narrativa de telenovela na teleficção angolana

Ana Paula Guedes

grande produtora de ficção televisiva Rede Globo. Naturalmente, os jornalistas também


atentaram-se a curiosidade antropológica de uma ficção seriada transmitir aos teles-
pectadores a cultura do povo angolano, mesmo que não de modo fiel ao cotidiano real,
de uma forma ficcionada.
Para além do olhar mediatizado sobre a exibição da telenovela angolana Windeck
no Brasil, é interessante perceber, a partir deste produto de ficção, o movimento de troca
e intercâmbio da ficção seriada dentro do Espaço Lusófono, entre os países que falam
oficialmente a língua portuguesa e também as comunidades falantes da língua espe-
lhadas em diferentes partes do mundo. No cenário da lusofonia, quem lidera a produ-
ção das telenovelas é o Brasil por meio da Rede Globo de Televisão, que exportou seus
folhetins até o ano de 2014 para 170 países2, dentre eles estão evidentemente Portugal
e as nações africanas lusófonas.
Dentro do contexto da globalização, o Espaço Lusófono ultrapassa os conceitos
geopolíticos estabelecidos pelo compartilhamento da mesma língua mãe, aproximando
os diferentes países pelo processo histórico, por uma identidade comunitária que cria
laços invisíveis por meio de afinidades simbólicas. Portanto, é compreensível que as
telenovelas de língua castelhanas, apesar de serem exibidas nos países africanos e em
Portugal, não têm a mesma aceitação das produções brasileiras pois trazem não só
uma língua diferente, mas também contextos culturais mais distanciados. Assim, a
identidade baseia-se na cultura e na linguagem, sem necessariamente estar associada
a um mesmo espaço ou lugar, é uma identificação transnacional partilhada por um
ideário e imaginário pós-colonial (APPADURAI, 1996).
A primeira telenovela brasileira exibida em Angola foi Gabriela, Cravo e Canela, em
1979, e teve grande aceitação entre o público, abrindo espaço para muitos outros folhe-
tins nas décadas seguintes. (GUIDE, 2005) A presença do Brasil em Angola estende-se
também à política, à economia, à música e aos profissionais, atualmente existem cerca
de 30 mil brasileiros vivendo no país3. Apesar das relações históricas ancestrais pro-
porcionadas pela colonização e pelo tráfico de escravos, angolanos e brasileiros pouco
se conhecem. É com esse propósito de aproximar as culturas dos países irmãos que a
telenovela Windeck é importada, pois sua exibição advém de uma parceria entre os
governos dos dois países que também tiveram a intenção de promover a presença de
atores negros (angolanos e afroportugueses) na programação nacional, interpretando
papéis em diferentes cargos sociais uma vez que a predominância no elenco das teleno-
velas brasileiras é de atores brancos. Para a veiculação de Windeck, a Empresa Brasileira
de Comunicação (EBC) uniu-se a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial da Presidência da República (Seppir) e comprometeu-se em promover debates e
discussões sobre os temas abordados na telenovela.
Windeck (chamada em Portugal de Windeck: O Preço da Ambição), foi transmitida
pelas emissoras públicas angolanas TPA2 e TPA Internacional, de 19 de agosto de 2012

2.  Informação disponível em https://br.tv.yahoo.com/blogs/notas-tv/globo-recebe-pr%C3%AAmio-por-


exporta%C3%A7%C3%A3o-programas-184439864.html. Acesso em 10 de fevereiro de 2015.
3.  Agência Brasil. Oportunidades e proximidade cultural atraem brasileiros para Angola. Disponível em: http://
tvbrasil.ebc.com.br/novelawindeck/post/oportunidades-e-proximidade-cultural-atraem-brasileiros-para-
angola. Acesso em 30 de janeiro de 2015.

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Era uma vez Windeck: apropriação do modelo brasileiro de narrativa de telenovela na teleficção angolana

Ana Paula Guedes

a 22 de fevereiro de 2013, e em Portugal, foi exibida pela RTP1 entre 8 de abril de 2013 e
31 de dezembro de 2013. Em 10 de novembro de 2014, Windeck começou a ser exibida
para os brasileiros pela TV Brasil, no horário de 23hs e e foi acrescentada ao seu nome
Todos os Tons de Angola. A produção angolana ganhou notoriedade internacional por
ter concorrido em 2013 ao Prêmio Emmy de Televisão junto com as telenovelas globais
Avenida Brasil e Lado a Lado, que foi contemplada com o prêmio.
O tema principal da telenovela Windeck é a ambição sem limites, o que as pessoas
são capazes de fazer para ter sucesso na vida mediante golpes desonestos e muitas
armações ilícitas e imorais. Toda a história gira em torno do cotidiano dos funcionários
e empresários da glamurosa revista de moda Divo, localizada em Luanda. A trama prin-
cipal envolve o casal de protagonistas, o filho do dono da Divo, Kiluangi, e a fotógrafa
Ana Maria, que foram atormentados pelas vilãs, a irmã da heróina, a malévola Vitória,
e a diretora de moda da revista e igualmente mal caráter, Rosa. Os demais funcioná-
rios conviviam entre o mundo fútil de faz-de-conta da Divo e suas vidas particulares,
localizadas em suas respectivas casas ou associadas a outros personagens dos núcleos
mais pobres, localizados no buffet Mufet ou na Igreja Global Novo Horizonte.
Windeck4 foi produzida pela Semba Comunicação, cujo proprietário é Paulino
dos Santos, filho do presidente de Angola. A equipe de roteiristas foi chefiada pela
portuguesa Joana Jorge, o que também demonstra a circulação no espaço lusófono
entre profissionais de ficção, e ela atualmente é uma das colaboradoras da telenovela
Boogie Oogie, exibida às 18hs pela Rede Globo desde agosto de 2014. Uma grande parte
das cenas fechadas da telenovela foi gravada numa produtora de vídeo localizada nas
proximidades de Lisboa, a capital portuguesa. Os roteiristas de Windeck seguiram o
modelo narrativo brasileiro, ou seja, múltiplos enredos que se desenvolvem em paralelo
à trama principal, de forma independente e também interdependente. (FILHO, 2001)
Naturalmente, não há a quantidade de núcleos dramáticos comuns às produções mais
contemporâneas brasileiras, mas há várias tramas paralelas de modo que os telespec-
tadores possam acompanhar diferentes histórias, incluindo, é claro, a principal. Além
disso, discutiram pelo menos sete temas atuais e muito presentes especialmente nas
sociedades ocidentais, tais como a homossexualidade, a violência doméstica contra as
mulheres e os jovens, alcoolismo, adoção, divórcio, entre outras temáticas.
A partir do fluxo e refluxo de produção de telenovela no espaço lusófono, relati-
vamente ao trânsito Brasil, Portugal e Angola, este artigo propõe uma análise do uso
e adequação das estratégias narrativas e modelo estrutural das telenovelas brasileiras
em Windeck. A ideia é analisar de que modo a equipe de criação da telenovela angola-
na, roteiristas portugueses e angolanos, utilizaram elementos que são específicos dos
folhetins brasileiros, tais como a narrativa multienredada (presença da trama principal
e outras várias paralelas); o marketing social ( discussão de temas sociais polêmicos no
mundo ocidental, como a homossexualidade); e associação com o tempo o cotidiano real
dos telespectadores (presença de artistas e situações do mundo real).

4.  A telenovela Windeck tem um site oficial que traz informações sobre sua história, as personagens,
bastidores e curiosidades. Disponível em http://windecktv.com/. Acesso em 01-01-2014.

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Ana Paula Guedes

O PROCESSO METODOLÓGICO DA ANÁLISE: O ESTUDO DE CASO


Para realizar esta análise, foram assistidos a todos os capítulos da telenovela
disponíveis no youtube5 e, no segundo momento, foram selecionados os que discutiam
mais claramente as temáticas sociais e os que apresentavam cenas com aspectos da
realidade sociocultural de Angola ou até situações que se aproximavam do mundo
real. Apesar da delimitação de alguns capítulos (a serem discutidos na análise interna
da obra), foi importante assistir toda a telenovela para compreeder a evolução total do
enredo principal e das tramas paralelas e também perceber como as temáticas sociais
foram desenvolvidas e discutidas ao longo das exibições.
Após a delimitação dos capítulos, foram definidos os aspectos a serem analisa-
dos. O primeiro é a construção dos perfis das personagens dos núcleos principal e
secundários: identificar as características física, psicológicas e emocionais, as quais
determinam suas atitudes frente às temáticas discutidas e relacionando, evidentemente,
ao próprio telespectador angolonano já que há personagens que representam pesso-
as simples, como a cozinheira Nazaré, o motorista Sansão, a maquiadora Mariza e a
fotógrafa Ana Maria (protagonista da trama), nem todos são ricos e glamurosos como
os membros da família Voss. A ideia foi perceber se havia uma identificação com as
personagens propostas no folhetim eletrônico angolano e se constituiam em modelos
sociais (personagens cidadãos) para os próprios telespectadores já que se trata de um
produto de uma emissora pública, que tem como uma de suas missões “assegurar
uma programação de referência, qualitativamente exigente e promotora da valorização
cultural e educacional dos cidadãos”6.
O segundo aspecto refere-se à forma como as temáticas sociais foram discutidas,
como as mensagens são transmitidas através das falas das personagens e também como
essas discussões não se associam ao contexto social do lugar, de Luanda. O terceiro
ponto foca na análise das cenas do cotidiano, aquelas que não propriamente discutem
uma temática, mas mostram a realidade nacional mediante as ações das personagens
ou a situação apresentada. E o último ponto é a organização da estrutura narrativa em
Windeck, que é construída com a história principal sendo circundada com outras tramas
secundárias que evoluem ao longo da exibição da telenovela. Assim, o olhar dirigiu-se
na construção da dinâmica e entrelaçamento das várias histórias, que eram dosadas
em cada capítulo, como um novelo de lã que se desenrola em doses equilibradas até as
diversas tramas chegarem aos seus respectivos desfechos na última semana de exibição
da telenovela, principalmente no capítulo final (PALLOTTINI, 1998).

ESQUEMA NARRATIVO EM WINDECK


Para compreeder a estrutura narrativa em Windeck e identificar de que forma as
discussões sociais foram costuradas nos múltiplos enredos, foi importante construir um
esquema visual, no qual se apresenta a estruturação das diferentes tramas associadas

5.  Os capítulos da telenovela Windeck estão numa única página do youtube. Disponível em: https://www.
youtube.com/user/windecktv. Úlltimo acesso em 10 de março de 2015 .
6.  As dez missões da TPA assim como outras informações relativas à sua administração, história e
programação estão disponíveis no site oficial da emissora. Disponível em: http://tpa.sapo.ao/. Acesso em
19/06/14.

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às personagens e às temáticas sociais. Eis abaixo tabelas criadas a partir dos perfis e
suas respectivas relações com as temáticas que vivenciam. Em alguns assuntos, os
personagens se relacionam com outros que não estão diretamente associados ao pro-
blema social discutido, mas sofre a consequência, a exemplo do cobrador do transporte
particular (a kombi do motorista Sansão), Paulo, que enfrenta o problema do alcoolismo
e constantemente é ajudado pela família do seu amigo e pelo falso pastor da Igreja
Global Novo Horizonte.

Tabela 1. Trama principal: ambição além dos limites éticos

Principais locações (cenário das ações)- a Revista Divo e a mansão dos Voss
Resolução: as duas vilãs são presas e têm de conviver juntas, uma situação ruim para ambas já que se odeiam.
Xavier é assassinado acidentalmente por sua cunhada Ofélia. Todos são punidos, com exceção de Henda que foge e
continua a aplicar golpes do baú em mulheres ricas.

PERSONAGEM PERFIL RELAÇÕES TEMA SOCIAL

 Kiluanji Voss Protagonista, bom caráter, Irmão de Luena Voss, Não há tema para o
(filho do dono da revista ingênuo, facilmente apaixonado por Ana personagem, além da luta
Divo, rico, bonito) enganado pelas mulheres, Maria, mas envolve-se pelo amor.
as vilãs Vitória e Rosa. com a vilã Vitória.

Ana Maria Protagonista-heróina, Irmã mais velha da vilã Não há tema para o
(fotógrafa da revista Divo) bom caráter, discreta, mei- Vitória, melhor amiga de personagem, além da luta
ga, ingênua e simples. Mariza e apaixonada por pelo amor.
Kiluangi.

Vitória A grande vilã, mal caráter, Irmã mais nova de Ana A luta pelo dinheiro e o
(assistente na Divo- interesseira, manipuladora Maria. Seu comparsa poder por meio de golpes
golpista) e golpista. nos golpes é o jornalista e armações contra a
Henda Salvador. família Voss.

Rosa vilã, desequilibrada, Foi amante do dono Luta pelo dinheiro e o


(Diretora de moda da maquiavélica, golpista e da Divo Xavier. Mãe de poder na Revista Divo por
Divo-golpista) arrogante. Kassia. meio de golpes.

Xavier Voss Atua como um vilão. Pai de Kiluangi e Luena, Luta pelo dinheiro e o
(Dono da Divo) Mal caráter, arrogante, esposo da desaparecida poder de forma ilícita.
manipulador, machista e Isaura e irmão do honesto
autoritário. Wilson.

Isaura Voss Calculista, forte, determi- Mãe de Luena e Kiluangi. Busca vingança contra seu
(Esposa do dono da Divo) nada e muito centrada Esposa de Xavier, que marido e justiça para seus
nos objetivos. surge após muitos anos filhos. Não há tema social
desaparecida. para ela.

Henda Falastrão, golpista, malan- Parceiro de golpes de Quer subir na vida


(Jornalista da revista Divo) dro e desonesto. Vitória. dando golpes do baú em
mulheres ricas.

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Tabela 2. Trama paralela- tema 1: homossexualidade feminina e masculina

Principais locações (cenário das ações)- a Revista Divo, a mansão dos Voss, a casa de Artur e cenas de externa (bar e rua)
Abordagens: liberdade para assumir a orientação sexual; homens casados que têm relações homoafetivas em segre-
do; inseminação artificial para casais homossexuais.
Resolução: o casal Luena e Tchyssola assume publicamente o romance, pois o pai Xavier, quem proibia a relação,
morre. Já Artur, inicia um novo relacionamento com um homem solteiro homossexual.

PERSONAGEM PERFIL RELAÇÕES TEMA SOCIAL

Luena Voss Independente, forte, Namora a estilista Tchyssola A homossexualidade femi-


(Diretora da Revista Divo) determinada, competente e Paim. Filha de Xavier e Isau- nina. Assumir a homosse-
emancipada. ra e irmã de Kiluangi. xualidade numa sociedade
machista.

Tchyssola Paim Sensível, independente, Em relacionamento sério Assumir a relação homos-


(estilista de moda em segura de suas escolhas e com Luena Voss, por quem sexual numa sociedade
Londres) intensa no amor. tem grande paixão. fechada e machista.

Artur Discreto, competente, ho- Amigo de Henda e primo Homossexualidade mas-


(Diretor financeiro da Divo) nesto e confiável. Apesar de do falso pastor. Doa seu culina. Relaciona-se com
ser homossexual, os colegas esperma a Luena para homem que não assume a
de trabalho não sabem. inseminação artificial. homossexualidade.

Tabela 3. Trama Paralela- Tema2: violência doméstica contra o menor

Principais locações- O buffet Muffet e a casa de Jair


Abordagem: mãe pobre, desequilibrada emocionalmente, surra o filho adolescente.
Resolução: por um período a mãe de Jair é presa por agressão e depois passa por modificações no seu comportamen-
to com ajuda dos amigos do buffet. Mãe e filho resgatam a relação.

PERSONAGEM PERFIL RELAÇÕES TEMA SOCIAL

Jair Adolescente, carinhoso, Filho único de Elizabete, é Vítima de violência domés-


(aprendiz de cozinheiro do responsável, gentil e calmo muito protegido por Naza- tica pela mãe. Vive o drama
buffet Mufet) apesar dos maus tratos pela ré, Iuri e Giorggio. de denunciá-la ou viver no
mãe. cerco do medo.

Elizabete Desequilibrada, nervosa, Mãe de Jair, só ganha Agride o filho diariamente


(faxineira diarista) mal-humorada e violenta. amigos quando muda seu porque acha que tem o
comportamento. direito de fazer.

Tabela 4. Trama Paralela- Tema 3: violência doméstica contra a mulher

Principais locações - apartamento de Fernando e Revista Divo


Abordagem: jovem humilde e deslumbrada envolve-se com homem mais velho e violento e não consegue livrar-se
dele. Sofre maus-tratos e cárcere privado.
Resolução: Mariza pede ajuda a polícia e resgata Nadir do cárcere privado, mas Fernando foge e não consegue ser
localizado pela polícia.

PERSONAGEM PERFIL RELAÇÕES TEMA SOCIAL

Nadir Alegre, extrovertida, fútil, Tem ótima relação com Vítima de violência pelo
(recepcionista da revista ingênua e amigável. todos na Divo. Envolve-se namorado, não consegue
Divo) com Fernado. sair do ciclo de violência.

Fernando Autoritário, violento, Namorado de Nadir e Agride as mulheres em


(rico empresário) sedutor. Esconde o seu lado amigo de Wilson, que des- todas as suas relações e
violento, que só aparece na conhece sua agressividade. sempre consegue sair bem.
intimidade.

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Tabela 5. Trama paralela- Tema 4: alcoolismo em homens

Principais locações- a Igreja Global Novo Horizonte, o Buffet e ruas de Luanda.


Abordagem: o cobrador de transportes e funcionário do proprietário da kombi, Paulo, é alcoolatra e não consegue
deixar o vício.
Resolução: Paulo, no volante do carro embreagado, causa um grave acidente, e Iuri, que estava dentro da kombi, fica
em estado de coma. Após o acidente, Paulo busca ajuda e controla seu vício.

PERSONAGEM PERFIL RELAÇÕES TEMA SOCIAL

Paulo Alegre, bom amigo, mas é Funcionário e amigo de Sofre com o alcoolismo,
(cobrador na kombi de viciado em alcool. Sansão. Também interagi mas não aceita que está
Sansão) com Iuri e Nazaré. doente.

Tabela 6. Trama paralela – Tema 5: adoção

Principais locações- o buffet Muffet e casa dos Voss


Abordagem: a adoção é revelada em duas famílias. A primeira é na família de Xavier Voss, que escondia sua adoção,
mas sua mulher revela em público, tornando-se um escânda-lo. A segunda é Iuri, que foi abandonado pela mãe
Ofélia, na época jovem e solteira, e foi adotado por Nazaré e Sansão. Em decorrêcia do acidente automobilístico, Iuri
precisa de sangue O negativo, e é Ofélia quem lhe doa.
Resolução: Após a revelação da maternidade de Ofélia, o seu marido Wilson obriga-a a assumir a responsabilidade
maternal, mas Iuri recusa ajuda e só perdoa a mãe biológica no final da telenovela.

PERSONAGEM PERFIL RELAÇÕES TEMA SOCIAL

Yuri Massano Dedicado aos pais, muito Adotado por Nazaré e O tema é adoção.
(sócio do buffet Muffet e responsável, maduro para Sansão e filho biológico Descobre que é filho de
modelo famoso) sua idade. É um jovem de Ofélia, é amigo de Ofélia e precisa lidar com
romântico e de bem com Giorgio e apaixonado por uma nova mãe em sua
a vida. Luena. vida já na fase adulta.

Nazaré Massano Mãe e esposa dedicada, é Mãe adotiva de Yuri e Adoção e o medo de
(sócia e cozinheira do amada por todos. Ajuda esposa de Sansão. Tem perder o filho para a mãe
buffet Muffet) os amigos, como o alcoo- uma relação maternal biológica.
latra Paulo e o garoto Jair. com Jair.

Sansão Massano Amigável, humilde, pai É muito dedicado a Adoção e o medo de


(dono de uma kombi, que carinhoso, alegre e traba- esposa e ao filho. Seu perder o filho para a mãe
faz transporte em Luanda) lhador. funcionário Paulo é o seu biológica.
braço-direito.

Ofélia Voss Fútil, interesseira, extra- Esposa de Wilson e mãe Preconceito contra mãe
(dona-de-casa e socialyte) vagante, grosseira, mal- de Lweiji, Lukeny e Yuri. solteira. Deu o filho para a
-educada e autoritária. Sua companheira é a adoção para não enfrentar
empregada doméstica o preconceito e a censura
Sila, quem a ajuda em da família rica do seu
suas armações. marido.

Wilson Voss Bom caráter, calmo, Irmão mais novo de Sofre a consequência do
(diretor da Divo) amigável, fiel a esposa, Xavier, esposo de Ofélia e segredo da maternidade
atencioso com as pessoas. pai de Lweiji e Lukeny. clandestina de sua esposa.

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Tabela 7. Trama paralela – Tema 6: conflito geracional entre pais e filhos

Principais locações - a casa do casal Mariza e Giorgio


Abordagem: filho adolescente de Giorgio, que não vive com ele, tem de passar um tempo em sua casa, convivendo
com Mariza, atual esposa. A resistêcia em aceitar a nova morada e a companheira do pai cria muitos conflitos para
essa família. Resolução: o convívio com o pai faz com que o garoto aproxime-se mais de Giorgio e de Mariza, crian-
do laços de afeto com ambos.

PERSONAGEM PERFIL RELAÇÕES TEMA SOCIAL

Giorgio Alegre, bom cozinheiro, Apaixonado por Mariza Conflitos geracionais com
(italiano sócio do buffet responsável e dedicado e muito preocupado om o filho adolescente.
Mufet) ao trabalho e à sua esposa Pedro. Seu melhor amigo
e o filho. é Yuri.

Mariza Simpática, alegre, cari- Apaixonada pelo marido, Conflito de relação entre
(maquiadora da Revista nhosa com os amigos e tenta conviver bem com madrasta e entiado ado-
Divo) dedicada ao trabalho. Pedro. É amiga de Ana lescente.
Maria.

Pedro Acostumado com a vida Filho de Giorgio, é amigo Conflitos geracionais com
(adolescente, filho de em Lisboa, é um rapaz de Lukeny e namorado de o pai, quem não convivia
Giorgio) questionador e decidido. Lweiji. há muitos anos.

Lweiji Jovem alegre que sonha Namora Pedro e tem uma Conflitos geracionais com
( adolescente, filha do em se tornar uma modelo ótima relação com seu a mãe Ofélia, que não dá
casal Ofélia e Wilson Voss) famosa. É muito cosumis- irmão Lukeny. nenhum tipo de liberdade
ta e fútil como sua mãe. a garota.

Lukeny Divertido e um ótimo dan- Seus amigos são Pedro e Conflitos geracionais com
( adolescente, filho do çarino de kuduro, é mais Lweiji, quem sempre lhe a mãe Ofélia, que não dá
casal Ofélia e Wilson Voss) ousado e corajoso que a dá cobertura nas suas nenhum tipo de liberdade
irmã e desobedece a mãe travessuras. a garota.
às escondidas.

Tabela 8. Trama paralela – Tema 7: falso pastor em igreja recém-fundada

Principais locações - a Igreja Global Novo Horizonte


Abordagem: pessoas que se aproveitam da fé alheia para roubar dinheiro, como Sebastião, que se passa por um
pastor e monta uma nova igreja em Luanda. Ele pedia dinheiro às pessoas em troca de milagres.
Resolução com fundo de moral: O falso pastor é desmascarado pelos fiéis e foge para não ser preso. A Igreja é trans-
formada num centro cultural para a comunidade tendo a frente a mãe de Jair.

PERSONAGEM PERFIL RELAÇÕES TEMA SOCIAL

Sebastião Trambiqueiro, enganador, Primo de Artur e pastor Comercialização da fé


(Falso pastor, golpista) falastrão. Prometia mila- (falso) da Igreja Global passando-se por um
gres para tirar dinheiro Novo Horizonte. pastor.
das pessoas.

Ajudante do pastor Homem mais velho, auxiliar do falso pastor e É vítima de um golpe de
honesto e bondoso. amigo de Elizabete. um falso pastor.

TEMÁTICAS SOCIAIS EM WINDECK : ANÁLISE INTERNA À OBRA


A escolha da produtora Semba Comunicação em narrar a rotina diária de uma
revista de moda terminou por criar perfis de personagens calcados em esteriótipos
fúteis, superficiais e despreocupados com o contexto social do país. Todos os persona-
gens relacionados à revista só falam sobre suas próprias vidas e seus pequenos dramas
humanos de forma que pareciam não viver numa grande cidade, conturbada, violenta
e cheia de contradições e miserabilidade como Luanda. Efetivamente nenhum persona-
gem, mesmo os localizados no núcleo mais pobre (na Igreja Global Novo Horizonte e
no buffet Mufet) faziam referência à cidade ou ao ritmo dela. Na fala dos personagens
a cidade não existe assim como seus problemas sociais. A vida urbana reduze-se a

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algumas cenas aéreas da cidade ou aos passeios na Kombi de Sansão. Portanto, a maior
localização da história ao lugar, no caso Luanda, acontece pela caracterização visual
das personagens, que usam figurinos, inclusive com uma forte identidade étnica, com
roupas coloridas e modelos que retratam a moda angolana. Naturalmente que o falar,
o ritmo, o sotaque da lígua portuguesa também é angolano já que a grande maioria do
elenco é formada por atores angolanos.
O discurso geral da telenovela é o da globalização, da abertura de mercado, do cos-
mopolitismo e do consumismo baseado no padrão do mundo ocidental. Uma mensagem
bem interessante quando se pensa na evolução histórica do país, a disputa interna entre
os três principais partidos nacionalistas pela obtenção poder estatal. O nacionalismo, o
discurso de pertecimento na telenovela é totalmente esvaziado e substituído pelo dina-
mismo do espaço lusófono. Pode-se constatar claramente tal mensagem na personagem
Luena Voss, interpretada pela atriz angolana Edusa Chindecasse, uma executiva bem-
-sucedida, homossexual, rica, inteligente, bonita e emancipada, que chega de Londres
para assumir a direção da Revista Divo. Capítulos depois, sua namorada portuguesa
(branca), que vivia também em Londres chega à Luanda. Londres é mostrada como
uma cidade, onde os ricos angolanos podem viver de forma liberada.
Portugal e Brasil também figuram no espaço lusófono criado em Windeck. A maquia-
dora angolana Mariza, por exemplo, é casada com o italiano Giorgio, que tem um filho
adolescente (Pedro) com sua ex-mulher portuguesa, que vive em Lisboa. O adolescente
tem de passar uma temporada com o pai e a madrasta quando a sua mãe precisa viajar
aos Estados Unidos, e com o passar do tempo (nos capítulos finais), o adolescente decide
não voltar à capital portuguesa, pois construiu uma nova vida em Luanda. O Brasil surge
na figura do diretor criativo Gabriel Castro (vivido pelo brasileiro Rocco Pitanga), que
trabalha para a empresa japonesa Skylight, e entra na história por alguns capítulos para
fazer par romântico temporário com a protagonista, a fotógrafa Ana Maria. Portanto,
constrõe-se em Windeck uma Luanda que olha para fora, além de suas fronteiras em
direção à Europa (Inglaterra e Portugal), à Ásia (Japão) e a América do Sul (Brasil), mas
pouco olha para si, para suas reais necessidades internas, para o cotidiano da capital.
Luanda aparece de forma muito tímida na telenovela, há poucas cenas apresentando
pontos turísticos, as ruas mais movimentadas e principais, o cotidiano da cidade em si.
As cenas externas são pricipalmente usadas para fazer transição entre ações, passagens
de tempo curtas (dia-noite) e para mostrar o trabalho do motorista Sansão, que dirige
uma kombi azul, fazendo transporte privado-coletivo na cidade.
A cultura de Luanda, por vezes, ressurge, no discurso de algum personagem, como
o adolescente Lukeny Voss, que é fã do estilo musical nativo kuduro. Nos capítulo 96 e
97, Lukeny e sua irmã Lweji vão a um show de kuduro, onde são mostrados jovens de
idades próximas e uma diversidade de estilos de roupas e aparência física, trazendo
mais o olhar do telespectador aos tipos urbanos existentes nas ruas de Luanda. Os
artistas que se apresentam no show são populares entre os jovens angolanos, como o
músico Cabo Snoop, que canta a canção de abertura de Windeck no primeiro capítulo.
A equipe de roteirista apostou na técnica brasileira de inserir no universo ficcional
artistas do mundo real, numa tentativa de aproximar os telespectadores ainda mais
da história.

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Apesar de haver quatro adolescentes em Windeck, os irmãos Lukeny e Lweji, o


filho do italiano, Pedro, e o aprendiz de cozinheiro Jair, não foi desenvolvido um núcleo
dramático no ambiente escolar. As cenas relacionadas à escola acontecem em frente ao
edifício escolar, mas não há professores ou colegas diferentes dos irmãos Voss, que são
alienados, fúteis e representam o culto ao consumo entre os jovens. Lukeny sonhava em
ser dançarino de kuduro e a Lweji desejava ser uma famosa top model. Os irmãos são
ricos, vestem boas roupas e estão sempre com notebook, celulares e outras tecnologias
comuns a essa faixa etária. Do outro lado de Luanda, no núcleo pobre (buffet Muffet),
está o adolescente Jair, vítima de maus tratos da mãe, que trabalha para ajudar nas
despesas da casa, mas não há discurso para incentivo aos estudos e sim para esforçar-se
em trabalhar. Perdeu-se uma oportunidade dramatúrgica para discutir a educação e o
papel dela na mudança social, especialmente porque Jair tem 19 anos, idade em que os
jovens iniciam os estudos universitários.
O tema que ganha mais espaço nos capítulos da telenovela é a homossexualidade,
que termina por trazer temáticas transversais como o preconceito social, a inseminação
artificial em mulheres homossexuais e a vida dupla de homens casados que se relacionam
clandestinamente com outros homens. Como os demais temas, o preconceito é tratado
de forma mais branda do que realmente acontece na sociedade angolana, que, como todo
mundo africano, é marcadamente machista e até mesmo violenta com os homossexuais.
O principal símbolo do preconceito em Windeck é o vilão Xavier Voss, o dono da Divo,
que faz tudo para separar sua filha da namorada. Até a morte de Xavier, no capítulo 100,
as amantes escondem o relacionamento de todos e são obrigadas por Xavier a aceitar
uma inseminação artificial em Luena para que ela tenha um filho, evitando que fosse
mal falada socialmente. O personagem Artur tem um contexto diferente. Ele relaciona-
se com um homem casado, que não assume sua homossexualidade publicamente. Nos
capítulos finais, termina a relação por perceber que o amante não mudará e inicia
um novo romance com um jovem recém-chegado de Portugal, lê-se aí mais aberto
culturalmente falando, que assume sua orientação sexual.

REFLEXÕES FINAIS
Windeck segue o modelo de produção de telenovela brasileiro já que sua equipe
de roteiristas, predominantemente formada por portugueses, adotou o esquema
narrativo multienredado, com temáticas sociais atuais. Do outro lado da tela, estão os
telespectadores também acostumados aos folhetins brasileiros, mas que pareciam desejar
uma produção mais culturalizada, ou seja, mais próxima da realidade de Luanda, do
cotidiano dos moradores do país. Entretanto, de uma forma geral, as temáticas foram
tratadas de maneira mais distanciada da sociedade angolana, além de os personagens
serem mais caricaturas de que propriamente modelos ficcionais, com os quais os
telespectadores angolanos poderiam se identificar. Aproximavam-se das construções
mais melodramáticas, desprovidas de psicologismos e muito presentes nas telenovelas
de língua castelhana (NEGRÃO, 2004)
Os capítulos da telenovela não traziam questionamentos sobre o papel do Estado
ou qualquer mudança a partir das transformações da ordem social vigente. Não havia
um discurso de mudança social ou mesmo queixa sobre algum problema urbano. Ao

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contrário, o Estado angolano ficou assegurado, salvo de quaisquer críticas ou reflexões,


já que não estava presente nas falas. É bem verdade que a presença do Estado despontou
em alguns poucos capítulos em que a polícia angolana aparecia para manter a “ordem
social”, como no capítulo 47, em que o personagem Sebastião, antes de virar o falso pas-
tor, mobiliza um grupo para atrapalhar a festa de inauguração do site da Revista Divo
a mando da vilã Rosa. A polícia, personificando a presença da ordem e bem estar do
Estado angolano, aparece para acabar com a manifestação. Lê-se nas entrelinhas que não
há liberdade de expressão nas ruas já que Sebastião foi preso e continou encarcerado até
que a queixa foi retirada após alguns dias. Associa-se também às manifestações públicas
a um ato ilícito, a uma das armações de uma vilã e não a uma forma do povo reinvindicar
por mudanças sociais.
Existe também uma apologia à vida na alta sociedade, aos ricos e glamourosos, ao
luxo, que é mostrado não só na rica família do empresário Xavier Voss mas também
surge nas personagens ambiciosas que tinham uma origem mais pobre, como Ofélia
Voss, que foi pobre até casar-se com Wilson Voss, e a vilã Vitória. O interessante é que as
empregadas domésticas (eram três) foram mostradas muito subservientes. Elas “sabiam
exatamente os seus lugares sociais” e inclusive cumpriam uma jornada de trabalho
exaustiva. A senhora empregada da família Voss, por exemplo, começava a trabalhar
pela manhã, bem cedo, e continuava a limpar a casa, à noite, quando os patrões retor-
navam do trabalho. Estava sempre disponível a qualquer hora do dia e da noite para
servir os adoráveis ricos patrões.
Alguns capítulos denotaram a corrupção presente no cotidiano local de Luanda, mas
não na esfera pública estatal. Há por exemplo um capítulo em que o protagonista, o mocinho
Kiluangi, vai buscar a vilã Vitória numa pensão e suborna a recepcionista para lhe indicar
o quarto já que era proibido dar tal informação. A corrupção surge como um traço cultural
já que está diluída no cotidiano das pessoas, em pequenos gestos como uma informação.
Se o próprio mocinho da trama, o herói, é capaz de subornar para conseguir o que deseja
de forma mais fácil, imagina os vilões. No capítulo 57, o jornalista Henda suborna uma
enfermeira para trocar o seu esperma pelo o de Artur para que ele fosse o pai biológico
do bebê inseminado em Luena. O objetivo do jornalista era chantagear a moça, em troca
de dinheiro, ameançando tomar a criança na justiça já que ela era lésbica e solteira.
Apesar do desencontro das temáticas com os contextos sociais da capital Luanda, a
telenovela Windeck conseguiu trazer para os media e a sociedade local a discussão sobre
a homossexualidade, um tema muito debatido no mundo ocidental, principalmente nas
telenovelas brasileiras que sempre trazem um personagem homossexual, mas que em
Angola ainda manifesta-se como uma grande ferida social, a qual poucos querem mexer.
Portanto, teria sido mais eficaz se o tema tivesse sido discutido sob a perspectiva cultu-
ral dos angolanos, levando em consideração a violência sofrida pelos homossexuais no
país. Entretanto, o discurso da telenovela foi mais ocidentalizado, passando uma ideia
de naturalidade e assim distanciando-se da realidade dos telespectadores. De acordo
com Maria Immacollata (2002), a identificação entre as tramas e os problemas reais são
recorrentes nas telenovelas brasileiras e são, inclusive, um anseio do próprio público,
que busca na teledramaturgia uma maior identificação com seu cotidiano. Essa mesma
expectativa aconteceu com os angolanos em relação à Windeck, incentivando a Semba a

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Era uma vez Windeck: apropriação do modelo brasileiro de narrativa de telenovela na teleficção angolana

Ana Paula Guedes

produzir em 2014 uma telenovela mais próxima da cultura local, Jikulumessu, palavra
da língua nacional Kimbundo, que significa “abre os olhos” e narra a trajetória de amor
e vingança de Joel Kapala, que na adolescência sofre com alguns colegas uma persegui-
ção agressiva na escola, o bullyng, e jura vingança. A história foi dividida em duas fases,
o começo da juventude dos protagonistas, em 1998, e depois a vida adulta, em 20147.
A ficção angolana ainda é muito recente quando comparada com o percurso da tele-
dramaturgia no Brasil ou mesmo em Portugal. Windeck é uma experiência do processo
de desenvolvimento de um produto nacional e representa uma escola para a equipe
técnica, independente da origem desse profissional (brasileiro, angolano ou lusitano) uma
vez que o desafio transcende a adoção de um modelo de estrutura narrativa; constitui
também a busca pela alma angolana, pela identidade nacional, que já foi vivida pelos
roteiristas e produtores brasileiros e portugueses, naturalmente em décadas diferentes.
Esses três países lusófonos integram um triângulo de intercâmbio de conhecimento na
area da teleficção que se configura na exportação do modelo de narrativa, no caso o
Brasil influenciou os produtores angolanos e portugueses; no trânsito de profissionais
especializados que atravessam o Antlântico num fluxo de idas e vindas intercontinentais
(fluxo e refluxo entre América Latina, Europa Sul e África); e finalmente em parcerias de
co-produção estabelecidas entre emissoras dos três países e na própria exportação das
telenovelas de língua portuguesa que circulam por todo o espaço lusófono, como as pro-
duções da Rede Globo ou mesmo Windeck, que já foi exibida em Portugal, Moçambique,
Cabo Verde e atualmente apresenta-se entre os brasileiros com a mudança no seu nome
para Windeck-Todos os Tons de Angola na TV Brasil.

REFERÊNCIAS
Conceição, Joaquim Paula da (2005), A comunicação angolana. Anuário Internacional de
Comunicação Lusófona.
Filho, Daniel (2001), O circo eletrônico: fazendo TV no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Graber, Doris A. and Smith, James M, (2005) Political Communication Faces the 21st Century.
Journal of Communication, Illinois-Chicago.
Guide, Antonio Marcos de (2007). TPA- O modelo de TV Pública de Angola. Disponível em:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27153/tde-21072009-201835/pt-br.php.
Acesso em 15 de junho de 2014.
Lopes, Maria. Immacolata (2002), Vivendo com a Telenovela. Mediações, recepção, teleficcionali-
dade, São Paulo: Summus Editorial.
Negrão, Walter (2004), O processo de criação de telenovela. In Lopes, M. I. V. (org.) (2004),
Telenovela. Internacionalização e Interculturalidade, São Paulo: Edições Loyola, pp. 205 a 221.
Pallottini, Renata (1998), Dramaturgia de Televisão. São Paulo: Moderna.
Site oficial da telenovela Windeck https://www.youtube.com/user/windecktv. Úlltimo
acesso em 10 de março de 2015 .
Televisão Pública de Angola. Disponível em http://tpa.sapo.ao/tpa/. Acesso em 21 de junho
de 2014.
TV Zimbo. Disponível em http://www.tvzimbo.co.ao/. Acesso em 23 de junho de 2014.

7.  Site oficial da telenovela Jikulumessu. Disponível em http://jikulumessu.com/historia. Visitado em 08


de fevereiro de 2015.

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O espectador decifrador: reflexões acerca da
produção de sentido do filme “Matou a Família
e foi ao cinema” (1969) de Júlio Bressane
The decoder spectator: reflections on the meaning
production of the film “Killed the Family and went
to the movies “ (1969) by Júlio Bressane
A na B e at r iz B uo so M a rc e l i n o1

Resumo: O presente estudo propõe-se a analisar alguns dos processos de pro-


dução de sentido gerados pelos elementos audiovisuais e narrativos contidos
no filme “Matou a Família e foi ao Cinema” (1969) de Júlio Bressane, parte do
escopo do chamado Cinema Marginal. Contudo, a complexidade dos elementos
narrativos e estéticos presentes no filme, caracterizado principalmente pela frag-
mentação, tanto da narração quanto de sua forma, vêm a afetar o entendimento
linear das ações trazendo à tona a ideia de uma possível postura decifradora do
espectador em anteparo à transmissão da mensagem, gerando pistas e sugerin-
do possíveis caminhos de significação norteados pela análise estruturalista e
etnológica do olhar do espectador.
Palavras-Chave: Recepção; Sentido; Cinema Marginal; Júlio Bressane.

Abstract: This study aims to examine some of the meaning production processes
generated by visual and narrative elements contained in the movie “Killed the
Family and went to the Movies” (1969) by Júlio Bressane, comes from the pur-
pose of so-called Marginal Cinema. However, the complexity of the narrative
and aesthetic elements in the film, mainly characterized by fragmentation of
both, narration as its form, comes to affect the linear understanding of actions
bringing up the idea of ​​a possible decoder posture of the viewer screen in the
message transmission, generating clues and suggesting possible significance
paths guided by structuralist and ethnological analysis of the viewer eye.
Keywords: Reception ; Sense ; Marginal Cinema; Júlio Bressane .

INTRODUÇÃO

“M
ATOU A família e foi ao Cinema” é um filme que representa uma forma
complexa e inovadora de se fazer cinema, seja por seu caráter precário
de produção, marcado muitas vezes por uma estética tosca, ou mesmo
pela adoção de uma narrativa fragmentada que acabam por desafiar o entendimento
do telespectador, marcas estas, peculiares e características do Cinema Marginal ou

1.  Mestranda em Comunicação Midiática (Unesp), Especialista em Educomunicação (USC), em Arte


Educação (Unesp) e em Educação Especial (FJB), graduada em Artes Visuais (Unesp) e em Pedagogia
(Uninove). e-mail: abbuoso@bol.com.br.

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O espectador decifrador: reflexões acerca da produção de sentido do filme “Matou a Família e foi ao cinema” (1969) de Júlio Bressane

Ana Beatriz Buoso Marcelino

underground brasileiro. Contudo, o olhar de Bressane entra aqui em conflito com o olhar
do espectador, e mergulhando-se no universo de significações propostas pelo filme,
tem-se a possibilidade de sistematizar os processos de produção de sentido presentes,
que acabam por se desdobrar em rotas variadas de significação através da análise de
seus elementos audiovisuais e narrativos, ampliando-se as possibilidades de fruição.
Para tal iniciação, entretanto, torna-se pertinente entender a complexidade contex-
tual que abarca a época em que o filme foi produzido. Em meio a um cenário explo-
sivo cultural marcado por fortes conflitos políticos e ideológicos, como a Tropicália2 e
demais movimentos engajados, o Cinema Marginal aparece como uma nova vertente
do cinema brasileiro moderno, considerado outra fase do Cinema Novo, nitidamente
inspirado no cinema underground americano aliando a invenção estética ao debate polí-
tico, somando-se a outras tradições como o cinema de Mário Peixoto, Orson Welles,
Godard e a Chanchada, junto à literatura de Lima Barreto e Machado de Assis, além
do cancioneiro popular dos anos 30. Tal ousadia gerou um rompimento radical com
o público, acostumado ao distanciamento do espetáculo, com o exclusivo objetivo de
provocar e promover o ato reflexivo para um espectador que tenta juntar peças de um
quebra-cabeça a princípio sem nexo.
O impulso emergente de artista experimental de Júlio Bressane, entretanto, questiona
a própria forma de fazer cinema, um suposto cinema de invenção (Ferreira, 2000),
acentuado pelo ajuste formal e o tratamento dado às cenas que indica ao telespectador
o avesso de soluções, prejudicando um entendimento linear das ações, direcionando
caminhos de leitura e apreciação, um estilo marcado pela heterogeneidade e disjunção
(Xavier, 2012), uma espécie de “olhar corrosivo” que percorre livremente os espaços e
cria seu próprio interesse. Assim, esta dialética de fragmentação intenciona a suspeita de
uma possível crise formal, pois o olhar da câmera de Bressane é como uma máquina que
tudo observa a seu próprio tempo, uma câmera que está longe de ser “tranquila”. Suas
imagens trazem uma dimensão polêmica, intertextual, e a recusa de envolvimento sob
uma imobilidade que pode ser considerada dialógica. A liberdade da câmera de Bressane
traz à tona uma diegese, enunciadora de um espaço off de reflexão independente das
ações, com um olhar amplificador enriquecido pela disjunção. A parataxe, entretanto,
aparece como elemento crucial para a diacronia das cenas. Sem encadeamentos ou
subordinações, as séries são descontínuas e nem sempre olhar e objeto se encontram.
Sendo assim, cada sequência é um recomeço através da liberdade do olhar a princípio
sugerindo ser arbitrário, mas que no conjunto da obra produzirá sentido. Dessa forma,
o fluxo de estímulo das ações é desencadeado fazendo com que o espectador tome uma
postura ativa, de decifrador da mensagem.

O OLHAR BRESSANEANO
Júlio Eduardo Bressane de Azevedo, nascido no Rio de Janeiro em treze de fevereiro
de 1946, é considerado um dos principais nomes do cinema nacional, de reconhecimento
internacional. Iniciou sua carreira com a segunda geração do Cinema Novo, e foi
precursor do Cinema Marginal ou Cinema underground brasileiro. Seu primeiro trabalho

2.  Vale observar a perspectiva adotada por Favaretto (2000).

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O espectador decifrador: reflexões acerca da produção de sentido do filme “Matou a Família e foi ao cinema” (1969) de Júlio Bressane

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foi em 1965 como assistente de direção de Walter Lima Jr no filme “Menino de Engenho”
e, em 1966, produziu seus primeiros curtas metragens: “Lima Barreto”, “Bethânia bem
de perto” e “Elis Regina” (inacabado), todos em gênero documental.
Nos anos seguintes une-se a Rogério Sganzerla – outro importante nome do cinema
brasileiro, para germinar os principais conceitos do Cinema Marginal e em 1970, fundam
a Belair filmes, produtora responsável pela confecção de filmes marginais, capaz de
executar seis longas-metragens em apenas seis meses, denunciando assim o caráter
precário e improvisado deste novo estilo.
Neste ano, Bressane é convocado pelo Regime Militar para interrogatório e ameaçado
de prisão por ser considerado subversivo e por seu suposto vínculo com o guerrilheiro
Carlos Marighella. É exilado na Europa por três anos, elaborando quatro filmes durante
esse período, sua maioria em Londres, retornando ao Brasil em 1973, dando continuidade
a sua produção. Nas décadas seguintes, o cineasta desenvolve um rico acervo de filmes,
e é reconhecido por seu caráter inventivo, poético e ensaísta, ganhador de diversos
prêmios nacionais e internacionais, além de importantes indicações em eventos sobre
cinema que se seguiram ao longo dos anos até os dias de hoje.

Um olhar fragmentado
A ousadia de Bressane em romper com o olhar hegemônico e domesticado do público
(Xavier, 2014) teve como precursores os pensamentos de Jean-Luc Godard, Jean-Marie
Straub, e Bertold Brecht, que propuseram o rompimento total da quarta parede, elegendo
as ações cotidianas da realidade dentro de um laboratório estético como matéria-prima
para a criação, fazendo com que o espectador se tornasse ativo e em exercício contínuo
de reflexão.
Tal caráter marcado pela experimentação fez com que Bressane questionasse a
própria forma de se fazer cinema, bastante semelhante à atitude de Marcel Duchamp, nas
artes visuais e o movimento anti arte3, no início do século XX. Tal invenção acentuada
pelo ajuste formal e o tratamento dado às cenas indica ao telespectador o avesso de
soluções, prejudicando um entendimento linear das ações, como nos aponta Xavier
(2012, p. 330): “Bressane recusa a expressividade da câmera entendida como um imitar
emoções, chegar perto para abraçar valores das personagens. Está ausente a fusão entre
consciências: personagens, autor, espectador.” O autor também argumenta que o mundo
diegético de Bressane é fragmentado, atingindo um nível radical de resíduos:
A câmera, em Bressane, diverge. (...) Mesmo quando mais encorpado, ele não “segura” a
câmera, pois esta busca outras paragens e produz material para interpolações (...). Ela peram-
bula, cria seu próprio interesse, ou se assume como extensão do corpo. (Xavier, 2006, p. 9)

3.  O conceito anti-arte apoia-se na ideia dadaísta da determinação do valor estético não como procedimento
técnico, mas como um puro ato mental, uma atitude diferente em relação à realidade: “Com suas intervenções
inesperadas e aparentemente gratuitas, o Dadaísmo propõe uma ação perturbadora, com o fito de colocar o
sistema em crise, voltando para a sociedade seus próprios procedimentos ou utilizando de maneira absurda
as coisas a que ela atribuía valor.” (Argan, 1999, p. 356). O estilo inventivo e provocativo de Duchamp chamou
a atenção da crítica pelo caráter enigmático de suas obras, consideradas quebra-cabeças desafiadores a
estudiosos e o grande público: “Precisa-se apenas de virar o caleidoscópio da interpretação para descobrir
que os fragmentos da vida de Duchamp e da sua obra, formaram um novo padrão.” (Mink, 2000, p.8).

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O espectador decifrador: reflexões acerca da produção de sentido do filme “Matou a Família e foi ao cinema” (1969) de Júlio Bressane

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Assim, Bressane nos dá outras possibilidades de olhar sobre novas perspectivas, com
base num movimento de liberdade de pensamento, como uma espécie de espectador
interativo e coautor do sentido de sua obra.

O olhar caleidoscópio do espectador


A etnologia nos ajuda a pensar no complexo percurso que o olhar do espectador
traça ao se deparar com o filme em questão, um olhar ativo, pensante e construtor de
significados. Chauí (1988) define o olhar sensível sobre um objeto a partir dos pensado-
res gregos, cujo olhar do espectador pode ser entendido como aquele que conhece, pois
“... ver é olhar para tomar conhecimento e para ter conhecimento. Esse laço entre ver e
conhecer, de um olhar que se tornou cognoscente e não apenas espectador desatento, é
o que o verbo grego eidô exprime”. (Chauí, 1988, p 35).
Então temos: eidô: ver, observar, examinar, fazer ver, instruir, informar, conhecer,
saber – do latim, da mesma raiz, vídeo: ver, olhar, perceber – e viso: visar, ir olhar, ir ver,
observar, examinar. Eidós: forma das coisas exteriores e interiores, forma própria de uma
coisa; Ideia: essência da forma. A autora explica que quem vê o eidós, conhece e sabe a
ideia, tem conhecimento – eidotés – e por isso é sábio vidente – eidulis. Specio: ver, olhar,
observar, perceber; Specto: ver, olhar, examinar, ver com reflexão, provar, ajuizar, espe-
rar; Species: forma das coisas exteriores, figura, aparência, forma e figura formadas pelo
intelecto, esplendor, formosura, semelhança (corresponde a eidós, a ideia). Spectabilis: o
visível; Specimen: a prova, o indício, o argumento e o exemplo; Spectator: o que vê, espec-
tador; Speculandus: especular, examinar, investigar, vigiar, espiar; Speculatio: sentinela,
vigia, estar em observação, pensar vendo; Spectio: a vista, a inspeção pelos olhos, a lei-
tura de agouros. Todavia um olhar que sente, vê, percebe, conhece, sabe, intui e pensa:
Esse olhar que se apercebe, atento, penetrante, atravessador e reflexivo é o de um olho
perspicax (perspicaz, engenhoso) que vê perspicue (claramente, manifestamente, eviden-
temente) porque dotado de uma qualidade fundamental que reencontra no visível e que,
dalí, por mutação, transmite ao espírito e ao intelecto: a perspicuitas, clareza e distinção do
transparente. Esse olhar é o único capaz de vidência perfeita, a evidentia, posta como marca
distintiva do verdadeiro. ” (Chauí, 1988, p. 37)

Dessa forma, entende-se que os pares: eidô-eidós, specto-species, spectio-speculatio, defi-


nem o ato de conhecer (intelectual) a partir da visão (sensível). Do olhar nasce o pensar,
um outro olhar ou um modo peculiar de olhar. Na visão conspiram duas vertentes de
pensamentos simultâneas: a passividade e a atividade: ou a visão depende das coisas, que
são causas ativas do ver, ou depende de nossos olhos, que fazem as coisas serem vistas.
Palavras imaterializantes tecem o léxico do olhar, afirma a autora. A espiritualidade da
visão não é apenas descoberta do olho, mas também do olhar poético, criador de todas as
artes, responsável pela passagem das “artes mecânicas” à dignidade de “artes liberais”.
O olhar iluminado do Renascimento, por exemplo, irradiava a luz do invisível, como
já nos dizia Leonardo, que o olho é senhor da autonomia, autor da cosmografia, conse-
lheiro e corretor de todas as artes humanas. Assim, Bressane assemelha-se a Leonardo,
quando aposta na liberdade como elemento crucial para a criação artística, em qualquer
linguagem das artes, como neste caso, o cinema.

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O espectador decifrador: reflexões acerca da produção de sentido do filme “Matou a Família e foi ao cinema” (1969) de Júlio Bressane

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Ao passar da experiência do ver – do olhar – à explicação racional dessa experi-


ência – ao pensamento ver – uma mutação ocorre, passa-se à percepção do juízo. Esta
passagem resgata como o conhecimento intelectual veio do olhar e como a visão serviu
de paradigma para o pensar. A arte, portanto, desvela os meios visíveis pelos quais as
coisas são visíveis através dos elementos formais como, a luz, iluminação, cor, sombra
e reflexo, interroga o visível para nos fazer ver o visível, ensinando-nos porque afinal
há visível.
A filosofia figurada da visão coloca a arte como “ruminação do olhar” e “inspira-
ção, expiração, respiração no Ser”, significando que olhar é ato de um vidente vendo o
visível no interior do próprio visível. A arte, então é “transubstancial do sensível”, da
carne do mundo para a carne do artista, que representa um novo visível. Se a arte é
filosofia figurada da visão é porque nos ensina algo que compartilhamos com o artista,
o simples olhar quando os nossos olhos veem. O sensível se põe a ver outro sensível,
vê-se vendo, e, se for artista, transforma sua visão em outro visível que então, nasceu
para o mundo (“deu a luz”).
Dessa forma, o olhar do cineasta e do espectador adentram um território conflituoso
e transformador de significados exponenciais. Nem sempre o que um artista materializou
de seu pensar é o que se contempla ou vice-versa. O processo de fruição artístico é em
demasia complexo por sua natureza, de caráter imprevisível, multidirecional, dinâmico
e auto transformável. Pensar um objeto artístico, entretanto, significa traçar um itine-
rário libertador e independente, marcado por impressões arbitrárias de livre pensar.
Esse caráter “interminável”, de seguir percursos imprevistos e conclusões inusitadas,
como se o espectador não obtivesse o controle, permite a ampliação de possibilidades
e um enriquecimento da compreensão, com crescente proporção do entendimento, um
pensamento que infla em anteparo à burocracia do saber permeada por paradigmas
fixos e regras ortodoxas, como um caleidoscópio de ideias sensíveis e inteligíveis.

MATOU A FAMÍLIA E FOI AO CINEMA (1969)


A presente obra foi filmada e montada em apenas 15 dias, concomitante à filmagem
de outro filme de Bressane “O anjo nasceu” do mesmo ano. Na época, em meio à Ditadura
Militar o filme chegou a ser retirado de cartaz acusado de ser subversivo. Em 1991 foi
feito um remake, dirigido por Neville d’Almeida.
O roteiro se baseia na história de um moço ocioso de classe média baixa carioca
que, em meio a suas frustrações assassina seu pai e sua mãe. Depois disso vai ao cinema
assistir ao filme “Perdidas de amor” que conta a história de Márcia, jovem de classe
média alta, casada e frustrada, que decide aproveitar uma viagem do marido para
ficar em uma casa de campo em Petrópolis. Sua mãe pede para que Renata, sua amiga,
vá até ela e converse sobre as dificuldades de um possível divórcio. Enquanto isso,
um homem mata sua mulher dentro de um barraco, aos olhos curiosos dos vizinhos.
Em outro ponto da cidade uma mulher deflagra a infidelidade do marido, enquanto
que em outro local duas adolescentes que se amam são subjugadas pela mãe de uma
delas e acaba sendo morta pela filha. Em meio à narrativa fragmentada de “Perdidas
de Amor”, um homem é cruelmente torturado até desfalecer. Também outro homem
bêbado e pobre assassina a mulher e filho por causa de uma crise financeira e possível

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infidelidade da esposa. Em meio a tudo isso, as duas amigas em Petrópolis recordam


o tempo do colégio, conversam sobre homens, casamento, festejam, fazem bagunça
em vários cômodos da casa, se acariciam, trocam beijos e finalmente se matam em
um tiroteio emblemático com as armas do marido de Márcia. Ao final de “Perdidas
de Amor” duas amigas conversam sobre ter assistido a esse mesmo filme. No total são
nove narrativas, baseadas em tragédias de jornais cariocas sensacionalistas da época,
como homicídios passionais, traições, tortura física e lesbianismo, todas filmadas pelos
mesmos atores, dificultando assim um entendimento lógico.

Alguns sentidos
Matou a família e foi ao cinema possui uma série de características cruciais ao olhar
sensível e ativo do espectador. Uma delas, bastante pontual, é a narrativa fragmentada,
que acaba confundindo todo o processo de apreciação e entendimento da história. Júlio
Bressane trabalha com essa ruptura de modo escancarado, fazendo com que o espectador
se admire ao ver aos inesperados assassinatos brutais, em debate através da ironia
provocada por outros elementos presentes do filme, como os efeitos sonoros utilizados,
sempre sugerindo sentidos ambíguos, como uma alegre marchinha de carnaval para
um corpo assassinado.
Dessa forma, mergulhando-se no universo estrutural dos planos podemos traçar um
mapa de itinerários possíveis. Na cena em que o filho manipula a navalha, encenando o
assassinato dos pais, por exemplo, ele passa a lâmina afiada em seu rosto, nos olhos, na
língua, gerando um efeito de sentido de provocação sinestésica ao espectador, como a
aflição, ou medo. A câmera nesta cena está posicionada por trás da porta, evidenciando
seu caráter voyeur, e depois em close up, de modo a enfatizar as emoções. O silêncio
acentua o tom realista e de suspense, enquanto o personagem se vê no espelho – cujo
reflexo curiosamente não aparece – denotando a ambiguidade de sua personalidade.
Enquanto o ator gesticula a navalha com o sinal da cruz, aparece em seguida um plano
com um quadro de Jesus pregado na parede, sugerindo ironicamente paganismo e
subversão, temas pertinentes ao cenário político e ideológico da época.
No plano sequência do assassinato dos pais, o filho caminha lentamente por trás
do sofá, passa a mão sobre a cabeça do pai, puxa seu cabelo e lhe deflagra a navalha
no pescoço. O pai grita curtamente. Depois o filho sai do enquadramento e ouve-se em
off um grito de horror feminino, sugerindo a morte da mãe. Com a tomada em close
up, sempre perambulando, a câmera segue o personagem que limpa a navalha suja de
sangue no sofá e sai do enquadramento, o sangue traça uma linha vertical ao escorrer
lentamente pela superfície, acentuando a dramaticidade da ação. Toda sequência de
planos aparece ao som da TV, produzindo o sentido de ironia. No plano que segue, o
personagem caminha na rua até parar, comprar um bilhete e entrar num cinema.
Na narrativa seguinte, Márcia aparece sentada cabisbaixa num ambiente externo,
junto ao marido que manipula uma de suas armas de fogo, atirando para um alvo
enquanto comenta sobre sua viagem de negócios. Pensando-se na simbologia pode-se
afirmar que a arma representa a extensão do falo, o poder relacionado ao marido da
qual a esposa está farta. Na sequência, Márcia aparece em outro plano com expressão
séria, ouve-se o ruído do avião a decolar, denotando sentido de algo desagradável que

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se soma à expressão do rosto de Márcia, como o tédio. O contrário acontece na casa


de campo, com ambientes amplos, abertos, onde se vê tudo limpo, organizado, farto,
com água escorrendo pela torneira, ou seja, sugerindo fluidez e leveza. A personagem
nada, faz ginástica e canta introspectivamente. Quando sua amiga Regina chega, se
cumprimentam e entram nos aposentos. No plano seguinte se ouve em off o som de uma
descarga, enquanto a câmera se posiciona entre a porta do que parece ser um banheiro,
onde Márcia ajeita-se no espelho. Nessa sequência de planos o sentido sintagmático em
evidência é o de eliminação de todas as impurezas físicas, de Regina, assim como as
psicológicas, de Márcia.
No fragmento narrativo seguinte, a câmera solta focaliza e uma mulher morta, de
bruços sobre o sofá, jorrando sangue pelo ferimento nas costas. Em travelling de 360º, a
câmera segue até focalizar um homem cabisbaixo sentado em uma poltrona, de frente
para o sofá, com uma faca na mão. O mesmo repete pausadamente e com clareza: “Matei
por amor” insistentemente por nove vezes. O plano todo ao som de um samba antigo
com letra romântica, enquanto olhares de crianças, adultos e idosos espiam curiosos pela
janela do escuro casebre. O sentido discursivo apresenta a intenção voyeur do ser humano,
até mesmo da câmera, e consequentemente do telespectador. Além disso, o assassinato
somado à condição precária do ambiente e a ironia acentuada pela música e dança, carac-
terizam ainda mais o conceito marginal e reflexivo desse filme, com certo ar de deboche.
Esse caráter voyeurista da câmera é uma marca constante. As próprias tomadas, por detrás
de portas ou janelas sugerem esse sentido ao espectador, como na cena em que as duas
adolescentes se acariciam, onde a câmera adota uma postura “bisbilhoteira”.
De volta aos aposentos da casa de veraneio as duas amigas aparecem sentadas, uma
de frente para a outra, conversando sobre o casamento. A postura de Regina, à direita é
mais ereta que a de Márcia, que parece se dissolver pela poltrona. No cenário aparecem
dois quadros ladeados por dois abajures, por trás das duas poltronas, sugerindo a
dubiedade, a dúvida, as relações em pares, a cumplicidade, tanto dos casamentos quanto
das amizades – posteriormente serão cúmplices criminais.
Em outro momento, uma mulher descobre um bilhete na carteira do marido, da qual
se ouve a voz em off, enquanto conversam numa mesa de refeição. Novamente a posição
da câmera está no corredor, entre portas, daí a ideia de distanciamento e separação entre
eles, além do caráter bisbilhoteiro da câmera, trazendo em evidência o sentido de phatos,
apontado por Greimas e Fontanille (1993). O plano seguinte, todavia, a mulher atravessa a
rua e dirige-se a uma grande casa seguida pelo travelling da câmera, adentra aos cômodos
por um corredor comprido e sombrio até espiar por uma porta entreaberta, volta seu
rosto para a câmera, com olhar para baixo e expressão séria, sugerindo uma possível
traição do marido. Toda sequência ao som de um jazz com notas alegres, confirmando
mais uma vez o teor irônico e profano da sequência.
A narrativa proposta a seguir trata da relação entre duas adolescentes focalizadas
no centro do plano com acentuado distanciamento, em leve contra-plongé, na rua, sobre
uma ponte de linha férrea, cujo diálogo resume-se em se matarem caso algo as impeça
de ficarem juntas, ao fundo uma paisagem sonora bastante ruidosa com veículos pas-
sando, intensificando o dinamismo da cena. No plano seguinte aparece a mãe, recolhen-
do roupas num varal no quintal do que parece ser um casebre no meio de uma favela.

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O espectador decifrador: reflexões acerca da produção de sentido do filme “Matou a Família e foi ao cinema” (1969) de Júlio Bressane

Ana Beatriz Buoso Marcelino

A mãe resmunga sobre os fuxicos dos vizinhos em relação a sua filha, ameaçando
castigá-la, se necessário. Na sequência, ambas, mãe e filha, aparecem sentadas numa
mesa comendo. A mãe questiona a filha que retruca e leva um tapa na face. A câmera
que estava posicionada na porta do cômodo se distancia em travelling out até sair do
cômodo e focalizar em close up um vaso com flores artificiais de papel, sobre uma
mesinha. Essas flores, entretanto, denotam certo valor simbólico, como algo que difi-
cilmente se estraga – diferente das flores naturais, de durabilidade limitada – além de
estarem associadas à ideia de feminilidade e de resistência do relacionamento entre
as meninas.
No plano seguinte em plongé de 50º, as meninas são focadas conversando ao pé da
porta de fora da casa, gerando o sentido de pressão e achatamento da imagem, assim
como a situação entre elas. Na sequência aparece uma composição equilibrada com
uma pequena janela destacada, em meio à parede negra, estão as duas meninas se
acariciando enquanto a iluminação cai numa escuridão total. Esse recurso tonal sugere
que o romance está às escuras. No plano seguinte a mãe deflagra o romance entre as
duas adolescentes, ao entreabrir a porta do quarto, voltando e abaixando sua cabeça. Na
sequência um corte para a cena em que a filha estrangula a mãe, batendo sua cabeça no
chão, enquanto a amiga aparece sentada numa cadeira, atrás da ação, lixando sua unha.
A mãe desfalece e surge uma música carnavalesca de Carmem Miranda cuja estrofe
diz “Oh, que terra boa pra se farrear...”. A música é tocada na íntegra adentrando uma
cena marítima, com um homem sentado folheando um jornal. O mesmo joga o jornal
e sai do enquadramento. O jornal é levado pelo vento em meio ao trânsito do cenário
urbano, como se as notícias ali pautadas estivessem soltas, vulneráveis e disponíveis
aos olhos de qualquer leitor.
Inicia-se agora uma sequência de cenas que descrevem a farra das duas amigas na
casa de veraneio, as mesmas nadam, cantam, dançam em ritmo frenético, ao som de
um foxtrot, simulam alegoricamente tocar instrumentos. Ambas finalizam adentrando
cenicamente as cortinas fechadas de um cômodo, abrem-na e depois fecham juntamente
com o tom final da música.
Bressane une esse sentido de “entre cortinas”, como algo obscuro, vedado, com o
plano seguinte da tortura de um homem, amarrado seminu numa cadeira, posicionada ao
centro de uma sala obscura, cuja claridade centra-se apenas nele, seu torturador apaga o
cigarro em seu corpo, já com a respiração ofegante e o sangue escorrendo por seu corpo é
esbofeteado por outro homem enquanto uma silhueta de outro homem ao fundo observa
tudo. Os poucos claros e muitos escuros escancarados intensificam o caráter dramático
das ações. Depois, amarrado a uma mesa horizontal, o torturado recebe choques até
desfalecer. A composição horizontalizada da cena lembra o significado da morte, algo
que já não pode mais ficar ereto. Seu corpo aparece no plano seguinte agonizando no
chão, em posição fetal, com a boca e nariz congestionados pelo sangue. A sequência toda
ao som de gritos e gemidos que tencionam a sensação de dor e aflição ao espectador.
A câmera focaliza novamente a mesa de tortura com os três torturadores ao redor do
corpo exausto do homem, em contra-plongé, engrandecendo a postura dos torturadores
que executam a última ação até que o homem perde seus sentidos.

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5724
O espectador decifrador: reflexões acerca da produção de sentido do filme “Matou a Família e foi ao cinema” (1969) de Júlio Bressane

Ana Beatriz Buoso Marcelino

De volta à Petrópolis, ao som de uma música de piano doce e melancólica a câmera


perambula pelos cômodos captando as ações triviais das amigas até encontrar a coleção
de armas do marido de Márcia. As armas são focalizadas em travelling in lentamente,
por detrás de uma porta. Novamente o caráter voyeurista da câmera e a ironia causada
pelo contraste dramático entre imagem e áudio se confirmam. Continuando a sequência,
as moças começam a bagunçar a casa, jogando almofadas, pulando na cama, no sofá,
engatinham pelo chão, como se voltassem à infância. Como num ritual mitológico Regina
distribui flores no cabelo de Márcia, traz uma galinha e caem na banheira, esfregando
as flores sobre o tecido molhado das roupas coladas em seus corpos, num misto entre
o bizarro e o erótico.
Essas ações remetem à mitologia grega que se reconhece através da iconografia das
deusas representadas pelos grandes mestres da pintura, como o renascentista Sandro
Botticelli4, assim como ao misticismo, já que os elementos simbólicos: flores brancas e
a galinha branca são inerentes ao Candomblé, cujo ritual religioso parte do princípio
da purificação através do banho com essas plantas e da mandinga com a galinha. Essa
referência de Bressane à cultura afro-brasileira ratifica sua raiz tropicalista, além de
provocar polêmicas ao telespectador mais conservador. A galinha, entretanto, também
lembra uma cena de Cabiria (1957) de Frederico Fellini, que conta a história de uma
jovem inocente e ingênua que se prostitui para sobreviver, da qual é elegantemente
resgatada por Bressane.
Voltando-se ao filme em questão, ao som off de um choro de bebê, um homem bêbado
chega em casa e discute com a mulher, saca o revólver e a mata, depois se vira e atira duas
vezes para o lado. O som é cessado sugerindo a morte da criança. A câmera perambula
pelo ambiente e mostra duas manchas de sangue sobre a manta do bebê e a mulher caída
no chão. O homem se agacha com a arma na mão, e paralelamente surge uma música car-
navalesca da Chanchada cujo refrão diz “Rasguei a minha fantasia...” que vai aumentando
de volume fazendo-o levantar e dançar cambaleando com os braços erguidos, sugerindo
o sentido de ironia e deboche como uma solução cruel em anteparo à situação.
Frente a um gramado, duas outras amigas, representadas pelas mesmas atrizes,
conversam sobre terem assistido ao filme “Perdidas de amor”. Uma delas debocha por
se tratar de cinema nacional. Essa narrativa dá o sentido de metalinguagem crítica à
própria obra, enquanto que, também, uma forma de se firmar como udigrudi nacional5,
um cinema de autor, altamente reflexivo, que não precisava de recursos tradicionais ou
mesmo luxuosos para serem legítimos.
Por fim, a cena do tiroteio emblemático entre as amigas em Petrópolis, que remete à
tragédia “Antígona” de Sófocles6, uma tentativa de se resgatar o caos anterior à ordem.
As duas portando as armas do marido de Márcia atiram uma na outra em meio a uma

4.  No mito grego as Três Graças ou Cárites aparecem mais frequentemente pelo trio: Tália, a que faz brotar
flores, Eufrosina, o sentido de alegria e Aglaia, a claridade, representam o encanto, gratidão, prosperidade
familiar, sorte, concórdia. No renascimento se tornaram símbolo da idílica harmonia do mundo clássico. Nas
representações aparecem jovens, sempre juntas, dançando ou de mãos dadas, ora vestidas, ora desnudas,
ou seminuas como em “Primavera” (1482) de Sandro Botticelli.
5.  Apelido dado por Glauber Rocha ao Cinema Marginal.
6.  Tragédia mitológica escrita por volta de 342 a.C. que conta o assassinato mútuo dos filhos de Édipo,
Etéocles e Polinices, em busca do reinado de Tebas.

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O espectador decifrador: reflexões acerca da produção de sentido do filme “Matou a Família e foi ao cinema” (1969) de Júlio Bressane

Ana Beatriz Buoso Marcelino

mise-en-scène de subir e descer escadas, dançar, cambalear e rastejar. No meio dessa


encenação há o corte para o plano da cama, onde as mesmas se acariciam, sugerindo
uma relação sexual.
Num outro plano, a câmera centraliza um vaso de flores naturais sobre a mesa do
jantar, que diferente da narrativa das adolescentes lésbicas, representam flores pere-
cíveis, assim como a suposta relação etérea entre Márcia e Regina. No plano seguinte,
Regina morre no chão da sala, em meio aos pés dos móveis. A câmera a focaliza em
close up com seu rosto tomando quase toda a tela, sangrando o enquadramento com a
arma direcionada horizontalmente em seu pescoço. Essa expressão da câmera inten-
sifica as emoções possíveis de serem lançadas pelo espectador. Márcia, por sua vez
morre caída com a cabeça no primeiro degrau e os braços abertos, numa composição
simétrica, equilibrada e harmoniosa, que chama a atenção para o detalhe da mancha
de sangue como elemento principal da fruição da imagem. Essa posição assemelha-se
a algumas representações de Cristo ao longo da história da Arte, como em uma das
perspectivas de Pietá (1499) do renascentista Michelangelo. Também lembra à serigra-
fia que Hélio Oiticica fez em homenagem ao bandido “Cara de Cavalo”, em 1968, que
morreu assassinado em uma emboscada policial, considerado um anti-herói, conforme
o emblema gravado: “Seja marginal, seja herói”. Essas duas referências dão sentidos
complementares ao filme, sugerindo no plano discursivo a ideologia implícita, como
forma de engajamento.
Toda a sequência final é ainda tensionada pelo áudio, que se inicia com o próprio
som ambiente, dos tiros, gritos e risadas, porém, após a morte inicia-se a canção de
Roberto Carlos “Ninguém vai tirar você de mim” que fala sobre amor e perda. No
final da música, a câmera focaliza os pés de Regina à direita da composição, os pés
dos móveis na parte superior, uma mancha de sangue no chão à esquerda e duas
flores brancas no centro, formando um triângulo composicional. Essa composição, no
plano do conteúdo, somada à repetição de 22 vezes do refrão “Em te perder”, último
verso da música, sugere o sentido antagônico de vida e morte, as flores, posicionadas
no ápice do triângulo, denota purificação, feminilidade, vida, mas também morte, por
seu caráter fúnebre, que somadas à mancha de sangue e aos pés imóveis de Regina
acentuam ainda mais o caráter mórbido do filme, entre os opostos vida e morte, que
sustentam toda a narrativa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em meio à complexidade apresentada pela obra, tais apontamentos de sentidos
sugerem alguns caminhos de significação através da apreciação dos elementos
audiovisuais e narrativos presentes neste filme, capazes de apontar possibilidades
de produção de sentido, fazendo com que as peças fragmentadas da(s) narrativa(s) se
encaixem num todo, metonimicamente, somando itinerários de significação e clarificando
as possíveis conclusões de um espectador sensível, ativo e pensante, digno e decifrador
da mensagem. Sendo assim, o filme de Bressane nos parece passar pelo filtro de um
caleidoscópio, quantificando um exponencial semântico ao espectador, investindo em
sua elaboração perceptiva, crítica, sensível e inteligível.

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O espectador decifrador: reflexões acerca da produção de sentido do filme “Matou a Família e foi ao cinema” (1969) de Júlio Bressane

Ana Beatriz Buoso Marcelino

REFERÊNCIAS
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Bernadet, Jean-Claude (1991). O voo dos anjos: Bressane e Sganzerla. São Paulo: Brasiliense.
Chauí, Marilena (1988). Janela da Alma, Espelho do Mundo. In Novaes, Adauto (1988). O
Olhar. São Paulo: Companhia das Letras.
Favaretto, Celso (2000). Tropicália: alegoria e alegria. Cotia: Ateliê editorial.
Ferreira, Jairo (2000). Cinema de invenção. São Paulo: Limiar.
Greimas, Algirdas Julien; Fontanille, Jacques (1993). Semiótica das Paixões. Trad. Maria José
Rodrigues Coracini. São Paulo: Ática.
Mink, Janis (2000). Marcel Duchamp 1887-1968: A Arte como Contra-Arte. Köln: Taschen.
Xavier, Ismail (2012). Alegorias do Subdesenvolvimento. São Paulo: Cosac Naify.
Xavier, Ismail (1014). O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. São Paulo:
Paz e Terra.
Xavier, Ismail (2006). Roteiro de Júlio Bressane: apresentação de uma poética. Alceu 6(12),
5-26. issn.1518-8728.v6i12p5-26.

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Ossos (1997): a dor trágica de Pedro Costa
A n a F l áv i a de A n d r a d e F e rr a z 1

Resumo: O artigo se propõe a repensar as fronteiras entre a tragédia e o trágico


que, embora em alguns momentos se apresentem borradas, em outros sugere
um caminho autônomo para a experiência trágica. Refletimos, por meio da
análise de Ossos (1997), do cineasta português Pedro Costa, sobre a possibili-
dade de ambos na arte contemporânea. “No filme, há qualquer coisa de muito
doente que começa a invadir tudo”. Com essas palavras Pedro Costa apresenta
seu primeiro filme da chamada trilogia das Fontainhas. Para incursionar neste
terreno buscaremos referência na Poética aristotélica e nas análises sobre a arte
trágica promovidas por Raymond Williams (2002), onde partimos do arcaico
para elucidar a poética trágica contemporânea, permitindo-nos lançar um olhar
sobre a construção do herói trágico atual e seu destino, em uma narrativa onde
não há mais lugar para deuses nem oráculos, abrindo possibilidades para o
desvelamento do ser humano a partir de suas tragédias pessoais.
Palavras-chave: cinema português, Pedro Costa, poética trágica.

Abstract: The proposal of this article is to rethink the borders between the
tragedy and the tragic, although at some moments they seem blurred, at others
they suggest an autonomous way for the tragic experience. We reflect, through
the analysis of Ossos (1997), by the Portuguese filmmaker Pedro Costa, about
the possibility of both in the contemporary art. “In the movie, there is some-
thing very sick that starts invading everything” (free translation); with these
words, Pedro Costa presents his first movie of the Fontainhas trilogy. To enter
this territory, we will seek reference in the Poetics of Aristotle and the analysis
about tragic art promoted by Raymond Williams (2002), where we start from
the archaic to elucidate the contemporary tragic Poetics, allowing us to provide
a look at the construction of the current tragic heroes and their destinies, in a
narrative where there is no more land for gods and oracles, opening possibilities
for the disclosure of the human being from personal tragedies.
Keywords: portuguese cinema, Pedro Costa, tragic poetic.

CAMINHOS DO TRÁGICO
Dos mortais, não há um só homem que seja feliz.
Pode, se sobrevier a prosperidade, ser um mais bem sucedido
do que o outro; mas feliz, não é nenhum.
Eurípides, Medeia, v. 1.228-1.230

1.  Mestra em Comunicação pelo ITESO/ México, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em


Comunicação da UnB, Professora Assistente da UFAL/Campus Arapiraca - UE Penedo, e pesquisadora
do Núcleo de Estudo e Pesquisa das Expressões Dramáticas- NEPED/CNPq/UFAL. aflaferraz@gmail.com.

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Ossos (1997): a dor trágica de Pedro Costa

Ana Flávia de Andrade Ferraz

A TRAGÉDIA, QUE se inicia na Grécia antiga, em 334-330 a.C, ampliou-se e não mais
se restringe à dramaturgia de Ésquilo, Eurípides e Sófocles. Embora se admita
a impossibilidade da configuração da tragédia grega nas sociedades modernas,
isso não impede que encontremos reatualizações dos conflitos trágicos na atualidade.
Da Antiguidade, passando por Shakespeare, Racine, Corneille, a tragédia sobrevive e
se coloca como gênero. No século XX, dramaturgos, cineastas e escritores revisitaram
os tragediógrafos gregos com a proposta de trazer os mitos milenares para discussão
da sociedade contemporânea. No cinema, Pasolini talvez seja a personagem principal
destas releituras. Nos anos 60, o diretor leva para o cinema os textos gregos Édipo Rei
(1967) e Medeia (1969) e faz uma releitura da obra de Ésquilo em Notas para uma Oréstia
Africana (1970). O cineasta grego Michael Cacoyannis também reconta os mitos gregos
através das películas Electra (1962), As Troianas (1965) e Iphigenia (1977). O polêmico dina-
marquês Lars Von Trier leva para a televisão o mito da feiticeira da Cólquida, Medeia,
em 1985. E esses são apenas alguns exemplos.
Porém, se na essência a originalidade do conceito de tragédia se constituiu como
um gênero dramático que floresceu na Grécia antiga, atualmente ele compreende um
vasto campo de conhecimento. Tragédia e trágico são, portanto, palavras que evocam
uma pluralidade de sentidos e percepções. Ainda que as primeiras narrativas trágicas
tenham sido encenadas nas Dionisíacas Urbanas, a tragédia transformou-se, ao longo
do tempo, em uma categoria que ultrapassa a sua designação primeva. Da Grécia antiga
à contemporaneidade, o termo veio sofrendo modificações a ponto de distanciar-se
completamente da definição aristotélica, daí considerarmos hoje como tragédia toda
sorte de acontecimento doloroso.
Se em épocas atuais a reprodução da tragédia tal qual se encenava na Grécia antiga é
impossível, seja pela descrença do homem moderno em deuses e na punição sobrenatural
(WILLIAMS, 2002), seja pela cisão entre o mítico e o racional − algo inconcebível para
os gregos antigos −, incompatível com a tragédia, ou por vivermos numa época em que
a morte é banalizada (KOSIK, 1996, p. 4-5), o trágico como experiência está cada dia
mais em voga. Um breve passeio pelos noticiários repletos de guerra, mortes, crimes
passionais, comprova que as narrativas trágicas não morreram com os poetas áticos.
Dessa forma, como afirma Lesky, “A noção de que o nosso mundo é trágico em sua
essência mais profunda é bem mais antiga que a nossa época, mas compreende-se que
especialmente esta se sinta dominada por ideias desse tipo” (2010).
Essa resistência do sentido trágico demonstra a possibilidade de sua existência no
mundo contemporâneo. Daí a importância de sua análise na obra de arte, visto que é
por meio das expressões artísticas que os sujeitos criam formas poéticas para traduzir
seu mundo particular. No cinema português encontramos poéticas trágicas na obra do
realizador Pedro Costa. Esse trabalho pretende analisar como a estética costiana traduz
a tragicidade presente na obra Ossos, de 1997.
Nesta perspectiva, pretendemos repensar as fronteiras entre a tragédia e o trágico que,
embora em alguns momentos se apresentem borradas − demonstrando a inexistência do
segundo sem sua forma objetiva −, em outros se estabelecem mais fortemente, sugerindo
um caminho autônomo para a poética trágica. Refletiremos, por meio da análise da obra
do cineasta português, sobre a possibilidade de ambos na arte contemporânea.

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Ossos (1997): a dor trágica de Pedro Costa

Ana Flávia de Andrade Ferraz

Em seu cinema, Pedro Costa, traz a periferia lisboeta para as telas, ressaltando os
conflitos e dificuldades vividos pelos imigrantes cabo-verdianos, pobres e negros no
cenário do bairro periférico das Fontainhas. Ossos mostra os conflitos, a fragilidade, o
desamparo, o destino trágico dos pobres, negros e periféricos em Portugal e Cabo Verde.
A tragédia, aqui, é fruto da experiência social, política e econômica, cuja tragicidade se dá
através da desigualdade, injustiça e privações, geradas pela sociedade atual, permitindo-
-nos, assim, lançar um olhar sobre a construção do herói trágico atual e seu destino.
Nesta narrativa não há mais lugar para deuses nem oráculos, abrindo possibilidades
para o desvelamento do ser humano a partir de suas tragédias pessoais.
Atualmente tornou-se comum designar determinado fato desagradável como sendo
uma verdadeira tragédia, ou considerar algum desfecho fora de parâmetros previsíveis
como sendo de proporções trágicas; com isto, queremos afirmar que situações desa-
gradáveis ou catastróficas, ou ainda estados de solidão ou angústia, não são elementos
suficientes para a caracterização do trágico, porquanto “este se dá [...] através da sucessão
de acontecimentos, como que numa reação em cadeia” (CABRAL, 2000, p. 15). Como
afirma Lesky:
Há algo, sem dúvida, que podemos afirmar com inteira segurança: os gregos criaram a
grande arte trágica e, com isso, realizaram uma das maiores façanhas no campo do espíri-
to, mas não desenvolveram nenhuma teoria do trágico que tentasse ir além da plasmação
deste no drama e chegasse a envolver a concepção do mundo como um todo (2010, p. 27).

Com isso podemos assegurar que trágico e tragédia não são sinônimos, embora se
relacionem, já que a tragédia é a objetivação, em forma de obra de arte, da tragicidade e
onde “o trágico – o princípio da tragicidade − encontrou uma das suas expressões mais
grandiosas” (ROSENFELD, 2010, p. 14).
O curioso é que o termo grego tragikon tem significados diversos dos que comumente
aplicamos. Pode significar o mesmo que esplêndido, magnífico, arrogante, a depender da
situação em que é usado, porém sempre de uma forma negativa. Dificilmente é aplicado
a situações e acontecimentos tristes. “Em síntese, tragikon descreve, na maioria das vezes
pejorativamente, algo ou alguém que excede, ou especialmente quer exceder, as normas
humanas comuns aplicadas a todos os outros” (MOST, 2001, p. 23). A palavra indica,
portanto, algo que ultrapassa os limites, que excede, que é fora do normal.
O conceito de trágico estudado por Peter Szondi em Ensaio sobre o Trágico também
merece atenção. Szondi diferencia a poética da tragédia (desenvolvida e inaugurada por
Aristóteles) da filosofia do trágico (iniciada por Schelling). Embora haja relação entre
ambos, em linhas gerais, a filosofia do trágico ocupa-se do fenômeno do trágico e não do
efeito ou elementos constitutivos da tragédia, da poética da tragédia e sua configuração
como gênero artístico.
Nesse caso, uma poética filosófica investiga as tragédias como exemplos a partir dos
quais se pode extrair a concepção do trágico que, em vez de apenas determinar um
gênero poético, diz respeito à relação dialética entre o absoluto e o individual, entre o
divino e suas manifestações, entre o universal e o particular (SUSSEKIND, em SZONDI,
2004, p. 17).

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Ossos (1997): a dor trágica de Pedro Costa

Ana Flávia de Andrade Ferraz

Portanto, se a tragédia na Antiguidade se constitui como um gênero dramático


decorrente de um contexto específico, na modernidade ela se expande e representa uma
componente fundamental da existência humana. Se, por um lado, deve-se considerar a
especificidade da tragédia como algo que difere dos infortúnios cotidianos, por outro,
não se pode mais, na atualidade, falar em tragédia na sua forma genuína. Pode-se, no
entanto, perceber o trágico enquanto ponto de partida para se refletir sobre sua presença
nas expressões artísticas contemporâneas. Nesta transição, da tragédia clássica à tragédia
moderna, a mesma moira2 se reconfigura. As instituições modernas substituíram os
deuses gregos; os castigos divinos passaram a ser impostos pelo sistema social vigente,
gerador de injustiça, desalento e solidão.
Se articularmos a tragédia a algo doloroso, fruto das condições geradas pelas
sociedades atuais, ou de catástrofes, como experiência coletiva de sofrimento, o termo
se amplia. Assim, como sugere Castro Filho: “Parece que não mais estamos tratando, ao
menos exclusivamente, de teatro, mas, em verdade, da construção histórica das visões
de mundo que perpassam, como um todo, o plano da cultura” (CASTRO FILHO, 2009,
p. 110-111).
As vivências trágicas, então, são contemporâneas. Desaparecida a capacidade de
reprodução da tragédia antiga nos séculos anteriores ao calendário cristão, permanece
a tragicidade. Conquistando autonomia, liberto da tragédia grega (ou para além dela),
o trágico segue presente. A tragédia ultrapassa a sua concretização nas Dionisíacas
Urbanas; seu conceito passa a ser universal e pode ser encontrado na dramaturgia,
na narrativa literária ou na filosofia. Muito embora, assim como afirma Lesky, “toda
problemática do trágico, por mais vastos que sejam os espaços por ele abrangidos, parte
sempre do fenômeno da tragédia ática e a ele volta” (2010, p. 23).
Ou seja, em alguma medida, o trágico englobará elementos característicos da tragédia grega
que, no entanto, rearticulam sua potencialidade simbólica, tornando possível a conflagração
de novos sentidos; por um lado, remetem a suas referências originais, mas, por outro, pouco
guardam de sua matriz geradora, uma vez que encontram outra razão de ser no tempo em
que se manifestam. (CASTRO FILHO, 2009, p. 117-118).

Este trabalho busca elementos que nos permitam analisar o trágico plasmado na
poética da arte cinematográfica de Pedro Costa, entendendo como essa tradição teatral
migrou para o cinema e como o cinema a reflete, o que deteve e o que rechaçou nesta
transição. Pois,
[...] hoje em dia nossos teatros quase não produzem novas tragédias, mas nossas estradas as
produzem todo fim de semana. Agora o trânsito é ‘trágico’, não o mito. Portanto, enquanto a
palavra ‘trágico’ pretende definir o estado do homem no seu caráter permanente e imutável,
não é de fato difícil entender sua invenção como um sintoma característico da modernidade.
Pois a vida só pode parecer trágica quando, por um lado, nós ainda mantemos a expectativa
de que o mundo deveria ter sentido, mas, por outro, não estamos mais certos de que há um
deus que garanta o seu sentido. (MOST, 2001, p. 35).

2.  Destino trágico.

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Ossos (1997): a dor trágica de Pedro Costa

Ana Flávia de Andrade Ferraz

OSSOS (1997): UM TRÁGICO MODERNO

A presença do trágico na sociedade moderna e contemporânea é cada vez mais


marcante. Isso pode ser observado através das suas representações estéticas nas
expressões artístico-literárias, em textos dramáticos, no cinema etc. Para Raymond
Williams, esta resistência do sentido trágico demonstra a possibilidade de sua existência
no mundo moderno, onde se percebe a importância de uma teoria trágica porque é “por
meio dela [que] compreendemos muitas vezes mais a fundo o contorno e a conformação
de uma cultura específica” (WILLIAMS, 2002, p. 69).
Nesta passagem da tragédia grega para o trágico moderno percebe-se a distinção
entre ambas na própria construção do herói trágico versus o herói moderno. Nas tragédias
gregas o herói era fruto de uma hamartía, ou seja, uma falta cometida pelo indivíduo
ou pelo seu grupo de sangue, gerando uma herança de dívida para com os deuses. O
sofrimento do herói trágico grego se dava por uma falta por ele conhecida e reconhecida.
Desta forma, ele resistia à dor que lhe era imposta e aceitava seu destino imutável, a
moira, porquanto merecedor e ainda assistido pelos deuses. Nosso herói atual, o herói
moderno, contrai uma dívida não causada por ele ou por seu grupo sanguíneo. O herói
do trágico não sofre pelas mesmas razões que o seu ancestral. Na modernidade a tragédia
é gerada pelas relações e conflitos sociais, não é uma causa de castigo divino, como nos
gregos. O homem moderno, envolto no trágico, vive sua dor e abandono sem saber que
hamartía cometeu, sem ter a possibilidade de mudar o seu destino e sem ser amparado
pelos deuses. “Ele é um indivíduo solitário, abandonado à mais absoluta fragilidade de
si mesmo [...]” (CABRAL, 2000, p. 26).
Foi da experiência do seu segundo longa, Casa de Lava, que Pedro Costa chega
a Ossos, em 1997. A pedido de personagens de Casa de Lava, Costa vai ao bairro das
Fontainhas, na periferia de Lisboa, entregar cartas e encomendas para os familiares dos
cabo-verdianos que ali moravam. De suas visitas ao bairro, surgiu a famosa trilogia das
Fontainhas: Ossos, No quarto da Vanda e Juventude em Marcha. Ossos é o último filme do

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Ossos (1997): a dor trágica de Pedro Costa

Ana Flávia de Andrade Ferraz

diretor realizado em película e onde predominam atores profissionais. Foi estreado no


Festival de Veneza de 1997 e participou da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo,
do Festival Internacional de Cinema de Thessaloniki, do Festival de Mar del Plata, na
Argentina e do Festival de Belfort, onde ganhou o grande prêmio do júri.
O filme conta a história de um bebê de poucos dias que vai sobreviver à tentativa de
morte provocada por sua mãe, Tina. A criança, resgatada pelo pai, passa a viver nas ruas,
alimentando-se e vivendo da caridade alheia. “Por duas vezes, quase será vendido, por
desespero, por amor, por quase nada. Mas Tina não se esquece. Com a ajuda das suas
vizinhas do bairro a vingança aproxima-se...”3. As personagens de Ossos são trágicas
modernas, que vivem sua moira gerada pelas conflituosas relações sociais e afetivas.
Abandonadas e solitárias, essas personagens reconhecem sua absoluta fragilidade, porém
não mais através da percepção de sua pequenez diante dos deuses, mas sim da sua
completa impossibilidade de promover mudanças. Desde o bebê, passando pelos pais e
enredando todas as narrativas pessoais do filme, as personagens de Pedro Costa trazem
a marca trágica e, em uma medida ou outra, demonstram a inexorabilidade do destino.
Desde o seu primeiro longa, O sangue (1989), Pedro Costa já revela sua predileção
pelas trajetórias de pessoas solitárias, desprotegidas, desorientadas, sofridas. O abandono
à própria sorte, a solidão e a entrega ao seu destino trágico perpassam as histórias das
personagens em Ossos. Como que servindo de linha que alinhava a tênue narrativa da
película, o bebê talvez seja a figura mais trágica do filme. Passando de mão em mão,
primeiro pela mãe, que tenta matá-lo, depois por Clotilde, que o protege e o vinga,
passando pelo pai, que o vende, o recém-nascido acaba aos cuidados de uma prostituta,
não antes de perambular pelas ruas, carregado pelo pai em um saco plástico de lixo. Seu
desamparo é absoluto. Fugindo do maniqueísmo, seus pais, figuras trágicas, oscilam
entre o viver e o morrer, o dar vida e o provocar morte.

3.  Sinopse extraída em: http://www.amordeperdicao.pt/basedados_filmes.asp?filmeid=192 Acesso em:


30/10/2014.

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Ossos (1997): a dor trágica de Pedro Costa

Ana Flávia de Andrade Ferraz

Foi com Ossos que o cineasta português descobriu a atmosfera do bairro das
Fontainhas, comumente chamado pelos portugueses de bairro de lata4, na periferia de
Lisboa, onde habitam pessoas pobres. No filme também percebemos uma das marcas
do cinema de Costa: a metáfora. O título da película faz alusão à visibilidade dos corpos
que resistem, mas colocam à mostra as situações extremas que experimentam.
‘Os ossos são a primeira coisa que se vê nos corpos’, disse Pedro Costa numa entrevista.
Mas são também a última coisa que resta deles. O que mais me espanta neste espantoso
filme é que ele vai, incessantemente, osseamente, brancamente, do mais exposto ao mais
oculto, da evidência básica da nossa imagem à da desaparição dela. É um filme de corpos
vivos atravessado pela morte ou por aquilo que na morte implica o desaparecimento dos
corpos. (COSTA, J.B., 2010, s/p).

É moderna e clara a cisão entre a experiência da tragédia ática e a narrativa trágica


moderna ou contemporânea. O herói trágico mostra essa cisão. O herói trágico grego,
ao cometer a desmedida, a hybris, se prende nas teias da moira, no destino cego, e, ainda
que tente, não consegue se desvencilhar do caminho traçado pelos deuses. O homem
moderno, ao viver a experiência trágica moderna, também vive a vagar, e, apesar de ter a
possibilidade de lutar contra o seu destino trágico, concretamente, poucas oportunidades
de mudança se apresentam. Neste sentido, as personagens de Ossos são exemplos típicos
dos heróis trágicos, que aguentam seu destino, lutam contra ele, reconhecem sua dor
trágica, mas se mostram impotentes para impedir sua queda trágica.
Raymond Williams, ao refletir sobre a tragédia na sociedade ocidental, diferente
da Grécia antiga, nos diz que a tragédia moderna é fruto da experiência social, política
e econômica, onde a força trágica se dá através da desigualdade, injustiça e privações
geradas pelo capital. Portanto, se por um lado Williams se distancia da forma grega,
por outro reforça que a “tragédia [...] não é meramente morte e sofrimento, e com certeza
não é acidente. [...] Ela é, antes, um tipo específico de acontecimento e de relação que são
genuinamente trágicos e que a longa tradição incorpora” (2002, p. 30-31).
Através da lente moderna de Raymond Williams observamos que o fenômeno
trágico vem se manifestando das mais variadas formas. Williams, ao tratar do abandono
do ser humano no mundo moderno, nos fala da existência de dois tipos de tragédia:
uma, que “termina com o homem nu e desamparado” exposto à própria sorte e aos
descaminhos que ele mesmo desencadeou; e outra, que superficialmente muito se parece
com aquela, na qual o indivíduo se encontra nu e desamparado. Segundo ele, essa forma
de tragédia concentra toda a energia nas ações desse ser solitário, dependente de si
próprio, que “deseja, se alimenta e luta a sós” (p. 143).
Williams esclarece que o ser humano moderno, ao nascer, já herda uma dívida contra-
ída pela sociedade, e essa será a sua grande luta a ser travada para escapar da frustração:
A tempestade que acomete a vida não é necessariamente desencadeada por qualquer ação
pessoal; ela começa quando nascemos, e o nosso abandono a ela é absoluto. A morte por
oposição é uma espécie de realização, capaz de trazer, comparativamente, ordem e paz.
(Williams, 2002, p. 144).

4.  Favela.

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Ossos (1997): a dor trágica de Pedro Costa

Ana Flávia de Andrade Ferraz

Seguindo a perspectiva de Williams, se Ossos é a “antecâmara da morte”, Costa


neste filme parece advogar pelo direito, pela capacidade de ter controle, se não mais pela
sua vida, que seja pela sua morte. Desta forma, é bastante simbólico que as tentativas
de suicídios perpetradas por Tina sejam sempre sabotadas, sempre malsucedidas. Um
filme por onde “nem a morte consegue passar”.

É talvez essa uma das principais ‘tomadas de poder’ (e daí sua possível ligação com o
cinema dito moderno) dos filmes de Pedro Costa: a possibilidade de morrer, de agir sobre
si mesmo fatalmente, de fazer-se imagem apesar de tudo, de causar a própria morte, pois
essa parece a única possibilidade de vida para aqueles personagens de quem já se tomou
tudo (GOMES, 2010, s/p).

Como categoria estética, Williams, “modernizando” os conceitos, nos traz algumas


concepções que interessam ao nosso trabalho. Aqui nos deteremos em duas: a tragédia
social e a tragédia pessoal, por acreditarmos serem essas as categorias mais marcantes
na obra do cineasta português Pedro Costa. Williams chama de tragédia social aquela
em que os “os homens são arruinados pelo poder e pela fome; uma civilização destruída
ou destruindo-se a si mesma”; e de tragédia pessoal aquela em que “homens e mulheres
sofrem e são destruídos nos seus relacionamentos mais íntimos” (p. 161).
A destruição é total em Ossos: homens e mulheres se destroem e são destruídos pela
miséria e pela fome. Tina luta sozinha contra seu espírito agonizante, pretendendo levar
o filho consigo, matando-o com gás de cozinha; o pai agoniza pelas ruas, mendigando
e vendendo seu rebanho; Clotilde batalha para fugir da sua própria degradação e de
sua relação afetiva tumultuada, enquanto tenta salvar a amiga Tina. O filme é lento,
escuro, quase sujo, com uma narrativa aberta, quase inexistente, que resiste em indicar
os caminhos a seguir.
Ossos é uma espécie de crônica urbana em estado de suspensão temporal. Nada
parece indicar o tempo em que se passa. Que década? Que ano? Que mês? Tampouco

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Ossos (1997): a dor trágica de Pedro Costa

Ana Flávia de Andrade Ferraz

se sabe o tempo transcorrido no filme. A elipse e o fora de campo, comuns na estética


costiana, se fazem presentes em Ossos. Algo que insiste em mostrar que, mais que uma
fábula, uma história a ser contada, Ossos é um estado de coisa, é um clima, um ambiente.
Essa atualidade do filme, capaz de inquietar após quase duas décadas de seu lançamento,
deve-se justamente ao fato de apresentar essa temporalidade suspensa e por apresentar,
também, temáticas ainda vivas, atuais, não superadas.
Ossos (1997) é, assim, um filme de urgência: urgência de captar o que habitualmente o cine-
ma não regista, urgência de ir além da superfície, do que se costuma mostrar no cinema,
urgência de estabelecer e apurar um ponto de vista que se revele adequado, urgência de
não ignorar, de não virar as costas e passar a outra coisa. (FERREIRA, 2009, p. 54).

O filme termina com o olhar de Tina diretamente para a câmera, apagado/encerrado/


concluído com o fechar de uma porta. Esse fechar de portas é significativo na obra
do cineasta e faz parte de sua narrativa. É metafórico, mas também literal: mostra a
ausência. A ausência do espectador. O lugar onde ele não entra. A porta fechada para o
espectador. É algo que acontece longe dos nossos olhares, como se não fosse permitido
acessar. É o cinema como arte da ausência.
[...] Ossos termina exatamente como o filme Street of shame (Akasen chitai, 1956), de Mizoguchi:
há uma jovem que cerra a porte e o contempla, e a porta é fechada sobre você. Isso quer
dizer que você não pode entrar no filme. A partir desse ponto lhe é vedada a entrada. Ou,
de outro modo, é melhor que você não entre no filme, nesse mundo. (COSTA, P., 2010, p. 150).

O olhar final de Tina, seguido do fechar de portas, é inspirado no filme Rua da


vergonha, do cineasta japonês Kenzi Mizoguchi. O filme passa-se em um bordel e relata o
quotidiano das mulheres que trabalham ali, ao mesmo tempo que discute a legalização
da prática da prostituição em um Japão pós-Segunda Guerra Mundial. Para Costa, trata-
se de um filme que reflete sobre como um homem pode se impor sobre uma mulher e

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Ossos (1997): a dor trágica de Pedro Costa

Ana Flávia de Andrade Ferraz

sobre o mal que os homens infligem entre si. Imagina, portanto, que o que Mizoguchi
quis dizer com o fechar de portas no final da película foi: “A partir daqui esse filme não
é mais possível, vai se tornar tão insuportável que talvez não haja mesmo um filme”
(COSTA, P., 2010, p. 150). E é isso o que ele faz também com Tina. Ossos fecha essa porta,
esconde algumas coisas, diz “que você pode sentir dor, mas não lhe diz tudo” (COSTA,
P., 2010, p. 152). Assim, como afirma Viegas, para Costa,
Fechar a porta é uma metáfora para a relação entre o espectador, o ecrã e as personagens,
um ponto de vista filosófico, uma ideia de cinema sobre aceder ou não às imagens, ao
que se passa dentro, expondo, deste modo, o olhar intrometido do espectador (através da
câmera, através do cineasta, através do ecrã) deste modo se criam n dimensões de acesso
á realidade: não há um só ponto de vista mas o ponto de vista exposto pelo cineasta pode
ser paradoxal- pode esconder, pode estar fora de campo. (VIEGAS, 2012, p. 93).

O cinema de Pedro Costa não abre todas as portas. Como ele mesmo afirma, seu
cinema “é uma porta fechada que nos deixa a imaginar” (COSTA, P., 2010, 147). Um cine-
ma de cenas longas, onde o foco narrativo se dispersa e dilui; uma arte, como já afirmou
Rancière, “pouco preocupada em contar histórias”. Nas palavras de Costa: “[...] ao começar
a pensar num filme, seja sempre a pensar a partir de alguém, real, um rosto, uma maneira
de andar, um sítio, mais do que uma história” (COSTA, P., em (MOUTINHO, 2005, p. 29).
Mas isso não significa que seja um cinema puramente contemplativo. Algo fica e
perdura. Pode-se chamar de uma arte antiaristotélica, anticartártica. Pedro Costa afirma
que “ver um filme significa não chorar quando chora um personagem” (COSTA, P., 2010,
p. 151). Percebe-se então que o cineasta não busca a empatia, tão apregoada pelo filósofo
grego, e que por tanto tempo pautou não apenas o teatro, mas a dramaturgia de um
modo geral. Uma arte causadora de piedade e medo, sentimentos típicos da tragédia
ática. Com a finalidade de purificação ou expurgação desses sentimentos, a catarse,
alcançada através da experiência artística, deveria acalmar as paixões do espectador.
Ora, o que Pedro Costa quer é exatamente o contrário. Quer que seu filme dure. Quer o
prolongamento, mas também o conflito. Quer fechar a porta, quer vetar a possibilidade
de os espectadores se verem na tela e, com isso, sentirem prazer. Quer, assim,
[...] um espectador que se posiciona contra mim, talvez mesmo contra o filme, mas ao menos
estará, assim espero, desconfortável e em guerra. Ou seja, esse espectador estará situado na
dificuldade do mundo. Não é bom que alguém se sinta confortável o tempo todo. (COSTA,
P., 2010, p. 153).

E conforto é tudo o que não se sente diante da obra de Pedro Costa.

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pedrocosta-heroi.blogspot.com.br/.

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Ossos (1997): a dor trágica de Pedro Costa

Ana Flávia de Andrade Ferraz

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Williams, Raymond. (2002) Tragédia moderna. Tradução: Betina Bischof. São Paulo: Cosac &
Naify.

Filme
Ossos
Portugal/França/Dinamarca | 1997 | 35mm | cor | 94’
Direção e argumento: Pedro Costa
Produção: Madragoa Filmes
Coprodução: Gemini Films, Zentropa Productions
Produtor: Paulo Branco
Fotografia: Emmanuel Machuel (AFC)
Montagem: Jackie Bastide
Som: Henri Maikoff
Edição de som: Jean Dubreuil
Música: Wire, Os Sabura
Elenco: Vanda Duarte, Nuno Vaz, Maria Lipkina, Isabel Ruth, Inês Medeiros, Miguel Sermão,
Berta Susana Teixeira, Clotilde Montrond, Zita Duarte, Beatriz Lopez, Luísa Carvalho,
Aresta, Ana Marta, Iuran, Ricardo Tavares, Carolina Eira.

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Cine de epidemias: pestes y virus
en la imaginación de la catástrofe
Epidemics cinema: pests and viruses
in the imagination of catastrophe
Baldomero Ruiz Ortiz1

Resumen: El siguiente trabajo ofrece un panorama de películas en las que una


epidemia infecciosa amenaza la vida humana y provoca grandes desastres. El
objetivo es demostrar algunas características de las enfermedades epidémicas
en el cine mediante la distinción de las diferentes causas que puede tener una
infección. En este sentido, se encontró que las epidemias cinematográficas
suelen tener alguno de los siguientes orígenes: laboratorios civiles y militares,
invasiones extraterrestres, territorios o personas extranjeras, contacto con
animales, fenómenos sobrenaturales, contacto sexual, contaminación del entorno
y, en algunos casos, desconocido. Esta forma de presentar las películas en las
que se pone en escena una epidemia permite delimitar algunos rasgos de las
enfermedades infecciosas en su dimensión imaginaria.
Palabras clave: Epidemias, virus, pestes, ciencia ficción, cine.

Abstract: The following paper offers an overview on movies in which an infectious


epidemics threats human life and causes major disasters. The main objective is to
demonstrate a few epidemic disease characteristics in movies, by distinguishing
different causes of an infection. On this matter, it was found that epidemics often
have one of the following origins: civil and military laboratories, alien invasions,
foreign people or territories, animal contact, supernatural phenomena, sexual
contact, environmental pollution, and in some cases, unknown. This way of
presenting films, in which an epidemic is taken into the big screen, allows the
presentation of a few features of infectious diseases in their imaginary dimension.
Keywords: Epidemics, viruses, pests, science fiction, cinema.

CINE DE EPIDEMIAS

L A HISTORIA de la humanidad es también la historia de las enfermedades y epi-


demias que una y otra vez han afectado la vida de las sociedades, influido en sus
hábitos e inflamado su imaginación. Este trabajo intenta aportar al conocimiento de
las dolencias de tipo infeccioso2 y las crisis epidemiológicas, pero no como fenómenos

1.  Doctorando en Ciencias Sociales, Universidad Autónoma Metropolitana, Unidad Xochimilco,


baldomeroruiz@outlook.com.
2.  Hay cinco tipos diferentes de microorganismos o agentes biológicos que pueden ocasionar patologías
infecciosas en el ser humano. Éstos son los priones, virus, hongos, bacterias y parásitos (Pérez, 2000, p.17).

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Cine de epidemias: pestes y virus en la imaginación de la catástrofe

Baldomero Ruiz Ortiz

biológicos, sino como construcciones imaginarias y colectivas; es decir, como el resultado


de los discursos, prácticas y valores que circulan en una sociedad (Díaz, 1996, p. 11).
En relación con lo anterior, en los años cincuenta del siglo pasado Edgar Morin
(2011, p. 189) sostenía que el cine es la industria y “máquina-madre” de lo imaginario.
En años más recientes, Gérard Imbert (2010, p. 11) agregó que el cine es una “cámara de
eco” del imaginario colectivo que guarda una incontable serie de imágenes, obsesiones,
deseos, miedos y fobias en las cuales nos podemos reconocer como sujetos sociales. Las
enfermedades infecciosas y las epidemias, al ser parte fundamental de la historia de
nuestra especie, también han sido fuente de misterio, temor, fantasías e innumerables
experiencias trágicas.
A lo largo de sus casi doce décadas de historia, el cine ha llevado a la pantalla una
gran cantidad de ficciones en las que el brote de una enfermedad infecciosa desencadena
un conflicto sanitario y social que, en ocasiones, culmina con el fin de la civilización.
Estos filmes se pueden ubicar dentro de diferentes géneros, pero la ciencia ficción ha
sido particularmente prolija en mostrar la destrucción de nuestra sociedad a partir de
la propagación de un virus, bacteria o microorganismo de enfermedad.
En el ensayo La imaginación del desastre, Susan Sontag (2008) explica que la ciencia
ficción fílmica evidencia algunas de las angustias y deseos más extendidos en la sociedad.
Esta autora considera que la principal diferencia entre la ciencia ficción literaria y la
cinematográfica es que la primera conlleva una elaboración intelectual que suele tener
más apego a los aspectos científicos; por su parte, el género fílmico proporciona una
elaboración sensorial que hace participe a los espectadores de la fantasía de la destrucción
por medio de imágenes y sonidos. Por ello, la ensayista norteamericana destaca que la
catástrofe es un elemento central de este género cinematográfico:
Las películas de ciencia ficción no tratan de ciencia. Tratan de la catástrofe, que es uno de
los temas más antiguos del arte. En las películas de ciencia ficción, la catástrofe rara vez es
concebida intensivamente; lo es extensivamente (…) Así, el cine de ciencia ficción (…) está
relacionado con la estética de la destrucción, con las peculiares bellezas que pueden pro-
curarnos los estragos, la confusión. Y lo más importante de una buena película de ciencia
ficción radica precisamente en la imaginería de la destrucción (Sontag, 2008, p. 26).

A partir de una exploración de filmes en los que se pone en escena una epidemia
catastrófica (o la amenaza de ésta) hemos elaborado una clasificación a partir de la
procedencia de las enfermedades infecciosas que aparecen en las películas. Esto permitió
observar que los agentes de infección pueden tener uno o varios de los siguientes
orígenes: laboratorio, militar, extraterrestre, territorio o persona extranjera, contacto
con animales, fenómeno sobrenatural, contacto sexual, contaminación (ambiental, de
los alimentos) y desconocido.

ORÍGENES DE LAS EPIDEMIAS


Las películas donde el agente de infección fue diseñado o estaba almacenado en
un laboratorio hasta que, por diversas razones, el microorganismo se sale de control y

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Cine de epidemias: pestes y virus en la imaginación de la catástrofe

Baldomero Ruiz Ortiz

provoca gran destrucción tienen como antecedente diversas historias de influjo romántico
como la del aprendiz de brujo de Goethe, la novela Frankenstein o el moderno Prometeo de
Mary Shelley o la leyenda de Fausto. En todas estas narraciones el problema principal está
relacionado con el mal y la calamidad que provoca el deseo desmedido de conocimiento
así como la transgresión que se comete cuando los seres humanos intentan dominar
las fuerzas que lo exceden. De forma parecida a estas historias, en muchas películas de
ficción las enfermedades de laboratorio tienen un poder destructor que, al ser liberadas
o salirse de control, se vuelve contra los seres humanos que intentaron dominarlas.
Algunos ejemplos de los filmes en los que se muestra la creación de una enfermedad
en un laboratorio y que por, alguna razón, se sale de control o es liberada intencionalmente
son los siguientes:

Tabla 1. Películas con enfermedades surgidas de un laboratorio.

Película Motivo de la epidemia

007 Al servicio de su majestad (John Barry,1969) Un científico loco intenta liberar una enfermedad para controlar
el mundo

Shivers (David Cronenberg, 1975) Error científico (un científico intenta eliminar una enfermedad
que ha creado, pero se produce una epidemia después de que
el hombre se suicida)

Rabid (David Cronenberg, 1977) Error científico (resultados inesperados en una operación médi-
ca experimental)

Doce monos (Terry Gilliam, 1995) Científico loco libera un virus

Misión Imposible 2 (John Woo, 2000) Falla de seguridad (un empresario farmacéutico crea un virus
mortal y el virus es robado por un grupo de criminales)

Anthrax: Terror biológico (Rick Stevenson, 2001) Falla de seguridad (intromisión de activistas a un laboratorio)

Exterminio (Danny Boyle, 2002) Falla de seguridad (intromisión de activistas a un laboratorio)

Soy leyenda (Francis Lawrence, 2007) Error científico (resultados inesperados en un tratamiento
contra el cáncer)

Exterminio 2 (Juan Carlos Fresnadillo, 2007) Falla de seguridad (contacto entre una persona sana y una
enferma en cuarentena)

H1N1: Virus X (Ray Stevens Harris, 2010) Enfermedad se sale de control (una empresaria farmacéutica y
un científico malvado intentan diseñar un virus altamente letal)

El planeta de los simios. Revolución (Rupert Wyatt, Error en el laboratorio (un asistente de laboratorio inhala una
2011) droga experimental)

Una parte importante de las películas de epidemias no sólo exponen que las enfer-
medades provienen de un laboratorio sino de centros de investigación militar que buscan
desarrollar armas biológicas. En estas películas también se suele exponer una situaci-
ón en la que los agentes de infección se salen de control o en la que el uso (accidental
o deliberado) de armas biológicas trae consecuencias catastróficas. Las películas que
ubicamos en este rubro se enumeran en la siguiente tabla:

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Cine de epidemias: pestes y virus en la imaginación de la catástrofe

Baldomero Ruiz Ortiz

Tabla 2. Películas con enfermedades como armas biológicas.

Película Motivo del brote

El último hombre sobre la Tierra (Ubaldo Ragona, 1964) Guerra bacteriológica entre Estados Unidos y China

La última esperanza (Boris Sagal, 1971) Guerra bacteriológica entre Estados Unidos y China

The Crazies (George A. Romero, 1973) Accidente de un avión militar norteamericano

Virus (Kinji Fukasaku, 1980) Liberación accidental de un virus diseñado por el ejército
norteamericano para disuadir a la Unión Soviética

Epidemia (Wolfgang Petersen, 1995) El ejército de Estados Unidos mantiene oculta la existencia
de una enfermedad similar al ébola y hace un arma biológi-
ca con el virus

Resident Evil, el huésped maldito (Paul W.S. Anderson, Liberación accidental de un arma biológica diseñada por
2002) una empresa que hace armamento

V de venganza (James McTeigue, 2005) Un partido de extrema derecha libera un virus en Inglaterra
para llegar al gobierno y ejercer el poder de forma totalitaria

El peor de los miedos (Chris Gorak, 2006) Ataque terrorista a la ciudad de Los Ángeles

Planeta Terror (Robert Rodríguez, 2007) Militares y contrabandistas disputan el control de un arma
biológica

El día del apocalipsis (Breck Eisner, 2010) Accidente de un avión militar norteamericano

Aislados (Carl Tibbetts, 2011) La armada británica hace experimentos con presidiarios y
uno de ellos se escapa

Es importante señalar que el uso de las enfermedades infecciosas como armas


biológicas no es un asunto exclusivo de la ficción cinematográfica. El científico e histo-
riador Michael Oldstone (2002), ha proporcionado varios ejemplos históricos en los que
un ejército utiliza una enfermedad para eliminar o debilitar a su enemigo.3 Además, la
relación entre enfermedades infecciosas y confrontaciones militares tiene un antecedente
importante en el discurso médico del siglo XIX. Así lo señala, el Dr. Ruy Pérez Tamayo
quien afirma que en el mismo siglo que vio consolidarse la microbiología y en el cual
fueron fundamentales las aportaciones de científicos como Louis Pasteur y Robert Koch,
la comunidad científica adoptó una metáfora militar para describir las acciones de los
agentes de infección en el cuerpo humano:
Durante el siglo XIX los médicos y biólogos concibieron las enfermedades producidas por
agentes biológicos como verdaderas guerras entre el hombre y las bacterias. Esta visión
coloreó el lenguaje que se usaba para describir los distintos descubrimientos de un carácter
bélico que todavía se conserva. Así, los gérmenes invaden o penetran al organismo, atacán-
dolo con sus distintos mecanismos de agresión, mientras el cuerpo humano contrapone sus
mecanismos de defensa (Pérez, 2000, p. 23).

3.  Por ejemplo, este autor relata que en 1793, durante la guerra entre Francia e Inglaterra por los territorios de
América del Norte, el general británico Geoffrey Amherst ordenó propagar la viruela entre las poblaciones
indígenas que se resistían al dominio inglés. (Oldstone, 2002, pp. 52-53).

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Cine de epidemias: pestes y virus en la imaginación de la catástrofe

Baldomero Ruiz Ortiz

Por otro lado, una lectura crítica de los filmes que presentan enfermedades
infecciosas como armas de guerra requiere identificar el contexto social y político en
los que se realizaron las producciones. Por ejemplo, una aproximación analítica de filmes
como V de venganza (James McTeigue, 2005) y El peor de los miedos (Chris Gorak, 2006)
puede tomar el contexto de alarma internacional producida por los ataques terroristas
en ciudades norteamericanas y europeas durante los primeros años del siglo XXI.
En cuanto a los filmes que tratan sobre microorganismos extraterrestres que
invaden la tierra y ocasionan graves enfermedades en los seres humanos encontramos
los siguientes títulos: La invasión de los ladrones de cuerpos (Don Siegel, 1956), X-7 Space
Master (Edward Bernds, 1958), Más allá de la barrera del tiempo (Edgar G. Ulmer, 1960), La
amenaza de Andrómeda (Robert Wise, 1971), Los usurpadores de cuerpos (Philip Kaufman,
1978), Invasores (Oliver Hirschbiegel, 2007). Estas películas constituyen una variante del
cine de invasiones extraterrestres que tuvo especial auge en los años de la Guerra Fría
y que tuvo como una de sus inspiraciones la carrera espacial entre Estados Unidos y
la Unión Soviética.
El cine de epidemias presenta otro tipo de invasiones provenientes de un lugar
ajeno al “nuestro” en las películas donde las epidemias surgen en un país extranjero.
En estas películas parece hacerse manifiesto el problema de la otredad y de la identidad
nacional. La peste en Nosferatu (Friedrich Wilhelm Murnau, 1922), por ejemplo, es un
mal que llega junto al vampiro, procedente de un territorio extranjero:
Otra forma en la que se manifiesta el poder de Nosferatu es la peste, epidemia con la que
no está familiarizada Bremen y que provoca la muerte de sus habitantes. En esa época los
alemanes habían firmado el Tratado de Versalles, quedando sin posibilidades de tener ejér-
cito y completamente desarmados, el mal provenía del exterior (Erreguerena, 2007, p. 127).

Las películas que encontramos en las que las enfermedades infecciosas proceden
de una persona o territorio extranjero son las siguientes:

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Cine de epidemias: pestes y virus en la imaginación de la catástrofe

Baldomero Ruiz Ortiz

Tabla 3. Películas con enfermedades “extranjeras”

Lugar de origen Personaje que la lleva al


Película Enfermedad o procedencia de Lugar al que llega nuevo territorio
la infección
Nosferatu (1922) Peste Transilvania Bremen, Alemania Nosferatu, el vampiro
El doctor Arrowsmith Peste Las Antillas Nueva York Tres polizones de un barco
(1931) (posiblemente inmigrantes
ilegales)
Pánico en las calles Peste Posiblemente Orán, Nueva Orleans, Un marinero e inmigrante
(1950) Argelia Estados Unidos ilegal, posiblemente arme-
nio o checo
The Killer that Stalked Viruela Cuba Nueva York, Una traficante de diamantes
New York (1950) Estados Unidos
Nosferatu, vampiro Peste Transilvania Bremen, Alemania Nosferatu, el vampiro
de la noche (1979)
Epidemia (1995) Motaba Zaire California Un simio importado ilegal-
(similar al ébola) mente
Ebola Syndrome (1996) Ébola Sudáfrica Hong Kong Un criminal fugitivo
Ébola: el renacer de Desconocida Rumania Dinamarca Un inmigrante rumano
satanás (1999) (similar al ébola)
Fatal Contact: Bird Influenza Guangdong, China Estados Unidos Un empresario norteameri-
Flu in America (2006) (y el mundo) cano que viaja a Guangdong
[Rec] (2007) Desconocida Desconocido, posi- España Posiblemente una niña
(similar a la rabia) blemente Portugal portuguesa
Contagio (2011) Influenza Hong Kong Estados Unidos Una empresaria norteameri-
(y el mundo) cana que viaja a Hong Kong
Guerra Mundial Z (2013) Desconocida Posiblemente Corea Estados Unidos Desconocido
(similar a la rabia) del Sur (y el mundo)
Flu (2013) Influenza Hong Kong Corea del Sur Un inmigrante, posiblemen-
te hongkonés

Los filmes de nuestro acervo que muestran padecimientos infecciosos provocados


por el contacto con un animal son los siguientes:

Tabla 4. Animales que transmiten enfermedades en películas de ficción

Película Enfermedad Animal vector4


Nosferatu (1922) Peste Ratas
Dr. Arrowsmith (1931) Peste Ratas
Nosferatu, vampiro de la noche (1979) Peste Ratas
Epidemic (1987) Peste Ratas
La peste (1992) Peste Ratas
Epidemia (1995) Motaba Mono capuchino
(similar al virus ébola o marburgo)
La cabaña sangrienta (2002) Influenza Cerdos
Fatal Contact: Bird Flu in America (2006) Influenza Aves
Flu Birds (2008) Influenza Aves
Contagio (2011) Influenza Cerdos

26.  El vector es un organismo hospedero o intermediario que permite la transmisión de una enfermedad
entre un sujeto enfermo y uno sano. La rabia, por ejemplo, tiene como vectores a los perros, roedores,
murciélagos y tlacuaches (Pérez, 2000, p. 41). Cabe mencionar que la asociación de la peste con las ratas y
la influenza con los cerdos y aves tiene un antecedente histórico ya que, efectivamente, estos animales han
transmitido o facilitado la transmisión de estas enfermedades al ser humano.

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5744
Cine de epidemias: pestes y virus en la imaginación de la catástrofe

Baldomero Ruiz Ortiz

Otra característica de algunas epidemias en el cine de ficción es que su origen se


explica en términos místicos o sobrenaturales. Algunos ejemplos son las películas de
Nosferatu (Friedrich Wilhelm Murnau, 1922 y Werner Herzog, 1979). En ellas, la peste es
un acompañante del vampiro y sólo se puede acabar con la enfermedad si éste último
es destruido.
También podemos incluir en el rubro de epidemias provocadas por una fuerza sobre-
natural las películas en las que se pone en escena el relato bíblico conocido popularmente
como “las plagas de Egipto” (Éxodo 7-11). Las dos versiones de Los diez mandamientos,
dirigidas por Cecil B. DeMille en 1923 y 1956, incluyen estos pasajes en los que el pue-
blo egipcio sufre diez castigos divinos: la conversión del río Nilo en sangre, invasiones
de ranas, mosquitos y moscas, la muerte de los animales de ganado, una epidemia de
llagas en las personas y los animales, granizo, una invasión de langostas, tinieblas y la
muerte de los primogénitos.4 Por otro lado, la película Prueba de fe (Stephen Hopkins,
2007) presenta una nueva versión de las plagas de Egipto que, en esta ocasión, azotan a
un pequeño poblado norteamericano en los primeros años del siglo XXI.
En las películas Ébola: el renacer de satanás (Anders Rønnow Klarlund, 1999) y [Rec]
(Jaume Balagueró y Paco Plaza, 2007) encontramos enfermedades extrañas de las cuales
se ofrece una explicación sobrenatural asociada con el Diablo. En el primer filme, la
muerte de un inmigrante rumano en Dinamarca por una dolencia similar al ébola es,
en realidad, una manifestación de la próxima encarnación de Satanás y, en el segundo,
el brote de zombis rabiosos parece haber iniciado con la posesión diabólica de una niña
portuguesa.
El contacto sexual es una más de las razones por las cuales inicia una epidemia en
varias películas. Filmes como En el filo de la duda (Roger Spottiswoode, 1993), Filadelfia
(Jonathan Demme, 1993) y El club de los desahuciados (Jean-Marc Vallée, 2013) son melo-
dramas relacionados con el sida, una enfermedad infecciosa que se adquiere por medio
del contacto sexual. Otros filmes como Shivers (1975), Rabid (1977) y Ebola Syndrome (1996)
también muestran que el brote de una epidemia se debe al contacto sexual con sujetos
infectados. En las primera película el resultado es una horda de zombis desenfrenados
sexuales; en la segunda, surge una epidemia de sujetos rabiosos y violentos; en la tercera,
un personaje malvado se contagia de ébola al violar a una mujer enferma en Sudáfrica
y después lleva la enfermedad hasta Hong Kong.
El origen de otras epidemias fílmicas se debe a la contaminación ambiental e indus-
trial. En la película No Blade of Grass (Cornel Wilde, 1970), un virus letal aparece como
resultado de la excesiva polución en el planeta. En Tierra de Zombies (Ruben Fleischer,
2009) el brote de una enfermedad que convierte a las personas en zombis se debe a la
contaminación de los alimentos. El joven sobreviviente que protagoniza el filme expli-
ca que la catástrofe apocalíptica inició cuando una persona comió una hamburguesa
contaminada. En esta explicación es inevitable la referencia implícita a las vacas locas5

4.  Perret; et al. (2001) sostienen que la quinta y sexta plaga de Egipto tienen una descripción similar a la
del carbunco o ántrax.
5.  La enfermedad de las vacas locas forma parte de un grupo más amplio de patologías conocidas como
encefalopatías espongiformes las cuales, en sus diferentes variantes, afectan a los seres humanos (la
enfermedad de Creutzfeldt-Jakob) y a otras especies como las ovejas (enfermedad de scrapie). En los años
ochenta y noventa del siglo pasado, el brote de esta enfermedad en vacas de granjas inglesas y el posterior

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Cine de epidemias: pestes y virus en la imaginación de la catástrofe

Baldomero Ruiz Ortiz

y a la crisis sanitaria derivada del aumento de esta enfermedad en el ganado de granjas


inglesas.
Finalmente, en muchas películas ni el espectador ni los personajes que viven una
epidemia saben cuál es la causa o el origen de la enfermedad. Esto sucede en algunas
películas de zombis como El amanecer de los muertos vivientes (George Romero, 1978) y
su remake El amanecer de los muertos (Sack Snyder, 2004). En estas dos película no hay
una explicación clara de la epidemia que transforma a los humanos en zombis y sólo
se presentan mensajes de científicos y autoridades políticas en los que se especula la
propagación de un virus o un agente infeccioso desconocido.
Dos ejemplos adicionales de películas con epidemias cuyo origen es desconocido
son Niños del hombre (Alfonso Cuarón, 2006) y Ceguera (Fernando Meirelles, 2008). En la
película de Cuarón, la humanidad padece una enfermedad que los ha dejado estériles a
todos y el mundo está sumido en el caos por conflictos armados, religiosos y disturbios
sociales. Por su parte, Ceguera es una adaptación de la novela Ensayo sobre la ceguera de
José Saramago. En esta historia, los habitantes de una ciudad padecen de forma repentina
una particular epidemia de ceguera que ilumina completamente de blanco su visión.
La clasificación de películas que se presenta en este trabajo es una vía para obtener
una mirada panorámica (e inevitablemente sesgada) de las películas sobre epidemias.
Los ejemplos propuestos representan una ínfima parte de la filmografía en la que
una infección epidémica hace aparición en el cine; sin embargo, es posible vislum-
brar algunos rasgos de las enfermedades epidémicas en su dimensión imaginaria.
Por ejemplo, estos conflictos frecuentemente son ocasionadas por los mismos seres
humanos y, particularmente, por la principal institución social encargada de producir
el conocimiento: la ciencia.
En el cine de epidemias que forma parte de la ciencia ficción es común observar
que la ciencia tiene un carácter fáustico; es decir, en este tipo de fabulaciones se cometen
transgresiones en aras de un conocimiento o poder que no se puede controlar y que
termina dañando no sólo a sus autores, sino a la sociedad misma. Las películas en las
que un virus de laboratorio se sale de control (por un error o por la maldad de algún
personaje) son ejemplos de esta visión fáustica de la ciencia.
En contrapartida, el cine también suele mostrar otra imagen más optimista de
la ciencia y el conocimiento. Ese tratamiento favorable lo podemos relacionar con
otra figura mítica, la de Prometeo: “En la mitología griega Prometeo robó el fuego
a los dioses y se lo dio a los hombres. De ahí la idea de prometeico para designar a
los optimistas tecnológicos” (Carvalho, 2012, p. 87). En las películas de ciencia ficción
que tratan sobre alguna epidemia, la ciencia muestra alguno de sus dos rostros o los
alterna.6 De esta manera, el conocimiento científico puede ser tanto el instrumento

incremento de casos de la enfermedad de Creutzfeldt-Jakob en humanos provocó alarma y sospecha de


que la causa de la infección de las personas estuviera vinculada con el consumo de carne contaminada.
Finalmente, se descubrió que la infección del ganado vacuno se debía a que, en los años setenta, la industria
productora de carne de res comenzó a alimentar a los animales con carne y huesos molidos procedentes
de otros animales de ganado (algunos posiblemente infectados de scrapie). Esto con el fin de que las
proteínas hicieran crecer más rápidamente a las vacas. Sin embargo, esta práctica propicio la aparición de
la enfermedad de las vacas locas (Walters, 2011, pp. 50-56).
6.  Las delimitación de dos polos opuestos en las representaciones sociales o las construcciones imaginarias

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Cine de epidemias: pestes y virus en la imaginación de la catástrofe

Baldomero Ruiz Ortiz

que provoca la catástrofe como el que permite llegar a una solución. Se puede decir
que las imágenes fáusticas y prometeicas de la ciencia son las caras complementarias
de una misma moneda que frecuentemente el cine de ficción hace girar para el entre-
tenimiento de su público.

REFERENCIAS
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Revista Iberoamericana de discurso y sociedad. Lenguaje en contexto desde una perspectiva
crítica y multidisciplinaria, 2(2), pp. 105-130.
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(1990-2010). Madrid: Cátedra.
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2 de septiembre de 2014 de: http://dx.doi.org/10.4067/S0716-10182001000400008
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Explorando mundos. Madrid: Valdemar.
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Walters, M. J. (2011) Seis plagas modernas y cómo las estamos ocasionando. México: Fondo de
Cultura Económica.

de la ciencia ha sido un tema de varias investigaciones. En un estudio sobre el periodismo científico, Dorothy
Nelkin (1990) encontró que la prensa de los Estados Unidos tiende a mostrar una actitud ambivalente
hacia la ciencia ya que las publicaciones periodísticas edifican sus imágenes en términos paradójicos.
Desde el punto de vista de las representaciones sociales, Berruecos (2000) analiza un corpus de artículos de
divulgación científica sobre la clonación de la oveja Dolly y encuentra proyecciones valorativas asociadas
a los mitos de sacralización y satanización de la ciencia y los científicos. Por otro lado, Martha Tappan
(2008) encontró que en la película El sexto día (Roger Spottiswoode, 2000) también se edifican este tipo de
imágenes ambivalentes de la ciencia.

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A representação do menor infrator no cinema
e na imprensa: o caso de De Menor (2013)
The representation of the young offender in film
and press: the case of Underage (2013)
Caio L amas1

Resumo: delinquentes, predadores, pivetes, bandidos, assassinos, trombadinhas,


traficantes, menores. Muitas são as designações que circulam para especificar
um caso peculiar de infrator: a da criança e do adolescente, frequentemente
encontradas na imprensa por meio de notícias ligadas a roubos, tráfico de
drogas e assassinatos ligados à classe média. Entretanto, há um filme brasileiro
contemporâneo que aborda o assunto de maneira bastante peculiar: em De
Menor (2013), não se trata de um garoto pobre e negro, mas de um branco e
pertencente à classe média. Partindo de pensadores como Norbert Elias,
Goffman, Robert Stam e Tomaz Tadeu da Silva, o presente artigo procura
evidenciar as estratégias narrativas articuladas no filme, como elas dialogam
com as narrativas da imprensa e de que forma repercutem a problemática do
menor infrator. Para tanto, é traçada uma análise comparativa entre o filme
e uma reportagem do programa jornalístico Fantástico que também trata do
tema, chegando à conclusão de que, no drama, está implícita uma postura de
distância com relação ao tratamento dado pela imprensa à questão, sobretudo
assumindo a perspectiva de que não há como estabelecer certezas inequívocas
a respeito da problemática do menor infrator no país.
Palavras-Chave: menor infrator. Análise fílmica. Estigma. Cinema brasileiro.

Abstract: predators, chits, thugs, murderers, pickpockets, drug dealers, underage.


There are many names circulating to specify a peculiar case of offender: the
children and adolescents, often found in the press by means of news related
to theft, drug trafficking and murders linked to the middle class. However,
there is a contemporary Brazilian film that approaches the subject in a very
peculiar way: in Underage (2013), it is not a poor and black boy, but a white
one and belonging to the middle class. Starting from thinkers such as Norbert
Elias, Goffman, Robert Stam and Tomaz Tadeu da Silva, this article seeks to
highlight the narrative strategies articulated in the film, as they dialogue with
the narratives of the press and how impacting the problem of young offender.
Therefore, a comparison is drawn between the film and a report in the news
program Fantastico that also deals with the issue and concluded that, in the
drama, there is an implicit distance stance on treatment given by the press to the
issue, especially taking the view that there is no way to establish unequivocal
certainty about the underage offender problem in the country.
Keywords: young offender. Film analysis. Stigma. Brazilian cinema.

1. Mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP e professor das Faculdades Integradas Interamericanas
(FAITER/Oswaldo Cruz). E-mail: caiolamas@uol.com.br.

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A representação do menor infrator no cinema e na imprensa: o caso de De Menor (2013)

Caio Lamas

INTRODUÇÃO

D ELINQUENTES, PREDADORES, pivetes, bandidos, assassinos, trombadinhas, trafi-


cantes, menores. Muitas são as designações que circulam para especificar um caso
peculiar de infrator: a da criança e do adolescente, frequentemente encontradas na
imprensa por meio de notícias ligadas a roubos, tráfico de drogas e assassinatos ligados
à classe média. Somente nos jornais de grande circulação A Gazeta e A Tribuna, oriundos
do estado do Espírito Santo, foram encontradas 325 matérias que tratam da temática do
adolescente em conflito com a lei, no período entre agosto de 2003 e setembro de 2004
(ESPÍNDULA et al., 2006). Espalhadas por telejornais, revistas, jornais, redes sociais e
diferentes programas jornalísticos tanto na televisão como no rádio e internet, veem-se
imagens, sons e palavras que representam um tipo peculiar de sujeito, cujas marcas já
são conhecidas: pobre, negro, maltrapilho, de olhar baixo e voz distorcida, “perigoso
e violento” (ESPÍNDULA et al., 2006). Nada mais exemplar de um outro ameaçador,
monstruoso, que deve necessariamente ser isolado do convívio social e colocado à dis-
tância segura. Não raro, após a apresentação desses sujeitos, argumenta-se a favor da
diminuição da maioridade penal, tida como o motivo pelo qual tantos jovens acabam
aderindo à criminalidade.
Entretanto, o menor infrator também está disponível ao olhar dos espectadores do
cinema nacional: do drama Pixote: a lei do mais Fraco (Hector Babenco, 1979)2 a filmes
mais recentes como Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002) e Juízo: jovens infratores no
Brasil (Maria Augusta Ramos, 2007), circulam outras imagens que não raro questionam
a representação da temática propagada pela mídia. De todos, o último que se destaca
dentro dessa perspectiva é certamente De Menor, drama dirigido por Caru Alves de
Souza e vencedor, juntamente com O Lobo Atrás da Porta, do prêmio de melhor filme de
ficção no Festival do Rio 2013.3
A recepção do filme pela crítica, por sua vez, tem sido geralmente bastante positiva.
Eduardo Escorel, coordenador do curso de pós-graduação em cinema documentário da
Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo, afirmou que “o filme consegue, de modo muito
bem pensado e expressivo, evitar que a tragédia social do menor infrator se transforme
em espetáculo.”4 Para Cássio Starling Carlos, do jornal Folha de São Paulo, “o filme
convoca o espectador a construir sentidos em vez de nos impor um único por meio do
ultradidatismo que ignora o valor da surpresa e da descoberta.”5 Para Renato Pacca,
colunista do jornal O Globo, “o grande mérito do filme é retratar os jovens infratores
perdidos no labiríntico sistema judicial, evidenciando como a Justiça não consegue
entendê-los.”6 

2.  A respeito de Pixote, publiquei em parceria com o Prof. Dr. Antônio Reis Junior artigo em que analisamos
seu processo de censura, juntamente com algumas das sequências que sofreram cortes. Cf. REIS JUNIOR,
Antonio; LAMAS, Caio. A infância aniquilada sob censura em Pixote: o cinema brasileiro entre interdições
e liberdades. Revista Brasileira de História da Mídia. Vol. 3, n. 2, p. 91-100, jul./dez. 2014.
3.  Além de ter sido selecionado para os festivais de San Sebastián (Espanha), Toulouse e Biarritz (França).
4.  Disponível em http://revistapesquisa.fapesp.br/2014/01/13/tragedia-em-tom-menor/. Acesso em 14 jan.
2015.
5.  Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/09/1510297-critica-de-menor-rejeita-
formula-facil-e-da-folego-ao-cinema-nacional.shtml. Acesso em 14 jan. 2015.
6.  Disponível em http://oglobo.globo.com/blogs/juridiques/posts/2014/09/09/de-menor-filme-548586.asp.
Acesso em 14 jan. 2015.

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A representação do menor infrator no cinema e na imprensa: o caso de De Menor (2013)

Caio Lamas

Ao mesmo tempo, os depoimentos da diretora sugerem a intenção de provocar


uma tensão no espectador: “a sociedade brasileira está julgando muito facilmente,
por isso decidi criar situações que o espectador e os personagens não têm total
capacidade de julgar. (...) Abri possibilidades de que eles estejam errados.7” 
Diante do exposto, o presente artigo procura evidenciar as estratégias narrativas
articuladas no filme e como elas repercutem na problemática do menor infrator. De
que maneira os menores infratores são representados? Qual é a relação que o filme
estabelece com a imprensa? Para tanto, traçarei uma análise comparativa entre o filme
e uma reportagem do programa jornalístico Fantástico que também trata do tema dos
menores infratores. Antes de buscar respostas, entretanto, apresentarei uma breve
reflexão teórica, necessária para orientar a análise comparativa.

ESTIGMAS, ESTEREÓTIPOS E PRECONCEITOS: CONFLITOS


NA RELAÇÃO ENTRE O EU E O OUTRO
Não é exagero dizer que os estereótipos são partes indispensáveis da nossa cog-
nição. Quem introduziu essa concepção nas ciências sociais foi o jornalista Walter
Lippman, que segundo Mazzara (1999), a partir de referências filosóficas, pensou o
processo de formação da opinião pública. Segundo ele, a relação cognitiva que todos nós
estabelecemos com a realidade externa nunca é direta, mas atravessa imagens mentais
que cada um forma dessa realidade. Há aí uma grande importância da imprensa no
processo de construção dessas imagens mentais, que têm como característica central
serem simplificações grosseiras e quase sempre muito rígidas da realidade, em contra-
posição a um mundo complexo cujos matizes são de difícil distinção.
Assim nascem os estereótipos: simplificações rígidas da realidade, cuja origem
não é individual, mas antes estabelecida culturalmente: “los estereotipos forman parte
de la cultura del grupo y como tales son adquiridos por los indivíduos y utilizados
para una eficaz comprensión de la realidad” (MAZZARA, 1999, p. 14). Buscamos e
valorizamos, dessa forma, somente os dados da experiência que reafirmam certos
estereótipos já fornecidos pela cultura, ignorando e neutralizando os outros que os
contradizem.
Segundo Mazzara pode-se distinguir dois tipos de estereótipos: uma definição
mais geral e neutra, conjunto de características que se associam a certas categorias
de objetos, tal como delineado por Lippman; e uma segunda, mais específica, que se
refere diretamente a grupos sociais, geralmente formados por minorias, e que tem uma
conotação necessariamente pejorativa.
Dentro dessa definição, o autor estabelece três variantes que considera essenciais
para compreender os estereótipos: o grau em que eles são socialmente compartilha-
dos; seu nível de generalização no interior de um grupo social; e por fim o seu grau
de rigidez na cultura. Considerando essas variantes no processo de formação dos
estereótipos, consegue-se estabelecer também uma relação direta entre eles e os pre-
conceitos. O estereótipo

7.  Disponível em http://revistapesquisa.fapesp.br/2014/01/13/tragedia-em-tom-menor/. Acesso em 14 jan.


2015.

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A representação do menor infrator no cinema e na imprensa: o caso de De Menor (2013)

Caio Lamas

en la práctica constituye lo que podríamos llamar el núcleo cognitivo del prejuicio, es decir, el
conjunto de las informaciones y creencias respecto a una cierta categoria de objetos, reela-
borada en una imagen coherente y tendencialmente constante, en condición de sostener y
reproducir el prejuicio frente a ellos. (MAZZARA, 1999, p. 14)

Se o estereótipo é essa forma mais ou menos rígida, abrangente e homogênea, o


preconceito é a “tendencia a pensar (y actuar) de forma desfavorable frente a un grupo.”
(MAZZARA, ano, p 16). Trata-se, portanto, da tendência a criar juízos de valor, de manei-
ra injustificada, de sujeitos pertencentes a determinado grupo social. É o preconceito,
em sua capacidade de orientar concretamente as ações com respeito a determinadas
pessoas ou grupos de pessoas, que gera mais diretamente situações discriminatórias,
que por fim se concretizam em relações de dominação e exclusão, não raro marcadas
pela violência verbal e física.
Cabe ressaltar, entretanto, que os estereótipos são uma manifestação daquilo que
se considera estigma: um tipo de marca negativa associada a determinados grupos que
passam a carregar esses traços de negatividade, cristalizados pelo discurso narrativo
(GOFFMAN, 1978). Marca que, por sua vez, está enraizada na cultura, ocupando um
lugar que dificilmente é cambiável. Se os estereótipos são desconstruídos com maior
ou menor facilidade de acordo com seu grau de rigidez e enraizamento, os estigmas
atravessam o tempo e os sujeitos, desafiando qualquer tentativa direta de intervenção.
Uma vez que os estereótipos são construídos socialmente, ocupando um certo
lugar na cultura já delimitado pelo estigma, eles culminam por fim em ações de pre-
conceito, exclusão e violência. Há nesse processo uma hierarquia arbitrária, que torna
os membros de determinados grupos, os que excluem, humanamente superiores aos de
outros, que são excluídos. Para Nobert Elias (2000), isso é característico da relação entre
grupos considerados estabelecidos contra aqueles denominados outsiders, que sofrem um
processo de estigmatização por parte dos primeiros. Por meio de repreensões, tanto
externas – entre sujeitos de diferentes grupos – como internas – entre sujeitos de um
mesmo grupo – busca-se manter certas relações de poder já existentes:
A peça central dessa figuração é um equilíbrio instável de poder, com as tensões que lhe
são inerentes. Essa é também a precondição decisiva de qualquer estigmatização eficaz de
um grupo outsider por um grupo estabelecido. Um grupo só pode estigmatizar outro com
eficácia quando está bem instalado em posições de poder das quais o grupo estigmatizado
é excluído. (ELIAS, 2000, p. 23)

Há assim, nas lutas simbólicas traçadas pela manutenção desse “equilíbrio instável
de poder”, uma ação generalizante e homogênea típica da configuração dos estereótipos,
quando
o grupo estabelecido tende a atribuir ao conjunto do grupo outsider as características ‘ruins’
de sua porção ‘pior’ – de sua minoria anômica. Em contraste, a auto-imagem do grupo
estabelecido tende a se modelar em seu setor exemplar” (ELIAS, 2000, p. 22-23).

Assim, entre anômicos e nômicos, anormais e normais, desordeiros e ordeiros,


indisciplinados e disciplinados, traça-se uma relação de interdependência, sem a qual

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A representação do menor infrator no cinema e na imprensa: o caso de De Menor (2013)

Caio Lamas

é impossível compreender os processos de estigmatização e, consequentemente, os de


contra-estigmatização, quando o equilíbrio de poder se inverte e o grupo outsider reivin-
dica para si o carisma grupal concedido ao grupo antes estabelecido.
Nesse jogo instável de dominação e conflito social, um dos elementos mais recor-
rentes de estigmatização de grupos é o uso de termos pejorativos, como “crioulo”, “car-
camano”, “sapatão”, “papahóstia”, “gay”, “otaku”, “nerd”. Não raro esses termos são
reapropriados pelos próprios outsiders, em uma estratégia inversa, como elementos de
identificação. Tornam-se balizas no interior de um grupo, mas não da maneira estig-
matizada imposta pelos estabelecidos. Se esses termos originalmente depreciativos são
representações que incidem sobre os outsiders, suas reapropriações e a criação de outros
termos indicam a existência do que Coetzee (1996) denomina de contra-representações,
inseridas em uma guerra de representações ideológicas. Segundo o autor, se uma repre-
sentação é considerada ofensiva por determinados grupos, cria-se com o desejo de sua
interdição uma contra-representação, derivada e oposta à primeira, com o objetivo de
silenciá-la ou subjugá-la.
Há entre representação e contra-representação uma relação entre o que se diz e o
que não se diz, o que está oculto e subentendido em cada uma delas. É o que diz Tadeu
da Silva (2000) quando fala a respeito da identidade. Quando afirmo o que sou – “eu
sou brasileiro” – oculto que essa afirmação é parte de uma extensa cadeia de expressões
negativas, diferenças – “eu não sou chinês”, “eu não sou argentino” e assim por diante.
Para o autor, é justamente a partir da diferença, entendida como processo, que é constru-
ída tanto a identidade como uma outra diferença, entendida como resultado. Primeiro
sabemos o que não somos, e sabemos a partir de um ato de criação linguística, ou seja, a
partir de uma produção deliberada, inserida na cultura e em atos de linguagem, a partir
de sua nomeação. A linguagem, aliás, já é fundamentalmente um sistema de diferenças:
um signo, seja lá qual for, não tem nenhum significado intrínseco, e só adquire sentido
uma vez que se contrapõe a todos os outros signos que lhe são diferentes.
Por fim, é importante ressaltar, como nos lembra Stam (2006), que essa dialética
presença/ausência não é exclusiva das palavras: o cinema, da mesma maneira, apresenta
também uma série de elementos não-ditos, ocultos, subentendidos, que merecem em
uma análise fílmica mais detalhada ser objeto de atenção do analista.

O MENOR INFRATOR: MARCAS DE UM ESTIGMA


Um dos grupos sociais que certamente mais foi estigmatizado ao longo da história
do Brasil é o das crianças e adolescentes infratores. De acordo com Marino (2013), o pro-
blema da criança abandonada já era, desde o século XVIII, alvo de atenção do Estado,
revelando a preocupação com as despesas geradas com a disseminação da pobreza.
Nessa época, entendia-se já que o problema se tratava de um “caso de polícia”, uma vez
que as condições de sobrevivência e o ambiente da rua expunham crianças e jovens a
um mundo permeado pela “mendicância”, “gatunice” e “vadiagem”.
Foi no século XIX que foi incluído pela primeira vez na história do país o termo
“menor” no histórico de nossas leis. Para MORELLI (1997 apud MARINO, 2013, p. 63),
já havia desde o início a atribuição de um valor pejorativo ao termo: “a incapacidade
e a inferioridade, ou a pobreza e a periculosidade, foram atributos conjugados em sua

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A representação do menor infrator no cinema e na imprensa: o caso de De Menor (2013)

Caio Lamas

história”. Assim, o termo já aparecia na legislação nacional desde a promulgação do


Código Criminal do Império do Brasil, em 1830.
De acordo com Scheinvar (2002 apud MARINO, 2013), ao longo dos séculos XIX e
XX já havia um processo no qual a concepção de menor afastava-se cada vez mais da
de infância, delineando-se duas referências sobre o tema:
A primeira, associada ao conceito de menor, é composta por crianças de famílias pobres,
que perambulavam livres pela cidade, que são abandonadas e às vezes resvalavam para a
delinquência, sendo veiculadas a instituições como cadeia, orfanato, asilo, etc. Uma outra,
associada ao conceito de criança, está ligada a instituições como família e escola e não pre-
cisa de atenção especial. (BULCÃO, 2002 apud MARINO, 2013, p. 66)

Em 1941 foi criado o Serviço de Atendimento ao Menor (SAM), responsável por


crianças pobres e autoras de atos infracionais, pelo encaminhamento aos estabelecimen-
tos de educação e pela organização de serviços assistenciais. O SAM daria lugar, em
1964, à Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), no início da ditadura
civil-militar. Objetivava-se a criação de uma Política Nacional do Bem-Estar do Menor
(PNBEM), com o estudo e planejamento de soluções para o problema do abandono,
coordenação, orientação e fiscalização das entidades executoras dessa política.
Foi somente na década de 1970 que a questão do menor infrator passou a receber
atenção no meio acadêmico nacional. Pesquisas começaram a questionar a distinção
entre o menor e a criança de famílias abastadas, dados de múltiplas violências cometi-
das por policiais contra adolescentes nas Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor
(FEBEMs8) foram levantados por uma comissão criada para tratar o tema, foi criado até
mesmo um Movimento de Defesa do Menor, em 1979.
Todo esse movimento culminou com a aprovação do segundo Código de Menores,
de 1979, que representou avanços nos direitos do menor no país. Atribuiu-se uma visão
de que o menor carecia de direitos, assentando-se na chamada “Doutrina da Situação
Irregular do Menor”. “Dirigia-se aos menores considerados em situação de irregula-
ridade: abandonados (material, intelectual e juridicamente), vítimas (de maus-tratos,
perigo moral, desassistência e exploração) e infratores (ou inadaptados).” (MARINO,
2013, p. 71). Entretanto, pouco se avançou na prática na garantia dos direitos das crianças
e dos adolescentes, reservando ainda ao juiz de menores o poder de controle social e
delimitação da pena dos infratores.
Foi somente com o fim da ditadura civil-militar e a promulgação do Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, que o termo “menor” foi abandonado e as
crianças e adolescentes considerados sujeitos de direitos e deveres, pessoas em desen-
volvimento, credores de “proteção integral” e “prioridade absoluta” independente de
classe social, credo, etnia e gênero, “deixando de representar, ao menos sob a letra da
lei do Estatuto, o ‘menor’ pobre, abandonado e infrator.” (MARINO, 2013, p. 74).
Como pode ser visto ao longo desse breve histórico, o termo “menor” carrega já por si
só uma conotação pejorativa, ligada à criança ou adolescente pobre, maltrapilho e negro.
Como marcas de um estigma, encontraremos a cisão entre o menor pobre e a criança

8.  Braços estaduais das FUNABEMs.

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A representação do menor infrator no cinema e na imprensa: o caso de De Menor (2013)

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abastada mesmo depois da promulgação do ECA. De acordo com Marino, Brasiliense (2007)
e Espíndula (2006), essa cisão permanece, tanto no senso comum como na imprensa, pro-
vando a rigidez que o estereótipo do menor pobre adquiriu na cultura ao longo dos séculos.
Esse estereótipo pode ser visto abundantemente na televisão, como por exemplo-
9
em reportagem veiculada no Fantástico em 2009 a respeito da internação de três jovens
infratores de 15 anos em Cuiabá, capital de Mato Grosso10.
A narrativa principia com imagens de câmeras de segurança de assaltos cometidos
pelo grupo, enquanto na locução ouvimos: “por que jovens agem com tanta brutalidade?
Qual a responsabilidade da família?”. Como na maioria das reportagens televisivas,
somos guiados pela didática locução do jornalista, que procura ligar elementos disper-
sos em um eixo lógico argumentativo, de modo a deixar os fatos o mais claro possível.
As imagens de câmeras de segurança são abundantes, de diferentes ângulos, e o
destaque da narrativa vai para os momentos de violência, sobretudo aqueles em que as
vítimas se mostram desprotegidas, cooperando com os assaltantes, que mesmo assim as
agridem fisicamente. Juntam-se imagens de silhuetas, rostos desfocados, vozes distorcidas,
corpos recortados pela câmera, que omite a imagem integral dos acusados. São ouvidos
os jovens – com uma participação mínima na narrativa- os policiais, as vítimas, espe-
cialistas, culminando no arrependimento dos pais e em um pedido público de perdão.
Há assim a preservação da ordem: o ciclo de violência se encerra com a prisão dos
jovens, juntamente com o arrependimento e a humilhação em cadeia nacional deles e de
seus familiares, na tentativa de redimir as infrações reveladas no início da reportagem.
A ordem, entretanto, não está completa: questiona-se, evidentemente, a impunidade que
recairia sobre os jovens, uma vez que estariam abaixo da idade para assumirem pena-
lidades legais mais severas de acordo com o ECA. A legislação aparece, assim, como a
barreira entre a ordem e a desordem.
Traça-se dessa forma o perfil do outro estigmatizado, monstruoso, desordeiro e,
finalmente, pobre: fica claro que os jovens tem baixo poder aquisitivo – usavam o dinhei-
ro dos roubos para frequentar lan houses, comprar cigarros e isqueiros. A aparição dos
cigarros na fala de um dos jovens indica o uso de drogas, citadas também ao longo de
outros depoimentos. Em todo esse desenrolar, as explicações e a própria tessitura da
narrativa são construídas de fora: jamais a câmera adentra na realidade direta dos jovens,
explorando as condições que os levaram a cometer os crimes, a não ser pelo discurso
dos especialistas e policiais.
Fecha-se, assim, um ciclo: uma narrativa didática, que elimina contradições e ambi-
guidades, representando os jovens como monstruosos e desordeiros – portanto, outsiders
estigmatizados – e que tem, pela variedade de imagens e de depoimentos que utiliza,
um certo tom totalizante, abrangente, como se evidenciasse a verdade dos fatos a partir
de todos os lados a serem escutados da história.

9.  Escolhemos este exemplo por considerá-lo simbólico da abordagem frequentemente empregada em
programas jornalísticos a respeito do tema do menor infrator. Há que se considerar, evidentemente, outras
abordagens que também existem, mesmo no telejornalismo. Podemos citar ao menos uma: aquela em que
uma ou duas crianças tem seus percursos na Justiça aproveitados como eixo central da narrativa. Há aqui
uma proximidade com os sujeitos, mas que cai para a espetacularização e sensacionalismo. Cf. programa
Repórter Record sobre o tema: https://www.youtube.com/watch?v=qIs_DHn8tkg. Acesso em 16 jan. 2015.
10.  Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=gkQEqZh9uUw. Acesso em 15 jan. 2015.

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A representação do menor infrator no cinema e na imprensa: o caso de De Menor (2013)

Caio Lamas

Em toda a narrativa, há um plano simbólico da postura do jornalista diante do


assunto: uma das cabeças da reportagem, em que seu corpo está em plano médio, e sua
posição acima de um dos bairros de Cuiabá, que aparece ao fundo, em perspectiva. Esse
esforço totalizante, assim, pode ser sintetizado na tentativa de estar acima do tema do
menor infrator, lançando-lhe um olhar panorâmico, de uma instância superior.
Veremos, em comparação, como se dá a narrativa de De Menor.

DE MENOR : A CONTRA-REPRESENTAÇÃO DO
MENOR INFRATOR DA IMPRENSA
De Menor conta a história de Helena (Rita Batata), uma advogada recém-formada
que trabalha como Defensora Pública de crianças e adolescentes no Fórum de Santos.
Realiza os atributos de sua função em sessões no Fórum diante dos jovens que defen-
de, do Promotor (Rui Ricardo Diaz) e do Juiz (Caco Ciocler), com os quais, apesar de
apresentar certa rivalidade em uma primeira impressão, tem uma relação pessoal e
próxima. No Fórum, vemos como com que frequência ela tem que defender crianças e
jovens pobres e negros, fatalmente enquadrados no estereótipo do menor infrator tal
qual exposto ao longo deste artigo. Há no exercício de sua função algo de maternal: se
o Promotor e o Juiz demonstram-se sempre severos, em tom intimidador diante dos
infratores, Helena se mostra mais compreensiva, sempre procurando convencer o Juiz
a considerar atenuantes dos casos e adotar penas mais flexíveis.
Ao mesmo tempo, Helena é irmã do jovem Caio (Giovanni Gallo), e é responsável
legal não só por ele como pela casa em que vivem, uma vez que seus pais vieram a fale-
cer recentemente. Logo nos momentos iniciais do filme, a montagem dá especial ênfase
aos momentos de convivência dos irmãos: na praia ou na sala da casa, colocada à venda
por problemas financeiros, temos acesso ao cotidiano de proximidade e cumplicidade
dos dois, marcado pelo frequente contato físico e por brincadeiras pueris. Não há aqui
qualquer fato extraordinário: ao contrário, a impressão que se tem é até de uma certa
monotonia, resultado também da temperatura elevada – estamos, afinal, em uma cidade
litorânea – e do tipo de situação corriqueira abordada.
O filme assim se divide entre essas duas facetas da vida de Helena, a profissional
e a pessoal. Em ambas, vemos uma mulher jovem, bastante dedicada e comprometida
com suas responsabilidades. O tom de proximidade estabelecido com seus colegas de
trabalho e com seu irmão mais novo é revelador da dimensão privada, reduzida, de
poucos personagens, frequente em outros filmes do cinema brasileiro contemporâneo
como Contra Todos (Roberto Moreira, 2003), O Céu de Suely (Karim Aïnouz, 2006), O
Som ao Redor (Kleber Mendonça Filho, 2012), Um Céu de Estrelas (1996) e Hoje (2011), os
dois últimos dirigidos pela mãe de Caru Alvez de Souza, a cineasta Tata Amaral. Há
claramente nesse aspecto uma característica central na narrativa de De Menor: seu eixo
é construído sempre a partir da perspectiva de Helena. Não temos acesso, assim, a
situações que fogem do conhecimento ou da participação da personagem. Esse é um
dado de especial importância, que retomaremos mais adiante na análise.
Entretanto, essa dimensão privada convive, no caso de De Menor, com o tema de que
trata o filme, de cunho evidentemente social. Assim, percebemos como Helena parece
realmente se importar com o destino dos jovens cuja defesa lhe é incumbida, a ponto

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A representação do menor infrator no cinema e na imprensa: o caso de De Menor (2013)

Caio Lamas

de ir pessoalmente e sozinha buscar a mãe de um desses menores infratores. É aí que


nos deparamos mais claramente com a pobreza e a precariedade estruturantes do este-
reótipo do menor, a ponto da própria mãe se recusar a acolher o seu filho, única saída
para evitar que ele sofresse uma pena mais rígida, simplesmente por não ter condições
financeiras de sustentá-lo.
Helena, entretanto, chega a oferecer dinheiro para que a mulher o aceitasse. Aqui
percebemos um certo “jeitinho”, procedimento adotado extra oficialmente e por ini-
ciativa privada de Helena para resolver situações que, de outra maneira, não seriam
solucionadas pela Justiça.
No entanto, a especificidade do enredo de De Menor ainda estaria por ser revelada.
Após essa primeira parte em que é revelado o lado pessoal da vida de Helena, com destaque
para o contato harmonioso e íntimo que estabelece com seu irmão Caio, a situação entre
os dois começa a se mostrar menos equilibrada do que se pressupunha, e vamos acom-
panhando um Caio que começa a se mostrar gradativamente mais violento e impositivo.
Desse modo, Caio passa a pedir dinheiro à irmã frequentemente, trazendo-lhe a
bolsa ou buscando intimidá-la. Jamais sabemos que uso o jovem faz dele, uma vez que
ele se recusa a esclarecer o destino final do dinheiro à irmã. Como acompanhamos
somente os fatos da perspectiva de Helena, não sabemos o que pensa Caio ou quais
seus objetivos.
Tudo chega até o ponto em que a vida pessoal e profissional da protagonista se cru-
zam: no banco do infrator não está mais o jovem pobre e da periferia, mas o seu próprio
irmão. Caio aparece algemado, com ferimentos no rosto, cabisbaixo. Não sabemos quais
os motivos que o levaram a isso, nem o que exatamente ocorreu. Apenas vemos o que
se passa depois: Helena convencendo o Promotor a dar “um jeitinho” e liberá-lo sem
comparecer à sessão com o Juiz.
Além de irmão da protagonista, há um outro elemento de importância a ser consi-
derado a respeito de Caio: ele é branco e loiro, fugindo completamente do estereotipo
do menor infrator. Isso é reforçado nesse momento do enredo, quando Helena usa como
um dos argumentos para convencer o Promotor a probabilidade de que caso Caio fosse
internado em uma instituição socioeducativa, por ser branco e loiro, poderia correr o
risco de ser violentado ou sofrer represálias de outros adolescentes internados.
O fato, entretanto, volta a se repetir, novamente de maneira parcial: Caio é encon-
trado depois de ter infringido a lei – sabemos que se trata do roubo de alguma casa –
dessa vez com o agravante de que há a morte por arma de fogo de uma pessoa. Nesse
momento, entretanto, Helena não pode mais conter os demais procedimentos legais,
e Caio é levado a julgamento. Enquanto isso, a casa de Helena é saqueada por ladrões,
que alegam querer reparar danos causados anteriormente por Caio.
Os fatos se desenrolam até o momento em que Caio se encontra diante do Juiz, do
Promotor e da Defensora Pública, sua própria irmã, culminando em sua condenação:
ser internado em uma instituição socioeducativa. Há nesse momento da narrativa nova-
mente uma elipse, e não chegamos a ver sequer uma imagem final de despedida entre
Helena e Caio antes da internação: vamos para uma banheira cheia de água, vista de
cima, onde Helena está nua, imóvel, abraçando-se, como que procurando um conforto
em meio à solidão e à gravidade dos últimos acontecimentos.

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A representação do menor infrator no cinema e na imprensa: o caso de De Menor (2013)

Caio Lamas

Como pode ser percebido, há claramente delineado no enredo o propósito de con-


trapor os adolescentes pobres defendidos por Helena, enquadrados no estereótipo do
menor infrator propagado pela imprensa e pelo senso comum, com o jovem e proble-
mático Caio. Esse conflito já aparece na fala da diretora Caru, quando questionada a
respeito da condição do menor infrator no país:
O filme toca sutilmente no tema dos adolescentes ricos e de classe média que cometem
infrações. Mesmo esses não são tratados de forma igual pela sociedade. Adolescente pobre
e negro que comete infração é bandido, adolescente rico e branco está confuso.11

O propósito de questionar essa cisão incide, necessariamente, na quebra do estereó-


tipo do menor infrator, portanto, do senso comum e do sentido de ordem difundido pela
imprensa. Seguindo as considerações tanto de Tadeu da Silva como de Stam, consideran-
do tanto a dialética presença/ausência como a relação dito/não-dito, pode-se perceber
como são vários os elementos propriamente narrativos que revelam uma oposição clara
à abordagem da imprensa, sobretudo à típica construída pelo telejornalismo, localizados
na própria narrativa fílmica.
Se o plano mais simbólico da reportagem analisada anteriormente é o do repórter
no alto da cidade, em posição de superioridade diante dos fatos apresentados, o de De
Menor é o da câmera baixa, na mão, que segue Helena pelos corredores de sua casa logo
no princípio do filme. Há nesse instante uma percepção do tempo mais lenta, diante
de um dinamismo próprio da reportagem; Helena de costas para a câmera, diante da
posição frontal do jornalista durante a cabeça; uma imagem bastante restrita, fechada,
claustrofóbica, sem dar significativa referência do espaço, enquanto a da cabeça, apesar
de incluir o jornalista da cintura para cima, apresenta ao fundo, em perspectiva, uma
visão mais ampliada de um bairro de Cuiabá.
Se a reportagem constrói uma narrativa que procura ser totalizante, com diferentes
ângulos de câmera e depoimentos de especialistas, De Menor tem uma narrativa assu-
midamente parcial, marcada antes pela ausência do que pela presença: não temos acesso
aos crimes cometidos por Caio, suas motivações, seus amigos, nem ao menos como
chega a gastar o dinheiro dado pela sua irmã. São várias as elipses, até em momentos
estruturantes do enredo, como na condenação final de Caio.
Se na reportagem há uma preocupação clara em separar a ordem da desordem, o
certo do errado, distanciando o menor e sua família dos especialistas, vítimas e policiais,
no filme não só essa separação não é tão clara – Helena consegue convencer o Promotor a
passar por cima da lei e liberar pela primeira vez Caio do julgamento – como a distância
entre o menor infrator e a protagonista é mínima. Antes, sabemos que ambos têm certa
intimidade e relação afetuosa, tal como apontado nas sequências iniciais do drama.
Há, por fim, uma intenção final da reportagem de abordar a temática do menor de
uma perspectiva espetacular, cheia de certezas, personagens e situações previsíveis,
enquanto no filme vemos o oposto: a narrativa está próxima da monotonia, os persona-
gens cheios de dúvidas, as situações completamente imprevisíveis e fora daquilo que se
consideraria corriqueiro, especialmente no que se refere ao estereótipo do menor infrator.

11.  Disponível em http://cinema.uol.com.br/noticias/redacao/2013/08/29/de-menor-retrata-conflitos-


envolvendo-menores-em-forum-de-santos.htm#fotoNav=7. Acesso em 16 jan. 2015.

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A representação do menor infrator no cinema e na imprensa: o caso de De Menor (2013)

Caio Lamas

Dessa maneira, está dito de maneira implícita em De Menor que o filme não é uma
reportagem; não aborda os fatos da mesma perspectiva; não coaduna com a opinião do
senso comum a respeito do menor infrator; e, sobretudo, de que não há como estabelecer
certezas inequívocas a respeito do tema. Trata-se, logo, de uma contra representação da abor-
dagem jornalística, que procura ocultar ou ao menos problematizar sua abordagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os estigmas atravessam o tempo: quanto mais profundamente arraigados em
uma cultura, mais dificilmente são esquecidos ou sofrem modificações substanciais.
Permanece, assim, o estigma do menor infrator, a despeito de alterações em seu estatu-
to legal. Prolongam-se no tempo, dessa forma, as marcas de um estereótipo, difundido
sobretudo pela grande imprensa, que aponta sempre os menores infratores – os outsi-
ders – como sendo pobres e negros, distantes da classe média – os estabelecidos – que
os telejornais buscam representar.
A existência de um filme como De Menor, entretanto, aponta para a permanência de
disputas não só ideológicas, mas propriamente narrativas a respeito do tema. Há nesse
conflito algo próximo do que Coetzee denomina guerra de representações, ou a tentativa
das narrativas de se sobrepujarem umas às outras.
Finalmente, é importante notar que, mesmo com todas essas diferenças, há ainda um
traço que liga De Menor e a reportagem do Fantástico: ambas as perspectivas são ainda
externas ao menor infrator, ainda que com distâncias opostas. Falta ainda, no conflito
simbólico que se deflagra no horizonte, ouvir a voz daqueles que ocupam o lugar do
estigma do menor infrator em nossa cultura.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ELIAS, N.; SCOTSON, J. L. (2000). Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
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adolescentes em conflito com a lei em material jornalístico. PSIC: Revista de Psicologia
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e diferença. Rio de Janeiro: Petrópolis, Vozes.

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O Qualquer ou um Céu De Possibilidades
The Anyone or a Sky Of Possibilities
Felipe Diniz1

Resumo: Este texto visa problematizar as operações de individuação que se dão


nos personagens anônimos, marcados no cinema pela figura do qualquer. Ao
cruzarmos os conceitos de singularidade, individuação e identidade, a partir
das teses de Deleuze e Peirce, pretendemos compreender como esta figura
é evidenciada, a partir de um espaço cinematográfico situado no terreno da
diferença e da multiplicidade. Tais prerrogativas serão contextualizadas tendo
com o pano de fundo os personagens do filme “O Céu sobre os Ombros”,
documentário brasileiro de Sérgio Borges, de 2011. Personagens que transitam
entre a singularidade de uma energia em potência e o gesso de uma identidade
carregada de clichê.
Palavras-Chave: Qualquer. Singularidade. Cinema.

Abstract: This text aims to raise problems about the individuation processes
of anonimous characters marked in the cinema by the anyone figure. At cros-
sing Deleuze and Peirce concepts of singularity, individuation and identity, we
intend to understand how this figure is foregrounded by a cinematographic
space situated on the terrain of diference and multiplicity. Such prerrogatives
will be contextualized having as background the characters of Sergio Borgers
documentary “The Sky on the Shoulders” (Brasil, 2011), who move themselves
between the singularity of a potencial energy and the rigidity of an identity
full of clichê.
Keywords: Anyone. Singularity. Cinema.

E STE TEXTO visa problematizar as operações de individuação que se dão nos per-
sonagens anônimos, marcados no cinema pela figura do qualquer. Para tanto,
conceitos de singularidade, individuação e identidade serão confrontados a partir
das teses de Deleuze e Peirce. Como pano de fundo traremos à tona os personagens do
documentário O Céu Sobre os Ombros2, sobre os quais pesarão as teorias desfiladas no
decorrer do texto. Acreditamos que ao cruzarmos as teorias de Deleuze e Peirce sobre
singularidade e individuação com o modo com que os personagens são evidenciados
na tela no filme específico, podemos encontrar a sutileza de um corpo ambíguo em
eterno devir. Personagens que transitam entre a singularidade de uma energia em

1.  Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRGS. fildiniz@hotmail.com


2.  Direção Sérgio Borges, 2011.

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O Qualquer ou um Céu De Possibilidades

Felipe Diniz

potência e o gesso de uma identidade carregada de clichê. Assim o cinema, através de


suas imagens, equilibra-se entre o terreno da diferença e da multiplicidade e o espaço
da representação. E por aí avançamos.
As primeiras imagens do filme anunciam o rosto de um homem negro que aparenta
uns trinta e poucos anos. Um colar branco veste o pescoço, uma touca preta esconde os
cabelos. Ele lê. Vemos o detalhe de um livro aberto. Ele está sentado no banco de um
ônibus em movimento pelas ruas da cidade. Corta. Agora em close vemos o rosto de
outo homem. Ele é branco e jovem. Usa boné. É dia, e ele, como o personagem anterior,
também habita o interior de um ônibus. Ele não lê. Está em silêncio. Corta. Agora o que
vemos é uma mulher, ou um homem travestido de mulher. O rosto aparenta a rudeza
masculina, mas está maquiado e os cabelos são compridos. É noite. Ela também está em
um ônibus em movimento e segura uma flor amarela que aproxima do nariz. Corta.
Tela preta, seguida por uma panorâmica geral aérea da cidade ao amanhecer. Muitos
prédios, torres, céu. Outros habitantes. Outros sujeitos como aqueles que acabaram
de ser apresentados. Uma imensidão de seres sem nome, que a partir de agora serão
acoplados à figura do qualquer.
Don Lwei, Murari Krishna e Evelyn, são habitantes da capital mineira. O filme
acompanha o cotidiano desses personagens que nada tem em comum a não ser a luta
que travam pela sobrevivência em uma metrópole brasileira nos dias de hoje. Lwei é
apresentado com um sujeito no limiar do fracasso profissional e pessoal. Poeta maldito,
desempregado, vaga pelos bares noturnos e menciona o suicídio com uma naturalidade
devastadora. Murari é hare krishna, líder de torcida de um clube de futebol importante
da cidade, trabalha como operador de telemarketing em uma empresa de telefonia.
Encontra-se com a própria solidão equilibrado em seu skate em um rolé noturno pelo
centro de BH. Evelyn, transexual, se prostitui na beira das estradas a noite e durante o dia
faz mestrado e promove cursos sobre sexualidade e diferença. Mora em um minúsculo
quarto, cúmplice da contradição de seus movimentos. Através dos holofotes do cinema o
que vemos são três personagens, cujas singularidades múltiplas e latentes tomam forma
e apontam menos para uma identidade enclausurada e mais para uma individuação
marcada pela diferença na forma do qualquer.
Partimos da afirmação de George Agamben, que estabelece uma relação entre o
qualquer e a singularidade. Para ele “o qualquer é o matema da singularidade, sem o
qual não é possível pensar nem o seu ser, nem a sua individuação” (2013, p.25). O autor
afirma que o qualquer não tem identidade, pois converte-se na figura da singularidade
pura. E assim estabelece-se uma diferença importante entre as noções de singularidade
e de identidade, já anunciadas pelas teses de Gilles Deleuze.
Tais singularidades não se confundem, entretanto, nem com a personalidade daquele que se
exprime em um discurso, nem com a individualidade de um estado de coisas designado por
uma proposição, nem com a generalidade ou a universalidade de um conceito significado
pela figura ou curva. A singularidade faz parte de outra dimensão, diferente das dimensões
da designação, da manifestação ou da significação. A singularidade é essencialmente pré-
-individual, não pessoal, aconceitual. (Deleuze, 2003, p. 55)

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O Qualquer ou um Céu De Possibilidades

Felipe Diniz

Deleuze em seu texto Los Signos del Movimiento y el Tiempo (2011) retoma a
classificação das imagens3 desenvolvida por Peirce (primeiridade, secundidade e
terceiridade) para desenvolver as relações entre a imagem e o signo. Tal categorização
se mostra relevante para compreendermos a natureza do domínio da singularidade
nos processos de individuação do sujeito. Identificamos a natureza deste processo na
passagem da primeiridade para secundidade. Por esta razão nos deteremos mais na
composição destes dois arranjos, deixando a terceiridade para um outro momento.
Segundo os critérios de categorização estabelecidos por Peirce, a primeiridade
pode ser entendida como um modo de ser sem referência. Apresenta-se como a cate-
goria do possível. Espaço de onde emergem as qualidades puras, não atualizadas em
estados de coisas. Não são realidades, mas possibilidades percebidas pelo que o autor
chama de consciência imediata. Tais qualidades preenchem um espaço opaco, pré-
-individual. Neste terreno encontramos as singularidades. A secundidade expressa o
espaço de uma qualidade atualizada em um estado de coisas4. Faz parte da categoria
do real, de uma consciência qualificada. Uma qualidade que não é mais pura, e sim
relacionada a um objeto.
Na conexão destes dois polos identificamos os processos de individuação. A pri-
meiridade expressa a possibilidade pré-individual e a secundidade atualiza uma qua-
lidade, que passa a ser individuada em um estado de coisas. No campo pré-individual
encontramos as singularidades. Segundo Deleuze (2011, p.131) “o possível é um potencial
singularizado que se distingue de toda realidade individuada”. Aqui, na esteira de
Deleuze e Peirce marcamos a diferença crucial entre a singularidade e a individualidade.
As singularidades existem no campo da energia potencial em instâncias pré-individuais.
“Há uma singularidade da qualidade antes de que haja uma individuação em um
estado de coisas que atualiza a qualidade (...) as qualidades não são generalidades, são
singularidades” (DELEUZE, 2011, p.130).
Ao retomar a teoria de Simondon5, Deleuze (2011) coloca as singularidades em
instâncias pré-individuais, situadas como energias potenciais. Para cada campo
específico podemos considerar uma infinidade de potências (qualidades) prestes a serem
atualizadas em um estado de coisas. No exemplo do cinema, temos condições de elencar
uma série de qualidades que existem em potência: o violento, o alegre, o triste, o corajoso,
o medroso e etc. Qualidades singulares do campo cinema, que como primeiridade
mudam de natureza quando atualizadas em corpos ou objetos, passando, assim, para
o domínio da secundidade. Personagens violentos, heróis, homens, mulheres, crianças

3.  Para Peirce imagem é aquilo que aparece. É o aparecer, e se aproxima da ideia de fenômeno, aplicado ao
conceito de faneron . Para o teórico americano as imagens são o estudo dos fanerons. O faneron é o aparecer,
é o luminoso, o que aparece a luz. (DELEUZE, 2011)
4.  Segundo Deleuze (2011) o estado de coisas é o meio determinado por um espaço e por um tempo
determinados por onde se atualizam as qualidades puras. O vermelho de uma rosa, por exemplo, é um estado
de coisas, porque este vermelho desta rosa implica um meio para se atualizar. A qualidade “vermelho”é
considerada atualizada em um objeto, a rosa. Assim todo estado de coisas é individuado, e pertence,
portanto, ao domínio da secundidade, em termos peirceanos.
5.  Segundo Gilbert Simondon a individuação se dá sempre em um campo pré-individual que ela supõe. “O
campo pré-individual é um campo que a física designa como potencial. A física fala de energias potenciais.
Não são corpos individuais, são energias potenciais. Estes potenciais são as singularidades do campo.”
(DELEUZE, 2011, p.129)

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O Qualquer ou um Céu De Possibilidades

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que terão as qualidades singulares do campo individuadas quando implicadas em uma


consciência real. Assim também modela-se a figura do qualquer, que percebemos aqui
como uma qualidade pura agregada às energias potencias do campo cinematográfico.
Se pararmos para analisar os personagens dos filmes documentários em mais de
cem anos de história do cinema, podemos notar um desfile de inúmeros personagens
anônimos retratados pelas câmeras da sétima arte. O primeiro filme documentário,
assim considerado, chamado Nanoock do Norte6, de 1922, enfoca a vida de um esquimó
e sua família no Canadá. Nannok não era uma personalidade e tampouco desenvolvia
uma atividade extraordinária. Era apenas um anônimo, com uma vida pacata. Era um
entre vários esquimós. Podemos considerar Nanook o primeiro qualquer da história
do documentário7.
De lá pra cá, o cinema documentário adquiriu uma certa vocação por investigar
pessoas comuns, até estabelecer um fetiche pela figura do qualquer. Neste sentido o
cinema não apenas dá condição para que esta figura se torne pública, em última instância
ele a produz, marcando o personagem com o carimbo do qualquer. O qualquer situa-se,
assim, como qualidade singular do campo audiovisual. Ele existe em potência pronto
para ser atualizado no corpo de um personagem em cena, sendo iluminado pelos
mecanismos de poder e enunciação cinematográficos.
Deleuze (2008, p.118) afirma que “já se nota a importância da tese de Simondon.
Descobrindo a condição prévia da individuação, ele distingue rigorosamente singularidade
e individualidade”. A singularidade é, assim, situada na esfera do possível (primeiridade)
e portanto, configurada como diferença em relação ao real. Não corresponde ao que
podemos chamar de individualidade, que se mostra mais próxima da identidade. O
conceito de identidade é enquadrado pelo espaço da representação, da semelhança e da
analogia. Movimentos que não interessam ás teses anunciadas por Deleuze.
Identidade é um conceito, por assim dizer, polêmico, no que toca as teorias da
comunicação e da filosofia. Existem perspectivas teóricas que se distanciam em seus
princípios e geram concepções diversas a respeito do termo e suas implicações. Este
ensaio privilegia a filosofia de Gilles Deleuze, cuja teoria é baseada na constituição
de um Ser múltiplo, produzido na diferença, em detrimento de uma filosofia baseada
na noção de representação, e com isso, se mostra crítico às epistemologias voltadas à
identidade. Por outro lado, os Estudos Culturais8 anunciam uma concepção que se
mostra distinta a desenvolvida acima. Para os teóricos desta perspectiva o conceito
de identidade é relevante em relação a uma resistência no âmbito cultural e social.

6.  Considerado um marco no cinema documentário universal, o filme Nanook do Norte, de Robert Flaherty,
causou um enorme impacto ao ser lançado em 1922. Ao exibir na tela imagens da vida de um esquimó
canadense e sua família, representados sob propostas claras de mise em scene, o diretor apontava para o
surgimento de um novo gênero.
7.  Mencionamos Nannok como o primeiro “qualquer” da história do documentário, pois se considerarmos
a história do cinema em geral, teremos que incluir neste sistema os anônimos que se movimentavam pela
cidade nas películas dos irmãos Lumiere.
8.  “O campo dos Estudos Culturais surge, de forma organizada, através do Centre for Contemporary
Cultural Studies (CCCS), diante da alteração dos valores tradicionais da classe operária da Inglaterra
do pós-guerra(...) As relações entre a cultura contemporânea e a sociedade, isto é, suas formas culturais,
instituições e práticas culturais, assim como suas relações com a sociedade e as mudanças sócias, vão
compor o eixo principal de observação do CCCS” (Escosteguy, 2001, p.21).

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O Qualquer ou um Céu De Possibilidades

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A identidade cultural segundo Stuart Hall é formada na interação entre o “eu” e a


sociedade. Segundo o autor (2005, p.13) “a identidade é uma ‘celebração móvel’ formada
e transformada continuamente em relação ás formas pelas quais somos representados
ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”. Tal posição não coaduna com
nossas premissas. Segundo Guatarri “a noção de ‘identidade cultural’ tem implicações
políticas e micropolíticas desastrosas, pois o que lhe escapa é justamente toda a riqueza da
produção semiótica de uma etnia, de um grupo social, de uma sociedade” (GUATARRI;
ROLNIK, 1999, p.73).
Impulsionados pelas teorias de Deleuze, podemos pensar que os traços identitários
e individualizantes, protegidos por referências, comparações e oposições, acabam por
estancar os movimentos de singularização. Tal operação determinista afeta a opacidade
marcada pela diferença. Deleuze não submete a diferença à noção da identidade, ao
contrário, estabelece uma relação estreita com o princípio da diferença, cujas operações
transitam no âmago de uma dada multiplicidade. Neste sentido a diferença não marca
uma diversidade de corpos concretos, mas afirma-se como possibilidade, como uma
potência singular. Neste campo não há espaço para a representação baseada nas noções
de oposição, comparação, semelhança ou analogia. A mediação pela representação,
neste sentido, apresenta-se como um movimento redutor de possibilidades. Segundo
Deleuze (2008) a diferença é em si mesma. A diferença existe pela própria diferença e
não em relação a, portanto transita em um universo anterior a constituição de qualquer
modelo. A diferença afirma o devir9.
A diferença em si mesma, não se apega aos modelos, e acaba por produzir modos de
existência singulares, dando voz a seres múltiplos não encerrados pelas identidades fixas.
É o que percebemos nas imagens do filme O Céu Sobre os Ombros. Podemos reconhecer
os personagens apresentados na obra sob os dois pontos de vista desenvolvidos no
decorrer deste ensaio: projetando sobre os processos de individuação singularidades em
potência, ou delimitando-os através de modelos de referenciação, lugar por excelência
das identidades. Preferimos acreditar na potência dos corpos em cena. Lwei, Murari e
Evelyn são personagens, cuja imagem é o resultado de um conjunto de forças situado
no campo das singularidades. As qualidades, como primeiridade, insinuam-se como
virtualidades de um espaço pré-individual. Qualidades latentes não constituídas por
agentes externos, mas enunciadas pelo próprio devir. Desta forma há uma ruptura com
os modelos de verdade formadores das identidades, pois não existe o verdadeiro e o
falso. O que existe são possibilidades.
Nosso interesse está em encontrar a ambiguidade de um corpo não modelado através
das formas de representação, mas em processo de individuação. Personagens descontínuos
que desaparecem em detrimento da potência de suas pluralidades discursivas. Tais
virtualidades apresentam-se como inseparáveis de uma irredutível multiplicidade, onde

9. Guatarri (1999, p.74)) afirma que a “ideia de devir está ligada a possibilidade ou não de um processo se
singularizar”. O autor dá o exemplo da reivindicação de minorias pelo reconhecimento de sua identidade:
o feminismo não existe como um modelo, um quadro identitário que representa a mulher em determinado
contexto histórico e social, mas é “portador de um devir feminino” (p.73), que não toca apenas às mulheres,
mas os homens e as crianças. O feminismo, neste sentido, não se enquadra a uma identidade enclausurada
inserido em um modelo pré-estabelecido, mas a uma possibilidade de existência, a uma energia potencial
pronta para ser atualizada em diferentes corpos ou movimentos.

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O Qualquer ou um Céu De Possibilidades

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as formas de verdade são fragilizadas constantemente. A capacidade de reinvenção dos


personagens em cena, no caso, é paralela a incapacidade do filme em tipificá-los. Luiz
Zanin, crítico de cinema, na ocasião do lançamento do filme publicou em seu blog:
São personagens diferentes, escolhidos entre dezenas de outros candidatos. O que o diretor
viu neles? Talvez, num primeiro momento o que lhe pareceu a diferença radical em relação
à norma. Uma transsexual, formada em psicologia, professora universitária e prostituta.
Outro, hare-krishna, líder da Galoucura, a fanática torcida organizada do Atlético Mineiro,
cozinheiro de restaurante natural e atendente de telemarketing. O terceiro, um angolano
com ambições literárias, avesso ao trabalho e pai de filho deficiente. Não é gente que se
encontra todo dia. (Zanin, 2011)10

Pedimos licença para discordar da análise um tanto superficial. Engana-se o crítico


quando menciona os personagens como estranhos, raros, inéditos. O mérito do filme
está em justamente evidenciar tais multiplicidades, expressas por natureza nas singu-
laridades do campo. O mérito do filme não está na descoberta de sujeitos tão escorrega-
dios em suas personalidades, mas na afirmação do qualquer enquanto singularidade.
O valor da dita obra cinematográfica está em brindar o espectador com seres vazios
de identidade. Um vazio ocupado por formas em devir. Existem muitos possíveis no
corpo de Evelyn, Lwei e Murari, qualidades individuadas em corpos que se mostram
impenetráveis em cena.
Podemos perceber o devir feminino no líder de torcida quando ele veste a indumen-
tária harekrishna e se emociona com os mantras sagrados do ritual, ao mesmo tempo
em que notamos sua agressividade no estádio de futebol lotado, quando comanda o
grito da multidão. Em outra cena, também observamos o transexual falando ao telefone
com um suposto aluno, dando dicas sobre bibliografia, citando Freud, Foucault e Judith
Butler, evidenciando sua familiaridade com teorias da sexualidade e gênero; na cena
seguinte, a personagem marca ponto na esquina de uma rua movimentada e é inter-
ceptada por clientes que clamam por sexo barato. Por outro lado, o devir pai de família
responsável do personagem do poeta Lwei também se mostra latente na cena em que
cuida de seu filho deficiente, posição que não se evidencia na cena em que o persona-
gem desfila nu e perdido pela casa, protegido por sua incapacidade de se enquadrar no
mundo do trabalho.
São personagens cuja beleza está exatamente na multiplicidade dos afetos em
potência. Entendemos como afeto uma “a qualidade que se relaciona com uma ação, com
uma percepção, com um comportamento, com um sentimento, mas que é considerado
independentemente da percepção ou da ação que o atualiza” (DELEUZE, 2011, p.
132). Afetos prestes a se atualizarem em corpos que no filme não são evidenciados
segundo os fundamentos e princípios da identidade, nem implicados em determinações
de sexualidade e raça. Um qualquer que habita a morada da diferença, cujos gestos
anunciam menos uma figura indefinida do que um sujeito pré-constituído, um quase-ser.
A ruptura se dá com as formas de representação ideal, abaladas pelo jogo das
potências. Assistimos durante todo o filme a um processo de modelização de sujeitos

10.  http://blogs.estadao.com.br/luiz-zanin/o-ceu-sobre-os-ombros/

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anônimos, cuja adequação à figura do qualquer não é marcada pela indefinição, pelo
vazio de personalidades, pela ausência de afetos ou de ações, entretanto traduz-se como
movimento permeados pela invenção. Personagens submersos em uma narrativa cujas
atualizações atravessam imagens que se desdobram em mundos desconhecidos, até
mesmo pelos sujeitos da enunciação.
O qualquer como singularidade (qualidade pré-individual), sobrevoa a individuação
dos corpos no filme. Um qualquer que não se assemelha ao ordinário. A singularidade
“é neutra. Em compensação não é ‘ordinária’: o ponto singular se opõe ao ordinário”
(DELEUZE, 2003, p.55). Uma condição neutra quando confrontada com modelos.
Qualidades não ordinárias, mas esmagadas por possibilidades. Um corpo fugidio que
transpira ambiguidades.
Aquilo que o qualquer acrescenta à singularidade é apenas um vazio, apenas um limiar.
Qualquer é uma singularidade, mais um espaço vazio, uma singularidade finita e todavia
indeterminável segundo um conceito. Mas uma singularidade mais um espaço vazio não
pode ser outra coisa, senão uma exterioridade pura, uma pura exposição. Qualquer é neste
sentido o acontecimento de um fora. (Agamben, 2013, p.64).

Entendemos este vazio como um pleno de potências. Desta forma, se a singula-


ridade qualquer é determinada apenas quando posta em relação a alguma ideia ou
objeto, ela é detentora de inúmeros possíveis, “ela pertence a um todo, mas sem que este
pertencimento possa ser representado por uma condição real” (AGAMBEN, 2013, p. 63).
Um qualquer que se estende a uma exterioridade, a um fora. O fora é aqui tratado nos
termos de Agamben, não como um lugar que atravessa um espaço determinado, mas
como uma passagem, “como uma exterioridade que lhe dá acesso” (2013, p.64), Portanto,
percebemos a figura do qualquer em uma operação que se mostra “na passagem”,
inserida em um processo de individuação. Envolto no espaço do entre, percebemos
tal dinâmica situada entre as categorias peircianas da primeiridade e da secundidade.
Descobrimos no filme uma espécie de indiferença em relação às propriedades
individuadas. Os personagens escapam a todo instante de uma tipificação imedia-
ta, desta maneira, eles se alternam em distintas possibilidades de existência e não
encerram os sentidos, os modelam em uma rede de sutis descentramentos. Assim,
não os descobrimos presos aos estereótipos, mas à tela de cinema, cujos contornos
libertam suas contradições. Por isso a dificuldade em enquadrá-los em tipos, pois
não reconhecemos suas singularidades pela equivalência, mas tensionadas pelas
contradições em deslize.
Há presente em todo o filme uma incapacidade julgamento. Os personagens exibem
personalidades que oscilam entre as instâncias do bem e do mal, da felicidade e da
revolta, da prisão e da liberdade. Somos envolvidos com a ambiguidade de um perso-
nagem, cujas experiências contadas são sempre abaladas pela sombra de uma dúvida.
O que assistimos nas cenas é uma confusão potente entre os sentidos hierarquizados
pela moral e, neste sentido, há uma quebra de convicções generalizada. Tal narrativa
vincula-se a um cinema que desconstrói as oposições. Trata-se de uma instabilidade
que não é redutora de sentidos, ao contrário, apresenta-se como base de uma encenação
que reside da passagem da primeiridade para secundidade.

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O Qualquer ou um Céu De Possibilidades

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O filme mais de uma vez se utiliza do recurso do plano geral panorâmico da cidade.
As imagens são comumente apresentadas em silêncio. O movimento da câmera é lento,
de modo que o que observamos é uma cidade que se revela aos poucos. Nada pode ser
identificado a não ser a possibilidade de muitas existências. No plano não escutamos
nenhuma voz, a não ser a que ecoa a diferença e a multiplicidade. Vemos milhares de
janelas, onde reflexos apontam para sujeitos que não conhecemos. Assim como Lwei,
Evelyn e Murari, personagens cuja existência acompanhamos por algumas horas, mas
que permanecem anônimos. Permanecem indefinidos no que toca uma identidade fixa,
mas definidos na figura do qualquer.
Evelyn está deitada semi-nua em sua cama. Fuma um baseado. O ventilador ligado
ameniza o calor do conjugado que habita. Ela está em silêncio. Uma música reverbera
do rádio. Nada mais acontece, apenas o tempo agindo sobre a ação. Um tempo que
parece pesar sobre a cena. Um tempo que não se mostra atenuante de movimentos, não
se mostra como pausa, mas como cúmplice de uma dada multiplicidade de possíveis,
prestes a se atualizarem naquele corpo, que paradoxalmente se encontra inerte, sem
nunca tornar-se definitivamente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. São Paulo: Autêntica, 2013.
DELEUZE, Gilles. A lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2003.
______. A ilha deserta. São Paulo: Iluminuras, 2008.
______. Cine II: Los signos del movimento y el tempo. Buenos Aires: Cactus,2011.
ESCOSTEGUY, Ana Carolina D. Cartografias dos estudos culturais. Belo Horizonte: Autentica,
2001.
GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1999.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
O CÉU SOBRE OS OMBROS. Sergio Borges. Minas Gerais: Vitrine Filmes, 2011, 1 DVD.
ZANIN, Luiz. O Céu Sobre os Ombros. São Paulo, 18 nov. 2011. Disponível em http://
blogs.estadao.com.br/luiz-zanin/o-ceu-sobre-os-ombros/ Acesso em: 27 jul. 2014.

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Leopoldo Torre Nilsson e o percursso rumo
à modernidade cinematográfica
E s t e vã o G a r c i a 1

Resumo: No contexto do cinema argentino da virada dos anos 1950 para os


60, se destaca o nome de Leopoldo Torre Nilsson, considerado o precursor do
movimento que teria inaugurado a modernidade cinematográfica na Argentina:
o Nuevo Cine Argentino ou Generación del 60. Nilsson é tido como o cineasta chave
da passagem entre o cinema clássico e o moderno em seu país como também
um dos pioneiros do cinema latino-americano moderno. Tanto em termos nacio-
nais como continentais, lhe é atribuído o rótulo de cineasta de transição. Por
meio da análise formal de seu filme El secuestrador (1958) objetivamos detectar
e interrogar as características que o definiriam como um cineasta da transição
entre o cinema clássico e o moderno.
Palavras-Chave: Cinema clássico. Cinema moderno. Cinema argentino. Leopoldo
Torre Nilsson. El secuestrador.

Abstract: In the context of argentinian cinema in the turn of 1950’s to 60’s,the most
prominent figure was Leopoldo Torre Nilsson, who paved the way to the contem-
porary and modern cinema in Argentina: the Nuevo Cine Argentino or Generación
del 60. Nilsson had a pivotal role in the transition from classic to modern cinema
in his country and was one of the pioneers of modern latin-american cinema. In
national or continental perspective he has been considered a director of transition.
Through a formal analyses of one of his films: El Secuestrador (1958), our goal is
to detect or find out the characteristics that made him a so called Transitional
Movie Maker, between classic and modern.
Keywords: Classic cinema. Modern cinema. Argentinian cinema, Leopoldo Torre
Nilsson. El secuestrador.

PRECURSORES OU PIONEIROS

O QUE É o cinema moderno? Conceito amplo, muitas vezes impreciso e nebuloso,


tem sido reinterpretado e debatido sem atingir uma definição que poderíamos
classificar como consensual. O termo cinema moderno, em sua origem, nos remete
aos escritos de André Bazin, onde aparece como expressão ao longo de suas análises
dos filmes do neorrealismo italiano, de Orson Welles, William Wyler e Jean Renoir.
No entanto, o uso do termo se estendeu para muito mais além desses realizadores ou
dos contextos históricos da produção de seus filmes, se convertendo em instrumental
teórico para pensar o surgimento dos Cinemas Novos. Trata-se, em linhas gerais, do

1.  Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais (PPGMPA) da Escola


de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP).

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Leopoldo Torre Nilsson e o percursso rumo à modernidade cinematográfica

Estevão Garcia

surgimento de filmes unidos pelos seguintes aspectos: técnicas narrativas peculiares,


realizadores jovens, produção fora das pautas tradicionais2. São os chamados Cinemas
Novos, cujo ponto de partida é a Nouvelle Vague francesa.
Mas, se o cinema moderno é sobretudo um conceito aplicado ao fenômeno dos
Cinemas Novos dos anos 1960, como nomear, dentro do campo da modernidade fíl-
mica, as experiências que surgiram um pouco antes? A historiografia do cinema tenta
escapar deste problema ao classificar determinados realizadores como “pioneiros” ou
“precursores”. Em outras palavras: como elementos de transição entre o antigo e o
novo, indispensáveis para a definitiva implantação do “novo”. Assim, entendemos que
a explosão dos Cinemas Novos em todas as partes do globo somente foi possível devido
ao trabalho desses “pioneiros”, entre eles, os citados diretores analisados por Bazin.

O CASO DE LEOPOLDO TORRE NILSSON


Neste sentido, no contexto do cinema argentino, se destaca o nome de Leopoldo Torre
Nilsson, considerado o precursor do movimento que teria inaugurado a modernidade
cinematográfica no país: o Nuevo Cine Argentino ou Generación del 60. Paranaguá (2003)
não só considera Nilsson como o cineasta chave da transição entre o cinema clássico e
o moderno na Argentina como também um dos pioneiros do cinema latino-americano
moderno. O historiador elenca o seu filme El secuestrador (1958) e Los olvidados (Luís
Buñuel, México, 1950) como os filmes que demarcariam a passagem de um cinema
latino-americano de estúdio típico dos anos 1930, 40 e 50 para o cinema de autor da
década de 1960. Em suma, tanto em termos nacionais como continentais, Nilsson é tido
como um cineasta de transição.
Determinados fatores corroboram para a disseminação dessa ideia e alguns deles
podem ser localizados na própria biografia do realizador. Nilsson nasce em 1924, por-
tanto, pertence à primeira geração de cineastas latino-americanos do pós-segunda
grande guerra. Ainda segundo Paranaguá, essa geração, seria a primeira composta
por cineastas intelectuais. Ao contrário das gerações passadas, formadas sobretudo por
cineastas autodidatas e intuitivos que aprenderam o ofício exercendo diversas funções
técnicas ao longo de anos nos estúdios, essa, obteve a sua formação nos cineclubes, na
leitura de revistas especializadas ou nas salas de aula das primeiras escolas de cinema.
Torre Nilsson, no entanto, teve as duas formações: a sedimentada pela nova cultura
cinematográfica do segundo pós-guerra e a tradicional dos sets de filmagem. Filho do
cineasta Leopoldo Torre Ríos, desde muito jovem teve acesso aos estúdios portenhos
onde de observador privilegiado logo passou ao papel de colaborador. Trabalhou em
diferentes funções até ser assistente de direção de seu pai. Após esse período, devido
a sua pouca idade, os estúdios só o deixaram assumir a direção mediante a condição
de que a dividisse com o seu pai e assim fez em dupla os seus dois primeiros filmes: El
crimen de Oribe (1950) e El Hijo del crack (1952).
Segundo España (2005, p.333-336) a vasta carreira de Nilsson pode ser dividida em
cinco fases. A primeira, iniciada logo após o seu longo período de aprendizagem nos

2.  O crítico italiano Lino Micciché define e singulariza os Cinemas novos em relação ao cinema clássico
por meio de cinco categorias ou níveis: estruturas narrativas, procedimentos rítmicos, fílmico, mensagens
ideológicas e estruturas produtivas, ver (MICCICHÉ, 1995, 25-30).

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Leopoldo Torre Nilsson e o percursso rumo à modernidade cinematográfica

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estúdios, compreende além dos dois filmes acima citados, Días de odio (1953), La tigra
(1953), Para vestir santos (1954) e El protegido (1956). A segunda etapa é considerada a mais
“frutífera e experimentadora” e também é singularizada pela colaboração com a escritora
Beatriz Guido, sua esposa. Abarca Graciela (1955), La casa del ángel (1957), El secuestrador
(1958), La caída (1959), Fin de fiesta (1959), Un guapo del 900 (1960) e La mano en la trampa
(1960). O terceiro período é o que se inicia com o “bergmaniano” Piel de verano (1961),
passa por La terraza (1962) e se caracteriza pelas frustradas coproduções, primeiro com
Columbia Pictures e depois com o produtor porto-riquenho André Du Rona. Logo após
essa etapa, Nilsson flerta com o cinema histórico espetacular, se escorando em certa
literatura consagrada e na história oficial, com o claro objetivo de estabelecer uma sinto-
nia com a ditadura do general Juan Carlos Onganía. Pertencem a esse momento Martín
Fierro (1968), El santo de la espada (1969) e Güemes, la tierra en armas (1971). Por fim, a sua
última fase compreende uma trilogia sobre os anos 1930 argentinos, também conhecidos
como a “década infame”: La máfia (1971), Los siete locos (1972) e El Pibe Cabeza (1974), como
também uma adaptação a Aldolfo Bioy Casares: La guerra del cerdo (1975) e um retorno
à obra literária de sua companheira Beatriz Guido: Piedra libre (1976).
No entanto, dentro de uma obra cinematográfica tão ampla e complexa, nos con-
centraremos em um filme de sua segunda fase: El secuestrador. O fato de que este filme,
como apontamos, seja considerado um dos precursores do cinema latino-americano
moderno e um demarcador da passagem entre o cinema industrial e o cinema de autor
na América Latina justifica a nossa escolha, uma vez que objetivamos analisar os pontos
que qualificariam Torre Nilsson como um cineasta da transição entre o cinema clássico
e o moderno. Antes, porém, revisaremos brevemente algumas características do cinema
clássico e do moderno para tentarmos compreender a possibilidade da coexistência
entre ambos em El secuestrador.

O CLÁSSICO E O MODERNO
A narrativa clássica apresenta personagens psicologicamente coerentes cujo per-
curso é marcado pela procura da resolução de problemas claramente indicados ou pela
busca de objetivos definidos. Em seu périplo, o personagem terá que enfrentar uma
série de dificuldades, motivadas pelo conflito estabelecido com outros personagens
ou por circunstâncias externas. A história se conclui com uma vitória retumbante do
protagonista, com o desmanche do nó principal ou com a culminação de seus objetivos
perseguidos. O que aqui se torna evidente é que o personagem protagonista é o principal
meio causal da história, em outras palavras, o motor que a faz andar. Construído como
um ser especial, distinto dos demais que circulam em seu entorno, é formado por uma
série coerente de características pessoais, condutas e objetivos. É em torno dele que
surge o problema principal, um estado de perturbação que altera a ordem natural das
coisas e que por isso mesmo precisa ser combatido para que tudo volte à normalidade.
A estrutura do argumento clássico pode ser assim resumida: uma situação de paz e
harmonia é alterada por uma perturbação, logo, surge, por meio do protagonista, a luta
contra essa perturbação e a sua posterior eliminação.
Na armação clássica de uma história a causalidade é o principal elemento uni-
ficador. As relações de causa e efeito se configuram como principio organizativo.

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Leopoldo Torre Nilsson e o percursso rumo à modernidade cinematográfica

Estevão Garcia

As similaridades e analogias entre personagens, espaço, cenários e situações podem


existir, porém, qualquer paralelismo estará subordinado ao movimento de causa e efeito.
A configuração do espaço e a disposição dos objetos que nele habitam são motivadas
pelo realismo e pela funcionalidade. A causalidade também motiva os princípios tem-
porais de organização: o argumento representa a ordem, a frequência e a duração dos
acontecimentos da história de forma a privilegiar as relações causais importantes. A
preponderância da causalidade dentro do mundo total da história submete a narrati-
va clássica a representações não ambíguas. Se a narrativa moderna pode embaralhar
as fronteiras que demarcam a realidade diegética objetiva, os comentários narrativos
inseridos, os estados mentais e a imaginação dos personagens, no cinema clássico sem-
pre haverá uma distinção clara entre essas esferas. Mesmo quando um filme clássico
restringe o conhecimento a um único personagem, haverá, a pesar de tudo, uma nítida
linha divisória separando a representação objetiva da subjetiva.
Bordwell (1996, p.163-164), ao analisar o estilo do cinema clássico narrativo distinguin-
do-o de outros estilos, ressalta três características. Mais além das classificações usuais
que definem o estilo clássico como “transparente” ou “invisível”, o autor procura através
de essas três proposições explicar as razões pelas quais esse estilo pode passar como
inadvertido para o espectador. Em outras palavras, destacar a “moderação” ou “natura-
lidade” de um estilo não é o mesmo que suprimir o seu papel como tal. Elas são: 1) Em
sua totalidade, a narrativa clássica trata a técnica fílmica como veículo para a transmissão
de informação da história por meio do argumento. 2) Na narrativa clássica o estilo habi-
tualmente alenta o espectador a construir um tempo e um espaço coerentes para a ação
da história. 3) O estilo clássico consiste em um número estritamente limitado de recursos
técnicos organizados em um paradigma estável e ordenado probabilisticamente segundo
as demandas do argumento. Dito de outro modo, o estilo clássico narrativo se trata de
um estilo em que o estilo fílmico está subordinado à história que está sendo contada.
Em relação à narrativa do cinema moderno podemos indicar que nela o argumento
não é tão redundante como no cinema clássico; que existem lacunas que não necessaria-
mente serão preenchidas; que a apresentação dos personagens e a exposição dos fatos
podem ser mais lentas; que a narrativa é menos motivada pelos códigos do cinema de
gênero, entre outros fatores. A narrativa cinematográfica moderna, ao tomar emprestadas
algumas chaves da modernidade literária, questiona a noção tradicional de “real”, em
outras palavras, as leis do mundo podem não ser cognoscíveis e a psicologia pessoal
pode ser indeterminada e incoerente. O mundo da imaginação pode ser descrito de
maneira tão objetiva quanto o mundo visível. Deste modo, essa nova convenção estética
se apodera de novas “realidades”: o mundo aleatório e irregular da realidade ordinária
e os estados passageiros que caracterizam a realidade subjetiva. Essa nova forma de
realismo motiva uma imprecisão das relações de causa e efeito, uma construção episódica
do argumento e um aumento da dimensão simbólica do filme por meio das flutuações
da psicologia do personagem.
Se o protagonista clássico corre em busca de seu objetivo, o protagonista do cinema
moderno é apresentado oscilando passivamente entre uma situação e outra. Se o pro-
tagonista clássico luta, o protagonista à deriva do cinema moderno perambula por um
itinerário que contempla o mundo social. Se, para fazer a história andar, o protagonista

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clássico é obrigado a enfrentar um “mal” concreto (um personagem antagonista, uma


catástrofe, etc...), o protagonista moderno muitas vezes se vê envolvido em um conflito
contra ele mesmo, dito de outro modo, em um dilema existencial. O cinema moderno,
assim como o cinema clássico, se apoia na causalidade psicológica de seus persona-
gens, porém, eles usualmente não apresentam traços, motivos e objetivos nítidos. Os
protagonistas podem agir incoerentemente ou podem se questionar a respeito de seus
propósitos. Trata-se de um efeito da narrativa, que pode não dar relevância aos projetos
causais dos personagens, se silenciar a respeito de suas motivações, enfatizar ações e
intervalos “insignificantes” e nunca revelar os efeitos de suas ações. A concentração na
importância existencial da situação motiva que os personagens expressem e expliquem
os seus estados mentais. Menos preocupado pela ação do que pela reação, o cinema
moderno apresenta efeitos psicológicos à procura de suas causas.
O cinema moderno não é clássico porque cria lacunas narrativas permanentes
e chama a atenção para os processos de construção formal da história. Porém, tais
estratégias, compreendidas como infrações ou rupturas ao sistema clássico, podem ser
situadas dentro das normas do realismo ou do comentário autoral3. Sempre que nos
defrontamos com um problema de causalidade, tempo ou espaço, procuramos solucioná-
-lo com uma motivação realista. Será que a nossa incompreensão das situações descritas
se originam na confusão do estado mental de um personagem? A trama aparenta ser
inteligível porque ela está simplesmente emulando a vida ao nos deixar sem respostas
concretas? Aqui, ao contrário do cinema clássico, frequentemente nos sentimos frus-
trados em relação às nossas expectativas da história e, quando isso ocorre, apelamos à
narrativa ou até mesmo ao autor. O narrador está violando as normas para conseguir
algum efeito específico? Há algum significado temático ou conceitual que justifique a
quebra das regras? Qual é a razão de um final aberto dentro do sistema narrativo do
filme? Que significados simbólicos podemos interpretar a partir de suas pautas? As
respostas, assim como o filme, vacilam e oscilam entre razões realistas ou autorais. A
incerteza persiste, porém, é uma incerteza “evidente”, compreendida como inerente a
esse estilo narrativo. O objetivo é instigar a capacidade interpretativa do espectador e
enfatizar a ambiguidade, tanto da história como do modo de contá-la.

EL SECUESTRADOR
O filme nos introduz a um bairro afastado e miserável de Buenos Aires onde mora
Berto (Leornado Favio), um adolescente de 16 anos, filho de uma quitandeira. O pro-
tagonista é líder de uma pequena quadrilha composta por um pré-adolescente e duas
crianças, os irmãos Gustavo (Carlos López Monet) e Pelusa (Oscar Orlegui) que, por sua
vez, carregam o caçula Bolita, um bebê de um ano de idade. Aos poucos, a narrativa
nos faz entender que a mãe dos garotos é alcoólatra e que, impossibilitada de cuidar
de seu filho por conta do vício, o deixa sob os cuidados dos irmãos. A família é ainda

3.  Segundo Bordwell (1996, p.209) podemos entender como comentário autoral aberto quando o ato narrativo
interrompe a transmissão da informação da história e enfatiza o seu papel. Isso pode acontecer por meio
de um ângulo incomum, um corte acentuado, um movimento de câmera surpreendente, uma alteração
não realista na iluminação, uma disjunção na banda sonora ou qualquer outra interrupção do realismo
objetivo não motivada pela subjetividade dos personagens. Todos esses efeitos podem ser compreendidos
como um comentário da narrativa.

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composta por um pai bêbado e agressivo e por Flávia (María Vaner), tia materna dos
meninos e namorada de Berto. O espaço do bairro é logo no inicio desenhado e estru-
turado de forma coerente. Sabemos que está localizado próximo a um pântano – que
futuramente será importante para a história –, dos trilhos de um trem de carga e de um
porto. Os ruídos que emanam tanto do trem como dos navios serão significativamente
presentes na banda sonora.
Tendo sido feita a apresentação dos personagens e de seu entorno, logo podemos
pensar que se trata de um filme de inspirações neorrealistas. Constatamos aqui a prepon-
derância de cenas filmadas em locações – apesar de o filme ser produzido pela Argentina
Sono Film –, a presença de crianças e o retrato das classes populares e humildes. No
entanto, com a exceção das crianças, todos os demais atores são atores profissionais. A
representação do povo, ao contrário da grande maioria dos filmes neorrealistas, não
é idealizada. Temos a presença de um mundo cruel e violento onde o meio apresenta
notável reverberação no comportamento e na maneira de pensar de seus habitantes.
Na cena em que os meninos entram pela primeira vez na casa, vemos um breve plano
inclinado não motivado pelo ponto de vista dos personagens e sem nenhuma outra
explicação “realista”. Esse efêmero plano já nos indica a despreocupação do realizador
com o realismo e a sua ênfase acima de tudo no estilo.
O seu estilo, como no cinema clássico, está a serviço da história, mas não só. Há
aqui a presença de comentários autorais abertos. A sequência da quermesse se encerra
com o detalhe do que parece ser um cartaz de filme onde visualizamos um casal se
abraçando. Perguntamo-nos o que o narrador pretendeu nos indicar com a ênfase em
um objeto do cenário que nos planos anteriores nos pareceu irrelevante. O uso da música
vanguardista e dodecafônica, composta pelo músico erudito Juan Carlos Paz, confere ao
filme um universo sonoro inovador e também pode ser entendido como um comentário
autoral, uma vez que causa um notável estranhamento.
A transição entre as sequências são demarcadas de maneira funcional: fusões suaves
concretizam a passagem de um segmento para o outro. Porém, apesar da construção
temporal ser linear, a narrativa é episódica. Temos a noção dos dias transcorridos e da
delimitação dos dias e das noites, no entanto, as situações são expostas em bloco. Não
há aqui um objetivo concreto a ser alcançado. As motivações do protagonista estão
concentradas entre articular um novo golpe e conseguir levar a sua namorada para a
cama. Os garotos também apenas vivem o seu cotidiano: cuidam irresponsavelmente
do bebê, brincam e sonham em possuir um carrinho de algodão doce. Essa maneira de
organizar as situações expostas e a indeterminação dos personagens traz ao filme um
inevitável tom de crônica.
Berto, o protagonista, fracassa em todas as suas ações. Tenta orquestrar um primeiro
roubo de grande monta, mas, ao propor o negócio a Banano, é agredido por este que
decide o excluir e empreender o roubo à borracharia com a sua própria gangue. Depois,
quando finalmente convence Flávia a fazer sexo e arranja um local para concretizar o
coito – um panteão abandonado em um cemitério – é surpreendido por dois homens
que, além de golpeá-lo, estupram a sua namorada. Posteriormente, ao tentar se vingar
de seus algozes, mais uma vez vê os seus planos serem frustrados. Os homens arrancam
a espingarda que levava e novamente o derrubam com violência. A sua impotência e

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Leopoldo Torre Nilsson e o percursso rumo à modernidade cinematográfica

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incapacidade de realizar seus desejos faz com que Berto esteja longe de ser um protago-
nista clássico. Porém, ele tampouco encontra espaço para desdobrar os seus problemas
existenciais. Esses são levemente sugeridos. O protagonista masculino envolvido em
seus dilemas pessoais aparecerá em filmes posteriores de Torre Nilsson: Fin de fiesta
(1960), Piel de verano (1961) e El ojo que espía (1967). Curiosamente, todos os protagonistas
desses filmes pertencem à alta burguesia. Será que crises existenciais se configuram
como privilégio das classes abastadas? Ou será que é o meio que não permite Berto a
ter subjetividade?
Veremos o meio se expressar com todas as suas forças na última parte do filme.
Da cena do estupro de Flavia em diante, Bolita será devorado por um porco selvagem,
Flavia tentará o suicídio e um menino de sete anos será assassinado acidentalmente por
Gustavo e Pelusa. Antevendo a polêmica que essas fortes cenas suscitariam, Torre Nilsson
publica um texto no dia 24 de setembro de 1958, véspera da estreia de El secuestrador, no
jornal El Mundo em que afirma: “o cinema não é uma guloseima para satisfazer imbecis,
nem um sedante para curar dores de cabeça. O cinema deve ser um dedo acusador, o
descobridor de uma chaga, um vociferador da verdade”. E se dirigindo diretamente aos
seus interlocutores: “E vocês, espectadores, não devem ir a ele para esquecer as suas
preocupações e sim para encontrar refletidas, por cima das pequenas preocupações
diárias, as grandes preocupações do mundo. Dessas preocupações sublimadas está
escrita a melhor história do homem4.” (NILSSON, 1985, pp.153-154)
Torre Nilsson utiliza esse espaço na imprensa para falar como autor e não como
um simples artesão ou fazedor de filmes. O realizador expõe a sua visão do cinema e
do mundo ao afirmar veementemente o que o cinema é e o que ele não é. Ele também
orienta os espectadores de como fazer um bom uso da experiência cinematográfica: não
convertê-la em simples diversão ou escape e sim em instrumento reflexivo. A totalida-
de das críticas publicadas na época da estreia de El secuestrador, mesmo as negativas,
enxergaram Torre Nilsson como um diretor renovador e capaz de cumprir o objetivo de
tirar o cinema argentino da mesmice5. Deste modo podemos concluir que o próprio
realizador, a crítica e a maior parte do público compreendiam o seu trabalho artístico
como um projeto autoral. Ao mesmo tempo, Torre Nilsson era um diretor contratado
da Argentina Sono Film desde 1954.
A contradição em ser simultaneamente um reconhecido autor cinematográfico e um
funcionário de um grande estúdio o coloca entre um modelo produtivo “antigo” e um
paradigma novo. Em uma resenha publicada em Crítica no dia 26 de setembro de 1958,
afirma-se como características negativas de El secuestrador o fato de a narrativa deixar
alguns nós soltos e a aparência supérflua de determinados diálogos. Como apontamos,
a estratégia de deixar problemas não resolvidos e de transmitir informações aparente-
mente desimportantes para o andamento da história é inerente ao cinema moderno. O
crítico adotou como parâmetro de sua análise as regras do cinema clássico e enxergou

4.  “El cine no es una golosina para empalagar imbéciles, ni un sedante para calmar dolores de cabeza.
El cine debe ser un dedo acusador, un descubridor de una llaga, un vociferador de la verdad. Y ustedes,
espectadores, no deben ir a él para olvidar sus preocupaciones, sino para encontrar reflejadas, por encima
de las pequeñas preocupaciones diarias, las grandes preocupaciones del mundo. De esas preocupaciones
sublimadas está escrita la mejor historia del hombre”. (A tradução é nossa).
5.  Ver (Guevara, 2011).

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esses desvios como um defeito. Outra característica moderna do filme que podemos
destacar é a sua ambiguidade. Conforme nos indicou Guevara (2011) em seu trabalho
sobre a recepção crítica a El secuestrador, os comentaristas se dividiram e se divergiram
em torno a três debates principais. O primeiro deles diz respeito se o filme é realista ou
irrealista e simbólico. O segundo se relaciona com as questões morais do bem e do mal
e suas representações e finalmente, o terceiro se refere à chave interpretativa do final:
trata-se de um final otimista ou pessimista? Percebemos que todos eles se originaram
por conta do signo da ambiguidade.
De fato, o filme não exibe uma demarcação clara entre o bem e o mal. Ambos estão
misturados e diluídos no comportamento de seus personagens. Atos perversos e nocivos
muitas vezes são realizados de maneira inconsciente. A linha divisória que separa o certo
do errado está apagada e logo a sua inclusão no campo de visão dos personagens está
impossibilitada. Como havíamos dito anteriormente, o realizador não está comprometido
em mimetizar a realidade e sim com o seu estilo e com a forma adotada para narrar a
história. O que lhe interessa é a imagem e não a realidade. O filme não critica ou denun-
cia instituições concretas e sim apenas mostra um conjunto de situações que caberá ao
espectador interpretar e julgar. Compreendemos que o final de El secuestrador não nos
permite uma leitura que o classifique como “feliz” ou “otimista”. O fato de vermos Gustavo,
Pelusa, Berto e Flavia aparentemente felizes andando em um carrinho de algodão doce
não pode ser interpretado de maneira isolada e sem levar em conta certas eleições formais
que compõem a cena. Os dois meninos estão anestesiados e presos em uma fantasia. O
casal adolescente adere ao jogo infantil na tentativa de camuflar a experiência traumática
que acabaram de sofrer. O cruzamento entre o carrinho de doces e o carro fúnebre que
leva o corpo do menino assassinado pelos dois irmãos sublinha a crueldade inconsciente
dos personagens e a dimensão trágica do entorno em que todos estão inseridos. A música
que escutamos na banda sonora não emite nenhum significado de felicidade, harmonia
ou tranquilidade. A sensação de caos, confusão e desconexão persiste.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos concluir que em El secuestrador estão presentes características próprias
do cinema moderno do segundo pós-guerra coexistindo com estratégias do cinema
clássico. O filme pode ser enquadrado para fins promocionais em um gênero cinema-
tográfico definido e se escora em atores famosos para atrair o grande público. Adere
ao ímpeto comunicativo do cinema clássico e constrói o espaço e o tempo de maneira
coerente. Não temos o espaço fragmentado do cinema moderno e o tempo é disposto
de forma linear. Ao mesmo tempo nos defrontamos com uma narrativa episódica e
não direcionada à resolução de um problema concreto ou de um objetivo definido. As
relações de causa e efeito são imprecisas, os traços psicológicos do protagonista não
são totalmente definidos e todos os seus desejos são frustrados. Encontramos também,
localizados em certos momentos, comentários autorais que evidenciam o processo for-
mal e a presença do narrador. A ambiguidade, ponto central do cinema moderno, é aqui
uma constante. Está presente no conteúdo exposto na história e na forma em que ela
é estruturada e narrada, ampliando assim a necessidade interpretativa do espectador
em sua relação com o filme.

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Leopoldo Torre Nilsson e o percursso rumo à modernidade cinematográfica

Estevão Garcia

REFERÊNCIAS
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ESPAÑA, C. (2005). “Leopoldo Torre Nilsson. El riesgo de una mirada renovadora” in
ESPAÑA, C. Cine Argentino, Modernidad y Vanguardias (1957-1983) Vol. I. Buenos Aires:
Fondo Nacional de las Artes.
GUEVARA, E. (2011). “La recepción de El secuestrador de Torre Nilsson desde 1958 hasta
hoy” in Imagofagia, Revista de la Asociación argentina de estudios de cine y audiovisual,
Número 4, outubro de 2011. Recuperado em 9 de março, 2015, de: http://www.asaeca.org/
imagofagia/sitio/index.php?option=com_content&view=article&id=150%3Ala-recepcion-
-de-el-secuestrador-de-torre-nilsson-desde-1958-hasta-hoy&catid=42&Itemid=93#1
MANETTI, R (2005). “Torre Nilsson y el encuadre de su caligrafía fílmica” in ESPAÑA, C.
Cine Argentino, Modernidad y Vanguardias (1957-1983) Vol. I. Buenos Aires: Fondo Nacional
de las Artes.
MARTÍN, J. A (1980). Los films de Leopoldo Torre Nilsson. Buenos Aires: Corregidor.
MICCICHÉ, L. (1995). “Teorías y poéticas del Nuevo Cine” in Historia General del Cine,
Volumen XI, Nuevos Cines (años 60), Madrid: Cátedra.
PARANAGUÁ, P.A. (2003). Tradición y modernidad en el cine de América Latina. Madrid: Fondo
de Cultura Económica, 2003.
TORRE NILSSON, L.(1985). Torre Nilsson por Torre Nilsson, COUSELO, J. (Org.) Buenos Aires:
Fraterna.
VIEYTES, María del Carmen (Org.) Leopoldo Torre Nilsson. Una estética de la decadencia.
Buenos Aires: Altamira, 2002.

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Fernando Gabeira: o repórter-escritor nas narrativas
de seu programa televisivo homônimo
Fernando Gabeira: the reporter-writer in your
narratives of television program namesake
B r u n o Te i x e i r a C h i a r i o n i 1

Resumo: O principal objetivo desta pesquisa é realizar um estudo narratológi-


co da produção jornalística de Fernando Gabeira em seu programa televisivo
homônimo à luz da teoria da escritura proposta por Roland Barthes. O corpus
da pesquisa constitui-se de uma edição da primeira temporada do programa no
canal a cabo Globo News, exibida de setembro de 2013 a outubro de 2014, e de
dois livros por ele escritos: ‘Onde está tudo aquilo agora? Minha vida na política’
– 2013 e ‘O que é isso, companheiro?’ – 2009. No fim, pretende-se concluir que,
em seu programa televisivo calcado na busca por um caráter mais experimental
da reportagem, o jornalista Fernando Gabeira revela o escritor.
Palavras-Chave: Televisão. Reportagem. Escritura. Narrativas televisuais.
Fernando Gabeira.

Abstract: The main objective of this research is to realize a narratological study


of journalistic production Fernando Gabeira in its namesake television program
in the light of the theory of scripture proposed by Roland Barthes .The research
corpus consists of an edition of the first season of the program on channel Globo
News cable, displayed from September 2013 to October 2014, and two books
that he wrote, ‘Where is all that now? My life in politics ‘ - 2013 and ‘ What is it
, mate ?’ - 2009. In the end, we intend to conclude that in his television program
underpinned by the search for a more experimental character of the story, the
journalist Fernando Gabeira reveals the writer.
Keywords: Television. Report. Writing. Televisual Narratives. Fernando Gabeira.

I. INTRODUÇÃO

O CAMINHO DAS águas. Corrente, fluída, viva. O azul cristalino. Já é possível dizer:
terra à vista. O píer, a mata verde intenso, a neblina que encobre a montanha.
A bordo do barco, milhares de turistas se dirigem ao cenário que se apresenta
paradisíaco e, então, surge no vídeo a figura de um homem: cabelos brancos, óculos
escuros, colete, marcas de uma trajetória, do tempo. Ele carrega uma pequena câmera
na mão esquerda e se prepara para descer no porão de um navio. Eis um repórter à
moda antiga.

1.  Jornalista e documentarista. Doutorando em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade


Católica de São Paulo (PUC-SP). É mestre em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero com MBA em
Cinema Documentário pela FGV-SP. E-mail: brunochiarioni@gmail.com.

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Fernando Gabeira: o repórter-escritor nas narrativas de seu programa televisivo homônimo

Bruno Teixeira Chiarioni

Uma trilha serena, pontual, externa à diegese, dá o tom às imagens pontuadas por
uma voz pausada, bem característica, e texto informal. “Hoje, vamos dar um passeio na
Ilha Grande. Uma ilha no sul do Estado do Rio de Janeiro, que se transformou em um
centro turístico internacional. As pessoas vão e vêm da Ilha Grande e não percebem
que existe um pedaço de história do Brasil por aqui. História, sobretudo, dos presídios”
(GLOBO NEWS, 2014).
A sequência que abre este artigo compõe um dos episódios da primeira temporada
do programa homônimo de Fernando Gabeira, veiculado no canal a cabo Globo News.
Depois de décadas na política, Gabeira decidiu voltar a se dedicar exclusivamente ao
jornalismo, uma de suas paixões. Em novembro de 2012, ele passou em revista a carreira
ao lançar a autobiografia Onde está tudo aquilo agora? Minha vida na política, e estabeleceu:
“no momento em que escrevo, ainda estou vivo. Quero dizer que não esgotei meus papéis
históricos. Cinquenta anos de vida pública. Não pretendo concluir, apenas fechar um
ciclo” (GABEIRA, 2012, p.7).
No ano seguinte, em setembro de 2013, Gabeira estreou seu programa de TV semanal,
com entrevistas e reportagens. Exibido aos domingos, a cada edição, um novo tema,
ligado a interesses de brasileiros de todas as classes sociais e regiões do país. As pautas
são variadas: os andarilhos da Via Dutra, rodovia que liga São Paulo ao Rio de Janeiro;
os percalços e os improvisos dos candidatos à presidência de partidos menores – Gabeira
foi o homem da linha de frente do Partido Verde; o naturismo como fonte de turismo em
cidades litorâneas – movimento que ele engajou como luta política; a grande seca que
assola a produção agrícola; os mineiros do sonho americano – país que está proibido de
entrar por ter participado do sequestro do embaixador Charles Elbrick – e a viagem de
volta à Ilha Grande, onde ficou preso na ditadura militar, episódio em análise neste artigo.
No programa televisivo, Gabeira confidencia:
Eu estou aqui no porão do navio Tenente Loretti (figura 1). Um navio mítico, porque leva-
va todos nós, prisioneiros, à Ilha Grande. Não há um prisioneiro que tenha passado pela
Ilha Grande que não se lembre do Tenente Loretti, agora em estado de degradação. Ele
está sendo recuperado para integrar o museu da Ilha Grande. Eu vou à Ilha Grande, não
no Tenente Loretti, porque ele não consegue mais viajar, mas vou me encontrar com um
preso que está lá e que decidiu, apesar da implosão do presídio pelo Governo, morar lá.
Continuar ao lado do presídio. Nós vamos conversar sobre essa história, inclusive sobre o
destino de tantos cachorros que existiam no presídio e foram jogados no mato no momento
da implosão (GLOBO NEWS, 2014).

Figura 1. Fernando Gabeira no porão do navio – Reprodução GLOBO NEWS

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Fernando Gabeira: o repórter-escritor nas narrativas de seu programa televisivo homônimo

Bruno Teixeira Chiarioni

Em cinquenta anos de atividade pública, Fernando Gabeira traçou caminhos pela


história política e cultural do país como revolucionário, ecologista, guerrilheiro, depu-
tado, exilado, jornalista, ativista, cidadão, entre tantos outros. Porém, ele jamais se fixou
num dos muitos papeis que lhe couberam: “Fernando Gabeira tornou-se um nome
mítico” (BRANDÃO, 2009, p.8).

II. REMINISCÊNCIAS DE UMA TRAJETÓRIA


Para Sarlo (2007, p.24), “não há testemunho sem experiência, mas tampouco há expe-
riência sem narração”. Em ressonância, destaca-se o célebre texto de Walter Benjamin
sobre O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Nos escritos, datados de 1936,
portanto falamos de quase 80 anos, Walter Benjamin discorre sobre a relação jornalismo
e narrativa.
O filósofo alemão não fala no mesmo tempo da internet ou da tevê no Brasil, mas o
texto se apresenta bem atual. Naquela época, ele escreve que a imprensa seria a grande
responsável pela decadência da narrativa. Em suas linhas, o filósofo alemão sentencia
que a arte de narrar estava a caminho da extinção em decorrência de um fenômeno social
identificado por ele, ainda na primeira metade do século XX: as ações da experiência
foram gradativamente desvalorizadas e as pessoas privadas de uma capacidade que
parecia universal e inerente ao homem, a de intercambiar experiências.
Benjamin destaca que a narrativa estava definhando porque a sabedoria – o lado
épico da verdade – encontrava-se em extinção e define: “o extraordinário e o miraculoso
são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao
leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser e, com isso, o episódio narrado
atinge uma amplitude que não existe na informação” (BENJAMIN, 1994, p. 203). Adiante,
em seus escritos, somos surpreendidos:
Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histó-
rias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações.
Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo
está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações (idem,
ibidem, p.203).

Anos mais tarde, Roland Barthes, em Mitologias, também avança os estudos acerca
do jornalismo, ao refletir que o mesmo está “totalmente voltado para a tecnocracia [...]
a opinião do especialista é mais requerida do que a do sábio universal” (BARTHES,
2013, p.127), quando não muito para o fenômeno chamado fait divers, a informação que
“constitui um ser imediato, total, que não remete, pelo menos formalmente, a nada de
implícito” (BARTHES, 2013, p.59).
Em O grau zero da escrita, Barthes busca um outro horizonte ao estabelecer um
ensaio sobre a relação de Proust e os nomes, onde se ocupa da força do Nome Próprio para
destacar que ele pode ser definido “como a história de uma escrita” (BARTHES, 2004,
p.143), ou melhor, uma escritura, uma vez que para compor Em busca do tempo perdido,
“o próprio Proust conheceu, na vida, esse traçado iniciático” (BARTHES, 2004, p.145).
O tema central da obra não é propriamente o retrato da sociedade francesa do fim do

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Fernando Gabeira: o repórter-escritor nas narrativas de seu programa televisivo homônimo

Bruno Teixeira Chiarioni

século XIX, “e sim a luta do espírito, da atividade criadora, contra o tempo, diante da
impossibilidade de se encontrar na vida real um ponto fixo de referência ao qual o nosso
eu possa se prender. O tema essencial de Proust é o encontro desse ponto de referência
na obra de arte” (PY, 2014, p.12). Assim, destaca-se que “o Nome Próprio é de certo modo
a forma linguística da reminiscência” (BARTHES, 2004, p. 147).
Ao compreendermos um programa de TV como “texto” – e tratarmos a narrativa
“como uma hierarquia de instâncias” (BARTHES, 2013, p.27) – é possível encontrar
no discurso televisivo de Fernando Gabeira as reminiscências de uma escritura. A
escritura como a escrita de um escritor. Assim, tem-se a escritura de Gabeira. Do
escritor. Do repórter.
Na atração da Globo News, ele é o retrato do homem livre que retorna a temas de sua
jornada, em passagens que remetem às escrituras de sua autobiografia – ponto central
desta análise – e também de toda sua obra ficcional e não-ficcional, composta por outros
13 títulos, publicados ao longo de mais de três décadas, em uma clara identificação entre
o repórter e o caminhante; o escritor e as circunstâncias; o político e os enfrentamentos;
o brasileiro e as histórias anódinos do cotidiano. Sob essa ótica, conforme diz Barthes:
“avançar pouco a pouco nas significações do nome é aprender a decifrar as essências”
(BARTHES, 2004, p.158).
Nas páginas de Onde está tudo aquilo agora? Minha vida na política, mas que também
poderia ser Fernando Gabeira por Fernando Gabeira, em alusão à autobiografia de
nome duplo, escrita por Roland Barthes, ele escreve sobre a Ilha Grande, onde ficou
preso durante o regime militar: “estávamos numa cela vizinha da solitária onde os
presos cumpriam seu castigo. Havia choro, reclamação; um preso paralítico passou a
noite pendurado nas grades pelas algemas” (GABEIRA, 2012, p.83).
No episódio televisivo, o repórter Fernando Gabeira é também caminhante. “Como
prisioneiros, viajamos neste porão. Ao lado dos sacos de batata e arroz. As viagens
eram longas, apesar de levarem os mesmos 90 minutos que as barcas de hoje levam
transportando os turistas para a ilha. Muita água passou por aqui. As viagens agora
são tranquilas” (GLOBO NEWS, 2014). Registros de uma busca do “tempo perdido”,
afinal “os sons dos Nomes evocam outras sensações, visuais, táteis, olfativas e mesmo
palatais” (MACHADO, 2014, p.43), costurada em uma espécie de rememoração de sua
história pessoal – “sair das celas, só para conversar nos corredores ou para o banho de
sol. Eram permitidas visitas nos fins de semana, embora a repressão sempre pudes-
se cancelá-las, por temor ou simples represália” (GABEIRA, 2012, p.81), e da própria
História do Brasil:
Hoje é tudo tão diferente que custo a acreditar que o Tenente Loretti existiu trazendo e
levando prisioneiros. Mesmo com as nuvens escondendo parte da mata, volto sempre com
alegria à Ilha Grande. Não busca nela apenas o período de prisão, mas a vontade de rever
a última paisagem que vi no Brasil, quando parti para o exílio de 9 anos e meio. Depois do
exílio, já estive aqui vendo o intenso turismo na praia do Abraão, sobretudo nos dias em
que chegam os transatlânticos, os bares se enchem e as figuras cosmopolitas completam a
paisagem (GLOBO NEWS, 2014).

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Fernando Gabeira: o repórter-escritor nas narrativas de seu programa televisivo homônimo

Bruno Teixeira Chiarioni

Como destaca Torres, “Gabeira sempre se manteve à margem, no acostamento,


cruzando a pista vez por outra, mas no contra-fluxo, na contracorrente. Vendo-o na TV,
interessado por uma escolha tão radical de vida, me veio a sensação de que a obra era
um elogio ao livre-arbítrio. Uma quase autobiografia” (TORRES, 2013, p.E-12).
Hesitei muito em subir para a vila de Dois Rios no dia de chuva. Afinal, lembrava-me de
um caminho ensolarado. Talvez, por causa disso, não tenha visto a mata naquela época,
que hoje é objeto de inúmeras pesquisas por um núcleo da Universidade Estadual do Rio
de Janeiro. Com a chuva e as cascatas descendo o morro, lembrei-me da importância das
águas por aqui. O presídio, além da paisagem, tinha uma água de excelente qualidade
(GLOBO NEWS, 2014).

Gabeira participou do sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick,


às vésperas do 7 de setembro de 1969, naquela que ficou conhecida como a mais ousada
ação da guerrilha urbana. “Não me lembro de nada, exceto de que era um dia nublado,
desses milhares de dias que entram na gaveta da memória e de lá não saem jamais”
(GABEIRA, 2009, p.95).
O sequestro era uma forma de pressionar o regime a liberar 15 presos políticos, ligados
a organizações clandestinas da esquerda política. Depois de viver na clandestinidade,
Gabeira foi preso na cidade de São Paulo, em 1970. Ele resistiu à prisão, tentou fugir e
acabou atingido por um dos vários tiros disparados pelos soldados.
Ouvi os gritos de para, para. Ouvi os primeiros tiros e inclusive me entusiasmei: os tiros
explodiam e eu continuava correndo. Ao tentar sair da rua e pular o mato, um dos tiros
me alcançou pelas costas. Senti apenas um baque para a frente, uma dor aguda e deixei
o corpo cair. Dessas coisas que se pensam no chão, sem nenhuma consequência prática,
como um lutador batido que imagina, dez vezes, subir de novo ao ringue e não percebe
que a luta terminou. Pensava: vou levantar e continuar minha carreira, mesmo com esse
tiro nas costas. Vou levantar e me meter no mato. Tudo isso se passava, mas meu corpo
estava afundado na poeira da rua. Fiquei reduzido à ideia de correr e eles me cercavam
(idem, ibidem, p. 150-151).

No episódio televisivo, Gabeira vai na busca do homem que ainda hoje habita
a Ilha – “um pouco dessas memórias anda vivem com seu Júlio, um prisioneiro que
decidiu continuar morando aqui mesmo depois da implosão do presídio” (GLOBO
NEWS, 2014); investiga sobre as questões de cidadania do local – “[...] aqui não tem posto
de saúde, realmente os alunos têm que percorrer 12 quilômetros, e a nossa dificuldade
é grande” (GLOBO NEWS, 2014) reconhecendo ora o protagonismo – “aproveitei essa
passagem para ver a Vila de Dois Rios na posição do guarda que fica na entrada do
presídio. Para mim, como prisioneiro, era uma visão impossível” (GLOBO NEWS, 2014)
ora o antagonismo – “Fui para a cela, paguei 33 dias de isolamento e voltei para o
convívio. Aí, o diretor perguntou se eu iria fugir novamente. E eu disse que se houvesse
oportunidade, eu iria fugir. Até que o capitão decidiu me soltar e falou para eu ir onde
quisesse” (GLOBO NEWS, 2014).
Seu Júlio estava libertado, mas não livre: “eu achei por bem morar na Ilha Grande
[...] E lá fora é o seguinte: e não ia ter recurso por motivo que eu estava com a mão na

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Fernando Gabeira: o repórter-escritor nas narrativas de seu programa televisivo homônimo

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frente e a outra atrás” (GLOBO NEWS, 2014). Quando o momento chegou, Gabeira
optou pelo exílio:
Naquele instante, a imagem que nos veio à cabeça foi a de uma roda se movendo, a roda da
história. Em dias monótonos, na cadeia, eu pensava que ela custava a se pôr em movimento.
Mas agora, num simples impulso, ela nos lançava longe. A cena da saída foi tão bonita que
temi não viver outra assim. E essa experiência de certo modo me dizia o quanto eu estava
ligado ao Brasil e como na alegria da liberdade do desterro já se insinuava, despercebido,
outro desejo maior: o da volta. Fomos banidos do Brasil (GABEIRA, 2012, p.85).

III. O JORNALISMO TELEVISIVO COMO JORNADA DE VIDA


Antes de se discutir o formato de Fernando Gabeira, é preciso fazer um retrospecto. A
televisão nasceu de várias inovações que vão desde o domínio fotográfico até a síntese das
imagens animadas do cinema. Assim como na Paris do fim do século XIX, as primeiras
imagens em movimento do cinema no Brasil também despertaram um enorme interesse
nos espectadores. As histórias que os jornais traziam em textos narrativos e, algumas
vezes em fotografias, ganhavam então o conceito de vida a ser vista – “o gosto do público
pela realidade” (SCHWARTZ, 2001, p.411).
Como reforça Schwartz, o cinema levou a “incorporar muitos elementos que já
podiam ser encontrados em diversos aspectos da chamada vida moderna” (SCHWARTZ,
2001, p.412).
A cidade em constante movimento, cenas da vida cotidiana. Registros que causa-
ram um primeiro impacto, mas não o suficiente para continuar a atrair espectadores às
salas escuras. Era preciso mais. “Foi assim que os operadores Lumière, num primeiro
momento, e todos os seus êmulos em seguida, partiram aos quatro cantos do mundo
para trazer de volta imagens de um outro dia a dia, ou, melhor dizendo, imagens do dia
a dia do Outro” (FREIRE, 2011, p.88).
Foi assim também com a televisão. No Brasil, ela surgiu em 10 de setembro de 1950,
quando se deu a primeira exibição de caráter experimental. Oito dias depois, a primeira
emissora foi inaugurada oficialmente – a TV Tupi Difusora de São Paulo. O meio é revi-
gorado com a criação da Rede Globo, em abril de 1965. Tratou-se de uma mudança no
conceito de emissora, uma vez que “o contrato com a empresa norte-americana Time-Life
previa assistência por 10 anos em quase todos os setores: administração, programação,
publicidade, controle de capital, orientação técnica, contrato e treinamento de profissio-
nais e até a construção e geração de canais” (KEHL, 1986, p.181-185).
Após uma primeira fase de programas populares e ao vivo, a emissora adotou
o chamado “padrão de qualidade” ao estabelecer uma grade de programação e, em
novembro de 1971, anunciou uma das suas novas produções: a estreia do programa
Globo-Shell Especial, que tinha como meta produzir documentários com temática brasi-
leira a serem exibidos na televisão. Três anos depois, o programa dava lugar ao Globo
Repórter, que “traria um rodízio semanal de assuntos de interesse geral, – focalizando
os acontecimentos cotidianos às grandes experiências científicas com uma linguagem
clara e concisa” (SILVA, 2009, p.40). Nele, foram produzidas edições históricas por uma
equipe de documentaristas como Eduardo Coutinho, Geraldo Sarno, Walter Lima Jr.,
João Batista de Andrade, Gregório Bacic, entre outros.

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Fernando Gabeira: o repórter-escritor nas narrativas de seu programa televisivo homônimo

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Os documentários privilegiavam o chamado “cinema de autor” ou, como defini-


ria Coutinho, um “cinema de conversação” em que “as palavras escondem segredos e
armadilhas que implicam hesitações, silêncios, tropeços, ritmos, inflexões, retomadas
diferenciadas dos discursos. E gestos, franzir os lábios, de sobrancelhas, olhares, res-
pirações, mexer de ombros, etc.” (COUTINHO, 2013, p.18).
Desde então, sabe-se que o jornalismo vem passando por uma profunda transforma-
ção, principalmente nas últimas décadas. Os avanços tecnológicos, com a instantaneidade
da internet e a proliferação das redes sociais, colocaram em questão não apenas um
modelo de negócio estabelecido por mais de um século, mas também o próprio papel
e o lugar do profissional na sociedade.
Para Bucci, o “jornalismo resiste como um campo discursivo que ainda carrega
a pretensão de, no interior do relato que propõe, conter, sistematizar e representar de
modo inteiramente neutro a objetividade dos fatos. Como se essa objetividade neutra
fosse possível” (BUCCI, 2004, p.30).
Na busca pela informação asséptica, livre de sensibilidade crítica e contextos, o meio
tornou-se refém da superficialidade, como constata Di Franco, uma vez que “o repórter
age e reage como um marginal do acontecimento. Antigamente, não. Antigamente o
profissional sofria o fato na carne e na alma” (DI FRANCO, 2014, p.23).
Ao apontarmos a análise do jornalismo brasileiro para a televisão, Bruck é enfático ao
reforçar que o repórter cada vez mais se distancia de sua função principal de mediador
do real. “De quem intervém, no sentido de problematizar e questionar o acontecimento
para oferecer melhores possibilidades de compreensão ao telespectador” (BRUCK,
2012, p.67). E discorre que um dos efeitos da busca por soluções e modelos narrativos
foi o surgimento de “uma estrutura estandardizada e homegeneizadora da notícia na
televisão em que a sequência off-passagem-sonora “impôs-se praticamente como regra
[...] uma estrutura narrativa que só alimenta os riscos de simplificação e reducionismo
do acontecimento” (idem. Ibidem, p.67).
Observa-se, portanto, como ressalva Bruck, já algum tempo o jornalismo distanciou-
se da memória e da História, uma vez que:
É o agora passante. Em instantes, o agora passado. Talvez o close de uma câmera nervosa
e trêmula, em alguns momentos desfocada, baldeando pela paisagem e ao vivo – visada
que se perderá para sempre – seja, hoje, a mais pertinente metáfora da notícia. O aparente.
O mundo da notícia é o do fragmento (idem. Ibidem, p.63).

Ao discutir a voraz penetração do meio digital nos meios de comunicação, o


pesquisador Mitchell Stephans propõe um novo pensamento acerca da profissão ao
cunhar o “wisdom journalism” (STEPHANS, 2014) ou, em português, o “jornalismo
sábio”, uma habilidade do profissional de pensar e agir usando o conhecimento, a
experiência, a compreensão, o senso comum e o que ele define de “insights”. O papel
do repórter, nesse caso, estaria influenciado não apenas do contexto de uma história,
mas também por vivências particulares e memórias ressignificadas.
Em seu programa de grande reportagem na Globo News, Fernando Gabeira se baseia
nessas referências. Ele é o porta-voz de um novo jornalismo na TV, assumindo o papel de
uma espécie de documentarista que, diferentemente do que preza o estatuto convencional

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Fernando Gabeira: o repórter-escritor nas narrativas de seu programa televisivo homônimo

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da imparcialidade, se envolve com o entrevistado, opina, tece posicionamentos, ironias


finas, revira o baú das reminiscências e, contudo, raramente aparece em cena durante
suas intervenções. É o mundo que deixa de ser “mostrado” para, então, “ser contado”
(FREIRE, 2011, p.100), a partir do que se encontra na própria aventura da reportagem
e do que já se foi vivenciado nas caminhadas da vida. Eis “a arte de tecer o presente, em
que se criam as narrativas da contemporaneidade” (MEDINA, 2014, p.75).
Pode-se dizer, então, que a atração televisiva é uma exceção no cenário atual do
gênero, calcado na superficialidade e no encontro da informação ante a reflexão. Uma
defesa urgente que Jorge Furtado levanta ao falar do cinema, mas que também se aplica
ao universo da grande reportagem. “Para a minha geração, o cinema sempre foi um
formador de opinião. Hoje isso não existe mais. O cinema perdeu muito da sua impor-
tância para pensar a realidade, a sociedade. São poucos os filmes ainda relevantes”
(FURTADO, 2014, p.E-1).
Aos 74 anos, Gabeira aproveita ainda a experiência como fotógrafo e também grava,
com seu próprio equipamento, boa parte das imagens. Com uma câmera na mão e uma
ideia na cabeça, ele busca uma prática mais experimental da reportagem, também ao
narrar sobre o indivíduo e o interesse comum, com uma voz inconfundível e um estilo
próprio de conduzir as histórias. Para Machado, “o Nome é um signo, polissêmico e
hipersêmico, que oferece várias camadas de semas e cuja leitura varia à medida que
a narrativa se desenvolve e se desenrola” (MACHADO, 2014, p.43). Nas páginas da
escrita: “A Grande era mais que uma ilha. Não apenas pela beleza, mas por seu papel
na história de tirania no Brasil” (GABEIRA, 2012, p. 80). Assim também no programa
televisivo (figura 2): “A vila de Dois Rios continua sendo um lugar interessante para
se viver. No entanto, com a implosão do presídio, as coisas ficaram um pouco abando-
nadas por aqui. Por toda parte, nós encontramos vestígios daquele passado” (GLOBO
NEWS, 2013).

Figura 2. Fernando Gabeira reúne charme e reconta sua história


ao falar da Ilha – Reprodução GLOBO NEWS

Conforme diz Moraes Neto, que entrevistou Fernando por quase seis horas para
a elaboração de Dossiê Gabeira: o filme que nunca foi feito, trata-se do “jornalista que um
dia virou guerrilheiro: três décadas depois da volta dos exilados, ele revê aventuras,
ilusões, sonhos e pesadelos da geração que agitou o Brasil” (MORAES NETO, 2009, p.3).
No prefácio da obra, Brandão também levanta algumas questões pertinentes à vida e
obra do narrador:

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Bruno Teixeira Chiarioni

Como se pode ter vivido tanto, passado por tantas situações diferentes e limites, com abso-
luta coerência, sempre com uma linha bem traçada de postura e conceito de vida? Como
manter a visão lúcida dentro do aparente caos das coisas? Em meio ao constante ineditismo
de cada instante e do absurdo recorrente da atualidade? De que maneira de ajustar sempre
a tempos mutantes sem deixar de ser a mesma pessoa, ter o mesmo pensamento reto de
Brasil, mundo e pessoas? Qual a força de Gabeira, sua estratégia, métodos, seu charme?
(BRANDÃO, 2009, p.9-10).

Citando Barthes, “aí está o exemplo de uma escrita cuja função já não é apenas
comunicar ou exprimir, mas impor um “para além da linguagem” que é ao mesmo
tempo a História e o partido que nela se torna” (BARTHES, 2004, p.3).
Para este autor, o programa televisivo funciona como uma espécie de “bouvelard
gabeiriano”: o repórter que revisita passagens e ressignifica a própria travessia “Éramos
quarenta e fomos banidos do país. Ao longo da história, o banimento é dos maiores
castigos. Mas estávamos deixando para trás uma situação difícil: cadeia, vulnerabilidade,
inação” (GABEIRA, 2012, p.86).
“Fazer jornalismo, em resumo, é dizer a alguém o que ele não sabe” (MORAES
NETO, G1). Contada por Gabeira, pode-se esperar uma grande reportagem vívida,
intensa, ainda mais visceral. “Do Lazaretto lá embaixo ao presídio aqui em cima,
flores e ervas invadem impiedosamente o território das nossas recordações” (GLOBO
NEWS, 2014).

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Imagens de guerra na TV: realismo na pós-modernidade
C é l i a M a r i a L a dei r a M ota 1
Mônica dos S a n t o s G a lvã o M a i a 2

Resumo: Enquanto um repórter relata ao vivo mais um dia de conflitos na Faixa


de Gaza, as cenas ao fundo mostram um prédio bombardeado naquele exato
momento. Atingido, o prédio vem abaixo. Em alguns países da África, outra
guerra, contra o vírus Ebola, é responsável pela morte de centenas de pessoas.
As travessias de africanos que tentam cruzar o Mediterrâneo em busca de uma
vida melhor nos impactam quase diariamente. Matanças, guerras e doenças são
acontecimentos violentos que explodem em tempo real e provocam horror em
dimensão global. Este artigo estuda como determinadas imagens, especialmente
as que exibem a dor, o sofrimento humano ou a guerra, têm uma carga de visi-
bilidade tal que as transforma em uma narrativa contemporânea, contribuindo
para o que pode ser chamado de cultura visual da nossa época. É uma prática
de olhar o mundo que nos cerca compartilhando em escala global vários signi-
ficados sobre nós mesmos e sobre os rumos da própria humanidade nesta fase
incerta em que vivemos, que já foi chamada de sociedade de risco por Ulrich
Beck (1994) e tem sido identificada por muitos autores como pós-modernidade.
Palavras-Chave: Visibilidade. Cultura. Realismo. Pós-modernidade

Abstract: While a reporter narrates in a live broadcast what is another day of


conflicts in the Gaza Strip, the scenes in the background show a building being
bombed at that very moment. Reached, the building comes down. In Syria, Islamic
extremists execute journalists and distribute the images for the world’s leading
television networks that display only the beginning of each slaughter. In some
countries in Africa, another war against Ebola virus is responsible for killing hun-
dreds of people. The death of African people who try to cross the Mediterranean
Sea in search for a better life impact us almost daily. Killing, war and disease
are violent events that explode in real time and cause horror on a global scale.
This article studies how certain images, especially those exhibiting pain, human
suffering or war, have such a burden of visibility which could be described as a
contemporary narrative, contributing to what may be called the visual culture
of our time. It is a practice of looking at the world around us sharing on a global
scale several meanings about ourselves and about the course of humanity itself
in this uncertain age in which we live, which has been called risk society by
Ulrich Beck (1994) and has been identified by many authors as postmodernity.
Keywords: Visibility. Culture. Realism. Post-modernity.

1.  Célia Maria Ladeira Mota é doutora em Comunicação e pesquisadora associada ao Programa de Pós-
graduação da Faculdade de Comunicação da UnB. Brasília, Distrito Federal. Email: cladmota@gmail.com.
2. Mônica dos Santos Galvão Maia é mestranda do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Comunicação
da UnB, Brasília, Distrito Federal. Email: moni.santos@gmail.com.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

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Imagens de guerra na TV: realismo na pós-modernidade

Célia Maria Ladeira Mota • Mônica dos Santos Galvão Maia

INTRODUÇÃO

A TERRA PODE ser vista como uma nova comunidade imaginada em que a globali-
zação faz com que o enraizamento numa só nação perca força e o sentimento de
pertencimento a uma comunidade planetária se expanda. A identificação se dá
no espaço mais amplo do globo terrestre. O lugar territorial, onde construímos relações
sociais, identidades e a nossa história, cede espaço para um lugar imaginado onde novos
laços se formam com novos vizinhos, novos povos. Este novo mundo global é o espaço
onde o Telejornalismo e as redes sociais constroem visões contraditórias, apresentando
imagens de culturas antes ignoradas.
Como uma máquina de produzir o presente, a narrativa jornalística é uma história
que não para de se mover. Seu pressuposto é que percebemos e construímos o sentido da
história do presente “como uma continuidade entre o que está acontecendo com o que
acabou de acontecer” (MOTTA, 2005). Duas categorias constroem este efeito de sentido
imediato: Instantaneidade e Simultaneidade. As dimensões da instantaneidade são
físicas e socioculturais. A instantaneidade física envolve os processos de transmissão
e distribuição da notícia, que aceleram o mínimo espaço de tempo entre a ocorrência
de um evento e sua transmissão. Quanto maior a capacidade tecnológica, maior é a
construção simbólica da instantaneidade. Quanto ao aspecto sociocultural, pode-se
considerar a instantaneidade como uma prática globalizada que promove informação
em tempo real e permanente, em nível planetário com significados (FRANCISCATO,
2005). A instantaneidade nos coloca no tempo do acontecimento, seja ele global ou local.
Quanto à simultaneidade, ela representa uma vivência comum e concomitante da
informação entre grupos cada vez mais amplos. É o que Marc Augé, seguindo David
Harvey, chama de compressão espaço-tempo (AUGÉ, 2006). Ao se colocar territórios em
contato em tempo real, produz-se o efeito de simultaneidade de espaços, o que acarreta
consequências culturais, de deslocamento do local para o global.
Um pioneiro desse deslocamento foi Joshua Meyrowitz (1995), sociólogo da
Universidade de Stanford, na Califórnia, que, em 1995, já antecipava a tendência de
a mídia eletrônica tornar as esferas sociais mais permeáveis. Segundo ele afirmava, a
televisão permitiria que cada pessoa pudesse testemunhar acontecimentos sem estar
fisicamente presente e pudesse se comunicar diretamente com outra sem estar no mesmo
lugar. A consequência desta interação foi que as estruturas físicas por si só passaram a
não moldar mais a identidade social. Enquanto a velha ordem social do mundo impresso
segregava as pessoas em suas “esferas especiais”, de modo a homogeneizar os indivíduos
em elementos intercambiáveis de uma máquina social mais ampla, a sociedade eletrô-
nica integra todos os grupos numa esfera comum onde se reconhecem as necessidades
especiais e as idiossincrasias dos indivíduos. O que as pessoas compartilham não é um
comportamento idêntico, mas um conjunto comum de opções.
Segundo Meyrowitz (1995), o desprezo inerente da mídia eletrônica por fronteiras
físicas tornou difícil para muitos países restringir o acesso de seus cidadãos a vários
aspectos da cultura ocidental. Isto deu a estas populações a consciência do que eles
não tinham. A televisão permitiu a elas protestar não simplesmente contra as forças
governamentais que as enfrentavam nas ruas, mas protestar para a audiência global
da televisão. E o retorno rápido da tecnologia eletrônica permitiu a estas populações

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

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Imagens de guerra na TV: realismo na pós-modernidade

Célia Maria Ladeira Mota • Mônica dos Santos Galvão Maia

serem encorajadas pela resposta global em curso (televisado globalmente tanto quanto
transmitido por meio de telefones ou faxes). “Estes acontecimentos não foram simples-
mente reportados na televisão; de muitas maneiras, eles aconteceram na, através, e por
causa da televisão” (MEYROWITZ, 1995, p. 67).
Mais recentemente, Thompson estudou como a difusão de formas simbólicas
por meios eletrônicos, em especial o televisual, tornou-se um modo de transmissão
cultural comum a tal ponto que a cultura moderna é hoje eletronicamente mediada.
Thompson distingue quatro dimensões deste impacto interacional dos meios técnicos:
1) – os meios facilitam a interação através do tempo e do espaço; 2) – eles modificam
a maneira como as pessoas agem para os outros; 3) – eles modificam a maneira como
as pessoas agem em resposta a outros que estão localizados em contextos distantes;
4) – os meios também modificam as maneiras como as pessoas agem e interagem no
processo de recepção (THOMPSON, 2011, p. 297). O autor utiliza a expressão ‘quase
interação mediada’ para se referir ao fato de que uma transmissão ao vivo pela tele-
visão permite que as pessoas interajam sem partilhar uma situação espaço-temporal
comum. Ele dá como exemplo uma transmissão por satélite de uma entrevista com
o presidente dos Estados Unidos, numa simultaneidade virtual assistida por pessoas
que estão situadas em contextos domésticos diversos. “A transmissão torna o contexto
espacial do presidente acessível aos telespectadores e isso é uma quase-interação”
(THOMPSON, 2011, p. 300).
Esta difusão de formas simbólicas acontece em meio a um momento de intensa
globalização, o que gera consequências na formação das identidades. O desenvolvi-
mento incessante das tecnologias de transporte e comunicação cada vez mais liga o
local ao global. A maior interdependência global leva a um colapso das identidades
tradicionais, ligadas ao local, e produz uma diversidade cada vez maior de estilos e
identidades (HALL, 1997). E se por um lado, o acesso a informações provenientes de
muitos lugares do mundo hibridiza, por outro também homogeneíza, é um processo
duplo. De um lado os locais, se misturam, e identidades que antes eram locais podem
ser encontradas agora em qualquer local. Assim, a globalização inclui processos que
hibridizam – colocando culturas, formas de ser, estilos de vida, um de frente com o
outro – e processos que homogeneízam – negando o local em favor de um global des-
tituído de ambiguidade, num processo de padronização radical. As culturas locais se
inter-relacionam e solapam assim sua localidade, ao mesmo tempo em que adotam uma
cultura que partilham globalmente como consumidores.
É neste mundo cada vez mais globalizado que algumas questões orientam o sen-
tido do noticiário de violência que se sucede numa velocidade sem igual, com caráter
instantâneo e simultâneo para a população mundial. O jornalista, afirma Motta (2004),
é o historiador natural da atualidade. A história do presente não é um simples apêndice
linear da história do passado, mas uma história distinta, cuja particularidade é justamen-
te sua exclusão, seu rechaço do campo da história. Ao se situar no presente, o Jornalismo
permite identificar, de imediato, questões sobre a significação dos acontecimentos que
se precipitam sobre nós a partir dos meios de comunicação de massa.
Como compreender os acontecimentos de sofrimento terrível tornados visíveis pelo
noticiário sobre bombardeios e combates em Gaza, na Síria ou em qualquer outra parte

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Imagens de guerra na TV: realismo na pós-modernidade

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do mundo? Onde estão os fios narrativos que tornam os relatos dos repórteres mais
compreensíveis? Essas transmissões diárias permanecem na superficialidade de um
consumo fugaz ou nos permitem construir uma narrativa coerente que busque enten-
der a guerra como uma experiência que, por mais execrável que seja, envolve grupos
humanos incapazes de um diálogo mais racional? Para esta busca de compreensão, é
preciso perceber a recepção das notícias do telejornalismo como uma atividade cultural
de intensa visibilidade.

VISIBILIDADE E REALISMO
A transmissão pela televisão em tempo real de acontecimentos públicos pode ser
observada a partir do enfoque do que vem a ser o realismo. Segundo Barthes (1971), o
realismo é uma linguagem que esconde sua natureza discursiva e se apresenta como
mais natural do que cultural. Ou seja, é um produto inocente da realidade, capaz de
representá-la como objetiva e transparente. Para o analista, porém, não basta apenas
perguntar que visões do mundo estão sendo apresentadas, mas tentar reconhecer que
visão particular do mundo está implícita ou mesmo explícita no que a televisão exibe
como imagem real, ou no popular “ao vivo” da transmissão.
Analisar o texto realístico, tal como o da TV ao vivo, é observar o modo de repre-
sentação, vendo o programa televisivo como uma máquina de produção de ilusões do
real, porque utiliza técnicas que criam a ilusão de que não estamos vendo TV, mas a
realidade. Esta naturalização da imagem na TV requer que seu texto seja o que Eco (1984)
chama de aberto. Por este termo Eco considera que os textos da TV (falas e imagens)
não tentam fechar o foco e, portanto, é necessariamente um texto aberto à riqueza e à
complexidade de leituras, nunca singulares. Este conceito de texto aberto é útil, sobre-
tudo quando se alia a ele a noção do texto da notícia de TV como um lugar de luta por
significados. É a própria polissemia do texto que expande os significados. Ouve-se o
relato jornalístico falado, cujo sentido é mais fechado, mas vê-se um conjunto de imagens
que abrem os sentidos. A imagem opera no telespectador uma entrada para a memória
e para o imaginário que apaga, ou amortece o efeito do texto falado.
Assistir à televisão, especialmente em tempo real, é uma experiência textual que
não segue as leis da lógica ou da relação causa e efeito. Raymond Williams usa o termo
flow para definir o texto televisivo. Flow como uma continuidade, uma correnteza de
um rio sem fim. Isto explica a natureza da televisão como um meio que transmite por
24 horas sem parar.
Em texto anterior (2012), observamos que as imagens do mundo contemporâneo,
que recebemos diariamente em nossas casas, via satélite ou internet, são referências
testemunhais dos acontecimentos e, por isso, consideradas evidências ou documentos
da realidade narrada. Embora icônicas e, portanto, representações à semelhança do
real, muitas dessas imagens nos chegam por um processo de visualização ou de media-
tização, que está sujeito a regras de controle que vão além dos processos produtivos
da filmagem ou captação de cenas. Há uma narrativa televisual que se desenvolve em
torno, e tendo a imagem como referência, que constrói um determinado ponto de vista
sobre a realidade. “Por isso, pode-se dizer que a narrativa da TV é uma narrativa híbrida
ou semiótica, onde textos, palavras e imagens contribuem e reforçam um argumento

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principal. E terminam por se tornar referências históricas guardadas na memória cole-


tiva” (LADEIRA MOTA, 2012, p. 178).
Falar de analogia ou semelhança significa perceber a imagem como representação,
ou seja, ela surge para falar de algo com que se assemelha. E falar de representação é o
mesmo que falar de linguagem. A linguagem da imagem, assim, como outra linguagem
qualquer, é um sistema de representação. Uma imagem composta por vários signos,
representando gestos, roupas, expressões, cores, tem uma importância comunicacio-
nal não pelo que ela é, mas pelo que ela faz. Ela constrói sentido e o transmite. Ela
significa. Ao fazê-lo, retoma sua característica de signo, que existe para representar
nossos conceitos, ideias ou sentimentos. E como linguagem, ela se torna uma prática
significante.
Significados, linguagem e representação são, portanto, elementos cruciais no estudo
cultural. Pertencer a uma cultura é ter acesso a um universo conceitual e linguístico e
compartilhar estas linguagens e interpretações. Barthes destaca dois níveis de inter-
pretação: o denotativo, que é o descritivo, e o conotativo, o da significação. “No nível
da conotação, nossa interpretação nos leva ao reinado da ideologia social, das crenças
gerais e dos sistemas sociais de valores. Estes significados interagem com a cultura, o
conhecimento e a história e realimentam a representação” (BARTHES, 1984, p. 91).
No ensaio Encoding and Decoding, Stuart Hall (1980) analisa o texto da TV como
um signo complexo porque, ao lado do signo verbal, simbólico, ele tem características
icônicas, apresentando pela imagem algumas propriedades da coisa representada. Este
é um ponto-chave no estudo da linguagem visual. Como a narrativa visual traduz um
acontecimento tridimensional em planos bidimensionais, ela não é um referente com
total semelhança ao objeto representado. É uma mediação, construída em condições de
produção tais que resultam num “efeito de real” da narrativa televisiva. Ou, em outros
termos, é uma prática discursiva que naturaliza o real.
Para Hall, este efeito de real é o resultado da interação de dois códigos especial-
mente: o linguístico e o visual. Se o linguístico situa o acontecimento, os signos visuais
reproduzem melhor as condições de percepção do olhar e, por isso, parecem menos
arbitrários ou convencionais do que os verbais. São, porém, códigos aprendidos desde
cedo e que naturalizam o efeito de articulação entre o referente e a representação. Ou,
como esclarece Hall, a análise dos códigos naturalizados revela não a transparência da
linguagem, mas a profundidade de uma prática que mascara a própria representação
da realidade.
Se o código verbal determina informações sobre o onde, o quando e o porquê de
um acontecimento, a mera imagem dele produz significados que nos fazem parar e
olhar novamente. A fotógrafa norte-americana Susan Sontag lembra que uma fotogra-
fia que ocupou as manchetes dos jornais dos Estados Unidos em 1972 – o instantâneo
capturava a imagem de uma menina sul-vietnamita nua correndo, parecendo gritar
de dor, com as costas ardendo queimadas por napalm – fez mais para aumentar a
rejeição do público contra a guerra do Vietnam do que centenas de horas televisadas
do confronto. Para a autora, a imagem parada, o still, tem capacidade de nos envolver e
emocionar mais do que a sequência ininterrupta de imagens em movimento, apresen-
tadas pela televisão. “A imagem transfixa, anestesia. Um evento conhecido por meio

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Imagens de guerra na TV: realismo na pós-modernidade

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de fotografias torna-se mais real do que se nunca tivesse sido visto. Mas uma coisa é
sofrer uma primeira vez. Outra é viver com as imagens fotografadas do sofrimento.
O vasto catálogo fotográfico da miséria e da injustiça pelo mundo afora deu a todos
certa familiaridade com a atrocidade, tornou o horrível parecer ordinário, familiar,
remoto” (SONTAG, 1990, p. 20).
De acordo com a reflexão de Sontag, as imagens de uma guerra podem perder sua
carga emocional, mas conservam seu valor testemunhal. A exposição repetida pode
criar saturação, mas não torna as imagens menos reais, e não perdem o caráter infor-
mativo. Continuam a produzir o mesmo sentido ao longo dos anos. O teor informativo
é o que valoriza as fotografias ou as filmagens, como imagens realísticas do mundo,
capturando cenas no tempo e no espaço. As imagens mostrando o bombardeio de
um hospital, a derrubada de prédios, a explosão de estação de eletricidade, as cenas
de crianças mortas são testemunhos de uma guerra que marcarão para sempre a his-
tória dos países envolvidos. Da mesma forma, as cenas de atentados terroristas são
testemunhos de uma outra guerra, mais subterrânea, que pode irromper a qualquer
momento e em qualquer parte do mundo, porque são manifestações de violência de
pessoas que não têm mais nada a perder e, por isso, impõem o terror e são chamadas
de terroristas.

GAZA: UMA NARRATIVA DE GUERRA NA TV


Este é o relato de uma transmissão onde texto e imagens interagem na construção
de significados e é um exemplo empírico de um texto de telejornalismo típico, semió-
tico. No dia 24 de julho de 2014, o telejornal da TV Globo, Jornal Nacional, apresentou
a matéria Escola da ONU é alvejada na guerra do Oriente Médio. Feita pelos correspon-
dentes Rodrigo Alvarez e Jeremy Portnoi, a notícia abordou um ataque a uma escola,
atualizou números, mostrou imagens feitas pelo Hamas e imagens feitas por grupos
de Israel, além de uma manifestação na Cisjordânia e combates em Jerusalém entre
o exército de Israel e o grupo de manifestantes (que foram andando até lá). As ruínas
da escola da ONU que servia de abrigo a famílias palestinas foram mostradas nas
imagens enquanto o repórter afirmava em seu off: “até agora não ficou claro de onde
partiu o ataque. O Hamas acusa Israel, mas os militares israelenses afirmam que ainda
estão investigando o bombardeio. E que um foguete que teria partido de Gaza pode
ter atingido o edifício”.
O repórter informou a seguir que o ataque na escola matou 15 pessoas e mais de
200 ficaram feridas. E completou: “são mais de 140 mil palestinos abrigados em 83
escolas na Faixa de Gaza”. As imagens exibidas a seguir são mais dramáticas. O texto
do repórter por sua vez informa: “elas mostram o momento em que mísseis israelenses
atingem e botam abaixo quatro prédios residenciais. Com a imagem parada é possível
ver o míssil chegando ao edifício”. O texto reforça o sentido do impacto da destruição
dos prédios. Novas imagens mostram combates em Jerusalém entre militares de Israel
e civis palestinos em manifestação. Um lettering sobre as imagens tem novo efeito
dramático. O texto afirma: “Israel disparou sobre 3119 alvos na Faixa de Gaza e 797
palestinos morreram. Do território palestino partiram 2090 foguetes contra Israel e 35
morreram”.

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Imagens de guerra na TV: realismo na pós-modernidade

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A matéria prossegue e acompanha uma manifestação em apoio a Gaza na Cisjordânia.


Ouvem-se tiros. O repórter está agora ao vivo na reportagem para afirmar que “os pales-
tinos começaram a atirar fogos de artifício na direção do muro que separa Israel da
Cisjordânia e a polícia israelense respondeu com disparos.” Sobe som de tiros. Segundo
o repórter aparentemente são balas de borracha. E acrescenta: “eles usam também gás
lacrimogênio. A gente já sente um cheiro forte aqui e (neste momento vem um disparo na
direção do repórter e ele sai do enquadramento da cena), reaparece correndo e continua
a dizer que “eles jogaram uma bomba de gás na nossa direção ali”. Sobe som. Imagens de
pessoas. Nova informação na fala do repórter: “mais tarde a polícia israelense acusaria
alguns manifestantes de atirarem com munição verdadeira. Médicos palestinos fizeram
a mesma acusação contra os policiais israelenses”. Novos sons de tiros.
Nesta matéria, várias narrativas se entrecruzam: palavras e fotos, imagens em
movimento, textos escritos, desenhos, todos produzindo sentidos que nem sempre con-
vergem para uma única representação e significação da realidade. Além das imagens
de destruição e de manifestantes jogando pedras, os sons ambientes reforçam os signi-
ficados das cenas de guerra. Elas são uma segunda leitura que interfere com o código
verbal e nos fazem presenciar o significado real de uma guerra, com toda a carga de
destruição que traz consigo. Cem anos depois da Primeira Guerra Mundial, que matou
milhões de pessoas, a violência bélica ainda se impõe hoje sobre o diálogo entre povos.
O realismo da transmissão ao vivo, em vários telejornais, transforma as guerras em uma
fatalidade do nosso tempo, e a dor que é exibida tende a ser saturada pela repetição. É
o que Hannah Arendt chamou de a banalidade do mal.

A BANALIDADE DO MAL
A cientista política alemã Hannah Arendt (1993) defendia em seus escritos que
o sentido da política é a liberdade e que a ação política deve regular o convívio dos
diferentes, garantindo igualdade de direitos. Seja nos conflitos mais recentes como em
atos de terrorismo do grupo radical Estado Islâmico, as cenas de guerra e de conflitos
estabelecem uma antiga questão: quem é o responsável, o dedo que dispara a bala ou
quem está no comando? Quem dá a ordem, quem a executa ou cada um tem sua parce-
la de responsabilidade? Esta foi uma questão levantada por Arendt quando formulou
a expressão “banalidade do mal”, para caracterizar ações de assassinatos, torturas e
violências entre grupos e entre nações.
O filme ‘Hannah Arendt’, lançado em 2013, tem como cenário o nazismo e retoma
a antiga discussão. Hannah é contratada pela revista The New Yorker para acompanhar
o julgamento do nazista Adolf Eichmann, e viaja até Israel para escrever suas impres-
sões. Nos seus artigos, ela afirma que nem todos os que praticaram os crimes de guer-
ra eram monstros. Ela aponta que havia envolvimento de alguns judeus na matança
dos seus iguais. Todas essas opiniões causaram polêmica na época. Hannah destacou
que Eichmann possuía a confiança de Heinrich Himmler, um dos principais líderes
do Partido Nazista Alemão, e este era o verdadeiro culpado, segundo ela, porque era
ele quem disparava a ordem para o genocídio. Hannah retrata Eichmann como um
cumpridor de ordens. Ele era um ‘executivo da morte’, um assassino, mas ainda sim
um ser humano.

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Imagens de guerra na TV: realismo na pós-modernidade

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No entendimento de Arendt o que acontecia era a banalidade do mal. Para ela a


monstruosidade não está na pessoa, mas no sistema, e alguns sistemas banalizam o
mal. Ela entendia que o maior mal do mundo é o mal perpetrado por ninguém. São
crimes cometidos por homens comuns e sem qualquer motivo, só porque receberam
uma ordem e a executam, sem pensar ou refletir. São seres humanos que perdem esta
capacidade de pensar e agir como seres humanos.
A banalidade das cenas de guerra tem sido exibida nas televisões do mundo inteiro
nas últimas décadas. A diferença entre a guerra do Vietnam e os choques e ataques
no Iraque, na Síria e em outras localidades do Oriente Médio, é que a visibilidade hoje
é maior. Há coberturas instantâneas com transmissão ao vivo que criam significados
mais realistas do que as fotos e filmes que levavam meses para serem exibidos durante
a guerra do Vietnam. Agora, somos convidados a testemunhar ao vivo e a cores cenas
de dor, de matança, de crianças atingidas, com toda a dureza de imagens que revelam
em detalhes a crueldade de uma guerra.
Se por um lado a cobertura sangrenta dos fatos coloca a nu todo o realismo possível
das cenas e nos permite uma quase-interação com estes acontecimentos (no sentido for-
mulado por Thompson), de outro lado cria o significado de impotência para quem está
sentado em casa assistindo pela TV às tragédias que fazem parte do cotidiano de muitos
povos. Ao lado da impotência, o realismo da cobertura ao vivo nos leva a refletir sobre
o que Arendt chamou de banalidade do mal, dos que matam e morrem simplesmente
porque estão cumprindo ordens de superiores, de líderes que estão a quilômetros de
distância de qualquer cena de violência. O significado cultural que fica é o da incerteza
crescente, o da fragilidade das instituições e de muitas vidas que se perdem inutilmente.
Uma característica do que se convencionou chamar de pós-modernidade.

CONCLUSÃO
O filósofo polonês radicado na Inglaterra Zygmunt Bauman (2005) chama de moder-
nidade líquida a esta nova fase da civilização. Ele usa a ideia de liquidez em oposição à
solidez, que seria a metáfora apropriada da primeira modernidade. Quanto mais a vida
social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens
internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente
interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas. Stuart Hall, por sua vez,
considera que as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social,
estão hoje em declínio, fragmentando o indivíduo moderno, até então visto como sujeito
unificado. “Estas identidades estão desalojadas de tempos, lugares, histórias e tradições
específicos e parecem ‘flutuar livremente” (HALL, 1997, p. 75).
Para o autor jamaicano, as mudanças estruturais que tiveram início nas sociedades
modernas transformaram a noção que temos de sujeito e as nossas formas de ‘exercer’
uma identidade. “Correspondentemente, as identidades, que compunham as paisagens
sociais ‘lá fora’ e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as ‘necessidades’
objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais
e institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos
em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático”
(HALL, 1997, p. 12).

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Imagens de guerra na TV: realismo na pós-modernidade

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Segundo Bauman, as identidades hoje são voláteis porque se voltam para interesses
específicos. Ao contrário das comunidades da modernidade sólida, na pós-modernidade
estes grupos de unem em torno de interesses comuns e passageiros. As relações humanas
estão cada vez mais flexíveis, gerando níveis de insegurança que aumentam a cada dia.
E a desagregação exibida pelas imagens de crise, guerras e terrorismo, nos noticiários
da televisão, só gera mais insegurança.
Edgar Morin (2013), no livro Como viver em tempo de crise, afirma que existe uma ética
da compreensão que nos convida, antes de mais nada, a “compreender a incompreen-
são”, que tem numerosas origens: “o erro, a indiferença ao próximo, a incompreensão
entre as culturas, a possessão por deuses, por mitos, por ideias, a abstração, o medo de
compreender” (MORIN, 2013, p. 15). Segundo ele, a compreensão humana comporta o
entendimento não só da complexidade do ser humano, mas também das condições em
que são modeladas as mentalidades e praticadas as ações. Entre estas ações estão às
circunstâncias de uma guerra, onde nem tudo se submete a um controle e cuja visibi-
lidade não pode ser gerenciada.
A apresentação de cenas de guerra, gravadas ou ‘ao vivo’, por meio da televi-
são em transmissões via satélite torna o telespectador um mediador da guerra, uma
mediação para o qual não foi chamado, e sequer ouvido. A destruição ao vivo e a
cores de outros seres humanos ainda tem a capacidade de nos ferir, de nos atingir
profundamente em nossa humanidade. E uma verdade se cristaliza: a ciência que
nos permitiu descobertas e avanços no conhecimento, também gerou tecnologias da
morte, produzindo armas de destruição em massa que nos levam a viver a incerteza
da vida nesta pós-modernidade. Morin et al. (2013) consideram mesmo que estamos
caminhando para o abismo. Para o filósofo francês Morin, o provável é catastrófico:
“a produção de armas de destruição de massa se dissemina, se miniaturiza, cria um
perigo cada vez mais pesado, tanto mais que entramos em um pré-período de guerra
de civilizações” (MORIN, 2013, p. 19).
Patrick Viveret et al. (2013), por sua vez, lembra que é preciso enfrentar a questão
da barbárie interior. Ou seja, é preciso olhar para o outro, do outro lado da fronteira,
não como um bárbaro, um infiel, um estrangeiro, mas um ser humano com as mesmas
dores, problemas e desafios de cada um de nós. “Como é que a humanidade trata seu
próprio elemento com desumanidade? A grande questão do mal se tornou uma questão
política” (VIVERET, 2013, p. 57).

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Imagens de guerra na TV: realismo na pós-modernidade

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O acesso ao outro na grande reportagem:
Testemunho, experiência e representação de
alteridade em Globo Repórter e Câmera Record
Accessing the other by in-depth reporting:
Testimony, experience and representation of
alterity in Globo Repórter and Câmera Record
Jo sé Aug u sto M en de s Lo bato1

Resumo: Este trabalho busca examinar a produção jornalística brasileira,


com ênfase no formato de grande reportagem, a fim de compreender quais
estratégias discursivas permeiam a construção da alteridade na televisão. Para
isso, tomamos como objeto de análise quatro edições de dois programas: Globo
Repórter e Câmera Record, das emissoras de mesmo nome. Serão trabalhadas
reflexões das ciências da linguagem, das teorias do jornalismo e dos estudos
culturais, a fim de identificar as principais estratégias de demarcação do Outro
na narrativa jornalística – como os jogos de oposição, o reforço da função
testemunhal, a referencialidade, o recurso de singularização do acontecimento
e a dramatização (ou ficcionalização) engendrada nos discursos sobre universos
distantes midiatizados.
Palavras-Chave: Telejornalismo. Grande reportagem. Alteridade. Experiência.
Representações.

Abstract: This paper proposes an analysis on Brazilian journalistic production,


emphasizing in-depth reporting format, in order to understand discursive
strategies used during the construction of alterity in television. We take as object
of analysis four reports of two programs: Globo Repórter and Câmera Record,
from Brazilian TV stations Globo and Record. Reflections of language science
will be used, as well as from the theories of journalism and cultural studies,
aiming to identify the main demarcation strategies of the Other in journalistic
narrative – such as opposition games, testimonial functions, referentiality,
the singularization of ocurrences and the dramatization (or fictionalization)
engendered in discourses about mediatized distant universes.
Keywords: Telejournalism. In-depth reporting. Alterity. Experience. Representations.

1.  Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM) da Universidade


de São Paulo (USP). Mestre em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero (FCL). Jornalista graduado pela
Universidade da Amazônia (Unama). Integrante do Grupo de Estudos de Linguagem: Práticas Midiáticas
(MidiAto), da USP. Consultor de conteúdo na agência Report Sustentabilidade. E-mail: gutomlobato@usp.
br / gutomlobato@gmail.com.

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O acesso ao outro na grande reportagem: Testemunho, experiência e representação de alteridade em Globo Repórter e Câmera Record

José Augusto Mendes Lobato

D IARIAMENTE, IMAGENS e discursos sobre países, comunidades e regiões dis-


tantes povoam as grades de programação televisiva. Importante objeto das
narrativas da mídia, a apresentação de hábitos, singularidades, personagens e
dinâmicas de universos socioculturais tem se tornado um mecanismo recorrente de
reconfiguração da experiência – hoje, centrada não apenas na vivência concreta, no
aqui-e-agora dos fenômenos, mas também, e, por vezes, sobretudo, nos processos de
mediação, já extensivamente tratados no escopo dos estudos culturais, sob a rubrica
das narrativas da nação. Há, porém, um caráter timidamente explorado nos enunciados
que apostam na demarcação gnosiológica do Outro, em contraposição a um Eu/Nós
consensualmente preestabelecido. A natureza dos processos de tradução, a constru-
ção discursiva de fronteiras que distinguem o próprio e o alheio e a conformação da
alteridade como produto simbólico ainda são elementos desafiadores ao examinarmos
os gêneros televisuais – em especial os informativos, cujos pressupostos referenciais
e de objetividade dialogam de maneira complexa, muitas vezes problemática, com as
dinâmicas da interação entre culturas nas mídias.
Neste texto, propomos uma reflexão estrutural sobre produtos jornalísticos de
grande reportagem exibidos por duas emissoras – Globo e Record –, a fim de carac-
terizar e discutir os procedimentos que regem a representação do Outro na TV bra-
sileira. O percurso para examinarmos os programas demanda reflexões dos campos
das ciências da linguagem, dos estudos culturais e do jornalismo. O corpus de análise
inclui quatro reportagens dos programas Globo Repórter e Câmera Record, que abor-
dam dois países (Tailândia e Nepal) e os biomas brasileiros Pantanal e Amazônia. A
abordagem simultânea de paisagens nacionais e internacionais alude à necessidade de
categorização das diferentes dimensões de alteridade – geográfica ou sociocultural –,
a partir de um olhar que considere a natureza referencial do Eu/Nós e do Outro nas
representações midiáticas.

1. NARRATIVA, REPRESENTAÇÃO E IDENTIDADE


Por potencializar e atualizar um processo que acompanha o desenvolvimento da
cultura, da linguagem e das próprias estruturas das sociedades, a análise do discurso
jornalístico – seja televisual, em meios impressos, em ambientes digitais ou multimídia
– demanda um percurso por estudos que versam sobre os processos de representa-
ção e produção narrativa. Afinal, é por meio desta “forma artesanal de comunicação”
(BENJAMIN, 1996, p.206) – que está por trás da sedimentação das culturas e dos saberes,
acompanhando-nos desde muito antes de dispositivos técnicos – que ocorre a trans-
missão de experiências humanas, e, em sentido estrito, a própria inscrição do sujeito
na linguagem.
Em graus variados, os componentes filosóficos que abarcam a noção de representação
indicam o ponto de partida para compreender não só a linguagem, mas também a
própria relação mantida entre comunidades, indivíduos e o ambiente ao seu redor. Na
Antiguidade, os estudos de Aristóteles (1996) são especialmente profícuos ao definir
a natureza criativa das atividades humanas por meio das representações – ou seja,
construções simbólicas operadas a fim de manipular, reordenar e elaborar criativamente
informações obtidas no contato com objetos e fenômenos exteriores. Em contraposição

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à ideia de imitação “pura” da realidade visível, a mimese aristotélica compreende que a


representação diz muito sobre os indivíduos e aquilo que lhes atravessa a mente, e não
apenas sobre o mundo em si.
Essa operação, associada por pensadores contemporâneos, como Vilém Flusser
(2008), à abstração, alude a algo que atravessa os mais diversos focos de atividade huma-
na: a necessidade de transpor objetos, pessoas e acontecimentos cotidianos para a lin-
guagem por procedimentos psíquicos ou técnicos – pelo pensamento, pela voz, pelas
mãos, por máquinas, aparelhos ou, mais recentemente, por procedimentos computa-
cionais. A partir do momento em que o indivíduo “se afastou ainda mais do mundo
concreto quando, efetivamente, pretendia dele se aproximar” (FLUSSER, 2008, p.10),
abriu-se espaço para o pensamento simbólico, que a um só tempo produz e reproduz
a realidade sensível.
O desenvolvimento recente da comunicação mediada por dispositivos deve ser visto,
portanto, como uma operação técnica de reforço da tendência humana de converter o
mundo em narrativa, representação ou discurso. Ao longo do desenvolvimento científico, tal
processo veio sendo estudado em diversos campos de conhecimento, como a sociologia,
a antropologia e a psicologia, associando-o a uma estratégia de entretenimento, a um
caminho para a produção de sentidos de identidade e também à “inserção do indivíduo
na complexidade relacional do socius” (SODRÉ, 2009, p.141). Ou seja, vinculando-o, res-
pectivamente, às funções lúdica, identitária e instrumental/integradora da narrativa.
A organização da realidade propiciada pela representação – seja um texto jornalístico,
um relato informal ou uma obra de ficção – conecta indivíduos e comunidades ao mundo
e vice-versa, produzindo o sentido necessário à sobrevivência material e imaterial. Não é
difícil perceber a importância dos processos de identificação para isso – eles são a condição
sine qua non para que as produções humanas sejam interpretadas e constantemente
postas e recolocadas nos ciclos de comunicação.
Seguindo os raciocínios de Gomes (2008) e Freitas (1992), a linguagem, lugar por
excelência de conformação da subjetividade, é o espaço no qual residem as identificações.
Conforme Freitas (1992, p.83), “o valor da linguagem reside na evocação e no reconhe-
cimento”, pois estes fazem com que os sujeitos sejam ligados “ao pacto que os transfor-
ma”, a saber, o laço social. A identidade funciona, assim, como conjunto discursivo de
enunciados, práticas e sistemas de classificação e denotação de natureza consensual,
capaz de gerar um “sentimento de pertencimento” (GOMES, 2008, p.77-78).
Essa ideia é amplamente trabalhada no campo da psicologia social, no qual, por
intermédio da obra de Serge Moscovici (2003), desenvolveu-se uma série de reflexões
sobre a vinculação entre linguagem e identidade. Por meio do conceito de representa-
ção social, o autor define de que modo os sujeitos constroem sistemas de classificação,
denotação, atribuição e denominação que “intervêm e nos orientam em direção ao
que é visível e àquilo a que nós temos de responder cotidianamente” (MOSCOVICI,
2003, p.31). Com vistas à compreensão dos fenômenos externos, as relações sociais, diz
Moscovici (2003, p.55), são “uma dinâmica de familiarização”, na qual “objetos, pessoas
e acontecimentos são percebidos e compreendidos em relação a prévios encontros e
paradigmas”. Nesse processo, cabe aos discursos criar “nós de estabilidade e recorrên-
cia, uma base comum de significância entre seus praticantes” (MOSCOVICI, 2003, p.51)

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– ou seja, as produções narrativas têm sempre o intuito de prover identificação e legi-


bilidade àquilo que enunciam.
Nota-se, portanto, que converter o mundo em narrativa é fixar em seu território o Eu/
Nós, em um processo contínuo de familiarização, reconhecimento e reformulação identitá-
ria via comunicação. Sintetiza Stuart Hall (2001, p.48): “as identidades não são coisas com
as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação”.

1.1. O Eu e o Outro na linguagem: sobre fronteiras, traduções e


contra-narrativas
Se, por um lado, tais ideias levam a um entendimento de que toda representação
narrativa é, por excelência, lugar de identificação, por outro, expõem a necessidade lógica
da definição de um “Outro” (ou de “Outros”) a partir do qual a diferença é demarcada
e a identidade, delimitada. Essa relação pode ser compreendida a partir de Freitas,
para quem “ser na linguagem é significar ser um significante para outro significante.
(...). A realização do sujeito é marcada, deste modo, por sua dependência significante à
linguagem, ao lugar do Outro (FREITAS, 1992, p.54).
A alteridade, como oposto indissociável da identidade, ocorre como uma conjunção
complexa de enunciados não pertencentes ao universo familiar de determinada
comunidade linguística. Surge a partir da demarcação de limites ou limiares que separam
o próprio do alheio, via representações sociais, e demanda processos de tradução que
permitam sua legibilidade. Como diz Homi Bhabha (1998, p.75), “existir é ser chamado
à existência em relação a uma alteridade, seu olhar ou locus” – e tal processo está longe
de ser estanque, estável ou livre de ruídos e dissonâncias.
No âmbito dos estudos culturais, a formação discursiva das identidades é comumente
traduzida como narrativa da nação, que abarca as “estórias que são contadas sobre a
nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são
construídas” (HALL, 2001, p.49). Esse processo de “escrita” das comunidades simbólicas
exige a produção de polos opositivos e a fusão de “fragmentos, retalhos e restos da vida
cotidiana”, que “devem ser repetidamente transformados nos signos de uma cultura
nacional coerente” (BHABHA, 1998, p.207).
Três operações associadas a esse processo se destacam. A primeira, de tradução,
remete ao processo de assimilação do Outro por meio de sua “leitura” e contemplação;
ou seja, da produção de representações que abarquem e tornem legível a alteridade. A
diferença cultural emerge, assim, como lugar em que as identidades se mostram “sempre
‘incompletas’ ou abertas à tradução cultural” (BHABHA, 1998, p. 228).
Outra noção importante é a de fronteira, trabalhada por Iuri Lotman (1998). Em
suas discussões sobre a circulação e interação de textos e universos culturais, o autor
argumenta que a identificação de semelhanças e o embate de diferenças nos sistemas de
signos são processos indispensáveis para sua existência. A demarcação de um universo
semiótico ocorre por meio de fronteiras e películas, às quais cabe operar na “separação do
próprio e do alheio, na filtragem das mensagens externas e em sua tradução à linguagem
própria, assim como na conversão das não mensagens externas” (LOTMAN, 1998, p.26)2.

2.  No idioma original: “separación de lo propio respecto de lo ajeno, el filtrado de los mensajes externos y

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As fronteiras são, assim, lugares ou “postos” discursivos que apoiam as organizações


interna e externa da cultura, bem como sua atualização dinâmica nos contatos com
elementos de alteridade – processo que examinaremos mais adiante.
A terceira operação, denominada por Bhabha (1998) contra-narrativa, ocorre em reação
à construção das narrativas nacionais. Entendendo a definição de elementos internos
ou externos a determinada comunidade como um processo arbitrário e frágil, o autor
indica que, para além da alteridade de povos distantes, há uma espécie de exótico que
está ao lado, perceptível no embate entre representações diferentes – não raro margi-
nalizadas – para o mesmo corpo social. Nas palavras do autor, “as contra-narrativas da
nação que continuamente evocam e rasuram suas fronteiras totalizadoras (...) perturbam
aquelas manobras ideológicas através das quais ‘comunidades imaginadas’ recebem
identidades essencialistas” (BHABHA, 1998, p. 211). A partir desse conceito, podemos
identificar duas dimensões de alteridade: a geográfica e a sociocultural, que aludem
às categorias mínimas com as quais trabalhar a análise das narrativas do Outro. A
primeira remete à espacialidade, determinada a partir de traços geográficos que mate-
rializam a diferença cultural; já a segunda conecta-se a “uma questão da alteridade do
povo-como-um” (BHABHA, 1998, p. 213), na linha das contra-narrações. Tal distinção,
já adotada em trabalhos anteriores (LOBATO, 2011), é adotada por critério meramente
formal, a fim de diferenciar e examinar as diferenças nas abordagens da alteridade no
discurso televisivo.

2. DISCURSO JORNALÍSTICO E MIDIATIZAÇÃO: APONTAMENTOS


O percurso traçado anteriormente permite um olhar mais atento para o estatuto, as
estratégias e as promessas ontológicas embutidas no discurso jornalístico – que, sob a
alcunha da produção e circulação de informação, surge como gênero representativo por
excelência do pensamento moderno, estruturando-se, do surgimento dos tipos móveis
até a consolidação das mídias de massa, como mecanismo de sustentação das sociedades
democráticas, sistematização de fluxos informacionais e produção de memória.
Como argumenta Muniz Sodré (2009, p.13), o jornalismo nasceu e se desenvolveu
sob a égide de uma espécie de “mitologia do liberalismo”, segundo a qual o discurso,
quando produzido segundo regras específicas, por agentes determinados e regido pelo
interesse público, seria capaz de atuar como um “espelho do real”, atuando em prol da
democratização da informação e do espírito crítico da coletividade. Com um modelo de
relato próprio, construído a partir de outros relatos (fontes/entrevistados) e do contato
com os fenômenos, o texto informativo/noticioso é elaborado a partir de uma “presunção
de imparcialidade, garantida pelo estatuto profissional do jornalista” (SODRÉ, 2009, p.41).
Daí deriva um dos primeiros e mais longevos pressupostos do gênero: a objetividade.
Presente nos mais variados processos de enunciação, marcadamente como
construção da verossimilhança, a objetividade é alçada a um patamar diferenciado
dentro do texto jornalístico. Entendido como “a adequação de uma representação à
realidade” (SPONHOLZ, 2009, p.119-220), o conceito diz respeito à equivalência entre
o que os agentes profissionais – repórteres, cinegrafistas, fotógrafos etc. – observam

la traducción de éstos al lenguaje propio, así como la conversión de los no-mensajes externos”.

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ou vivenciam e aquilo que se utiliza para compor uma narrativa noticiosa, em linha
com valores como veracidade, pluralidade, liberdade e inteligibilidade (BENEDETI,
2009, p.59). Derivam dessa noção outros dois aspectos comuns ao ideário jornalístico: a
referencialidade e a produção de efeitos de real, que, como sinaliza Gomes (2000, p.27),
ancorada no pensamento de Barthes (1988), são operações encarnadas em processos
de produção textual nos quais, mais do que a verdade ou veracidade, “o verossímil
encontra-se em direta relação ao efeito de real discursivamente construído”.
O desenvolvimento das teorias do jornalismo, a evolução das tecnologias de comu-
nicação e a própria diversificação dos formatos noticiosos foram responsáveis por atu-
alizar tais noções, levando-nos a uma definição de texto jornalístico que, mais do que
como espelho do mundo sensível, entende-o como um complexo sistema de mediação do
conhecimento e construção social da realidade. Hoje, a inviabilidade da plena representação,
a operação de redução de complexidade da realidade primária (BENEDETI, 2009, p.105),
os recursos lúdicos, a virada afetiva – vinculada à estratégia de embalar “a informação
com ingredientes certos de consumo” (MEDINA, 1988, p.87) – e a forma eminentemente
ficcional da reportagem já figuram como notações consolidadas nos estudos do cam-
po. Por ser constituída “dos mesmos materiais expressivos de que se valia o narrador
antigo para cimentar com palavras os laços comunitários” (SODRÉ, 2009, p.15), enfim,
a ideologia da objetividade jornalística deve ser enxergada como ideário, atuando em
permanente tensão diante dos problemas ontológicos naturais a quaisquer processos
de representação.

2.1. A grande reportagem na televisão


No ambiente televisivo, as discussões sobre a produção jornalística alcançam novo
patamar. Reverberando reflexões já trabalhadas nos estudos da imagem, do olhar e
das técnicas de reprodução (FLUSSER, 2008; DEBRAY, 1993), a TV, ao combinar o texto
informativo à linguagem visual, ao áudio e à sua lógica ininterrupta de fluxo de progra-
mação, forma o que Eugenio Bucci (2005) denomina telespaço público – ou seja, uma nova
categoria de espaço público regida pela visualidade e discursividade da TV, essencial
para legitimar representações, identidades e informações sobre o mundo.
Na esteira do desenvolvimento de uma linguagem própria, o jornalismo televisivo
veio caminhando em ao menos duas direções: a de natureza factual, calcada no noti-
ciário hard news, e a das reportagens expandidas ou em profundidade, que utilizam os
atributos estéticos e técnicos do audiovisual para imprimir maior qualidade técnica ao
processo narrativo.
Como diz Arlindo Machado (2000), ao discutir a estrutura do telejornal, a notícia na
TV é um formato altamente codificado, responsável por promover “efeitos de mediação”
– ou seja, conduzir até o telespectador a maior gama possível de imagens e informações,
em um fluxo que, para o autor, se resume a “uma sucessão de ‘versões’ do mesmo
acontecimento” (MACHADO, 2000, p.111). Pelos recursos visuais e textuais disponíveis,
difere da narrativa em meios impressos ou no rádio por potencializar o recurso da
polifonia – acumulando um sem número de opiniões, vozes e testemunhos, coletados pelo
repórter e pelo cinegrafista – e por rotineiramente não mergulhar interpretativamente
nos fenômenos, em função do fluxo acelerado de veiculação. “Por fazer multiplicar

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(...) imagens, opiniões, depoimentos que não se encaixam no quebra-cabeça final”, diz
Machado (2000, p.113), o telejornal gera “confusão ali mesmo onde, sob a rubrica da
‘informação’, deveria haver ordem, coerência e sistematização da notícia”.
Já o formato de reportagem (ou grande reportagem) possui narrativas desenvol-
vidas com maior contextualização e liberdade espaço-temporal, abarcando enqua-
dramentos, informações expandidas, investigação e articulações interpretativas dos
fenômenos, cujo enquadramento não se encaixa no ritmo acelerado do jornalismo diá-
rio. Segundo Cremilda Medina, são quatro os elementos constitutivos desse formato:
a “ampliação das informações imediatas” da notícia convencional; a humanização,
“que individualiza um fato social por meio de um perfil representativo”; “o rumo da
ampliação do fato imediato no seu contexto”; e “o rumo da reconstituição histórica do
fato” (MEDINA, 1988, p.72).
Presente na televisão brasileira contemporânea na forma de programas semanais –
como Globo Repórter e Câmera Record, aqui analisados, ou Profissão Repórter (Globo),
SBT Repórter e Conexão Repórter (SBT) – ou como séries especiais apresentadas em
telejornais, a grande reportagem difere da notícia desde a produção da pauta, mais
aberta e suscetível àquilo que o repórter encontrará in loco, até a edição e a experiência
de apuração, que se assemelha à história oral (SANTOS, 2009), com liberdade de angu-
lação, observação participante e foco em “histórias comuns” ou micronarrativas de
personagens, utilizados a fim de singularizar o fato social e estimular a identificação.
Grandes reportagens diferem da notícia tanto na forma – técnica e narrativamente
mais elaborada – quanto no conteúdo, não necessariamente atrelado à factualidade e à
contiguidade espaço-temporal do acontecimento, explorando os diversos ângulos sobre
um assunto (KOTSCHO, 2004), e na temporalidade, explorando a construção dramática e
a pontuação rítmica calcada pelo tempo psicológico. No entanto, seu principal elemento
diferenciador está na postura interpretativa – e marcadamente subjetiva – do repórter:
A narrativa jornalística de alta densidade investigativa (...) supõe um conjunto racional de
causalidades e um outro conjunto racional dedutivo e criador em torno da massa de aconteci-
mentos que explicam seus efeitos, painel com o qual o profissional estará irremediavelmente
comprometido, já que a ele não é permitida a evasão do real ou a reinvenção da realidade,
como acontece com o ofício da criação ficcional; mas também a ele não é dada a prerrogativa
de ignorar a potencialidade e a intensidade dramática dos fatos (FARO, 2013, p.78).

Três elementos são especialmente relevantes para a análise da grande reportagem


televisiva que aborda dimensões de alteridade: (a) compreender as estratégias de
referencialidade para enunciar o Outro; (b) examinar os recursos discursivos comumente
usados em representações identitárias ou de alteridade; e (c) observar a angulação
temática do material jornalístico. Enquanto o primeiro e o terceiro aspectos falam,
respectivamente, daquilo que aproxima e distancia o jornalismo de TV dos cânones
de objetividade do jornalismo clássico – ou seja, as dimensões documental e ficcional
–, o segundo aborda os procedimentos discursivos que corroboram a enunciação da
identidade e da diferença, como a singularização/personalização, os jogos de oposição,
a potencialização do testemunho, a produção de fronteiras semiológicas e a construção
da intriga ou do conflito no texto. São essas as estratégias que examinaremos a seguir.

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3. A CONSTRUÇÃO DO OUTRO EM GLOBO REPÓRTER E CÂMERA RECORD


Exibido quase ininterruptamente desde 1973, o Globo Repórter é um dos principais
programas jornalísticos da Globo, com reportagens de aproximadamente 40 minutos
que exploram em profundidade temas sociais, culturais e políticos normalmente não
explorados nos telejornais diários. Com audiência média de 20 pontos, é exibido sempre
às sextas-feiras à noite, com apresentação de Sérgio Chapelin. Nos mesmos moldes, o
Câmera Record exibe reportagens de 40 a 45 minutos de duração, veiculadas em escala
semanal (quartas-feiras à noite), abordando temas como viagens, finanças e comporta-
mento, com apresentação de Marcos Hummel e média de audiência de 5 a 10 pontos.
As reportagens que selecionamos para análise são “Nepal” (exibida em 13/9/2013) e
“Expedição pelo rio Amazonas – parte 1” (12/8/2011), do Globo Repórter; e “Pantanal”
(14/1/2015) e “Tailândia” (28/1/2015), do Câmera Record. Em sintonia com os raciocínios
anteriores, todas trazem elementos da noção de narrativa de alteridade: ou seja, de um
tipo de empreendimento narrativo que, mais do que à redução de não familiaridade
e aos processos de identificação e reconhecimento, aposta na representação do Outro
segundo estratégias discursivas que combinam a referencialidade e a ficcionalidade.
Um dos recursos mais marcantes, tanto nas reportagens sobre o Pantanal e a Amazônia
quando nas viagens internacionais ao Nepal e à Tailândia, é o reforço da função testemunhal.
Em um trabalho que examina as promessas ontológicas do jornalismo televisivo, Jost
(2009, p.23) atenta para o fato de que a indicialidade pura das imagens e dos dados
concretos e brutos não é suficiente para firmar a verossimilhança. Ao invés da câmera
que congela uma paisagem ou um fenômeno, diz o autor, “o jornalista aparece como tal
e se apresenta como uma testemunha ocular, testemunha cuja força argumentativa se
concentra nesta mera frase: ‘Estava ali’.”. Essa “promessa de autenticidade”, presente no
testemunho, é o que garante o efeito de real diante do desafio de expor ao telespectador
realidades complexas e nem sempre traduzíveis em sua plenitude:
Agora, o signo não remete mais a um objeto que seria o mundo, o enunciador é um sujeito
humano, que está ligado ao mundo pelo olhar. O testemunho repousa realmente ainda sobre
um laço existencial, mas desta vez, ele não é mais maquínico, mas antropoide: a realidade
não é mais fundada sobre o visível, mas sobre a sinceridade e sobre a interioridade de uma
memória que registrou os fatos (JOST, 2009, p.23).

Tal recurso é facilmente identificável nas quatro reportagens desde sua abertura,
quando os apresentadores Marcos Hummel e Sérgio Chapelin anunciam “expedições”,
“viagens” e “desafios” aos quais as equipes de reportagem se lançam: “Descobrimos
o Pantanal desconhecido, uma terra que poucos homens têm coragem de pisar (...)
embarque conosco na viagem que abre a temporada de programas inéditos do Câmera
Record”, anuncia Marcos Hummel em “Pantanal”. No Globo Repórter, a ênfase é a
mesma: “três países, duas equipes, barcos, carros, aviões e uma travessia de sete mil
quilômetros”, enumera Sérgio Chapelin, detalhando os investimentos feitos por dois
repórteres para cobrir o percurso do rio Amazonas desde sua nascente, no Peru, até o
encontro de suas águas com o Atlântico, na Amazônia oriental.
A referencialidade, presente nos marcadores geográficos (mapas, infográficos, men-
ções às cidades e regiões visitadas), combina-se à autenticação testemunhal por meio

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da atuação direta dos repórteres nos cenários – eles experimentam alimentos exóti-
cos, brincam com animais selvagens, utilizam o transporte local popular, são filmados
surpreendendo-se com as paisagens e as diferenças culturais e, muitas vezes, deixam
transparecer o não planejamento ou roteirização de suas falas, produzidas segundo rea-
ções subjetivas aos acontecimentos. É o caso do repórter Alex Sampaio, que dá banho em
um elefante logo ao início do programa “Tailândia” e, entre textos em off e passagens de
vídeo, afirma, olhando para a câmera: “é impressionante a sensação de tocar no elefante
aqui... você sente a respiração dele, é incrível. A gente percebe que ele é amoroso, olha...”.
De maneira complementar a essa estratégia, também é marcante a produção de
jogos de oposição e fronteiras, a fim de demarcar a distinção entre o próximo e o distan-
te. Esses recursos, embora também explorados na linguagem imagética, aplicam-se
sobretudo por meio do discurso – reforçando a diferença e o exotismo por meio do
texto em off, frequentemente na forma de comparações, ou em passagens de vídeo.
Esse processo, como argumenta Woodward, está no centro das dinâmicas de interação
cultural das sociedades globalizadas: “A diferença é aquilo que separa uma identi-
dade da outra, estabelecendo distinções, frequentemente na forma de oposições (...).
As identidades são construídas por meio de uma clara oposição entre ‘nós’ e ‘eles’”
(WOODWARD, 2000, p.41).
Em “Expedição pelo Rio Amazonas”, o repórter José Raimundo surpreende-se ao
chegar a Afuá (PA), uma “pequena cidade isolada no Marajó”. “Imagine uma cidade sem
carros, no meio da floresta, onde o principal alimento é o açaí”, afirma, com imagens do
cotidiano local sendo exibidas. “Aqui, às margens do Amazonas, vivem 32 mil moradores,
num lugar que ficou conhecido como a Veneza do Marajó”. A reportagem dedica cinco
minutos a mostrar o uso de bicicletas como único meio de transporte, os problemas da
população com o uso da água e a moradia em palafitas. Para complementar o jogo de
oposição, José Raimundo ouve uma moradora afirmar que Afuá “é um pontinho no
mapa. Para algumas pessoas pode ser insignificante, para nós é o nosso mundo”.
O trabalho de choque/confronto com as diferenças é, também, vivido pelos próprios
repórteres ao longo dos programas analisados, que distinguem elementos exóticos
daqueles significativamente familiares para o público por meio de fronteiras delimitadas
discursivamente. O programa que exemplifica com maior clareza tal noção é “Nepal”,
produzido concomitantemente e por ocasião da estreia da telenovela “Joia Rara”, de
Duca Rachid e Telma Guedes, que teve cenas gravadas no País. Além da tradicional
abordagem etnográfica das reportagens de turismo – com demonstrações da cultura
e das tradições locais –, utiliza-se ao menos um quarto do programa para aludir às
gravações da telenovela realizadas em Katmandu. No templo de Schechen, onde a equipe
se instalou para as gravações, Glória Maria descobre o monge Charles, brasileiro que já
está no local há quatro anos. O discurso em off busca enfatizar seu papel de tradutor:
Se gravar uma novela no Brasil – com dezenas de figurantes – já é um trabalho difícil e
complicado, imagina no Nepal, onde as pessoas não têm a menor experiência em gravar
para a televisão. Não falam português. Não falam inglês. E é aí que entra a missão do
monge brasileiro. Charles sabe falar tibetano e, para que a cena fique perfeita, traduz para
os figurantes as instruções da diretora Amora Mautner.

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Utiliza-se, assim, a figura de uma personagem para demonstrar os complexos pro-


cessos de interação cultural e, como afirma Lotman (1998), converter as “não mensagens”
locais em texto inteligível para a equipe de produção e, extensivamente, para o especta-
dor. A mesma operação ocorre quando a repórter pergunta a Caio Blat como tem sido a
experiência de conhecer outro País. “Você tinha alguma ideia sobre o Nepal?”, pergunta
Glória Maria. O ator responde que “a primeira vez que você desce no aeroporto, parece
um bairro pobre brasileiro, uma periferia brasileira”, que “é um lugar muito pobre, que
tem uma cultura muito forte”. A utilização de uma figura pertencente ao universo de
identificações e representações partilhadas pelo telespectador, materializando nela o
conflito e o embate de trocas interculturais, é uma das formas de construir narrativa-
mente fronteiras que separam o próprio e o alheio no texto midiático.
Cabe destacar, ainda, o recurso de singularização – adotado de forma ampla e geral no
jornalismo, mas que, na reportagem televisiva, é alçado a um patamar estratégico. Se, por
um lado, o testemunhal do próprio repórter, citado anteriormente, é oferecido como recurso
de produção de verossimilhança e evocação afetiva, por outro, o uso de pessoas que “huma-
nizam” e dão rosto à diferença cultural figura como chave de acesso para a tradução do não
familiar – mais facilmente compreensível quando transporto à figura de uma personagem.
Na estratégia de singularização, diz Leal (2009, p.56), “o tema geral e as perspectivas que
a notícia apresenta aparecem encarnados em figuras específicas”, a fim de “tornar o relato
mais acessível ao espectador, acionando sua identificação com o que é narrado”.
Embora presente nos dois programas, esse recurso é especialmente explorado pelo
Câmera Record, no qual a própria pontuação rítmica da narrativa é fornecida pelas
histórias de vida. Em “Pantanal”, mapeamos ao menos seis personagens que, um a
um, tematizam os blocos do programa: Elaine, Henrique, Pezão, seu Moacir, seu Preto
e Dona Maria – apresentada como “a encantadora de jacarés”. É marcante o uso deles
como marcadores da passagem de um assunto a outro do enredo: a relação homem-
-animal diferenciada no Pantanal é abordada com seu Moacir, que possui uma capivara
de estimação; já seu Preto abre sua casa e mostra a rotina simples do pantaneiro; em
seguida, dona Maria surge para mostrar como se alimentam os jacarés, animais pelos
quais ela nutre grande afeto; e Henrique, logo ao início da reportagem, conta sua história
de biólogo da cidade grande que decidiu se mudar para o Centro-Oeste e estudar in loco
jaguatiricas, onças e outros animais pantaneiros.
Por fim, cabe, ainda, destacar um elemento estudado à exaustão por diversos pes-
quisadores do telejornalismo: a presença de uma estrutura dramática que permeia a
construção do texto de informação – incluindo personagens com funções pré-definidas,
estados ou “arcos” que marcam sua transição e uma intriga (ou um conflito) que confere
tensão e ritmo à narrativa. Essa dramaturgia jornalística é objeto de estudo, por exemplo,
de Coutinho (2012, p.10), segundo a qual “a organização da notícia em televisão de
acordo com uma estrutura dramática” é uma realidade consolidada na TV brasileira.
A perspectiva da autora leva-nos a examinar as estruturas da notícia e da reportagem
e encontrar, nelas, elementos ficcionais e lúdicos capazes de propiciar novas formas de
engajamento do público. A intriga – considerada nos estudos narratológicos a unidade
mínima do discurso – figura como o laço que une personagens, acontecimentos, vozes
especializadas e o texto do repórter, com a “costura” final do trabalho de edição.

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O acesso ao outro na grande reportagem: Testemunho, experiência e representação de alteridade em Globo Repórter e Câmera Record

José Augusto Mendes Lobato

Os exemplos estão presentes nas quatro reportagens e incidem diretamente sobre


os momentos em que os traços de exotismo e diferença cultural são evidenciados.
No programa sobre o Nepal, por exemplo, a própria metalinguagem estrutural da
reportagem – a um só tempo uma exploração etnográfica sobre o País, com muitos
detalhes históricos e curiosidades religiosas, e um backstage das gravações de “Joia Rara”
– evidencia momentos de suspensão temporária da referencialidade. Do início ao fim do
programa, Glória Maria pontua a intriga que conduz a narrativa: a complexa mistura
de pobreza material e riqueza espiritual que, segundo a reportagem, é marcante para
todos que visitam Katmandu. O mesmo ocorre em “Tailândia” – onde uma situação
de suspense é artificialmente instaurada a partir do contato do repórter Alex Sampaio
com insetos fritos, servidos como alimentos em um mercado de Bangkok, com direito
a menções e chamadas do apresentador Márcio Hummel ao início e fim de cada bloco:
“O Câmera Record de hoje viaja 17 mil quilômetros pra descobrir segredos de uma terra
exótica onde se come barata no café da manhã, dá pra acreditar?” (início do bloco 2);
“nosso repórter tem um desafio: está frente a frente com uma barata comestível. Será
que ele tem coragem de comer?” (fim do bloco 2); ““Não é batata, é barata frita!” (bloco 4).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste texto, percorremos reflexões sobre narrativas, representações e o campo do
jornalismo para examinar reportagens televisivas que trabalham com a enunciação da
alteridade. A análise de viés estrutural, que ajuda a desvelar os procedimentos a partir dos
quais um formato/subgênero é demarcado – em nosso caso, o das narrativas de alteridade
–, permitiu a identificação de ao menos cinco estratégias discursivas que permeiam sua
construção: o reforço da função testemunhal, a referencialidade, os jogos de oposição
e fronteiras, a singularização e a dramatização dos elementos de diferença. Notou-se,
ainda, a aplicabilidade de tais ideias às duas dimensões de alteridade – geográfica e
sociocultural –, sem preponderância significativa de determinadas estratégias de acordo
com a categoria explorada pelos programas, o que difere de outros achados em estudos
semelhantes sobre o discurso de ficção televisiva (LOBATO, 2011). Tais apontamentos
devem ser combinados à análise de outros formatos e gêneros, a fim de se alcançar um
panorama amplo das estruturas que regem as representações do Outro na TV brasileira.

5. REFERÊNCIAS
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O acesso ao outro na grande reportagem: Testemunho, experiência e representação de alteridade em Globo Repórter e Câmera Record

José Augusto Mendes Lobato

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Sobre a construção de serialidade no ao
vivo jornalístico do Bom Dia Brasil
About the construction of seriality in the live
broadcast of the tv news “Bom Dia Brasil”
V a l é r i a M a r i a S. V i l a s B ô a s A r a ú j o 1

Resumo: Ao concentrar a análise em construções da serialidade nas narrativas


jornalísticas exibidas ao vivo no Bom Dia Brasil, telejornal da Rede Globo,
pretende-se aprofundar os debates sobre a noção de serialidade no telejornalismo
e sobre a importância do ao vivo nas novas configurações da indústria televisiva.
A nossa perspectiva, que tem como base teórico-metodológica os estudos culturais
de tradição inglesa, é a de entender que o modo como a televisão organiza e
reorganiza constantemente as suas formas, não é resultado, simplesmente, de
uma determinação econômica – a televisão, ao se inserir no e se apropriar do
tempo do ritual e da rotina insere a cotidianidade no mercado. A utilização da
transmissão direta e das inserções ao vivo funcionam como modo de ancorar
emissão e recepção em um mesmo tempo e espaço criando um sentido de
unidade territorial e de partilha simultânea do tempo presente.
Palavras-Chave: Televisão. Jornalismo. Serialidade. Ao vivo. Bom Dia Brasil.

Abstract: By focusing the analysis on the constructions of seriality in journalistic


narratives shown live on Bom Dia Brasil, Rede Globo television news, we intend
to further discussions on the concept of seriality in television journalism and
on the importance of live broadcast in new configurations of the television
industry. Our perspective, whose theoretical and methodological basis is the
English tradition of cultural studies, is to understand that the way television
organizes and constantly reorganizes its forms, is not the simply result of an
economic determination – television, being inserted in and taking ownership of
the ritual time and routine inserts the daily life in the market. The use of the live
broadcast work as a way to anchor emission and reception at the same time and
space creating a sense of territorial unity and simultaneous sharing of this time.
Keywords: Television. Journalism. Seriality. Live News. Bom Dia Brasil.

E MBORA MUITOS autores considerem a serialidade como característica definidora


da televisão, as análises e referências sobre este modo de construção são, em sua
maioria, relativas à ficção televisiva, com raras citações sobre a possibilidade de
construção serial também no telejornalismo. A reunião e leitura da bibliografia sobre

1. Doutoranda em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia e pesquisadora


do Grupo de Pesquisa em Análise de Telejornalismo – lelavbs@gmail.com

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Sobre a construção de serialidade no ao vivo jornalístico do Bom Dia Brasil

Valéria Maria S. Vilas Bôas Araújo

o conceito nos estudos de televisão2 nos levou a constatar que mais do que uma curio-
sidade, o fato de que não havia análises de serialidade, ou mesmo menções sobre o
assunto referentes ao jornalismo praticado em televisão, era uma pista importante sobre
o modo como se discute a relação entre televisão, entretenimento, indústria cultural e
jornalismo nos estudos de comunicação. Caracterizada, sobretudo, como um modo de
sustentar o modelo da televisão comercial garantindo públicos regulares para acompa-
nhar histórias ofertadas com continuidade, a serialidade é discutida, majoritariamente,
do ponto de vista da sua relação com a racionalização da produção nas indústrias
televisivas. A nossa perspectiva, contudo, é a de entender que o modo como a televisão
organiza e reorganiza constantemente as suas formas não é resultado, simplesmente,
de uma determinação econômica, capitalista, da exploração do lucro obtido com os
bens culturais. O tempo repetitivo da tevê carrega em si a matriz cultural do tempo
cotidiano, e a televisão, ao se inserir no e se apropriar do tempo do ritual e da rotina
insere a cotidianidade no mercado.
O nosso esforço por mapear as definições e disputas que se organizam em torno
da noção de serialidade na bibliografia específica sobre televisão reconhece, a princípio,
que o jornalismo é uma prática localizada entre disputas e práticas de legitimação e
definição. Embora exista uma aparente unidade na sua definição, é preciso reconhecer
que ela não está livre de problemas e controvérsias internas (DAHLGREN, 2000, p. 1). A
naturalização deste que se apresenta como um discurso único sobre o que o jornalismo é
ou não é pressupõe, na maior parte das vezes, uma apresentação da atividade enquanto
um conjunto de regras e práticas fixas, sem passado ou futuro, sem contexto.
Assim, um dos resultados mais relevantes que o mapeamento da noção de serialidade
na literatura sobre televisão nos revela é que parte do silenciamento sobre a construção
de estratégias seriais no telejornalismo diz do modo como as relações entre jornalismo
e ficção, e jornalismo e entretenimento, são contra-hegemônicas ao discurso dominante
sobre essa prática. O processo de consolidação do modelo hegemônico de jornalismo
que conhecemos hoje ora silencia, ora marca território com relação às noções de ficção
e entretenimento – há uma série de discursos, inclusive acadêmicos, que enfaticamente
colocam ficção e entretenimento como “outra coisa”, fazendo parte de outro mundo
ou depreciando o bom jornalismo. Esses valores são desmerecidos justamente porque
colocam em disputa os valores centrais da instituição, especialmente àqueles ligados à
verdade e à razão. Embora o jornalismo tenha se tornado uma indústria bem-sucedida e
legitimada oferecendo uma cobertura diversificada que inclui também aspectos da vida
cotidiana e privada além de informações objetivas e factuais, o discurso dominante, de
modo quase incoerente com as práticas materiais, exclui as relações que possam significar
qualquer risco ao conceito de objetividade como matriz fundadora do jornalismo
moderno e referência maior para afirmação de credibilidade.

2.  Este artigo se apresenta como um desdobramento da pesquisa de mestrado (ARAÚJO, 2012) que analisou
como o jornalismo televisivo, definindo-se na relação com as características narrativas do meio, mais
especificamente àquela que foi se consolidando como, talvez, a sua principal característica – a serialidade,
a divisão do programa por blocos, da grade em programas, a construção de unidades narrativas – faz
dialogar sua ideologia profissional e as expectativas em relação àquelas que se definiram historicamente
como suas funções sociais – vigilância, interesse público, estabelecimento de uma agenda pública, promoção
do debate entre diferentes pontos de vista etc.

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Sobre a construção de serialidade no ao vivo jornalístico do Bom Dia Brasil

Valéria Maria S. Vilas Bôas Araújo

A identificação dessas disputas discursivas e do discurso que as acolhe nos permite


reivindicar a possibilidade de uma análise que ponha em diálogo as questões de cons-
trução da serialidade televisiva no telejornalismo e suas vinculações com os valores e
premissas da atividade. Entendemos que a construção da linguagem dos programas
telejornalísticos se apoia nos modos de construção da narrativa televisiva e obedece
também aos padrões de apresentação fragmentada e serial e que, além disso, também
produto da sociedade de massa e dos processos históricos que a constituíram, o jorna-
lismo, enquanto instituição social e forma cultural, apresenta a marca da serialidade que
ordena uma economia produtiva e gera rotinas de trabalho na sua forma de organização.
A noção de narrativa serial televisiva que adotamos se refere ao modo como os
programas – jornalísticos ou não jornalísticos – organizam os eventos relatados no
tempo do programa em diferentes blocos e edições. Assim, o nosso objetivo não é o de
pensar a narrativa televisiva para entender como o jornalismo televisivo se ficcionaliza,
ou como usa estratégias de ficção para contar suas histórias, mas como, na construção de
uma unidade a partir dos seus fragmentos, ele usa estratégias que podem ou não ser as
mesmas das narrativas ficcionais sem, necessariamente, deixar de lado os fundamentos
básicos do jornalismo, os seus valores definidores e legitimadores. Observamos,
sobretudo, que a relação que construímos com o tempo presente, fundamental para
a definição do jornalismo enquanto atividade, instituição e prática, se mostra basilar
também para construção das narrativas televisivas, com a sua matriz cultural fundada
no tempo fragmentado. A serialidade televisiva se apresenta no telejornalismo, então,
como um vínculo entre o tempo da transmissão e o jornalismo no sentido de reforçar
um modo social de experiência do tempo cotidiano.
Sustentamos, então, neste artigo, que a construção do estilo do Bom Dia Brasil se
revela através da grande narrativa que compõe sobre o que considera ser importante
para a sua audiência e que o modo como organiza os fragmentos de notícias que leva
ao ar – seja por edição, seja ao longo do dia – dá pistas sobre as apostas que o programa
faz a respeito dos interesses e competências de seu público. Ao mesmo tempo, esse
modo de organização contribui para que o telejornal alcance uma unidade através de
estratégias que façam a narrativa evoluir e, ao mesmo tempo, mantenham e recuperem
a memória e compreensão do telespectador a respeito das tramas e eventos noticiados.
Nesse sentido, uma das estratégias mais comuns utilizadas pelo programa analisado,
então, é a utilização da transmissão direta e das inserções ao vivo como modo de ancorar
emissão e recepção em um mesmo tempo e espaço criando um sentido de unidade
territorial e de partilha simultânea do tempo presente, do tempo de enunciação da
notícia. Essa estratégia se revela com força na construção do estilo do telejornal cuja
transmissão é feita a partir um estúdio principal localizado no Rio de Janeiro, com
a participação constante, e em todas as edições, de mais duas praças fixas – Brasília
e São Paulo, além de entradas ao vivo de repórteres localizados em várias partes do
país e correspondentes internacionais. Exibido em um horário frio para a produção
jornalística, das 7h30 às 9h00, o Bom Dia Brasil recorre à construção de atualidade
através de um discurso de acompanhamento da notícia, da presença em vários pontos
territoriais simultaneamente e também da frequência de entradas ao vivo de repórteres.
Assim, o telejornal compensa a falta de furos jornalísticos e notícias quentes se fazendo

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Sobre a construção de serialidade no ao vivo jornalístico do Bom Dia Brasil

Valéria Maria S. Vilas Bôas Araújo

presente no cotidiano do seu público, seja pela construção da conversa que aproxima os
telespectadores, seja pela proximidade territorial, seja pela afirmação de simultaneidade
específica do ao vivo. Para este artigo, analisamos um período que compreende os
primeiros quinze dias de janeiro de 2015 e os quinze últimos dias de fevereiro do mesmo
ano. A nossa opção por períodos de quinze edições seguidas no início de um mês e
mais quinze edições no final do mês seguinte é baseada na noção de mês construído,
adaptada para o nosso objetivo de análise de serialidade.

A ATUALIDADE ANCORADA NO TEMPO DA TRANSMISSÃO


De modo geral, o uso mais recorrente de entradas ao vivo de repórteres no Bom
Dia Brasil é como modo de atualização das notícias já frias no momento em que são
noticiadas pelo telejornal. Assim, a presença exibida do repórter em um local ligado
ao acontecimento reforça a noção de que as informações trazidas pela equipe são as
mais recentes possíveis, ainda que o fato não seja uma novidade. Nesse sentido, é muito
comum que o telejornal cubra temas recorrentes no cotidiano dos seus telespectadores,
como a compra de materiais escolares ou a volta pra casa pelas principais estradas do país
após um feriado prolongado, e utilize a presença de um repórter ao vivo na transmissão
direta como modo de construir a notícia e atualizá-la não pela revelação de uma situação
ainda não conhecida, mas pela confirmação de informações cuja partilhada é suposta
entre audiência e repórteres. Assim, na edição de 09 de janeiro, a repórter Helen Sacconi,
chamada desde a bancada pelos dois apresentadores do programa – Ana Paula Araújo
e Chico Pinheiro nesta edição – faz uma entrada ao vivo direto da fila de uma loja em
promoção em Campinas, no estado de São Paulo, mas a sua fala apenas retoma questões
ligadas à recorrência do evento, caracterizado como tradição:

Começou uma das mais tradicionais promoções de janeiro. Vamos ver ao vivo? A gente
Ana Paula Araujo tá [sic] em Campinas, com a Helen Sacconi, Helen, bom dia, tô vendo um monte de gente
por aí na loja, não é pra menos, não é? São descontos que chegam a até 70% (…).

(…) No momento que abriu não foi nem tanta correria, mas logo na sequência já virou
essa loucura que a gente tá vendo até porque tinha muita gente, a fila virava o quartei-
Helen Sacconi rão, tudo pra aproveitar esses descontos de até 70% (…). Essa mega liquidação começou
em 1994 e o objetivo é mesmo acabar com os estoques de Natal. Só esta rede em que eu
estou mantém a tradição em mais de 750 lojas em vários estados (…).

O destaque na fala tanto da repórter posicionada na loja, quanto da apresentadora na


bancada é justamente pela recorrência da promoção, pelo seu aspecto de acontecimento
esperado, suposto. Não há nenhuma consideração sobre a relação entre promoções do
comércio e a economia do país, ou sequer um caráter inovador no evento que lhe conceda
valor de novidade. Ao contrário, é a partilha do tempo atualizado naquele instante e da
informação sobre a recorrência da promoção que justificam a notícia. É comum também
que os repórteres reforcem um sentido de partilha do tempo útil daquele dia que apenas
se incia. Assim, Helen destaca que a fila para entrar na loja se iniciou na madrugada, que
naquele momento a loja já estava em plena atividade de vendas. Esse reforço é feito também
pelo repórter que, no dia 02 de janeiro, faz uma entrada ao vivo de uma porta de delegacia
para relatar um caso de assassinato cometido por um policial durante a madrugada. A
apresentadora chama a notícia destacando sua atualidade pela prisão recente do acusado.

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Sobre a construção de serialidade no ao vivo jornalístico do Bom Dia Brasil

Valéria Maria S. Vilas Bôas Araújo

Um soldado da polícia militar foi preso agora há pouco por suspeita do assassinato de três pesso-
Giuliana Morrone as da mesma família. Em Goiania (…). A gente vai falar agora com o repórter Honório Jacometto
que acompanha esse caso desde cedo. Bom dia, Honório.

Bom dia Giuliana, o soldado da polícia militar está preso aqui nessa delegacia, a delegacia de ho-
micídios de Goiania, ele presta depoimento nesse momento (...). O crime foi nessa madrugada, na
casa do soldado. Depois do crime, ele pegou os três filhos, de sete, cinco e um ano de idade e fugiu
Honório Jacometto
para o interior. (…) Os parentes contaram aqui na delegacia que o soldado é bastante violento
e costuma bater na mulher. Os parentes imaginam que nesta madrugada ele tentou novamente
bater na esposa e aí o sogro tentou impedir. Esta seria a motivação.

Exibido em um horário frio para a produção jornalística, o Bom Dia Brasil constrói
sua atualidade, como já destacamos acima, reforçando um sentido de acompanhamento
das notícias, se fazendo presente em vários pontos territoriais simultaneamente e pela
frequência de entradas ao vivo de repórteres. Destacamos mais uma, do dia 16 de
fevereiro, quando o repórter Philipe Guedes, faz uma entrada direto do Anhembi, onde
acabara há pouco o desfile do grupo de acesso do carnaval paulista. O repórter relata:

Rodrigo Bocardi Vamos direto para São Paulo, para o sambódromo do Anhembi, o Philipe Guedes
(apresentando o telejornal do está lá, já terminou o desfile do grupo de acesso também e pelo jeito faz tempo
estúdio principal) porque a limpeza até já passou, não é Philipe? Bom dia.

Oi Rodrigo, bom dia pra todo mundo, já passou sim. A ala da limpeza lá no Rio tá
Philipe Guedes [sic] se preparando pra entrar, aqui já saiu, sambódromo limpinho, nem parece
que teve festa aqui durante toda esta noite (...).

No destaque sobre as promoções e novamente no destaque acima, as entradas em


direto se justificam no sentido de presentificação do momento. Ao destacar que “nem
parece que teve festa aqui durante toda esta noite”, Philipe reafirma a atualidade construída
pela partilha do momento de exibição, pelo ao vivo. Assim, o telejornal compensa a
falta de furos jornalísticos e notícias quentes se fazendo presente no cotidiano do seu
público, seja pela construção da conversa que aproxima os telespectadores, seja pela
proximidade territorial, seja pela afirmação de simultaneidade específica do ao vivo.
A construção desse espaço partilhado no tempo, principalmente pelos quatro
apresentadores e correspondentes internacionais, além de materializar o poderio técnico
e econômico da emissora, que faz uma transmissão simultânea a partir de quatro pontos
distintos do território nacional, possibilita um sentido de tempo presente em que se
percebe a relação entre aspectos temporais e espaciais.
Para Carlos Eduardo Franciscato (2005), a simultaneidade é um dos componentes da
atualidade jornalística “porque estabelece uma relação simultânea complexa entre ações
e situações, não apenas dependentes de estarem ocorrendo no mesmo momento, mas de
desenvolverem relações entre si que extrapolam o único fator temporal” (FRANCISCATO,
2005, p.132). No telejornalismo, a vinculação com o tempo presente funciona para a
construção de uma noção de tempo atual que é um dos seus pilares enquanto prática
e instituição. A construção desse espaço partilhado no tempo, além de materializar o
poderio técnico e econômico das emissoras possibilita um sentido de tempo presente
em que se percebe a relação entre aspectos temporais e espaciais. Os aspectos técnicos
e cênicos de configuração desse espaço, são fundamentais na construção do Bom Dia

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Valéria Maria S. Vilas Bôas Araújo

Brasil. Na edição do dia 02 de janeiro, é a partir do telão através do qual se conectam


apresentadores, repórteres e correspondentes localizados em espaços geográficos
distintos, que se convoca um sentido de unidade territorial para o país que começa o
ano na praia, como destaca a cabeça feita por Chico Pinheiro e Giuliana Morrone: “um
dos destinos preferidos dessa galera, dos brasileiros, são as praias, praias lotadas pelo Brasil afora,
vamos ver alguns lugares aí como é que tá a situação”. No telão, repórteres posicionados em
Fortaleza-CE, Guarujá-SP, Capão da Canoa-RS e Rio de Janeiro-RJ se mostram a postos
para atualizar o telespectador sobre o tempo, as novidades e o início de ano em cada
uma das faixas litorâneas. Retomando Franciscato,
A simultaneidade junta narrativas espalhadas, fragmentadas no espaço do território nacio-
nal, […] a simultaneidade no telejornalismo está articulada tanto a uma noção de identidade
que o jornalismo constrói cotidianamente e que é parte do seu papel de construção de um
sentido sociocultural de atualidade quanto ao seu papel de contribuir para o estabeleci-
mento de práticas socioculturais com certo grau de unidade que ocorram simultaneamente
em diferentes locais dentro de um mesmo espaço territorial. (FRANCISCATO, 2005, p.133).

A transmissão ao vivo, pela sua natureza de tempo partilhado, reforça o sentido


de construção do tempo presente e vincula a narrativa construída para a notícia a um
processo também partilhado no tempo entre emissor e audiência – a exibição da notícia
sem intervalos entre o tempo do fato e de sua transmissão intensificam também a noção
de cumplicidade e intimidade entre as duas instâncias. Esse processo não se dá, contudo,
sem que haja uma mediação de saberes e expectativas partilhadas por essas instâncias
sobre, por exemplo, as marcas que configuram e autenticam uma transmissão direta.
Em seu Televisão e Presença (2008), Yvana Fechine faz uma abordagem semiótica
dessas marcas e afirma que “mais do que um procedimento técnico-operacional, a
instauração do ‘ao vivo’ na tevê depende do modo como os discursos se organizam
para produzir determinados efeitos de sentido” (p. 26). Ela ressalta que, no caso de
uma cobertura ao vivo não planejada, é preciso considerar que a própria equipe de
produção não sabe exatamente como se desenrolará a transmissão direta do local do
acontecimento ou como esse evento será incorporado à exibição do telejornal e, não
raro, estas transmissões se tornam o próprio eixo de exibição das edições correntes
dominando sua pauta (p.234).
Pensando, a partir de Bruno Leal e seu trabalho sobre o sociólogo francês Louis
Quéré, a notícia como resultado de uma ação hermenêutica que transforma os aconte-
cimentos que lhes antecedem em fato, assumimos a hipótese de que essa construção
de narrativa sobre os acontecimentos no ao vivo televisivo, se faz, sobretudo do pon-
to de vista da linguagem televisiva, a partir de uma série de referenciais históricos,
sociais, culturais do contexto em que a emissora se encontra mas também guiada por
um enquadramento específico do programa que leva em conta sua orientação para a
audiência e a própria história de consolidação de marcas semióticas de inscrição do
ao vivo na programação televisiva, ou seja, a linguagem funciona, ela mesma, como
referência para a construção da linguagem permitindo que os formatos industriais
dos produtos telejornalísticos sejam reconhecidos através de operadores perceptivos e
destrezas discursivas.

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Sobre a construção de serialidade no ao vivo jornalístico do Bom Dia Brasil

Valéria Maria S. Vilas Bôas Araújo

A conversa encadeada à qual os mediadores recorrem para dar unidade ao telejornal,


por exemplo, além de ligar temas dentro de um mesmo bloco, suavizando a passagem
entre eles, deixa espaço também para a retomada de assuntos, porque é próprio da
conversa entre interlocutores que se veem com frequência retomar velhas questões
inconclusas. É, também, próprio da função social que o jornalismo reclama para si
acompanhar o andamento das questões importantes para a sociedade. Nesse sentido,
mais uma situação ocorrida e noticiada no dia 09 de janeiro nos chama a atenção. Uma
notícia sobre uma chuva forte em Blumenau-SC, é dada a partir da entrada ao vivo da
repórter Marina Dalcastagne com imagens de cobertura da noite anterior e dá sequência
à entrada da notícia sobre chuvas fortes também em São Paulo.

Ana Paula Araujo E teve chuva forte em São Paulo também, hein. Inclusive, o temporal derrubou o teto de um hangar
no aeroporto de Congonhas. Vamos ter as informações com Rodrigo Bocardi. Rodrigo, bom dia,
aquela imagem impressionante, caiu aquele teto, ainda bem que ninguém, se machucou, mas
ainda tem muita gente sem luz por aí depois da chuva de ontem...
Rodrigo Bocardi Bom dia Ana Paula, oi Chico, um bom dia a todos. Mais de 70 árvores caíram durante o temporal, e
(no estúdio, muitas delas em cima de postes e fios elétricos, e agora começa aquela agonia pra saber quando a
em São Paulo) energia vai voltar. Alguns carros parados na rua também foram atingidos.

Após uma matéria que dá um panorama sobre os transtornos causados pela chuva
na cidade de São Paulo na noite anterior, o ao vivo atualiza uma situação específica e
atualiza uma situação específica, introduzida pela matéria – a do hangar cujo teto foi
derrubado pela chuva no aeroporto de Congonhas.

Rodrigo Bocardi A água já baixou em todas essas regiões que a gente viu, apenas as árvores no meio do caminho e
(no estúdio, a repórter Jaqueline Brasil está no Globocop sobrevoando o aeroporto de Congonhas, onde caiu o
em São Paulo) teto de um hangar. Diga Jaqueline.
Jaqueline Brasil Oi Rodrigo, este aí é o hangar, que pertence à empresa Target. Uma funcionária da empresa não
soube dizer quantos aviões foram danificados, mas a gente tá vendo ali um avião bastante destruí-
do. Não tem essa informação [sic] porque os bombeiros isolaram o local. A gente vai localizar onde é
que fica esse hangar, praticamente do lado dele, está ali o pátio onde estão os aviões estacionados e
ali logo depois vem ali a parte dos fingers onde tem o desembarque e o embarque. Com a chuva de
ontem a cidade registrou 24 pontos de alagamento, Rodrigo.

A repórter não aparece corporalmente durante a entrada do link ao vivo, apenas


sua voz em off, com ilustrações das imagens da pista do aeroporto e do hangar gravadas
desde o helicóptero. Em sua notapé, Rodrigo Bocardi fecha a sequência dizendo “todo
dia, todo janeiro, e fica a expectativa pro que vai acontecer no dia de hoje”. Nos dias 12 e 13 do
mesmo mês, o assunto é retomado justamente a partir do seu aspecto de recorrência.
Primeiro, a partir da situação das árvores.

Ana Paula Araújo Agora, desde o fim do ano passado, mais de 900 árvores caíram em São Paulo. Além dos prejuízos,
tem o risco pra quem passa pela rua, não é? Que é enorme. Não é isso, Rodrigo Bocardi? Bom dia aí
pra você, a gente já falou dessa história aqui no Bom Dia Brasil, não é? Agora a prefeitura diz que vai
mapear a saúde das árvores, como é que vai ser isso?
Chico Pinheiro Não tem mais árvore pra cair, né?
Rodrigo Bocardi O que tava ruim de saúde já foi, não é? (…) E aí com essas árvores todas caindo, vem essa história
(do estúdio em São de fazer o mapeamento, agora, né? Vamos ver se vai dar tempo, é um trabalho lento, né? Enquanto
Paulo) isso já caiu árvore em cima de carro, de casa, de fiação elétrica. Uma situação muito perigosa que se
repete a cada chuva mais forte. Olha essa aí, ó, Avenida dos Bandeirantes, zona sul, tem um galhinho
ali que tá preso nos fios elétricos, e os cones que a gente vê ali são pros carros desviarem.

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5814
Sobre a construção de serialidade no ao vivo jornalístico do Bom Dia Brasil

Valéria Maria S. Vilas Bôas Araújo

Aqui, a retomada do tema da queda de árvores enquadra a notícia do mapeamento,


mas, sobretudo, ao afirmar que isso é uma coisa corriqueira, que tem acontecido a cada
chuva, Bocardi reforça o que parece ser um forte valor notícia do acontecimento naquele
contexto – o fato de relacionar-se com uma pauta do Bom Dia Brasil que tem se repetido
no período. Ao sinalizar que “a gente já falou dessa história aqui no Bom Dia Brasil, não
é?”, Ana Paula Araújo introduz o assunto a partir do seu aspecto de recorrência e não
pela notícia do mapeamento. Além do aspecto de recorrência, o fato é associado a um
problema que afeta os cidadãos paulistanos e sua relação com a cidade e questões do
poder público. Embora não haja uma relação direta da queda de árvores com a chuva
na matéria, ao final da sequência, o telejornal noticia a previsão do tempo.
No dia 13, a chuva é retomada.

Chico Pinheiro Mais um temporal parou São Paulo na tarde de ontem e hoje cedo a cidade ainda sofre consequ-
ências da chuva. Rodrigo Bocardi, de São Paulo (…), uma ventania com granizo, outra vez árvores
caindo, mais de 70 árvores.
Ana Paula Araújo E a gente falou nas árvores aqui ontem, não é, Chico? Das árvores em São Paulo, que estão numa
situação complicada.
Chico Pinheiro Quase mil do Natal pra cá.

Retomando a pauta da chuva pela questão das árvores, o Bom Dia Brasil dá sequência
à narrativa que constrói para o caso, reforçando a sua posição de vigilância. O tratamento
dessa questão não é episódico, mas recorre à trajetória da notícia dentro do próprio
telejornal. Ainda que no contexto de uma única edição no dia 12, a matéria apareça
quase deslocada da pauta das chuvas, a fala dos apresentadores no dia seguinte refaz
a ligação entre os fatos e a notícia se constrói na relação com um arco narrativo maior,
que atravessa edições, mas mantém sua coerência e o desenvolvimento da história.
A dinâmica entre continuidade de temas e surgimento de novas situações e fatos
se revela essencial para manter o equilíbrio entre a necessidade de suprir seu mercado
com informações relevantes e novas, que deem conta de cumprir as funções sociais
historicamente atribuídas ao jornalismo, mantendo a compreensão do telespectador
sobre a grande narrativa que cada programa telejornalístico constrói sobre o mundo
que lhe é referência: “A relação entre programa e telespectador é regulada, com uma
série de acordos tácitos, por um pacto sobre o papel do jornalismo na sociedade. É esse
pacto que dirá ao telespectador o que deve esperar ver no programa” (GOMES, 2007,
pg. 26). Essa relação – construída pelo público com o programa telejornalístico é em
boa medida regulada pelas expectativas construídas sobre como o programa atualiza
práticas, convenções, premissas e valores sobre o papel social do jornalismo – como ele
trata, ou se valoriza, as noções de objetividade, factualidade, responsabilidade social,
interesse público etc. O esforço produtivo e os recursos técnicos colocados a serviço
do jornalismo, bem como a trajetória de mediadores, a transmissão ao vivo, o modo
de tratamento das fontes, tudo isso contribui para a construção da credibilidade do
programa. O modo como o telejornalismo exibe e dá ares de transparência ao processo
de construção da notícia, por exemplo, é uma ferramenta importante como avalizadora
da confiabilidade do programa na relação com seus interlocutores. Para Quéré, o poder
hermenêutico do acontecimento se exerce também na organização da ação e esse modo
de organização determina, de certa forma, a sequência dada a ela:

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5815
Sobre a construção de serialidade no ao vivo jornalístico do Bom Dia Brasil

Valéria Maria S. Vilas Bôas Araújo

Em cada fase da atividade, a atenção e a exploração se voltam para as coisas singulares que
se produzem e se apresentam (isto, aquilo, aqui, agora), porque é através delas que podem
receber os desenvolvimentos com referência aos resultados que devem ser alcançados ou
o problema que queremos resolver, e as escolhas podem ser feitas a fim de obter e certas
consequências ou alcançar as metas. Mas os micro-eventos e mudanças produzidas não são
uma ‘mudança de panorama das aparências e desaparecimentos súbitos’ e, normalmente,
eles estão embutidos em e através de uma situação geral que determina a serialidade da
atividade3 (QUÉRÉ, 2006/5, pg. 27).

O investimento dos telejornais na cobertura de certos temas ou fatos possibilita


que tanto telejornal quanto telespectador tenham uma compreensão inicial partilhada
sobre o tema construída pela sua permanência na pauta, especialmente nos programas
que investem em construções mais complexas e menos episódicas, como é o caso do
Bom Dia Brasil. Acreditamos que o ao vivo telejornalístico se vale, sobretudo, de uma
estrutura narrativa construída anteriormente a ele tanto na narrativa geral de cada
programa a ser tomado como objeto de análise quanto na constituição histórica do
gênero televisivo na sua relação com a instituição jornalística, tomando em conta o fato
de que o jornalismo é o relato dos eventos relacionados a uma atualidade convencio-
nada por uma série de fenômenos temporais definidos como uma construção social,
institucional e coletiva. O ao vivo televisivo, trazendo em si a marca da simultaneidade
que reúne receptores e emissores em um mesmo momento na relação com o fato, adota
características específicas na construção de narrativas jornalísticas para organizar esses
eventos de modo que façam sentido para sua audiência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A serialidade é amplamente considerada na literatura especializada em televisão
como a característica mais marcante e definidora de sua programação, estruturada a
partir de uma grade em que diferentes programas são divididos em blocos e voltam a ser
exibidos com certa regularidade. Tendo os estudos de televisão se voltado, durante muito
tempo, para as análises que privilegiavam os impactos sociais do meio em detrimento
de questões formais, as análises sobre serialidade deram ênfase, sobretudo, ao aspecto
comercial da televisão, à serialidade enquanto característica do meio que tornou possível
atrair audiência de modo regular e rotineiro e garantir lucros à indústria televisiva.
Argumentamos aqui que as formas assumidas pela serialidade na televisão, mais
do que incorporação dos objetivos da indústria cultural, são construções moldadas e
dependentes dos contextos socioculturais em que se inscrevem. Assim, é possível obser-
var as relações entre serialidade e cotidianidade, por exemplo, através das referências
ao tempo fragmentado do dia a dia da audiência inscritas nos programas televisivos e
é possível reconhecer o modo como a televisão foi desenvolvendo suas próprias formas

3.  No original: A chaque phase de l’activité, l’attention et l’exploration se portent sur des choses singulières
telles qu’elles se produisent et se présentent (ceci, cela, ici, maintenant), car c’est à travers elles que peut être
saisie l’évolution de la situation en référence au résultat que l’on veut atteindre ou au problème que l’on veut
résoudre, et que des choix peuvent être faits en vue d’obtenir certaines conséquences et d’arriver au but
visé. Mais les micro-événements et les changements qui se produisent ne constituent pas un «panorama
changeant d’apparitions et de disparitions soudaines»; normalement ils sont intégrés dans et par la situation
d’ensemble qui détermine la sérialité de l’activité.

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Sobre a construção de serialidade no ao vivo jornalístico do Bom Dia Brasil

Valéria Maria S. Vilas Bôas Araújo

de estruturação da narrativa serializada a partir da experiência de meios mais antigos,


como o rádio, mas também como forma de construir uma vinculação com seu públi-
co. Mais do que uma forma de reelaborar a linguagem televisiva, essas construções
funcionam como um vínculo entre o tempo da transmissão e o jornalismo no sentido
de reforçar um modo social de experiência do tempo cotidiano. A nossa relação com
o tempo presente, fundamental para a definição do jornalismo enquanto prática, se dá
também através das narrativas televisivas com a sua matriz cultural fundada no tempo
fragmentado. A proximidade construída entre a televisão e seu público diz também
de uma capacidade do meio de ser aquele que “organiza o mundo e sua complexidade,
facilitando e aplainando nossa inserção nos lugares que são os nossos” (FRANÇA, 2009).
Desse modo, argumentamos que a importância social da televisão não se vê diminuída
frente a um cenário de convergência midiática e surgimento de novos meios, mas se
reconfigura. Nesse cenário, o ao vivo ganha importância pela capacidade de concor-
rência com outros meios ao enfatizar o que a tevê e seus telespectadores construíram
historicamente ao mesmo tempo como sua maior capacidade técnica e função social:
a de reunir uma cultura em torno de um mesmo acontecimento no momento em que
ele se inaugura.

REFERÊNCIAS
Araujo, V. M. S. V. B. (2012). Outras notícias virão logo mais: A construção da serialidade nos
telejornais diários da TV Globo. Dissertação (Mestrado em Comunicação E Cultura
Contemporâneas) – Faculdade de Comunicação, UFBA. Salvador. Recuperado em 11 de
março, 2015, de: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/8356/1/Val%C3%A9ria%20
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Práticas de divulgação científica
na TV aberta brasileira
Maria de Lu r d e s We lt e r P e r ei r a 1

Resumo: O artigo procura refletir sobre as estratégias adotadas na divulgação


de assuntos científicos pela televisão comercial brasileira. Como objeto empírico
analisa-se duas edições do programa Como Será? da Rede Globo, uma produção
semanal com duas horas, que passou a ser veiculada a partir de agosto de
2014, em substituição ao programa Globo Ciência, que ficou no ar durante 30
anos. Como suporte teórico são utilizados conceitos de autores como Pierre
Bordieu (1990) sobre a influência dos anunciantes e dos índices de audiência,
no conteúdo do que é produzido; Gilles Gaston Granger(1994) sobre o perigo
da vulgarização da notícia; e Warren Burkett (1990) sobre os horários de baixo
potencial comercial destinados pelas emissoras para divulgar as produções
de ciência. As observações mostram que o Como Será? é uma reconfiguração
do programa anterior, embora tenha mais tecnologia e recursos interativos.
Há também uma preocupação muito grande em popularizar a linguagem, em
especial nos assuntos de jornalismo científico.
Palavras-Chave: Jornalismo Científico. Divulgação Científica. Televisão.
Telejornalismo.

Abstract: The article wants to reflect about the strategies adopted in the disclo-
sure of scientific issues by brazilian commercial television. As empirical object,
are being analyzed two editions of the program “Como Será?” of Rede Globo,
a two hours weekly production that began to be broadcasted in August 2014,
replacing the program “Globo Ciência”, that ran for 30 years. As theoretical
support are being used studies of authors like Pierre Bordieu (1990) about the
influence of advertisers and audience in the content of what is produced; Gilles
Gaston Granger (1994) about the danger of news vulgarization; and Warren
Burkett (1990) about low potential commercial schedule destined by stations
to disclose science productions. The observations show that “Como Será?” is a
reconfiguration of the previous program, however with more technology and
interactive resources. It also has a great concern in popularizing language, main-
ly in scientific journalism issues.
Keywords: Scientific Journalism. Scientific Dissemination. Television. TV
Journalism.

1.  Jornalista, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Linguagens da Universidade


Tuiuti do Paraná, na linha de Processos Mediáticos e Práticas Comunicacionais. E-mail: lurdes@ufpr.br

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

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Práticas de divulgação científica na TV aberta brasileira

Maria de Lurdes Welter Pereira

1. INTRODUÇÃO

P ENSAR COMUNICAÇÃO no século XXI é muito mais do que refletir sobre o diálogo
ou sobre a escrita. É pensar em práticas e processos produtivos de informação.
O avanço de tecnologia alterou o ritmo e deu mais agilidade aos meios de comu-
nicação social, sejam eles tradicionais (rádio, televisão, jornal) ou os contemporâneos
(portais, blogs ou jornais on-line). O mundo comunicacional é o mundo das relações entre
um sujeito e outro e entre redes de sujeitos. E são cada vez mais amplas as possiblidades
e formas de comunicação. Mesmo só, dentro de casa, há comunicação, sendo possível
realizar leituras pelo tablet, reduzir distâncias através das conversas pelo computador
usando a Internet, enviar e receber mensagens, realizar contatos, tanto de voz quanto de
texto através de aplicativos de telefone celular, sem esquecer de um dos veículos mais
antigos: o rádio, presente nos mais variados lugares e também a televisão.
Como assinala Marialva Barbosa o fenômeno comunicacional está presente nos
múltiplos setores da vida social e em várias áreas do conhecimento, num mundo marcado
por cenários em permanente transformação” (BARBOSA, 2011, p. 78). Desta forma, com
as transformações, os meios de comunicação ganharam nova dinâmica na tentativa de
tornar o ato de comunicar mais eficiente, já que as tecnologias permitem a multiplicação
das possibilidades da comunicação, mas, sobretudo modificam a dimensão de espaço
e de tempo (BARBOSA, 2012, p. 150). De acordo com a pesquisadora:
podemos afirmar que a comunicação se consolicou como uma área de teorias e de conhe-
cimento próprios, deixando de ser considerada como mero suporte de conhecimento e de
ação de outras disciplinas. E, diante do avanço das transformações, a comunicação assume
lugar de ponta no cenário científico (BARBOSA, 2011, p. 78).

Outro pesquisador da área José Luiz Braga (2011) afirma que “vivemos em uma
sociedade de comunicação ou sociedade mediática”. O autor também fala em interfaces
que na sua visão, correspondem ao “verdadeiro trabalho de interdisciplinaridade”
(BRAGA, 2011, p. 69). Mas, observa que é necessário levar a sério a busca dos enfoques
comunicacionais e ainda tomar cuidado para não se deixar absorver por áreas, linhas e
objetos mais consolidados. Como exemplo desta interface, cita pesquisas relacionando
comunicação e política; comunicação e educação; comunicação e cultura; e, assim
segue para a linguística, depois a literatura, entre outras áreas. Entende que, em vez de
possibilidades de dispersão, como se acreditava até os anos 90, a interface com outras
áreas, pode ser um espaço construtivo de processos e conhecimentos comunicacionais
(BRAGA, 2011, p. 65).

2. CAMPO DO CONHECIMENTO
A comunicação na contemporaneidade é vista como um importante campo do
conhecimento, porque grande parte do que se informa, comunica e interage, ocorre através
dos meios de comunicação. E, nestes meios estão incluídos os veículos audiovisuais,
eletrônicos, jornais, rádios, livros e todas as demais publicações impressas. Além de
ter sido um fenômeno estimulador e gerador da percepção e da problematização de

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

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Práticas de divulgação científica na TV aberta brasileira

Maria de Lurdes Welter Pereira

questões sociais, a mídia tem forte presença como mediadora das interações sociais,
porque põe em causa modos habituais de conversação social. Para Braga, isso ocorre
em função da “inclusividade e da penetrabilidade, o que permite afirmar que vivemos
em uma sociedade de comunicação ou sociedade mediática” (BRAGA, 2011, p. 69).
Braga afirma ainda que a perspectiva da interação social “não nos impede de dirigir
o olhar com enfoques direcionados sobre a mídia, na observação de um fenômeno
recortado, como um fragmento da realidade social”. Para o autor, “o que reúne e dá
consistência a estas diversas observações não é que tenham como objeto empírico um
determinado fenômeno mediático, mas sim, que em todos eles, estaremos observando
sua relação com as interações sociais”. Braga defende que é esta observação que “permite
examinar o fragmento sem destacá-lo das relações que entretém” (BRAGA, 2011, p. 69).

2.1. Prática do jornalismo científico


Os estudos da pesquisadora Cremilda Medina (1990) servem de exemplo para
analisar o comportamento do jornalista diante da apuração da notícia e, em especial,
dos assuntos de pesquisa e de ciência. De acordo com a autora, em muitas situações
“a notícia é divulgada de maneira superficial, sem nenhum critério de profundidade”
Assinala que nesta situação “o profissional tende a ser parcial, limitado e acaba atuando
como um técnico de produção de sentidos reducionistas, ingênuos e desenraizados.”
Medina afirma também que o jornalista “tem obrigação de se preocupar com a qualidade
do que produz e precisa ter consicência da responsabilidade cultural, humana e social
do seu trabalho” (MEDINA, 1990, p. 83-93). Desta forma, partindo da ideia preconizada
por Braga de que em um fragmento da realidade social, é possível observar a relação
com as interações sociais, bem como, os processos comunicacionais que os caracterizam,
toma-se como foco a divulgação científica na televisão, tendo como objeto empírico o
programa Como Será? da Rede Globo, que absorveu o conteúdo de ciência, divulgado
anteriormente no Globo Ciência.
O jornalismo científico, que é o ato de buscar e disseminar informações relativas
ao desenvolvimento da ciência, tecnologia e diversas outras áreas do conhecimento
humano, utiliza-se de diferentes modos de práticas, de acordo com o meio de divulgação.
Na televisão, o foco da presente análise, a divulgação científica ocorre com mais
intensidade em programas criados especificamente para esta finalidade, tanto nas
emissoras comerciais, quanto nas públicas e nas pagas. No telejornal diário os assuntos
envolvendo as pesquisas e o trabalho desenvolvido por cientistas são destaque apenas
quando há grandes conquistas mundiais, a exemplo do robô que se separou da nave
Rosetta e pousou em um cometa, depois de uma década no espaço, pesquisa da Agência
Espacial Europeia (ESA). Dia 12/11/2014, os meios de comunicação, impressos, on-line,
rádio e televisão, divulgaram a conquista, como uma revolução na pesquisa espacial.
Fotografias e imagens computadorizadas editadas didáticamente por agências de notícias
ilustravam o assunto.
Descobertas ligadas à saúde também são objeto de interesse para os jornalistas.
A explicação para esse olhar no entender de Warren BURKETT (1990) é uma atração
natural, porque a doença é tida como uma ameaça à saúde e, por isso, tudo que é visto
como forma de manter ou melhorar as condições de vida tem impacto, tanto por parte de

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

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Práticas de divulgação científica na TV aberta brasileira

Maria de Lurdes Welter Pereira

quem divulga, como da audiência. Ainda de acordo com Burkett, a opção vai ser sempre
pela divulgação de reportagens sobre tratamentos para doenças graves, a exemplo do
câncer e problemas do coração, em detrimento de descobertas para doenças menos
assustadoras (BURKETT, 1990, p. 51).

2.2. A influência da receita e dos índices de audiência no telejornalismo


E por que apenas alguns feitos mundiais e de saúde são mostrados nos telejornais
diários? Para Pierre Bordieu (1997), o campo jornalístico está cada vez mais sujeito à
influência dos anunciantes e do nível de audiência, o que classifica como “restrição
estrutural, que modifica e afeta o que se produz” (BORDIEU, 1997, p. 101). O autor
afirma também que “o grau de autonomia de um órgão de difusão se mede pela parcela
de suas receitas que provêm da publicidade e da ajuda do Estado e também pelo grau
de concentração dos anunciantes” (BORDIEU, 1997, p. 102-103). Sobre a conduta dos
jornalistas e os critérios levados em conta para desenvolver reportagens, o pesquisador
destaca que eles “são propensos a adotar os índices de audiência na produção” e levam
em consideração fatores como, “reportagens curtas, textos simples e assuntos que vendem
bem (quer dizer, são de interesse público)”. Destaca ainda, que quanto maior for o
cargo em uma emissora comercial, a exemplo de diretor, chefe de redação, maior será
a preocupação com esses critérios (BORDIEU, 1997, p, 106).
Segundo Bordieu (1997), os telejornais estão viciados em assuntos factuais e são
pressionados pela concorrência dos outros meios de comunicação, pela temporalidade,
já que o concorrente pode divulgar antes e, ainda, pela renovação permanente dos
assuntos, os chamados furos jornalísticos. Bordieu (1997) classifica como fatos-ônibus,
que vem de “amnibus” (em Latim significa para todos), a divulgação de assuntos que
não devem chocar ninguém, não envolvem disputa, não dividem e formam consenso
porque interessam a todo mundo, mas de um modo que não tocam em nada importante.
E questiona: “se minutos tão preciosos na televisão são empregados para dizer coisas
tão fúteis, é que essas coisas fúteis são de fato muito importantes na medida em que
ocultam coisas preciosas” (BORDIEU, 1997, p. 23).

3. O PERIGO DA BANALIZAÇÃO NA DIVULGAÇÃO DE CIÊNCIA


Sobre a dificuldade de trabalhar com a divulgação de assuntos complexos, como os
de pesquisa e de ciência, Granger (1994) se preocupa com o que classifica como perigo
para a vulgarização da notícia, classificando os jornalistas científicos como vetores
da ideia de ciência para o bem e também para o mal (GRANGER, 1994, p.17). Por um
lado, o autor elogia, afirmando que os profissionais “convenientemente competentes e
conscienciosos, se esforçam sem dogmatismo e com prudência, em pôr ao alcance de
um público sem grande formação, alguma descoberta ou alguma teoria”. E por outro
lado, faz críticas ao dizer que pode ocorrer o contrário quando os jornalistas “caem no
sensacionalismo, vestindo com as cores do maravilhoso, do misterioso, e do formidável,
eventos científicos que não pretendem de modo algum fazer compreender e julgar”
(GRANGER, 1994, p 18). Para mostrar a importância do preparo profissional e intelectual
para desenvolver o jornalismo científico Granger cita um texto do filósofo e matemático
René Thom, quando afirma que:

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Práticas de divulgação científica na TV aberta brasileira

Maria de Lurdes Welter Pereira

é cientificamente culto aquele que diante da notícia de um sucesso científico recente, é capaz
de avaliar a sua amplitude real e de descontar a parte do exagero demasiado frequentemen-
te com o qual os periódicos de vulgarização anunciam a importância de uma descoberta
(THOM, apud GRANGER, 1994, p, 18-19).

Acredita-se que o autor se coloca temeroso sobre a divulgação de fatos científicos


por entender que os jornalistas não detêm preparo e conhecimento suficientes e, na
tentativa de tornar a divulgação abrangente e voltada aos diversos perfis de público,
caem no exagero ou simplificam a informação, o que Granger classifica como vulgari-
zação da ciência.

4. FUNÇÕES DO JORNALISMO CIENTÍFICO


Há diversas definições para jornalismo científico, sendo que algumas diferenciam
a divulgação científica do jornalismo científico e, outras, tratam os termos jornalismo
científico e divulgação científica como sinônimos. A divulgação científica pode abrigar
um grande número de iniciativas disseminadoras do conhecimento e abranger variadas
modalidades de comunicação, desde uma conversa informal, obras de literatura, livros
didáticos, programas de rádio e televisão até artigos jornalísticos (BERTOLLI Fº, 2014,
p. 2). Já Wilson da Costa BUENO (1984) entende que jornalismo científico trata de:
processos, estratégias, técnicas e mecanismos para veiculação de fatos que se situam no
campo da ciência e da tecnologia. Desempenha funções econômicas, político-ideológicas e
sócioculturais importantes e viabiliza-se, na prática, através de um conjunto diversificado
de gêneros jornalísticos (BUENO, apud BERTOLLI Fº, 2014, p.4).

Para Manuel Calvo Hernando, professor e divulgador de ciência espanhol, os objetivos


do jornalismo científico são “explicar qualquer coisa mediante técnicas e, utilizando
fórmulas embasadas na necessidade de escrever clara, lógica e simplificadamente,
promover a educação da humanidade, para que ela viva e trabalhe em um novo mundo
criado pela revolução científica” (SILVEIRA, 2003, p. 110).
Hernando acredita que: “o jornalismo científico contribui para saciar a fome da
humanidade e estimula a mente da maioria das pessoas, cujo alimento intelectual são os
meios de comunicação”. Por isso, afirma ainda que “cabe ao jornalista científico o papel
de impedir que o saber se torne um fator de desigualdade entre os homens e evitar que
as comunidades fiquem à margem do conhecimento, do progresso e de seus efeitos do
cotidiano” (HERNANDO, apud SILVEIRA, p. 111). Jornalismo científico tem finalidade
de estender uma ponte entre o conhecimento e a sociedade “promovendo a mais difícil e
exigente democracia que é a cultura”, de acordo com o jornalista e médico Júlio Abramczyk
(SILVEIRA, 2003, p. 119). E além de contribuir para a democratização da cultura, Wilson
da Costa Bueno afirma que o jornalismo científico tem outras cinco funções: informativa,
educativa, social, econômica e político-ideológica. (SILVEIRA, 2003, p. 121).
Já em 1988 Bueno constata que “pesquisas realizadas no Brasil demonstravam
que para alguns veículos, a participação da ciência e tecnologia nacionais no total do
noticiário científico, não chegava a 10%”, resultado que ele atribiu como “escandaloso”.
(SILVEIRA, p. 124). A baixa divulgação de temas científicos é reclamação também de

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Práticas de divulgação científica na TV aberta brasileira

Maria de Lurdes Welter Pereira

Abramczyk, ao afirmar que o Brasil está atrasado em relação a outros países, nos quais
a “ciência é mais bem divulgada” (ABRAMCZYK, apud SILVEIRA, 2003, p. 116).

5. COMO SERÁ? PODE SER UM AVANÇO NA DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA?


Durante 30 anos a Rede Globo manteve o Globo Ciência (começou a ser produzido
em 1984) com a finalidade de trabalhar de forma clara e didática os assuntos científicos,
segundo os pesquisadores Ildeu de Castro Moreira e Luisa Massarani (2002). Eles afirmam
que o Globo Ciência alternava fases de maior e menor audiência e não conseguiu se
firmar como programa televisivo de divulgação científica de qualidade. O programa,
que integrava o núcleo do Globo Cidadania saiu do ar em agosto de 2014 e no lugar a
emissora colocou o Como Será? com a finalidade de divulgar questões voltadas para
a inovação, sustentabilidade, mobilização, trabalho e ação social. É a junção de cinco
programas: Globo Ciência, Globo Ecologia, Globo Universidade, Globo Educação e Em
Ação (Rede Globo 2014). O novo programa conta com mais tecnologia, interatividade e
diversos quadros fixos como: “Expedição Terra”, “Hoje é Dia De...”, “Meu professor é o Cara”
“Nós.doc”, e “Qual Vai Ser”. E, embora não tenha sido criado nenhum quadro que trate
especificamente de pesquisa científica, entende-se que em cada um desses quadros há
possibilidade de encaixar reportagens de jornalismo científico.
Desde o dia 8 de agosto de 2014, o Como Será? é veiculado aos sábados das 06:00h às
08:00h, com apresentação da jornalista Sandra Annemberg. Para Warren Burkett (1990),
quando existem emissoras que mantêm produções de ciência nas programações, estas
são previstas para serem mostradas nos horários em que o nível de audiência é baixo e
seria uma alternativa para preencher espaços fracos e ociosos de publicidade. Burkett
também informa que esta prática não ocorre apenas do Brasil, mas também nas emissoras
comerciais americanas, porque “não há interesse em divulgar pesquisa científica em
horários mais acessíveis” (BURKETT, 1990, p. 214). De fato, o público interessado neste
modelo de programa parece se sentir incomodado, porque entre a audiência do Como
Será? há reclamações nas redes sociais quanto ao horário de exibição do programa.
Na página do facebook do Como Será? são encontradas dezenas de declarações de
telespectadores manifestando interesse pelos assuntos divulgados, elogiando o conteúdo,
porém criticando o horário. Alguns desses comentários são reproduzidos abaixo, sendo
que os nomes foram omitidos por questões éticas.
1. Um programa que deveria estar no horário nobre! (04/10/2014).
2. Bela iniciativa de fazer um programa maravilhoso. Curto muito a programação.
Merecia estar em horário nobre (04/10/2014).
3. Um programa tão rico em informações deveria ser transmitido em horário de
maior visibilidade. Estamos carecendo de boas informações. Estão de parabéns,
estou adorando a matéria (referência a uma reportagem sobre patrimônio histó-
rico em Ouro Preto (MG), mostrada em 14/11/2014).
4. Este é um programa que merece ser exibido em outro horário “mais nobre”.
Dinâmico, prático incentivador, cultural, totalmente do bem (06/03/2015).

Através de observações em dois programas (25/10 e 15/11/2014) foi possível perceber


que internamente também há uma preocupação com o horário do programa. O texto de

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Práticas de divulgação científica na TV aberta brasileira

Maria de Lurdes Welter Pereira

abertura da edição de 25 de outubro faz referência ao despertar. Durante um minuto a


jornalista, Sandra Annemberg, convoca o telespectador a acordar e chega a aumentar
a voz e a velocidade da narração, como se quisesse obrigar o público a prestar atenção.
Abaixo o início do texto:
“Bom Dia, tudo bem por aí? Aqui tudo ótimo. Vamos acordar? Esse é o seu serviço de
despertador personalizado. Hoje é sabadão, alguns estão se preparando para trabalhar,
outros para se divertir com a família ou se organizando né, para fazer o que não deu tempo
durante a semana. Seja quem você for, qual interesse você tenha, aqui é o nosso ponto de
encontro para curtir e compartilhar ideias legais que podem fazer a diferença na sua vida”.
(Rede Globo, 2014)

Em seguida introduz os assuntos que serão mostrados no programa, (iniciando


sempre com uma pergunta) ilustrados com imagens nos telões em movimento. Endereços
de e-mail e das mídias sociais são mostrados a cada intervalo. O mesmo ocorre quando
aparecem os jornalistas durante as reportagens. Pode-se afirmar que o programa é
uma revista eletrônica e segue um formato descontraído, na apresentação em estúdio e
também nas reportagens com gravações externas. A figura abaixo mostra a apresentadora
sentada sobre uma das pernas, como se estivesse na sala da sua casa conversando
despreocupadamente com amigos sobre fatos alegres.

Figura 1: cenário do programa Como Será? Foto: José Paulo Carleal (2014)

No programa de (25/10/ 2014) há duas reportagens sobre pesquisa, sendo a primeira


sobre um software desenvolvido para que pessoas com deficiência visual possam
trabalhar no computador por comando de voz. O F 123, criado por um pesquisador cego
e desenvolvido no Brasil, já foi adotado em 22 países. Para contextualizar a reportagem
de 06 minutos a apresentadora realiza uma espécie de cena teatral, fechando os olhos,
simulando ser cega, para falar da importância de ter visão e chamar à atenção para o

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Práticas de divulgação científica na TV aberta brasileira

Maria de Lurdes Welter Pereira

mundo dos cegos, reunindo interpretação com emoção para contar os benefícios que a
nova tecnologia está trazendo. O segundo assunto relacionado com a pesquisa foi sobre
a produção de açaí na Ilha das Onças, em Belém (Pará). A reportagem acompanhou uma
equipe de pesquisadores da Universidade Federal Rural da Amazônia, que descobriu ser
a extinção de abelhas, a causa da redução da produção de açaí, fruta muito consumida
na região. Os pesquisadores compraram colmeias e incentivaram a reprodução das
abelhas com o objetivo de aumentar a polinização do Açaí. Deu certo e em menos de um
ano a Região voltou a crescer economicamente. Também com duração de seis minutos,
a reportagem deixa evidente a preocupação com o texto e a interação com o público.
As abelhas são chamadas pelo repórter de “mocinhas” para mostrar a intimidade com
o assunto e popularizar a informação. Moradores participam como entrevistados e
os termos considerados pela produção como de difícil compreensão são explicados e
ainda é colocada uma tarja no vídeo, como mostra a figura abaixo para explicar o que
significa debulhar.

Figura 2: agricultor sobe no pé para debulhar os cachos. Como Será? - 25/10/2014

No programa do dia 29/11/2014, uma reportagem de nove minutos acompanhou


estudiosos do Centro de Pesquisas do Canguçu (Tocantins) à Região de Pium, no
Parque Nacional do Araguaia, onde são desenvolvidas pesquisas sobre o desenvolvi-
mento de tartarugas. Os pesquisadores da Universidade Federal Rural da Amazônia
descobriram que está diminuindo a população de fêmeas e passaram a desenvolver
estudos com o objetivo de aumentar a procriação e, assim, preservar a espécie. Há um
trabalho de procura e preservação dos ninhos e acompanhamento da evolução dos
filhotes, com medição e pesagem, em cinco praias da Região do Tocantins. O assunto
foi destaque no quadro chamado Expedição Terra conduzido por Max Fercondini (Rede
Globo, 2014).

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Práticas de divulgação científica na TV aberta brasileira

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Figura 3: pesquisador procura ovos de tartarugas. Como Será? - 29/11/2014

O outro tema relacionado com a pesquisa nesta mesma edição apresenta estudos
sobre a preservação da água, tomando como objeto principal a estiagem em São Paulo.
De acordo com os especialistas ouvidos, uma das causas da escassez de água está no
desmatamento da Amazônia, que vem reduzindo a umidade e ajudando na evaporação
da água dos rios. Na reportagem de 08h30min, são feitas explicações técnicas e científicas
sobre o desmatamento. Em seguida, um especialista de sustentabilidade, Dalberto
Adulis, é entrevistado no estúdio e, por seis minutos explica sobre a necessidade de uma
educação e mudança de hábitos de consumo, momento em que o programa passa a ser
mais educativo do que de jornalismo científico. Durante a conversa, a participação do
público ocorre com a exibição de três perguntas ao especialista, que foram previamente
gravadas nas ruas e no final da entrevista há a convocação para que a audiência envie
perguntas para serem respondidas por por e-mail.
Em outros quadros do programa, também há interatividade através de gravações
feitas pelos próprios telespectadores pelo telefone celular que enviam as dúvidas e
várias gravações são mostradas no programa. E para as pessoas que ligam a televisão
depois que o programa começou, há explicações na tela sobre o que está sendo abordado
(conforme mostra a figura abaixo), uma maneira de informar e uma tentativa de evitar
a migração para uma emissora concorrente.

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Práticas de divulgação científica na TV aberta brasileira

Maria de Lurdes Welter Pereira

Figura 5: painel informa o assunto para quem ligou a TV depois que


o programa havia começado. Como Será? - 29/11/2014.

CONCLUSÃO
Apesar dos recursos tecnológicos e interativos e do formato de revista, o Como
Será? é uma reconfiguração do Globo Cidadania do qual o Globo Ciência fazia parte e
uniu conteúdos de cinco programas em um utilizando-se de estratégias não só com a
finalidade de informar, mas também de entreter a audiência. A apresentação informal
e em certos momentos teatral, faz de cada programa um espetáculo, que se reinventa a
cada semana. O cenário remete a um palco e as prateleiras interligadas a uma bancada,
sugerem um espaço para novas descobertas, porém a prática do jornalismo científico
parece reduzida em relação ao programa anterior, que dedicava 30 minutos semanais
para temas de pesquisa, ciência e tecnologia e a cada semana tratava de apenas um
assunto. Nas duas edições do Como Será? que foram analisadas, os assuntos científicos
tiveram entre seis e nove minutos. Outro fato a ser considerado é que os temas científicos
são exibidos em meio a uma série de outros assuntos, sem que seja mostrada uma vinheta
ou um frame destacando que se trata de pesquisa científica. Por isso, entende-se que o
Como Será? pode ser tomado como exemplo das transformações do jornalismo diante
das tecnologias e ainda da hibidrização entre informação e entretenimento (BRAGA;
AGUIAR; BERGAMASCHI, 2014, p.118). Porém, como o nome do programa remete a
indagações, é também uma demonstração de que a comunicação é um processo de
permanente questionamentos e transformações.

REFERÊNCIAS:
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em: http://globotv.globo.com/rede-globo/como-sera/t/integra/v/como-sera-edicao-
-de-29112014/3797606/ Visualizado em 06/01/2014
ANNEMBERG, Sandra. Apresentadora do Como Será? Disponível em: http://redeglobo.
globo.com/como-sera/. Visualizado em 06/01/2015

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Práticas de divulgação científica na TV aberta brasileira

Maria de Lurdes Welter Pereira

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Experiências estéticas no filme Medianeras
Aesthetic experiences in the movie Medianeras
A l i n e Va z 1

Resumo: O presente trabalho busca reflexões a respeito das experiências estéticas,


por meio dos olhares dos personagens, Martin e Mariana, no filme argentino
Medianeras - Buenos Aires na Era do Amor Virtual (Gustavo Taretto; 2011). Procura-
se analisar como os olhares vagam entre os edifícios da capital argentina e
as representações de mundo através de telas. Percebemos que as experiências
estéticas são oprimidas por um efeito mise en abyme. Chegamos à conclusão de
que o flâneur, conceituado por Walter Benjamin, como aquele que observa a
multidão, transforma-se em um ciber-flâneur, conceituado por André Lemos,
que reconhece uma relação entre o flanar pela cidade e pelo ciberespaço.
Palavras-chave: Estesia, Olhar. Arquitetura. Ciber-flâneur. Hipermodernidade.

Abstract: This study aims reflections on the aesthetic experiences through the
eyes of the characters Martin and Mariana in Argentine film Medianeras (Gustavo
Taretto; 2011). Seeks to analyze how the eyes wander among the buildings of the
Argentine capital, and representations of the world through screens. We realize
that aesthetic experiences are oppressed by a mise en abyme effect. We concluded
that the flâneur, conceptualized by Walter Benjamin, as the one who observes
the crowd turns into a cyber-flâneur, conceptualized by André Lemos, which
recognizes a relationship between the city and strolling through cyberspace.
Keywords: Esthesis. Look. Architecture. Cyber-flâneur. Hypermodernity.

1. INTRODUÇÃO

O FILME ARGENTINO Medianeras - Buenos Aires na Era do Amor Virtual (2011),


do diretor Gustavo Taretto, suscita a relação entre sujeito – objeto, esse objeto
delimitado tanto como o espaço virtual, quanto espaço físico da Buenos Aires
fílmica, em que os personagens Martin (Javier Drolas) e Mariana (Pilar López de Ayala)
transitam entre ser flâneur e transeunte. Percebe-se que ambos os espaços são locais
em que o sujeito transita, com o cuidado de pertencer não pertencendo, mantendo uma
distancia pelo olhar mediado por objetos, em que Flusser chama a atenção para o fato
de que o sujeito “[...] não sabe mais olhar, a não ser através do aparelho” (FLUSSER, 2011,
apud CAETANO, 2012, p. 250).

1.  Universidade Tuiuti do Paraná.

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Experiências estéticas no filme Medianeras

Aline Vaz

Sem distinguir o eu das noções de pessoa, personalidade, caráter, indivíduo e indi-


vidualidade, Claudine Haroche (2008) trata da existência de um desengajamento, ou seja,
um descompromisso que resulta das sensações contínuas exercidas sobre o eu, o que
influencia diretamente as relações entre sensação, percepção, consciência, reflexão e
sentimentos.
Em uma sociedade em que se rompem as fronteiras entre objetos materiais reais e
imagens virtuais, Haroche pressupõe:
Sob o impacto da globalização, as sociedades contemporâneas tendem a se tornar socieda-
des que se transformam de maneira contínua; sociedades flexíveis, sem fronteiras e sem
limites; sociedades fluidas, líquidas. Tais condições têm consequências sobre os traços de
personalidade, dos mais contingentes e superficiais aos mais profundos, sobre os tipos de
personalidade que tendem a desenvolver, e mesmo encorajar, e também sobre a natureza
das relações entre os indivíduos (Haroche, 2008, p.123).

Sobre o sujeito hipermoderno, Haroche questiona a capacidade contemporânea


de sentir, confundida com o fluxo de sensações e ressalta, “teria se estabelecido uma
modificação na maneira de experimentar e exprimir os sentimentos em relação aos
outros e a si mesmo?” (HAROCHE, 2008, p. 134).
Desse modo, por meio da análise do filme Medianeras – Buenos Aires na Era do
Amor Virtual, em que há uma busca pela mediação do olhar decodificado por símbolos
imagéticos, o artigo chama a atenção para como o sujeito hipermoderno percebe o
mundo e vivencia as experiências estéticas.

2. BUENOS AIRES NA ERA DIGITAL


O filme Medianeras – Buenos Aires na Era do Amor Virtual inicia com uma descrição
imagética e voz off do personagem Martin, como forma de apresentação e decodificação
da capital argentina, uma representação de mundo, por meio da janela do cinema que
apresenta um sintoma da dita realidade apreendida pelos sujeitos que a habitam.
Buenos Aires cresce descontrolada e imperfeita. É uma cidade superpovoada num país
deserto. Uma cidade onde se erguem milhares e milhares de prédios sem nenhum critério.
Ao lado de um muito alto, tem um muito baixo. Ao lado de um racionalista um irracional.
Ao lado de um estilo francês, tem um sem estilo. Provavelmente essas irregularidades nos
refletem perfeitamente. Irregularidades estéticas e éticas. Esses prédios que se sucedem
sem lógica demonstram total falta de planejamento. Exatamente assim é a nossa vida, que
construímos sem saber como queremos que fique. Vivemos como quem está de passagem
por Buenos Aires. Somos criadores da cultura do inquilino. Prédios menores para dar lugar
a outros prédios, ainda menores. Os apartamentos se medem por cômodos, vão daqueles
excepcionais, com sacadas, sala de recreação, quarto de empregada e depósito, até a qui-
tinete, ou “caixa de sapato”. Os prédios, como muita coisa pensada pelos homens, servem
para diferenciar uns aos outros. Existe a frente e existe o fundo. Andares altos e baixos. Os
privilegiados são identificados pela letra A, às vezes B. Quanto mais à frente no alfabeto,
pior o apartamento. Vista e claridade são promessas que poucas vezes se concretizam. O que
esperar de uma cidade que dá as costas ao mar? É certeza que as separações e os divórcios,
a violência familiar o excesso de canais a cabo, a falta de comunicação, a falta de desejo, a

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Experiências estéticas no filme Medianeras

Aline Vaz

apatia, a depressão, os suicídios, as neuroses, ataque de pânico, a obesidade, a tensão mus-


cular, a insegurança, a hipocondria, o estresse, o sedentarismo, são culpa dos arquitetos
e incorporações. Esses males, exceto o suicídio, todos me acometem (Medianeras, 2011).

Heidegger suscita o espaço da habitação como um modo do homem ser e estar no


mundo, em que “ser” “se deriva de sedere, estar sentado. Nós falamos de “residência”.
Assim se denomina o lugar onde se demora o habitar. Demorar-se é estar presente junto
a...” (HEIDEGGER, 1979, p. 450).
É importante refletir a respeito do ser e estar no mundo, pois o pertencer constitui
em um ser e pensar, que constrói uma identidade. Heidegger discorre sobre uma sub-
jetividade afetada pela sensibilidade, em que pensar significa uma multiplicidade de
representações em um “conhecer o mundo” e “possuir o mundo”. “O conceito de mundo
está como que entre a “possibilidade da experiência” e o “ideal transcendental” e significa
assim, em seu núcleo, a totalidade da finitude do ser humano” (HEIDEGGER, 1979, p. 311).
Bachelard (1978) em “A poética do Espaço” pressupõe que a casa abriga o devaneio,
protege o sonhador e o permite sonhar em paz. O protagonista, Martin, ao suscitar que
a cidade cresce descontrolada, imperfeita e irregular, culpa os males da sociedade como
reflexo de um mal arquitetônico, que abriga e separa a sociedade, desconstruindo o espaço
que deveria proteger e alimentar os sonhos. Não há saída, o homem que limpa os vidros,
amarrado em uma corda bamba é refém de uma arquitetura que transmite insegurança.
Os prédios que observamos têm muitos espelhos, que ao dar as costas ao mar, refletem
apenas a própria arquitetura, janelas distorcidas dentro de janelas (Figura 1).

Figura 1. Frame do filme Medianeras: efeito mise en abyme (André Gide, 1893).

No ensaio “A obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica”, Walter


Benjamin (1994), suscita:
Os edifícios comportam uma dupla forma de recepção: pelo uso e pela percepção. Em
outras palavras: por meios táteis e óticos. Não podemos compreender a especificidade
dessa recepção se a imaginarmos segundo o modelo do recolhimento, atitude habitual do
viajante diante de edifícios célebres. Pois não existe nada na recepção tátil que corresponda
ao que a contemplação representa na recepção ótica. A recepção tátil se efetua menos pela

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Experiências estéticas no filme Medianeras

Aline Vaz

atenção que pelo hábito. No que diz respeito à arquitetura, o hábito determina em grande
medida a própria recepção ótica. Também ela, de início, se realiza mais sob a forma de uma
observação casual que de uma atenção concentrada (Benjamin, 1994, p. 193).

Podemos pressupor que a cena descrita, transpõe para a tela a imagem de uma
cidade que olha e é olhada para o protagonista, que é afetado “através” de uma arqui-
tetura que o norteia. Nesse caso, o uso da palavra “através” não é ocasional, já que o
olhar “atravessa” o indivíduo que habita essa cidade, reflete nas moradias irregulares
a irregularidade de um sujeito que pertence não pertencendo, conhece o mundo, mas
talvez não o possua. Clarissa Ribeiro (2004) observa no artigo “Do flâneur ao ciborg-
-teorias filosóficas do espaço”, que os edifícios se realizam em função de um propósito
comum, observados como uma representação física de um sintoma de comportamento
de grupo, representando uma sociedade e seus modos de vivenciar a cidade. Na repre-
sentação fílmica em análise, ao passo que os edifícios diferenciam os moradores pelo
poder de aquisição, abrigam e sufocam sujeitos presos em moradias que não constituem
subjetividade, distanciam as possibilidades sensíveis, destinados a um comportamento
de isolamento, que reflete um comportamento coletivo.
Martin diz que “os privilegiados são identificados pela letra A, às vezes B. Quanto
mais à frente no alfabeto, pior o apartamento.” Marc Augé (2007), em “Não Lugares
– introdução a uma antropologia da supermodernidade”, observa que os espaços de
não-lugares identificam seus usuários por números. Os moradores da Buenos Aires
representada são identificados por letras, promovendo no anonimato uma relação de
reificação, equiparando moradores e casas, enfatizando solidões. A moradia suscita-
da por Bachelard (2000) estaria transformando-se em um não-lugar, como os espaços
de passagens: aeroportos, supermercados e hotéis, apontados por Augé? Habitamos o
mundo? O sujeito que habita a cidade invadida pela arquitetura irregular e opressora
cria um olhar para o próprio mundo ou é cegado pelo mundo que se impõe? “Vista e
claridade são promessas que poucas vezes se concretizam. O que esperar de uma cidade
que dá as costas ao mar?”

3. ENTRE O FLÂNEUR E O TRANSEUNTE


Para que o sujeito habite o mundo, compreenda e o possua, é preciso olhar e
ser olhado para e pelo mundo. Para que se constitua uma experiência estética, Didi-
Huberman (2010), suscita a experiência de ser olhante e olhado. Os nomes Martin e
Mariana iniciam com a palavra “mar”, Buenos Aires que dá as costas ao o mar, dá as
costas aos seus personagens?
A relação do olhar, sujeito-cidade, é invoca no relato do personagem Martin:
Para a psiquiatria sou um fóbico em recuperação. Após repetidos ataques de pânico, eu me
fechei em casa. Por uns dois anos, não saí. [...] Fiquei totalmente isolado com medo. Com a
estratégia do psiquiatra fui perdendo o medo da cidade, do mundo lá fora, dos outros. Tirar
fotos. Um jeito de redescobrir a cidade e as pessoas. Procurar a beleza, mesmo onde ela não
existe. Observar é estar e não estar. Ou talvez estar de um jeito diferente. Assim, distraida-
mente, fui me afastando. Não ando de ônibus, nem de taxi, muito menos de metrô. Avião

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Experiências estéticas no filme Medianeras

Aline Vaz

então, nem pensar, só me desloco a pé. Só preciso dos pés e da mochila que levo para todo
lado. Conteúdo: Uma câmera Leica D-Lux 3 de 10 megapixels, Rivotril em gotas a 0,25%,
Amoxilina 500, Ibuprofeno, óculos de sol, uma capa plástica, um Victorinox de 21 funções,
lanterna, pilhas, preservativos, três unidades, 400 pesos em notas miúdas, um ipod de 60Gb.
Tenho mais de 8.000 músicas. Três filmes de Tati, um caderno e uma folha plastificada com
instruções com o que fazer em caso de acidente ou ataque de pânico (Medianeras, 2011).

O personagem relata uma atitude que dialoga com o personagem conceitual citado
por Walter Benjamin (1989), o flâneur, um “ser ótico” por excelência. Benjamin também
ressalta a representação das cenas construídas por imagens do cotidiano, que se tornam
simulacros da própria vida. No caso de Martin, o torna observador, o coloca próximo
da multidão, mas protegido por um olhar mediado pela câmera fotográfica.
Cada um de nós pode observar que uma imagem, uma escultura e principalmente um
edifício são mais facilmente visíveis na fotografia que na realidade. A tentação é grande
de atribuir a responsabilidade por esse fenômeno à decadência do gosto artístico ou ao
fracasso dos nossos contemporâneos. Porém somos forçados a reconhecer que a concep-
ção de grandes obras modificou simultaneamente com o aperfeiçoamento das técnicas de
reprodução. Não podemos agora vê-las como criações individuais; elas se transformaram
em criações coletivas tão possantes que precisamos diminuí-las para que nos apoderemos
delas (Benjamin, 1994, p. 104).

Para que Martin possa apoderar-se de uma arquitetura que se apodera é preciso
diminuí-la pela janela da câmera fotográfica, enquadrando a cidade é possível escolher
o que é olhado e olhante, é possível vivenciar uma reprodução de uma dita realidade
emoldurada, o olhar é selecionado.
Em uma das fotografias de Martin (Figura 2) percebe-se que a janela da lente da
câmera registra uma janela de vidro, que enquadra o sujeito, deformado por gotas da
chuva. “O poeta, como tantos outros, sonha atrás da vidraça. Mas, no próprio vidro,
descobre uma pequena deformação que vai propagar a deformação do universo”
(BACHELARD, 1978, p. 299).

Figura 2. Frame do filme Medianeras: o olhar mediado pelo aparelho.

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Experiências estéticas no filme Medianeras

Aline Vaz

Mariana, personagem da obra analisada, confirma as características do flâneur ao


folhear o popular livro “Onde Está Wally?”:
Tenho esse livro desde os 14 anos e é, que me perdoem os grandes escritores, o livro da
minha vida. É a origem da minha fobia de multidões e criou em mim uma angústia exis-
tencial bem particular. Ele representa de um jeito dramático a angústia de saber que sou
alguém perdido entre milhões. Os anos passaram e ficou uma página sem resolver. Wally na
cidade. Eu o encontrei no shopping, no aeroporto e na praia, mas na cidade não o encontro.
Sei que o nervosismo cega, mas não consigo achar. Então me pergunto: se mesmo sabendo
quem eu procuro não consigo achar, como vou achar quem eu procuro se nem sei como é?
(Medianeras, 2011)

Wally é o transeunte que se enfia na multidão, aquele que Martin procura tornar-
se com a ajuda da terapia, a câmera e sua mochila, que é abastecida como alguém que
prepara um kit de sobrevivência, prestes a adentrar em uma selva. A cidade ganha
um caráter de floresta de signos, que Martin tenta decodificar por meio da observação
mediada pelo aparelho. Mariana não quer pertencer à cidade, ela quer encontrar alguém
que não sabe como é, mas que está perdido na multidão. O nervosismo de pertencer
não pertencendo a essa multidão cega as possibilidades de encontro com alguém que
também vive a angústia e anulação coletiva.
Olhar para a cidade causa pânico em Martin, angústia em Mariana. Olhar para a
cidade que os priva de claridade e vista, que os prende em pequenos apartamentos com
pouca luminosidade, em que janelas ilegais aparecem como rotas de fuga, para encontrar
um pouco de luz, mas que são medianeras tomadas por anúncios publicitários, constitui
um olhar para soluções provisórias e anúncios que indicam quantos minutos separam
as janelas de não-lugares, como os supermercados e lanchonetes (Figura 3).

Figura 3. Frame do filme Medianeras: janelas ilegais.

Diante de um olhar oprimido, dentro de suas casas, os moradores acabam por


encontrar a luz que procuram na tela do computador. “Como podemos ter deixado de
acreditar em nossos próprios olhos para crer tão facilmente nos vetores da representação
eletrônica e, sobretudo, no vetor velocidade da luz?” (VIRILIO, 1993, p. 31).

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Experiências estéticas no filme Medianeras

Aline Vaz

As janelas para o mundo transformam-se em telas, transformando as experiências


sensíveis do sujeito que olha para o mundo representado, observa-se uma “desintegração
do nosso mundo em um aglomerado de grupos de interesse privado, material e espiritual,
vivendo em mônadas sem janelas, ainda mais isolados do que precisamos ser” (BERMAN,
1990, p. 31-2).
Para Haroche (2008), o sujeito hipermoderno experimenta a necessidade da presença
do outro, afastado dele, uma presença abstrata, inconsistente, permutável e até inexistente.
Martin afirma: “Há mais de dez anos, sentei em frente ao computador e tenho a sensação
que nunca mais levantei”. O olhar para o mundo teria transformado o flanêur em um
observador tecnologizado?

4. O FLÂNEUR HIPERMODERNO
Bauman (1993) preocupa-se com a qualidade das interações. Uma sociedade
dominada pela flexibilidade e fluidez contemporânea impõe o imediatismo, as relações
instantâneas. Fromm (1941, apud HAROCHE, 2008, p. 126) enfatiza que o ao se libertar
dos vínculos pessoais tradicionais de indivíduo a indivíduo, a emancipação afeta a
estrutura de caráter. Haroche conclui:
Desse modo, ele torna visíveis os processos que levam ao isolamento e à impotência do indi-
víduo, à falta de proteção das novas condições que provocam efeitos psicológicos maiores:
a liberdade do indivíduo faz nascer a dúvida, a incerteza e um sentimento de impotência
e de insegurança, outra maneira de dizer que essa autonomia acompanha a emergência de
um sentimento complexo e que é fonte de angústia, o sentimento do eu, o medo de perdê-lo
(Haroche, 2008, p. 126).

Mariana reclama que o olhar vendado por prédios e fios escondem o mar e o céu,
o que resulta em uma relação virtual com o mundo, uma escapatória, a tela como um
novo olhar para o mundo, uma solidão coletiva.
Quando vamos ser uma cidade sem fios? Que gênios esconderam o mar com prédios e o
céu com cabos? Tantos quilômetros de cabos servem para nos unir ou para nos manter
afastados, cada um no seu lugar? A telefonia celular invadiu o mundo, prometendo conexão
sempre. Mensagens de texto. Uma nova linguagem adaptada para 10 teclas, que reduz uma
das línguas mais lindas a um vocabulário primitivo, limitado e gutural. ‘O futuro está na
fibra óptica’, dizem os visionários. Do trabalho você vai poder aumentar a temperatura da
sua casa. Claro, ninguém vai esperar você com a casa quentinha. Bem-vindos à era das
relações virtuais (Medianeras, 2011).

Lemos (2001) pressupõe uma modificação do sujeito que vaga em estado de abandono
a observar as multidões, o flâneur agora é um ciber-flâneur:
Vivemos hoje uma relação cada vez mais simbiótica entre o espaço da cidade e o novo espa-
ço cibernético, o ciberespaço. Nesta analogia, podemos ver a navegação hipertextual pela
Internet como o exercício de um ciber-flâneur e seu passeio pelo mar de dados. Não mais
apenas sobre espaços físicos, mas sobre as malhas virtuais do ciberespaço. Em ambos os
processos está em jogo um arranjo do espaço (físico ou cibernético) através de um modelo

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Experiências estéticas no filme Medianeras

Aline Vaz

de conexão generalizada, descentralizada, cujo ponto de partida é constantemente deslocado


através da atividade da errância. Não podemos prever que caminho o internauta vai tomar
com os links propostos. Neste sentido, flanar numa cidade ou navegar por hipertextos evoca
um mesmo processo: leitura (relação corpo-texto) e mapeamentos (relação corpo - espaço),
fundindo as figuras do leitor (que segue o mapa) e do escritor (que faz o mapa), do confor-
mista que segue e do aventureiro que faz (Lemos, 2001, p. 02).

Martin incorpora a rotina do ciber-flâneur: “Faço coisas de banco e leio revistas pela
internet, baixo música, ouço rádio pela internet, compro comida pela internet, converso
pela internet, estudo pela internet, jogo pela internet, faço sexo pela internet e procuro
passeador de cachorro”.
O personagem determina seus encontros românticos observando candidatas no
espaço cibernético: “Concluí que esses encontros são como combos do McDonald’s. Nas
fotos, é tudo melhor, maior e mais apetitoso. Cada vez que vou a um encontro tenho
a mesma decepção que vem diante de um Big Mac”. Para Martin, procurar alguém
para sair é como procurar uma refeição no cardápio do McDonald’s, percebemos que
as características pessoais da pessoa escolhida são organizadas por ícones (Figura 4),
as imagens representam o sujeito. “Vivemos cercados, impregnados de imagens, e, no
entanto, não sabemos quase nada da imagem [...]” (BARTHES, 2005, p. 70).

Figura 4. Frame do filme Medianeras: representação imagética.

O mundo constituído pelo uso de códigos comunicacionais, segundo Bally (1951),


aceita a linguagem como expressão de pensamentos e acrescenta que como sistema de
pensamento, a linguagem deforma-se pela subjetividade, sendo assim, ela não reflete e
sim refrata a realidade, opera uma modificação dos fenômenos. A subjetividade é a parte
afetiva que nos constitui, emoções, impulsos e desejos são expressos na linguagem. Ao
considerar uma linguagem afetiva, não se exclui a condição social do interlocutor, pois
ela transita de um estado psicológico para o social.
A linguagem – representação de mundo – do flâneur é alterada pelos hipertextos.
Novas formas de comunicação hibridas constroem um novo olhar decodificante e novas
experiências estéticas, o sujeito observa e é observado, mediado por telas. O flâneur não
precisa mais se deslocar até a rua para desempenhar a função de observador, o mundo

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Experiências estéticas no filme Medianeras

Aline Vaz

está representado dentro da sua casa, o olhar é iluminado pela luz que o imobiliza em
uma relação com o simulacro. O novo acesso ao mundo que surge como uma estesia
passa por uma automatização: “Todo impulso em direção à estesia está ameaçado de
uma recaída na anestesia” (GREIMAS, 2002, p. 80).
O sujeito que enquadra o olhar como uma possível aproximação do mundo, torna-
-se refém de uma mise en abyme, aprisiona-se na cidade, que o aprisiona na casa, que o
aprisiona na tela do computador, que por sua vez o aprisionará em sites de relaciona-
mentos e hiperlinks.
Kati Caetano (2012, p. 256) compreende que o sujeito imergido no ciberespaço “é
tomado pela impressão de presença no mundo e proximidade com as pessoas e coisas,
ao mesmo passo que se posiciona numa atitude de imobilidade física e descorporificação
com respeito àquilo que se processa aquém da tela do computador”. Martin afirma que a
internet o aproximou do mundo, mas o distanciou da vida. O ciber-flâneur encontra-se
anestesiado pela automatização. Mariana diz que “o futuro está na fibra ótica, ninguém
vai esperar você com a casa quentinha”. Na tentativa de não anular-se na multidão, o
sujeito anula-se na tentativa solitária de experimentar uma representação de mundo,
o que Berman (1990, p.33) indicou como um sonho de liberdade que aprisiona, “porém,
assim que nos damos conta da total futilidade disso tudo, podemos ao menos relaxar”.
Conhecemos os riscos, podemos nos tornar simulacros de nós mesmos, somos
reféns do comodismo, da proteção que a tela nos impõe, nos acostumamos com o estar
nem dentro e nem fora, interagimos com as imagens do mundo, uma “hiper-realidade
da comunicação e do sentido. Mais real que o real [...]” (BAUDRILLARD, 1991, p. 105).
Será possível romper as barreiras representativas além da luz que inverte a imagem
na retina e cria um mundo constituído por imagens hiper-reais?

5. A DESCONSTRUÇÃO DO SIMULACRO
Heidegger (1979) chama a atenção para a relação homem e máquina, em que se
desconstrói uma representação técnica, apenas tecnicamente, pois é preciso refletir
sobre o ponto de vista do ser. A reprodutividade técnica torna-se apropriação de uma
linguagem, própria de conhecimento e apropriação de mundo, que Heidegger trata
como acontecimento-apropriação, entregue à linguagem como propriedade. Apropriar-
se e tornar-se para si, constitui uma identidade, ser e estar de modo a interagir com as
apresentações e representações que afetam o sujeito mediado pelo olhar, que o coloca
no mundo e o torna parte dele.
Os simulacros, indicados por Arlindo Machado (1984), significam as coisas que
representam. “O signo existe, grosso modo, para remeter para alguma coisa fora dele
mesmo, ou seja, para “representar” algo que não é ele próprio, daí a definição clássica de
signo: aquilo que está no lugar de alguma coisa” (MACHADO, 1984, p. 20). Em Medianeras
há a representação do simulacro, a relação de mundo que Martin constrói mediada por
aparelhos, as vitrines decoradas por Mariana, a cena que sugere uma relação erótica entre
Mariana e seu manequim, evidenciam uma relação com o mundo das representações.
Todos esses simulacros que representam o mundo, também distanciam o sujeito
do mundo, que protegido de uma dita realidade, reproduz uma solitária dita realidade
constituída pelo olhar mediado pela proteção do anonimato.

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Experiências estéticas no filme Medianeras

Aline Vaz

Caetano e Fischer tratam de um olhar vigilante que determina uma posição de


privilégio:
O sentido de vigiar, atualizável em algumas ocorrências do vocábulo “olhar”, é sintomático
de uma sociedade de relações verticalizadas, que se manifestam, inclusive, nos regimes de
visibilidade presentes nos encontros intersubjetivos, sejam eles entre pessoas e entre pessoas
e coisas. Quem vigia determina uma posição de privilégio, não de classe ou grupo, mas de
competências e saberes. O alcance de sua mirada, mesmo que enquadrado pelos limites de
um aparato ou espaço, avoluma-se porque circunscrito a um contexto de predefinições e
potencialidades: de aproximação, retenção, ampliação, recuo, comparações. É visto, além
disso, no bojo de uma conjuntura em que as ações e os sujeitos estão determinados por
certas pretensas normalidades (Caetano; Fischer, 2014, p. 02).

A obra cinematográfica em análise torna seus personagens conscientes do olhar


que os coloca em uma situação de estar sem ser (multidão). Martin que passa por um
processo de inserção na cidade, por meio da fotografia e caminhadas, na cena final ganha
a personificação do personagem de “Onde Está Wally?”. No momento em que Martin
pertence à multidão, Mariana da janela de seu apartamento, desempenha o olhar de
flâneur, que finalmente encontra o Wally na cidade. Em um jogo de câmera, o olhar de
Mariana desconstrói uma mediação do olhar, agora não há mais a tela do computador,
nem as vitrines, ela corre para a rua, derruba um manequim como sinal de ruptura do
simulacro e enfim se vê inserida na multidão, olhando e sendo olhada. A câmera se
distancia dos personagens que se tornam transeuntes – a experiência do espectador é
de flanar Martin e Mariana, agora multidão (Figura 5).

Figura 5. Frame do filme Medianeras: o espectador flana a multidão.

Caetano e Fischer também analisam a posição daquele que é observado:


[...] o vigiado está naturalmente apequenado, não como classe ou grupo, mas como aquele
que, incapaz de assumir-se sujeito do discurso, torna-se a terceira pessoa, de quem se
fala, a quem se vê, destituído de sua possibilidade de interlocução, interação, defesa. Os
olhares assim divergidos não configuram meros desencontros; instituem espacialidades

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Experiências estéticas no filme Medianeras

Aline Vaz

pertinentes do ponto de vista comunicacional entre interior/exterior, visibilidade/invisibi-


lidade; mediações/imediações e estados modo passionais intensos, entre atos mecanizados
e livres (Caetano; Fischer, 2014, p. 02).

Na cena descrita percebemos um movimento de vigilância para vigiado. Martin


que até aquele momento do filme coloca-se como um observador mediado por aparelhos
– telas –, torna-se vigiado por Mariana, que logo se torna vigiada pela câmera que se
distancia do casal que se olha, apequenando os personagens e proporcionando uma
visibilidade aos nossos olhos, daqueles que se tornam vigiados em meio à multidão,
que naquele momento pertencem, estão no mundo e apropriam-se dele.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao analisar as percepções de mundo dos personagens Martin e Mariana, no filme
Medianeras – Buenos Aires na Era do Amor Virtual, analisamos um processo comunicacional,
construção de linguagem – mundo – entre o olhar do flâneur e as mediações, que
representam um mundo afetado pelos simulacros de uma dita realidade, um sentir
pela janela do dito real, janela culturalmente reconhecida como um lugar de ventilação
e observação.
Greimas (2002) suscita que a fusão do olhar introduz o sujeito em uma experiência
possível pelo arrebatamento da paixão, um efeito de linguagem, que provoca a fratura
do sentido. O olhar que clareia é um relâmpago passageiro, perturba a visão, provoca
uma descontinuidade no discurso e rompe com a vida representada, os simulacros que
se inserem nas experiências vivenciadas pelos personagens Martin e Mariana.
Não se trata aqui, então, de uma simples troca de isotopia textual, mas de uma verdadeira
fratura entre a dimensão da cotidianidade e “o momento da inocência”. A passagem a
esse novo “estado de coisas” se manifesta como ação de uma força que vem do exterior: o
deslumbramento é, de fato, segundo os dicionários, o “estado da vista golpeada pelo clarão
demasiado brutal da luz” (Greimas, 2002, p. 26).

“O deslumbramento atinge o sujeito e transforma sua visão: encontramo-nos diante


de uma estética do sujeito” (GREIMAS, 2002, p. 26). O retorno não se dá intocado, a luz
que ofusca a visão fica retida em um modo de olhar transformado, agora preenche
a espera tensa da experiência inquieta, iluminada pela fratura e a possibilidade de
decodificar-se nos olhares que se cruzam, refratam, se amam e encontram o canto no
mundo. A experiência do ser e estar no olhar seria o abrigo invocado por Bachelard, que
protege o sonhador e o permite sonhar em paz? O encontro de Martin e Mariana chama
a atenção para um movimento imprevisto do olhar em que nos vemos, nos encontramos,
dividimos nosso mundo e todas as perturbações que nele existe.

REFERÊNCIAS
AUGÉ, Marc. Não-lugares. Papirus Editora, 2007.
BALLY, Charles. Traite de stylistique francaise: 3e ed., nouveau tirage. Georg, 1951.
BACHELARD, Gaston. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
BAUDRILLARD, Jean. Simulações e simulacros. Lisboa: Relógio D’Água, 1991.

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Experiências estéticas no filme Medianeras

Aline Vaz

BARTHES, Roland. Imagem e moda. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 380p., v. 3.
BAUMAN, Zygmunt. Life in fragments: Essays in postmodern morality. 1995.
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire Um Lírico no Auge do Capitalismo. Tradução José Carlos
Martins Barbosa, Hemerson Alves Baptista. 1 ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. – (Obras
Escolhidas; v.3)
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. Tradução Sergio Paulo Rouanet; prefácio de Janne Marie gagnebin. 7 ed. São
Paulo: Brasiliense, 1994. – (Obras Escolhidas; v.1)
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. Companhia das Letras, 1990.
CAETANO, Kati . Impregnações tecnoestéticas na vida cotidiana: inconsciente óptico,
filosofia da caixa preta, artealização e “everyware”. Revista Em Questão. Porto Alegre:
Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS, vol. 18, n. 1, 2012, p. 245 - 262.
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/EmQuestao.
CAETANO, Kati; FISCHER, Sandra. CONTROLE, FRATURA, PROFANAÇÃO,
ESCAPATÓRIA: a poética do olhar em Gigante1 CONTROL, FRACTURE, PROFANITY,
ESCAPE: the poetics of looking in Gigante.
DIDI-HUBERMAN. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010.
GREIMAS, Algirdas - Julien. Da imperfeição. São Paulo: Hacker Editores, 2002.
HAROCHE, Claudine. A condição sensível: formas e maneiras de sentir no Ocidente. Trad.
Jacy Alves de Seixas e Vera Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2008.
HEIDEGGER, Martin. Conferências e Escritos Filosóficos. Tradução e notas Ernildo Stein. São
Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os Pensadores, Heidegger.)
LEMOS, André. Ciber-flânerie. Comunicação na cibercultura. São Leopoldo (RS): Editora
Unisinos, 2001.
MACHADO, Arlindo. A Ilusão Especular – Introdução à fotografia. São Paulo: Brasiliense, 1984.
RIBEIRO, Clarissa. Do flâneur ao ciborg-teorias filosóficas do espaço, 2004.
VIRILIO, Paul. O Espaço crítico. Tradução Paulo Roberto Pires. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora
34, 1993.

FILMOGRAFIA
MEDIANERAS. Direção de Gustavo Taretto. Argentina: 2011.

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Comunicação, espaços urbanos e relações sociais no
filme Medianeras: Buenos Aires na era do amor virtual
Communication, urban spaces and social relations in
Medianeras movie: Buenos Aires in the era of virtual love
Va n e s s a P a u l a T r i g u e i r o M o u r a 1
Jo si m e y Co sta da S i lva 2

Resumo: O presente estudo estabelece uma investigação inicial da obra


audiovisual Medianeras: Buenos Aires na era do amor virtual. O filme argentino
torna-se o lugar de representação das relações sociais permeadas pelo universo
urbano e midiático. As questões da sociabilidade contemporânea são retratadas
a partir de relações de comunicação no espaço urbano e da arquitetura de
Buenos Aires, refletindo a lógica midiática na organização e fluxo das grandes
cidades. Mídia aqui constitui um modo de experiência contemporâneo, como
posto por Silverstone (2005). Autores como Prysthon (2006), Ferrara (1988), Lynch
(1997) e Canevacci (2004) auxiliam na compreensão sobre o espaço urbano e
a comunicação urbana, permitindo refletir sobre a maneira como as cidades
comunicam suas particularidades e seus estilos de vida. Já como alicerce dos
estudos sobre cinema, Luz (2002), Bahiana (2012), Gaudreault e Jost (2009) e
Carrière (2006) introduzem um pensamento a respeito do audiovisual.
Palavras-chaves: Audiovisual. Medianeras. Espaço urbano.

Abstract: This study establishes an initial investigation of the audiovisual


work Medianeras: Buenos Aires in the era of virtual love. The Argentine film
becomes the place of representation of social relations marked by the urban
and media universe. The issues of contemporary sociability are portrayed from
communication interfaces in the urban area and Buenos Aires architecture,
reflecting the media logic in the organization and flow of large cities. Media
here is a way of contemporary experience, as put by Silverstone (2005). Authors
such as Prysthon (2006), Ferrara (1988), Lynch (1997) and Canevacci (2004) help
to understand on the urban space and urban communication, allowing reflect
on the way cities communicate their characteristics and their lifestyles. Have a
foundation of film studies, Luz (2002), Bahiana (2012), Gaudreault and Jost (2009)
and Carrière (2006) introduce a thought as audiovisual.
Keywords: Audiovisual. Medianeras. Urban area.

1.  Mestranda da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: vanessapaulatm@gmail.com


2.  Doutora, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: josimeycosta@gmail.com

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Comunicação, espaços urbanos e relações sociais no filme Medianeras: Buenos Aires na era do amor virtual

Vanessa Paula Trigueiro Moura • Josimey Costa da Silva

INTRODUÇÃO

P ENSAR A cidade, as disparidades arquitetônicas e as faces do urbano como repre-


sentações das relações sociais e de um individualismo contemporâneo por meio
da linguagem cinematográfica nos insere numa realidade transdisciplinar, em que
os processos culturais, comunicacionais e sociais encontram-se interligados de maneira
quase indissociável.
A relação existente entre os signos culturais e as práticas e produções midiáticas
a partir da análise do filme Medianeras: Buenos Aires na era do amor virtual3 nos permite
amadurecer a respeito dos meios de relação interpessoal no cotidiano de uma cultura
urbana, que mescla os desdobramentos copresenciais desse tipo de relação com o
isolamento do indivíduo contemporâneo, que, muitas vezes, em meio a um aglome-
rado de pessoas, mensagens e informações, mantém suas relações mais próximas no
espaço virtual.
O presente artigo surge a partir das reflexões da pesquisa que vem sendo realizada
no mestrado em Estudos da Mídia. Nesse contexto, a obra audiovisual Medianeras é
inserida como representação de uma discussão epistemológica que alicerçará o estu-
do que está em andamento. A partir da linguagem cinematográfica identificamos as
questões que interligam a ressignificação das relações, da comunicação e do próprio
espaço urbano. E assim como o panorama midiático e a organização das grandes
cidades reconfiguram as relações humanas com o espaço e com o outro, a narrativa
fílmica e os recursos plásticos e estéticos da obra argentina reconfiguram o olhar do
espectador para o cotidiano midiático e urbano, bem como para o próprio aprofun-
damento do roteiro.
Enraizar na narrativa fílmica de Medianeras nos possibilita fazer mais que uma
análise cinematográfica. A obra argentina, agindo como lugar de representação do real,
nos permite enxergar uma discussão que permeia as relações entre cidade, comunicação
e indivíduo. Trata-se de compreender o filme como uma moldura, em que a construção
de sua linguagem discursiva e visual consiste em um espaço de representação que, no
caso de Medianeras, propicia uma reflexão a respeito da subjetividade arquitetônica e
dos fluxos das cidades, bem como a respeito das relações interpessoais mediadas pelas
plataformas virtuais.
A complexidade dos estilos, fluxos e ritmos que compõe o espaço urbano, além da
questão comportamental dos indivíduos que trafegam por ele caracterizam a vivência no
espaço urbano. Esse panorama se complexifica com o advento da mediação tecnológica,
que trazem consigo novos panoramas para a comunicação, cria um novo ambiente de
trocas. Assim é que a individualidade contemporânea e as relações sociais nos grandes
centros urbanos, permeadas pelas novas plataformas de comunicação, aparecem
representadas na obra audiovisual em questão.
O filme argentino possibilita apreender a representação da formação arquitetônica
da cidade nas subjetividades dos protagonistas da trama, que potencializam o coletivo
do lugar e do tempo em que vivem, ressaltando, dessa forma, a relação entre a cultura,
o comportamento e a realidade urbana e midiática.

3.  Filme argentino de 2011, dirigido por Gustavo Taretto e distribuição Imovision.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

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Comunicação, espaços urbanos e relações sociais no filme Medianeras: Buenos Aires na era do amor virtual

Vanessa Paula Trigueiro Moura • Josimey Costa da Silva

BREVE PANORAMA DA PRODUÇÃO AUDIOVISUAL ARGENTINA


A escolha de Medianeras como objeto deste estudo parte também da importância do
cinema argentino no âmbito das produções audiovisuais dos países Iberoamerianos. O
cenário de produção de longas-metragens argentinos assemelha-se, em números, com o de
produções brasileiras. Dentro dessa realidade, a Argentina passou a ultrapassar a média
de estreia dos 300 longas a partir do ano de 2010, quando estreou 348 filmes. Desde então,
o número de filmes argentinos estreados pro ano se mantém acima das 330 produções.
Além de uma crescente quantitativa no número de realizações de longas-metragens,
o cinema argentino tem repercutido mundialmente pela qualidade técnica de suas
produções. Alguns filmes se destacaram internacionalmente nos últimos 8 anos, é o
caso de Medianeras4 e O segredo dos seus olhos5.

Figura 1. Comparativos entre os longas-metragens argentinos e


brasileiros estreados entre os anos de 2007 e 2013.

4.  Medianeras recebeu premiações de melhor filme estrangeiro, melhor diretor e júri popular no Festival
de Gramado 2011 e participou do 61º Internationale Filmfestspiele Berlin.
5.  El sercreto de sus ojos, filme de 2009 dirigido por Juan José Campanella foi vencedor do Oscar em 2010
na categoria melhor filme estrangeiro.

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Comunicação, espaços urbanos e relações sociais no filme Medianeras: Buenos Aires na era do amor virtual

Vanessa Paula Trigueiro Moura • Josimey Costa da Silva

O observatório iberoamericano de audiovisual6 tem reunido indicadores estatísti-


cos sobre a realidade do mercado audiovisual nos países que compõe a Iberoamérica
– Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, El Salvador, Equador,
Espanha, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Porto
Rico, Portugal, República Dominicana, Uruguai e Venezuela. Em 2011, ano em que foi
estreado Medianeras, a Argentina, Brasil, Espanha, México e Portugal protagonizaram
o cenário audiovisual com um maior número de produções cinematográficas dentro da
realidade iberoamericana. Na ocasião, a Argentina estreou 334 longas-metragens, fican-
do atrás apenas da Espanha, com 533 filmes estreados, e do Brasil, com 337 produções.

Figura 2. Comparativo entre os longas-metragens iberoamericanos estreados no ano de 2011.

Figura 3. Número de longas-metragens argentinos estreados no ano de 2011.

6.  Site do OIA, http://www.oia-caci.org/pt/. Acessado em 01 de março de 2015.

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Comunicação, espaços urbanos e relações sociais no filme Medianeras: Buenos Aires na era do amor virtual

Vanessa Paula Trigueiro Moura • Josimey Costa da Silva

Antes de produzir o longa-metragem Medianeras: Buenos Aires na era do amor virtual,


Gustavo Taretto estudou fotografia durante muitos anos e escreveu e dirigiu cinco curtas-
-metragens, dentre eles está a produção do curta também intitulado de Medianeras. O
curta foi escrito no ano de 2004, filmado no ano de 2005 e recebeu mais de 40 prêmios
em festivais internacionais7.
Para a transformação de Medianeras em longa, Taretto utilizou o mesmo tema e a
mesma estrutura narrativa de seu curta-metragem. No entanto, as personagens foram
aprofundadas e mais humanizadas, passaram a apresentar suas fraquezas e conflitos.
Além disso, o diretor optou por manter a ideia de produzir um ensaio sobre a vida nas
grandes cidades, tendo com pano de fundo uma reflexão sobre Buenos Aires.
Diante disso, a escolha de Medianeras como objeto de estudo da presente pesquisa,
além de nos possibilitar pensar sobre essas vivências na cidade, presentes durante todo
o enredo da obra argentina, ainda nos permite refletir sobre o cinema, uma arte também
urbana. Trata-se da oportunidade de, por meio do cinema, trabalhar temas que fazem
parte da vida das pessoas nas grandes cidades. A solidão, a ansiedade, os medos, o
espaço urbano, a experiência do encontro, tudo isso está refletido em Medianeras e nos
grandes centros urbanos de todo o mundo.
O presente estudo destaca, portanto, uma abordagem de Medianeras que extrapola o
limite espacial e temporal do filme argentino, que busca compreender tanto a composição
poética da obra cinematográfica quanto a abordagem temática e conceitual apontada,
de forma discursiva, durante todo o enredo. Ou seja, entende-se que “a análise fílmica
parte do fílmico, mas leva com frequência a uma reflexão mais amplas sobre o fenômeno
cinematográfico” (Aumont & Marie, 2011, p. 15). Esse entendimento sobre a análise fílmica
nos aproxima ainda mais do objeto que encontra-se inserido na narrativa de Medianeras,
ou seja, da cidade e das vivências em seus espaços urbanos.

MEDIANERAS: OBJETO DE REFLEXÃO


O filme Medianeras: Buenos Aires na era do amor virtual, uma produção do cinema
argentino dirigida por Gustavo Taretto, com direção de fotografia de Leandro Martínez,
narra a história de Martín (Javier Drolas) e Mariana (Pilar López de Ayala), dois jovens
que vivem no mesmo quarteirão de Buenos Aires. Apesar de se cruzarem e caminharem
pelos mesmos lugares, as personagens não se percebem e não vivenciam a experiência
de um encontro durante grande parte do roteiro.
Desde suas primeiras cenas, Medianeras mostra-se como um adensamento de repre-
sentações simbólicas. Nos primeiros três minutos, o filme se detém em apresentar, dis-
cursiva e visualmente, as diferenças arquitetônicas da cidade de Buenos Aires a partir
da narração subjetiva do protagonista, estabelecendo uma relação entre as construções
urbanas e as pessoas que habitam a cidade.
O espaço é um dado incontornável que não podemos desprezar quando se trata de narrativa:
a maioria das formas narrativas inscreve-se em um quadro espacial suscetível de acolher a
ação vindoura. A narrativa cinematográfica, quanto a isso, não é exceção. Parece até mesmo
ser difícil conceber uma sequência de eventos fílmicos qualquer que não esteja, sempre,

7.  Informação veiculada na contracapa do DVD de Medianeras: Buenos Aires na era do amor virtual.

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Comunicação, espaços urbanos e relações sociais no filme Medianeras: Buenos Aires na era do amor virtual

Vanessa Paula Trigueiro Moura • Josimey Costa da Silva

inscrita em um espaço singular. A unidade básica da narrativa cinematográfica, a imagem,


é um significante eminentemente espacial (Gaudreault & Jost, 2009, p. 105).

A arquitetura de Buenos Aires, a partir de Medianeras, revela uma cidade em expan-


são, uma cidade alterada pela nova dinâmica de um cotidiano midiático. O crescimento
aleatório dos edifícios reflete as irregularidades e os paradoxos das práticas do indivíduo
contemporâneo, em sua necessidade de receber informações de maneira quase compul-
siva e, ao mesmo tempo, se manter em relativo isolamento por causa dessas relações
alocadas no espaço virtual. A complexidade nessa nova forma de relação interpessoal
aproxima os próprios protagonistas do filme de medos e fobias, abrindo espaço para
um diálogo metafórico entre essas vivências contemporâneas e as medianeras.
A palavra que dá nome ao filme, por vezes, torna-se personagem do próprio roteiro.
A medianera refere-se à parede lateral dos edifícios em Buenos Aires, fachadas cegas,
que normalmente são inutilizadas do ponto de vista arquitetônico, mas comumente
convertidas em espaço para exposição de anúncios publicitários. As medianeras, de
acordo com o apresentado na obra argentina, são constantemente quebradas pelos
moradores da cidade – uma prática recorrente, mesmo sendo ilegal. Na narrativa
fílmica, a medianera aparece como ponto de fuga e como solução para os problemas
dos protagonistas ao final do roteiro.

Figura 4. Representação das medianeras. Frames retirados do filme.

Apresentar essas nuances da cidade argentina durante a trama permite uma reflexão
a respeito das relações sociais nos grandes centros urbanos que, permeadas pelas novas
plataformas de comunicação e pela própria comunicação urbana8, são ressiginificadas
pelo compartilhamento de espaço, tempo e informações. Trata-se de uma realidade

8.  Trata-se do “modo como uma determinada cidade comunica o seu estilo particular de vida, o seu ethos,
o conjunto de valores, crenças, comportamentos explícitos e implícitos” (Canevacci, 2004, p. 20).

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midiática, em que as interações entre os habitantes da cidade são marcadas tanto pela
co-presença quanto pela dimensão de uma não-presença, já que ocorrem também a
partir de mediações tecno-virtuais.
“Do ponto de vista das relações entre cinema e media, através do cinema, pode-
mos em geral ver as representações urbanas servindo, normalmente, como ‘pormenor
supérfluo’ em relação à narrativa, à estrutura” (Prysthon, 2006, p. 259). No entanto, o
filme argentino foge desse lugar comum, de forma que, o cerne da narrativa fílmica
encontra-se na comunicação, na mídia e, principalmente, nos espaços urbanos da cidade
de Buenos Aires. Trata-se de um filme que transforma a cidade em protagonista a partir
dos recursos visuais e discursivos.
Ao tratarmos dessa relação entre a arquitetura e espaços urbanos, comunicação
urbana e as relações sociais, nos ambientamos, necessariamente, em uma realidade
cultural em que a comunicação midiática tem papel de destaque. A partir de Silverstone
(2005), mídia aqui é mais do que um mero canal de compartilhamento de mensagens;
antes, constitui um modo de experiência contemporâneo. Ainda sob essa perspectiva,
ao identificar os processos em que a mídia altera a comunicação e interação humana,
Schulz (2004) aponta que a mídia estende as possibilidades de comunicação no tempo
e no espaço; substitui as atividades sociais que outrora aconteciam face a face; incentiva
uma nova dinâmica de fusão de atividades na vida cotidiana.
Entende-se que os edifícios, as ruas, as avenidas, os monumentos arquitetônicos
estão configurados de forma a construir uma realidade simbólica do seu próprio contexto
urbano. Esses elementos, quando vistos como um todo, possibilitam uma primeira
reflexão sobre os hábitos e vivências de uma determinada cidade. No caso de Medianeras,
nos aproximamos de um olhar sobre as vivências em Buenos Aires, que, em alguns
momentos, reflete o global e se assemelha às metrópoles mundiais.
As formas urbanas que fazem a cidade sempre estiveram ligadas à realidade técnica
e social de seus tempos. Como a própria comunicação, a cidade é um organismo vivo,
dinâmico, que se move de acordo com os fluxos materiais e sociais, com as redes políticas,
econômicas e comunicacionais.
Tal dinâmica presente nas cidades não se restringe a imagem física dos espaços
urbanos. Percebemos que a construção de uma percepção urbana passa pelas práticas
culturais, pelas vivências cotidianas e pelo fluxo das relações que se sucedem nos espaços.
Os elementos móveis de uma cidade e, em especial, as pessoas e suas atividades, são tão
importantes quanto as partes físicas estacionárias. Não somos meros observadores desse
espetáculo, mas parte dele; compartilhamos o mesmo palco com outros participantes (Lynch,
1997, pp. 01-02).

A obra audiovisual argentina corrobora com esse discurso ao apresentar a própria


Buenos Aires, como personagem fílmica. A relação de Martín e Mariana com as
construções, as estruturas arquitetônicas e os espaços urbanos da cidade faz emergir
a subjetividade e as metáforas empregadas na narrativa pelo diretor Gustavo Taretto.
Ainda na mesma perspectiva de Lynch (1997) e seguindo a proposta do roteiro
de Medianeras, mas apropriando-se também de um olhar voltado para a comunicação
urbana, Canevacci (2004) reforçar o conceito de que não somos apenas espectadores

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urbanos, mas atores em constante diálogo com o espaço arquitetônico e com a cidade
em si, apresentando a ideia de que “a comunicação urbana é do tipo dialógica e não
unidirecional” (Canevacci, 2004, p. 22).
Um edifício “se comunica” por meio de muitas linguagens, não somente com o observador
mas principalmente com a própria cidade na sua complexidade: a tarefa do observador é
tentar compreender os discursos “bloqueados” nas estruturas arquitetônicas, mas vívidos
pela mobilidade das percepções que envolvem numa interação inquieta os vários especta-
dores com os diferentes papeis que desempenham. Espectadores que, por sua vez, ao obser-
varem por meio de sua própria bagagem experimental e teórica, agem sobre as estruturas
arquitetônicas aparentemente imóveis, animando-as e mudando-lhes os signos e o valor
no tempo e também no espaço. (Canevacci, 2004, p. 22).

A cidade é esse espaço privilegiado do não verbal (Ferrara, 1988). Quando abordamos
o não verbal falamos de um texto cujo sentido se estabelece no espaço e que expõe uma
multiplicidade de linguagens, de vozes, de signos. Nessa perspectiva nos aproximamos
de Canevacci (2013) que utiliza o conceito de polifonia ao explorar os estudos sobre
metrópoles, compreendendo como cidade polifônica (Canevacci, 2004) uma mistura de
vozes, estilos, imagens e subjetividades.

Figura 5. Mistura de estilos arquitetônicos em Buenos Aires. Frames retirados do filme.

O filme Medianeras apresenta esse hibridismo durante toda sua trama. É por meio dos
múltiplos estilos e imagens da cidade que a narrativa fílmica encontra-se com as relações
sociais e com a ressignicação do espaço urbano. As protagonistas desfrutam de uma mesma
visão sobre a materialidade desses espaços, em que a própria cidade conta, por meio de
suas estruturas e da relação com seus habitantes, como está organizada culturalmente.
Trata-se de compreender as construções arquitetônicas, seus usos e disposições como
elementos de representação, agindo como metáfora da própria relação entre os indivíduos.

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Comunicação, espaços urbanos e relações sociais no filme Medianeras: Buenos Aires na era do amor virtual

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AUDIOVISUAL
Como suporte audiovisual que permite e evidencia vertentes interpretativas diversas,
um filme pode ser visto como objeto de estudo intrínseco à sua própria existência: sua
coexistência discursiva. Isto é, a partir de sua própria existência, um produto audiovisual
– qualquer que seja ele – gera interpretações e significados que estimulam a comunicação
e a reflexão. É a partir das múltiplas possibilidades de ressignificação que a produção de
sentido é estabelecida no discurso audiovisual, tornando polissêmico o cenário narrativo,
tanto o imagético quanto o discursivo.
Num filme está um impulso ao mesmo tempo mais primitivo que o da leitura e mais
tecnologicamente sofisticado que o do teatro. Como na leitura, queremos narrativas que
alimentem nossa imaginação — mas diferentemente do livro, onde mundos interiores,
paisagens distantes, estados de espírito e intenções ocultas podem ser descritos, deixando
que nossa imaginação preencha o vácuo, o filme tem a obrigação de nos mostrar, ou pelo
menos balizar visualmente cada uma dessas coisas. Como no teatro, ele propõe a aprecia-
ção do movimento, da presença humana, da máscara do personagem — mas apenas com a
intermediação da imagem captada, uma camada adicional de interferência, manipulação,
irrealidade (Bahiana, 2012, p. 17).

A polissemia é decorrente das significações impressas por dois agentes responsáveis


pela mensagem ou produto midiático. O emissor, em seu lugar de produção, estabelece
uma relação de intencionalidade a partir da escolha de recursos técnicos e da ação da
linguagem. Já o interpretante, em seu lugar de recepção, constitui uma intencionalidade
oriunda de conhecimentos adquiridos, vinculados à sua formação e ao seu repertório,
por meio do qual conceberá o signo ou o conjunto de signos que compõem a cena
cinematográfica e o ressignificará. Ainda diante dessa perspectiva, refletindo sobre o
papel do espectador na compreensão das imagens fílmicas, Gaudreault e Jost (2009, p.
16) corroboram que “para que o visível se torne narrativa, para que o filme se torne uma
obra, o espectador, longe de tomá-las como simples imitação ou duplicação do mundo,
não para de confrontá-las com as narrativas que tem na cabeça”.
O filme [...] é sempre fábula pensante e cartografia realista, escrita de um mundo virtual
que altera os quadros da experiência previamente configurada. Fortuito ou necessário,
o encontro do cinema com a forma narrativa é fundamental para compreender as novas
modalidades de subjetivação (Luz, 2002, p. 84).

Trazendo estas concepções para a narrativa audiovisual em análise, entende-se que,


funcionando como mediador de um significado presente no imaginário das personagens
Martín e Mariana, a representação simbólica das construções arquitetônicas enriquece o
potencial polissêmico das cenas, que sempre resgatam a cidade e o espaço urbano, seja
por meio da inserção das imagens de Buenos Aires ou por meio do próprio discurso dos
protagonistas. Nesse sentido, a cidade, cenário de Medianeras aproxima-se do exposto
por Bahiana (2012, p. 81) ao afirmar que “a precisão estética de um cenário é um dos
elementos mais eloquentes de um filme – um ambiente vivo, repleto das ideias e das
metáforas visuais pensadas pelo diretor”.

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Comunicação, espaços urbanos e relações sociais no filme Medianeras: Buenos Aires na era do amor virtual

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O poder de persuasão das imagens em movimento nos aproxima constantemente


de questões cotidianas. “As imagens das cidades no cinema teriam, sobretudo, a função
primordial de levar a aceitar como real (ou pelo menos com proximidade do real) o
ficcional, de promover uma certa aparência de realidade” (Prysthon, 2006, p. 260).
Ficções nos propõe pensar “o diálogo entre representação e realidade, produzindo
uma sensação de realismo por meio de técnicas” (Filho, 2009, p. 57). Trata-se da
amplificação dos sentidos da narrativa audiovisual, que vai sendo posta de acordo com
o uso de técnicas e a inserção de elementos simbólicos no interior das obras.
Como dimensão simbólica, a questão da subjetividade na linguagem é pensada em contra-
posição à realidade concreta dos espectadores empíricos. Formulada em termos de enuncia-
ção, ato de narrar ou acontecimento narrativo que necessariamente leva em consideração a
situação e o ambiente em que se dá a comunicação narrativa, essa questão parece se resolver
na direção de um sujeito que habita a borda do texto, exercendo o papel da interface entre o
texto e o extratextual. O modo de investigar essa posição dos sujeitos implicados na relação
de enunciação narrativa pode ser generativo, indo do subjacente ao manifesto para captar
a construção do espectador pelo texto em sua presença intratextual, ou interpretativo, pro-
curando desenhar os movimentos do fruidor que, justamente nesses movimentos, passa a
existir, experimentar, exteriorizar-se para além de pretensos dados prévios determinantes
(Luz, 2002, p. 96).

Isso faz com que a análise de um filme seja um processo de múltiplos sentidos:
o do idealizador, o do público e o do analisador, que também é objeto das programa-
ções sociais que permitem a significação coletiva de qualquer obra audiovisual ou de
qualquer mensagem da comunicação urbana. Nesse cenário, observa-se que tanto o
processo de produção de sentido quanto o processo de ressignificação são resultados
de uma cointencionalidade.
Abordar o aspecto da intencionalidade nos possibilita falar da incessante eferves-
cência técnica da atividade cinematográfica. Carrier (2006) atesta que o cinema
desempenhou um papel insubstituível na exploração de associações. Em primeiro lugar,
porque vive exclusivamente de associações: entre imagens, emoções, personagens. Mas
também porque sua técnica e sua linguagem particulares permitiram que ele empreendesse
notáveis viagens exploratórias, as quais, sem que nos o percebêssemos, influenciaram todas
as artes próximas, talvez ate mesmo nossa conduta pessoal (Carrier, 2006, p. 33).

O cinema não permite o engessamento de uma gramática cinematográfica. A estéti-


ca, a plástica e a própria prática da produção encontra-se em constante mutação. Carrier
(2006) compreende a linguagem cinematográfica como uma linguagem complexa, tanto
por se dirigir a cada espectador de forma individual e ao mesmo tempo ao público como
um todo, quanto por permitir que cada diretor explore o processo de produção fílmica
a sua própria maneira, a partir de suas próprias ideias, recursos, estilos, limitações.
Para analisar como ocorre a produção de sentido em uma obra audiovisual, é preciso
refletir a respeito não só da poética visual e de seus aspectos estéticos, como também a
respeito de seu viés contextual, sociocultural, comunicacional. Dessa forma, uma aná-
lise fílmica torna-se importante a partir do momento em que enxergamos na produção

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Comunicação, espaços urbanos e relações sociais no filme Medianeras: Buenos Aires na era do amor virtual

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cinematográfica uma representação do real, uma porta para realizar leituras de uma
realidade pulsante, além de, no caso da obra argentina em análise, fazer compreender
como o cinema nos apresenta essa reestruturação das vivências nos espaços urbanos
das grandes cidades.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Partindo de uma reflexão a respeito das construções entre a relação da comunicação,
espaço urbano e indivíduo, por meio do filme Medianeras, tentamos observar a
representação e seu processo de significação dentro e fora do contexto audiovisual.
Mesmo tratando-se de uma reflexão inicial, nota-se com a construção do presente
artigo, que refletir sobre o individualismo contemporâneo a partir das relações sociais
e de suas ligações com a estética das cidades recortados da narrativa de Medianeras é
pressupor a existência e as interrelações de subjetividades que alteram a paisagem da
cidade, que por sua vez penetra nas subjetividades de seus habitantes. O território da
cidade são seus símbolos e nele a uma cidade local e arcaica subsiste juntamente com
uma cidade universal e contemporânea perceptíveis na comunicação urbana, no aparato
midiático e na virtualidade que permeia as relações de cada um consigo mesmo e com
os outros no cotidiano urbano.

REFERÊNCIAS
Aumont, Jacques & Marie, Michel (2011). A análise do filme. Texto & Grafia: Lisboa.
Bahiana, Ana Maria (2012). Como ver um filme. Rio de Janeiro: Nova fronteira.
Canevacci, Massimo (2004). A Cidade Polifônica: ensaios sobre a antropologia da comunicação
urbana. São Paulo: Studio Nobel.
Canevacci, Massimo (2013). Sincrétika: explorações etnográficas sobre artes contemporâneas.
São Paulo: Studio Nobel.
Carrière, Jean-Claude (2006). A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Ferrara, Lucrécia d’Aléssio (1988). Ver a cidade: cidade, imagem, leitura. São Paulo: Nobel.
Filho, Ciro Marcondes (org.) (2009). Dicionário da comunicação. São Paulo: Paulus.
Gaudreault, André & Jost, François (2009). A narrativa cinematográfica. Brasília: Editora
Universidade de Brasília.
Luz, Rogerio (2002). Filme e subjetividade. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria.
Lynch, Kevin (1997). A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes.
Observatório Iberoamericano audiovisual (2015). http://www.oia-caci.org/pt/, acessado
em: 01 de março de 2015.
Prysthon, Angela (2006). Metrópoles latino-americanas no cinema contemporâneo. In:
Prysthon, Angela (org.). Imagens da cidade: espaços urbanos na comunicação e cultura
contemporâneas. Porto Alegre: Sulinas.
Schulz, Winfried (2004). Reconstructing Mediatization as an Analytical Concept. European
Journal of Communication 19:1, 87-101.
Silverstone, Roger (2002). Por que estudar a mídia? São Paulo: Edições Loyola.

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Diferente dos outros: o nascimento do cinema gay
Different from the others: the birth of gay cinema
Lidiane Nunes de Castro1
D o s toi e w s k i M a r i at t de O l i v e i r a C h a m pa n gn at t e 2

Resumo: Diferente dos Outros (1919) é um filme alemão pioneiro do cinema gay
que retrata abertamente o envolvimento amoroso de um violinista e seu pupilo
e que possui um desfecho trágico desencadeado pelo parágrafo 175 que, vigente
no período, criminalizava as relações homossexuais. O objetivo do trabalho é
desvendar o discurso da obra sobre a homossexualidade partindo da análise
semiótica cujo embasamento está no pensamento de Charles Sanders Peirce
sobre objeto, signo e interpretante ao fazer uso do modelo de análise fílmica
Estrutural/Significativa proposto por Antônio do Nascimento Moreno em A
Personagem Homossexual no Cinema Brasileiro (1995) e tendo o livro Now You See It.
Studies on Lesbian and Gay Film. (1990) de Richard Dyer embasando teoricamente
a análise da película. Através da qualificação do teor do discurso em função dos
personagens homossexuais, chega-se a conclusão de que apesar do desfecho
trágico, a obra possui um discurso humanista, retratando esta sexualidade como
natural e contribuindo para uma imagem positiva dos homossexuais.
Palavras-Chave: Cinema. Gay. Diferente dos Outros.

Abstract: Different from the Others (1919) is a pioneer German film of gay
cinema that openly depicts the love affair of a violinist and his pupil and
has a tragic outcome triggered by paragraph 175, that applies to the period,
where homosexual relations were criminalized. The aim is to unravel the film’s
discourse on homosexuality having the start point at the semiotic analysis based
on the thoughts of Charles Sanders Peirce on object, sign and interpretant to
make use of the film analysis model Structural/Significant proposed by Antonio
Moreno in A Personagem Homossexual no Cinema Brasileiro (1995) and having the
book Now You See It. Studies on Lesbian and Gay Film. (1990) by Richard Dyer
theoretically basing the analysis of the film. Qualifying the discourse content in
relation to the gay characters, the conclusion is that despite the tragic outcome,
the work has a humanist speech, portraying this as a natural sexuality and
contributing to a positive image of homosexuals.
Keywords: Cinema. Gay. Different from the Others.

1.  Mestranda; estudante; lidiane.castro@unigranrio.br.


2.  Doutor; professor; prof.tico@gmail.com.

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Diferente dos outros: o nascimento do cinema gay

Lidiane Nunes de Castro • Dostoiewski Mariatt de Oliveira Champangnatte

INTRODUÇÃO

N O MESMO ano em que teve início a República de Weimar, 1919, foi realizado
um filme pioneiro do cinema gay: Diferente dos Outros possui como personagem
central um violinista chamado Paul que conhece um jovem chamado Kurt e por
ele se apaixona, de modo recíproco, mas os pais do rapaz proíbem que o jovem tenha
contato com ele. Posteriormente Paul é chantageado por um homem que, ciente de sua
orientação sexual, ameaça denunciá-lo pelo crime de infringir o Parágrafo 175, parágrafo
do código penal alemão que tornava crime as relações homossexuais.
O período em que o filme foi realizado esteve marcado por tensões que se expressavam
em toda a vida cultural alemã da época, caracterizada pela instabilidade, efervescência
cultural e liberalidade sexual. Segundo Adriana Schryver Kurtz, Berlim foi até a ascensão
do nazismo “não apenas a ‘Berlim Imoral’ – título de um guia alternativo publicado
em 1930: tratava-se da ‘Metrópole Gay’ da Europa e sede da primeira organização do
mundo a combater a intolerância sexual” (2001, p.1).
Conforme explica Kurtz (2001, p.8), “da obra original só foram preservados 20 a 30
minutos de projeção numa cópia de má qualidade que escapou dos nazistas por ter sido
apresentada, durante um curto período, numa União Soviética então liberal em questões
sexuais”. Mas o filme foi reconstruído pelo Filmmuseum München e segundo descreve
Richard Dyer em Now You See It. Studies on Lesbian and Gay Film. (1990) é o mais antigo
filme gay em longa-metragem de toda a história do cinema.
Mesmo com a película, quando do seu lançamento, conseguindo uma recepção favo-
rável por parte da crítica e tendo feito sucesso comercial, acabou sendo banida e exibida
apenas para médicos e aqueles envolvidos com a área médica em locais de aprendizagem
e em instituições científicas. Então ainda que uma análise direta de todo o filme não
seja possível, o trabalho de restauração possibilita que seja feita uma leitura das partes
que se perderam e que o filme possa ser analisado do modo mais adequado possível.
Logo no começo da cópia restaurada pelo Filmmuseum München é exibido um texto
que informa que: milhares de homossexuais na Alemanha receberam penas de mais
de cinco anos na prisão por conta do parágrafo 175 do Código Penal, cuja fiscalização
tornou-se mais rígida durante o nazismo e depois mais liberal, mas só foi totalmente
revogado em 1994; a lei foi desafiada em 1897 pelo movimento de emancipação sexual
liderado pelo doutor Magnus Hirschfeld que defendia que os homossexuais seriam um
“terceiro sexo” biológico, uma minoria sujeita injustamente a discriminação; Hirschfeld
acreditava que o parágrafo 175 não ajudava a prevenir o “crime” da homossexualidade,
mas promovia o crime da extorsão e que para cada homossexual julgado existiam cem
que eram extorquidos.
Ainda na cartela é informado que durante a Durante a 1ª Guerra Mundial, o Diretor
Richard Oswald (1880-1963) começou a colaborar com o Hirschfeld e outros sexólogos
para produzir uma série de Filmes de Esclarecimento focados na educação sexual.
Estes filmes lidavam com temas como as doenças venéreas, prostituição e aborto,
sempre contando com conselhos de um médico instruído. Então em 1919, Hirschfeld
e Oswald colaboraram em Diferente dos Outros (Parágrafo 175), o primeiro filme do
mundo a lidar explicitamente com a homossexualidade. Mas durante a República de

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Diferente dos outros: o nascimento do cinema gay

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Weimar, conforme relato de Dyer (1992), foram realizados muitos filmes com temática
ou personagens homossexuais, durante um período em que nos outros países era raro
encontrar abordagens de tais temas.

OBJETO, QUADRO TEÓRICO E METODOLOGIA


O objeto de estudo é o discurso do filme pioneiro do cinema gay, Diferente dos Outros
(1919), sobre a homossexualidade. O quadro teórico para as questões metodológicas parte
da análise semiótica baseada no pensamento de Charles Sanders Peirce (objeto, signo
e interpretante) e do modelo de análise fílmica Estrutural/Significativa proposto por
Antônio do Nascimento Moreno em A Personagem Homossexual no Cinema Brasileiro. O livro
Now You See It. Studies on Lesbian and Gay Film. de Richard Dyer serve de embasamento
teórico para a análise da obra.
Utilizando a análise Estrutural/Significativa, a qualificação do teor do discurso é
feita em função da personagem homossexual sendo focada na Linguagem Narrativa
e na Linguagem Gestual para chegar ao discurso através das palavras e ações dos
personagens. Leva-se em consideração a estrutura fixa do filme e a mensagem explícita
(sentido denotativo) e implícita (sentido conotativo) sobre a homossexualidade. Ao final
chega-se ao Teor do Discurso, Resultante e Retrato Fílmico.
A análise no nível da significação, realizada no centro narrativo e gestual, leva em
conta a história de acordo com o significante (desenvolvimento explícito) e o significado
(o que induz a pensar ou que discurso encerra) referente à homossexualidade. Segundo
Moreno (1995), na Linguagem Narrativa (palavras e ações dos personagens) estão com-
preendidos os aspectos mecânicos e os aspectos técnicos de condução do personagem
dentro do enredo, o que contribui para a expressão e compreensão do mesmo e de seu
discurso. Já a Linguagem Gestual compreende a gestualidade e também a subgestuali-
dade empregada na composição e caracterização do personagem. No nível da estrutura
estão os elementos mais simples de identificação (título, gênero, sinopse e elenco).
São levados em consideração aspectos como a posição do personagem gay no enredo
(principal ou coadjuvante), contexto social do personagem (classe social a qual pertence),
tipo de narrativa (flashback, linear ou retrocesso), tipo de interpretação (impostada,
natural, moderna ou teatral), o tipo de montagem (flashback, linear ou paralela), a ênfase
da pontuação cinematográfica (efeitos, narração e posicionamento do personagem no
plano cinematográfico de acordo com a função do discurso), tipo de gestualidade
(estereotipa, não estereotipada ou inexistente), subgestualidade (adereços, maquiagem
e vestuário do personagem, o discurso através do emprego da gestualidade.
Após a coleta de dados são somados adjetivos ao foco central da análise e assim
chega-se ao Teor do Discurso, que possui o vetor R de Resultante com 3 classificações
possíveis: R1 – Teor Pejorativo (repleto de estereótipos na gestualidade e narrativa que
contribuem para a perpetuação do preconceito), R2- Teor Não-Pejorativo (tratamento
humanístico que contribui para a discussão e ampliação do espaço social do indivíduo
homossexual) e R3- Dúbio (existem dúvidas sobre o modo como o assunto é tratado).
Tais vetores são utilizados para medir a densidade do filme e conduzem ao Retrato
Fílmico, um resumo conclusivo através de um texto redutor e explicativo elaborado de

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acordo com os dados coletados e observados sobre o discurso do filme.


A conclusão é realizada com o cruzamento dos dados do Retrato Fílmico e ao final
é explicitado o modelo preponderante de representação no filme analisado no que diz
respeito ao como se deu a caracterização do personagem ou personagens gays. Moreno
(1995) alerta para o fato de que não se trata de uma análise a ser realizada em cada cena
e/ou plano do filme e sim daqueles que são os passos lógicos da narrativa na construção
do discurso, mas aqui não é selecionada uma sequência lógica (chave) e sim analisado
o filme de modo geral, pois a obra encontra-se fragmentada, devido às partes perdidas.

Tabela 1. Estrutura do Modelo de Análise

MODELO DE ANÁLISE FÍLMICA ESTRUTURAL/SIGNIFICATIVA

1. Análise Estrutural ou Sintática (Estrutura do filme)


(A estrutura do filme, como ele se apresenta).
• Título:
• Gênero:
• Elenco e Personagens:
• Sinopse:

2. Análise Significativa (Significante e Significado)


(Significação da Linguagem Narrativa e da Gestual nos níveis do significante e do significado)

SIGNIFICANTE (Denotação) SIGNIFICADO (Conotação)

LINGUAGEM NARRATIVA Posição do homossexual no enredo; Análise da História do Filme:


Contexto social do homossexual; Conotação: Comentários sobre o que
Recursos Narrativosw: o enredo do filme induz o observador
Tipo de Montagem; a julgar em relação à homossexua-
Tipo de Interpretação; lidade.
Análise da História do Filme;
Denotação: Comentários sobre como o filme
conduz a personagem dentro de seu enredo.

LINGUAGEM GESTUAL Tipo de Gestualidade: Características: o significado da


Estereotipada, não estereotipada, inexistente. gestualidade empregada.
Comentário descritivo da gestualidade e
subgestualidade empregada no filme.

3. Retrato Fílmico Encontrado


Será um texto conclusivo sobre o teor do discurso apontado no filme sobre o assunto, podendo ser pejorativo, não
pejorativo e dúbio. Será assim descrito:
Teor do discurso sobre a homossexualidade: Pejorativo (R1), não pejorativo (R2) e dúbio (R3).
R= Resultante encontrada – texto que justifica esta resultante.
Retrato Fílmico: texto conclusivo

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Tabela 2. Resumo da Estrutura Geral da Análise Fílmica

ANÁLISE FÍLMICA ESTRUTURAL/SIGNIFICATIVA (Com objeto definido: a homossexualidade)

CENTRO NÍVEL DA ANÁLISE RESULTANTE


DA ENCONTRADA
ANÁLISE

ESTRUTURAÇÃO SIGNIFICAÇÃO

ANÁLISE SINTÁTICA ANÁLISE ANÁLISE


SEMÂNTICA PRAGMÁTICA

Ou ESTRUTURAL Ou DENOTATIVA Ou CONOTATIVA

Como o filme está estruturado O significante: o O significado: o


ou se apresenta que o filme diz que o filme induz o
explicitamente do observador a julgar
Objeto (a homos- em relação ao
sexualidade) discurso exposto

ESTRUTURA ESTRUTURA VARIÁVEL


FIXA

DO FILME DA SEQUÊNCIA LÓGICA


*(quando for utilizada)

Título:

Gênero:

Sinopse:

Contexto social do homossexual:

Posição da personagem:

LINGUA- Recursos Tipo de Descrição Análise ao nível Análise ao nível A ANÁLISE


GEM Narrativos: Montagem: mecânica da do significante do do significado do ACUSA O
NARRA- Tipo de Ênfase da Pontu- Sequência discurso narrativo discurso narrativo TIPO DE
TIVA Narrativa: ação Cinemato- Lógica: do filme. do filme. O que a RESULTANTE
Tipo de gráfica: A condução da história induz a R1, R2 E R3
Interpreta- história pensar. e
ção:

LINGUA- Tipo de Gestualidade: Descrição Características: Características: TEXTO


GEM A) Estereotipada dos gestos Análise ao nível Análise ao nível CONCLUSIVO
GESTUAL B) Não Estereotipada utilizados na do significante do significado configura
C) Inexistente ou Sequência da gestualidade da gestualidade o RETRATO
Ausente Lógica: empregada na empregada na FÍLMICO e ex-
personagem. personagem. plica o tipo de
Sub-ges- A descrição da A indução desta RESULTANTE
tualidade gestualidade. gestualidade.
empregada
na Sequência
Lógica:

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Diferente dos outros: o nascimento do cinema gay

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ANÁLISE
1) Análise Estrutural
Título: Diferente dos Outros, Richard Oswald, 1919, 50 minutos, 35mm, Preto e
Branco, Mudo.
Gênero: Drama
Elenco e Personagens: Conrad Veidt (Paul Körner), Leo Connard (pai de Paul),
Alexandra Willegh (mãe de Paul), Ilse Von Tassilo-Lind (irmã de Paul), Ernst Pittschau
(cunhado de Paul), Fritz Schulz (Kurt Sivers), Wilhelm Diegelmann (pai de Kurt),
Clementine Plessner (mãe de Kurt), Anita Berber (Ilse Sivers), Reinhold Schünzel (Franz
Bollek), Helga Molander (Frau Heilborn), Magnus Hirschfeld (médico e sexólogo) e Karl
Giese (Paul mais jovem).
Sinopse: O brilhante violinista Paul Körner (Conrad Veidt) está muito feliz por tomar
o jovem estudante de música Kurt Sivers (Fritz Schulz) como seu pupilo. Os dois homens
descobrem que tem mais do que um amor pela música em comum, e logo estão passando
todo o seu tempo juntos. No entanto, por trás da fachada polida de Körner reside um
terrível segredo: de acordo com a lei da terra, ele não é nada mais do que um humilde
criminoso, culpado do crime de sentir amor por seu próprio sexo. Será que Körner irá per-
mitir ser continuamente chantageado pelo desprezível Franz Bollek (Reinhold Schünzel)
a fim de manter sua predileção oculta? Ou ele vai acusar abertamente Bollek de extorsão
e levá-lo ao tribunal – sabendo que seu próprio crime pode ser revelado no processo?

2) Análise Significativa
2.1 Linguagem Narrativa – Denotação e Conotação
Elementos Fixos da Personagem e da Narrativa
Contexto Social do homossexual: Um violinista bem sucedido e seu jovem pupilo.
Posição no enredo: São os personagens principais da trama.
Recursos Narrativos
Tipo de Narrativa: Recorrente, utiliza muitas vezes o recurso de flashback.
Tipo de Interpretação: Natural
Tipo de Montagem: Recorrente.
Ênfase da pontuação cinematográfica: cenas iniciadas com close-ups (antes de
mostrar os personagens e o espaço) através da utilização de uma íris fazendo com que
o primeiro contato seja com o sentimento do personagem, apresentado com intensidade,
para que então esse mesmo personagem seja situado num plano mais amplo (isto faz
com que possa ser apresentado primeiramente o sentimento do personagem de maneira
intensa e depois o mesmo seja situado em um plano mais amplo); posicionamento da
câmera em um ângulo de 90°, comum ao cinema alemão realizado no período, indo dos
planos mais fechados aos planos mais abertos.
A História do Filme
Um violinista famoso, Paul Körner (Veidt), está lendo no jornal sobre os aparentemente
inexplicáveis suicídios de três jovens e pensando que consegue imaginar o motivo. Ele
visualiza uma fila enorme de mulheres e homens (dentre eles personalidades famosas
como Leonardo da Vinci, Oscar Wilde e Peter Tchaikovsky) sob a “espada dos Damoclos”,
todos com um §175 marcado.

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Em seguida é mostrado Paul em seu concerto e uma cartela que informa que um
jovem chamado Kurt Sivers nunca perde suas apresentações. Logo após vemos o jovem
Kurt aplaudindo entusiasmado e indo ao encontro de Paul para pedir um autógrafo. No
dia seguinte ele vai até a casa do violinista e pede que ele seja seu professor, Paul aceita
prontamente, mas os pais de Kurt não ficam felizes com a ideia, já que desejam que o
filho tenha uma profissão mais prática. Else, irmã de Kurt, que já havia conhecido Paul
e ficado atraída por ele, tenta acalmar os pais. Enquanto isso Kurt continua ensaiando
com o violinista.
A família de Paul insiste para que ele case-se com uma viúva, mas apesar de todos
os esforços por parte da jovem para chamar sua atenção, ele foge dela. Em seguida envia
seus pais para uma visita a um médico e sexólogo que informa a eles Paul é homossexual,
deixando seus pais consternados. O médico então explica que não é culpa do violinista
e que não se trata de um defeito ou de crime algum, menos ainda uma doença, mas
de uma das muitas variações da natureza. Afirma que o sofrimento vem não de sua
condição, mas de um mau julgamento que é feito dela, através das ideias equivocadas
a respeito da mesma e da condenação social.
Paul e Kurt tornam-se cada vez mais próximos e um dia enquanto passeiam em
um parque, eles encontram com Franz Bollek (Schünzel) por acaso, um jovem que Paul
havia conhecido anteriormente. Enquanto caminham, Franz os segue, aproxima-se deles
e elogia a beleza de Kurt. Algumas poucas palavras são trocadas e os dois vão embora
enquanto Franz fica para atrás.
Os pais de Kurt proibem que ele se encontre com Paul, o que deixa o jovem incon-
solável e faz com que ele peça que sua irmã vá falar com Körner para dizer que ele
não consegue viver sem a música nem sem ele. Paul promete que irá conversar com
os pais de Kurt. Em seguida Franz vai até a casa de Paul e começa a chantageá-lo,
o violinista acaba cedendo e entregando dinheiro a ele, Franz aproveita para levar
também cigarros e em seguida Paul ordena que ele se retire. Paul entra em desespero
após sua saída.
Körner vai conversar com os pais de Kurt que, mesmo receosos, permitem que
ele permaneça com Paul. Kurt começa a ensaiar dedicadamente para a sua primeira
aparição pública. Já na casa de Paul entrega uma carta que chegou para ele e ao abrir Paul
descobre que trata-se de mais uma ameaça de Franz, exigindo mais dinheiro. Körner
fica transtornado e rasga a carta, fazendo com que Kurt questione o que tinha na carta,
mas ele disfarça. Paul decide que a situação não pode continuar.
Franz está sentado num clube gay quando um outro homem se aproxima e mostra
um jornal com a notícia sobre o concerto de Paul e Kurt. Franz exibe a carta do violinista
se recusando a continuar pagando e decide que vai conseguir o dinheiro de outra
maneira.
Os dois estão no concerto quando Franz invade a casa de Paul, mas acaba descoberto
por Kurt quando ele retorna. Os dois lutam até a chegada de Paul, então Franz diz para
Kurt “Não se exalte tanto. Afinal, você está sendo pago por ele, também!”. Depois disto
Paul e Franz lutam, até que Franz vai embora.
Kurt decide deixar Paul e em uma carta para Else diz que ninguém deve procurar
por ele. Else mostra a carta enviada por Kurt para o violinista que se desespera. Ela o

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Diferente dos outros: o nascimento do cinema gay

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consola e neste momento ele se dá conta dos sentimentos que ela nutre por ele, afastando-
se dela que acaba partindo magoada.
Kurt passa a trabalhar tocando nos pubs da cidade e a filha do dono de um desses
pubs tenta beijá-lo, fazendo com que ele a rejeite e que a jovem diga ao pai que ele tentou
beijá-la, Kurt é expulso.
Paul repensa sua vida: relembra o envolvimento no colégio com um jovem chamado
Max, envolvimento que resultou na sua expulsão do colégio; a ida ao bordel, ainda
quando estudante, e o sentimento de repulsa que sentiu; a tentativa malsucedida de um
hipnotizador tentando curá-lo; uma visita ao sexólogo (Hirschfeld), que afirmou que o
amor por alguém do mesmo sexo poderia ser tão puro e nobre quanto por alguém do
sexo oposto e que ele como homossexual também poderia fazer contribuições valiosas
para a sociedade; o momento em que conheceu Franz em um clube gay, indo com ele
para casa e descobrindo que ele era um chantagista.
Ao receber convites para uma palestra de sexologia, Paul decide convidar Else para
que ela fique ciente da sua orientação sexual. Durante a palestra Hirschfeld apresenta
sua teoria sobre os homossexuais como um tipo de terceiro sexo, homens que possuem
características físicas e psicológicas femininas e mulheres com características físicas
e psicológicas tidas como masculinas, como prova exibe fotos de homens e mulheres
que viveram como alguém do sexo oposto. Hirschfeld conclui a palestra afirmando
que apesar de a feminilidade e a homossexualidade geralmente ocorrerem juntas, isto
não é uma regra. Existem homens de maior feminilidade que não são homossexuais e
outros homossexuais que não são femininos e finaliza criticando que mesmo depois de
50 anos de pesquisa na Alemanha ainda seja crime a homossexualidade e afirmando
seu desejo de que algum dia a justiça possa prevalecer e a ciência possa conquistar a
superstição juntamente com o amor vencendo o ódio.
Else indaga Hirschfeld se não é possível que ela possa curar Paul com o seu
amor, mas ele fala para que ela desista já que algumas pessoas não foram feitas para
o casamento, sendo proibido pela própria natureza. Após a conversa ela vai até Paul e
diz que compreendeu tudo e deseja ser apenas uma amiga leal.
Ao ser preso Franz denuncia Paul e os dois são julgados, o primeiro por chantagem
e o violinista por homossexualidade. Hirschfeld testemunha em defesa do músico a
pedido de Else, mas ao final ele é condenado mesmo assim. Franz também é condenado,
três anos na penitenciária, e Paul recebe a sentença de uma semana, pois embora no
julgamento reconheçam que ele não tenha prejudicado ninguém, a lei precisa ser seguida.
Ao ouvir a sentença Paul desmaia.
Quando sai da prisão, Paul recebe uma carta cancelando tanto seu concerto quanto
o contrato. Novamente ele visualiza a fila de vítimas do §175 em sua mente, desta vez
ele mesmo faz parte dela. Seu pai diz que ele saberá o que deve fazer se for um homem
de honra e ele decide se matar envenenado. Kurt fica sabendo do ocorrido e no leito
de morte de Paul ameaça se matar também, mas o médico o convence a lutar contra o
§175 e o filme termina com uma tomada do livro no qual constam as leis da República
Alemã e uma mão marcando com um “X” o parágrafo 175, que em seguida é arrancado.
Conotação: Apesar do final trágico, através da leitura dos elementos da obra fica
claro que o problema abordado nela não é a homossexualidade, mas o comportamento

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Diferente dos outros: o nascimento do cinema gay

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da sociedade com relação a ela que faz com que um pai vire as costas para o próprio
filho, que perca o emprego e a esperança, optando por suicidar-se. O problema é também
o §175, que por criminalizar a homossexualidade acaba atuando como o catalisador
de toda a tragédia, a chantagem é o começo de tudo e conduz ao desfecho, trágico, do
personagem principal e de diversos jovens antes dele, conforme noticiavam os jornais.

2.2 Linguagem Gestual


Elementos Fixos da Linguagem Gestual
Tipo de Gestualidade: Não Estereotipada (Natural).
Subgestualidade: Kurt veste trajes mais sóbrios e Paul também, na maior parte do
tempo, mas quando ele vai ao clube gay está vestindo uma espécie de robe de cetim.
Quando o violinista leva Franz pra casa aparece com os olhos repletos de Kohl e em
determinado momento flexionando sua mão direita para baixo, reclinando o pulso
através de um gesto identificado como afeminado.
Características: Paul gesticula de modo mais feminino em certos momentos, próximo
da definição de Tante, homossexual mais feminino, mas isso ocorre de modo natural e
não negativo.

3) Resultados e Retrato Fílmico


Teor do Discurso: Não Pejorativo (Humanista)
Resultante Encontrada: R2 – Discurso Não Pejorativo na narrativa e no gestual que
contribui para uma discussão humanística da homossexualidade.
Retrato Fílmico: A abordagem adotada na obra contribui para a construção de uma
imagem positiva dos personagens homossexuais, caracterizando seu comportamento,
gestual e vestuário como normais e assim incentivando que sejam combatidos o
preconceito e a discriminação.

CONCLUSÃO
Conforme foi exposto por Dyer (1990) em seu livro, é necessário atentar-se ao fato de
que os filmes gays não são aquilo que seriam caso a nossa sociedade não fosse obcecada
pela heterossexualidade, mas aquilo que podia ser feito dentro dela levando-se em
consideração todas as restrições e limitações impostas. Diferente dos Outros (1919) foi o
primeiro a lidar abertamente com o tema da homossexualidade de maneira central e
positiva, em um modo franco e honesto, diferentemente de muitos filmes produzidos
posteriormente, mutilados pela censura declarada ou disfarçada.
A contribuição da película não está restrita ao pioneirismo que a coloca em listas
e livros sobre o cinema gay, mas o filme é um exemplo de tratamento do tema que sem
basear-se em estereótipos, faz uso de uma abordagem positiva de modo crítico para
construção da imagem do personagem homossexual. Depois de cerca de um século
da sua realização continua atual ao apresentar os problemas da sociedade e aceitação
daqueles que não se enquadram na heteronormatividade, numa lição quase didática
sobre não tratar como homossexualismo o que deve ser tratado como homossexualidade.
Conforme explica Hirschfeld em sua palestra, não há cura pois não existe doença.

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Diferente dos outros: o nascimento do cinema gay

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REFERÊNCIAS
Dyer, Richard. (1990). Now You See It. Studies on Lesbian and Gay Film. London: Routledge.
Kurtz, Adriana. (2001). Notas para uma história do cinema homossexual na era dos regimes totalitá-
rios. Menemocine. Recuperado em 22 de março, 2015, de: http://www.mnemocine.com.
br/index.php/cinema-categoria/24-histcinema/89-notas-para-uma-historia-do-cinema-
-homossexual-na-era-dos-regimes-totalitarios.
Moreno, Antônio. (1995). A Personagem Homossexual no Cinema Brasileiro. Niterói: EDUFF.
Peirce, Charles Sanders. (1990). Semiótica. São Paulo: Perspectiva.

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Da literatura ao cinema:
A Rainha das neves e suas diversas facetas
A m a n d a G a s p a r M . T r a b a ll i 1

Resumo: Abordamos o estudo da intertextualidade, através dos objetos de


análise: o filme de animação Frozen (Disney) e o conto A rainha das Neves
(Hans Christian Andersen). Esse corpus será analisado enquanto suporte
dos elementos da narrativa, buscando identificar as conjunções entre as obras
analisadas, considerando os diferentes contextos históricos e culturais em que
foram produzidas. Utilizamos da metalinguagem, através da identificação do
nível narrativo no percurso gerativo do sentido, aplicando a estrutura elementar
de Greimas, intentando assimilação da significação. Consideramos existir
uma tendência contemporânea de revisão dos contos e uma valorização da
intertextualidade para várias plataformas.
Palavras-Chave: Intertextualidade. Narrativa. Cinema. Literatura.

Abstract: We analyzed the study of intertextuality, through the analysis of


objects: the Frozen animated film (Disney) and the fairytale The Queen of the
Snows (Hans Christian Andersen). This corpus will be analyzed as the base
of the narrative elements, looking for to identify the conjunctions between the
works analyzed, considering the different historical and cultural contexts in
which they were produced. Use of metalanguage, by identifying the narrative
level in generative course of meaning, applying the elementary structure of
Greimas, attempting assimilation of meaning. We believe there is a contemporary
tendency to review the stories and an appreciation of intertextuality for various
platforms.
Keywords: Intertextuality. Narrative. Cinema. Literature

A NARRATIVA SEMPRE esteve presente na vida do ser humano, desde pequenos


ouvimos histórias de nossos avós, pais, etc. Nesse sentido, existem vários modelos
de narrativas, um deles é o conto que segundo Balogh (2005, p.21) é fórmula uni-
versalmente apreciada, por condensar ingredientes da identificação humana no enfren-
tamento das inevitáveis dificuldades da vida e na luta para superá-las. Aspectos como
crenças e valores são presentes nos contos infantis, resguardando a vida em sociedade.
Partimos da hipótese que o conto a Rainha das Neves, escrito por Hans Christian
Andersen, estaria dentro de uma tendência contemporânea de revisão das histórias
infantis. As adaptações para outras plataformas como o cinema e as séries televisivas,
incorporaram apenas recursos tecnológicos ou sofreram alterações de conteúdo? O

1.  Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Universidade Paulista - UNIP São Paulo-
SP, e-mail: traballi@me.com

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Da literatura ao cinema: A Rainha das neves e suas diversas facetas

Amanda Gaspar M. Traballi

Centro de Estudos Narratológicos da Universidade do Sul da Dinamarca (University


off the Southern Denmark), realizou um simpósio sobre os contos de fadas de Hans
Christian Andersen intitulado: “Quando chegaremos ao fim...”, organizado por Krogh
Hansen e Marianne Wolf Lundholt em 2005. Eles levantaram questões como o estilo da
narrativa que Andersen empregava, a temporalidade, e até as razões de serem escritos
para as crianças.
Contos de fadas, ou em inglês – fairytales, são escritos para as crianças, mas já em
1845, o escritor dinamarquês Andersen enfrentou obstáculos para publicá-los, passando
por dificuldades na recepção e interpretação dos contos. O que é chamado de horizonte
infantil corresponde a um concreto entendimento geral e só é fixado pelas criança através
do humor ingênuo, da linguagem, e dos elementos do mundo das crianças refletido nos
contos. Visamos verificar como está sendo processada a revisão do conto, a indústria
está valorizando esse cabedal? Existe uma nova visão de mundo exigida pelas crianças
e pelos produtores? Quanto as adaptações Balogh diz:
Esse processo pressupõe a passagem de um texto caracterizado por uma substância da
expressão homogênea – a palavra –, para um texto no qual convivem substâncias da expres-
são heterogêneas, tanto no que concerne ao visual, quanto no que concerne ao sonoro.
(BALOGH 2005, p. 36)

Selecionamos os objetos de análise: o filme de animação: Frozen (Disney) e o conto A


Rainha das Neves (Hans Christian Andersen), no qual se baseou o filme. Esse corpus será
analisado enquanto suporte dos elementos da narrativa, buscando identificar as
conjunções entre as obras analisadas, considerando os diferentes contextos históricos e
culturais em que foram produzidas.
Sabemos que o corpus escolhido por Propp era constituído de contos mágicos de origem
popular, transmitidos oralmente, e que essas histórias simbolizam em muitos casos a ini-
ciação de um jovem às “regras do jogo”, que o microuniverso social da narrativa representa.
(BALOGH, 2002, p. 56)

Partimos do pressuposto que a natureza, como elemento acolhedor, poderia refor-


çar no destinatário a ideação de fundamentos como a esperança, a beleza e a justiça.
Conforme Elias Walt Disney acreditava: “Todos os nossos sonhos podem se realizar, se
tivermos a coragem de persegui-los” (All our dreams can come true if we have the courage
to pursue them). Esses elementos não são criados pelos homens, mas sim, interpretados
por ele. O conhecimento implica necessariamente uma etapa de preparação, de estudo, de
observação. Para podermos interrogar a natureza, temos que definir perguntas, recorrer
a diversas noções que permitem análises, a criação de modelos e a formulações. A neve
esta como elemento da tematização da semântica discursiva, ela é constante entre as
obras analisadas; na língua portuguesa é um substantivo feminino, fato que pode ser
observado nas figuras femininas representadas pela rainha e pela princesa.
O sistema de valores da sociedade contemporânea vem sofrendo alterações acelera-
das. Padrões existentes são revistos pelos indivíduos e pela coletividade, exemplo disso
são as relações familiares. A Disney no filme Frozen desperta isso através do sacrifício
que Anna faz para salvar sua irmã Elza da morte, contemplando essa relação como

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Da literatura ao cinema: A Rainha das neves e suas diversas facetas

Amanda Gaspar M. Traballi

Amor Verdadeiro. E no conto, Kay e Gerda são verdadeiros amigos, que foram separa-
dos pela Rainha das Neves, mas a menina sai em busca do amigo, e no seu reencontro
faz o menino se emocionar e são gratificados pelo Amor que sentem um pelo outro. O
que antigamente esse Amor era apenas considerado o que os pais sentem pelos filhos,
ou até exclusivamente entre sexos opostos na figura da relação entre homem e mulher,
atualmente existe uma ruptura desses valores.
Para elaboração de nosso arcabouço teórico, utilizaremos principalmente a semiótica
de origem francesa, as propostas da Escola de Paris, na visão de Greimas, através das
obras publicadas pela professora doutora Anna Maria Balogh, que segundo a docente:
“dentro dessa linha, partiu-se do conceito da estrutura elementar da significação grei-
masiana estendendo-se ao nível intertextual”.

OBJETOS DA ANÁLISE
Conto Rainha das Neve
O conto Rainha das Neves (em dinamarquês: Snedronningen), do autor Hans
Christian Andersen foi publicado pela primeira vez em 21 de dezembro de 1844. Ele
escreveu em 5 dias, apesar de ser um dos mais longos que grafou. São sete histórias que
giram em torno da luta entre o bem e o mal vivida por um menino e uma menina, Kay
e Gerda, duas crianças que se amam muito, como melhores amigos. Juntos brincam com
rosas do jardim em comum. A avó de Kay conta histórias sobre a misteriosa Rainha das
Neves, que no inverno congelava as flores.
A narrativa começa com um feiticeiro no espaço fabricando um espelho mágico, que
transformava em más pessoas, todos os que nele se mirassem. Mas o espelho quebrou-se
e pedaços se espalharam pelo mundo. Dois deles foram para uma sacada onde brinca-
vam duas crianças, Gerda e Kay, e penetraram nos olhos e no coração do menino que
desde aquele momento, se transformou, de bom, no pior garoto da cidade. Com isso,
o garoto se afasta da cidade e é raptado pela Rainha das Neves. Gerda sai em busca
do amigo e com sua pureza e amor no coração, após ser guiada por alguns ajudantes,
chega até o castelo e encontra com Kay, que em um primeiro momento não à reconhece,
mas Gerda começa a cantar sua música favorita, fazendo o menino emocionar-se, com
isso Kay chora e o
pedaço do espelho que estava cravado em seus olhos cai e de seu coração se dissolve,
voltando a enxergar e sentir o mundo com Amor. Gerda e Kay voltam para casa salvos
e felizes. O conto é dividido em 7 histórias:

Tabela 1. 7 histórias do Conto A Rainha das Neves

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Da literatura ao cinema: A Rainha das neves e suas diversas facetas

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Filme Frozen Uma Aventura Congelante


O filme Frozen – Uma Aventura Congelante, é do gênero infantil, categoria animação
musical produzido pelo Walt Disney Animation Studios, dirigido por Chris Buck e
Jennifer Lee, sendo o 53º filme animado produzido pelo estúdio. No Brasil estreiou em
3 de janeiro de 2014. Além de levar, em 2014, o Oscar de Melhor Animação e Melhor
Canção, entrou para a história como a animação que mais arrecadou nas bilheterias,
chegando a mais de US$ 1,072 bilhão, ultrapassando o recorde anterior que pertencia a
Toy Story 3, com US$ 1,063 bilhão.
A história transcorre em um reino chamado Arendelle, no qual vivem o rei, a rainha,
e suas filhas Elsa e Anna. A princesa Elsa é a mais velha e nasceu com o dom de criar gelo
e neve, aos 8 anos ao brincar com a irmã Anna de 5, acidentalmente acerta-lhe com um
raio gelado. Então Elsa é trancada no castelo para aprender a controlar seus poderes até o
dia de sua coroação. No dia em que vai receber a coroa, os portões do castelo são abertos e
Anna pode encontrar com sua irmã, depois de muito tempo sem contato. Durante a ceri-
mônia, Elza não tira as luvas, pois sabia que se tocasse em algum objeto o congelaria, mas
foi obrigada a tirar para receber o bastão, dessa vez deu tudo certo. Porém ao ficar brava
com sua irmã e não controlar seus sentimentos, seus poderes são expostos a população
que fica assustada e a consideram uma “bruxa”. Elza condena seus reino a um inverno
rigoroso e foge, escondendo-se num castelo de gelo. Com tudo isso, Ana entendeu o real
motivo do isolamento da irmã e ciente de sua inocência, junto a Kristoff, um destemido
homem da montanha, partiram numa jornada para trazerem Elsa de volta a Arendelle.
Mas ao encontrar com a irmã, Elza atinge o coração de Anna com seu gelo, congelando-o.
Somente um ato de amor verdadeiro pode salvar sua vida, esse sentimento é retratado
na trama com foco nas irmãs e não nos pares românticos. Anna se sacrifica, ao perceber
que sua irmã Elza seria atacada por Hans e entrar na sua frente para protege-la, esse ato
foi considerado Amor Verdadeiro. A história se passa em 15 cenas:

Tabela 2. 15 cenas no Filme Frozen- Uma Aventura Congelante

ANÁLISE GREIMASIANA DOS ELEMENTOS CONJUNTIVOS DA NARRATIVA


Intertextualidade
Para garantirmos o trânsito intertextual, Balogh (2005) orienta que primeiro
devemos atentar aos elementos conjuntivos, encontrando a similaridade entre as obras
autenticando a adaptação. O eixo da análise será pela ótica do programa narrativo da
Rainha das Neves (conto) – Elza (filme), intentamos mostrar a intertextualidade da
literatura para o cinema.

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Da literatura ao cinema: A Rainha das neves e suas diversas facetas

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Situar o ponto de partida da análise nas estruturas narrativas tem a vantagem de deli-
mitar de imediato o nível superficial como ponto incoativo do percurso metalinguístico.
(BALOGH, 2005, p. 55)

Na base do esquema atuacional proposto por Greimas, segundo (Balogh, 2005) está
na relação central sujeito – objeto no eixo do querer. No conto o sujeito é Kay, que ao
ser sequestrado pela Rainha das Neves, tem como objeto a sua libertação. Já no filme,
Elza não consegue controlar seus poderes ficando refém de si mesma, almejando ser
livre. O desejo de liberdade está presente nos dois objetos analisados, porém as pro-
vas para conquistá-la são diferentes. No conto, Kay tem que montar os blocos de gelo
formando a palavra Eternidade, com isso a Rainha das Neves diz: “Se conseguires
encontrar essa figura, serás o teu próprio amo, dar – te –ei todo o mundo e um par
de patins novo”, ou seja sua liberdade. Em Frozen, Elsa só consegue a liberdade pelo
autocontrole emocional; quando atingiu pela primeira vez sua irmã, o rei dos Trolls
orientou que os seus poderes se intensificam pelo seus sentimentos e que a chave de
sua liberdade está em controla-los.
Outra conjunção entre as obras analisadas foi detectada no dano causado pela
Rainha das Neves e por Elza, quando utilizam do poder do gelo sobre as pessoas em
3 passagens. No conto, o dano é realizado por 3 beijos congelantes: 1-) Ao raptar Kay,
ela dá o primeiro beijo que penetra seu coração e o conforta com o frio, 2-) o segundo
ele não sente saudade de Gerda e nem da avó, ela disse que se lhe concedesse mais um
beijo, poderia mata-lo, 3-) na última história, antes de partir lhe dá o terceiro beijo, que
fez com que o coração de Kay se transforme-se em gelo. Em Frozen, também são 3 vezes
que Elza se descontrola e utiliza seu dom: 1-) em uma brincadeira quando crianças, ela
atinge a cabeça de sua irmã mais nova, com seu raio, 2-) na festa de sua coroação atinge
as pessoas, mas não machuca, 3-) quando as irmãs se reencontram no castelo e discutem
novamente, Elza atinge a irmã em seu coração.
A instância da amizade interrompida foi identificada nas duas obras. No conto além
do feitiço, com cacos de espelho amaldiçoado que caiu sobre a terra e atingiu Kay em
seus olhos e outro penetrou seu coração, ele também é raptado pela Rainha das Neves
quando brincava com seu trenó na praça da cidade, tendo assim amizade com Gerda
interrompida. No filme, Anna acorda sua irmã mais velha para juntas brincarem com
a neve que Elza produzia, mas em um deslize Anna é atingida por um raio gelado e
corre perigo, ao perceber a situação, seus pais isolam uma da outra.
A saída da cidade pela rainha, pode ser observada nas duas tramas. No conto ocorre
na última história que ela voa para os países quentes com a intenção de colocar gelo nos
vulcões. Em Frozen, Elza sai da cidade, fugindo de seus fracassos.
Segundo Barros (2005, p. 20), As estruturas narrativas simulam, por conseguinte,
tanto a história do homem em busca de valores ou à procura de sentido quanto a
dos contratos e dos conflitos que marcam os relacionamentos humanos. Contratos são
estabelecidos no relacionamento entre Kay – Rainha das Neves que o manipula e seduz
para viver refém em seu reino. Ela aparece no conto na segunda história e na última. Já
no filme, Elza, permeia todo o filme, é considerada a Rainha das Neves pelo seu dom
de produzir neve, mas tem características mais humanas, do que no conto, lidando com

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Da literatura ao cinema: A Rainha das neves e suas diversas facetas

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seus aspectos emocionais, aprendendo a superar o medo, para reestabelecer a ordem


no reino de Arendelle e o vínculo familiar.

Tabela 3. Personagens com traços semelhantes

Pontuaremos os traços semelhantes de alguns personagens. Além da comparação da


Rainha da Neves com Elza que já foram expostos acima, encontramos correspondência
em Gerda e Anna que estão em busca de entrarem em conjunção novamente com seu
amigo e sua irmã respectivamente. As duas tem que percorrer caminhos para encontra-
los e depois contemplam essa amizade com o Amor Verdadeiro.
O personagem Kay pode ser comparado a Kristoff pelo fato de os dois admira-
rem o gelo e a neve. Kristoff, que trabalhava transportando blocos de gelo e ao chegar
até o castelo de Elza fica admirado com a forma que o gelo pode se transformar. Kay
observa os flocos de neve e quando chega perto da Rainha das Neves fica encantado
com a sua beleza.
A rosa no conto aparece como um sinal, que faz Gerda lembrar-se de Kay. Ao olhar
a rosa no chapéu da florista, Gerda rememora os dias em que brincava com o menino
no jardim. Em Frozen, um boneco de neve chamado Olaf, foi criado na imaginação
por Elza quando brincava com seus poderes junto a sua irmã. Quando Anna estava a
caminho da montanha do norte para encontrar sua irmã ela se depara com Olaf, que
apesar de o troll ter tirado a sua lembrança sobre o fato ocorrido no passado, ela recorda
dele. Ele é quem indica o caminho para Anna chegar até o castelo e posteriormente é
quem enuncia que o ato de amor verdadeiro que ela estava procurando poderia ser de
Kristoff, que a amava verdadeiramente.
Hans e o feiticeiro do espelho podem ser comparados se analisarmos que os dois
são manipuladores, um pelo fato de usar da astucia para manipular as pessoas e o outro
por utilizar de um feitiço. Em Frozen, quando no final Hans revela suas reais intenções
com Anna, afirmando que agiu assim por ter percebido que ela estava carente de amor.
A rena no conto assume o papel de ajudante, ela é quem sabe sobre o paradeiro
da Rainha das Neves e conduz Gerda ao castelo para encontrar Kay. No filme, Sven,
que também é uma rena, é companheiro de viagem de Kristoff, e juntos acabam sendo
ajudantes de Anna, para conduzi-la até a montanha do norte, onde estava sua irmã Elza.
Também é Sven que empurra Kristoff de volta a cidade, afirmando que ele deveria ficar
juto a Anna, por quem ele tinha sentimentos.

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Da literatura ao cinema: A Rainha das neves e suas diversas facetas

Amanda Gaspar M. Traballi

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através do estudo da intertextualidade pudemos verificar que realmente existem
conjunções entre o corpus analisado. Em termos de percurso temático, as narrativas
mostram o poder das rainhas com o gelo, através dele, elas dominam as pessoas
congelando-as. Outro tema de grande importância que permeia as obras é o Amor
Verdadeiro. Identificamos como enunciado elementar o sentimento de Amor, no conto
ele é representado pela amizade entre Kay e Gerda, que ao perder seu melhor amigo
para a Rainha das Neves, sai em busca para reencontrá-lo transmutado na figura do
afeto entre as irmãs no filme e entre os melhores amigos, no conto; e é através dele que
realmente se tem a liberdade.
Conforme Balogh (2002, p.104), nos encontramos em plena era de reprodutividade,
da reciclagem, da transposição, do metamorfoseamento de textos já existentes. Como a
própria docente diz parece que estão aplicando bem a Lei de Lavoisier, conhecida pela
enunciação da frase “Na Natureza nada se cria e nada se perde, tudo se transforma”.
Verificamos a intertextualidade presente nas duas obras e que os costumes da
contemporaneidade influenciaram na produção do filme Frozen, que também deixa de
fora o tema Deus, presente no conto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BALOGH, Anna Maria. Conjunções Disjunções Transmutações – Da Literatura ao Cinema e à TV.
Editora Annablume, 2005.
BALOGH, Anna Maria. O Discurso Ficcional na TV: Sedução e Sonho em Doses Homeopa’ticas.
São Paulo: EDUSP, 2002.
BALOGH, Anna Maria. A palavra que prevê a imagem: o roteiro. Revista Comunicações e
Artes, SP, v.15, n 23, 1990, p.37-44.
BALOGH, Anna Maria. Que saudade! A transmutação imagética de sentidos passionais:
moldura, sequencialidade e “perceptos excêntricos”. Revista Significação, v. 41, 2014, p.95
BARROS, Diana Luz P. de. Teoria semiótica do texto. São Paulo, 4. Ed. São Paulo: Ática, 2005.
BARROS, Diana Luz P. de. Teoria do Discurso, Fundamentos semióticos, São Paulo, 3. Ed. –
São Paulo: Humanitas / FFLCH / USP, 2001.
BETTETINI, Gianfranco. La conversación audiovisual. Madrid, Cátedra, Signo e Imagem, 1984,
DELEUZE, Giles. Cinema-Imagem movimento. São Paulo, Brasiliense, 1985.
FIORIN, José Luiz. Introdução à Linguística. São Paulo: Contexto, 2002.
GREIMAS, A. J; LANDOWSKI, E. Análise do Discurso em Ciências Sociais. São Paulo: Global,
1996
JAKOBSON, Roman Linguistica e Poética. In: Linguistica e Comunicação. São Paulo, Cultrix,
1969, p.118-162.
NASCIMENTO, Geraldo Carlos do. A intertextualidade em atos de comunicação. São Paulo:
Annablume, 2006.
PROPP, Vladimir. Morfologia do Conto. 5a edição. Lisboa: Editora Vega, 2003.
XAVIER, Ismail. A experiência do cinema. Rio de Janeiro, Graal – Embrafilme, 1983.

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Cinema de manifestação:
Conflitos num “Rio em chamas”
Manifesting through cinema:
“Rio em chamas” and its conflicts
G a b r i e l C h ava rry N e i va 1

Resumo: Esse artigo analisa RIO EM CHAMAS, filme-manifestação que fala do


contexto atual por que passa a cidade do Rio de Janeiro e dos protestos públicos
que se tornaram constantes desde meados de 2013. A apreciação se dará a partir
dos conceitos de discurso traçados por Michel Foucault que procura focalizar o
dito e o não dito, e de Georges Didi Huberman no âmbito da imagem, que focaliza
o visível e o não visível. Ao mesmo tempo em que o RIO EM CHAMAS se enun-
cia como um “filme manifesto”, atestado firme de um discurso de visibilidade
contra hegemônico às atuais narrativas otimistas e amorosas sobre a cidade,
encontramos também possíveis contradições e ausências que complexificam as
nossas possibilidades analíticas.
Palavras-Chave: cinema; Rio de Janeiro; discurso; contra hegemônico.

Abstract: This paper analyses “Rio em chamas”, a so- called “film protest”, that
talked about the social crisis from which the city of Rio de Janeiro goes through
recently and the constant protests that have been part of the city´s routine since
2013. Our appreciation will be based upon the concepts of discourse as explained
by Michel Foucault and Georges Dibi Huberman, focusing on the seen and the
not seen. At the same time as “Rio em chamas” proclaims itself as a “film protest”,
a firm document of making of a counter hegemonic discourse to other opti-
mistic and idyllic discourse about Rio de Janeiro, we also came across possible
contradictions and absences that have complexified our analytical possibilities.
Keywords: cinema; Rio de Janeiro; discouse; counter hegemonic

N ESSES ÚLTIMOS anos, a cidade do Rio de Janeiro parece estar no centro das
atenções do mundo todo. Em 2013, foi sede da Jornada Mundial da Juventude
(JMJ) organizada pela Igreja Católica. Já em 2014 tornou-se um espaço chave
para a realização dos jogos na Copa do Mundo de futebol, sendo escolhida para sediar
a sua tão esperada partida final. E para coroar essa chamada “era de megaeventos”, está
escalada para receber os Jogos Olímpicos de Verão no ano de 2016.
Tendo em vista o momento da cidade, vamos nos debruçar sobre a atual produção
de discurso acerca do Rio de Janeiro. Por um lado, observam-se os esforços de alguns

1.  Gabriel Chavarry Neiva, doutorando do PPGCOM/UERJ, gneiva10@gmail.com.

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Cinema de manifestação: Conflitos num “Rio em chamas”

Gabriel Chavarry Neiva

vínculos jornalísticos para reiterar que o carioca está “recuperando sua autoestima”. Tal
mudança de foco foi sentida a partir da escolha da cidade para sediar a Copa do Mundo
e as Olimpíadas. Assim, eventos como o Carnaval e o Reveillon, antes intensamente
perigosos, são majoritariamente apresentados como lócus de “paz e felicidade2”, na
qual as recorrências de violência se tornaram casos isolados.
Nesse artigo, porém, vamos nos concentrar numa outra forma de discurso sobre a
cidade. O nosso foco principal é o filme “Rio em chamas”, que se contrapõe às imagens de
um Rio de Janeiro idílico e concentra-se em armazenar cenas de conflitos sociais e institu-
cionais registrados em 2013, tendo como principal catalisador as ondas de manifestações
realizadas em junho daquele mesmo ano. Dividido entre doze realizadores, a película se
apresenta como um “filme manifesto3”, que mistura imagens de protestos, encenações,
registros jornalísticos e diálogos entre poetas, acadêmicos, cineastas, manifestantes.

O USO DOS CONCEITOS “DISCURSO” E “ARQUIVO”


A produção do discurso da visibilidade se apresenta, então, como um procedi-
mento contraditório e descontínuo que vai se desenhando a partir de jogos de poder
organizativo, e acabam por incluir e excluir certas contribuições. Dessa forma, estamos
influenciados pelos apontamentos de Michel Foucault, principalmente na sua aula inau-
gural no College de France em 1970, publicada posteriormente como o livro “A Ordem do
Discurso”. Foucault (1996) criticou aqui tanto as interpretações que pensam o discurso
como um “reflexo” de fundo material quanto as visões que postulam uma possível
natureza verdadeira do discurso.
Para Foucault, essas práticas discursivas constituíam a própria materialidade, apre-
sentando-se como lócus de disputa, dos quais as suas continuidades, deslocamentos e
desaparecimentos são parte integrante desse jogo. Assim, a análise do discurso deve
focalizar o dito e o não dito, almejando traçar como esses procedimentos discursivos
se formam. Em complemento a essa importante asserção, os importantes estudos de
Georges Didi Huberman (2012; 2013) nos redirecionam aos jogos discursivos para o
domínio da imagem, dando atenção ao visível e ao não visível (ou por vezes, ao que é
esquecido ou apagado). Isto posto, estamos interessados em como os vaivéns das imagens
de conflitos são arranjados no “Rio em chamas”, tanto em seu regime interno quanto
em relação ao seu posicionamento diante de outros discursos sobre o Rio de Janeiro.
O jogo de relações que caracteriza o estrato discursivo é complementado por outro
conceito que nos é importante: o arquivo. Mais uma vez recorremos à contribuição de
Foucault (2009), que refutou o termo como uma “soma de todos os textos que uma cultura
guardou” (FOUCAULT 2009, p. 14) ou como um testemunho cristalino e verdadeiro, de
natureza teleológica, apresentando-se assim ora como um passado bem definido ora de
uma chave para um futuro já traçado.
O arquivo se apresenta como um indicio de diversos “acontecimentos singulares”,
que se desenrolam a partir das práticas discursivas, nas quais tantos os seus fragmentos

2.  Ver FREITAS, Ricardo & Fernandes, Rodrigo Karl & AMARAL, Renata Gallo Spinola. “Em nome
do espetáculo: megaevento, cidades e representações midíaticas” in: MAIA, João & Helal, Carla (org)
Comunicação, Arte e Cultura na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012, p. 152.
3.  Ver https://www.facebook.com/pages/RIO-EM-CHAMAS/217777025087799?fref=ts.

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Cinema de manifestação: Conflitos num “Rio em chamas”

Gabriel Chavarry Neiva

(e não a sua totalidade) quanto suas regularidades se agrupam de forma única. É neces-
sário, então, demarcar o espaço em que o arquivo pode fornecer lógicas específicas de
disposições. Ao mesmo tempo em que o “Rio em chamas” se apresenta como um incrível
depósito arquivistico, refutamos a possibilidade de pensarmos nele (ou em qualquer
outro arquivo) como uma verdadeira ou autêntica prática discursiva sobre a cidade.
Interessa-nos, por outro lado, reordenar as possibilidades que as imagens presentes no
sítio urbano nos elucidam, tanto nas suas presenças quanto nas suas ausências.
Arlette Farge (2009) defendeu que o arquivo, em sua natureza fragmentada e
descontinua, deve ser, de alguma forma, traduzida pelo pesquisador. Deve-se organizar,
assim, “outra narração sobre o real” (FARGE, p. 68), criando um olhar particular sobre o
espaço social que se almeja inserir. Cabe, então, desvendar as “falas vivas” situadas nos
arquivos, escancarando as vozes e os possíveis silêncios (ou ausências) que a reconstrução
documental pode permitir.
Farge pesquisou arquivos judiciários e policiais franceses do século XVIII, com-
pilados na Biblioteca do Arsenal e em sedes dos Arquivos Bibliotecários daquele país.
A historiadora lidou com registros frágeis, de difícil manuseio e proibidos de serem
fotocopiados, demandando um intenso trabalho de transcrição, palavra por palavra,
daqueles documentos. Diante das centenas de palavras, diálogos pacientemente ana-
lisados e copiados, ela define a experiência com arquivo como uma “gestão artesão”,
na qual o pesquisador rearranja, seleciona e molda os fragmentos documentais numa
narrativa sobre uma experiência específica.
Mesmo trabalhando com um arquivo de ordem diferente, acreditamos que esses
apontamentos de Arlette Farge são bastante úteis. Além disso, ela se conformou com
a impossibilidade de dar conta da inesgotável massa documental disponível naquelas
bibliotecas. Pela natureza desse artigo, não conseguiremos analisar o “Rio em chamas”
em sua íntegra. Tentaremos desvendar, portanto, os fragmentos imagéticos que nos
ajudam a desvendar quais práticas discursivas podemos encontrar naquela película.
Por sua vez, Wolfgang Ernst (2013) também se escorou nos apontamentos já citados
de Michel Foucault (principalmente na “Arqueologia do Poder”) e conceituou o arquivo
digital como um meio de “descontinuidades e rupturas” (ERNST, p. 117). Além disso,
Ernst refuta a asserção comum do arquivo como uma “quantidade arbitrária”, mas sim
governada por contínuas “operações de exclusões e inclusões” (ERNST, p. 128).
Defendemos aqui que o “Rio em chamas” se apresenta como um arquivo digital
e fílmico regido tanto por uma prática discursiva de ordenação conjugando a “forma
cinema”, calcada na narrativa fílmica tradicional (PARENTE 2009, p.23-26), quanto o
chamado “p cinema” (ODIN 2010, p.7), em que os meios digitais de captura pela internet
constroem e coletam registros coletivos sobre uma temática em comum. Ao mesmo
tempo em que o “Rio em chamas” se enuncia como um “filme manifesto”, atestado
firme de um discurso de visibilidade contra hegemônico às atuais narrativas otimistas e
amorosas sobre a cidade, encontramos também possíveis contradições (protesto, porrada
e festa, por que não?) e ausências que dinamizam as nossas possibilidades analíticas.
Estamos incumbidos, então, da tarefa de rearranjar esses estilhaços imagéticos para
classificarmos algumas lógicas específicas presentes na película.

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Cinema de manifestação: Conflitos num “Rio em chamas”

Gabriel Chavarry Neiva

A ANÁLISE DE ALGUNS DISCURSOS PRESENTES EM “RIO EM CHAMAS”


“Rio em chamas”, o “filme-manifestação” em questão, reúne uma pletora de vozes
que, de forma heterogênea, se colocam em contraposição à produção de imagens
descritivas de uma cidade idílica, com paisagem inabalável e sem conflitos evidentes. Nos
primeiros minutos do longa, uma sequência de animação gráfica anuncia a realização
de um filme chamado “Rio maravilha”, com um set situado no Largo da Cinelândia.
Porém, a filmagem é prontamente interrompida por manifestantes e bombas de gás
lacrimogênio. Trata-se de um recurso paródico, construindo citações aos diversos
elementos que simbolizam situações contemporâneas ao carioca: os diversos protestos
realizados na Cinelândia, a obra de revitalização do Porto, o chamado “Porto Maravilha”
e o “Rio, eu te amo”, filme aqui já citado, e segundo algumas das suas peças de divulgação
publicitárias, tem como recurso narrativo chave, as suas belezas naturais.
De forma geral, acreditamos que o “Rio em chamas” foi concebido em contraposição
direta ao “Rio eu te amo”. O filme foi lançado às pressas em maio de 2014, para que
fosse exibida nas salas de cinema e na internet, antes do começo da Copa do Mundo e
do lançamento da produção da Conspiração Filmes (distribuída em circuito comercial
no mês de setembro de 2014) Por outro lado, utiliza-se de estruturas narrativas similares
ao “Rio eu te amo” (divisão de múltiplos segmentos com realizadores diferentes). O
“Rio em chamas”, porém, tem um mote discursivo bem diferente: o seu fio condutor é o
jogo de confronto entre os poderes institucional (interpretado pelos policiais militares)
e uma parcela da sociedade civil (representada pelos manifestantes). Como uma das
frases ali contidas elucida de forma cristalina: além da rua, cenário fílmico principal,
“cinema é um território de disputa”.
As imagens realizadas pelos chamados “midiativistas4” são os instrumentos
principais para que o “Rio em chamas” possa ser concebida como um “arquivo de
autoridade” (ERNST 2011, p. 29) sobre aquelas manifestações. No transcorrer desse artigo,
remeteremos constantemente a alguns desses registros. A sua importância é também
registrada em uma impactante frase durante os agradecimentos finais: “A todo pessoal
do midiativismo, sem essa pilha5 constante, esse filme não teria rolado”.
Dessa forma, no decorrer da película, os cinegrafistas Tamur Aimara e Guilherme
Rodriguez registraram imagens de alguns eventos chaves do ciclo de manifestações de
2013. Do início ao final da película, visualizamos múltiplos cenas de confronto ilustrando
o posicionamento crítico dos seus realizadores com relação às ações das instituições
policiais. Não é de se espantar, então, que a primeira cena seja de um confronto entre
PMs e sociedade civil. Diante da tentativa de manifestantes para entrar num prédio
comercial situado no centro da cidade, observamos a hostilidade latente entre as forças
policiais e os manifestantes.
O cenário ali se assemelha a uma guerra (talvez próxima às intifadas palestinas
ou aos registros finais da Guerra de Canudos): os cassetetes dos policiais voam para
impedir o avanço das manifestantes e estes retrucam com o arremesso de lixeiras e com

4.  De maneira superficial, os “midiativistas” podem ser descritos como um grupo heterogêneo de produtores
de vídeo para mídias digitais como Youtube, o Livestream , o Vimeo e também aos sítios de conteúdo como
a “Mídia Ninja”, construindo uma voz alternativa à chamada “mídia tradicional”.
5.  “Pilha” é gíria para provocação ou pressão para realizar alguma atividade.

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Cinema de manifestação: Conflitos num “Rio em chamas”

Gabriel Chavarry Neiva

uma cantoria que se tornou recorrente naquelas manifestações: “Não acabou! Tem que
acabar! Quero o fim da polícia militar”. Somando os ânimos exaltados com os pedidos
da extinção da corporação, assistimos a um policial que parece ir em direção para
agredi-lo. Não podemos visualizar exatamente o desfecho daquele acontecimento (e
nem mesmo a ordem sequencial de edição daquele registro) pois corta-se a cena para
os letreiros iniciais: RIO EM CHAMAS. A não revelação e a ausência daquele desfecho
narrativo gera um resultado impactante porque ordena a confirmação de um enunciado
recorrente no filme: a constante truculência dos policiais incinerando o sítio urbano!
Passada algumas outras cenas de conflito, o segmento posterior dirigido pelo editor
e diretor principal do filme, Daniel Caetano, nomeada de “Assunção” (provavelmente
em referência a uma rua do bairro de Botafogo, zona sul da cidade, no qual acreditamos
que o apartamento escolhido para a locação dessas cenas se situa), almeja construir
uma sequência cronológica ordenando os acontecimentos que fizeram parte do ciclo
de manifestações de 2013. Observamos quatro pessoas num pequeno apartamento
discutindo as estratégias políticas em que tais episódios desencadearam. Tal expediente
foi comparado à estrutura de cenas e ao regime narrativo implementado por Jean Luc
Godard em “A Chinesa” A reconstrução de eventos aqui operada, por vez descrita como
“didática6”, emprega as recordações pessoais daqueles amigos e reimagina as pautas
que deveriam nortear tal movimento.
É interessante notar, porém, que mesmo em consonância sobre a necessidade de
guinada contra hegemônica das manifestações, os quatro personagens nem sempre
entram em consenso sobre o desenrolar de tais eventos. Podemos compreender aqui
uma disputa pela interpretação discursiva; afinal, “qual é a natureza dos Black Blocks?”,
“Quem realmente vaiou a presidente na abertura da Copa das Confederações em 2013?”,
“Os manifestantes são massa de manobra da grande mídia?”, perguntas como essas
compõem fragmentos de um quadro político que eles não conseguem (e talvez nem
querem) dar uma resposta definitiva.
No desenrolar do segmento “Assunção”, a captação sonora dos diálogos dos
personagens é mesclada com sons que foram provavelmente apreendidos durante
algumas das manifestações citadas pelos personagens. Este mecanismo de justaposição
fornece um sentimento de desarranjo e caos às cenas, dando impressão de que aquela
conversa também se desenrola como parte integral de protestos.
Além desse recurso sonoro, o filme também contrapõe imagens de arquivo dos
protestos de 2013 com outros registros de arquivos antigos. Compõe-se, então, um jogo
de visualidade em que os personagens descrevem alguns desses eventos, na sua maioria
pertinentes à relação truculenta que a polícia mantinha com manifestantes (bomba de
gás lacrimogênio, abuso policial com armas brancas), sendo ilustrado por imagens de
guerras passadas (I e II Guerra Mundial e Guerra do Vietnã).
Daí, observamos contraposições como a da descrição do desaparecimento do pedreiro
Amarildo Souza (caso que, desde então, se tornou uma de abuso institucional da política)
com a imagem de um prisioneiro sob tutela das forças militares norte estadunidense

6.  Ver a resenha “Rio em Chamas”: http://revistacinetica.com.br/home/rio-em-chamas-de-cavi-borges-


daniel-caetano-luiz-giban-vitor-gracciano-luiz-claudio-lima-eduardo-souza-lima-clara-linhart-vinicius-
reis-ana-costa-ribeiro-ricardo-rodrigues-e-andre-sampaio-b-2/. Visualizado em 07 de janeiro de 2015.

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Cinema de manifestação: Conflitos num “Rio em chamas”

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durante a Guerra do Vietnã7. Remete-se também à ação dos chamados P2, agentes
policiais infiltrados nas manifestações, que os quatro amigos no segmento acreditavam
estar ali para sabotar os eventos, sendo entrecortados com imagens de combate das
trincheiras durante a I Guerra Mundial.
Esse mecanismo de contraposição também é usado para outros acontecimentos: o
casamento de Beatriz Barata, neta do magnata de empresa de ônibus no Rio de Janeiro,
Jacob Barata, realizado na Catedral da Candelária e no Hotel Copacabana Palace, foi
interpelado por um protesto jocoso de alguns manifestantes. O diálogo dos quatro
personagens sobre esse acontecimento é acompanhado pelas célebres imagens da
cerimônia matrimonial de Diana com o Príncipe Charles, despontando uma reflexão
sobre a dimensão patética e ostensiva das elites cariocas (mais especificamente dos
grandes homens de negócio) em sua relação com o resto da população.
Ao final do segmento, em possível alusão aos Black Blocks os quatro personagens se
vestem de máscaras e roupas pretas, parecendo preparar-se para tomar parte de alguma
manifestação. Trata-se de um desfecho que reposiciona a película no coração de um
discurso contra hegemônico. A partir dessa reordenação seletiva dos acontecimentos
que engendraram o ciclo de manifestação, toma-se partido e segue-se de peito aberto
para a rua. Ou melhor, parafraseando um trecho já citado aqui, o cinema se configura
em mais um campo de batalha social.
A narrativa de conflito social também é predominante no segmento “Educação em
chamas”, dirigido pelo midiativistas Luiz Claudio Lima e Diego Felipe Souza. Retrata-
se, aqui, a greve dos professores da rede estadual e municipal de ensino realizada
entre os meses de agosto e outubro de 2013. Os testemunhos parecem corroborar um
certo entusiasmo que norteava aquele esforço grevista: era preciso capitalizar em torno
das manifestações para que as reivindicações de melhoria do sistema escolar fossem
atendidas. E algumas das imagens aqui selecionadas também seguem esse regime: pelo
que é aqui dito e visto, tanto nas assembleias dos professores quanto nas subsequentes
manifestações, é um recorde de adesão de participantes.
Por outro lado, o segmento retoma um dos embates principais do “filme
manifestação”: a relação conturbada entre policiais e manifestantes. Diante da constante
mobilização dos professores, a reação aqui registrada da instituição policial é de uma
constante truculência diante dos professores. Observa-se, então, jatos de sprays de
pimenta (também registrado por outros fotógrafos) e bombas de gás lacrimogênio
sendo despejados para dispersar o foco grevista. Logo em sequência a essas cenas, uma
imagem ilustra as decorrências dessas ações: observamos uma moça (possivelmente
professora ou manifestante simpatizante à causa) vomitando provavelmente devido à
intensa implicação física desses gases de efeito moral.
A disputa entre professores e policiais militares tem seu clímax na ocupação da
Câmara Municipal da Cidade por alguns professores grevistas, durante os dias 26 e 28 de
setembro de 2014. Ao final desse último dia, a polícia militar removeu os manifestantes

7.  Vale lembrar que existem muitos relatos de crimes de guerra cometidos pelo Exército Norte Americana.
O mais famoso dentre estes é o Massacre de My Lai em 1968, no qual as forças militares destruíram um
vilarejo vietnamita, cometendo estupro, torturas físicas, mentais e por fim finalizando uma chacina que
assassinou adultos, idosos, crianças e mulheres grávidas. Um registro fotográfico desse acontecimento foi
publicado na Revista Time Life em 1971.

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Cinema de manifestação: Conflitos num “Rio em chamas”

Gabriel Chavarry Neiva

das galerias daquele edifício. Por meio de imagens registradas por aparelhos móveis,
podemos observar a entrada dos policiais em meio àqueles manifestantes.
Tais imagens são de difícil legibilidade, mas a parca qualidade de resolução não nos
impede de sermos avassalados por uma espécie de “sentimento de repressão” diante
da ação policial. Alguns desses movimentos acabam por cravar o recorte aqui predo-
minante sobre o acontecimento da ocupação dos professores. Duas dessas imagens nos
chamaram a atenção: a retirada de alguém (possivelmente um rapaz) com a aplicação de
uma “gravata” no pescoço e uma outra pessoa (também acreditamos que se trate de um
professor) senda removido do seu lugar das galerias da Câmara, a ponto de revelar uma
porção da parte traseira do seu corpo. As lacunas e o pouco legível (ou mesmo o não
dito) desses registros são parte de uma engrenagem que reposiciona um dos discursos
chave organizadas na película: a repressão policial parece não esgotar seus recursos.
Igualmente, tanto a questão da violência policial quanto as lacunas do não dito (e
não visto) reaparecem no segmento “Kd” de André Sampaio. Aborda-se aqui um outro
acontecimento presente de forma recorrente na película: o desaparecimento do pedrei-
ro Amarildo Souza. Tal assunto brota no já citado “Assunção”, no bate papo de Cezar
Migliorin e Marcus Faustini e também em uma cena do midativista Tamur Aimara, que
acompanhou um protesto na área da Rocinha (residência de Amarildo e sua família)
prosseguindo em direção à Avenida Delfim Moreira no Leblon, aonde se montou um
acampamento em frente à residência do então governador da cidade Sérgio Cabral Filho.
Este segmento, porém, não utiliza nenhuma cena de arquivo ou mesmo se vale de
algum testemunho que busque alguma fala sobre o Caso Amarildo. Em contrapartida,
acompanha-se o desenrolar de uma narrativa (quase) silenciosa de um rapaz,
aparentemente situado numa área rural, aparentemente similar às cidades de Nova
Friburgo e Petrópolis, em busca por Amarildo.
Eis aqui o personagem se depara com uma espécie de casa ou celeiro abandonado.
Podemos assim imaginar pontes possíveis entre outros casos históricos de abusos insti-
tucionais. A polícia secreta comandada por Filinto Muller durante o Primeiro Governo
Varguista (1930-1945) torturava tanto nos porões da Polícia Federal na Capital do Rio de
Janeiro quanto em áreas mais bucólicas como os Centros Carcerários de Ilha Grande
e em residências distantes dos centros urbanos em Recife8. Já durante o período de
Ditadura Militar (1964-1985), conhecemos os relatos da violência policial nas delegacias
do DOPS e também da chamada Casa da Morte situada na cidade de Petrópolis9, centro
clandestino de tortura e assassinato de presos políticos, contrários ao regime ditatorial.
É interessante reparar que em alguns fragmentos da película, a truculência não é
vista apenas entre manifestantes e policiais. Algumas imagens registradas por Tamur
Aimara durante a famosa “Passeata de um milhão de pessoas”, realizada em 21 de
julho de 2013 nos oferece uma perspectiva diferente. Percorrendo a Avenida Presidente
Vargas, apreende-se uma multiplicidade de cartazes inscrevendo desde o recorrente
repúdio à corrupção dos políticos até reivindicações mais específicas, como o pedido pela

8.  Ver artigo de José Murilo Carvalho em: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/chumbo-grosso


e o polêmico relato de NASSER, David. Falta alguém em Nuremberg: A tortura da polícia de Filinto. Rio de
Janeiro: Editora O Cruzeiro, 1966.
9.  Ver o relatório preliminar da Comissão Nacional da Verdade sobre a Casa da Morte: http://www.cnv.
gov.br/images/pdf/petropolis/relatorio_preliminar.pdf. Visualizado em 12 de janeiro de 2015.

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Cinema de manifestação: Conflitos num “Rio em chamas”

Gabriel Chavarry Neiva

deposição do então presidente do Clube de Regatas Vasco da Gama, Roberto Dinamite.


Tal diversidade de pautas se mistura com uma tensão generalizada entre manifestantes
ligados a partidos políticos e outros que parecem ter ojeriza àquela adesão partidária.
Assim, escutamos os gritos: “SEM PARTIDO! SEM PARTIDO!”.
A escalada de conflito entre esses dois grupos culminou numa espécie de quebra-
quebra caótico em que fica difícil discernir qual lado está tendo vantagem sobre o outro.
É um acontecimento crucial na película pois complexifica, reorganiza e contradiz o dis-
curso predominante do “filme manifesto” em outros segmentos da película. Descobre-se
aqui que os manifestantes possuem múltiplas vozes e que suas vontades, por vezes, não
se conciliam. No clímax da cena, o embate entre as facções ligadas aos “partidos” e aos
“sem partidos” é conduzido para um canto da rua com pouca luminosidade em que as
agressões (verbais e físicas) parecem continuar. Posteriormente, a câmera treme e num
plano escuro a cena se encerram.
Ressaltamos, assim que, em outros segmentos do “filme manifestação”, a rua conti-
nua sendo palco dessas contradições. Num outro registro de Tamur Aimara, uma cena
de protesto na Praia de Copacabana é justaposta a uma festa de rua organizada pela
galeria de arte “Gentil Carioca” na Praça Tiradentes (zona central da cidade). Em outro
espaço, o registro sonoro de um baterista tocando no “Gentil Carioca” é utilizado como
trilha sonora para cenas da ação truculenta dos policiais diante dos manifestantes. A
rua é imaginada como um espaço de intersecção: a porrada e a alegria da festa cons-
tantemente podem se topar.
Em outras imagens captadas por Tamur Aimara, observamos que a jocosidade se
apresentou como um elemento constante daquelas manifestações. Suas imagens do
protesto na Rua Pinheiro Machado (Laranjeiras, bairro da zona sul da cidade) no dia
25 de junho de 2013 nos trazem bombas de gás lacrimogênios, coquetéis molotov, sprays
de pimenta e barricadas de lixo queimado como ilustrações do conflito entre manifes-
tantes e policiais. Quando esse segmento parecer ter sido finalizando, com os policiais
administrando o fluxo de trânsito reestabelecido (carros e ônibus estavam com a traves-
sia bloqueada durante a manifestação), encontramos um grupo de manifestante atrás
daqueles veículos que clamavam, de forma provocativa aos PMs: “OLHA EU AQUI DE
NOVO! OLHA EU AQUI DE NOVO!”
Aimara também filmou o protesto que acompanhou a tradicional procissão militar
de Sete de Setembro na Avenida Presidente Vargas. Aqui, encontramos uma repórter
de TV, em plena gravação de matéria, trajada com um cocar de índio e penas de bico,
segurando um microfone em forma de um objeto fálico, assemelhando-se a um órgão
genital masculino, em meio ao conflito entre manifestantes e policiais. Mais uma vez
imaginamos um cruzamento entre a festividade e a truculência, celebrando-se uma
espécie de carnavalização da manifestação.
Essa carnavalização é retomada de forma significativa no último segmento da pelí-
cula, “Adeus D.G.”. A princípio, acompanhamos o velório de D.G., dançarino de “passi-
nho” que participava do programa “Esquenta!”, na Rede Globo, morto em circunstâncias
ainda não esclarecidas10. Logo após desse ritual realizado no Cemitério São João Batista

10.  Um desfecho para o caso parece estar próximo de ser alcançado: http://noticias.uol.com.br/

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Cinema de manifestação: Conflitos num “Rio em chamas”

Gabriel Chavarry Neiva

de Botafogo, um protesto se materializa em Copacabana, bairro de residência de D.G.


A manifestação corrobora um dos conflitos recorrentes no filme: polícia x cidadãos,
mas sob a perspectiva de moradores e frequentadores de uma favela, nomeadamente
o Morro Pavão-Pavãozinho, aonde D.G. foi encontrado. Observamos cartazes com os
dizeres “Polícia Assassina” e “D.G. e Edílson (criança baleada no mesmo dia do óbito
de D.G.): vítimas de Estado”.
Em meio à passeata que tomou uma parte da Avenida Nossa Senhora de Copacabana,
sob forte chuva, buzinas de carros e aparentemente barulhos de tiros, um grupo de jovens
começam a dançar o “passinho”. E logo depois desses passos de dança, emendam num
canto em homenagem a D.G.: “EI, EI, SAUDADES DO D.G.” Essa breve catarse contra-
ditória, combinação de alegria e consternação, constitui novamente um indicador do
convívio entre protesto e festa. A dança é imaginada aqui como uma mescla de brinca-
deira e inescapável dor para seus participantes.
A carnavalização da manifestação retorna aqui mais uma vez. Talvez esteja distante
da clássica interpretação de Roberto Da Matta (1979) que concebia o carnaval como
elemento inescapável de uma faceta alegre da nossa identidade nacional. Aproximamo-
nos, então, da festa carnavalesca como “grito11” de exultação em tempos de angústia,
contemplado magistralmente em “A lira do delírio” de Walter Lima Jr. (1978).
Depois da festa, voltamos ao chumbo grosso. Como desfecho quase inescapável dos
protestos vistos na película, os policiais entram em conflito com os manifestantes. Estes
se revoltam com o uso de armas letais por alguns policiais. Diante da indignação dos
participantes dos protestos12, a polícia utiliza bombas de efeito moral para dispersá-los. O
filme, então, termina com a frase: “Não acabou”. Consideramos que a sua prática discur-
siva predominante aqui prevalece: o cinema e a rua estão em disputa e a luta continua!

CONCLUSÃO
Concretizamos aqui a análise de alguns segmentos contidos no filme “Rio em
chamas”. Diante das imagens analisadas, consideramos que organizou-se um discurso
de teor contra hegemônico a um Rio de Janeiro idílico e romantizado de outras obras
fílmicas. Além disso, a película nos fornece um amplo arquivo de imagens acerca das
manifestações.
As imagens aqui trabalhadas não se apresentam como um registro totalizante
do que foi aquele período histórico. A partir daquelas, então, propomos repensar a
disposição dessas práticas discursivas. Imaginar e elaborar, a partir daqueles fragmentos,
os caminhos de uma experiência específica no coração pulsante daquelas manifestações.
Tentamos, então, operar uma “montagem interpretativa” (DIBI HUBERMAN 2012, p.
119) desses estilhaços, indicando presenças e ausências, continuidades e contradições
que captaram a nossa atenção.

ultimas-noticias/agencia-estado/2015/01/14/tiro-que-matou-dancarino-dg-partiu-de-policial-diz-jornal.
htm. Visualizado em 14 de janeiro de 2015.
11.  VALENTE, Eduardo. “O cineasta e seu país” e CAETANO, Daniel. “Das tripas surgem a lira”. In: Revista
Contracampo, n. 24. Rio de Janeiro: 2006. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/24/. Visualizado
em 14 de janeiro de 2015.
12.  Em uma imagem impressionante, um dos participantes chega a tentar desferir uma voadora (golpe deri-
vado de artes marciais em que um chute atinge a parte superior do corpo do oponente) em um dos policiais!

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Cinema de manifestação: Conflitos num “Rio em chamas”

Gabriel Chavarry Neiva

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“Amor, plastico e barulho” ou as fronteiras da
autonomia feminina na cultura de consumo
“Love, plastic and noise” or the boundaries of
women’s autonomy in consumer culture
N a t á l i a L o p e s W a n d e rl e y 1

Resumo: O trabalho analisa o primeiro longa-metragem de ficção da cineasta


pernambucana Renata Pinheiro, premiado em festivais no mundo e lançado nos
cinemas em janeiro de 2015, também o primeiro longa-metragem de ficção dirigido
por uma mulher em Pernambuco: o filme “Amor, Plástico e Barulho” (2013). Tal
obra cinematográfica será abordada sob a perspectiva teórica do cinema mundial
contemporâneo, ao compreender que o cinema produzido nesse estado faz parte de
um “pico de criação” periférico mundial (Lúcia Nagib). Assim, contribui de forma
criativa para o contorno de conflitos existentes na sociedade brasileira e em especial
no Nordeste do país. A argumentação irá utilizar a moldura teórica multiculturalista
pluricêntrica (Ella Shohat e Robert Stam) para abordar a representação da autonomia
feminina dentro da cultura nordestina contemporânea a partir da narrativa fílmica.
Nesta ocorre a subversão de uma fábula da branquitude patriarcal (“Branca De
Neve e os sete anões”) para dar visibilidade às mulheres da cena musical brega e
às “culturas de consumo e de corpo” que envolvem as periferias do Grande Recife.
Palavras-Chave: Cinema periférico. Cultura de consumo. Corpo feminino.
Autonomia feminina

Abstract: The paper analyzes the first long feature of filmmaker Renata Pinheiro,
from Pernambuco, which was awarded at festivals around the world and was
released in theaters in January 2015. It alsoanalyzes the first fiction-feature
directed by a woman in Pernambuco: the movie “Amor, Plástico e Barulho”
(Love, Plastic and Noise) (2013). This cinematographic work will be boarded from
the theoretical perspective of contemporary world cinema; to understand that
the film produced in this state belongs to a worldwide peripheral “creation peak”
(Lúcia Nagib). Therefore, the movie contributes creatively to outline the conflicts
happening in Brazilian society, especially in the Northeast. The argument will
use the pluricentric multiculturalist theoretical framework (from Ella Shohat
and Robert Stam) to approach the representation of female autonomy within
contemporary northeastern culture from the film narrative. In this story, there
is a subversion of the patriarchal whiteness fable “Snow White and the Seven
Dwarfs” (Branca de Neve e os Sete Anões) to give visibility to women from
brega (a tacky music scene from Pernambuco) and to the consumption and
body culture which involves the outskirts from Recife and metropolitan area.
Keywords: Peripheral cinema. Consumer culture. Female body. Female autonomy.

1.  Mestranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da UFPE (Universidade Federal de


Pernambuco): natalopes@gmail.com

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“Amor, plastico e barulho” ou as fronteiras da autonomia feminina na cultura de consumo

Natália Lopes Wanderley

INTRODUÇÃO

E M UMA época marcada por um apelo realista na produção audiovisual, “expressão


estética de uma linguagem audiovisual biopolítica” (FELDMAN, 2008), a produ-
ção cinematográfica da artista plástica, diretora de arte e cineasta pernambucana
Renata Pinheiro ganha estatuto de pós-moderna ao trazer reflexões abertas sobre a
realidade urbana nordestina.
Não por acaso Renata Pinheiro é uma reconhecida profissional do cinema. Além de
cineasta, é uma requisitada diretora de arte com grande atuação no cinema produzido em
Pernambuco e em filmes de cineastas da cena independente nacional. Alguns exemplos
de sua atuação são os filmes “Amarelo Manga” e “Baixio das Bestas”, de Cláudio Assis;
“A Festa da Menina Morta”, de Matheus Nachtergaele; “Feliz Natal” de Selton Melo e
“Hotel Atlântico” de Suzana Amaral, entre outros. Advinda do meio das artes visuais,
seu talento e trabalho no cinema desde o início foi possível por um “reconhecer-se”
agente e produto de um mercado pequeno e restrito de profissionais da sétima arte
em Pernambuco e no Nordeste do Brasil. Assim, sua distinção depende de habitus de
classe, do qual devemos considerar os “privilégios de produção e fruição artística que
envolvem o acesso aos meios de divulgação cultural, o direcionamento das ações de
incentivo à cultura estatais e privadas e a própria maneira de se consumir os produtos,
os ambientes e as atitudes em que se experimenta a cultura” (FONTANELLA, 2005, p.14).
Autora de filmes curtas-metragens muito premiados e ovacionados pela crítica
(“SuperBarroco” e “Praça Walt Disney”, este co-dirigido por Sérgio Oliveira2, de 2008 e
2011 respectivamente), em 2013, a cineasta estreou como diretora de um longa-metragem
de ficção, momento duplamente especial para o cinema produzido em Pernambuco já que,
também é este o primeiro longa-metragem de ficção dirigido por uma mulher no estado.
O filme propõe performances de corpos femininos a partir de duas personagens, mulhe-
res protagonistas de uma cena musical precária na periferia de uma metrópole brasileira:
a cena brega do Recife. Apesar de todo o tratamento estético adotado no filme ser em
tom fabulesco, o fato de o filme ter referência na realidade histórica das transformações
urbanas e sócio-culturais em processo no Recife, traz consigo representações de comuni-
dades pertencentes às classes subalternas da sociedade pernambucana. Por isso, embora
o longa não pretenda, nem possa nunca representar uma verdade absoluta sobre aquele
meio, nele “ainda existem verdades contigentes, qualificadas” expressas (BAKHTIN).
Nesse caso, sob o olhar de uma cineasta, integrante de um habitus de classe distinto
(BOURDIEU) que se apropria do discurso e ideologia de mulheres de uma classe social
mais baixa para propor a subversão de cânones do cinema e da cultura hegemônica.
Desse modo, a fábula criada pela cineasta em “Amor, Plástico e Barulho” objetiva
o realismo no sentido brechtiano de “desmascaramento das redes de relações causais”
(STAM e SHOHAT, 2006), sendo o discurso artístico trazido pelo filme um recorte da
realidade social como “refração de uma refração, ou seja, uma versão mediada de um
mundo sócio-ideológico que já é texto e discurso”. (Ibidem, 2006, p.264) Este, não está só
nos momentos mais subjetivos das personagens principais, mas também nas imagens

2.  Sérgio Oliveira, co-diretor de alguns filmes de Renata Pinheiro, além de sócio na Aroma Filmes também
é marido da cineasta.

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“Amor, plastico e barulho” ou as fronteiras da autonomia feminina na cultura de consumo

Natália Lopes Wanderley

documentais de grandes obras urbanas que intercalam os blocos narrativos. Também,


entendo que nesse longa-metragem a estética sensorial de várias sequências faz com
que, assim como apontou Deleuze a respeito dos opsignos3, as distinções entre o banal
e o extremo, e/ou do subjetivo e do objetivo, tenham um valor somente relativo. Estas
distinções tendem a perder importância à medida que a situação ótica ou a descrição
visual substituem a “ação motora”:
(...) caímos num princípio de inderterminabilidade, ou indiscernibilidade: não se sabe mais
o que é imaginário ou real, físico ou mental na situação, não que sejam confundidos, mas
porque não é preciso saber, e nem mesmo há lugar para a pergunta. É como se o real e o
imaginário corressem um atrás do outro, se refletissem um no outro, em torno de um ponto
de indiscernibilidade. (DELEUZE, 2013, p.16)

Por isso, a narrativa construída pela cineasta não deixa de apostar em momentos
de maior proximidade com o dito cinema de atração4 e suas formas de apresentação,
elementos de vanguarda componentes do seu estilo:
(…) a prevailing mode in early cinema until 1906–1907, when it was supplanted by the arrival
of Griffith’s and other markedly narrative filmmaking modes. This, however, did not mean
the end of the cinema of attractions, which survived by going underground and becom-
ing a defining element of avant-garde cinemas and even a subtle, disruptive component of
some narrative films. The distinctive quality of this cinema, according to Gunning, was its
ability to ‘show’ something rather than ‘represent’ it. (NAGIB, 2011, p. 05)

O dissenso, outro componente de seu estilo, também contrapõe os filmes da cine-


asta a um realismo consensual, proposta biopolítica “de legitimação, naturalização e
desresponsabilização dessas narrativas e imagens”. (FELDMAN, 2008, P.62)
(...) separa o regime estético do representativo na arte e propõe redefinir a arte política como
aquela que se recusa a antecipar seus efeitos, questionando, ao contrário, seus próprios
limites e poderes. Ou seja, uma arte que aceita sua própria insuficiência e, mesmo quando
se infiltra no mundo das relações sociais e lutas de poder, “fica satisfeita em ser meras ima-
gens”, nas palavras de Rancière (NAGIB, 2012, p. 24 apud RANCIERE, 2010: 149).

Em concordância com a já anunciada impotência da obra de arte frente às relações


de poder, é no âmago da pós-modernidade que também se conceitua “Amor, Plástico e
Barulho”. Pós-modernidade entendida como força problematizadora em nossa cultura atu-
al, ao levantar questões sobre o senso comum e o natural, mas que nunca oferece respostas
que não obedeçam o provisório, nem os limites da distinção social (HUTCHEON, 1991).
Distinção nutrida pelo acúmulo de capital cultural (BOURDIEU), que pressupõe
tempo e poder aquisitivo para o consumo cultural e a formação de sensibilidades mais
“eruditas” ou simplesmente ligadas à ideologia hegemônica. Se no capitalismo tardio,
o consumo tornou-se a nova hegemonia, estabelecendo novos processos de valoração

3.  Para Deleuze esta “nova raça de signos”, a partir do neorrealismo italiano, juntamente com os sonsignos,
faz parte das situações óticas e sonoras dentro da “imagem tempo”, em contraposição a qualidade indicial
das situações sensório-motoras que formam a “imagem-ação”, ligada ao realismo tradicional.
4.  Conceito defendido por Tom Guning baseado na “montagem de atração” de Eisenstein.

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“Amor, plastico e barulho” ou as fronteiras da autonomia feminina na cultura de consumo

Natália Lopes Wanderley

e inscrição de hierarquias sócias, fundamentadas na capacidade de os indivíduos


serem consumidores (FONTANELLA, 2005,), o corpo feminino tornasse o principal objeto
de barganhas, e consequentemente de violências, no centro da hegemonia patriarcal:
falocêntrica e de heterossexualidade compulsória. Estes dois regimes de poder/discurso
que tentam responder as questões centrais do discurso de gênero5.
Esteja este corpo sob diferentes identidades de gênero que obedecem a uma hie-
rarquia de modalidades: raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais, todas elas são
construídas discursivamente (BUTLER, 2010). Segundo Butler (2008, P.19), “A crítica
feminista também deve compreender como a categoria “das mulheres”, o sujeito do
feminismo, é produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de poder por inetrmédio
das quais busca-se emancipação”.
É por acreditar na necessidade de se questionar as instituições no centro da cultura
hegemônica, como o cinema e a própria academia, sobre os padrões e ideologia que
representam e impulsionam, que usarei como conceito norteador desse artigo a idéia
de “autonomia feminina”. Objetivo comum aos movimentos feministas, autonomia
feminina propõe o poder de decisão das mulheres sobre suas vidas e corpos, assim
como as condições de influenciar os acontecimentos em sua comunidade e seu país,
através inclusive de direitos assegurados pelo Estado. Mesmo sem existir concordância
sobre “o que constitui ou deveria constituir a categoria das mulheres” (Ibidem, p. 18)
considero, segundo a “crítica genealógica”, que as fronteiras e a superfície dos corpos
são politicamente construídos (FOUCAULT e BUTLER). Então, embora a construção dos
corpos femininos varie de acordo com os inúmeros contextos, está sempre em relação
a ideologia patriarcal dominante.

Figura 1. “Shelly”. Direção de arte se apropria da “estética de corpo” do brega.

AMOR, PLASTICO E BARULHO


O primeiro longa-metragem de ficção dirigido por uma mulher em Pernambuco
trata de autonomia feminina, motivo incomum dentro das representações do cinema
pernambucano. “Amor, Plástico e Barulho”, lançado no circuito de festivais de cinema

5.  Aqui uso o conceito de gênero como “um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as dife-
renças percebidas entre os sexos, e o gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de poder. As
mudanças na organização das relações sociais correspondem sempre a mudanças nas representações do poder,
mas a direção da mudança não segue necessariamente um único sentido” (SCOTT apud TEGA, p. 45, 2010).

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“Amor, plastico e barulho” ou as fronteiras da autonomia feminina na cultura de consumo

Natália Lopes Wanderley

em 2013, desde então tem circulado no Brasil e em festivais mundiais, além de conquis-
tado prêmios, principalmente por suas atuações. Em janeiro deste ano o longa estreou
nos cinemas comerciais.
Nele, as atrizes Maeve Jinkings e Nash Laila, paraense e pernambucana, respec-
tivamente, vivem em cena um duelo não declarado entre duas bregueiras6: Jackeline
Carvalho, cantora por volta dos 30 anos, reconhecida pelo público brega, se encontra
no declínio de sua carreira. Já a dançarina e aspirante a cantor, Shelly, na faixa dos 20
anos, observa a cena brega com entusiasmo, determinada que está em torna-se também
“musa” naquele meio. Assim, Jackeline vê em Shelly uma rival, na mesma proporção
em que Shelly vê em Jackeline a referencia de um status quo a ser alcançado.
Todo o filme se passa nos bastidores da cena Brega Pop de Pernambuco7, Fontanella8
analisou o Brega Pop a partir das suas estratégias de “entrada e saída” na cultura do
consumo:
O Brega Pop é um estilo nascido nos bairros pobres das grandes cidades, e que por muitos
anos existiu exclusivamente nessas periferias, onde se encontravam seus públicos, seus
músicos e os espaços onde ele se expressava. Para manter-se, durante muitos anos, depen-
deu exclusivamente de um sistema paralelo de produção e divulgação: o comercio de CD`s
piratas nos vendedores ambulantes, as casas noturnas suburbanas, as aparelhagens. Mesmo
quando atinge o sucesso e sai dos suburbios, o brega ainda mantém forte ligação com esse
sistema alternativo de produção e consumo cultural. (FONTANELLA, 2005, p.11)

Além da precariedade legada à expressão advinda das classes baixas, essa perspec-
tiva do “corpo no brega” como símbolo de uma vivência subalterna são leituras críticas
que interessam à nossa abordagem. No caso do longa-metragem, a manutenção de
espaços de exclusão social relegados a essas classes coincide com a dinâmica hostil das
grandes construtoras/empreiteiras, protagonistas do momento de caos urbana (obras,
verticalização, superpovoamento, imobilidade e poluição) que está enfrentando a cidade
do Recife e cuja sinopse de divulgação do filme de Renata Pinheiro destaca:
(...) O filme entra no universo do show business da música Brega a partir dos seus artistas,
do seu publico e da poética das suas músicas de linguagem direta, com apelo para o erótico
e para os prazeres imediatos. Uma poética que brota do cotidiano, do lixo, do descartável,
do que sobra (e dos que sobram) neste “novo” país de milagre econômico e velhas mazelas
sociais. (...) A cidade superpovoada – que cresce sem planejamento urbano – juntamente
com a ilusão dessas artistas – buscando ascensão em um show business precário – são os
pilares da história. (Disponível em: http://aromafilmes.wordpress.com/2014/08/20/278/.
Acesso: 22 de setembro de 2014)

Logo, a primeira sequencia é emblemática: vemos as duas jovens, juntas num banhei-
ro de casa noturna, praticar a bulimia9. Atitude recorrente de manequins e modelos

6.  Apelido local dado às mulheres que fazem parte da cena brega recifense.
7.  Com ênfase na capital pernambucana, Recife.
8.  Ver nas referencias bibliográficas “A Estética do Brega: Cultura de consumo e o corpo nas periferias do
Recife” (2005).
9.  Forçam uma situação de vômito.

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“Amor, plastico e barulho” ou as fronteiras da autonomia feminina na cultura de consumo

Natália Lopes Wanderley

do mundo da moda, a bulimia denuncia uma rede de valores sócio-culturais no seio


de uma cultura de consumo ligada ao corpo “em que os indivíduos são incentivados a
manter formas corporais que constituem simulacros, aparentemente possíveis mais na
verdade nunca completamente atingíveis” (Fontanella, 2005, p.16). Assim, negam tudo
o que é condição do corpo real: os efeitos degradantes do tempo, as formas naturais, a
exposição a enfermidades, as funções e secreções.

Cultura que faz do “corpo” território de disputas e se mostra de forma dominante


sob o corpo feminino. Este mesmo “corpo” que implica reformulações dos conceitos
de “sexo” e “sexualidade”, mas que sem dúvida, dentro das ondas feministas ao lon-
go do século XX e XXI, permaneceu como conceito-chave ao entendimento de gênero
(BUTLER, 2008).
Em nossos dias, a identidade do corpo feminino corresponde ao equilíbrio entre a tríade
beleza-saúde-juventude. As mulheres cada vez mais são empurradas a identificar a beleza
de seus corpos com juventude, a juventude com saúde. (DEL PRIORE, 2000, p.14)

Ainda, o filme trata da reescrita de uma velha história oriunda da “tradição do


saber masculino” que junto à branquitude10, caracteriza o eurocêntrismo: Branca de
Neve e os sete anões:
(...) a história da cultura ocidental se consolidou segundo a tradição do saber masculino.
Em função disso, é comum encontrar entre as obras da (...) literatura imagens de mulher
estereotipadas segundo o modelo da sociedade patriarcal, caracterizadas pela submissão,
pela resignação, pela espera, pelo sofrimento, pela saudade etc. Segundo a crítica feminista,
é, sobretudo, a literatura de autoria masculina que tem, ao longo do tempo, representado o
emparedamento da mulher nesse silêncio. (ZOLIN apud SILVESTRE, 2011)

Ao contextualizar no “local” as premissas feminista encontradas na reescrita literária


desse conto de fadas, cujo o conto escrito por Angela Carter, The Snow Child (1988), é sua
versão mais reconhecida, Pinheiro também propõe a subversão de cânones da cultura
patriarcal hegemônica dentro da instituição cinematográfica:
A reescrita é um fenômeno literário que consiste em selecionar um texto canônico da metró-
pole e, por intermédio de recursos da paródia, produzir um novo texto, adaptando-o à
metodologia pós-moderna a fim de subverter o texto original tradicional. Esse processo
faz parte do contradiscurso, termo usado por Terdiman (1985) na apresentação de métodos
empregados pelo discurso dos dominados, objetificados contra o discurso daqueles que
detêm o poder: o centro imperial. A seleção ocorre, geralmente, em torno de certos textos em
que o discurso da classe dominante não passasse despercebido na imposição de sua ideolo-
gia. Isso porque a reescrita tem como objetivo quebrar a ocultação da hegemonia canônica,
questionar os temas apresentados na tentativa de reforçar a mentalidade colonial. Sendo
assim, a reescrita reinscreve o texto canônico dentro do processo subversivo. (Ibidem, 2011)

10.  A branquitude é um conceito adotado por inúmeros autores para problematizar a predominância da
estética da “raça” branca em detrimento a da raça negra, como por exemplo Lilia Schwarcz no livro “Nem
preto, nem branco, muito pelo contrário: Cor e raça na sociabilidade brasileira” (2012).

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“Amor, plastico e barulho” ou as fronteiras da autonomia feminina na cultura de consumo

Natália Lopes Wanderley

Neste conto de fadas, assim como no filme em análise, uma mulher não- negra sente
seu local de privilégio ameaçado pela chegada de outra mulher não- negra, mais jovem e
por consequencia, mais bela que ela. O universo ao redor delas se mostra dominado pelos
homens, dos quais os brancos correspondem ao topo da hierarquia. Representados no
filme principalmente pelo personagem do dono da banda “Amor com Veneno”, empre-
sário da cena brega, agente, pelo que entendemos, de uma rede de artistas da periferia
e mantenedor das distinções dentro do próprio universo brega – e “Allan” – rapaz que
se envolve com as duas protagonistas do filme. Este mesmo empresário irá cooptar
Allan, ex-namorado de Jackeline e atual príncipe encantado de Shelly, para prosseguir
à frente de seu “pequeno império” como cantor e compositor do seu novo grupo, “Amor
com Mel”. Outros exemplos de dominação masculina branca são os agentes da mídia
sensacionalista, como o apresentador do programa de TV “Brega Show”, o repórter dos
bastidores do brega e o coreógrafo do grupo de Jaqueline. Em último lugar no ranking
masculino, temos os personagens dos donos das casas de espetáculos e o cantor da
banda de Jaqueline, homens não-brancos.

Figura 2. Jackeline grava videoclipe Figura 03. Shelly tenta a fama no


com a ajuda do namorado programa de TV “Brega Show”

Assim também, as atitudes desonestas de Jackeline, contra Shelly, representante de


uma juventude cara às divas do brega, em oposto às atitudes amigáveis de Shelly com ela,
a princípio identificam-se com relações de poder sob normatividade machista, pautadas
na rivalidade entre as mulheres em contraposição a irmandade das relações masculinas.
Entretanto, ao longo do filme irão mudar e esta é outra maneira de subversão do cânone
literário que identificamos. Isto porque após o desmanche do grupo “Amor com Veneno”,
as duas cantoras, munidas de um sentimento de perda e impotência frente às emulasões
da própria cena brega, irão se reconciliar bebendo, cantando e dançando juntas num
bar da periferia. Jackeline, que durante todo o filme esteve sempre recorrendo à bebida
para suportar o crepúsculo de sua carreira, enfim será acompanhada por àquela que
antes pretendia ser sua sucessora (Shelly) e que, após conhecer de perto os prazeres e
algúrias da cena brega, agora divide com esta o peso de envelhecer:
Moldada em torno de valores como o progresso e a juventude, nossa sociedade lida mal com
o número crescente daqueles que, envelhecendo, beneficiam-se de um alongamento sem

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“Amor, plastico e barulho” ou as fronteiras da autonomia feminina na cultura de consumo

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precedentes da esperança de vida. (...), a identidade corporal feminina está sendo condicio-
nada não pelas conquistas da mulher no mundo privado ou público, mas por mecanismos
de ajuste obrigatório à tríade beleza-juventude-saúde. (DEL PRIORE, 2000, p.100)

Figura 04. “Jackeline” a frente da banda “Amor com Veneno”

Em um dos momentos mais marcantes do filme, a efemeridade do sucesso no brega


está na fala da personagem Jaqueline: “Esse negócio de sucesso é descartável. Feito um
copinho de plástico bem vagabundo. Quando tu tá usando ainda ele se rasga todo. Aí
tu vai usando até a ultima gota. Até a ultima gotinha. O tempo vai, amassa mais ainda
e joga fora”.
Mesmo não fazendo parte da classe social cujo filme se refere, Renata Pinheiro faz
apropriações do universo do brega para que esse seja assimilado pelo público e crítica
cinematográfica. Um exemplo dessa apropriação da estética brega está nas cores do
filme que variam em tons claros (pastéis), desde as roupas e maquiagens das atrizes
principais até as luzes frias em alguns momentos de subjetivação das personagens.
Outro, seriam os sons das festas e vivência na periferia que no filme estão resignificados
por uma trilha sonora original, criada pelo DJ Dolores11 a partir de ritmos, instrumen-
tos e suportes técnicos também utilizados pelos produtores da cena brega. A criação
sonora do filme mescla a trilha sonora original aos sons diretos captados das obras na
cidade, no intuito de aproximar a realidade histórica da cidade da fabulação proposta
pela cineasta. Vemos então sequencias quase-documentais de casas noturnas de brega,
ruas de pouco calçamento, casas pobres, ambientes de bares populares, edifícios e obras
urbanas sempre em andamento.
No entanto, o ponto forte da referencialidade histórica no filme são os comerciais
de TV fictícios sobre a inauguração do shopping “Rio Mangue”. A situação faz alusão
direta ao shopping “Rio Mar”(2012), construído em uma zona de mangue do Recife,
cuja construção foi motivo de muitas críticas e manifestos contra a desapropriação dos
moradores de palafitas no local e dos trabalhadores mortos em sua obra.
Da mesma forma, a reprodução fiel das músicas brega tocadas nos bares e na maioria
dos bairros da periferia urbana, intercalasse à trilha sonora original12, provocando que-
bras narrativas. Uma dessas, ocorrida de maneira suave mas desconcertante ao enfatizar

11.  Hélder Aragão, o DJ Dolores, é um conhecido artista cult das cenas igualmente cult do Mangue Beat e
pós-Mangue Beat do Recife.
12.  A trilha sonora do filme é inclusive assinada por Hélder Aragão, o DJ Dolores, conhecido artista cult
da cena igualmente cult do Mangue Beat e pós-Mangue Beat do Recife.

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“Amor, plastico e barulho” ou as fronteiras da autonomia feminina na cultura de consumo

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o prazer da personagem naquele momento, é a sequencia em que Shelly e Allan trasam


pela primeira vez: num plano-sequencia em que os dois aparecem aos beijos no meio de
um salão de dança rodeado de casais, aos poucos vão sendo deslocados para dentro de
um outro cenário que surge substituindo àquele ao fundo e que logo reconhecemos um
quarto de motel. Nessa passagem em especial, ouvimos a voz de uma cantora entoando
um reconhecível brega de sucesso no Recife13 e que embala os dois até o ápice do prazer,
identificado pelo excesso de repetições do refrão que está sendo cantado.
A tentativa é de que o drama que vivem as mulheres dessa história ganhe ares
sensoriais, no sentido de que a sonoridade barulhenta do Brega Pop, seja transmitida
apenas de forma simbólica no filme, pouco executada na diegese, cedendo às nuances de
interpretação e narrativa necessárias ao cânone cinematográfico. Assim, a trilha sonora
original, composta tanto de músicas dodecafônicas (para quando vemos os canteiros
de obras na cidade), quanto de hits das bandas bregas fictícias, junto às sequencias de
imagens sensório-motoras debilitantes, poderá gerar os opsignos e sonsignos, responsáveis
pela imagem-tempo que subverte o tradiconal realismo e compõe algumas cenas do longa:
(…) ora são imagens subjetivas, lembranças de infância, sonhos ou fantasmas auditivos e
visuais onde a personagem não age sem se ver agir, espectadora complacente do papel que
ela própria representa, (…), ora são imagens à maneira de uma constatação de um acidente,
definida por um enquadramento geométrico que, entre seus elementos, pessoas e objetos,
só deixa subsistir relações de medida e de distância, transformando desta vez a ação em
deslocamento de figuras no espaço. (DELEUZE, 2013, p.15)

Figura 05. Protagonistas interpelam o mundo histórico

Há outras situações em que a “imagem-ação” é posta em cheque, como por exemplo,


o momento em que Shelly se depara com as tintas para cabelo no supermercado e decide
pintar seu cabelo de loiro aos moldes das divas Pop americanas; quando Jackeline canta
de forma instrospectiva o brega “Chuva que é de uva”, sucesso do Brega Pop do Recife
em 2010. Ainda, as duas personagens por vezes fazem cenas inteiras olhando para a
câmera, ou mesmo olham para um ponto na mise en scène procurando um espectador,

13.  O nome da música é “Amor proibido”, da banda recifense Nosso Romance.

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“Amor, plastico e barulho” ou as fronteiras da autonomia feminina na cultura de consumo

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numa busca por invocar o mundo histórico fora de campo. Esta forma enunciativa,
também permitirá abertura para a compreensão das fronteiras da autonomia feminina
dentro da sociedade de vigilância:
Both the enunciative camera placement and the spectator within the scene are presentational
devices, calling the attention not only to the arbitrariness of fiction, but to their own real-
ity, that is to say, the reality of the medium. They bring the awareness, on the one hand,
of a Foucaultian society of surveillance, where envy, intrigue and betrayal are rife, thus
preventing the formation of any romantic nostalgia for traditional ways; on the other, they
place the spectator within this same network of invigilation that spreads beyond cultural
boundaries. (NAGIB, p.50)

AS FRONTEIRAS DA AUTONOMIA FEMININA FRENTE


À CULTURA DE CONSUMO
Metáfora da partilha desigual da cidade a que se serve o capital transnacional, as
duas mulheres protagonistas do filme estão a todo tempo em busca de prazeres e sonhos,
no limite entre o real e a fantasia. Realidade que é opressiva de forma geral às mulheres,
principalmente às mulheres negras e às não-negras de classes baixas, vulneraveis a
todo tipo de mazelas sociais: desde o alcolismo ressaltado no filme, quanto à violência
sexual de elevado número em Pernambuco, não retratada no filme. Já a fantasia, habita
entre à ascensão social através do trabalho musical e realização de um amor românti-
co, heterosexual, aos moldes da afirmação paternalista no qual a mulher necessita ser
protegida por um homem que a salvará de todos os males, no caso, o “príncipe” que se
apaixona por sua beleza, como num conto de fadas.
Quer dizer que a respeito dos valores e trocas culturais focalizados no longa-metra-
gem em questão, dar voz à personagens que referenciam mulheres protagonistas da cena
Brega Pop do Recife14, implica em dá visibilidade à algumas camadas de significação
do real ligadas a subalternidade. Possibilitar a representação de mulheres, de maneira
a combater os esteriótipos e demonstrar o embate que a mulher protagoniza no centro
da sociedade de consumo, é antes de tudo um desafio ainda pouco enfrentado pelos
cineastas15 e que Renata Pinheiro assume de maneira evidente no seu primeiro longa-
-metragem de ficção.
No entanto, vale lembrar que a própria representação pode servir tanto como termo
que “busca estender visibilidade e legitimidade as mulheres” como sujeitos politicos,
quanto atuar como “função normativa de uma linguagem” que dita o que é verdadeiro
sobre a categoria das mulheres (BUTLER, 2010). Assim, apesar da cineasta ter cons-
truído para as duas protagonistas do filme, personagens femininos de complexidades
psicológicas e sociais fugindo de esteriótipos, reservou para as mulheres negras no
filme, dois papéis no elenco de apoio, mesmo sendo essas mulheres a de maior número
dentro da população feminina brasileira (mais de 51,7%) e também nas periferias. As

14.  As atrizes do filme, Maeve Jinkings e Nash Laila, fizeram seus estudos de personagens junto a cantora
de brega recifense, Michele Melo, conhecida como “a Madona do Brega”.
15.  No caso específico do cinema produzido em Pernambuco, existe uma crítica ao patriarcado na dissertação
“A Construção do Protagonismo Feminino no Cinema Pernambucano na Contemporaneidade”, de Alice
Gouveia (PPGCom, UFPE, 2010).

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“Amor, plastico e barulho” ou as fronteiras da autonomia feminina na cultura de consumo

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mulheres negras foram mais uma vez negligenciadas dentro das representações do
cinema nacional16, assim como não estão nas suas equipes técnicas.
Embora observe que dentro da narrativa tenha havido uma preocupação em demons-
trar os locais de privilégio dos brancos sobre os não-brancos e das mulheres brancas
sobre as mulheres negras dentro da própria subalternidade, o papel de maior destaque
para uma mulher negra no filme é o de empregada doméstica. Vivida na película pela
conhecida vendedora de rua recifense “Quinha do Tamborete17”, a personagem con-
tracena com as protagonistas em poucas cenas e encarna o esteriótipo da “mãe preta”,
herança da escravidão, “que cuida de todas as necessidades dos demais, em particular
dos mais poderosos” (HOOKS, 1995).
Esteja a cineasta, recriadora desse conto, habitando em entre-lugares, articulação entre
diferentes culturas que forma “figuras complexas, de diferença e identidade, passado e
presente, interior e exterior” (FONTANELLA apud BARBA, 2005, p. ), Renata parece crer
na “vantagem epistemológica” daqueles que forçados pelas circunstancias históricas a
negociar com as margens e o centro, adquirem uma “consciência dupla”18 e estariam
melhor situados para “desconstruir” os dircursos dominantes.
Nesse caso, o filme busca focar as mulheres que atuam no universo do brega reci-
fense e o que elas teriam a falar para o público cinematográfico sobre as contigências do
corpo feminino na cultura de consumo. Logo, vejo que as hibridizações e contradições
presentes no centro da cultura brega são similares aos entre-lugares do cinema em sua
verve mais política, multiculturalista e policêntrica.
Se, “no interior da luta contínua entre hegemonia e resistência, cada ato de inter-
locução cultural modifica cada um dos interlocutores” (STAM E SHOHAT, 2006, p.88),
o filme “Amor, plástico e barulho” de Renata Pinheiro alinha-se a crítica feminista ao
propor uma revisão das identidades de gênero, a partir da representação cinematográfica.

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS
BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento; tradução Daniela Kern;
Guilherme J. F. Teixeira. – 2ed. Rev. – Porto Alegre, RS: Zouk, 2011.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Tradução: Renato
Aguiar- 2 Ed – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. Tradução Eloiza de Araújo Ribeiro; revisão filosófica
Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2013.
DEL PRIORE, Mary. Corpo a corpo com a mulher: pequena história das transformações do
corpo feminino no Brasil – São Paulo: Editora SENAC, 2000.
FELDMAN, Ilana. Apelo realista, in: Compós, 2008.
FONTANELLA, Fernando. A Estética do Brega: Cultura de consumo e o corpo nas periferias do
Recife. Recife; (Dissertação de mestrado), Programa de Pós-graduação em Comunicação,
Universidade Federal de Pernambuco, 2005.

16.  Sobre a ausência das mulheres negras no cinema, ver a matéria “Pesquisa revela que mulheres negras
estão fora do cinema nacional”, Jornal do Comércio, 06 de julho de 2014.
17.  Existem inúmeros vídeos no site “Youtube” que trazem a vendedora de tamboretes de madeira reciclada,
cantando nas ruas para vender sua mercadoria.
18.  Termo usado pelo intelectual e ativista negro norte-americano, W.B. DuBois, já no século XIX.

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“Amor, plastico e barulho” ou as fronteiras da autonomia feminina na cultura de consumo

Natália Lopes Wanderley

GOUVEIA, Alice. A Construção do Protagonismo Feminino no Cinema Pernambucano na


Contemporaneidade - Uma análise sobre o desejo, a perversão e a prostituição na cons-
trução do imaginário sobre a mulher pernambucana. Recife; 122p, (Dissertação de
mestrado), Programa de Pós-graduação em Comunicação, Universidade Federal de
Pernambuco, 2009.
hooks, bell. Intelectuais Negras, in: Revista Estudos Feministas, Ano 03, número 464, 1995.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modemismo: história, teoria, ficção/ Linda Hutcheon;
tradução Ricardo Cmz. - Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991.
NAGIB, Lucia. Além da diferença: A Mulher no Cinema da Retomada. In: DEVIRES, BELO
HORIZONTE, V. 9, N. 1, P. 14-29, JAN/JUN 2012.
_______. World cinema and the ethics of realism / by Lúcia Nagib. New York-London; Continuum,
2011.
SILVESTRE, Nelci Alves Coelho. A subjetificação feminina no conto The Snow child de Angela
Carter. Revista Litteris, nº 07, março 2011.
STAM, Robert e SHOHAT, Ella. Crítica da Imagem Eurocêntrica. São Paulo: Cosacnaify, 2006.
TEGA, Danielle. Mulheres em foco: construções cinematográficas brasileiras da participação
política feminina. - São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.

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Hipóteses em torno de Revisão Crítica do Cinema Brasileiro,
de Glauber Rocha: militância e liderança, pari passu
Around a Critical Revision of Brazilian Cinema, by Glauber Rocha:
militancy and leadership in brazilian cinema
A rl i n d o R e b e c h i J u n i o r 1

Resumo: Em 1963, Glauber Rocha publica seu primeiro livro crítico, intitulado
Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (RCCB). No contexto latino-americano, esta
obra pode ser considerada como uma expressão conceitual deste cineasta
brasileiro sobre a arte e o ofício cinematográficos. Esta comunicação investiga
as formas de construção presentes em RCCB, na maneira como o cineasta buscou
compatibilizar uma escrita histórica coesa e totalizadora de modo a construir
um cânone para o cinema brasileiro.
Palavras-chave: Glauber Rocha. Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. Cinema
Novo. Crítica Cinematográfica Brasileira.

Abstract: In 1963, Glauber Rocha published his first book of film criticism book,
entitled A Critical Revision of Brazilian Cinema (CRBC). In the Latin American
context, this work can be considered as a conceptual expression of this Brazilian
filmmaker about the art and craft of making movies. This paper investigates
the forms of construction present in CRBC, in order to build a canon for the
Brazilian cinema.
Keywords: Glauber Rocha. A Critical Revision of Brazilian Cinema. New
Brazilian Cinema. Brazilian Film Criticism.

1. INTRODUÇÃO

J Á COM uma produção escrita bem divulgada no Jornal do Brasil e com interlocução
e laços de amizades mais bem definidos, é possível detectar entre 1962 e 1963 que
Glauber exercia uma nítida liderança no interior do grupo dos jovens intelectuais
do Cinema Novo. Basta acompanhar o diálogo epistolar entre ele e esses jovens intelec-
tuais para notar a precisão com que ele dimensiona os afazeres do que escrever, filmar
e falar em público. Glauber, sem sombra de dúvida, é o mais incisivo e insistente deles.
É ele quem recolhe os exemplos, lembrando a agenda programática aos companheiros.
É ele quem estabelece linhas de atuação dentro e fora do país, atraindo novas amiza-
des que pudessem porventura ajudar a empreitada. É ele quem recomenda e às vezes
exige um maior engajamento de ideias políticas, solicitando de todos os participantes
um novo texto de divulgação, a entrada em um projeto de filme ou o dimensionamento

1.  Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Letras, da FFLCH-USP. Docente do Departamento de


Ciências Humanas e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Estadual Paulista
(UNESP). E-mail: rebechiabc@hotmail.com.

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Hipóteses em torno de Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, de Glauber Rocha: militância e liderança, pari passu

Arlindo Rebechi Junior

de roteiros e ideias com o objetivo de melhor se adequar ao mundo e clima de cinema


novo que se construía.
Tais cartas que Glauber escreve projetam um gênero que mistura o aspecto mili-
tante e a construção da agenda de atuação do grupo, buscando, a um só tempo e em
cada frase de impacto destinada ao interlocutor, um modo de acomodar uma coesão
de ideias pertinentes aos objetivos coletivos traçados, em grande parte, por ele próprio
para o novo cinema brasileiro. É bastante comum, neste roteiro de atuação esboçado
por Glauber, que ele, em mais de um momento, force a nota e delineie, seja no mundo
do cinema, seja na sociedade, um perfil trágico do que acontecia. Um perfil que, sem
demora, poderia servir ao próprio movimento, em sua visada pelo reconhecimento no
campo artístico de então. Num destes casos, ele escreve a Paulo César Saraceni sobre o
impacto de concatenar a realidade social e o projeto de construção de filmes: “Paulo, a
revolução no norte é um FATO. crescemos dia a dia. o mais importante dos filmes bra-
sileiros será este filme camponês. 200 mil pessoas morrem de fome e sede nas estradas,
enlouquecem, assassinam. [...] se você olhar o norte 24 horas, você enlouquece de raiva
e vibra de entusiasmo” (ROCHA, 1997, p. 164).
A notar que Glauber, nestas circunstâncias, apresentava-se com uma missão. Era
preciso convencer seus interlocutores sobre as trocas de papéis necessárias, em que a
substituição de projetos de menor visibilidade por projetos com um enquadramento
mais adequado ao que o grupo pensava nos bastidores tornava-se quase um imperativo.
Nesta mesma carta enviada a Saraceni, ele chama a atenção do amigo para a necessida-
de de deixar de lado um suposto lirismo de um projeto de filmagem conhecido como
Amor de gente moça. Segundo Glauber, seria, este, um filme que não contribuiria – não
naquele momento – para criar as condições para que aquela geração pudesse se realizar.
Sua justificativa perpassava a solidificação do movimento pelo ímpeto individual de
cada um dos projetos:
é preciso formar o movimento. precisamos fazer filmes CERTOS – entendeu? não se pode
arriscar, porque se falhamos um segundo, caímos no fracasso. filmes ‘LIVRES’ só quando
a base estiver formada. sei que você (como eu) pode reagir a isto, MAS É A SAÍDA. do
contrário ficaremos apenas sonhando, entende? eu sou REALISTA, não tenho ilusões. por
isto, Antonioni só me interessa enquanto eu sou intelectual de superestrutura. quando eu
faço a redução pro BRASIL SUBDESENVOLVIDO E INCULTO – eu vejo que a Europa é a
HISTÓRIA FEITA e nós SOMOS A HISTÓRIA A FAZER, e nosso tempo é pouco, nosso pas-
sado é vergonhoso e temos de agir engajados na história. o Brasil de hoje não tem lugar pro
artista romântico e sim para o artista revolucionário, mas não um revolucionário da arte e
sim da própria história. estética hoje é uma questão política. Escreva (Rocha, 1997, p. 165-166.).

Decisões tomadas por Glauber também o impulsionavam a assumir mais e mais o


seu papel de liderança. Observe-se uma dessas ações. Como forma de tornar o exemplo
do grupo e mostrar seu engajamento em relação a um cinema ligado aos assuntos da
terra, Glauber, neste mesmo ano de 1962, dá uma de suas cartadas. Recebe do importante,
e por ele admirado, crítico Paulo Emílio o projeto de filmar um de seus roteiros originais,
o nunca filmado Dina do cavalo branco, cujo roteiro do crítico paulista foi, naquele mesmo
ano, agraciado com o prêmio cinematográfico Fabio Prado. Glauber coloca uma série de

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Hipóteses em torno de Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, de Glauber Rocha: militância e liderança, pari passu

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empecilhos de ordem prática e recusa o tal projeto. Na recusa está uma série de impli-
cações que merecem ser tratadas. A principal delas é o caráter do filme inadequado ao
que Glauber e seu grupo delimitavam para os caminhos do cinema em formação. Uma
eventual filmagem de um “melodrama popular e moderno para o cinema bahiano”,
como acusava o subtítulo do roteiro, poderia comprometer, entre outras coisas, a auto-
ridade intelectual de Glauber entre aqueles jovens do movimento. Note-se a resposta
em carta a Paulo Emílio, ela demonstra o que pesa em sua decisão: estaria o filme e sua
personagem “dentro de uma perspectiva extremamente pessoal e sentimental: a sua,
é claro, eu, por meu ângulo, de temperamento excessivamente realista, concebo o mito
mas não o sinto pela espinha, como diria fernando pessoa. trata-se de mulher, e eu,
confesso, não estou tomado de mulher, mas sim de política. não sei bem se é juventude
ou resultado de uma crise violenta e um tanto caótica, surgida justamente por causa de
mulher” (ROCHA, 1997, p. 169).
Se esse biênio 1962-1963 pode ser considerado um período de transição para Glauber,
que terminou Barravento, projeto assumido às pressas, e ainda iniciou a produção de
Deus e o Diabo, além de ter sido o período em que a Bahia deixa de ser o foco principal
de sua atuação, passando a ser o Rio, é proveitosa a compreensão do período pela pró-
pria militância alcançada por ele. Não é forçoso levantar a questão: foi por ela, por esta
militância escrita, que Glauber forjou uma liderança mais racional e segura dentro do
próprio grupo? Revisão crítica do cinema brasileiro, seu primeiro livro, amplia as pistas
para a questão e suas ideias merecem ser aqui abordadas.

2. MILITÂNCIA E LIDERANÇA, PARI PASSU


Em 1963, na ocasião de publicação de seu primeiro livro Revisão Crítica do Cinema
Brasileiro, Glauber Rocha, então com apenas 24 anos, conseguira divulgar de forma mais
ampla seu aspecto militante. Mais que isso. Tratava-se de um livro que firmaria sua
consagração face duas frações: os jovens intelectuais de cinema, que viam em sua obra
uma afinidade e um programa de reconhecimento da nova arte, transformando seu
autor e seu livro em liderança e porta-voz do movimento, respectivamente, e os mais
velhos, muitos deles críticos de cinema, como foi o caso de Paulo Emílio, que notavam em
Revisão um empenho de luta nunca antes visto na história das ideias do nosso cinema.
Ainda mais: o livro nascia como uma história notável da vida intelectual de cineastas e
críticos de cinema do momento: um livro-vulcão, um livro, sobretudo, de pura opinião
e construção estratégica e ideológica de seu autor.
Depois de coletar artigos baianos e cariocas de periódicos, escrever partes, e repen-
sar um canônico caminho para o cinema brasileiro, seu autor colocara em circulação
com Revisão crítica o que representava o balanço de sua militância crítica e os supostos
programas do emergente Cinema Novo até o momento, demarcando, explicitamente,
os desafetos e os aliados ao tipo de arte que defendia. Talvez esteja aí a razão de o livro
se tornar uma estratégia pertinente para sua consagração como jovem intelectual do
cinema e da cultura brasileira. Talvez esteja aí sua identificação de vez com os jovens
que formavam o grupo do Cinema Novo, principalmente eles.
Glauber parte dos artigos de jornal para se chegar ao formato de livro. Para isso,
precisaria integrar uma militância, desde os tempos finais dos anos 1950, com a precisão

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Hipóteses em torno de Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, de Glauber Rocha: militância e liderança, pari passu

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de compatibilizá-la a uma escrita histórica coesa e totalizadora, como almejava ser um


livro daquela natureza. Uma obra que vinha para ao mesmo tempo servir aos interesses
práticos do grupo de jovens do cinema e servir como campanha de combate às parcelas
intelectuais em desavença.
O crítico Ismail Xavier capta muito bem as forças pelas quais o livro está sujeito. Se
nos artigos de jornais, em que o “juízo podia ser mais nuançado” (XAVIER, 2003, p. 8), a
atuação militante competia com tantas outras forças, os espaços de ações e recepções do
livro eram outros e, por sinal naquele momento, muito mais concentrado em termos de
repercussão no meio de intelectuais do cinema. Não é exagero supor que os barulhentos
artigos de jornais haviam criado o estofo necessário para que o livro, com seu perfil
ambicioso e totalizador, pudesse ser recebido com polêmicas e debates de alta relevância.
Basta notar sua recepção crítica no calor da hora (VÁRIOS AUTORES, 2003, p. 177-221).
Diferenças entre uma ação e outra – de jornal e de livro – poderiam ser assim
tratadas. Lá nas páginas dos jornais, Glauber poderia admirar certos filmes, mesmo
supondo sua inviabilidade de execução entre nós. Tais críticas eram recorrentes em seus
textos de periódicos baianos, por exemplo. Diferente, Revisão crítica, com uma natureza
de militância e de afirmação de um programa para o Cinema Novo em formação, não
comportava qualquer descuido e a admiração só é permitida pelo “cinema desejado”,
aquele que sintetiza ideias para o debate (XAVIER, 2003, p. 12).
Nesse momento, gostaria de dialogar mais de perto com um texto que considero
o melhor já escrito sobre Revisão crítica. Dentre as várias perspectivas que o livro já foi
abordado, parece bastante adequado iniciar uma interpretação a partir do que o crítico
Ismail Xavier escreveu no prefácio à nova edição da obra:
Olhando o passado, Glauber estabelece o cânone compatível com a nova proposta e instala
um tribunal apto a proclamar o que vale como matriz e o que deve ser descartado. Tal pos-
tura judicativa encaminha não propriamente um livro de história, mas um texto de crítica
empenhado em afirmar um programa para o cinema brasileiro, postura que se exprime na
sua típica linguagem de manifesto [...] Como acontece com os líderes de rupturas, ele inventa
a tradição que interessa, seja na referência a processos e tendências, seja no destaque dado
a personalidades (Xavier, 2003, p. 11).

O trecho citado, forte síntese do que representa as condições de produção e de


circulação do livro de Glauber, guarda uma série de pontos que precisam ser comen-
tados. Glauber, à época, soma a função de crítico e cineasta. E dentro do seu livro há
uma escolha metodológica marcada pela experiência de seu corpo-a-corpo com essas
duas funções. Embora não só estas. Quando Glauber, pela visão de crítico, empenhado
e militante, imprime sua perspectiva analítica sobre um filme, rejeitando a proposição
deste ou aceitando-a, está oferecendo um plano de estratégias do cineasta para outros
cineastas. Sua história escrita em Revisão está sempre a trilhar aquilo que é possível,
o que já foi feito e o que ainda resta executar, cuja missão o cineasta-autor, apenas ele,
poderia conseguir cumprir.
Em Revisão crítica seu autor faz um livro cheio de Cinema Novo. Ele, o Cinema
Novo, está por todos os lados. Onde quer que se pise, onde quer que se tateie, lá está
ele lembrando um jovem aqui e acolá, uma tradição possível e mais conveniente, uma

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Hipóteses em torno de Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, de Glauber Rocha: militância e liderança, pari passu

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imagem-síntese de uma história que se escrevia. Em linhas gerais, a adequação dos


artigos de jornais ao livro, somado às escritas que concatenam filmes e estilos, configu-
ram um ritmo intenso na história que se quer contar. Assuntos que pulam de um lado
ao outro e se ligam uns aos outros configuram uma esteira de realizações de homens
de um novo cinema, que de Norte a Sul oferecem a tão almejada dimensão nacional
ambicionada pelo livro.
Há no livro o empenho de seu autor em construir uma conjuntura histórica con-
veniente, para isso justapõem-se os cineastas aceitos pelos seus feitos e os rejeitados
pelas suas inadequações ao campo das artes em seus respectivos momentos de atu-
ação. Glauber não hesita: entre os cineastas brasileiros de preferência há os de maior
preferência. Estes são salientados pela afinidade com as linhas de forças costuradas
pela escrita histórica presente no livro. Talvez a história do Cinema Novo, a mais oficial
delas, nascesse daí, dessa ligação entre o que fora forjado como linha do tempo, presen-
te em Revisão crítica, e o que se procurou mostrar como a melhor e mais viável opção
de cineastas e estilos, para só assim, dentro desses limites, estabelecer um verdadeiro
cinema moderno brasileiro em sua representatividade das condições políticas de seus
participantes.
Havia dito que os aspectos metodológicos do livro partiam do corpo-a-corpo com
o cinema, dadas suas funções de cineasta e crítico. Acrescento a essas duas um outro
tipo de experiência mediada pelo cineasta. Refiro-me à sua experiência com a literatu-
ra. Embora formado nas cinematecas, sendo ele de boa cultura cinematográfica, como
atestam suas inúmeras abordagens de cineastas de variada nacionalidade, Glauber foi
também um leitor de nossa literatura. E Revisão crítica não passou incólume a isto.
O crítico Ismail Xavier, neste mesmo prefácio antes citado, havia chamado a atenção
para tal empreitada, observando em uma de suas notas de pé de página que “as refe-
rências literárias têm um significado que não se reduz ao papel dignificador do cineasta
dentro da política cultural conduzida pelo cinema novo e, em especial, por Glauber. [...]
Se isto é parte da questão, não está aí o ponto decisivo das relações entre Glauber e os
escritores, pois o que teve conseqüência maior foi o conteúdo de sua experiência, a forma
como leu e se inspirou” (XAVIER, 2003, p. 31). Quando, em trecho anterior, este mesmo
crítico diz que Glauber inventou a “tradição que interessa”, por detrás desta afirmação
está uma implicação: na tradição inventada para o cinema brasileiro, o cineasta baiano
procurou mirar-se na inspiração modernista e recuperar dela uma motivação para uma
política cultural ampla e intervencionista. É por isso que não surpreende que no olho do
furacão deste debate sobre a configuração de um moderno e novo cinema esteja acima
de tudo um estilo de seus cineastas em ajuste aos problemas de formação da nação.
Em outras palavras, fica patente em Revisão crítica que seu autor sabe, mais que
ninguém, nuançar suas experiências literárias, transformando-as em fermento para o
debate sobre a formação de um novo cinema, sobretudo em sua seção “política de auto-
res”. Seu olhar recupera o dado local em sua dimensão de estilo, aliado a uma prática
de organização criadora na condição de poucos recursos, para cumprir um veredicto: o
Cinema Novo recupera a tradição de representar os problemas sociais com estilo pró-
prio, levando-se em conta o impulso autoral de seus realizadores. Aquilo que em outra
perspectiva poderia ser considerado o defeito, ganha, nesta nova ordem, o peso de se

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Hipóteses em torno de Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, de Glauber Rocha: militância e liderança, pari passu

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estabelecer como defesa radical de uma realidade, de uma nova experiência, de uma
intervenção. Para explorar melhor a questão, é necessário adentrar as páginas de Revisão
crítica. Meu exemplo de lá extraído é Lima Barreto, o cineasta. Antes dos meus comen-
tários cito uma passagem, onde Glauber delineia o perfil do cineasta de O cangaceiro:
Culturalmente, Lima é um rebento tardio da poesia condoreira de Castro Alves; um naciona-
lista sensual e caudaloso como Euclides da Cunha, mas sem a cultura e a visão do autor de
Os Sertões. Lima é um apaixonado pelo estilo de Euclides; as fortes tintas apenas. Sertanistas
como José de Alencar, romântico retardado, sem a profundidade de um José Lins do Rego;
sem a vivência deste, cujo suporte memorialista faz do seu romance, apesar da pobreza
estrutural e estilística, um verdadeiro movimento de força e comunicação. Ambicionando
requintes de expressão, Lima Barreto fica encalhado no parnasianismo de Olavo Bilac.
Ideologicamente é místico, espiritualista, ateu e católico, patriota e reacionário, progressista
e desenvolvimentista, nem direita nem esquerda, mas também sem a coragem e o talento
de um Buñuel para se declarar um anarquista. Um acontecimento brasileiro, um complexo
equívoco transformado em mártir e herói como Tiradentes. Esta identificação se reflete em
Painel, documentário sobre o duvidoso mural de Portinari, no Colégio de Cataguases, por
sinal terra de Humberto Mauro (Rocha, 2003, p. 88).

Glauber encontra no uso da comparação com outras artes – principalmente com


a nossa canônica literatura – a forma de inserir os feitos dos novos autores do nosso
cinema no horizonte de um mundo cultural brasileiro mais amplo. Em sua história
projetada ficavam de fora eventuais cineastas que não pudessem ser rapidamente iden-
tificados com um mundo das artes e da autoria. Olhando em retrospecto a dinâmica
cultural do Brasil, Glauber enxergava em alguns cineastas que o antecediam os lances
de um talento individual, sem que isso constituísse o arcabouço de fato para um sistema
cinematográfico mais estável, tal como a literatura já gozava. No caso de Lima Barreto,
a literatura vem para atestá-lo como um cineasta anacrônico. Os feitos deste em nada,
ou quase nada, possuem correspondência com seus contemporâneos mais valorizados
de expressões artísticas mais tradicionais. Como bem observou Ismail, Glauber extrai
o perfil deste cineasta buscando demonstrar sua falta de “visão histórica” e “postura
crítica” (XAVIER, 2003, p. 14).
Embora Glauber reconheça no cineasta Lima Barreto sua afinidade com certo “nacio-
nalismo verde-amarelo-geográfico” (ROCHA, 2003, p. 90) presente em 1922, tal empatia,
no entanto, pouco valor teria frente às novas circunstâncias de produção. A época já é
outra e o crítico notaria: “Lima Barreto surgiu tarde” (ROCHA, 2003, p.90). Se ele vê, não
de modo positivo, marcas retóricas de um Castro Alves ou de um Euclides da Cunha
em Lima Barreto, “as tintas fortes apenas”, é porque Glauber enxerga no cineasta de
O Cangaceiro um exagero e uma tendência ao monumental. Tão só um legítimo repre-
sentante de um academicismo que num mundo da arte moderna já poderia ser dado
como morto e sepultado. Trata-se, por assim dizer, de uma retórica de esvaziamento
das questões de fundo mais pertinentes, em nome de uma ambição por certo requinte
de expressão quase sempre mistificadora.
A inspiração de Glauber no livro não é por qualquer modernismo literário. O autor
de Revisão se espelha na sua vertente mais engajada. Não é coincidência que no centro

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Hipóteses em torno de Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, de Glauber Rocha: militância e liderança, pari passu

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do seu olhar esteja a valoração de exemplares do nosso romance social dos anos 1930 e
suas variações posteriores. Graciliano Ramos é a mentalidade em contraponto ao homem
de cinema Lima Barreto: “sua obra é desmistificante. Seco, impiedoso, cruel, Graciliano
Ramos já tinha retirado os véus da pátria amada: foi parar na cadeia” (ROCHA, 2003,
p. 89). Em sentido contrário, Lima Barreto é o autor da técnica empolada, aquele que, a
exemplo de seu documentário Painel (1951) sobre o mural Tiradentes, de Cândido Portinari,
orquestra a música heróica em aliança ao “texto vibrante de professor comemorando,
ante a ingenuidade da infância, as glórias de Caxias e Deodoro. Um artesanato mecâ-
nico, certinho, gramatical, paginando ao gosto da burguesia que, naquele tempo, já
gostava de arte moderna e muito mais de Portinari” (ROCHA, 2003, p. 89). Como se
nota, distinto de Graciliano, Portinari, embora modernista, não é tratado por Glauber
com mesma devoção. Com uma interpretação da Inconfidência que compreendia tal
fenômeno sob os impasses, tão-somente, das alterações das formas de poder na América
Portuguesa sobre as minas de ouro, deixando de ser da alçada portuguesa e passando
a ser dos interesses de tais “poetas-juristas”, Glauber encara a obra de Portinari, e no
mesmo plano o documentário de Lima Barreto, que, ambos, deixam-se escorrer por um
falso heroísmo histórico.
Lima Barreto era a mostra do atraso do cinema brasileiro, que chegara ao tema do
cangaço apenas em 1953, com O cangaceiro. Chegou, porém, às avessas e sem ter buscado
uma interpretação já presente nos romances de cangaços. Fora do tempo, chegou num
momento em que o tema já era dominado por completo na literatura mais valorizada
pelo crítico: vide José Lins do Rego. Chegou sem compreender os romances populares
nordestinos. Seu equívoco foi ter buscado ambientá-lo longe destes mundos e, assim,
criou um drama em bases do convencionalismo do filme de aventuras de exaltação
romântica. Aquele cangaço tratado no mundo literário era deixado para trás: o “fenômeno
de rebeldia místico-anárquica surgido do sistema latifundiário nordestino, agravado
pelas secas, não era situado” (ROCHA, 2003, p. 91). Ficavam as matizes das artificiais
cores do céu da contraluz de Chick Fowle; ficava o forjado Nordeste nos limites dos
estúdios da paulista Vera Cruz; conservava-se o espírito melodramático e o seu lado
de facilidades pitorescas, relação com o cinema de massas americano. Em um de seus
últimos comentários, Glauber, mais uma vez, o traria dentro dos limites da comparação
com a literatura: Lima Barreto transformara-se num digno retumbante do academicismo,
digno das láureas do nosso parnasianismo. Um verdadeiro antípoda para os moços do
novo cinema.
Com igual energia, porém em outro vetor, ele vai posicionar seus diletos em páginas
à frente do livro. Momento em que inicia sua saga sobre a formação do Cinema Novo.
A seguir, chamo a atenção para dois cineastas tratados por ele.
Nelson Pereira dos Santos, um pouco mais velho que os jovens da geração de
Glauber, é exemplo para todos. O esforço de Rio, 40 graus, no final dos anos 1950, é visto
como porta de entrada para o mundo de um cinema brasileiro engajado, uma linha-
gem de filme social que não era evasivo em sua perspectiva crítica de tratamento do
mundo popular. Na perspectiva adotada no livro, trazia-se a lume um tipo de cinema e
filme que se trançava à nossa melhor tradição de romancistas. Outra vez, a medida de
comparação é o romance social, embora não qualquer um deles. Nelson para o cinema

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Hipóteses em torno de Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, de Glauber Rocha: militância e liderança, pari passu

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seria comparável a Graciliano: homens que nutriam o desprezo pela forma retórica,
homens de retratos “sem retoques de uma realidade cruel” (ROCHA, 2003, p. 105). Se
falar do italiano diretor de cinema Luchino Visconti de La terra trema é motivo para
trazer à tona o escritor Giovanni Verga, com Nelson em relação a Graciliano as coisas
não eram diferentes.
O estilo de Graciliano Ramos tem também sua versão entre os cineastas de mes-
ma idade de Glauber. Paulo Saraceni e seu filme Porto das Caixas foram privilegiados
em outra passagem do livro. Afinal, como escreveu em Revisão, “Saraceni ambiciona
fazer filmes como se escrevesse romances” (ROCHA, 2003, p. 141). Isso, todavia, não
significaria dizer que o gesto do cineasta se resumiria às suas intenções literárias no
fazer dos filmes, espécie de transposição da literatura para as telas. Longe disso. A
autenticidade de Saraceni, na perspectiva de Glauber, é resultado da valorização do
mundo cinematográfico pela sua própria característica de força de expressão e novidade
naquele momento, cujos saldos mais interessantes poderiam ser notados na exploração
de valores que antes foram amplamente explorados pela literatura de não muito atrás.
Pelos artigos em jornais do crítico baiano e por seus diálogos em carta, Saraceni já
vinha antes sendo sublinhado como um dos grandes talentos entre os mais jovens. Era
o caso de Arraial do cabo, o curta-metragem documentário que levou Saraceni à Europa,
cuja repercussão apontava-o como um dos representantes de uma nova mentalidade
que surgia no cinema brasileiro, um dos principais estouros intelectuais desta nova
geração (Cf. ROCHA, 8 jul. 1961, p. 7; ROCHA, 12 ago. 1961, p. 4.). Era o caso do que dizia
aos seus interlocutores epistolares. Em carta a Jean-Claude Bernardet, no mesmo ano
de publicação do livro, Glauber chama a atenção do crítico para a figura de Saraceni,
definindo-o no seguinte plano: “É um artista, um excelente diretor, sabe a ‘mise em
scène’, vive a ‘mise em scène’. É a ‘mise em scène’, se você me permite” (ROCHA, 1997,
p. 180). Daí para fazê-lo eleito como um legítimo representante do intercâmbio entre o
mundo literário e o cinematográfico não foi difícil, como se deve imaginar.
Leve-se em conta que em Revisão crítica o autor aposta na investigação dos estilos
de cada um dos seus favoritos. Definir um novo estilo para o cinema brasileiro depen-
deria de tal investida e estratégia. Com isso em mente, Glauber explorou a qualidade
de estilo de Porto das Caixas para a partir dela, a qualidade deste estilo, conectar as
duas formas de expressão artística, de dois campos culturais distintos, porém ligados.
Veja-se uma das hipóteses reveladas por Glauber. Saraceni, embora com argumento
original de Lúcio Cardoso e tendo recebido formação literária deste e de Octavio de
Faria, havia realizado uma versão muito pessoal de Angústia de Graciliano. Primeiro,
chama a atenção para as abordagens comuns, entre uma e outra obra: “enquanto em
Angústia, o pobre e amargurado Luiz da Silva concentra no gordo capitalista Julião
Tavares todo o seu ódio e lhe imputa as responsabilidades das desgraças sociais, evo-
luindo maciçamente para o crime por enforcamento – a mulher de Porto das Caixas
procede da mesma forma em relação ao marido” (ROCHA, 2003, p. 141). Em seguida,
o grau de comparação dá-se pelos estilos entre uma e outra arte, criando graus de
equivalências entre literatura e cinema: o estilo seco e analítico de Graciliano encon-
tra correspondência no ritmo executado pelo filme de Saraceni que se manteve longe
das metáforas fáceis e, num gesto ousado, pôde eliminar o artificialismo do suspense,

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Hipóteses em torno de Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, de Glauber Rocha: militância e liderança, pari passu

Arlindo Rebechi Junior

indicando que haverá, sim, o crime da mulher face ao marido. Em pauta, estava a
exploração da mulher, mas não só ela. Institucionalizava-se também a análise daquilo
que gerou uma tonalidade ao filme, cuja reciprocidade de relações estava presente na
nossa literatura sem artificialismos, saldo de uma alta depuração na relação com sua
matéria-prima, a palavra. Caso de Graciliano.

3. NOTA FINAL
Mesmo que sua aposta em Revisão Crítica recaia sobre a “política de autores” – aliás,
ele já delineava tal política em seus artigos de jornais –, o recurso para desvelar o estilo
destes autores é atestar, perante a literatura, por meio das comparações e intercâmbios
com esta, a significação cultural de cada obra e autor da nova geração de cineastas.
Glauber usava sua experiência de mediação com o mundo literário para construir
o discurso de relevância e inserção do novo cinema. Tratava-se, entre outras coisas, de
um moderno projeto de alavancar a importância da autonomia necessária à nova arte e,
assim, divulgá-la em cada beco de um mundo cultural ainda restrito e, de certa forma,
conservador para o tipo de empreitada. Curioso notar que, paradoxalmente, enfrentar
tal defesa dependeria de sua experiência em outro ramo da cultura. Dependeria o
modo como promoveria o debate do cinema brasileiro com ambições artísticas dentro
da nossa modernista tradição de literatura, em maior grau, e da nossa tradição pictórica
modernista, em menor grau.

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Rocha, G. (1961, 12 de agosto). Arraial, cinema novo e câmara na mão. Suplemento Dominical
do Jornal do Brasil (SDJB), Rio de Janeiro (RJ), p. 4.
Rocha, G. (1961, 8 de julho). Cinema novo e cinema livre. Suplemento Dominical do Jornal do
Brasil (SDJB), Rio de Janeiro (RJ), p. 7.
Rocha, G. (1997). Cartas ao mundo. Org. Ivana Bentes. São Paulo: Companhia das Letras.
Rocha, G. (2003). Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac Naify.
Vários Autores. Fortuna crítica. In: Rocha, G. (2003). Revisão crítica do cinema brasileiro. São
Paulo: Cosac Naify.
Xavier, I. Prefácio. In: Rocha, G. (2003). Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac
Naify.

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Trajetos do cinema de baixo orçamento no Brasil
Trajectories of the low-budget film industry in Brazil
Karine dos Santos Ruy1

Resumo: O objetivo desta proposta é investigar questões de ordem econômica


e sócio-cultural que delineiam a realização de filmes de longa-metragem de
baixo orçamento no Brasil.  procuraremos discutir os pontos mais relevantes do
cenário da produção e da circulação cinematográfica localizada na contramão do
ambiente hegemônico do mercado audiovisual, caracterizado pela onipresença de
filmes blockbusters, operação de distribuidoras majors e, mais recentemente no
caso brasileiro, intensa referência à linguagem e estética televisiva e valorização
do marketing crossmídia a partir da consolidação da Globo Filmes.  O cinema de
baixo orçamento opera com a limitação de recursos, com constante dificuldade
de acesso a fontes de financiamento e, seu ponto mais sensível, da inserção
em circuitos de exibição. Ao mesmo tempo, percebemos que é nesse contexto
de produção que o cinema brasileiro contemporâneo vem desenvolvendo
possibilidades de inovação e diferenciação artística, encontrando eco na crítica
especializada e no circuito de festivais. 
Palavras-Chave: Indústria cinematográfica. Baixo orçamento. Economia do
cinema.

Abstract: The goal of this proposal is to investigate the issues of an economic,


social and cultural order that influence the production of low-budget feature
films in Brazil. We shall look to discuss the more relevant points of the film
production and circulation scenario set against the domineering tide of the
audiovisual market, characterized by the omnipresence of blockbuster films, the
operation of major distributors and, more recently in the case of Brazil, intensive
reference to television language and aesthetics and increased value of crossmedia
marketing through the establishment of Globo Filmes. The low-budget film
industry operates with limited resources, facing constant difficulty in accessing
sources of financing and, at its most sensitive point, insertion into screening
circuits. Simultaneously, we note that it is within this context of production that
contemporary Brazilian cinema has been developing possibilities for innovation
and artistic differentiation, echoed within specialized critic and festival circuits.
Keywords: Film industry. Low budget. Cinema economy.

1.  Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUCRS. Bolsista Capes.


karineruy@gmail.com.

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5900
Trajetos do cinema de baixo orçamento no Brasil

Karine dos Santos Ruy

BAIXO ORÇAMENTO – A BUSCA POR UM CONCEITO

O MODELO DE cinema representado por Hollywood, pelos estúdios e pelas distribui-


doras majors consolidou-se como o principal sistema da indústria cinematográfica
em função da visibilidade e sucesso comercial dos seus filmes. Entretanto, existem
outras formas de se fazer cinema que não envolvem as condicionantes de produção-
-distribuição-exibição previstas pelo padrão Hollywood. Os filmes de baixo orçamento
estão na contramão do mainstream. Inserem-se num grupo de produções nas quais os
processos e ferramentas precisam ser fluidos, adaptáveis, criativos e em constante diá-
logo com as necessidades que um orçamento limitado requer.
Entretanto, baixo orçamento é uma definição frágil, que depende do contexto no
qual o filme está inserido. A possibilidade de se colocar um orçamento cinematográfico
numa escala de valor só é plausível quando se torna objeto de tensionamentos. Baixo
orçamento em relação a quê?, é o questionamento essencial na formulação desta proble-
mática. Afinal, o padrão de recursos financeiros alocados para a realização de um filme
depende do sistema de produção empregado, das tecnologias envolvidas, do formato, do
gênero, entre outros elementos. Exemplificando, seria incoerente e impreciso comparar
o orçamento de um longa-metragem de ficção científica produzido por uma companhia
major com um documentário rodado com câmeras amadoras por uma equipe enxuta
na África do Sul.
Um dos conceitos mais interligados a essa temática é do cinema independente
e da sua noção de oposição a um sistema predominante. Entretanto, o conceito de
“independente”, para ser válido, perpassa uma série de condições além da dicotomia
sistema – contra-sistema. Refletindo sobre o significado da expressão, que diz respeito à
possibilidade de autonomia em relação à ordem social, econômica cultural e simbólica,
Creton conclui que a independência absoluta é uma ficção.
A relação no mundo é de interdependência, cada um com um poder de influência. A questão
essencial que permanece a porta da sua natureza, são o grau e as modalidades retidas por
cada um para a exercer, para resistir. A independência revela mais o mito, a questão a tratar
no mundo concreto é de reconhecer o jogo das dependências, julgar, escolher, administrar.
(Creton, 1998, p. 11, tradução nossa).

A partir da advertência dos limites carregados pela expressão, o que pode ser
investigado no panorama das práticas cinematográficas são graus de independência,
modos e formas que, em alguma(s) instância(s), desconectam o filme dos padrões
usuais. É na imprensa especializada dos Estados Unidos que começa a difusão da
categoria “cinema independente”, sempre com polêmicas em torno da abrangência do
conceito. Em artigo publicado na American Film em 1981, Annette Insdorf defendeu como
independente as obras não comerciais e que compartilhassem elementos dos filmes de
arte. Em publicação mais recente, ela reafirma seu ponto de vista sobre a influência
do cinema de autor e do estilo europeu na concepção de cinema independente. Como
exemplo cita Nother Ligths, filme dirigido por John Hanson e Rob Nilson premiado com
a Câmera de Ouro no Festival de Cannes em 1979. Os diretores chegaram a iniciar uma
negociação com alguns estúdios sobre a produção do filme, mas optaram por não seguir
adiante para garantir o controle artístico da obra.

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Trajetos do cinema de baixo orçamento no Brasil

Karine dos Santos Ruy

O que distingue Northern Lights e numerosas outras independentes de recursos dos pro-
dutos de Hollywood é a combinação de elementos tais como elenco, estilo cinematográfico,
e visão social ou moral. Confrontando grandes estrelas com novos rostos, grandes nego-
ciações com telas íntimas, a grandes estúdios com autenticidade regional, estes cineastas
tratam preocupações americanas com estilo europeu. Na sua escolha de forma e métodos
de trabalho, na sua urgência por registrar assuntos raramente vistos em filmes comerciais,
esses diretores politicamente sensíveis e geograficamente enraizados resistem às prioridades
e potencial de absorção de Hollywood. (Insdorf, 2005, p.29, tradução nossa).

A partir da década de 1950 ganha destaque nos Estados Unidos a perspectiva de


cinema independente enquanto mecanismo não integrado às majors da indústria. O
período foi especialmente favorável para os independentes em função do novo ambiente
regulatório da indústria cinematográfica. Desvinculadas da exploração das cadeias
de cinemas, os grandes estúdios começam a investir mais em um menor número de
produções, oportunizando que novas empresas passassem a explorar gêneros que se
tornam escassos, como westerns e filmes de ação (SUPPIA, PIEDADE, FERRARAZ, 2008).
Verificam-se também outras formas de uso da expressão cinema independente
que aparecem descoladas da noção de oposição ao sistema de produção-distribuição-
exibição dominante. Popularizada sobretudo pela mídia especializada, a mais usual faz
referência ao poder de decisão que certos diretores/cineastas possuem sobre suas obras.
Aqui, cinema independente expressa a autonomia artística do sujeito autor diante do
sistema de produção. “Os Spielberg e Lucas oferecem a imagem de um poder de ação
no seio da indústria hollywoodiana”, exemplifica Creton (1998, p. 12). A definição que
o cineasta norte-americano John Sayles também se mostra ilustrativa para essa outra
perspectiva do conceito.
Não importa como é financiado, não importa quanto alto ou baixo é o orçamento, para
mim um filme independente emerge quando diretores começam com uma história que eles
querem contar e encontram uma maneira de fazer aquela história. Se eles acabam fazendo
no sistema de estúdios e se a historia e é a história que eles querem contar, está tudo bem.
Se eles acabam conseguindo o dinheiro de fontes independentes, se eles acabam usado o
cartão de crédito da mãe, isso não importa. (Sayles apud Carson, 2005, p. 129, tradução nossa).

Uma pesquisa sobre cinema de baixo orçamento no Brasil se depara com uma série
de conceitos que, em comum, demonstram o interesse de apreender teoricamente os
filmes realizados na contramão do sistema industrial. Cinema de guerrilha, cinema de
borda, cinema de garagem, cinema independente são alguns dos termos que parecem,
num primeiro momento, falar o mesmo de um objeto em comum. Contudo, entendemos
nesse estudo que apesar de o cinema de baixo orçamento compartilhar algumas
características trazidas por esses conceitos, esses termos não são sinônimos e não devem
ser empregados indevidamente sem observar-se as especificidades do modelo de prática
fílmica a que cada um se refere. No panorama contemporâneo, a efervescência de novos
conceitos ou tentativas de agrupamento que carregam a áurea do “independente”, seja
em estudos acadêmicos, livros ou festivais, demonstra um esforço em compreender um
certo fenômeno do cinema brasileiro atual: a inovação e a diferenciação artística estariam

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Trajetos do cinema de baixo orçamento no Brasil

Karine dos Santos Ruy

muito mais nos filmes realizados na oposição do sistema cinematográfico dominante.


Aumont (2012) oferece algumas pistas sobre o cinema que não se enquadra nos modelos
de produção tradicionais.
Entre Hollywood, seus derivados e concorrentes, por um lado, e as bricolagens mais ou
menos “feitas em casa” de cineastas cuja produção às vezes se avizinha do cinema particu-
lar (é o caso de muitos “experimentais”), existem as pequenas empresas artesanais, as de
cineastas-produtores que, para cada novo filme, devem buscar, ao mesmo tempo, o material
intelectual e artístico e os meios econômicos e institucionais. (p. 161).

Os filmes contemporâneos concebidos no modo de produção artesanal, tal qual


define Aumont, realizados por uma nova geração de cineastas e que vêm ganhando
destaque no panorama de festivais receberam, a partir da crítica especializada, a definição
de “novíssimo cinema brasileiro”. A nomenclatura, hoje difundida em mostras e mesas
de debates pelo país – o Novíssimo cinema brasileiro, realizado pelo Cinema da USP Paulo
Emílio (Cinusp), chegou a sua terceira edição em 2014 e a sessão Cinema Novíssimo, criada
no Rio de Janeiro, deu origem à Semana dos Realizadores, já na sexta edição – também
foi fecundada na Mostra de Cinema de Tiradentes, constantemente apontada como o
berço dessa nova geração de realizadores. Apontada mas também autoreferenciada
em tal papel, como demonstra a abertura do release divulgado à imprensa em 2011, no
encerramento da 14ª edição do evento: “O Novíssimo Cinema Brasileiro, que sempre teve
na Mostra de Cinema de Tiradentes sua principal vitrine e ponto de encontro, mostrou
uma vez mais seu imenso vigor nesta 14a  edição do evento (...)”. Para Oliveira (2014),
a tentativa de uma nova categorização da produção cinematográfica brasileira traz os
riscos comuns ao emprego de qualquer rótulo no campo artístico.
O uso da etiqueta “novíssimo” cinema, no entanto, não é visto como adequado por muitos
realizadores e críticos, já que há uma hesitação em consolidar essa produção como um movi-
mento, um grupo ou mesmo uma geração – o que se justifica pelo fato de não ser possível
identificar uma unidade estética e temática no conjunto de filmes em questão. Não há um
“programa” em torno do qual esse cinema se organiza, e os próprios grupos e realizadores
não se apresentam como movimento. (Oliveira, 2014, p. 10)

Essa hesitação aparece no depoimento do cineasta Fernando Coimbra, diretor de O


lobo atrás da porta, ao jornal El Pais quando questionado sobre a existência de um novo
ciclo do cinema brasileiro:
Eu não acho que pertenço a nenhum grupo. Mas tenho muitos amigos cineastas que, como
eu, começaram fazendo curtas e agora filmaram seus primeiros longas. Não somos um
movimento organizado como foi o Cinema Novo nos anos 60, mas pertencemos à mesma
geração e temos coisas em comum; como o interesse por flertar com qualquer gênero e
tratar não apenas de temas sociais, de pobreza e violência, mas falar também de amor, de
relações, da classe média... (Crespo, 2014)

O debate em torno do cinema brasileiro contemporâneo também encontrou respaldo


no Cinema de Garagem, idealizado por Dellani Lima e Marcelo Ikeda. O projeto nasceu
em 2011 com o lançamento do livro Cinema de garagem, um inventário afetivo sobre o jovem

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Trajetos do cinema de baixo orçamento no Brasil

Karine dos Santos Ruy

cinema brasileiro do século XXI (LIMA, IKEDA, 2011). No ano seguinte, com apoio do edital
da Caixa Cultural, a dupla realizou a mostra Cinema de Garagem no Rio de Janeiro,
com a exibição de 25 longas, 25 curtas e mesas de debates.
Outra conceituação possível que encontramos vem de Migliorin (2011), para quem
existe, numa parcela dos filmes brasileiros contemporâneos, a essência de um cinema
pós-industrial.
Não estamos diante de filmes industriais, fechados ao descontrole dos processos. Há uma
velocidade de produção, uma garantia de meios já instalados e uma estética mesmo, distante
dos roteiros que a indústria exige, que nos demanda novas formas de presença estatal se
desejarmos potencializar essas produções, esses processos.  Se na era industrial os primei-
ros longas precisavam de muito dinheiro para serem produzidos, hoje vemos cineastas
partindo para o terceiro longa-metragem sem nunca ter tido dinheiro público. (Migliorin,
Cinética, 2011).

O autor percebe a consolidação de uma nova engenharia de produção que se afasta


da organização inspirada no esquema industrial – a da linha de montagem com muitos
integrantes em muitas funções – para uma prática mais colaborativa, marcada por
arranjos simplificados e definidos conforme a necessidade de cada projeto.

OS FILMES B.OS BRASILEIROS – QUESTÕES DO MERCADO


CINEMATOGRÁFICO
No panorama das políticas de fomento ao cinema no Brasil, o filme de baixo orça-
mento aparece pela primeira vez como uma categoria de produção específica no Edital
de Longas-metragens de Baixo Orçamento, lançado pela Secretaria do Audiovisual
do Ministério da Cultura em 2000. A criação desse edital surge em resposta ao artigo
manifesto Por um cinema Brasileiro de Baixo Orçamento, assinado por Fernão Ramos, Maria
Dora Mourão, Mauro Baptista e João Lanari e lançado em 1999 após o III Encontro Anual
da SOCINE (Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual). No texto, os
autores reivindicavam o desenvolvimento de políticas culturais que valorizem o filme
de baixo orçamento (na oportunidade entendidos como um custo médio de R$ 500
mil) e também uma linha de financiamento específica para a realização de primeiros
longas-metragens. Outro manifesto que destaca o papel do filme de baixo orçamento é
a Carta de Tiradentes, lançada em 2011 na 14ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes
por aproximadamente 50 produtores e realizadores.
Queremos uma política pública que reconheça os novos modelos de produção, que distribua
melhor os recursos já existentes de modo a ampliar o escopo do fomento, que desenvolva
políticas efetivas de distribuição e exibição, que avance na estruturação comercial do setor,
na democratização da produção e do consumo dos bens culturais, e que aposte no cinema
como janela privilegiada para o desenvolvimento e a soberania. (Carta de Tiradentes, 2011)

Na carta, o grupo propõe “criar linhas específicas de fomento para formatos de


produção que primem pela inovação técnica e artística, com orçamentos de menor porte”
e “desenvolver uma política de fomento específica para a distribuição e exibição de filmes

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Trajetos do cinema de baixo orçamento no Brasil

Karine dos Santos Ruy

de baixo orçamento, incentivando a estruturação comercial de empresas distribuidoras


que se dediquem a este segmento”.
A especificidade do filme de baixo orçamento também aparece em editais regionais
exclusivos para esse modelo de produção. E em cada um estabelece-se uma margem de
valores diferenciada para enquadrar as produções BO. Em 2012, a Secretaria de Estado
da Cultura do Rio de Janeiro lançou pela primeira vez um edital de Produção de baixo
orçamento, voltado para longas-metragens, com teto de investimento de R$ 400 mil
para ficção e animação e R$ 200 mil para documentário2. No mesmo ano, a Secretaria
Municipal de Cultura de São Paulo realizou uma seleção para co-patrocínio de longas-
metragens de baixo orçamento, considerado no edital como “a obra audiovisual inédita,
destinada a exibição no mercado e cujo custo de produção não ultrapasse o valor de até
R$ 1.500.000,00” (Edital n.º004/2012/SMC).
Em 2014, a Secretaria da Cultura do Rio Grande do Sul também criou uma catego-
ria específica para baixo orçamento no edital RS Polo Audiovisual – Produção em longa-
-metragem. Nessa chamada pública, foi aberta seleção de quatro projetos de ficção ou
animação, destinando-se a quantia de R$ 500 mil para cada filme. Para concorrer nessa
categoria, os projetos deveriam ter orçamento total (incluindo outras fontes de captação)
de no máximo R$ 1 milhão.
Outra forma de tentar identificar os padrões orçamentários dos filmes de longa-
-metragem brasileiros é a partir da captação alcançada pelos projetos em editais ou
recursos incentivados, dados reunidos no Observatório do Cinema e do Audiovisual
(OCA) pela Ancine. Entre 2003 e 2013 foram lançados 301 filmes com captação inferior
a R$ 1 milhão ou nenhuma captação alcançada e 194 filmes sem solicitação registrada
na Ancine, produções essas que entendemos aqui como potencialmente de baixo orça-
mento3 segundo os critérios da nossa pesquisa. Potencialmente, frisa-se novamente,
pois os estudos da
OCA são limitados às informações sobre determinados mecanismos de incentivo
gerenciados pela Ancine e não contemplam outras possíveis fontes de financiamento.
A produção cinematográfica de longa-metragem brasileira realizada nesse contexto de
financiamento privilegia o gênero documentário, que aparece concentrado nessa faixa
de recursos: ao que demonstram os indicadores de captação da Ancine no período,
173 do total de 308 documentários lançados tiveram captação inferior a R$ 1 milhão e
104 não solicitaram captação. Já quando olhamos a relação total de lançamento nesse
período, sem delimitar o teto de captação, vemos que a ficção é o gênero mais presente.
A preponderância de filmes documentários entre aqueles de baixo orçamento demonstra
que o gênero, por suas características intrínsecas, permite operar com menos recursos
financeiros que em uma ficção por possibilitar – e muitas vezes exigir – a atuação de
equipes enxutas e dispensar custos como de elenco e cenário.

2.  Disponível em: <http://www.cultura.rj.gov.br/materias/lancado-novo-programa-de-editais-da-


secretaria-de-estado-de-cultura-para-o-setor-audiovisual>. Acesso em: 20 de Julho de 2014.
3.  Foram retiradas dessa análise aquelas produções identificadas pela pesquisa como de médio e alto custo:
Os Normais 2 (José Alvarenga Jr., 2009), Lula, O filho do Brasil (Fábio Barreto, 2009), Na estrada (Walter Salles,
2012), Ilha Rá-tim-bum – O martelo de Vulcano (Eliana Fonseca, 2003), O filme dos espíritos (André Marouço e
Michel Dubret, 2011), Linha de Passe (Walter Salles e Daniela Thomas, 2008), Lixo extraordinário (João Jardim,
Karen Harley e Lucy Walker, 2011).

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Trajetos do cinema de baixo orçamento no Brasil

Karine dos Santos Ruy

Os gargalos do eixo distribuição-exibição


Ao falarmos da distribuição do filme brasileiro, tomando o cenário contemporâneo
para observação, sobressaem-se para investigação três questões profundamente inter-
ligadas: a) a intensificação de uma produção fílmica com apelo comercial; b) a consoli-
dação da Globo Filmes no mercado nacional; c) a relação entre o perfil orçamentário da
obra e sua inserção no mercado, que origina uma quase invisibilidade dos filmes B.O.
Nos últimos anos, vemos crescer, mesmo que de forma irregular, o número de filmes
brasileiros que atingem mais de um milhão de espectadores4. O que está por trás do
aumento do market share do filme nacional, que passou de 10,7% em 2012 para 18,6% em
2013, é o investimento em produções que oferecem maior potencial de diálogo com o
público. Não por acaso entre os sucessos comerciais recentes tem-se uma leva de filmes
adaptados de outros produtos culturais, sequências e sobretudo, uma intensa aproxi-
mação da linguagem e da estética televisiva. Essa característica que marca os últimos
dez anos do mercado cinematográfico brasileiro é o reflexo da atuação da Globo Filmes
no setor e da sua capacidade de provocar desequilíbrio entre as formas de produção e
resultados de público/bilheteria dos filmes brasileiros.
Os filmes de baixo orçamento não se inserem no rol de produções amparadas por
agentes financeiros e midiáticos capazes de investir em um sistema de distribuição que
possibilite uma visibilidade qualitativa no circuito exibidor – incluindo-se aí as estra-
tégias de marketing e propaganda necessárias pra atrair a atenção do público-alvo em
meio a disputa entre diversos títulos em cartaz. Os números da distribuição e exibição
do mercado brasileiro apontam para uma posição de marginalidade da principal parcela
dos filmes brasileiros no circuito de salas – característica acentuada no modelo B.O. Dos
387 longas brasileiros potencialmente de baixo orçamento (aqui entendidos com captação
abaixo de R$ 1 milhão ou nenhuma captação registrada pela Ancine) lançados entre
2003 e 2013, 282 se concentram na faixa de até 10 mil espectadores, sendo que 113 desses
títulos foram vistos por menos de mil pessoas no circuito de exibição. A problemática
da distribuição, histórica e não exclusiva da cinematografia brasileira, fica evidenciada
no informe anual de Distribuição de Salas divulgado pela Ancine em 2014 (Gráfico 1).
Vemos ali como a evolução no número de lançamentos de filmes brasileiros não vem
acompanhada de uma maior circulação dessas produções.
Mas uma avaliação puramente economicista do consumo cinematográfico em seu
ambiente de exploração mais nobre (a sala de cinema) é insuficiente para revelar a
representatividade dos filmes de baixo orçamento no panorama da cinematografia
brasileira contemporânea. O impacto social e cultural da produção fílmica precisa
também levar em consideração a trajetória artística que essas obras alcançam, sobretudo
sua inserção no circuito de festivais e na mídia através da crítica especializada. Os
festivais internacionais de cinema operam como espaços de consagração artística e
também formatam uma importante vitrine para a comercialização dos filmes. Além de

4.  Em 2011, estreou nas salas brasileiras aquele que se tornaria o filme nacional com maior público na
história do país, Tropa de Elite 2, que registrou mais de 11 milhões de espectadores. O filme dirigido por
José Padilha que trazia novamente às telas uma trama policial/social encabeçada por Capitão Nascimento,
o truculento policial do BOPE interpretado por Wagner Moura que caiu nas graças do público. Na semana
da estreia, não era raro encontrar nos complexos multiplex extensas filas de espectadores à espera da
próxima sessão, sempre concorrida.

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Trajetos do cinema de baixo orçamento no Brasil

Karine dos Santos Ruy

Gráfico 1: Quantidade de filmes brasileiros por faixa de salas no lançamento

Fonte: Ancine

Cannes e de Berlim, o circuito internacional de festivais contempla eventos de Sundance,


Veneza, Toronto, Rotterdam e Locarno, para citar alguns. Na avaliação da produtora
Sara Silveira, a inserção de um filme nesses festivais representa uma ampla divulgação
associada à possibilidade de ampliar o circuito de exibição da produção.
Depois que Cinema, Aspirinas e Urubus foi exibido na mostra Un certain regard e recebeu o
Prêmio da Educação Nacional do Ministério da França em Cannes, o filme foi vendido para
22 países, enquanto no Brasil fez só 150 mil espectadores. O festival te gera mídia espontânea,
aquela publicidade que você não teria dinheiro para pagar. (Silveira in Sala de Cinema, 2010).

O reconhecimento do papel estratégico dos festivais na promoção dos cinemas


nacionais e em oportunidades de negócios figura na criação de programas específi-
cos para a visibilidade do filme brasileiro no exterior. O Programa Cinema do Brasil,
implementado pelo Sindicato da Indústria Audiovisual do Estado de São Paulo (SIAESP)
e vinculado à Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-
Brasil), foi lançado em 2006 com o objetivo de “ampliar a participação do audiovisual
brasileiro no mercado internacional”. O programa atua, sobretudo, através de rodadas
de negócios e da participação em eventos de negócios paralelos aos festivais, incluindo
o Marché du Film (Festival de Cannes) e European Film Market (Festival de Berlim).
A circulação internacional do filme brasileiro também entrou na pauta da Ancine, que
em janeiro de 2014 lançou o Programa de Apoio à Participação de Filmes Brasileiros em
Festivais Internacionais e de Projetos de Obras Audiovisuais Brasileiras em Laboratórios
e Workshops Internacionais. O apoio é dividido em quatro linhas: a) concessão de cópia
legendada, envio de cópia e apoio financeiro para promoção do filme; b) envio de cópia
e apoio financeiro; c) confecção de cópia legendada e envio de cópia; d) envio de cópia.
Para 2014, foram credenciados 80 festivais e 27 laboratórios/workshops.

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Trajetos do cinema de baixo orçamento no Brasil

Karine dos Santos Ruy

Entretanto, é preciso chamar a atenção para a existência de um descompasso entre


a recepção do circuito artístico e do circuito exibidor, lembrando, de alguma forma, a
proposta de Bourdieu sobre a existência do campo de produção erudita e o campo da indústria
cultural (2005).   Em outras palavras, o sucesso de uma obra em mostras e festivais não se
reverte, necessariamente, em maior público nas salas de cinema do país. Uma evidência
é a trajetória dos 52 filmes premiados pelo Programa de Incentivo à Qualidade do
Cinema Brasileiro entre 2006 e 2012. Desses, exatamente a metade se concentra na faixa
de público entre 20 mil e 100 mil espectadores; 15 foram vistos por até 20 mil pessoas,
seis por um público entre 100 e 500 mil e quatro por mais de 500 mil pessoas – incluindo
aí os fenômenos de bilheteria Tropa de Elite e Tropa de Elite 2.
Tomemos para ilustração os filmes Viajo porque Preciso, Volto porque te Amo e O Cheiro
do Ralo. Com orçamento de produção de R$ 450 mil, Viajo porque Preciso, Volto porque te
Amo, dirigido por Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, foi o filme melhor classificado no
Programa de Incentivo à Qualidade em 2012. A obra que se apropria de imagens em
câmera super 8 captadas dez anos antes ao acompanhar a incursão do geólogo José Renato
(Irandhir Santos) pelo sertão nordestino ganhou dois prêmios no Festival de Havana
(terceiro principal Coral do evento, de Melhor Filme, e o segundo prêmio de Melhor
Trilha Sonora) e no Festival do Rio (melhor fotografia e melhor diretor) e recebeu quadro
indicações ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. Outro destaque do filme também foi
sua apresentação no 66º Festival de Veneza durante a seção paralela Horizontes, destinada
às produções de pesquisa de linguagem cinematográfica.
O Cheiro do Ralo, segundo longa de Heitor Dhalia, também teve repercussão posi-
tiva nos festivas por onde passou – recebeu o Prêmio da Crítica Internacional e Prêmio
Especial do Júri do Festival do Rio, Prêmio do Júri da Mostra de Cinema de São Paulo,
além de ter sido selecionado para a mostra competitiva do Festival de Sundance. O filme
recebeu autorização da Ancine para captar R$ 1.887.129,24, entretanto os patrocínios
somaram somente R$ 449.957,00. Mas o valor levantado via leis de incentivo só foi utili-
zado na fase final da produção. O diretor iniciou as filmagens com os recursos aportados
por ele e pelos produtores Rodrigo Teixeira, Marcelo Doria, Matias e Joana Mariani.
Comecei a falar em R$ 300 mil, sem ter orçado. Era um completo blefe e todo mundo pen-
sava que era verdade (...) Cada um entrou com cerca de R$ 50 mil, ainda tivemos mais um
prejuízo. Depois conseguimos mais R$ 30 mil, mas tínhamos tanta paranóia do dinheiro
acabar que economizamos R$ 15 mil. Mas não acho que fazer filme com 300 paus seja
modelo. (Simões, 2007)

A bilheteria de Viajo porque Preciso, Volto porque te Amo recuperou aproximadamente


metade do orçamento de produção – além da complementação dos R$ 100 mil vindos do
Prêmio de Incentivo à Qualidade. Já O Cheiro do Ralo mostrou uma trajetória comercial
mais bem sucedida dentro das possibilidades de um filme B.O. O filme ocupou o máximo
de 18 salas – mesmo número de Viajo – mas atingiu maior público e bilheteria: 172.959
espectadores e renda de R$ 1.437.254,00.
A diferença nos resultados comerciais entre as duas produções corresponde
aos próprios nichos de público aos quais estão alinhados. Enquanto Viajo explora a
experimentação da linguagem cinematográfica e situa-se em uma fronteira ambígua

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5908
Trajetos do cinema de baixo orçamento no Brasil

Karine dos Santos Ruy

entre documentário e ficção, O Cheiro do Ralo tem uma composição mais pop, combinada
ao fato de ter como protagonista Selton Melo, ator conhecido no Brasil.
Ao falarmos sobre a relação do filme de baixo orçamento com o público é impor-
tante ressaltar que ao tomar como base os levantamentos do número de espectadores e
bilheteria catalogados pela Ancine nós temos acesso exclusivamente ao circuito comer-
cial, sem abranger outras formas de circulação dos filmes – os festivais, os cineclubes,
as mostras, que representam também uma forma de relação do cinema brasileiro com
o público e, além disso, constituem importantes instâncias de formação de plateia para
filmes nacionais.
Faz-se necessário ressaltar, ainda, que a investigação sobre o cinema de baixo orça-
mento praticado no Brasil envolve uma série de outras questões não amparadas por
essa proposta, como as ferramentas tecnológicas empregadas na realização dos filmes
e o desenvolvimento de novos arranjos produtivos. Mas podemos destacar, diante da
discussão apresentada aqui, que o filme de baixo orçamento ocupa um papel de desta-
que no cinema brasileiro contemporâneo, seja pela trajetória artística de muitas obras
enquadradas nesse perfil econômico quanto reconhecimento dessa categoria no conjunto
das ações de fomento à produção, inclusive no âmbito regional com editais estaduais.
Entretanto, encontramos na distribuição e na exibição, de forma acentuada, dificuldades
comuns às cinematografias não hegemônicas, problemática que coloca à margem do
público uma grande parcela dos filmes de baixo orçamento nacionais.

REFERÊNCIAS
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Bourdieu, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Tradução de Sérgio Miceli. São Paulo:
Perspectiva, 2005.
Carson, Diane. John Sayles, independent filmmaker: ‘Bet on yourself’. In: Holmlund, Chris;
Wyatt, Justin (Org.). Contemporary American independent film: from the margins to the
mainstream. New York: NY Routledge, 2005.
Crespo, Irene. O cinema brasileiro goleia em Nova York. El Pais, Nova York, 10 jul. 2014.
Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/07/10/cultura/1405018654_127314.html.
Acesso em: 13 set. 2014.
Creton, Laurent. De l’indépendance en économie de marché: le paradigme stratégique en
question. In: CRETON, Laurent (Org.). Théorème. Cinema & (in)dépendance – Une éco-
nomie politique. Paris: Sourbonne Nouvelle, 1998.
Ikeda, Marcelo; Lima, Dellani. Cinema de garagem – um inventário afetivo sobre o jovem
cinema brasileiro do século XXI.  Rio de Janeiro: WSET Multimídia, 2011.
Insdorf, Annette. Ordinary people, European-style: or how to spot an independent feature.
In: Holmlund, Chris; Wyatt, Justin (Org.). Contemporary american independent film: from
the margins to the mainstream. New York: NY Routledge, 2005.
Migliorin, Cezar (2011). Por um cinema pós-industrial: notas para um debate. In: Revista
Cinética, fevereiro de 2011.
Oliveira, Maria Carolina. “Novíssimo” cinema brasileiro: práticas, representações e circuitos
de independência. 2014. Tese (doutorado) – Universidade de São Paulo – Departamento
de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. 2014.

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Trajetos do cinema de baixo orçamento no Brasil

Karine dos Santos Ruy

Silveira, Sara. Entrevista com Sara Silveira. Sala de Cinema, 2010. Recuperado e, 8 de agosto,
2014, de: http://contraplano.sesctv.org.br/entrevista/sara-silveira/.
Suppia, Alfredo; Piedade, Lúcio; Ferraraz, Rogério. O cinema independente americano.
In: Baptista, Mauro; Mascarello, Fernando. Cinema Mundial Contemporâneo. Campinas:
Papirus, 2008.
Simões, Eduardo. Freak show – Heitor Dhalia fala da “estética da leveza” que buscou em
“O Cheiro do Ralo”, depois de pesar a mão em “Nina”, seu primeiro longa, fracasso de
público; diretor agora opta por pegada “pop” e a presença do carismático Selton Mello.
Folha de São Paulo, São Paulo, 23 mar. 2007. Recuperado em 10 de março, 2014, de: http://
www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2303200707.htm.

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5910
Novo paradigma nas transmissões televisivas.
A copa do mundo em 4k
New broadcast television paradigm.
The World Cup in 4k
Fernando C. Moura1

Resumo: A última Copa do Mundo Brasil 2014 transformou o paradigma das


transmissões televisivas, não só no país organizador, mas também no mundo.
Com a introdução da tecnologia 4K – 4 vezes HD – o regime escópico dos
telespectadores e seu “habitus” terá de mudar e com ele mudará a produção
destes eventos, com transformações substanciais na retórica do discurso e o seu
conteúdo gerando um discurso narrativo diferente ao que hoje conhecemos.
Neste artigo tentaremos mostrar quais as principais diferenças na narrativa
“futebolística” e como o “padrão” FIFA mudou. Para isso analisaremos o
fenómeno através de observação participante durante a Copa do Mundo e na
Copa das Confederações realizada em 2013. No final mostraremos como o padrão
FIFA difere da retórica discursiva utilizada anteriormente pela própria FIFA, e
como o mesmo palco pode ser objeto de dois discursos diferentes.
Palavras-Chave: 4K. Habitus. Discurso. Narrativa. Retórica

Abstract: The last World Cup Brazil 2014 transformed the paradigm of
television broadcasts, not only in the host country, but also in the world. With
the introduction of 4K technology 4K - 4 HD - the scope regime of television
viewers and their “habitus” has to change and it will change the production
of these events, with substantial change in the rhetoric construction and its
contents generating a different narrative discourse to we know. This article
discusses we will try the main differences in the narrative of “football” and
as the “standard” FIFA has changed. The article results for this we analyze the
phenomenon through participant observation during the World Cup and at the
Confederations Cup held in 2013. Also show how the FIFA standard differs from
the discursive rhetoric previously used by FIFA, and as the same stage may be
subject to two different discourses.
Keywords: 4K. Habitus. Discourse. Narrative. Rhetoric

1.  Fernando C. Moura é Prof. Doutor e pesquisador do Centro de Investigação Media e Jornalismo
(CIMJ), Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa (UNL), Portugal. Email:
fernandocarlosmoura@gmail.com e fermoura@hotmail.com . Tel: +55 11 8578 0519

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5911
Novo paradigma nas transmissões televisivas. A copa do mundo em 4k

Fernando C. Moura

INTRODUÇÃO

O DISCURSO FUTEBOLÍSTICO é talvez, junto ao melodrama encarnado pela tele-


novela, o mais difundido na TV nos últimos anos. Ele sustenta emissoras de TV
por todo o mundo e aos poucos se tem transformado em quase uma “commodity”
que se espalhou nas últimas duas décadas ao redor do mundo. Se bem isto é um fato,
muitas vezes se ouve nos corredores dos congressos e universidades que este não é um
tema muito acadêmico, e que o discurso “futebolístico”, como o denominaremos neste
trabalho, está cheio de clichês e tem pouco interesse a sua análise. A nossa inferência
é outra, talvez a contrária. Afirmamos que é um tema importante, que precisa ser dis-
cutido e que, na nossa inferência, poderá vir a ser um dos poucos discursos televisivos
que sustentem a existência não só da TV aberta convencional senão também a da TV
paga, como hoje as conhecemos em um mundo onde o paradigma do “broadcast” está
mudando rapidamente.
Após mais de meio século de existência a TV aberta está mudando, e talvez não
pela sua própria vontade, mas sim pelo advento de novas tecnologias e plataformas
que permitem ao telespectador – termo que consideramos ultrapassado – usufruir de
conteúdos audiovisuais em multiplataformas mediante sistemas de VoD (Video-on-
Demand), OTT (Over-the-Top), FTH (Direct-to-Home) e plataformas de webTV.
Nesse contexto, o mundo “da bola”, um dos mais rentáveis até hoje para as emissoras
de TV aberta e de TV paga, precisa encontrar novas formas de desfrutar do fenômeno
para que este continue sendo fonte de receita e, com isso, de sustentação do modelo atual
de negócio. Assim, na última Copa do Mundo Brasil 2014 realizada pela FIFA (Federação
Internacional de Futebol Associado) houve mudanças substanciais no discurso “futebo-
lístico” e, com isso, do seu espetáculo, com a introdução da tecnologia 4K – 4 vezes HD
(High Definition). A introdução desta tecnologia mudou a narrativa das narrativas das
transmissões de futebol e de como a FIFA “padronizou” o espetáculo. Ainda foi possível
inferir as diferenças entre a forma de produzir futebol na TV brasileira e que esta nem
sempre é compatível com o que se faz lá fora. De fato, para a realização das transmis-
sões ao vivo da competição chegaram ao país de diferentes partes do mundo mais de
700 profissionais da HBS (Hosting Broadcast Services), uma empresa ligada à FIFA que
cuida de todos os procedimentos técnicos no que diz respeito à geração, processamen-
to e emissão de imagens. Formada por um grupo de técnicos estrangeiros, a empresa
administra um pool de prestadores de serviços para que toda a operação técnica que
garante a ação que acontece no gramado chegue com a qualidade requerida pela FIFA
até o Centro Internacional de Coordenação de Transmissão (IBCC, na sigla em inglês),
neste caso, instalado no Rio Centro, Rio de Janeiro, e desde onde foram emitidos, para
mais de 220 países, os feeds (sinais de vídeo e áudio) dos 64 jogos da competição.
Deixando de lado a questão técnica, entendo que a produção e captação de um
jogo de futebol compreende uma série de narrativas e retóricas, e que depois de ter sido
realizado o maior evento futebolístico da terra no Brasil é possível inferir que existem
algumas diferenças acentuadas entre a forma de produzir o espetáculo do futebol para
a televisão que a FIFA “padronizou”, o modo como as televisões brasileiras mostram
o jogo e a forma como foram feitas as primeiras transmissões em Ultra Alta Definição
(4K) durante o último Mundial. Assim, neste artigo analisaremos a produção televisiva

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5912
Novo paradigma nas transmissões televisivas. A copa do mundo em 4k

Fernando C. Moura

dos jogos com tecnologia 4K assumindo que o discurso é uma unidade de produção
de sentido (Verón, 1996, p.125). Assim, o discurso do futebol televisado é um processo
de produção de sentido (Verón), porque possui as suas características principais e gera
sentido para aos telespectadores. Nesse marco, Verón afirma na sua «Teoria dos Discursos
Sociais» (Verón, 1996), que os discursos são gerados por outros discursos anteriores,
porque o que interessa neste discurso são as condições de produção, e estas condições
fazem com que os emissores gerem novos discursos. Ainda trabalharemos a dimensão
cognitiva, Pragmática e Passional (Greimas & Courtês, 1979; Greimas e Fontanille, 1991)
para mostrar as diferentes narrativas e como o discurso se transforma.

NASCIMENTO E DESENVOLVIMENTO DA TV
Em 1895, os irmãos Lumière revolucionaram a sociedade parisiense com imagens
simples em movimento, tornando-se, então, um dos mais populares meios de comunicação
e de ficção. Anos mais tarde, em 1936, nascerá a televisão e expandir-se-á após o fim da
2ª Guerra Mundial. E com esta criar-se-á uma nova “galáxia” de comunicação.
“Não que os outros meios de comunicação desaparecessem, mas foram reestruturados e reor-
ganizados num sistema cujo coração era composto por válvulas electrónicas e cuja fachada
apelativa era uma tela de TV. A rádio perdeu a sua centralidade (...) os filmes foram adapta-
dos para atender às audiências televisivas, com excepção da arte subsidiada pelo governo
e dos espectáculos baseados em efeitos especiais das grandes telas”. (Castells, 2002, p.432)

Assim, afirma Giovani Giovannini (1987, p. 37), a criação da TV não foi um fato
isolado, “foi o resultado de um longo processo de investigações e descobrimentos, de
experiências e conhecimentos adquiridos”. A televisão, desde a sua primeira transmissão
nos Estados Unidos em 1926 (Moura, 2010), é tida como um dos principais instrumentos
de percepção e conhecimento do mundo.
“Os heróis que ela [TV] mostra ou fábrica entram em concorrência directa com outros
sistemas de construção de identidades fornecidas pela sociedade, pela escola (…) Esta
dupla função de identificação e de representação não é passiva e resulta de uma espécie de
interacção constante entre os espectadores e o que do mundo é mostrado pela televisão.”
(Dominique Wolton, 1994, p.74),

A televisão dissemina conteúdos por meio de uma linguagem que utiliza o verbal
e o não-verbal, incluindo-se aí os avanços tecnológicos. Alguns autores já falam numa
linguagem vídeo-tecnológica, na qual se desenvolvem “elementos e combinações
semióticas novas e distintivas que começam a ser os sistemas linguísticos do futuro e
que se diferenciam dos anteriores a partir da lógica das suas articulações” (Orozco, 1997,
p.56), dando lugar a uma nova lógica, em que os signos de diversos tipos e procedências
se justapõem para construir o espetáculo.
Thomas Luckmann e Peter Berger (1999) retomaram no final do século passado a
ideia de “construção social da realidade” desenvolvida por Alfred Schultz durante as
décadas de 1940/50. Para os primeiros, a linguagem e a comunicação desempenham
um papel fundamental na construção social da realidade porque só existirá devido
aos mecanismos de relação existentes entre os indivíduos. Assim, a realidade emitida

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Novo paradigma nas transmissões televisivas. A copa do mundo em 4k

Fernando C. Moura

pela emissora de TV opera como uma construção das informações que são emitidas
baseada em suas selecções. Para Pierre Bourdieu (2005, p.14), os produtores de TV
usam uma espécie de “óculos que vêem certas coisas e outras não” e que se sustentam
em um princípio de selecção ligado à busca do espectacular, do sensacional tentando
criar uma disrupção com o habitual, mas que em nada altera as formas de pensar e
reflectir sobre o mundo. De fato, para o autor a imagem provoca no espectador um
“efeito do real”, provocado pela selecção realizada e que moldará o discurso emitido
e, mais tarde, discutido.

4K, UMA NOVA FORMA DE CAPTAÇÃO AUDIOVISUAL


Este artigo está baseado nas inferências realizadas como produto da observação
participante realizada durante a última Copa das Confederações Brasil 2013, no estádio
do Mineirão, em Belo Horizonte, Minas Gerais; e na Copa do Mundo Brasil 2014 no
estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, onde, em 2013, mediante captação e gravação
e, na segunda já com transmissões ao vivo, se produziram jogos em 4K, tecnologia de
captação (Moura, 2014) desenvolvida pela Sony Japão em 2003, que possui uma resolução
de 3840×2160 pixels (8,3 megapixels).
Assim, a mudança de paradigma devido à introdução de uma tecnologia disruptiva
como o 4K aconteceu formalmente no dia 28 de junho de 2014, jornada que ficará na
história da TV brasileira por ter sido a primeira produção e transmissão de forma
experimental, ao vivo para o Brasil e o mundo, de um jogo da Copa do Mundo em 4K
tanto por espectro como via DTH e fibra óptica. A produção foi realizada pela Rede
Globo e a Globosat (empresa do grupo Rede Globo) com a coordenação da empresa oficial
de captação e transmissão da FIFA, a HBS (Hosting Broadcast Services) que, em conjunto
com a Globosat e a Telegenic, trabalharam com suporte integral da Sony, patrocinadora
oficial do evento. As transmissões foram realizadas por espectro (TV Globo) e por fibra
e via satélite por Globosat através das operadoras Net, Telefônica-Vivo e Oi no Brasil, e
algumas operadoras de Europa que captaram o sinal.
Durante o evento foram realizadas três transmissões integralmente com tecnologia
4K no estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro. Primeiro, em 28 de junho (oitavas-de-
final) jogo entre Colômbia e Uruguai. Segundo, em 4 de julho (quartas-de-final) jogo
entre Alemanha e França; e 13 de julho a final da Copa do Mundo entre Alemanha e
Argentina. A disrupção aconteceu porque as três transmissões, desde o início até o fim,
foram realizados com equipamentos 4K, ou seja, desde a captação até a produção em
uma unidade móvel 4K montada especialmente para o evento, a transmissão via satélite
até Globosat e as respectivas transmissões via espectro (TV Globo), fibra óptica e satélite
para ser recebida por alguns telespectadores no país e no mundo afora. Para a produção
dos três jogos foi montado um dispositivo especial, não só técnico e operacional, mas
também intelectual. De fato, a transmissão em 4K muda, entre muitas coisas, a forma
de contar a história do jogo, muda o “discurso futebolístico” e o transforma em um
novo discurso, que claro está, advém de discursos anteriores, mas tem características
próprias que o fazem único.

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Novo paradigma nas transmissões televisivas. A copa do mundo em 4k

Fernando C. Moura

Figura 1: Diferentes patamares de imagem Fonte: Sony Brasil

Na Copa do Mundo foram utilizadas câmeras F55 de Sony, um equipamento


que possui um sensor CMOS de formato nativo 4K incluindo um obturador global
para eliminar efeitos enviesados de rolamento de obturador e segmentação de flash,
entregando vasta gama de cores para reprodução de uma cor quase verdadeira. A
câmera (Moura, 2014, p. 44) possibilita ainda ampla exposição de latitude (14 stops), de
alta sensibilidade e baixo ruído. Além de permitir gravação em formato Super 35mm,
com uma resolução nativa de 4096 x 2160 (11,6 milhões de pixels, 8.9 milhões efectivos),
com codec XAVC 4K (QFHD) 4:2:2, com um bit rate até 30 fps de 300 Mbps, e compressão
MPEG-4 AVC/H.264.

Figura 2. A FIFA desenvolveu um plano 34 câmeras para as transmissões em HD realizadas


durante a Copa do Mundo Brasil 2014 (Fonte: EVS SPORTS – Congresso SET 2014)

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Fernando C. Moura

Enquanto as transmissões dos 64 jogos da Copa do Mundo (Figura 2) foram


produzidos com 35 câmeras HD – entre as quais uma em um helicóptero, 8 câmera SSM
(Super Slow Motion – Câmera Super Lenta), 2 Hi Speed Cam (Câmera super rápida com
até 2000 frames por segundo) e uma Spidercam (câmera montada sobre fios colocada
encima do gramado e dirigida via Wirelles), além de 23 câmeras HD. Além da qualidade,
a disrupção aconteceu porque a transmissão em 4K (ver Figura 3) nos jogos realizados
com tecnologia 4K foram utilizadas apenas 13 câmeras, das quais 12 foram as F55 de
Sony e uma F65 (câmera de cinema), mudando toda a construção retórica do discurso.

Figura 3. Plano de câmeras utilizado pela FIFA para realização


dos jogos em 4K durante a Copa do Mundo (Fonte: Sony Brasil)

PRODUÇÃO DE SENTIDO: O DISCURSO E SUAS FORMAS


Entendendo o discurso “futebolístico” como um processo de produção de sentido que
possui características próprias e gera sentido nos telespectadores. Desde a perspectiva
de Eliseo Verón (1996, p. 125)
“Toda a produção de sentido é necessariamente social: não se pode descrever nem explicar
satisfatoriamente um processo significante, sem explicar suas condições sociais produtivas.
Todo o fenómeno social é, numa das suas dimensões constitutivas, um processo de cons-
trução de sentido, qualquer que seja o seu nível de análise”

Assim, infere-se que o “padrão FIFA” de transmissões – forma retórica e prática


de produzir eventos futebolísticos ao vivo – é uma construção de sentido produzida
por diversas opções retóricas que são utilizadas na construção de uma transmissão
esportiva, e que as transmissões dos jogos realizados em 4K mudaram por questões não
só retóricas, mas também, técnicas a forma de construir o discurso pelo que temos o
mesmo esporte, no mesmo estádio ou estádios, mas com construções retóricas diferentes

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Novo paradigma nas transmissões televisivas. A copa do mundo em 4k

Fernando C. Moura

em transmissões simultâneas. (Vale reafirmar aqui que as transmissões em HD e 4K


foram realizadas e produzidas de forma paralela e simultânea e que a segunda utilizou
alguns recursos da primeira para criar sua narrativa). Se consideramos a Teoria dos
Discursos Sociais (Verón), estaríamos frente a criações discursivas diferentes baseadas
em contextos e discursos anteriores diferentes, cada um pensado e estruturado em base
a outros discursos e outros olhares da mesma manifestação, o jogo de futebol. Infere-se
que isso acontece, entre muitos pormenores técnicos e logísticos de uma transmissão
crítica como a de uma Copa do Mundo transmitida para mais de 200 países do mundo,
pela parafernália tecnológica utilizada e pela disposição e quantidade de câmeras utili-
zadas para contar e criar o “discurso jogo de futebol”. Essa parafernália sofreu grandes
modificações na última Copa do Mundo. Talvez tenha sido a maior das últimas duas
décadas quando foi introduzido o HD (High Definition – Alta Definição) nas transmis-
sões esportivas. Na Copa do Mundo de 1994, realizada nos Estados Unidos, por uma
questão comercial foi introduzida a dupla transmissão – ou seja, dois discursos para
enviar a cada um dos países que participavam do jogo e com essa duplicidade surgiu o
“ângulo inverso”, uma câmera colocada do lado contrário à da emissão gerando não só
um quebre de racord senão também a introdução de um olhar diferente do jogo. Naquela
ocasião foram usadas várias câmeras segundo o momento, depois ficou estabelecido
que se usaria uma câmara de “ângulo inverso” que sempre teria uma legenda para o
telespectador que explicasse o porquê da inversão de plano.

O DISCURSO FUTEBOLÍSTICO E AS SUAS DIMENSÕES


Após essa pequena apresentação técnica, trabalharemos as dimensões cognitiva,
pragmática e passional (Greimas & Courtês, 1979; Greimas e Fontanille, 1991) para desde
esta óptica mostrar as diferentes narrativas e como o discurso se transforma. O discurso
é uma unidade de produção de sentido que produz significação. No caso analisado a
significação muda por dois motivos. Primeiro porque as câmeras utilizadas geram nos
telespectadores “imersão” – denominação dada pela Sony ao fenómeno escópico (Christian
Metz, 1970) e, mais tarde, desenvolvida por Martin Jay, 2003), e porque a narrativa do jogo
tem necessariamente que mudar para adaptar-se aos novos dispositivos utilizados na
captação, repetições e inclusive na emissão dos conteúdos gerados com tecnologia 4K.
Nesse sentido, e antes de chegar às dimensões do discurso mediático, é importante
referir que dentro desse discurso existem (Greimas, 1973) estruturas de significação que
se manifestam na comunicação porque “é no ato de comunicação, não acontecimento-
-comunicação, que o significado encontra o significante”. Greimas & Courtes (1979)
trabalham o discurso a partir de três dimensões constitutivas que são a dimensão cog-
nitiva, pragmática e passional. A estrutura cognitiva elementar tem sido descrita como
a relação entre um sujeito e um objeto de conhecimento, estabelecida pelo enunciado.
Os autores reconhecem a existência de uma dimensão cognitiva do discurso, constitu-
ída pela integração desses enunciados elementares, que pressupõe necessariamente a
existência de uma dimensão pragmática, que lhe serve de referente interno e à qual é
hierarquicamente superior. Assim, a dimensão cognitiva designa conhecimento, praxis,
envolvimento, todas situações encontradas no discurso analisado, já que tanto o produtor
como o telespectador precisam ter conhecimento sobre o jogo, praxis e envolvimento,

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Novo paradigma nas transmissões televisivas. A copa do mundo em 4k

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isso não só no seu nível primário senão, também, complementários, já que esta dimensão
aparece tanto na produção como na comunicação do saber. De fato, segundo os auto-
res, deve haver quanto às instâncias cognitivas, pelo menos um sujeito encarregado da
produção, um sujeito encarregado da transmissão e outro da recepção do saber, ainda
que sejam investidos num único ator, ou em vários atores.
No caso estudado, infere-se que nas transmissões experimentais realizadas durante a
Copa do Mundo com tecnologia 4K com uma nova disposição de câmeras e equipamentos
necessários para repetições, grafismo, enlaces satelitais etc. a dimensão cognitiva ficou no
sujeito encarregado da produção e no encarregado da transmissão (neste caso, o mesmo
consórcio TV Globo/FIFA), e que o seu jeito da recepção do saber se encontrou com um
novo discurso futebolístico. Um discurso onde não só mudou o plano de câmeras, senão
a forma de captação e os planos realizados do jogo. Consideramos que mudou a história
contada, não só pela forma de ser produzida e recriada, senão também pela dispositivo
técnico que foi necessário ter, neste caso, uma TV 4K 60p e um set-top box (descodificador
do sinal satelital) que pudesse decodificar o sinal emitido. De esta forma ingressamos na
dimensão pragmática do discurso que indica o modo como este foi feito, desenvolvido e
trabalhado. Afirmando que a televisão é uma das formas predominantes de criação da
nossa representação do mundo, que ela permite-nos imaginá-lo, estabelece parâmetros
e mobiliza as atenções dos seus telespectadores inferimos que ela constrói discursos
nos quais a realidade difundida pela TV opera como uma seleção e uma construção das
informações que são emitidas. Da investigação infere-se que mudou a estrutura retóri-
ca do discurso, porque, entre as muitas mudanças realizadas, foi necessário mudar os
planos devido a alguns problemas de foco que apresentam as lentes e câmeras 4K, não
por estas terem problemas estruturais senão porque o movimento do futebol fazem com
que a Ultra Alta Definição jogue contraplanos fechados e com foco limitado.
De fato, antes da competição, as câmeras, inicialmente produzidas pela Sony para
cinema, tiveram de passar por um processo de reconversão para serem utilizadas em
um evento ao vivo. Para isso, a empresa japonesa desenvolveu um adaptador (Moura,
2014) que se coloca entre a câmera e a lente para que ela pudesse trabalhar com servo
(sistema que permite fazer zoom e foco de forma mecânica nas lentes). O adaptador
CA4000 foi utilizado conectado à interface de acoplamento da PMW-F55, o que permite
que o sensor CMOS 4K Super 35 mm se transforme em uma câmera de sistema 4K ao
vivo com recursos de alt0as taxas de quadros (HFR) que funciona com cabos de fibra
SMPTE padrão para distâncias de até 2.000 m. Para utilizar a câmera F65 que possui um
sensor maior se desenvolveu o adaptador de câmera ao vivo 4K SKC-4065 que é necessário
porque a interface RAW da F65 é diferente da PMW-F55. Desta forma, o SKC-4065 permite
que o adaptador CA-4000 encaixe no corpo da câmera. “Ele também serve de interface
para a maioria dos comandos da câmera, o que inclui vários formatos, obturador, filtro
ND e ganho”, afirmam os responsáveis de Sony consultados no Estádio do Maracanã.
Tudo isso permite afirmar que foi preciso criar uma praxis, um novo habitus
(Bourdieu, 1994) que permitisse aos produtores de sentido produzir o discurso
futebolístico em 4K. Nesse sentido, temos um duplo problema, na produção e na
recepção porque segundo (Bourdieu, 1972, p. 170) o gosto ou os gostos dos indivíduos,
tende, neste sentido, a manifestar-se mediante a apropriação de determinados objetos

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Novo paradigma nas transmissões televisivas. A copa do mundo em 4k

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ou a manifestar-se nas práticas em que os sujeitos se envolvem, traduzindo lógicas que


funcionam enquanto classificadoras e distintivas, ou seja, traduzem as estratégias que
os indivíduos adotam perante os sistemas classificatórios que interiorizam e que servem
para que eles se posicionem socialmente, traduzindo igualmente a posição que atribuem
a outros indivíduos ou grupos Assim, o habitus é:
“a necessidade interiorizada e convertida numa disposição que gera práticas significantes
e percepções significadoras; é uma disposição geral de transferência que leva a cabo uma
aplicação sistemática, universal - além dos limites do que foi diretamente aprendido - da
necessidade inerente nas condições de aprendizagem.” (Bourdieu, 1972, p. 170),

Na nova transmissão com novas câmeras, novos planos e um discurso parecido, mas
não igual, a dimensão cognitiva passa por uma transformação, por uma modificação,
já que o telespectador não adquiriu o habitus desse novo discurso e na sua dimensão
cognitiva ele nem sempre poderá impor um ponto de vista sobre o objeto (Greimas
& Courtes, 1979) porque, se bem o conhece o discurso futebolístico, este mudou a sua
estrutura narrativa e sua forma de exibição. Ao passar de 35 para 13 câmeras e, sobretudo,
a ter maior qualidade de imagem, mas menor capacidade de foco em movimento devido
a maior distância focal e rango dinâmico da imagem, foi necessário trabalhar com
planos mais abertos das ações do jogo e resignar a espectacularidade do plano fechado
com câmera super lenta para captar lances com planos mais abertos, mas com uma
profundidade de campos imensamente maior. Por isso, infere-se da investigação que o
telespectador mudará o regime escópico, a forma de olhar o discurso futebolístico porque
os planos mudam e com eles a construção discursiva. Martin Jay (2003, p. 224) afirmará
que o regime funciona pela sua verosimilitude, e nesse ponto, a “imersão” proposta
pelos criadores da tecnologia e os produtores do discurso futebolístico em 4K mudam.
O telespectador agora está frente a uma nova mirada, uma mirada onde a narrativa
muda substancialmente e o olhar do acontecimento se transforma produzindo outra das
grandes diferenças retóricas na hora da construção do discurso que é a possibilidade
de repetições dos grandes momentos do jogo, mas ele assume que o discurso é real
porque o conhece com antecedência e porque se bem tem diferenças, a similaridade
com o anterior o torna verosímil.
Voltando a produção e a sua retórica discursiva podemos afirmar que pela quantidade
de câmeras e a qualidade de imagem que estas captam, não foi possível gravar todas
as câmeras ao mesmo tempo no sistema de replays montado na Unidade Móvel que
produziu os jogos como se acostuma fazer em eventos deste porte. Foi preciso selecionar
o que gravar, como e onde isso poderia ser reproduzido, e por isso foi necessário mudar
a praxis de produção e emissão e utilizar os recursos possíveis frente ao novo discurso.
Ainda, foi criado um grafismo especial para as transmissões, e ele também mudou a
praxis tanto na hora de produzir como na de receber o discurso, não só pela dimensão
e formato de vídeo gerado, senão também pela forma em que foi inserido o grafismo em
4K. Para não nos alongarmos muito, ainda queria dizer apenas que a área de segurança
(espaço que se deixa aos lados da imagem para o telespectador não perder a informação)
para o grafismo teve de ser ampliada. Na transmissão HD o formato é de 16x9, nas
transmissões em 4K foi enviado um sinal em formato 17x9.

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Novo paradigma nas transmissões televisivas. A copa do mundo em 4k

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Greimas e Fontanille (1993) ampliam o conceito de paixão aristotélica em “Semiótica


das paixões”, concebendo os estados de alma de um sujeito que podem ser depreendidos
a partir da análise de um texto. No caso analisado, o discurso futebolístico cria um novo
estado da alma, um estado que pode ir do êxtase à frustração, dependendo do resultado
e do envolvimento deste com o espectáculo e como o telespectador se posicione frente
ao discursos e a sua narrativa No discurso futebolístico paixão e praxis caminham junto
ao habitus do telespectador/torcedor criando uma nova praxis que transforma a forma
de produzir e receber o discurso, mas não muda a essência do discurso, mas sim os
seus pormenores e nuances. De fato, o novo discurso futebolístico em 4K provoca uma
mudança de «Contrato de Leitura», definição utilizada por Eliseo Verón» (1996, p. 70).
Nessa mudança, a dimensão passional torna-se fundamental, já que, sem dúvida, existe
um contrato entre quem emite e quem assiste. O contrato de leitura é a relação existente
entre o suporte (produção de TV) e o telespectador, como esses dois se vinculam e
como é produzido este vínculo, um vínculo que mudou, porque mudaram algumas das
características discursivas do modelo anterior, o do Padrão FIFA ao qual o telespectador
estava habituado, e introduziu novas formas narrativas e retóricas. Como já referimos,
o contrato mudou, mas o discurso continua verosímil.

CONCLUSÕES FINAIS
Do trabalho de campo realizado infere-se que a FIFA e a Sony introduziram uma
tecnologia disruptiva na Copa do Mundo que pode mudar o regime escópico dos
telespectadores do “mundo da bola”. As três transmissões com tecnología 4K realizadas
no estádio do Maracanã em julho de 2014 mudaram a praxis, o habitos dos produtores e
telespectadores e, sobretudo, estabeleceram um outro patamar de qualidade de imagem
a narrativa do discurso futebolístico global. Sabemos que ainda é cedo para falar de
uma mudança no discurso, está claro que a parafernália tecnológica está mudando
o discurso do futebol televisado e, com ele, está mudando as dimensões cognitiva,
pragmática e fundamentalmente a passional. O conceito de TV se está reinventando
e o destino do discurso futebolístico televisado está mudando porque já não se pensa
somente em TV aberta ou TV paga Premium, senão em novas plataformas e soluções que
podem viabilizar o consumo deste discurso, até parece ser possível inferir que não só o
discurso está mudando, mas também o espectador, que aos poucos se vai tranformando
em um usuário de múltiplas plataformas de vídeo e não um mero “tele”spectador
sentado em frente à TV.
Assumimos que o contrato de leitura continua , mas se modifica a forma como se
conta a história em imagens e, com ela, o discurso muda de características. Características
estas que estão em processo de maturação, porque ainda não foi encontrada a linguagem
final nem a retórica do discurso.Finalmente, podemos afirmar que a tendência é uma
maior qualidade de imagem, menos câmeras em campo e uma nova forma de olhar o
discurso diferente, que talvez, segundo alguns dizem, se concretize com a implantação
de uma nova forma de captação, a 8K, onde o fenômeno imersivo da imagem poderá
fazer com que o discurso futebolístico possa voltar a ser contado como no início das
transmissões esportivas, com apenas uma câmera.

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Novo paradigma nas transmissões televisivas. A copa do mundo em 4k

Fernando C. Moura

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Porto: Editorial Asa.

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O jogo dos torcedores: processos interativos
em transmissões esportivas na televisão
The game of fans: interactive processes in
sports broadcasts on television
Gior dano Bruno Medeiros e Oliveira1
M a r c e l o B o l s h aw G o m e s 2

Resumo: As transmissões esportivas no país costumam ser programas de grande


audiência. Com presença no cotidiano midiático brasileiro desde a era do rádio,
as transmissões passaram por adaptações ao longo do tempo e agora se adequam
a um modelo mais interativo, impulsionado pela convergência midiática e as
produções transmídia. Neste artigo são abordados temas relacionados à interação
entre público e mídia, mas tendo como ponto central as transmissões de esportes
no Brasil através da televisão, detalhando também sua história e principais
adequações ao longo do tempo. Desta forma, verifica-se como as principais
emissoras que cobrem esportes no Brasil promovem as estratégias de interação
e o modo de funcionamento desse contato com o torcedor.
Palavras-Chave: Transmissões esportivas. Interação. Produção transmídia.

Abstract: The sports broadcasts in Brazil tend to be of premium programs. With


presence in the everyday Brazilian media since the time of radio, transmissions
have undergone adjustments over time and now suit a more interactive model,
boosted by media convergence and transmedia productions. This article
examines issues related to the interaction between the public and media, but
with the central point of sports broadcasts in Brazil through television, also
detailing its history and major adjustments over time. Thus, it checks as the
main TV stations covering sports in Brazil promote the interaction strategies
and the operating mode of contact with the fan.
Keywords: Sports broadcasts. Interaction. Transmedia production.

INTRODUÇÃO

A S COBERTURAS de eventos esportivos fazem parte da programação de muitas


emissoras no país, geralmente atraindo bons índices da audiência e patrocina-
dores em torno dos diversos campeonatos disputados dentro e fora do país . O
público brasileiro costuma se envolver com o esporte e a mídia é uma das responsáveis

1.  Mestrando do Programa de Pós-graduação em Estudos da Mídia pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. E-mail: giordbruno@gmail.com
2.  Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Professor adjunto e
membro do quadro de docentes do Programa de Pós-graduação em Estudos da Mídia (PPGEM-UFRN).
E-mail: marcelobolshaw@ufrnet.br

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

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O jogo dos torcedores: processos interativos em transmissões esportivas na televisão

Giordano Bruno Medeiros e Oliveira • Marcelo Bolshaw Gomes

por essa paixão, divulgando eventos e narrando os fatos para os mais distintos lugares
desse país. Ao longo de sua história, os meios de comunicação evoluíram e a trajetória
dos esportes no Brasil foi contada de maneiras diferentes pelos mais distintos persona-
gens que se empenharam na busca de um estilo de transmissão peculiar do nosso país
capaz de envolver e emocionar multidões ao redor de um aparelho para acompanhar
uma competição esportiva.
Atualmente é possível observar a confluência de diversos tipos de mídia e a interação
entre diversas produções midiáticas. O esporte, como uma das programações de maior
inserção no país não foge dessa tendência e passa a ser coberto de maneiras bem
diferentes em relação ao início de suas transmissões no Brasil. Devido a esses fatores,
palavras como interação, interatividade, multimídia ou transmídia têm presença bem
mais constante nas transmissões atuais do que em outras épocas e, por isso, este trabalho
busca detalhar as produções transmídia nas transmissões de esportes, abordando a
participação do torcedor nesse tipo de programação e quais os efeitos causados por
esse novo contexto midiático.
Neste artigo, além de se conhecer como são feitas as transmissões das principais
emissoras do país a e como o público interage e influencia o estilo de transmissão
adotado por cada canal, faz-se também um estudo bem mais profundo do que apenas
o enfoque nas transmissões esportivas, isto é, são discutidos também conceitos como o
de interação, cultura participativa e convergência midiática para a partir disso descobrir
como funcionam de fato os processos interativos no objeto proposto a ser analisado.
Antes de se chegar a discussão conceitual sobre a participação das diversas mídias
em torno das transmissões televisivas, é necessária uma abordagem histórica de como
esse tipo de programação ganhou força no Brasil e ganhou posições de destaque tanto
no mercado das TV’s abertas como também no segmento da TV por assinatura. Desta
forma, o trabalho inicia com um estudo sobre as tradicionais escolas de transmissões
esportivas do país até chegar aos estilos de transmissão adotados atualmente, com
influência das produções transmídia e estratégias de aproximação com o público.

O ESPORTE NA TV BRASILEIRA
A televisão é atualmente um importante meio disseminador dos esportes no país,
algo que pode ser comprovado pelas diversas emissoras segmentadas em esportes
existentes ou até mesmo pela ocupação de horários importantes da programação das tevês
abertas com conteúdos esportivos. No entanto, a história das transmissões esportivas
nas emissoras de televisão tem uma ligação muito forte com outro meio de comunicação
de massa, que também continua atrelado às transmissões esportivas até hoje. O rádio,
que dominou a audiência dos brasileiros durante décadas, foi o principal exportador
de personagens e ideias para um veículo que passaria ao longo dos anos a encantar
muitos brasileiros. Com o sucesso do rádio na mesma época da profissionalização do
futebol no país, o veículo e o esporte passaram a ter uma relação de harmonia, sendo
um fundamental para o crescimento do outro.
Após mais de duas décadas de amplo predomínio do rádio nas coberturas esportivas,
é inaugurada no Brasil a TV Tupi, que demorou um pouco para encontrar o seu formato e
tentava apenas seguir os passos do rádio. Com os custos elevados e a pouca criatividade,

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O jogo dos torcedores: processos interativos em transmissões esportivas na televisão

Giordano Bruno Medeiros e Oliveira • Marcelo Bolshaw Gomes

o esporte não foi o principal tipo de programação na primeira década de um veículo


que até então poderia ser considerado como um “rádio com imagens” (KNEIPP, apud
Hollanda et.al, 2013, p.90), devido ao grande número de profissionais egressos do meio
e a mesma linguagem utilizada em ambos os casos.
Apesar desses poucos recursos, a TV Tupi e a TV Paulista iniciaram as primeiras
disputas para conquistar a audiência em torno das programações esportivas. O
pesquisador André Ribeiro (2007, p.143) relata que apesar da intenção de levar o esporte
para a TV, a inciativa muitas vezes esbarrava na tecnologia e condições estruturais
da época, já que até então as emissoras possuíam poucos mecanismos para levar
imagem de qualidade ao torcedor, muitas vezes até atrasando ou deixando de realizar
as transmissões.
Mas com um pouco de imaginação, as transmissões na televisão brasileira passaram
a dar sinais de que poderiam evoluir com o passar dos anos. Em 1953, por exemplo,
foi criada a TV Record, que pertencia ao mesmo grupo que administrava a Rádio
Panamericana, que durante muito tempo foi uma emissora especializada em conteúdos
esportivos. A partir daí surgiram programas sobre os mais variados esportes e as
transmissões passaram a ter nova aparência, embora ainda fossem dificultadas pela
falta de equipamentos que pudessem melhorar a qualidade da cobertura, como por
exemplo, a imagem apenas em preto e branco que confundia o telespectador em jogos
que as duas equipes usavam uniformes de cores fortes.
Quando dois times de camisa de cores fortes como Palmeiras (verde) e Portuguesa (verme-
lha) se enfrentavam, a transmissão em preto e branco tratava de tornar todos os uniformes
absolutamente iguais. Na primeira partida entre os dois times pelo Campoenato Paulista,
a Record conseguiu a mágica: a transmissão continuava em preto e branco, mas algum
efeito, que ninguém sabia qual, permitia a identificação perfeita das duas equipes. Alguns
técnicos da Tupi não aguentaram de curiosidade e ligaram para a Record. Tuta dava sempre
a mesma resposta: usamos um filtro importado dos Estados Unidos, chamado “Triple Flex
Clair”. O filtro, de nome pomposo, não passava de uma invenção de Tuta. Jamais existiu.
O que o técnico usava podia ser comprado em qualquer loja de fundo de quintal: um filtro
laranja, grudado na lente da câmera (Cardoso; Rockman apud Guerra, 2006, p.107).

Mesmo com muitas dificuldades, a televisão foi se modernizando e se expandindo


pelo país. Para se ter uma ideia, no final da década de 1950 já existiam, no Brasil, dez
emissoras de tevê aberta. Mas o primeiro grande evento esportivo exibido ao vivo na
tevê brasileira foi a Copa do Mundo de 1970, competição que se tornaria de grande
importância tanto para a Seleção, que deu show em campo, como para a mídia esportiva,
já que concretizou também a primeira transmissão em cores da tevê brasileira, mas ainda
em circuito fechado, apenas para alguns convidados da Embratel. No quesito narração
a Copa do Mundo em que o Brasil sagrou-se tricampeão foi realizada de forma bem
diferente do que se vê hoje.
Em 1970 só havia um canal de áudio para ser dividido entre todas as emissoras. Sugeriu-se
então a formação de um pool, e por intermédio de um sorteio definiu-se quem narraria o
quê e como seria a transmissão. Coube ao Dr. Paulo Machado de Carvalho, o Marechal da

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O jogo dos torcedores: processos interativos em transmissões esportivas na televisão

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Vitória e dono da TV Record, a responsabilidade pelos trabalhos e pelo sorteio. Sabia-se


que apenas três emissoras teriam o privilégio de acompanhar a maior Seleção de todos
os tempos. Optou-se pela divisão dos jogos em três partes, com 30 minutos corridos para
cada um dos narradores. Deve-se reconhecer que foi uma decisão democrática, quase um
plebiscito. E talvez este tenha sido o maior de todos os paradoxos: falar em democracia em
plena época da ditadura! (Schinner, 2004, p.23-24)

Já na década de 1980, conforme Brinatti (2005, p.74), o esporte passou a ter destaque
ainda maior na residência dos brasileiros. A Bandeirantes, através do narrador e promotor
de eventos, Luciano do Vale, implantou no Brasil o chamado “Canal dos Esportes”, onde
o espectador poderia acompanhar os mais variados tipos de competições esportivas
por meio do canal, principalmente nos finais de semana, quando o esporte ocupava
praticamente toda a grade de programação..
Na década seguinte foi a vez da TV Cultura trazer inovação para a tevê aberta
no Brasil. A emissora foi a pioneira no país a cobrir campeonatos de países europeus,
começando com o Campeonato Alemão, e a partir daí surgiu um novo conceito sobre
qualidade da imagem nos eventos esportivos, já que na Europa os campeonatos eram
mostrados através de várias câmeras que conseguiam alcançar as mais variadas partes
do evento. Também foi através disso que se inseriu o replay com vários ângulos na tevê
brasileira e muitos outros recursos que só viriam a aprimorar as coberturas esportivas
no Brasil.
A TV Cultura, no começo dos anos 90, assegurou os direitos de transmissão do Campeonato
Alemão, onde a disposição das câmeras, entre elas gruas atrás dos gols; a colocação de trilho
na lateral do campo, com cinegrafista acompanhando a partida bem mais próxima e em
cima do lance, provocaram uma grande revolução no conceito de cobertura dos jogos pela
TV (Guerra, 2004, p.111).

Porém, a Rede Globo talvez tenha sido a emissora aberta a conquistar maior audi-
ência através do esporte. Conforme Coelho (2009, p.64), a emissora carioca passou a
transmitir jogos do Campeonato Brasileiro de futebol a partir dos anos 90, e de lá pra
cá, conquistou o monopólio das mais diversas competições nacionais e internacionais.
Entretanto, todas essas emissoras citadas seguiam em suas transmissões padrões muito
semelhantes ao radiofônico, em que os personagens da transmissão geralmente são
dotados de muita credibilidade, criando uma espécie de opinião oficial sobre o jogo,
além da busca constante pelo elemento da emoção, que muitas das vezes é o principal
componente utilizado pelas emissoras para fidelizar o espectador.
Embora a tevê brasileira ainda tenha essa influência do rádio, principalmente no que
concerne às transmissões de esportes, as novas tecnologias e o surgimento de emissoras
especializadas nesse tipo de cobertura possibilitam também novos atrativos para o tor-
cedor. Diante disso, é importante primeiramente saber como a prática da transmidiação,
de um modo geral, tem sido acolhida pelos meios de comunicação de massa e como a
cultura participativa produz outras funções ao espectador desses meios. A partir desse
embasamento é que a análise deste trabalho leva em conta o surgimento dos processos
de interação em meio às transmissões esportivas já discutidas até então.

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O jogo dos torcedores: processos interativos em transmissões esportivas na televisão

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A TELEVISÃO NA ERA DA CONVERGÊNCIA E TRANSMIDIAÇÃO


Os termos transmidiação, narrativa transmídia ou estratégias de produção
transmídia eclodiram e ganharam forças nos últimos anos, principalmente devido à
multiplicidade de novas tecnologias e suportes que permitem o consumo de mídia.
Basicamente, a palavra transmídia está relacionada à produção midiática que pode
ser recebida através de diferentes plataformas de mídia e de acordo com as poten-
cialidades de cada meio.
Entretanto, há diversos autores que abordam essa temática e muitas vezes tratam
de atribuições divergentes para esse mesmo conceito. O que talvez tenha ganhado
mais repercussão seja Henry Jenkins, através de sua obra denominada Cultura da
Convergência, embora nem mesmo nesse livro se chegue a apenas uma definição do
que é narrativa transmídia. Ao contrário, ele aborda a questão dessas narrativas em
diferentes contextos.
Primeiramente, ele cita a transmidiação como uma expansão da narrativa original,
que pode ser exemplificada no caso dos filmes que viram games e que permitem um
novo desenrolar na outra plataforma (2009, p.35). Neste caso, a narrativa transmídia seria
muito mais que a simples reprodução ou adaptação de um produto por outros meios,
mas envolve a criação de novos elementos que potencializam o alcance de uma mesma
produção midiática. Já em outro momento, o autor refere-se à narrativa transmídia
como uma “nova estética que surgiu em resposta à convergência das mídias – uma
estética que faz novas exigências aos consumidores e depende da participação ativa de
conhecimento” (2009, p.49). Dentro desse contexto, o autor não chega a levar em consi-
deração o tipo de conteúdo produzido na narrativa transmídia, mas a possibilidade de
participação do espectador na narrativa a partir das diversas mídias.
De acordo com esses modos de desenvolvimento de uma narrativa transmídia – a
expansão mercadológica da narrativa original e a cultura de participação do público
com a aproximação do ficcional com o universo real do espectador – alguns critérios
são vistos como essenciais para a transmidiação, já que ela parte de um princípio da
intertextualidade de diversas plataformas, mas também exige que o espectador saia de
uma cultura em que apenas receba o conteúdo midiático para a cultura de participação
possibilitada a partir da convergência midiática.
Por convergência, refiro-me ao fluxo de conteúdos através de múltiplas plataformas de
mídia, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório
dos públicos dos meios de comunicação, que vão a quase qualquer parte em busca das
experiências de entretenimento que desejam. Convergência é uma palavra que consegue
definir transformações tecnológicas, mercadológicas, culturais e sociais, dependendo de
quem está falando e do que imaginam estar falando (Jenkins, 2009, p.29).

Desta forma, vê-se que assim como a transmidiação, o termo convergência pode
também abranger os mais variados tipos de integração midiática atuais, podendo ser
por iniciativas mercadológicas como nos casos de união entre grupos de mídia, por meio
do público que passa a consumir mídia em seus mais distintos dispositivos ou por meio
de inovações tecnológicas que unem funções e potencialidades em novos aparelhos.

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O jogo dos torcedores: processos interativos em transmissões esportivas na televisão

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É importante, então, definir sobre qual convergência é discutida ou quais carac-


terísticas de uma transmidiação são abordadas quando se resolve fazer esse tipo de
estudo. Por isso, destaca-se aqui a observação sob o aspecto da participação do público
sobre esse fenômeno, entendendo que “o sucesso das narrativas transmídia dependem
do engajamento do público com os produtos. Além disso, da perspectiva de que esse
público também é capaz de criar e recriar suas próprias versões da história, além de
se envolverem como toda a chamada cultura material decorrente dessas produções”
(MARTINO, 2014, p.39).
Esse conceito, portanto, tem grande aproximação com o tema central deste trabalho,
pois o que se destaca é justamente a perspectiva do público se envolver com uma
programação pautada por um meio de comunicação tradicional, denominado aqui de
processos interativos, já que há uma grande divergência teórica sobre o uso de termos
como interação, interatividade, participação, entre outros.
É possível observar também que esse quadro de novas interações entre produtor
e espectador choca-se com algumas definições de autores tradicionais da área, como
no caso de Thomspon (2008), que afirma haver três tipos de interação, considerando
que apenas a interação face a face, na qual os indivíduos partilham o mesmo espaço
físico e temporal, e a interação mediada, realizada por meios como cartas ou telefone,
correspondem a uma interação em sua totalidade.
Contudo, há dois aspectos-chave em que as quase-interações mediadas se diferenciam dos
outros dois tipos. Em primeiro lugar, os participantes de uma interação face a face ou de
uma interação mediada são orientados para outros específicos, para quem eles produzem
ações, afirmações, etc.; mas no caso da quase interação mediada, as formas simbólicas
são produzidas para um número indefinido de receptores potenciais. Em segundo lugar,
enquanto a interação face a face e a interação mediada são dialógicas, a quase-interação
mediada é monológica, isto é, o fluxo da comunicação é predominantemente de sentido
único. O leitor de um livro, por exemplo, é principalmente o receptor de uma forma sim-
bólica cujo remetente não exige (e geralmente não recebe) uma resposta direta e imediata
(Thompson, 2008, p.79).

A terceira forma de interação citada por Thompson é a quase-interação mediada.


Como visto na citação acima, ela corresponde às formas de comunicação produzidas
pelos meios de comunicação de massa, em que o fluxo de comunicação é unilateral e o
receptor não tem poder sobre o conteúdo. A classificação desses três tipos de interação,
portanto, é feita a partir do grau de reciprocidade disponibilizado pelos dispositivos de
mídia, porém, essa ideia não leva em consideração as produções transmídia, pois reduz
as formas de interação a pouquíssimos meios de comunicação e deixa transparecer que
o espectador não pode contribuir com a formação de novos conteúdos para meios como
a televisão, o rádio ou o livro, por exemplo.
Já entre os autores que veem a convergência e a expansão das mídias digitais como
facilitadores do contato entre produção e recepção, há aqueles que diferenciam os diá-
logos entre a audiência e a mídia (dispositivo ou produção de conteúdo), surgindo com
isso uma distinção entre conceitos como interatividade e interação. Conforme Matar
(apud VASCONCELOS, 2011, p.3) o termo interatividade foi criado já no século XX e está

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O jogo dos torcedores: processos interativos em transmissões esportivas na televisão

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relacionado à era da informática. Já a palavra interação é usada há bem mais tempo e


é utilizada por diversas ciências, que dá a ideia de participação ou intercâmbio entre
dois ou mais indivíduos. Jenkins (2009, p.189 – 190) também faz um diferenciação entre
essas práticas, mas prefere conceitua-las como interatividade e participação. Segundo o
autor, “a interatividade refere-se ao modo como as novas tecnologias foram planejadas
para responder ao feedback do consumidor”, já no que tange o conceito de participação,
ele ressalta que “é mais ilimitada, menos controlada pelos produtores de mídia e mais
controlada pelos consumidores de mídia”.
Há autores também que afirmam que o termo interatividade pode ser usado para
se referir às diversas maneiras de participação do público em relação a uma mídia,
isto é, tanto para a questão técnica como também no que pode ser chamado de cultura
participativa. Essa discussão parte devido ao uso do termo nas diferentes áreas da
ciência, e por isso, se utiliza de ideias como interatividade seletiva – para o contato
das pessoas com as máquinas – e interatividade comunicativa – para o diálogo entre
emissores e receptores.
Há diferentes abordagens da interatividade, em que cada uma delas coincide geralmente
com uma disciplina científica. De acordo com Jens Jensen (1998), no campo da informática,
a interatividade alude às relações entre as pessoas e os computadores; no da sociologia,
refere-se à relação entre indivíduos; e no das ciências da comunicação, sobretudo na tradi-
ção dos estudos culturais, tende a analisar os processos entre os recetores e as mensagens
dos media. Não obstante, nem sempre estas divisões são tão claras. (Canavilhas, 2014, p.54)

Entretanto, há também quem não faça distinção do uso do conceito de interação


para a área tecnológica e tampouco para as interferências sociais na mídia. Primo (2011,
p.13) prefere se apoiar na teoria de que tanto um ícone na interface quanto uma janela de
comentários em um blog são formas de interação. Para o autor o que se faz necessário é
diferenciá-las qualitativamente. Diante disto, o autor as classifica entre interação mútua
e interação reativa, que como poderá ser percebido, tem relativa semelhança com os
níveis de interatividade abordados anteriormente. (Canavilhas, 2014, p.59)
Conforme Primo (2011, p.57),”a palavra “mútua” foi escolhida para salientar as
modificações recíprocas dos interagentes durante o processo. Ao interagirem, um
modifica o outro. Cada comportamento na interação é construído em virtude das ações
anteriores”. Consequentemente a interação mútua é a que mais se aproxima das relações
interpessoais, embora possam ser mediadas por um equipamento eletrônico. No caso da
informática, há algumas formas de interação em evidência que podem ser consideradas
na categoria de mutualidade, como uma conversa por e-mail ou pelos bate-papos. As redes
sociais digitais, apesar de serem novos elementos para os estudos da interação, também
permitem a interação mútua entre os agentes intercomunicadores. É importante perceber
que essa troca de informações não se prende a conceitos tradicionais de “emissor” ou
“receptor”, mas sim de indivíduos interagentes.
Nas interações reativas, também descritas por Primo (2011, p.150) o produtor é o
responsável por delimitar as ações do outro indivíduo interagente que, por sua vez,
não pode usar da criatividade e nem mudar os rumos do discurso. A interação, neste
caso, pode ser bidirecional, mas não implica na prática de um diálogo entre dois polos

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O jogo dos torcedores: processos interativos em transmissões esportivas na televisão

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e sim na conjectura de “ação-reação” já predeterminada para acontecer. Como exemplo


básico desse tipo de interação aparecem as enquetes, bastante utilizadas por programas
televisivos como reality shows, programas de auditório ou debate.
Deste modo, a televisão tem cada vez mais se apropriado das dinâmicas de interações
com sua audiência, principalmente por meio de redes sociais online, que são ferramentas
que colaboram com o fluxo multidirecional da comunicação e permitem a troca de
informações de maneira instantânea, facilitada por seu estrutura horizontal e desprovida
de uma hierarquia rígida entre os participantes (MARTINO, 2014, p.55-63). Dentro desse
contexto, podem surgir também conteúdos que fazem um sentido oposto ao convencional,
isto é, muitas informações deixam de ser fabricadas nas produções das emissoras para
serem veiculadas através das redes sociais até chegarem no meio televisivo.
No que diz respeito às transmissões esportivas, principalmente, esse fluxo de
conteúdos demorou para ganhar força no Brasil. Hoje já se vê emissoras dando destaque
ao que é promovido pelo seu próprio espectador, embora algumas emissoras realizem
esse tipo de contato de forma mais tímida que outras. Portanto, após conhecer como
os meios de comunicação de massa podem se comportar na era da convergência e
distinguir as formas de interações presentes na comunicação, foca-se também nos
métodos utilizados pelas emissoras que transmitem esportes no país para incluir também
o torcedor dentro das transmissões esportivas e expandir seus conteúdos para além dos
aparelhos de televisão.

AS INTERAÇÕES NAS TRANSMISSÕES ESPORTIVAS


Durante toda a sua trajetória na televisão brasileira, a transmissão esportiva fez
parte de muitas emissoras, como visto anteriormente, que tentaram de alguns modos
atrair e fidelizar o torcedor, seja através da emoção, dos recursos tecnológicos em imagem
ou com a aquisição de campeonatos importantes, por exemplo. Com a ascensão desse
período de convergência midiática, entretanto, outras ferramentas passam também a ser
utilizados pelos canais de TV, e com isso, as coberturas de esportes ganham aspectos
mais dinâmicos e interativos.
Atualmente são vastas as opções de canais que se dedicam a mostrar esportes na
televisão. No âmbito da TV por assinatura, os canais SporTV, Espn, BandSports e Fox
Sports se destacam pela diversidade de programas e competições das mais diversas
modalidades esportivas. Há também casos de segmentação em um único esporte, como
no caso dos canais Premiere, que transmitem o Campeonato Brasileiro de Futebol no
sistema pay-per-view3, o canal Combate, com exclusividade em lutas, o Golf Channel
para os fãs do golfe e o Woohoo que atende ao público admirador dos esportes radicais.
(HOLLANDA, 2013, p.148)
Entre os canais de TV aberta, que herdaram esse tipo de programação desde a
metade do século XX ao importar os profissionais consagrados do rádio, as principais
emissoras continuam a dar muito espaço para as transmissões de grandes eventos
esportivos que culminam em bons índices de audiência. Como exemplo temos a Rede
Globo, que ainda mantém a predominância nas transmissões do futebol brasileiro, mas

3.  Pagar pra ver (em português). Termo dado ao sistema de TV em que os assinantes comprar uma
programação específica, como jogos, filmes ou lutas.

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O jogo dos torcedores: processos interativos em transmissões esportivas na televisão

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também investe em grandes eventos internacionais como a Copa do Mundo e a Liga dos
Campeões da Europa. A Bandeirantes, embora não seja mais definida como “Canal dos
Esportes” como outrora, ainda mantém as transmissões de campeonatos importantes
de futebol tanto nacional quanto internacional. Há ainda a Rede Record, que embora
não tenha um destaque durante boa parte do ano nesse tipo de programação, detém os
direitos de transmissão dos Jogos Olímpicos, Pan-Americano e Olímpiada de Inverno.
Mas há uma emissora presente tanto na TV paga como em sinal aberto que
trouxe para as transmissões brasileiras novas características de atração do público. A
TV Esporte Interativo, como o próprio nome já se encarrega de mostrar, é um canal
televisivo brasileiro que tem como marcas as interações com o torcedor. Um dos grandes
diferenciais desta emissora é ser a primeira emissora especializada em esportes na tevê
aberta brasileira, que permite o alcance a um grande público ainda carente de conteúdos
esportivos em relação à TV por assinatura (TEIXEIRA, 2008, p.8). No que diz respeito
às interações, tema central deste trabalho, a TV Esporte Interativo talvez tenha sido a
emissora que mais se destacou utilizando essa ferramenta dentro de suas transmissões
diretas, promovendo o contato com o público por meio das redes sociais online como
Twitter, Facebook e Instagram e produzindo aí uma estratégia de transmidiação, isto é,
a partir de um conteúdo veiculado na TV, a emissora promove também seu conteúdo
presente em outras mídias, algo que pode ser corroborado pelo número de seguidores
do Esporte Interativo no Facebook, onde o canal já possui mais de 10 milhões de fãs.
Entretanto, não se pode afirmar que o Esporte Interativo é o único canal a promover
as interações com a sua audiência. Outra jovem emissora esportiva no cenário televisivo
brasileiro é a Fox Sports, que mesmo com o grande sucesso já estabelecido em outros
países da América Latina e nos Estados Unidos, também precisava conquistar o público
brasileiro. Por ser detentora dos direitos de transmissão de campeonatos importantes,
como a Taça Libertadores da América, a emissora também faz uso das redes sociais
para promover o seu produto e estabelecer um diálogo com o seu espectador. Para
que o torcedor possa opinar sobre o jogo, a Fox Sports geralmente lança hashtags4 nas
redes sociais em que concentram a maioria dos comentários, sendo que parte deles são
lidos durante a transmissão e fazem também com que a transmissão da emissora possa
chegar a ser um dos assuntos mais comentados nas redes sociais durante as partidas,
como no caso de se alcançar o topo dos Trending Topics5 do Twitter.
Um dos exemplos mais recentes desses processos de interação promovidos pela
emissora do grupo Fox aconteceu no jogo entre Danubio e Corinthians, no qual exibiu
com exclusividade para o país e lançou no intervalo uma campanha para que quem
não tivesse trocado de canal utilizasse a hashtag #soeuvinofoxsports, pois assim o perfil
oficial da emissora no Twitter passaria a seguir o espectador que participasse do
movimento na rede social. Com isso, o canal além de comprovar a sua audiência nesse
jogo exclusivo, ainda divulgou seu perfil na rede social e conseguiu ser um dos assuntos
mais comentados do momento mesmo no intervalo da transmissão, o que valoriza

4.  Palavras-chave que representam tópicos ou discussões nas redes sociais. São iniciadas com o símbolo
cerquilha (#) para que os usuários das redes sociais ao clicar nessa palavra-chave tem acesso a todos os
comentários sobre o assunto.
5.  Assuntos do momento (em português). Lista das palavras ou frases mais comentadas no Twitter durante
um determinado período e atualizadas em tempo real pela própria rede social.

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O jogo dos torcedores: processos interativos em transmissões esportivas na televisão

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também sua relação com os anunciantes, já que esse é o principal momento que as
empresas têm para expor suas marcas numa transmissão esportiva.
Outra emissora que também utiliza bastante o Twitter e frequentemente chega a
estar entre os assuntos mais comentados é a Espn. O canal, pertencente ao grupo Disney,
geralmente faz uso de hashtags como #espntemCopadoBrasil ou #espntemLigadosCampe-
ões com o intuito de promover os principais eventos exibidos. No entanto, o principal
diferencial da Espn está num aplicativo desenvolvido exclusivamente para a interação
com o público, o Espn Sync. Por meio do aplicativo, o espectador pode participar das
transmissões, conversar com outros torcedores, responder enquetes e até sugerir pau-
tas para os programas da TV. Assim, a Espn promove os processos tanto de interação
mútua quanto de interação reativa e faz com que sua transmissão vá “muito além do
jogo”, como diz o próprio slogan do aplicativo.
Entre as emissoras de sinal aberto, esses processos de interação não recebem tanto
destaque devido ao padrão rígido que elas ainda mantêm quando se trata de cobertura
esportiva. A Globo, apesar disso, tenta inserir o torcedor dentro da transmissão, mas
com muitas restrições, já que as participações veiculadas durante a transmissão são feitas
apenas por meio do próprio site da emissora ou de um aplicativo próprio da emissora
para celulares e tablets. Embora as interações do público apareçam poucas vezes nas
transmissões da Globo, geralmente duas por jogo, o diferencial da emissora é que seus
espectadores podem participar também com vídeos ou imagens, tornando essa relação
um pouco mais dinâmica.
Destarte, algumas das principais emissoras que transmitem esportes no país dão
sinais de que por meio de estratégias de transmidiação, elaborando a transmissão para
ter alcance nas mais diversas mídias, podem chegar a alternativas de conseguir a apro-
ximação com o público, fidelizando diante de uma ampla concorrência nesse tipo de
programação. Outro ponto relevante que é contemplado por essas emissoras com esses
processos de interação com a audiência é uma espécie de rompimento com o padrão
tradicional, isto é, quando apenas os profissionais da TV tinham autoridade ou conhe-
cimentos para opinar sobre as questões do esporte.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante esse trabalho foi levantada uma discussão acerca das formas de
interações presentes nas transmissões esportivas pela TV. Desta forma, verificou-se
que historicamente essas transmissões não costumavam a ter os espectadores como
seus interagentes, porém foram apresentados alguns casos recentes em que o torcedor
passa a ser mais um personagem dentro da transmissão, geralmente impulsionado pelo
uso de mídias digitais, como nos exemplos das interações por redes sociais e aplicativos
produzidos para dispositivos móveis.
É fato que termos como interação ou cultura participativa parecem estar na moda entre
as produções midiáticas, entretanto, ressalta-se aqui a iniciativa de parte das emissoras
brasileiras em levar essas iniciativas para uma programação já tão consagrada, como é
o caso das transmissões esportivas. Entende-se, portanto, que o público quer também
interagir, a julgar pelos casos citados em que muitas vezes fizeram as transmissões
alcançarem o topo dos assuntos mais comentados nas redes sociais virtuais.

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Apesar do choque de conceitos no que concerne às formas de interação ou


interatividade, como explorado no quadro teórico, é possível perceber uma tendência
na maioria das transmissões realizadas atualmente em promover o engajamento do
público aficionado em esportes, seja com as participações diretas, enquetes, quizzes ou
sugestões de pautas. O que se pode extrair até aqui é que a criatividade nas formas de
promover esses processos interativos pode se tornar um diferencial a favor de cada uma
das emissoras, algo que merece ainda ser observado por mais tempo com o vislumbre de
verificar essas interações como uma consolidação na história das transmissões esportivas
da televisão brasileira.

REFERÊNCIAS
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ração futebolística para a TV. (Projeto Experimental do Curso de Comunicação Social).
Juiz de Fora: UFJF.
Canavilhas, J. (2014) Webjornalismo: 7 características que marcam a diferença. Covilhã:
LabCom.
Coelho, P. V. (2008) Jornalismo Esportivo. São Paulo: Contexto.
Guerra, M. O. (2006) Rádio x TV: o jogo da narração. Rio de Janeiro, UFRJ.
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sobre esporte e televisão. Rio de Janeiro: 7Letras.
Jenkins, H. (2009) Cultura da convergência. São Paulo: Aleph.
Martino, L. M. S. (2014) Teoria das mídias digitais: linguagens, ambientes e redes. Petrópolis:
Vozes.
Primo, A. (2011) Interação mediada por computador: comunicação, cibercultura, cognição.
Porto Alegre: Sulina.
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Schinner, C. F. (2004) Manual dos Locutores Esportivos. São Paulo: Editora Panda.
Teixeira, R. B. (2008) Comunicação interna: uma experiência realizada na Top Sports. Rio
de Janeiro: AVM.
Thompson, J. B. (2008) A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes.
Vasconcelos, P. P.O. (2011) Televisão e internet: os processos de interação nas transmissões
de futebol americano no canal ESPN. Fortaleza: UFC.

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Marketing, Tecnologia e Intertextualidade entre o
cinema e a publicidade no universo da Copa do Mundo:
O filme publicitário Galaxy11 – The Training
Marketing, Technology and Intertextuality between
cinema and advertising in the universe of World Cup:
The advertising film Galaxy11 - The Training
R o b e r t a D e l -V e c h i o 1
R a fa e l Jose B ona 2
M a rl u s e C a s t r o M a c i e l 3

Resumo: A Copa do Mundo 2014 possibilitou às marcas atuações globais e locais.


Pensando no universo do audiovisual, ações no Youtube passaram a fazer parte
do planejamento de comunicação e marketing das empresas, da mesma forma
que os filmes publicitários, buscam se diferenciar pela estética e pela linguagem.
A pesquisa abordou sobre a intertextualidade com o cinema como possibilidade
para a criação publicitária, para uma estética da mensagem, em um cenário de
comunicação globalizada, e o Youtube como site importante para estratégias
de marketing na Web. A pesquisa caracterizou-se como bibliográfica e explora-
tória. Utiliza-se o método estudo de caso e como unidade foi analisado o filme
publicitário GALAXY11 - The Training. Como resultado alcançado foi possível
observar a intertextualidade com vários filmes de ficção científica neste produto.
O reconhecimento dos signos e de contextos semelhantes em algumas cenas é
imediato, pois muitos dos códigos e signos presentes no filme já permeiam o
inconsciente coletivo em função da grande divulgação da mídia e interesse do
público pelo gênero de cinema pesquisado.
Palavras-Chave: Marketing. Tecnologia. Intertextualidade. Publicidade. Cinema.

Abstract: The World Cup in 2014 allowed the brands a global and local
performances. Thinking on an audiovisual world, actions on Youtube became
part of the communication planning and marketing firms in the same way
that advertising films, seek to differentiate the aesthetics and language. This
study aims to mark the intertextuality in cinema as a possibility for advertising
creation and a message of aesthetics, in a scenario of global communication,
with Youtube as an important site for web marketing strategies. This paper
was characterized on the point of exploratory research and draws on different

1.  Doutoranda em Comunicação e Linguagens (PPGCOM/UTP), Docente do Centro Universitário de Brusque


(UNIFEBE), e da Universidade Regional de Blumenau (FURB). E-mail: rovechio@gmail.com
2.  Doutorando em Comunicação e Linguagens (PPGCOM/UTP), Docente da Universidade Regional de
Blumenau (FURB), e da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). E-mail: bona.professor@gmail.com
3.  Pós-Doutoranda em Desenvolvimento Regional (FURB), Doutora em Sociologia (USP), Docente do Instituto
Federal Catarinense (IFC/SC), e do Centro Universitário de Brusque (UNIFEBE). E-mail: marluse.maciel@
fraiburgo.ifc.edu.br

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

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Marketing, Tecnologia e Intertextualidade entre o cinema e a publicidade no universo da Copa do Mundo: O filme publicitário Galaxy11 – The Training

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bodies of literature. We use the case study method and analyzed the advertising
film GALAXY11 - The Training. As a result of this exploration, it was possible
to observe the intertextuality with several science fiction films in this product.
The recognition of the signs and similar contexts in some scenes is immediate,
therefore codesand signs in the film already permeate the collective unconscious
to the ubiquity of media and public interest in researching film genre.
Keywords: Marketing. Technology. Intertextuality. Advertising. Cinema.

INTRODUÇÃO

O MERCADO CONSUMIDOR contemporâneo gera para as marcas a necessidade de


provocarem um sentimento de admiração e encanto e transformar estes sentimen-
tos em desejo para, então, obterem atitude de compra. Nessa tarefa, o suporte do
marketing e da publicidade é fundamental. Estratégias e verbas para ações na internet e
em outros dispositivos, como o celular, não são novidades para as agências de comunica-
ção. Com foco na Copa do Mundo, de 2014, no Brasil, marketing e agências planejaram
cuidadosamente já em 2009, como se fazer ver no mundo digital e na internet.
A relação entre cinema é publicidade é antiga. São muitos os exemplos que podemos
citar para ilustrar a presença do intertexto no campo da publicidade e propaganda. Para
Covaleski (2009, p. 65), “as artes em geral, e o cinema em especial, por contiguidade
à televisão são uma importante referência para os criadores publicitários.” O autor
considera que a obra cinematográfica é uma grandiosa fonte de ideias por seu apelo
emocional, estético e o fascínio que exerce nas pessoas, deste modo, por meio de algumas
adequações, serve como inspiração para diversos profissionais da área, sendo eles
redatores, diretores de arte, roteiristas, etc. (COVALESKI, 2009, p. 65).
Assim, o intuito desta pesquisa é contribuir para a ampliação do conhecimento sobre
o papel do Marketing na Web, especificamente da publicidade no Youtube e a linguagem
intertextual da publicidade com o cinema como estratégia de marketing e comunicação
em busca de uma estética que mobilize o receptor por códigos compartilhados e pela
tecnologia. Procurou-se uma reflexão sobre experiências na elaboração de estratégias e
conteúdos de campanhas de lançamento e relacionamento de produtos e marcas. Deste
panorama surge a questão central desta pesquisa: Com tantos vídeos, publicidade e
estratégias de Marketing na Web, como ser realmente diferente no mundo digital no
contexto da Copa do Mundo? A intertextualidade com o Cinema é uma possibilidade
para a criação publicitária, para uma estética da mensagem, em um cenário de comu-
nicação globalizada?

FUTEBOL , COPA DO MUNDO E MARKETING


É fato que a Copa do Mundo traz muita visibilidade para o universo das marcas,
principalmente as patrocinadoras oficiais do evento, que, juntamente com os Jogos
Olímpicos, se caracterizam como os maiores eventos esportivos globais por seus níveis
de audiência. Porém, o público consumidor, em qualquer mídia, neste período, é atingido
com milhares de mensagens cujo pano de fundo, contexto, ou approach (termo muito
utilizado pelos publicitários), é o mesmo: futebol. Com tantas mensagens publicitárias,

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Marketing, Tecnologia e Intertextualidade entre o cinema e a publicidade no universo da Copa do Mundo: O filme publicitário Galaxy11 – The Training

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em especial, as audiovisuais, é preciso que o setor de marketing das marcas, além de ter
um planejamento muito bem pensado, também seja criativo no que tange a estratégia
de marketing aliada ao conteúdo e estética da mensagem publicitária.
É sabido que o mundo do esporte, em especial do futebol, se apropriou de forma
extremamente competente do Marketing. Entre salários milionários de jogadores,
escândalos com lavagem de dinheiro dos clubes e a utilização de testemunhais de
jogadores famosos nas publicidades das marcas, com relação ao consumidor, o que fica, é
a conexão e admiração pelos clubes e jogadores. Com foco na Copa do Mundo desde 2009,
as agências de comunicação previam um aumento de 40% a 50% em investimentos em
publicidade em relação aos anos anteriores. Em 2009, a estimativa era que o investimento
publicitário na TV seria superior a US$ 2,9 bilhões, um recorde, e isso sem contar os
US$ 3,5 bilhões que a FIFA já havia arrecadado por direitos de exploração e patrocínios.
Algumas marcas estimavam investir US$ 2 milhões por dia. (O GLOBO, 2014). Como
comparação ao tratar dos investimentos das marcas no período da Copa do Mundo
“a arrecadação publicitária diária no Brasil equipara o investimento do Super Bowl
norte-americano, a partida que define o campeão da NFL (liga de futebol americano),
onde neste ano chegaram a ser pagos até US$ 4 milhões de dólares (R$ 8,86 mi) por um
anúncio de 30 segundos na televisão” (UOL COPA, 2014).
Com relação ao mundo digital, os departamentos de marketing não pouparam
esforços e verbas para atuações mundiais e locais. Com relação às redes sociais, a
matéria da Exame.Abril (2014), cuja chamada é “Copa do Mundo 2014 foi a Copa das
Redes Sociais” e microtexto: “A Copa do Mundo foi o evento esportivo mais comen-
tado do Facebook e bateu recordes no Twitter. Depois de quatro anos, redes mostram
muita força durante a Copa”, traz números interessantes. Segundo a reportagem, os
números de Twitter e Facebook são muito significativos. “De acordo com o Facebook,
foram 350 milhões de pessoas falando sobre a Copa do Mundo por lá. Ao todo, foram
3 bilhões de posts, curtidas e comentários em relação à competição. Para comparação, a
rede social tem cerca de 1,3 bilhão de usuários. Ou seja, foi uma média de 2,3 interações
por usuário” (EXAME.ABRIL, 2014) . O Youtube também reuniu estratégias e materiais
audiovisuais, em especial os anúncios, que foram visualizados e compartilhados por
milhares de pessoas.
O marketing influencia a sociedade nas atividades cotidianas e determina a aná-
lise do mercado, a descoberta de necessidades e atuação para satisfazer os desejos.
“Marketing é uma expressão anglo-saxônica derivada da palavra mercari, do latim, que
significa comércio, ou ato de mercar, comercializar ou transacionar” (COBRA, 1986, p.
34). Essa atividade é fundamental para perceber as necessidades dos seres humanos pelo
processo de análise de mercado e, consequemente, inserir e criar produtos e serviços para
satisfazer os desejos. “Definimos marketing como um processo administrativo e social
pelo qual indivíduos e grupos obtêm o que necessitam e desejam, por meio da criação,
oferta e troca de produtos e valor com os outros”. (KOTLER, ARMSTRONG, 2003, p. 3).
Atualmente, o marketing é essencial para desenvolver as estratégias que determinem
a satisfação de uma necessidade e um relacionamento contínuo com os consumidores.
Essa é uma atividade importante para estabelecer um diferencial e criar uma abor-
dagem que permite conquistar o consumidor. “O marketing ocorre quando as pessoas

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Marketing, Tecnologia e Intertextualidade entre o cinema e a publicidade no universo da Copa do Mundo: O filme publicitário Galaxy11 – The Training

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decidem satisfazer necessidades e desejos através da troca. E a troca é entendida como o ato
de obter o objeto desejado através do oferecimento de algo em retribuição (COBRA, 1986,
p.34)”. Essa ação consiste num planejamento para desenvolver estratégias que contribuem
e influenciam nas possibilidades de atuação no mercado. “O marketing é um jogo empírico.
O marketing é uma estratégia com base no mercado e no consumidor que exige habilidade
e características determinantes para conquistar nichos. “A função do marketing, mais do
que qualquer outra nos negócios, é lidar com os clientes. Entender, criar, comunicar e pro-
porcionar ao cliente valor e satisfação constituem a essência do pensamento e da prática
do marketing moderno” (KOTLER, ARMSTRONG, 2003, p. 3). Desta forma, a publicidade
passa a ser ferramenta fundamentas para passar conceitos e criar valor de marca.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A princípio realizou-se uma investigação exploratória, na qual foram levantados
dados em livros e em artigos de anais de congressos nacionais na área. Posteriormente,
fez-se uma pesquisa bibliográfica para que houvesse informações suficientes sobre o
assunto de interesse e eliminar as possibilidades de trabalhar sobre um problema que já
tenha sido selecionado. O método utilizado para esta investigação foi o estudo de caso,
já que é considerado uma forma adequada de investigar um fenômeno contemporâneo
dentro de seu contexto real, permitindo um esclarecimento sobre a relação fenômeno
– contexto (GIL, 2009), estando, portanto, de acordo com os objetivos desta pesquisa. O
estudo de caso tem a intenção de penetrar no assunto e explorar o objeto da pesquisa
(STAKE, 1994). Yin (2005, p. 32) explica que o estudo de caso é “uma investigação
empírica que investiga um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto de vida
real, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão claramente
definidos”. O autor ainda explica que o estudo de caso não é considerado uma tática
para coleta de dados, mas sim uma estratégia de pesquisa abrangente.
Como unidade-caso, foi selecionada a marca Samsung Mobile para o mix de produto
Galaxy 11, que veiculou comercial do celular em canais de TV pagos e internet. Adotando
o entendimento de Gil (2009), a seleção dessa amostra não-probabilística se dá por
critério de intencionabilidade, por ser uma marca que além de ter investido em ações
de comunicação em um período significativo que antecedeu a Copa do Mundo, buscou
signos e linguagens intertextuais com o cinema na construção da mensagem publicitária.
Além dos argumentos apresentados, o anúncio também foi escolhido pelo número
de visualizações. Na página do anúncio no Google Think Insights, a primeira peça
publicitária que aparece como chamada é o anúncio do Galaxy11 com o seguinte texto:
Um anúncio de outra galáxia: Assim como o futebol mundial teve seu time “galáctico – o
histórico e multicampeão Real Madrid, liderado por Zidane, Figo, Ronaldo e Beckham , o
YouTube também tem, e ele está cheio de estrelas, como Messi, Falcao e Cristiano Ronaldo.
Estamos falando do time Galaxy 11, protagonista de um dos anúncios sobre futebol mais
vistos nos meses anteriores à Copa do Mundo: “#GALAXY11: The Training”, da Samsung
Mobile. Com uma média de 45 milhões de visualizações, essa história futurista leva o fute-
bol e a tecnologia ao nível de um filme de ficção científica que atrai, diverte e assombra”
(GOOGLE, 2014).

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Marketing, Tecnologia e Intertextualidade entre o cinema e a publicidade no universo da Copa do Mundo: O filme publicitário Galaxy11 – The Training

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Para a análise, foram escolhidas dezoito cenas, momentos do filme publicitário


selecionado. Observa-se que esta análise foi realizada pela interpretação de códigos
e signos sofrendo a influência das referências culturais dos autores, o que destaca as
limitações deste trabalho em não permitir uma aferência exata em vista do caráter
subjetivo dos aspectos analisados, e, também, por não considerar as percepções do
público-alvo em relação ao filme publicitário analisado. Conforme o que foi apresentado,
a proposta é específica: intertextualidade no filme publicitário GALAXY11- The Training
(2014) com o cinema, como estratégia de marketing e comunicação em busca de uma
estética que mobilize os públicos de interesse pelos signos e códigos cinematográficos.
As principais leituras para análise do filme publicitário tiveram como base os estudos
de Lucia Santaella (2002, 2005) sobre a Semiótica Peirceana e nos estudos de Covaleski
(2009, 2010) sobre Intertextualidade e Publicidade.

APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DO FILME PUBLICITÁRIO


GALAXY11 – THE TRAINING
O filme publicitário GALAXY11- The Training é o último da ação de marketing e comu-
nicação contínua e a longo prazo da Samsung Mobile, iniciada a menos de um ano da Copa do
Mundo que reuniu no Youtube cerca de 20 vídeos publicitários de uma campanha sequencial.

Figura 1: GALAXY11 – The Training (2014)


Fonte: http://www.youtube.com

A ideia criativa foi inspirada nos filmes de ficção científica. O mote é que os alieníge-
nas chegaram a terra e nos desafiaram a uma partida de futebol. Quem ganhar a partida
fica com o planeta. A partir disso a corrida é para encontrar a equipe para defender a
terra. “O futebol poderia salvar a terra?”, é o que a repórter pergunta no filme publicitário
GALAXY11- The Beginning. Então começa a corrida em busca dos jogadores para formar
equipe/time que salvará o planeta. O encarregado por formar o time é o ex-jogador Franz
Beckenbauer, que escolheu jogadores como Messi, Oscar e Falcão Garcia para representar
os terráqueos. As seleções da equipe foram divulgadas em vídeos individuais, alguns
mais extensos do que outros.
O filme publicitário GALAXY11- The Training, de 4:16 minutos, começa com imagens
de vários países (Londres, Rio de Janeiro, Nova York), em que alienígenas teriam passado e
deixado mensagens. O texto inicial do filme diz: “Mensagens misteriosas foram deixadas.
Hoje a ficção científica se tornou realidade. Os Aliens chegaram. Homens misteriosos
apareceram em grandes estádios ao redor do mundo. Fomos desafiados a salvar a ter-
ra”. Na sequência aparecem as imagens dos jogadores selecionados com os respectivos

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textos: “Messi, selecionado. Rooney, selecionado. Ronaldo, selecionado. Por isso reunimos
um time Galaxi 11”. Texto, imagens, trilha e efeitos sonoros muito bem planejados dão
o tom de suspense já na abertura do filme que exibe refinamento e tecnologia dignos
dos filmes de Hollywood. As imagens nos remetem imediatamente aos filmes de ficção
científica. É possível então, a partir do início do filme e da imagem do time ainda de
costas em cima de uma plataforma, visualizar uma série de cenas de ação e ficção, que
nos remetem a cenas de vários filmes de cinema conhecidos que foram amplamente
divulgados na mídia. A tecnologia utilizada não deixa nada a desejar se comparada aos
recursos tecnológicos utilizados pelo cinema de ficção.

Figura 2: GALAXY11 - The Training (2014) Figura 3: GALAXY11 - The Training (2014)
Fonte: http://www.youtube.com Fonte: http://www.youtube.com

Na figura 2, cenas de chegada de Aliens ou naves espaciais no planeta logo remetem


a filmes como Independece Day (1996, fig. 4) e District 9 (2009, fig. 5). A ideia de naves que
circulam e ameaçam a humanidade, é algo presente no imaginário coletivo, muito em
função dos filmes de ficção científica.

Figura 4: Independece Day Figura 5: District 9


Fonte: http://www.google.com Fonte: http://www.google.com

Outra referência importante no filme publicitário é o próprio mote da campanha.


A ideia de um time, da união dos heróis para salvar o planeta não é nova (fig. 3). Desde
os quadrinhos e depois com os desenhos na televisão, uma geração viu nascer “A Liga
da Justiça” (fig. 8) que possuía uma base de treinamento para suas atividades. A ideia
de um lugar com tecnologia, uma base de treinamento capaz de proteger e unir nossos
heróis é antiga (fig. 6 e 7).

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Figura 6: GALAXY11- The Training (2014) Figura 7: GALAXY11- The Training (2014)
Fonte: http://www.youtube.com Fonte: http://www.youtube.com

No filme publicitário GALAXY11 – The Training a mesma ideia é retomada. Pode-se


citar o filme de sucesso de bilheteria The Avengers (2012, fig. 9), cujos heróis também se
uniram para salvar o planeta de uma invasão de uma raça alienígena.

Figura 8: Liga da Justiça Figura 9: The Avengers


Fonte: http://www.google.com Fonte: http://www.google.com

A cena tradicional dos heróis em caminhada, unidos pela sua missão, pelo seu país e
planeta, geralmente apresentada em slow motion, lembra o filme Armageddon (1998, fig. 11),
quando heróis comuns se uniram para salvar a terra em uma missão no espaço.

Figura 10: GALAXY11- The Training (2014) Figura 11: Armageddon


Fonte: http://www.youtube.com Fonte: http://www.google.com

Uma cena interessante que mostra todo suporte de tecnologia na base de treinamento
está presente nas figuras 12 e 13, quando Franz Beckenbauer encarregado de montar
o time, utiliza as telas digitais. A sofisticação do digital, do tecnológico e o futurismo
remetem imediatamente ao cinema.

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Figura 12: GALAXY11- The Training (2014) Figura 13: GALAXY11- The Training (2014)
Fonte: http://www.youtube.com Fonte: http://www.youtube.com

É impossível não lembrar das cenas do filme Minority Report (2012, fig. 14 e 15), que
se passa no ano de 2054, quando o personagem John Anderton (Tom Cruise), líder da
sua equipe de policiais, na sua base, utiliza as telas digitais para obter informações.

Figura 14: Minority Report Figura 15: Minority Report


Fonte: http://www.google.com Fonte: http://www.google.com

A sequência do filme publicitário GALAXY11 – The Training apresenta muita ação. O


treinamento dos selecionados passa a se dar com um jogo com robôs, cujo objeto principal
de treinamento é a bola de futebol.

Figura 16: GALAXY11 The Training (2014) Figura 17: GALAXY11-The Training (2014)
Fonte: http://www.youtube.com Fonte: http://www.youtube.com

A ideia de robôs inimigos, ou robôs que possuem as habilidades humanas também


é presente no cinema. As referências para as cenas de treinamento com os robôs que no
filme publicitário representam os Aliens, ou seja, os inimigos, podem ser encontradas
no filme I, Robot (2004, fig. 18 e 19). O filme se passa em 2035 e os robôs ao quebrarem o

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código de programação chamado Lei dos Robóticos, ameaçam a dominarem o planeta.


O contexto do filme publicitário não é o mesmo do filme, mas a imagem de embate entre
robôs e humanos é muito parecida.

Figura 18: I, Robot Figura 19: I, Robot


Fonte: http://www.google.com Fonte: http://www.google.com

Mas para enfrentar o inimigo, o homem também necessita de armaduras, de tornar-


se meio ciborgue. A ideia de homem ciborgue permeia o coletivo. Filmes de ficção
científica sempre retomam o tema. No filme publicitário GALAXY11 – The Training,
vê-se referências claras da ideia de armadura, de extensão do corpo. Além do jogador, das
habilidades, existem extensões na indumentária que auxiliam a performance do herói.

Figura 20: GALAXY11-The Training (2014) Figura 21: GALAXY11-The Training (2014)
Fonte: http://www.youtube.com Fonte: http://www.youtube.com

Figura 22: GALAXY11-The Training (2014)


Fonte: http://www.youtube.com

Em Robocop (2014, fig. 23) e Iron Man (2008, fig. 24) pode-se observar tanto no contexto do
filme quanto na parte física da indumentária, a questão citada sobre o aparato de proteção
do herói.

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Figura 23: Robocop Figura 24: Iron Man


Fonte: http://www.google.com Fonte: http://www.google.com

Uma questão bastante curiosa é a referência da luz no peito do personagem


Tony Stark (Robert Downey Jr.) no filme Iron Man, como na figuras 25 e 26. No filme a luz
faz parte de um aparato necessário para que o personagem sobreviva, como um coração.
No uniforme dos jogadores, também existe uma luz que brilha no lado esquerdo do peito.
No filme esta luz não é tão óbvia, mas em outros materiais publicitários da campanha, é
possível observar este detalhe nos uniformes.

Figura 25: Iron Man Figura 26: GALAXY11- The Training (2014)
Fonte: http://www.google.com Fonte: : http://www.google.com

Entra em cena a bola. A bola de futebol que na verdade não é apenas uma bola, ela
também é um robô. Ela faz parte do treinamento, mas em um momento do filme, ela se
transforma em um pequeno robô que de forma independente, sai escondido até a sala
de comando onde está o treinador Franz Beckenbauer e pega o celular do mesmo em
cima da mesa, conforme figuras 27, 28 e 29.

Figura 27: GALAXY11- The Training (2014) Figura 28: GALAXY11- The Training (2014)
Fonte: http://www.youtube.com Fonte: http://www.youtube.com

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Figura 29: GALAXY11- The Training (2014)


Fonte: http://www.youtube.com

A lembrança do filme Transformesrs (2007) é imediata. O filme é permeado por


diversos objetos do cotidiano que se transformam em robôs. Mas a cena final do filme
GALAXY11- The Training é digna dos filmes de ficção que terão continuidade. Do espaço, o
vilão alienígena que vê o que acontece na terra, o treinamento, mostra um olhar de raiva e
faz “a cena” dos vilões nos finais de filmes de ficção científica que é dar a ideia de vingança
futura, numa alusão a continuidade do filme, como nas figuras 30 e 31 em uma intertextu-
alidade também com o filme Transformesrs.

Figura 30: GALAXY11- The Training (2014) Figura 31: GALAXY11- The Training (2014)
Fonte: http://www.youtube.com Fonte: http://www.youtube.com

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As marcas são interessantes para o consumidor porque ajudam a lembrar, adminis-
trar as emoções e nas escolhas. Além de bons produtos, na economia contemporânea é
necessário que uma marca tenha uma identidade visual concreta, que deve ser construída
a partir de uma boa elaboração da parte física do produto e também da parte abstrata,
que se trata do valor que o consumidor tem pela marca. Para criar este valor é preciso
que a marca comunique sua identidade de maneira correta, por meio de ferramentas de
comunicação que realmente auxiliem no fortalecimento de sua da identidade.
Esta identidade de marca, junto aos meios de comunicação, é formada pela construção
de imagens por meio de diferentes recursos visuais, sendo que todos estes recursos devem
estar de acordo com o perfil da marca e de seu público-alvo para que haja familiarização
entre marca e consumidor. A Copa do Mundo é um momento de grande visualidade para
as marcas patrocinadoras do evento e também para as que em um esforço de marketing
se apropriam do tema para criar estratégias e peças publicitárias de impacto. Neste
sentido, o Youtube torna-se um site de extrema importância estratégica para o universo
audiovisual, com possibilidades criativas e de atuação diferenciada na Web.

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Como no período da Copa do Mundo o consumidor recebe muitas mensagens com


o mesmo tema (futebol) e inclusive com os mesmos jogadores como garoto propaganda,
é inteligente que a linguagem da peça publicitária das marcas além de criar impacto,
trabalhe com signos que logo sejam reconhecidos pelo receptor. Com a presente pesquisa
pode-se ter indicadores que o Youtube possibilita ações diferenciadas de Marketing na
Web e que em termos de linguagem publicitária a intertextualidade com o cinema é
uma possibilidade interessante para a criação publicitária, para uma estética da men-
sagem que seja familiar e reconhecida imediatamente pelo receptor, em um cenário
de comunicação globalizada. No filme publicitário GALAXY11- The Training foi possível
observar a intertextualidade com vários filmes de ficção científica. O reconhecimento dos
signos e de contextos semelhantes em algumas cenas é imediato, pois muitos dos códigos e
signos presentes no filme publicitário GALAXY11- The Training já permeiam o inconsciente
coletivo em função da grande divulgação da mídia e interesse do público pelo gênero de
cinema pesquisado.

REFERÊNCIAS
COBRA, Marcos. Marketing básico: uma perspectiva brasileira. 4.ed. São Paulo: Atlas, 1986.
COVALESKI, R. Cinema, publicidade, interfaces. 1. ed. Curitiba, PR: Maxi Editora, 2009.
______. O processo de hibridização da Publicidade: entreter e persuadir para interagir e compartilhar.
Tese de Doutorado em Comunicação e Semiótica, PUC- São Paulo, 2010.
EXAME.ABRIL. Copa do Mundo 2014 foi a Copa das redes sociais. Disponível em:http://exa-
me.abril.com.br/tecnologia/noticias/copa-do-mundo-2014-foi-a-copa-das-redes-sociais.
Acesso em: de 16 de junho a 27 de julho de 2014.
GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. 12. reimpr. São Paulo: Atlas, 2009.
KOTLER, P.; ARMSTRONG, G.. Princípios de marketing. Rio de Janeiro: Prentice-Hall do
Brasil, 2003.
O GLOBO. Publicidade prevê crescer 50% com Copa de 2014 e Olímpíadas de 2016. 6/10/2009 atu-
alizado em 10/11/2011. Disponível em: http://oglobo.globo.com/economia/publicidade-
-preve-crescer-50-com-copa-de-2014-olimpiadas-de-2016-3152075 Acesso em: de 16 de
junho a 27 de julho de 2014.
SANTAELLA, Lucia. Semiótica Aplicada. São Paulo. Pioneira ThomsonLearning, 2002.
______. Porque as comunicações e as artes estão convergindo? São Paulo: Paulus, 2005.
STAKE, R. E. Handbook of qualitative research. Londres: Sage, 1994.
UOL COPA. Copa baterá recorde de audiência e de arrecadação com publicidade na TV.
Disponível em: http://copadomundo.uol.com.br/noticias/redacao/2014/05/21/copa-
-batera-recorde-de-audiencia-e-de-arrecadacao-com-publicidade-na-tv.htm Acesso em:
de 16 de junho a 27 de julho de 2014.
YIN, R. K. Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre: Bookman, 2005.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

5944
A construção mimética da transmissão
televisiva da Copa do Mundo de 2010
The mimetic construction television
broadcasts of the 2010 World Cup
Tat i a n a Z ua r d i U s h i n o h a m a 1

Resumo: A proposta desta comunicação é verificar a construção mimética


utilizada pela transmissão televisiva na Copa do Mundo de 2010, devido à
troca de suporte técnico do analógico para o digital, o que permitiu novas
e amplas possibilidades na construção narrativa. Identificaram-se duas
construções narrativas: a “ao vivo”, que sugere uma narração aberta, conduzida
invisivelmente pelas câmeras centrais; e o replay, em que o telespectador gira em
torno da ação, movendo-se para o tempo passado a partir da inserção de outras
perspectivas, eixos e representações visuais não antropomórficas. O modelo
adotado, portanto, contrapõe–se ao modelo anterior do observador invisível,
proposto por Pudovkin.
Palavras-Chave: Futebol. Copa do Mundo. Televisão.

Abstract: The proposal of this communication is to check the mimetic construction


used by TV broadcasting in the World Cup 2010 due to the exchange of technical
support from analog to digital has allowed new and extensive possibilities in
the narrative construction. Have been identified two narratives buildings: the
“live”, which suggests an open narration invisibly conducted by central cameras;
and the replay, in which the viewer turns on the action, moving for the last
time from the insertion of other perspectives, axes, not anthropomorphic visual
representations. The current model, thus, is opposed to the previous model of
the invisible observer, proposed by Pudovkin.
Keywords: Soccer. World Cup. TV Broadcasting.

U MA TRANSMISSÃO televisiva direta e “ao vivo” de um evento esportivo vem


requerendo uma perspectiva que instaure uma imediata proximidade e vivaci-
dade entre a transmissão e o telespectador, opondo-se a um método de filmagem
distante, inerte e teatral. Esse conceito de mostrar narrando tem-se fundamentado na
teoria mimética, proposta inicialmente por Aristóteles, em sua Poética, desenvolvida para
a representação teatral. Essa teoria narrativa, baseada na imitação, foi adaptando-se nos
diversos meios, sempre adotando um ato de visão de in loco como modelo de um objeto
se apresentar aos olhos do receptor.

1.  Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e


Comunicação da Universidade Estadual Paulista (UNESP/Bauru). E-mail: tatianazuardi@globo.com

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A construção mimética da transmissão televisiva da Copa do Mundo de 2010

Tatiana Zuardi Ushinohama

A transmissão da Copa do Mundo de 1970, a primeira a captar e emitir via satélite


para todo o mundo um jogo simultaneamente à sua realização, apresentou como forma
narrativa ou modo de imitação a experiência ordinária de um torcedor, sentado na
tribuna de honra do estádio. Esse modelo de transmissão televisiva construiu-se a
partir da teoria mimética de um observador invisível, desenvolvida por Pudovkin (1958),
uma vez que acatava as limitações técnicas do meio e era de fácil reconhecimento pelos
espectadores, pois se tratava de um primeiro contato com o meio, para muitos.
Passados quarenta anos, houve uma troca no suporte técnico televisivo, do sistema
analógico para o digital, de maneira que novos recursos surgiram (alta definição de ima-
gem e som, suporte de câmeras que permitem ângulos não antropomórficos, ampliação no
formato da tela 16:9) e outros foram aprimorados (replay, geradores de caracteres, switcher,
estabilizador de sinal, armazenamento e recuperação dos dados). O objetivo desta comu-
nicação é, portanto, verificar a construção mimética proposta pela transmissão televisiva
da Copa do Mundo de 2010, na tecnologia de transmissão televisiva no sistema digital.

1. TEORIA MIMÉTICA: OBSERVADOR INVISÍVEL


No livro Film Tecnique and Film Acting, Pudovkin propôs um conjunto de técnicas
fílmicas a fim de definir um processo singular de expressão destinado ao meio
cinematográfico, ou seja, visual. As suas investigações começaram quando ele percebeu
que os métodos literários aplicados ao filme não estavam adequados ao tratamento do
material cinematográfico. “Every art possesses its own peculiar method of effectively presenting
its matter”2 (Pudovkin, 1958, p.1). Dessa forma, Pudovkin sugeriu como método visual
uma teoria mimética em que o meio assumisse o papel de um observador invisível.
Según Pudovkin, la lente de la camera representa los ojos de un observador implícito que ve
la acción. Al encuadrar el plano de una cierta manera, y al concentrarse en los detalles más
significativos de la acción, el director fuerza al público “a mirar como mira un observador
atento”. El cambio de plano corresponderá, pues, a “la natural transferencia de atención de
un observador imaginario” (BORDWELL, 1996, p.9).

Logo, a narração equivale a mostrar, e a recepção equivale a perceber. Nessa


perspectiva, a chave está na orientação transmitida ao espectador para que este
compreenda a história representada. O modelo pressupõe, então, coordenadas espaciais
rígidas em que um “(…) film technician, in order to secure the greatest clarity, emphasis,
and vividness, shoots the scene in separate pieces and, joining them and showing them,
directs the attention of the spectator to the separate elements, compelling him to see as
the attentive observer saw”3 (Pudovkin, 1958, p. 42).
Pudovkin sugiere incluso que acortando el tempo del montaje puede reproducirse en el
espectador la excitación creciente de un testigo invisible. En escritos posteriores amplió su
teoría al sonido, ocupando el micrófono el lugar de los oídos del observador (BORDWELL,
1996, p.9).

2.  Tradução livre: Toda arte possui seu próprio método de apresentar o seu assunto.
3.  Tradução livre: A técnica fílmica, a fim de garantir a maior clareza, ênfase e vivacidade, grava as cenas
em partes separadas e uni-as de modo que direcione e induza a atenção do telespectador, direcionada e
induzida a ver por meio dos seus olhos.

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E que essa combinação narrativa da imagem e som siga uma disposição psicológica
que simule o processo de observar o todo ou um detalhe, imitando os aspectos humanos
físicos e psicológicos da atenção, pois a:
The sequence of these pieces must not be uncontrolled, but must correspond to the natu-
ral transference of attention of an imaginary observer (who, in the end, is represented by
the spectator). In this sequence must be expressed a special logic that will be apparent
only if each shot contain an impulse towards transference of the attention to the next4
(PUDOVKIN, 1958, p. 43).

Essa analogia espacial busca a imersão do receptor na realidade encenada, de forma


que o movimento da câmera passe a representar a mobilidade do corpo: a panorâmica e
o tilt 5 são os movimentos da cabeça, e o zoom é a focalização dos olhos em um detalhe.
Por isso, a montagem nesse modelo opta por planos longos, a fim de que o espectador
se identifique com a representação visual mostrada e a sua estruturação mentalmente
sugerida. De modo que a câmera e o microfone assumem uma posição antropomórfica
em relação ao espaço de captação, posicionando se como uma pessoa diante da realidade
a ser mediada.
One must learn to understand that editing is in actual fact a compulsory and deliberate
guidance of the thoughts and associations of the spectator. If the editing be merely an
uncontrolled combination of the various pieces, the spectator will understand (apprehend)
nothing from it; but if it be coordinated according to a definitely selected course of events
or conceptual line, either agitated or calm, it will either excite or soothe the spectator6
(PUDOVKIN, 1958, p. 45).

Com isso, o diretor interpreta seu entorno, concentrando o tempo e a ações,


eliminando as informações desnecessárias, fazendo com que o trabalho da transmissão
televisiva torne-se um processo de análise do fato e dissecação dos elementos a fim de
que o evento seja reelaborado em imagens, em uma sequência lógica.
The filmic form is never identical with the real appearance, but only similar to it. When the
director establishes the content and sequence of the separate elements that he is to combine
later to filmic form, he must calculate exactly not only the content, but the length of each
piece, or, in other words, he must regard it as an element of filmic space and filmic time7
(PUDOVKIN, 1958, p. 70).

4.  Tradução livre: A sequência dessas partes não deve ser descontrolada, mas deve corresponder à
transferência das atenções de um observador imaginário (que, no final, é representado pelo espectador).
Nessa sequência deve ser expressa uma lógica especial somente se ela apresentar evidências de que a cena
apresente estímulo na direção da transferência de atenção para outra cena.
5.  Tilt – Movimento mecânico de câmera realizado na posição vertical.
6.  Tradução livre: É preciso entender que a edição é, na realidade, uma orientação obrigatória e deliberada
dos pensamentos e associações do espectador. Se a edição for meramente uma combinação descontrolada
das diversas peças, o espectador não vai entender (apreender) nada com isso; mas se for coordenada de
acordo com um curso definitivamente selecionado de eventos ou linha conceptual, ou agitados ou calmos,
ela irá excitar ou acalmar o espectador.
7.  Tradução livre: A forma fílmica nunca é idêntica à aparência real, mas se assemelha a ela. Quando o
diretor estabelece o conteúdo e a sequência dos elementos separados a fim de combiná-los na forma fílmica,
ele calcula não só o conteúdo, mas o comprimento da peça.

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A consequência disso é que esse material visual busca estabelecer um vínculo refe-
rencial com o mundo, no intuito de que a filmagem represente a verdade, como uma
fotografia. O objetivo é que o modelo de observador invisível assuma uma localização
ideal, centralizada, imóvel e de perspectiva linear, recriando a ilusão do espaço e da
profundidade conforme a necessidade do suporte, no caso, da TV bidimensional.

1.1. COPA DO MUNDO DE 1970


Em 1970, o modelo de observador invisível fundamentou-se na tradição da pers-
pectiva cientifica linear, proposta por Albertini durante o Renascimento. A perspectiva
linear surgiu na pintura e dominou a construção imagética (teatro, pintura, cinema) até
princípios do século XX. Nela, as linhas convergem para um único ponto de fuga, esta-
belecido na região central, que seria o da testemunha imaginária fixa, o telespectador.
A emissora de televisão mexicana Telesistema elaborou sua transmissão televisiva
da Copa do Mundo de 1970 no modelo mimético do observador invisível, em que o
telespectador era uma testemunha ideal fixa na localização ideal. A proposta estava
diretamente ligada às limitações técnicas dos equipamentos televisivos, já que, naquele
momento, inaugurava-se o sistema analógico colorido e a televisão estruturava-se como
meio de comunicação de massa. Foram utilizadas quatro câmeras fixas para a captação
do jogo, posicionadas duas na região central e duas atrás de cada gol, de forma que
assumissem um ângulo de visão do torcedor no estádio, ou seja, antropomórfico. A
narrativa imagética televisiva foi desenvolvida pelas duas câmeras posicionadas no alto
e no centro do campo, de modo que a câmera principal recortava o espaço em torno da
bola e a câmera auxiliar trazia o detalhe do mesmo enquadramento feito pela câmera
principal.
Como o objetivo principal de um jogo de futebol é colocar a bola dentro do gol, com
a bola em movimento, a emissora optou por segui-la nas amplas dimensões do campo,
simulando o movimento do pescoço do torcedor por meio de movimentos mecânicos na
câmera, panorâmica e tilt. A intenção era simular as atividades naturais do ser humano
para que a montagem ficasse imperceptível ou invisível à percepção do receptor.
Logo, os planos abertos (PG 8) eram longos e procuravam mostrar sempre as linhas
do campo, para que o espectador criasse uma identificação do espaço e estruturasse um
mapa mental do jogo e das jogadas, pois era mostrada apenas parte. No enquadramen-
to, os elementos principais eram posicionados no centro da imagem, de forma a não
perder seus componentes de foco, a fim de não revelar o meio diante de um eventual
desequilíbrio ou falha no prosseguimento da sequência.
Um jogo de futebol na TV é, portanto, um programa televisivo apoiado no visual,
pois é construído a partir da imagem dos movimentos corporais dos jogadores, sendo
que o som, do ambiente e da locução, aparece apenas como um fator complementar e/
ou de redundância, assegurando a informação anteriormente apresentada. A construção
narrativa do modelo do observador invisível utiliza-se da verossimilhança entre o
material transmitido e o evento, para gerar a ilusão de que o discurso da transmissão
televisiva de futebol é a verdade.

8.  PG – Plano Geral

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2. MÉTODO
Com o objetivo de verificar a construção mimética proposta pela transmissão televisi-
va da Copa do Mundo de 2010, já que neste evento o meio televisivo substituiu, totalmente,
a tecnologia de transmissão de analógica para digital, selecionou-se como corpus o jogo
final da Copa do Mundo de 2010, entre Espanha e Holanda, realizado às vinte horas e
trinta minutos (horário sul-africano), do dia 11 de julho de 2010, diretamente do estádio
Soccer City, na cidade de Johannesburg. Trata-se do jogo mais importante da competição,
pois se decidia o campeão, e o que obteve a maior audiência. Para isso, o corpus foi quan-
tificado nos elementos da linguagem audiovisual (plano9, enquadramento10, transição11),
para, em seguida, examinar o significado produzido pela articulação e hierarquização
das imagens e som, ou seja, o sentido mimético da transmissão televisiva de futebol.

3. COPA DO MUNDO DE 2010


A partir da distribuição dos equipamentos digitais em torno do campo (Quadro 1),
a TV FIFA concretizou suas normas de transmissão por meio do uso do sistema digital
para narrar os jogos e comunicá-los para o mundo. Durante os primeiros 90 minutos
da final, foram registrados 959 planos, com uma duração média de 5,5 segundos. Como
o jogo terminou empatado, houve a prorrogação, com mais 30 minutos de jogo, para
se definir o campeão, onde foram captados mais 430 planos, agora com duração média
de 4,4 segundos. Essa transmissão televisiva total do jogo ocorreu, portanto, devido a
1.389 planos, organizados e hierarquizados conforme a captação das imagens de uma
das 32 câmeras disponíveis para a transmissão.
Câmeras Microfones

Quadro 1. Distribuição e Posicionamento dos equipamentos de captação. Fonte: HBS, 2010.

Para estabelecer uma leitura do uso desses componentes na criação da transmis-


são televisiva, empregar-se-á o ponto de vista ótico, induzido pela câmera, da maneira
em que foram agrupados em três níveis de perspectiva: Alta (anel superior do estádio
ou aérea), Média e Baixa (na altura do campo), a partir da perspectiva produzida pela
primeira imagem. A seleção das câmeras tem como objetivo envolver o telespectador

9.  Plano – Unidade mínima da linguagem audiovisual, isto é, um segmento ininterrupto de tempo e espaço
audiovisual (GARDIES, 2006, p.08).
10.  “Designa-se por enquadramento o acto, bem como o resultado desse acto, que delimita e constrói um
espaço visual para transformar em espaço de representação” (GARDIES, 2006, p.23).
11.  Transição ou raccords – “(...) elos que permitiam atenuar os efeitos de corte entre planos ou conferir-lhes
um sentido particular” (GARDIES, 2006, p.55).

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no jogo de futebol, produzindo sua imersão na narrativa de acordo com a combinação


das câmeras com o áudio do estádio.
A quantificação dos planos indicou que, dos três pontos, o uso das câmeras altas foi
significativamente maior em relação aos outros dois níveis, sendo utilizadas em 56% dos
planos. Já as câmeras na região médias foram requisitadas em 8%; e as baixas, em 36%.
Esses dados trazem que a construção da narrativa televisiva privilegia um ponto de vista
em que haja uma distância focal maior em relação aos acontecimentos. Isto é o reflexo de
determinadas convenções referentes ao antropomorfismo visual de um torcedor sentado
na tribuna de honra (centro do campo e no alto), que possui a vista do campo todo.
Nota-se também que, conforme o nível da câmera, convenciona-se uma impressão
em relação à proximidade com o meio circulante, o campo e os jogadores. No caso de um
plano produzido por uma câmera com grande distância focal, a impressão provocada
é a de lentidão conforme as ações se desenrolam, já que os planos gerados por distân-
cia focal curta geram um efeito de brevidade, segundo Gardies (2006). Esta é uma das
possíveis explicações para a grande diferença na duração média dos planos segundo
os níveis, visto que as câmeras altas captaram em um intervalo de tempo médio de 7,4
segundos e as câmeras baixas em 3,3 segundos.

Câmera Alta Câmera Baixa

Quadro 2. Ponto de vista das câmeras. Fonte: abc, 2010.

As câmeras “especiais” elaboraram pontos de vista óticos que não correspondem


a uma visão antropomórfica, já que se tratava de visões aéreas do campo. Uma câmera
foi a aranha, que ficava suspensa por cabos de aço percorrendo o campo. E a outra, a
câmera de um helicóptero com zoom ótico, que enviava as imagens por sinal de rádio.

Câmera Aranha Câmera Helicóptero

Quadro 3. Ponto de vista das câmeras altas “especiais”. Fonte: abc, 2010.

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Algumas das câmeras altas foram definidas, nesta pesquisa, como as aéreas e foram
pouco utilizadas. As outras foram as posicionadas no último anel da arquibancada, dis-
tribuídas atrás de cada gol, na região intermediária (esquerda e direita) e principalmente
na região central, com cinco câmeras. Essas câmeras centrais foram responsáveis por 89%
dos planos captados por este parâmetro, pois construíram uma visão frontal e um ângulo
onisciência em relação ao campo, já que as câmeras foram capazes de realizar um enquadra-
mento em que os acontecimentos, de um extremo ao outro do campo, puderam ser captados.

Esquerda Centro Direita

Fundo Helicoptero Aranha


Quadro 4. Imagens captadas pelas câmeras posicionadas na região superior. Fonte: abc, 2010.

As câmeras médias foram estabelecidas como aquelas que captavam planos acima
da linha do campo e abaixo do último anel do estádio e estavam localizadas na região
intermediária esquerda e direita (superslow-motion), na região central oposta ao eixo
principal de transmissão (2 em superslow-motion; 1 normal) e em cada gol (grua, câmera
em um suporte móvel; e microcâmera, fixa e posicionada no fundo do gol). Durante a
transmissão, foram exibidos 105 planos dessas câmeras, sendo que 47% são das câmeras
opostas, 31% da região intermediária, 20% da grua e 2% das câmeras dentro do gol.

Intermediária esquerda Grua Intermediária direita

Oposta esquerda Gol Oposta direita


Quadro 5. Imagens captadas pelas câmeras posicionadas na região média. Fonte: abc, 2010.

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As câmeras baixas foram as posicionadas na linha do campo, sendo: uma, fixa, na


região central, no eixo principal de transmissão, e outra oposta a ela; uma, móvel, em
cada região intermediária; e uma, em cada lado dos gols, no fundo do campo (superslow-
motion/ultraslow-motion). Os planos captados pertencem principalmente à câmera fixa da
região central (49%), seguida pelas câmeras móveis na região intermediária esquerda
(16%) e direita (14%); das câmeras no fundo (15%) e oposta (6%).

Esquerda Centro Direita

Fundo Fundo oposto Oposta


Quadro 6. Imagens captadas pelas câmeras posicionadas na região baixa. Fonte: abc, 2010.

Ao desconstruir a transmissão televisiva da final utilizando uma escala espacial


de planos, visualizaram-se, ao mesmo tempo, as ações que fazem a narrativa do jogo e
descrevem o contexto de jogada; desse modo, verificou-se que as câmeras altas captaram
principalmente em planos abertos, como: Grande Plano Geral12 (61,8%) e Plano Conjunto13
(13,1%), sendo que GPG foi significativamente relevante na composição narrativa da
transmissão, descrevendo e direcionando o texto televisivo, já que sua imagem produz
uma ampla cobertura das ações que são desenvolvidas pelos jogadores em campo.

GPG PC PA
Quadro 7. Imagens captadas pelas câmeras altas conforme os 3 planos mais requisitados. Fonte: abc, 2010.

Já as câmeras médias captaram principalmente, em dois planos, o Plano Médio14


(43,1%) e o Plano Geral15 (40,3%), de modo a apresentar diferença significativa em relação

12.  Grande Plano Geral (GPG)


13.  Plano Conjunto (PC)
14.  Plano Médio (PM)
15.  Plano Geral (PG)

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aos planos GPG, PC, PA16 e Detalhe. Não houve com essas câmeras nenhum Plano
Próximo17 ou Close-up18.

PM PG GPG
Quadro 8. Imagens captadas pelas câmeras médias, conforme os 3 planos mais requisitados. Fonte: abc, 2010.

As câmeras baixas captaram em todos os planos da escala de representa espacial


na tevê, sendo que, principalmente em PG (32,2%), PA (31,9%) e GPG (15,5%). Os demais
planos corresponderam a PM (8,9%), PP (8,9%), PC (6%), Detalhe (5,2%) e C (0,3%).

PG PA GPG
Quadro 9. Imagens captadas pelas câmeras baixas, conforme os 3 planos mais requisitados. Fonte: abc, 2010.

Conforme o gráfico 1, observou-se que o nível das câmeras (alta, média e baixa)
determinou uma utilização diferenciada da escala de representação espacial na tevê. As
câmeras altas privilegiaram o plano com dimensão espacial mais aberto. As câmeras
médias e baixas beneficiaram-se da profundidade de campo para destacar os jogadores,
tanto em primeiro como em segundo, em composições de planos abertos como: GPG e
PG. Devido ao ângulo de captação, as câmeras baixas, nos planos fechados, destacaram
o primeiro plano, desfocando o fundo para evitar que o telespectador tivesse sua atenção
desviada pelos elementos do segundo plano.

Gráfico 1. Relação percentual de imagens captadas pelas câmeras altas, médias e baixas na escala.

16.  Plano Americano (PA)


17.  Plano Próximo (PP)
18.  Close-up (C).

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A seleção dos planos, assim como a do elemento principal, bola ou jogador a serem
focalizados, foram opções determinadas pelo diretor de imagem, conforme o objetivo
da construção narrativa na transmissão do jogo. As câmeras altas tiveram a bola como
elemento principal em 77% dos planos e os jogadores, em 23%. Enfoques diferentes aos
apresentados pelas câmeras médias e baixas, uma vez que ambas priorizaram o jogador
(51% e 52%), ao invés da bola (49% e 48%), respectivamente.
Outra questão a destacar nas opções realizadas pelo diretor foi uma preferência
por câmeras fixas em todos os níveis. Na câmera alta, apenas 5% dos planos eram de
câmera móvel (aranha ou helicóptero). Na câmera média, a grua elevou o percentual
para 28% dos planos neste critério. Porém, na câmera baixa, mesmo com a possibilidade
da mobilidade proporcionada pela steadycam, o uso de planos elaborados por câmeras
móveis foi de 14%.
Bola Jogador

Alta

Média

Baixa


Quadro 10. Imagens das câmeras altas e baixas considerando a bola ou jogador. Fonte: abc, 2010.

Já o operador de câmera, para manter os elementos enquadrados dentro de um


mesmo plano, principalmente nas câmeras fixas, utilizou-se do movimento mecânico
panorâmico em 79,7% das câmeras altas, 57% das médias e 82 % das baixas. Já o
movimento mecânico de tilt foi requerido em 44% das altas, 10% das médias e 7% das
baixas, uma vez que, quanto maior o ângulo com o campo, maior a possibilidade de
movimento vertical. Os movimentos óticos foram utilizados mais nas câmeras altas (in
– 27%/ out – 23%) do que nas médias (in – 11%/ out – 11%) e baixas (in – 9%/ out –3%).
Durante a transmissão “ao vivo”, o diretor de imagem, ao optar pela troca de plano,
fazia essa ligação por meio do corte seco, ou seja, havia a junção de um plano com outro
sem qualquer efeito de transição. Os efeitos de transição foram utilizados no caso dos
replays para avisar o telespectador de sua inserção e, durante eles, para unir as diferentes
tomadas.

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Os replays corresponderam a 12% dos planos e apresentavam sempre um ponto


de vista diferente do mostrado pela transmissão “ao vivo”. As câmeras altas fornece-
ram 6% dos planos. As câmeras baixas 13%. As câmeras médias geraram metade dos
seus planos, 50%. Caso a câmera dos replays fosse a superslow ou ultra-motion, além da
ampliação do tempo de leitura do acontecimento para o telespectador, possibilitava
também um maior detalhamento das ações, visto que capturam até 1.000 quadros por
segundo. No momento da exibição do replay, apenas as imagens eram substituídas,
porque o áudio ambiente era mantido.
A dimensão sonora da transmissão televisiva do jogo de futebol foi constituída
por três elementos: os sons produzidos pelos jogadores em campo, os sons da torcida
e as conversas. Essa construção sonora possibilitou reduzir a ambiguidade visual dos
planos e reafirmar o encadeamento dos acontecimentos transmitidos pela televisão.
A paisagem sonora constituída pelo som da torcida esteve presente em 100% dos
planos, exteriorizando as emoções a cada situação do jogo, bem como o toque da
vuvuzela. Esse instrumento típico da cultura africana teve uma presença constante
nos jogos desta Copa e interferiu na captação do áudio, já que a intensidade do seu
som abafava os outros, não sendo possível destacá-los. Assim, os sons do campo
como apito do juiz, o toque na bola, os gritos, a respiração foram percebidos em
18,8% dos planos e, geralmente, quando a ação acontecia ao lado dos microfones
posicionados no campo. Poucas foram, também, as ocasiões em que se ouviram as
conversas entre os jogadores; jogadores e árbitros; e técnico e jogadores e, mesmo
assim, sem clareza.
A TV FIFA incluiu no seu pacote de transmissão a geração de informações textuais,
como: escalação das seleções, placar, tempo de jogo, nome dos jogadores, técnicos e
arbitragem, algumas estáticas sobre o jogo, substituição, cartões, (...) de modo a constituir
uma identidade visual única para sua transmissão mundial. Essa intervenção do
escrito na imagem garantiu que algumas informações fossem passadas diretamente
da transmissão para o telespectador, sem que houvesse um intermediário, o locutor
nacional. Os escritos, como o placar e o tempo, constantemente presentes na imagem,
tornaram-se elementos da narrativa com participação ativa, pois, a partir dessas
informações, era possível compreender o comportamento dos times no campo, dando
ao telespectador certa autonomia de interpretação. Dessa forma, o texto escrito participou
da composição da transmissão proposta pela TV FIFA como apoio à narrativa imagética
e sonora transmitida.

Quadro 12. Imagens em que foram inseridos elementos gráficos e informação escrita. Fonte: abc, 2010.

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CONCLUSÃO
A construção mimética da transmissão televisiva da Copa do Mundo de 2010 con-
trapôs–se ao modelo de observador invisível, proposta por Pudovkin e adotada pela
transmissão televisiva da Copa de 1970, em função do aumento de recursos e das pos-
sibilidades de criação oferecidas pelo sistema digital ao diretor.
Na transmissão da Copa de 2010, as câmeras centrais foram as mais requisitadas,
semelhante à Copa de 1970, porém, a função assumida era a de mestre-de-cerimônias
invisível, de modo que organizava as ações a serem enfatizadas, construindo uma
narrativa para um espectador ideal, que se encontrava idealmente móvel, no tempo e
no espaço.
Por isso, no momento em que a bola estava em movimento, a montagem em fluxo
propunha uma troca entre as câmeras com localizações diferentes e planos aproxima-
dos, para explorar o impacto que a imagem causaria no receptor ao entrar em contato
com um ponto de vista próximo à ação. Dessa maneira, essa construção não provoca
desconfiança e questionamento no receptor, pois está justificada pela presença contínua
de um narrador, ou seja, o diretor.
Por meio da diversidade de equipamentos e recursos, o diretor busca intensificar
ainda mais as ações, aumentando os significados e as emoções que pretende representar
na transmissão, a fim de influenciar de forma especifica o receptor e maximizar cada
impacto.
Durante os replays, o diretor utiliza-se da grande quantidade de câmeras e sua
posição, além da ampla possibilidade de armazenamento dos dados e de sua recupera-
ção, para desfrutar de sua perfeita liberdade de enfatizar ou “falsificar” a presença do
telespectador ideal, que estará móvel no tempo.
Assim, a transmissão viola constantemente a verossimilhança da construção narra-
tiva proposta no modelo do observador invisível em favor da fábrica de configurações
de estímulo, que converte a transmissão em uma interpretação emocional do jogo. Essa
construção mimética passa, portanto, despercebida pelo telespectador, pois a câmera
com imagens em alta definição, integrada as possibilidade de se poder ver um objeto ou
um acontecimento por todos e cada um dos lados, ângulos e distâncias, faz com que o
receptor seja uma testemunha onipresente e dotada de uma ubiquidade fantasmagórica.

REFERÊNCIAS
BORDWELL, D. La narración en el cine de ficción. Tradução: Pilar Vázquez Mota. Barcelona
Paidós Ibérica, 1996.
BRISELANCE, M.F.; MORIN, J.C. Gramática do cinema. Tradução: Pedro Elói Duarte.
Lisboa: Texto & Grafia, 2011.
CASETI, F; CHIO, F. Análisis de la televisión: instrumentos, métodos y prácticas de investi-
gación. Barcelona: Paidos, 1999.
GARDIES, R. Compreender o cinema e as imagens. Tradução: Pedro Elói Duarte. Lisboa: Texto
& Grafia, 2011. JOST, F. Seis lições sobre televisão. Porto Alegre: Sulina, 2004.
JOST, F. Narrativa cinematográfica. Brasília: Universidade de Brasília, 2009.
PUDOVKIN, V. Film technique and Film Action. Tradução: Ivor Montagu. Londres: Vision, 1958.

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Panorama da Produção Audiovisual independente do RN:
a cadeia produtiva via economia criativa
Dênia de F á t i m a C r u z S c k a ff 1

Resumo: Este texto se propõe a fazer uma reflexão sobre a cadeia produtiva
do audiovisual independente no Rio Grande do Norte pelo viés da economia
criativa. Trazemos como objeto o cenário da produção independente dos últi-
mos dez anos (2005-2015), no intuito de compreender como se compõe a cadeira
produtiva no estado, identificando seu papel como mecanismo cultural, social
e econômico. Para a análise abordou-se como referencial teórico a Sociabilidade
(Martin-Barbero, 2003), o Ativismo midiático (Trigueiro, 2008) e Economia Criativa
(Howkins, 2001; Reis, 2007), teorias pertinentes à temática investigada. Este estudo
foi estruturado metodologicamente por meio de uma análise histórico-descritiva,
de método hipotético-dedutivo, que se utilizou da análise de conteúdo e da obser-
vação participante, já que sou realizadora audiovisual independente e integro a
ABDeC-RN (Associação Brasileira de Documentarista e Curtametragista do RN).
A investigação revelou que atualmente há um crescimento interessante nas pro-
duções audiovisuais em virtude dos fomentos públicos e do empreendedorismo
dos produtores independentes, o que está promovendo mudanças nas práticas
audiovisuais potiguares, contribuindo para o acesso à cultura audiovisual e a
promoção da economia criativa no cenário potiguar.
Palavras-chave: Produção audiovisual, Economia criativa, Cadeia produtiva

Abstract: This paper propose a reflection on the productive chain of independent


media in Rio Grande do Norte from the perspective of the creative economy. We
show the independent production from the last ten years (2005-2015) in order to
understand how to understand the production chain in the state, identifying its
role as a cultural mechanism, social and economic. For the approached analysis
as the theoretical framework at Sociability (Martin-Barbero, 2003), the Media
Activism (Trigueiro, 2008) and Creative Economy (Howkins, 2001; Reis, 2008),
theories relevant to the topic investigated. This study was methodologically
structured through a historical-descriptive analysis of hypothetical-deductive
method, which was used content analysis and participant observation, since I
am independent audiovisual director and member of the ABDeC-RN (Brazilian
Association of Documentary filmmaker of RN). The investigation revealed that
currently, there is a growth in audiovisual productions because of public encour-
agements and entrepreneurship of independent producers, which is promoting
changes in potiguares audiovisual practices, contributing the access to audiovi-
sual culture and the promotion of the creative economy in Rio Grande do Norte.
Keywords: Audiovisual production, Creative Economy, Production Chain

1.  Mestre em Estudos da Mídia pela UFRN (2014), Especialista em Gestão de Marketing pela Universidade
São Marcos (2009), e Graduada em Jornalismo pela UFRN (2003). Discente da Especialização em Cinema
pelo Departamento de Artes da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte – em curso 2014-2015),
email: deniafcruz@yahoo.com.br.

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E STE TEXTO é uma reflexão sobre a produção audiovisual independente no Rio


Grande do Norte, e tem como referencial os dois primeiros capítulos da dissertação
de Mestrado em Estudos da Mídia elaborada por mim e que investigou o processo
de produção audiovisual potiguar.
Para compreender o contexto histórico da produção cinematográfica no Rio Grande
do Norte, e na tentativa de recuperar parte da memória audiovisual potiguar foi
elaborado um panorama do cenário audiovisual dos últimos dez anos. No levantamento
bibliográfico constatou-se que é quase inexistente literatura sobre o assunto, resume-
se a alguns trabalhos acadêmicos Lima (2012) e Fiúza (2008) e ao livro Écran Natalense
de Anchieta (2007). Como estratégica para obtenção de informações foram realizadas
entrevistas individuais com atores sociais, que contribuíram ou contribuem para o
audiovisual no estado. Realizadas um total de 14 entrevistas com os realizadores
independentes integrantes de coletivos, grupos de produção, professores das áreas
de produção cultural e cinema, produtoras independentes, cineclubes, e integrantes
da ABDeC-RN – Associação Brasileira de Documentarista e Curtametragistas do Rio
Grande do Norte.
Identificou-se nos depoimentos informações comuns e bastante relevantes no que
se refere à construção da cultura audiovisual potiguar, o diagrama abaixo pontua os
principais elementos em comum revelados nas entrevistas:
Gráfico 1. Elementos norteadores para cadeia do audiovisual

Fonte: Elaboração própria com base nos pontos comuns destacados pelos entrevistados nas entrevistas.

De acordo com os dados dos depoimentos, além dos pontos acima elencados,
percebeu-se que os entrevistados concordam num ponto: a cinematografia potiguar
historicamente teve baixas, e que a produção audiovisual do estado está em processo
de ampliação desde o inicio da década de 2000.
Para compor o referencial do cenário da cadeia produtiva do audiovisual observou-se
o banco de dados criado por Fiúza (2008), que quantificou as produções cinematográficas
do RN da década de 1970 até os anos 2000 (curtas, longas e documentários). Durante o
levantamento Fiúza (2008) constatou que os registros encontrados eram em sua maioria
de produções amadores, e poucos produtos profissionais. O pesquisador ainda destacou
que há concentração de produções em um período especifico:

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(...) observamos que 95% do mapeado estava compreendido na última década, sobrando
apenas alguns títulos das três décadas anteriores e não mais que isso, impossibilitando que
apresentássemos títulos das décadas de 50 a 60, por exemplo, ou até antes disso. (FIÚZA,
2008, p. 14)

A constatação de Fiúza (2008) reforça uma hipótese; de que as ações de estímulo e


fomento à produção estão mudando o cenário audiovisual potiguar na última década. O
levantamento demonstra que nos anos 2000 houve aumento de produções, em virtude ao
acesso a mecanismos de fomento e aos meios de produção proporcionados, decorrentes
do avanço tecnológico.

Gráfico 2. Quantitativo da década de 1970 até 2008 das produções de filmes e vídeos no RN

Fonte: Elaboração própria com base em dados do TCC de Fiúza, 2008.

Interessante ressaltar a colocação de Lima (2012) 2, que revela sua percepção


sobre cena audiovisual potiguar, a partir da coleta de material para o programa “Olhar
Independente”, dirigido pela jornalista:
Nota-se um avanço considerável no número de produções nos últimos anos no estado, perce-
bemos nas exibições do programa Olhar Independente da TV Universitária-RN, de outubro
de 2008 até novembro de 2012 foram produzidos 142 programas inéditos, com a exibição
de 205 curtas ao todo. Dado que pode comprovar a nova safra da produção audiovisual no
estado. No entanto, os trabalhos produzidos no estado, ainda são poucos competitivos se
comparados com os demais estados do Nordeste. (LIMA, 2012, p. 6).

Constata-se que a produção audiovisual do Rio Grande do Norte está em constante


processo de renovação e necessita de políticas públicas efetivas e permanentes que
subsidiem o setor do audiovisual, e proporcione o fluxo econômico da cadeira produtiva

2.  Erica Lima, jornalista, produtora audiovisual independente, integrante do Coletivo Caminhos,
Comunicação & Cultura. Dirigia e apresentava o programa Olhar Independente da TV Universitária.

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de forma a consolidar a sustentabilidade do setor. Contudo, identifica-se também que a


vontade de produzir é maior que os obstáculos e, apesar das dificuldades, os produtores
audiovisuais, estudantes e ativistas culturais buscam alternativas para concretizar suas
produções audiovisuais colocando-as em prática.

PRODUÇÃO AUDIOVISUAL POTIGUAR EM SEUS ESPAÇOS


No Rio Grande do Norte, assim como em outros estados do Nordeste do Brasil, a
produção audiovisual ainda é tímida comparada ao eixo sudeste/sul do país. Marson
(2009) em artigo publicado no livro “Cinema e políticas de Estado: da Embrafilme à
Ancine” comentava o aumento das produções fora do eixo sudeste do país:
Já em relação à diversidade regional, vale destacar que cineastas das cinco regiões do Brasil
produziram a partir de meados dos anos 90, diminuindo a alta concentração de produção da
região sudeste, em especial no eixo Rio – São Paulo. Cineastas do norte (Aurélio Micheles,
Djalma Limongi Batista), do nordeste (Lírio Ferreira, Paulo Caldas, José de Araújo, Marcus
Moura, Rosemberg Cariry, Claudio Assis), do sul (Jorge Furtado, Otto Guerra, Sylvio Back,
Carlos Gerbase, João Pedro Goulart) e do centro-oeste (André Luiz Oliveira, Afonso Brazza)
puderam realizar seus filmes. Essa diversidade regional deve-se também às legislações
regionais que permitiram e estimularam o desenvolvimento de atividades de cinema em
diversos estados. (MARSON, 2009, p. 107).

Por isso, deve-se ter uma postura crítica e responsável diante alguns dados, pois o
espaço cultural deve ser democrático permitindo escolhas, não deve nunca ser restritivo
a um nicho, nem tampouco favorecer produção estrangeira em detrimento da nacional.
Há importantes instrumentos para fomentar a cultura audiovisual, e os editais
públicos são ferramentas facilitadoras para o aumento das produções, eles são conduzidos
por entidades como o BNB (Bando do Nordeste do Brasil) e o próprio MINC (Ministério
da Cultura), que por meio da Secretaria do Audiovisual (SAV) está criando mecanismos
que ampliam e democratizam o acesso à cultura audiovisual no país.
A realização audiovisual vai além da produção, há uma cadeia que precisa ser
respeitada e, de fato, ser posta em prática. Um produto audiovisual passa por três
etapas para chegar ao consumidor final: produção, distribuição e exibição. Os serviços
realizados devem ter seus valores definidos para que os profissionais envolvidos no
processo possam custear as despesas e seus pró-labores, e assim conseguiam exercer a
economia criativa como prática social.
Para pontuar as práticas audiovisuais exercidas atualmente no Rio Grande do norte
foi traçado um panorama da cadeira produtiva potiguar, que revela um quadro com
alguns dos protagonistas e suas respectivas atividades:

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Tabela 1. Cadeia do audiovisual potiguar independente

PRODUÇÃO EXIBIÇÃO DISTRIBUIÇÃO

Coletivos: Projetos para exibição: Ícone Studio –


Caminhos, Comunicação & SESC Cine Selo Mudernagem
Cultura - 2006;
Espantalho - 2013: Cine SESI Cultural
Caboré Audiovisual - 2013;
Camafeu – 2011

Formação: Festivais atuais:


Mercado da foto – Galeria e FestNatal;
escola de fotografia e audiovisual; Goiamum Audiovisual;
NPD – Núcleo de Produção FINC- Festival Internacional de Cinema de Baia Formosa;
Digital – projeto do MINC; Festival de Cinema de São Miguel do Gostoso;
Universidades: Sagi Cine;
UFRN – Curso de Radialismo;
UNP – Curso de Cinema

Produtoras independentes: Mostras:


Praieira filmes; SEDA Audiovisual – Semana do Audiovisual;
Casa da praia; Mossoró Audiovisual- Coletivo CC&C;
Set Box; Curta Mossoró - Coletivo CC&C;
Casu Filmes; Boom Audiovisual – UFRN
Eita Filmes;

Pontos de cultura: Cine clubes:


Cinema para todos - ITEC-RN; Cineclube Natal – desde 2005 até dias atuais:
Ponto de Cultura de Pium; Cine clube ABDeC-RN - 2012;
Pescadores de pérolas – Decom – 2013 e 2014;
Cine CCSA;
América Latina no Cinema – Curso de Ciências Sociais-
2013 - 2014;
A Cidade em cena e a A cidade (moderna) em cena – proje-
to de extensão do curso de Arquitetura – durante o de 2013.

ONGs: Salas de cinema:


Zoom; Dos 167 municípios do estado, somente em dois existem
Movaci. salas de cinema:
Mossoró: 5 salas
Natal: 29 salas em 4 shoppings

Fontes: Elaboração própria com base em Informação verbal, dados da ABDeC-RN, Sites e Mídias sociais.

Entender como se constitui essa cadeia produtiva vai além de elencar os componentes
que a integram, necessita-se compreender o papel dos elementos sociais, culturais e
econômicos nesse processo. Para isso é interessante refletir sobre bases teóricas que se
relacionam com esses elementos como a sociabilidade, o ativismo midiático e a economia
criativa. Contudo, uma análise profunda sobre o assunto iria requerer mais tempo, e
como o intuito desse texto é provocar a reflexão iremos apenas situar os elementos
dentro do contexto epistêmico e empírico.
Estudar a sociedade e suas relações é uma missão que deve ser considerada sagrada
para quem se propõe pensar a comunicação e a cultura no contexto social. Isso ocorre
porque comunicação e cultura são elementos da sociabilidade (Martin-Barbero, 2003),
conceito que constitui o estado das relações sociais e morais dentro de um determinado
grupo social. Grupo esse composto de atores que além de serem sujeitos sociais são
também sujeitos culturais e carregam referências de seu repertório de mundo, que
interfere em suas práticas cotidianas, como é o caso dos realizadores audiovisuais que
compões a cadeia produtiva no RN.

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A sociabilidade é uma construção histórica produzida coletivamente, envolvendo


relações de poder e refletida em cada sujeito singular por diferentes mediações,
expressando, assim, um ordenamento mais ou menos comum sobre as formas de sentir,
pensar e agir (Martin-Barbero, 2003).
Segundo Martin-Barbero (2003), a comunicação e a cultura, em particular na América
Latina, é um palimpsesto, uma espécie de um mosaico de representações, onde estão
colocados em composição elementos culturais de diferentes classes, etnias e épocas.
É possível concluir que o processo de práticas cotidianas, tão inerentes ao meio e
por vezes imperceptíveis numa primeira observação, são relações sociais tão naturais
que para entendê-las é necessário se ater ao próprio processo, e exercitar o olhar
epistemológico sobre as relações.
A prática audiovisual exercida no RN tanto é um exercício de sociabilidade como de
ativismo midiático, esse último se constitui em ações que há tempos vem sendo postas
em prática, mas sem o devido reconhecimento.
O praticante do ativismo midiático promove uma intervenção social junto a
comunidade usando mecanismos de apropriação midiática, de forma participativa e
integrante do universo sociocultural pois:
O ativista midiático se apropria da mídia para fazer o uso das suas informações como a
finalidade de manter atualizado o seu papel de ator social no seu grupo de convivência,
operando com as ofertas do mundo ficcional e do mundo real midiatizados. (...). É operador
de ações socioculturais, detém domínio da vida urbana e rural, está em constante contato
com os agentes estratégicos do domínio externo – do mundo lá de fora – através de proces-
so de comunicação interpessoal ou de massa, de alianças e convivências motivadas pelos
diferentes interesses. (TRIGUEIRO, 2008, p.108).

Esse papel de ativista desempenhado pelos atores sociais se consolida cada vez
que esse sujeito se reconhece como interventor do seu próprio fazer, identificando o
seu lugar na cadeia produtiva e valorizando o seu oficio como produto econômico,
buscando a sustentabilidade.
Muito se fala atualmente em um novo formato de economia aplicada as atividades
culturais e de criativa, é a conhecida Economia criativa3, que no Brasil está sendo
conduzida na estância governamental pela Secretaria de Economia Criativa, dentro
do Ministério da Cultura, responsável pela aplicação de políticas públicas para a área.
De forma sintetizada podemos colocar que a economia criativa é composta por
áreas (setores criativos) que têm como base a capacidade individual de criar produtos e
serviços com valor econômico e simbólico agregado, e que impactam de forma positiva
na sociedade de consumo, gerando renda para uma determinada empresa ou para um
empreendedor criativo (HOWKINS, 2001; REIS E MARCO, 2009).
No Rio Grande do Norte a economia criativa é uma ação iniciante, desconhecida em
teoria por muitos empreendedores culturais, mas colocada em prática por outros, que não

3.  Enquanto conceito, a economia criativa foi denominada como a economia resultante das “dinâmicas
culturais, sociais e econômicas construídas a partir do ciclo de criação, produção, distribuição/circulação/
difusão e consumo/fruição de bens e serviços oriundos dos setores criativos, caracterizados pela prevalência
de sua dimensão simbólica.” (Fonte SEC – Secretaria de Economia Criativa, 2011).

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tem nem consciência de que suas atividades são ações geradoras da economia criativa.
A exemplo da cadeia produtiva do audiovisual potiguar, setor em expansão no tocante a
formalização de produtores independentes, a formação e capacitação dos profissionais da
área, a criação de coletivos e grupo de profissionais associados para produção, e o mais
importante, a criação do APL do audiovisual4 (Arranjo Produtivo Local do Audiovisual).
Mecanismo que permitiu aos empreendedores criativos do audiovisual potiguar forma-
tarem um documento, que elencou os elementos constitutivos da cadeia produtiva, além
de identificar os atores sociais, públicos e privados que compõe essa cadeia.
Esse documento foi elaborado por um grupo de realizadores independentes, no
segundo semestre do ano de 2014, com o auxilio da consultoria fornecida pela Fundação
Vanzolini. E foi resultado de um edital do Ministério do Desenvolvimento e do Ministério
da Cultura, que contemplou arranjos produtivos que desejassem construir seu escopo
para aplicação de ações voltadas à economia criativa. A ABDeC-RN (Associação Brasileira
de Documentaristas e Curtametragistas do RN) participou do edital e foi contemplada,
representando o setor audiovisual do estado na elaboração do documento.
Considerando que ações, como a criação do APL do audiovisual, são apenas o inicio
da consolidação de uma cadeia produtiva do audiovisual potiguar, o setor começou
bem sua articulação. Pois segundo o pesquisador Howkins (2001), se as atividades de
cunho criativo (como as artes visuais, artesanato, dança, gastronomia, cinema, literatura,
música, teatro, moda, arquitetura, design, dentre outras) estiverem bem organizadas
com preparo de competências e habilidades podem gerar empregos, riquezas e ambiente
favorável para o negócio, ou seja, promovem a prática da sustentabilidade.

POR UMA TENTATIVA DE DEMOCRATIZAR A CULTURA AUDIOVISUAL


No Brasil, a cultura ainda necessita de fomento público ou privado para subsidiá-
la. A necessidade de políticas públicas é condição essencial para que recursos existam
e circulem permitindo o fluxo contínuo de produções, mas em decorrência da falta de
políticas publicas permanentes, esse fluxo não se consolida.
O que temos são incentivos fiscais dados às empresas para patrocinarem ações
culturais (por meio de renúncia fiscal via leis de incentivo) e os editais públicos. Mas
isso não é o suficiente e não garante o fluxo necessário para as produções culturais.
No tocante aos fomentos existentes para o audiovisual, há um pequeno crescimento
de produção no âmbito nacional. Entretanto, existe um déficit histórico e cultural para
produções realizadas fora do eixo Rio-São Paulo.
As leis de incentivo federais por si mesmas não asseguram a produção cultural regional,
alguns estados receberam poucos recursos das leis de incentivo federais, que se concentram
no eixo Rio - São Paulo. As leis de incentivo fiscal foram elementos centrais no fomento às
atividades culturais no Brasil dos anos 1990. Além das leis federais, atualmente em processo
de discussão e de revisão no que refere aos critérios de acesso aos seus recursos e de seus
mecanismos de operacionalização, os estados criaram mecanismos próprios de fomento
baseados em renúncia de arrecadação de impostos e viram-se diante da possibilidade,

4.  Arranjo produtivo local é o conjunto de atores necessários para o desenvolvimento de um determinado
setor, considerando-se todas as suas etapas da criação ao consumo. (Fonte SEC – Secretaria de Economia
Criativa, 2011).

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presente nas propostas de reforma tributária, de ter suas leis de incentivos fiscais extintas.
(SILVA, 2007).

Toda iniciativa de se criar mecanismo de estímulo à produção audiovisual indepen-


dente é válida. Entretanto, não isenta a responsabilidade do Estado de gerir políticas
públicas culturais e mantê-las.
Ações que começam a ganhar espaço através da promoção extracomercial da
indústria cinematográfica, como analisa a professora Lusvarghi (2010):
Atualmente, temos mais de cem festivais de cinema em todo país, num fenômeno incompa-
rável dentro da própria América Latina, que criam um circuito de lançamento e distribuição
paralelo ao oficial, levando filmes de ficção nacionais, documentários, a cidades que sequer
possuem uma sala de cinema. As redes, estrangeiras e nacionais, de multiplexes, não têm
interesse em abrir salas de cinemas de menos de 500 mil habitantes. E as salas de rua, como
são chamadas estão fechando, inclusive nos grandes centros. (LUSVARGHI, 2010, p. 72).

O acesso às produções audiovisuais nacionais e às salas de cinemas na maioria das


cidades urbanas e no interior do Brasil não é possível, visto a falta de interesse comercial,
restando somente a opção pelas salas itinerantes, a exemplo de projetos como o Cine
SESI Cultural5 e Cine Tela Brasil6 da Associação Tela Brasil.
No Rio Grande do Norte o cenário não é diferente. Atualmente, nos 167 municí-
pios do estado somente em dois deles existem salas de cinemas, na capital – Natal, e
em Mossoró, segundo maior município do estado. Totalizando 29 salas de exibição
comercais distribuídas em quatro shoppings nessas cidades, três shoppings em Natal
e um em Mossoró. Os outros 165 municípios não têm salas de cinema, ou porque nunca
tiveram, ou pior, tinham, mas viram as salas serem transformadas em lojas comercais
ou igrejas evangélicas, como aconteceu com as salas de cinema de rua que existiam em
Natal. Os quatro cinemas de rua7, localizados na região central da capital até os anos
de 1990 hoje são lojas de departamento, e o maior deles, o Cine Rio Grande, se tornou
uma igreja evangélica.

FOMENTOS PARA AS PRODUÇÕES CULTURAIS


– EDITAIS E LEIS DE INCENTIVO
É interessante ressaltar a importância da democratização para isso chama-se a
atenção à fala do Ministro da Cultura, Juca Ferreira, no tocante a ação de políticas
públicas:
Criar, fazer e definir obras, temas e estilos é papel dos artistas e dos que produzem cultura.
Escolher o que ver, ouvir e sentir é papel do público. Criar condições de acesso, produção,

5.  Cine Sesi Cultural é um projeto mantido pelo Serviço Social da Indústria no Rio Grande do Norte - SESI-
RN, com a realização de exibições de filmes em municípios do interior do estado, com população entre
10 e 80 mil habitantes, e onde não existem salas de cinema em funcionamento. (OLIVEIRA, 2012, p.13).
6.  Cine Tela Brasil é a primeira sala de cinema do país que anda. Vai de periferia em periferia, cidade em
cidade, levando cinema de graça para a população que não tem acesso às salas convencionais. Nas sessões
do Cine Tela Brasil, grande parte do público vê o cinema pela primeira vez. Fonte: <http://www.telabr.
com.br/cine-tela-brasil>.
7.  Os cinemas de rua eram: Cine Nordeste, Cine Rio Grande, Cine Panorama e o Cine Rio Verde.

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difusão, preservação e livre circulação, regular as economias da cultura para evitar mono-
pólios, exclusões e ações predatórias, democratizar o acesso aos bens e serviços culturais,
isso é papel do Estado. (Informação verbal8).

É fato reconhecer o dever do Estado com relação à democratização da cultura,


mas também é relevante frisar que para o poder público ter uma ação responsável e
em fluxo continuo é necessário possuir um mecanismo bem articulado, que favoreça
o funcionamento da máquina pública. Para isso, a construção de uma política cultural
seja em âmbito nacional, estadual e municipal é condição essencial, e acima de tudo
com a participação dos atores sociais atuantes na área.
O economista e ex-ministro de cultura Celso Furtado (2012), defensor da cultura
brasileira, em suas reflexões sobre política cultural define como deveria ser a aplicação
de políticas comprometidas com a acessibilidade e a democratização da cultura:
A política cultural consiste em um conjunto de medidas cujo objetivo central é contribuir
para que o desenvolvimento assegure a progressiva realização das potencialidades dos
membros da coletividade. Ela pressupõe um clima de liberdade e a existência de uma ação
abrangente dos poderes públicos que dê prioridade ao social. Essas são condições necessárias
para que a atividade cultural brote da própria sociedade, para que se manifeste e desabroche
o gênio criativo dos indivíduos. Mas não são condições suficientes para que se obtenha um
desenvolvimento cultural. Igualmente necessária é uma ampla difusão dos valores, a fim
de que estes se incorporem efetivamente ao viver da população. Cumpre, igualmente, ter
em conta que os bens culturais são, como referência, frágeis e sua destruição, irreparável.
(FURTADO, 2012, p.64).

Furtado (2012) ainda destaca o compromisso que o Estado precisa ter com a sociedade
no tocante a preservação da identidade cultural:
Também cabe ao Estado apoiar seletivamente as distintas formas de produção cultural, sem
interferir na criatividade artística. (...) A comunidade de criadores culturais deve encontrar
no Estado o suporte que lhe permita debater esses problemas a fim de contribuir para a
preservação da identidade cultural do país. (FURTADO, 2012, p. 104).

É necessário que o Plano Nacional de Cultura 9 ocupe de fato seu papel de agente
legal na condução de uma política pública comprometida e eficiente em todo território
nacional.
Apesar de leis instituídas há tempos e demandas culturais em evidências, a política
cultural nacional ainda não tomou um corpus único. Estamos vivendo um processo
de estruturação quase que permanente, e ter instrumentos legais no âmbito regional

8.  Trecho de discurso em solenidade/maio de 2011. Fonte: <http://www2.cultura.gov.br/site/2009/05/12/


discurso-do-ministro-da-cultura-juca-ferreira-na-solenidade-de-posse-da-diretoria-do-instituto-brasileiro-
de-museus/>.
9.  O Plano Nacional de Cultura (PNC), instituído pela Lei 12.343, de 2 de dezembro de 2010, tem por
finalidade o planejamento e implementação de políticas públicas de longo prazo (até 2020) voltadas à proteção
e promoção da diversidade cultural brasileira. Diversidade que se expressa em práticas, serviços e bens
artísticos e culturais determinantes para o exercício da cidadania, a expressão simbólica e o desenvolvimento
socioeconômico do País. Fonte: <http://www.cultura.gov.br/plano-nacional-de-cultura-pnc->.

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ainda é algo complicado, pois os Estados não estão preparados para isso. Esse é o
principal motivo pelo qual as leis estaduais e municipais não atendem por completo as
necessidades da cena cultural.
E na realidade vivenciada no Rio Grande do Norte constata-se também a ausência
de uma política cultural estruturada. Há sérias dificuldades por incentivos e subsídios
à cultura no estado, nas mais diversas instâncias culturais, entre elas, a produção
audiovisual. Sem falar nos processos sem sucesso como alguns editais10 que não foram
pagos até os dias atuais, tanto pelo executivo estadual como pelo municipal. Fatos que
decepcionam a categoria e desestimula a produção.
A participação do Estado no processo de democratização e acessibilidade à cultura
é de fundamental importância, e tem que ser feita com responsabilidade social. As leis
de incentivos e editais regionais existentes são insuficientes para atender a demanda. O
quadro demonstrativo a seguir revela sinteticamente as formas de fomentos existentes
por meio de editais e leis disponíveis para os produtores potiguares no RN:

Tabela 2. Leis de incentivo e Editais

Editais culturais: mecanismos de incentivo e promoção da cultura por meio do instrumento edital público.
Ferramenta que oferece recursos ou meios para execução de alguma ação e/ou produto cultural
Públicos: Ex: Petrobras, BNB, MINC, SAV, Prefeituras e Governos.
Privados: Ex: Itaú Cultural; Oi;Unimed

Nacional:
Lei Rouanet - Lei Federal nº 8313/ dez de 1991. Institui políticas públicas para a cultura nacional, como o PRONAC -
Programa Nacional de Apoio à Cultura. Chama-se Lei Rouanet em homenagem a Sérgio Paulo Rouanet, diplomata e
ex-secretário de cultura do governo Collor, responsável pela criação da lei. Segundo o pacote de medidas propostas
por Roaunet, os bens culturais poderiam ser financiados de três maneiras: Fundo Nacional de Cultura (FNC); Fundos
de investimentos culturais e artísticos (Ficart); Incentivos a Projetos Culturais.
Lei do Audiovisual - A Lei do Audiovisual é a Lei Federal de nº 8.685/93 que visa o investimento na produção e co-
-produção de obras cinematográficas e audiovisuais e infraestrutura de produção e exibição. Prevista originalmente
para vigorar até o exercício fiscal de 2003, foi prorrogada por mais 20 anos por meio da medida provisória de n.°
2.228 de 2001.

Estadual – Lei Câmara Cascudo


A Lei Estadual de n° 7.799, de 30 de dezembro de 1999 para incentivo à cultura, é baseada em desconto de 2% sobre
o ICMS. O teto é de R$ 6 milhões. .

Municipais:
- Lei Djalma Maranhão - Lei Municipal de nº 4.838/97 do município do Natal. Tem por objetivo incentivar à cultura
por meio de Renúncia Fiscal, no qual o poder executivo Municipal abre mão da cobrança do percentual dos impos-
tos Sobre Serviço (ISS) e Predial e Territorial Urbano (IPTU), para que a iniciativa privada passe a investir na cultura
local.

Lei Vingt-un Rosado - Lei Municipal Complementar de n.º 016/2007 do município de Mossoró.

Fonte: Elaboração própria com base em dados dos sites do MINC, Governo do RN,
Prefeitura do Natal e Prefeitura de Mossoró.

10. 9 O Edital do Prêmio Willam Cobbet para produções audiovisuais foi realizado em 2009 pela Secretaria
Extraordinária de Cultura do Estado/ Fundação José Augusto e selecionou 4 projetos de R$ 20 mil cada,
mas ainda não foram pagos . Fonte: TN dez/2011 <http://tribunadonorte.com.br/print.php?not_id=206794>.
e TCC de Erica Lima - 2013.
FIC - Fundo de Incentivo à Cultura do município do Natal previsto em Lei municipal de n.º 5.760, de 30 de
dezembro de 2006, no ano de 2011 os R$ 400 mil previstos para o edital do FIC 2011 não foram empenhados
pela prefeitura, por isso os projetos aprovados nesta edição não foram pagos. Fonte: TN jun 2011 <http://
tribunadonorte.com.br/news.php?not_id=222997>.

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5966
Panorama da Produção Audiovisual independente do RN: a cadeia produtiva via economia criativa

Dênia de Fátima Cruz Sckaff

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observar o percurso pelo qual trilha hoje a produção audiovisual independente
potiguar é compreender as práticas audiovisuais adotados atualmente no estado, e
constatar que o que falta de fato é estabelecer políticas públicas acessíveis a todos.
Pois a cena audiovisual potiguar vive uma nova fase e por isso são necessários outros
olhares, debates, reflexões e discussões sobre o que está sendo produzido, estabelecendo
interfaces entre os produtores, realizadores e pesquisadores, criando assim mecanismos
para a consolidação da sustentabilidade do setor.
Concluímos com isso que a caminhada ainda é longa para que se tenha uma política
cultural comprometida, de Estado e não de Governo. É essencial que a sociedade civil
esteja organizada e engajada na promoção à cultura; cobrando dos governos políticas
públicas eficientes, e fiscalizando a manutenção delas.

REFERÊNCIAS
FERNANDES, Anchieta. Écran natalense: capítulos da história do cinema em Natal. Natal:
Gráfica do Sindicato dos Bancários/RN, 1991.
FIUZA, Pedro Augusto Soares. Guia do cinema potiguar. TCC de conclusão de graduação em
Comunicação Social – Radialismo. UFRN, 2008.
FURTADO, Rosa Freire D´Águiar (org.). 2012. Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura/
Celso Furtado, 1920-2004.Rio de Janeiro: Contraponto: Centro Internacional Celso Furtado.
HOWKINS, John. The Creative Economy: how people make money from ideas. England:
Penguiin Books, 2001.
LIMA, Érica Conceição Silva. Panorama do audiovisual potiguar (2007-2012). TCC de conclusão
do Curso de Formação de Gestores Culturais dos Estados do Nordeste. Especialização
pela Fundação Joaquim Nabuco/ UFPE. 2012
LUSVARGHI, Luiza. Cinema nacional e World cinema – Globalização, exclusão e novas tec-
nologias na produção audiovisual brasileira. Manaus, AM: Edições Muiraquitã, 2010.
MARSON, Melina Izar e Alessandra Meleiro (org.). Cinema e políticas de Estado: da Embrafilme
à Ancine. São Paulo: Escrituras Editora, 2009.
MARTIN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações. Comunicação, cultura e hegemonia. Rio
de Janeiro: Editora UFRJ, 2003.
MINISTÉRIO DA CULTURA. Programa cultural para o desenvolvimento do Brasil. Brasília, DF,
nov. 2006.
OLIVEIRA, Lady Dayana Silva. Cinema itinerante no Rio Grande do Norte: aspectos da recep-
ção, Dissertação – UFRN, 2012.
REIS, Ana Carla Fonseca: DE MARCO, Katia (org.). Economia da Cultura – ideias e vivências.
Rio de Janeiro: Publit, 2009.
SCKAFF, Dênia de Fátima Cruz. Semeando a cultura audiovisual no Rio Grande do Norte: a
experiência das oficinas de vídeo do Coletivo Caminhos, Comunicação & Cultura /
Dissertação – Natal, RN, 2014. 121 f.
SILVA, Frederico A. Barbosa. CPC - Cadernos de políticas culturais. Políticas Culturais no Brasil
2002 - 2006. Brasília, 2007.
TRIGUEIRO, Osvaldo Meira. Folkcomunicação e ativismo midiático. PB: Editora Universitária
da UFPB, 2008.

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5967
Cinema de animação: um estudo comparativo
dos filmes A Noiva Cadáver (Tim Burton, 2005)
e Dossiê Rê Bordosa (César Cabral, 2008)
Animated Film: a comparative study of movies Corpse Bride
(Tim Burton, 2005) and Dossier Rê Bordosa (Cesar Cabral, 2008)
F i l i p i C é s a r S i lva 1

Resumo: O trabalho apresenta uma análise comparativa entre os filmes A Noiva


Cadáver (Tim Burton – 2005) e Dossiê Rê Bordosa (César Cabral - 2008), realiza-
dos segundo a mesma técnica de animação, ou seja, o Stop-Motion. Para tanto,
desenvolveu-se um estudo cotejando os dois filmes, levando-se em consideração
a linguagem e técnica de ambas as obras: de Tim Burton e César Cabral. Tal
estudo foi dividido em duas etapas. A primeira apresenta um documentário que
mostra o processo de construção da animação Stop-Motion (fundamental para
um melhor entendimento e análise dos filmes) e as diferenças de suas técnicas
dentro do mercado nacional e internacional. A segunda etapa do estudo con-
siste numa pesquisa bibliográfica que busca situar o leitor no que se refere ao
contexto histórico da animação, apontando-lhe suas principais características
e relação entre os filmes. Para a exposição da pesquisa, foram apresentados
os making of de ambos os filmes estudados e uma entrevista com o diretor do
curta-metragem Dossiê Rê Bordosa (César Cabral – 2008). Em seguida, realizou-se
uma explanação baseada no livro Arte da Animação de Alberto Lucena Junior e
outras obras referentes aos dois filmes pesquisados. A pesquisa realizada foi
apenas um passo para melhor conhecermos a capacidade produtiva do cinema
de animação brasileiro em relação ao cinema de animação dos EUA.
Palavras-Chave: Cinema. Animação. Stop-motion. Tim Burton.

Abstract: The paper presents a comparative analysis between the films Corpse
Bride (Tim Burton - 2005) and Dossier Rê Bordosa (Cesar Cabral - 2008), conduc-
ted in the same animation technique, ie the Stop-Motion. Thus, a study compa-
ring developed the two films, taking into account the language and technique
of both works: Tim Burton and Cesar Cabral. This study was divided into two
stages. The first presents a documentary that shows the process of building
the Stop-Motion animation (essential for a better understanding and analysis
of the film) and the differences in their techniques within the national and
international market. The second stage of the study consists of a literature that
seeks to situate the reader with regard to the historical context of the animation,
showing him their main characteristics and relationship between the films. For

1.  Doutorando em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.
E-mail: cardosofilipi@hotmail.com.

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Cinema de animação: um estudo comparativo dos filmes A Noiva Cadáver (Tim Burton, 2005) e Dossiê Rê Bordosa (César Cabral, 2008)

Filipi César Silva

the exhibition of the research, the making of both studied film and an interview
with the director of the short film Dossier Rê Bordosa were presented (Cesar
Cabral - 2008). Then, there was an explanation based on the book Art of Alberto
Lucena Junior Animation and other works for the two surveyed movies. The
research was just one step to better know the capacity of the Brazilian animation
film in relation to the US animated film.
Keywords: Cinema. Animation. Stop-motion. Tim Burton.

I. CONTEXTO HISTÓRICO DO CINEMA DE


ANIMAÇÃO: CONCEITO E TÉCNICAS

A TÉ POUCO tempo, tratava-se o cinema de animação como tipo ou modalidade de


cinema voltado para um único público, o infantil, geralmente, utilizando-se das
diversas técnicas de animação: desenho animado ou animação tradicional, stop-
-motion ou massa plástica e animação digital (2D, 3D e 4D). Hoje, porém, muito se tem
discutido acerca do público-alvo que se interessa pelo cinema de animação, que ganha
a cada dia mais apreciadores deste gênero. É necessário definir o cinema de animação,
o uso das técnicas animadas e os efeitos especiais aplicados a alguns filmes, a exemplo
do que fazem os cineastas Tim Burton e César Cabral, foco desta pesquisa. O cinema de
animação cada vez mais utiliza e experimenta novos recursos digitais, multiplicando
seus efeitos especiais e fazendo da sétima arte aquela que mais acusa a influência das
inovações tecnológicas.
É possível observar um interesse e crescimento considerável do público infantil e
adulto nestes filmes animados no mercado cinematográfico, assim reforçando a impor-
tância de realizar mais estudos sobre as técnicas, processos construtivos e efeitos de
nonsense no cinema de animação. Alguns exemplos de filmes de animação são: Branca
de Neve e os Sete Anões (1937 – Walt Disney), Bambi (1942 – David Hand), A Bela e a Fera
(1991 – Gary Trousdale), Aladdin (1992 – Ron Clements), O Rei Leão (1994 – Roger Allers), Toy
Story (1995 – John Lasseter), A Fuga das Galinhas (2000 – Peter Lord), Shrek (2001 – Andrew
Adamson), A Era do Gelo (2002 – Chris Wedge), Wallace e Gromit: A Batalha dos Vegetais
(2005 – Nick Park), Pérsepolis (2007 – Vicent Paronnaud), Ratatouille (2008 – Brad Bird),
Persepolis (2008 – Vincent Paronnaud; Marjane Satrapi), Up (2010 – Pete Docter), Coraline
(2010 – Henry Selick), The Secret of Kells (2010 – Tomm Moore; Nora Twomey), Toy Story 3
(2011 – Lee Unkrich), How to Train Your Dragon (2011 – Dean DeBlois; Chris Sanders), The
IIIusionist (2011 – Sylvain Chomet), Rango (2012 – Gore Verbinski, Kung Fu Panda 2 (2012 –
Jennifer Yuh Nelson), Brave (2013 – Mark Andrews; Brenda Chapman), Chris Renaud), Ernest &
Celestine (2014 – Didier Brunner; Benjamin Renner); The Wind Rises (2014 – Hayao Miyazaki).
É notório que, a cada ano que passa, cresce o número de projetos cinematográfi-
cos realizados segundo técnicas de animação. Tal gênero tem-se consubstanciado nas
últimas edições de grandes eventos de animação como, por exemplo, o Anima Mundi,
considerado um dos maiores festivais de filmes animados do mundo. Cada vez mais
se discute o impacto que a evolução das técnicas de animação revela no panorama do
cinema e qual o futuro a que esse gênero poderá aspirar.

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Cinema de animação: um estudo comparativo dos filmes A Noiva Cadáver (Tim Burton, 2005) e Dossiê Rê Bordosa (César Cabral, 2008)

Filipi César Silva

Como a animação sofreu a revitalização de que necessitava para auxiliar nas pro-
duções de filmes animados, os profissionais deste recurso visual se beneficiaram da
aplicação de efeitos visuais nos filmes. A partir daí, o prestígio do gênero cresceu sen-
sivelmente. Difundiu-se um tipo de animação dirigido para o público adulto. Assim,
torna-se necessário ver o cinema de animação com um olhar mais apurado e considerá-
-lo um gênero.
O objeto da pesquisa que ora apresentamos teve sua origem no momento em que
indagamos: até que ponto a produção de filmes desenvolvidos no Brasil por meio da
técnica de animação em massa plástica apresenta uma característica tipicamente nacio-
nal? Em busca de resposta para tal questionamento, selecionamos um curta-metragem,
no caso, Dossiê Rê Bordosa (César Cabral – 2008) e confrontamos com o filme A Noiva
Cadáver (Tim Burton – 2005).
Segundo Lucena, a palavra “animação”, e outras a ela relacionadas, deriva do ver-
bo latino animare (“dar vida a”) e só veio a ser utilizada para descrever imagens em
movimento no século XX, emergindo, dessa forma, uma nova linguagem audiovisual
cinematográfica. (LUCENA, 2001, p. 28)
Muitos confundem animação, desenho animado e cinema de animação. De acordo
com o conceito de animação acima, há diferença entre desenho animado e cinema de
animação. Sabe-se que cinema é o registro e a reprodução do movimento por meio de
técnicas diversas. Com as técnicas de aplicação de animações, surge um novo gênero
de arte – o cinema de animação, que trata da aplicação destas técnicas de animação nos
meios de comunicação cinematográfica. Nesse sentido, o desenho animado é umas das
técnicas de animação.
Essa nova linguagem de cinema de animação, cada vez mais, utiliza e experimenta
novos recursos digitais e efeitos especiais nos filmes, contribuindo, assim, com diferentes
recursos audiovisuais voltados para o cinema, que é um dos meios de comunicação que
sofreu maiores mudanças diante de tantas inovações tecnológicas.
O início da animação foi difícil, pois animadores como Norman McLaren, Alexander
Alexeieff, Claire Parker, Lotte Reiniger, Oskar Fischinger, entre outros, não possuíam recur-
sos tecnológicos suficientes, o que dificultava a disseminação da animação nos meios
audiovisuais. Entretanto, com possibilidades e conhecimentos tecnológicos maiores,
atualmente, é possível realizar animações em maior escala e com mais qualidade artís-
tica. Desta forma, verifica-se uma necessidade de se pesquisar a animação em geral e
suas classificações (animação tradicional, digital, por recortes, por pinos, por silhuetas,
massa plástica ou Stop-Motion, por fotografias e congêneres).
Também dentro dos gêneros cinematográficos, os filmes de animação podem classi-
ficar-se por seus enredos, como na literatura romântica, que possui várias classificações
como: o conto maravilhoso, infantil, de horror, romântico e dramático. Segundo Lucena
“A história da animação é particularmente significativa na demonstração de como a
relação entre técnica e estética na produção visual da arte é indissolúvel e vital – sim-
plesmente uma não existe sem a outra” (Op. Cit., p. 28).
Conforme diz Martin “Noventa anos após a descoberta dos irmãos Lumière, autores
importantes na evolução do cinema, ninguém mais contesta seriamente que o cinema
seja uma arte” (MARTIN, 2003, p. 13).

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Cinema de animação: um estudo comparativo dos filmes A Noiva Cadáver (Tim Burton, 2005) e Dossiê Rê Bordosa (César Cabral, 2008)

Filipi César Silva

O cinema nasceu de várias inovações que vão desde o domínio fotográfico até a
síntese do movimento que utiliza a persistência da retina, já utilizada nos primitivos
brinquedos ópticos.
A natureza exata do fenômeno ótico e/ou psicológico que permite ao cérebro sintetizar o
movimento a partir dos estímulos que atingem a visão é discutida por alguns autores:”Mas
o fenômeno da persistência da retina nada tem a ver com a sintetização do movimento: ele
constitui, aliás, um obstáculo à formação das imagens animadas, pois tende a superpô-
-las na retina, misturando-as entre si. O que salvou o cinema como aparato técnico foi a
existência de um intervalo negro entre a projeção de um fotograma e outro, intervalo esse
que permitia atenuar a imagem persistente que ficava retida pelos olhos. O fenômeno da
persistência da retina explica apenas uma coisa no cinema, que é o fato justamente de não
vermos esse intervalo negro. A síntese do movimento se explica por um fenômeno psíquico
(e não óptico ou fisiólogico) descoberto em 1912 por Wertheimer e ao qual ele deu o nome de
fenômeno phi: se dois estímulos são expostos aos olhos em diferentes posições, um após o
outro e com pequenos intervalos de tempo, os observadores percebem um único estímulo
que se move da posição primeira à segunda.” (MACHADO, 1997 p. 20).

Sabendo das potencialidades que tem a aplicação dos brinquedos ópticos no cinema
de animação, convém também levá-las em consideração. Da construção desses brin-
quedos ópticos, passando pelas histórias em quadrinhos, pelos desenhos no papel, e
primitivas técnicas de animações, chegamos aos pequenos filmes animados.
O exame de atividades diversificadas como a construção de aparelhos ópticos,
marionetes, desenhos sobre papel, desenhos para sequências de movimentos, pinturas e
demais objetos, permite criar uma visão de conjunto do desenvolvimento construtivo e
estético da animação. Assim, através da pesquisa com estes objetos (brinquedos ópticos
e desenhos), chega-se a uma visão mais clara sobre o surgimento do cinema anima-
do. Alguns exemplos de brinquedos ópticos inventados serão colocados no decorrer
da pesquisa para melhor expressar o seu processo de desenvolvimento e realização,
destacando-se, assim, sua importância para o cinema de animação.
O taumatroscópio inventado entre 1820 e 1825 por William Fitton – é um disco
com uma imagem na frente e outra no verso, e um cordel em duas extremidades, cujo
objetivo é sobrepor as imagens como se fosse só uma, através da rotação do disco. Para
isso, enrolam-se os cordéis e a seguir puxam-se. Enquanto o disco roda, as imagens
fundem-se, criando a ilusão de ser apenas um desenho.
O fenaquistoscópio, inventado em 1928 por Joseph-Antoine Ferdinand Plateau, era
feito de dois discos: um com sequência de imagens pintadas em torno do eixo, outro com
espaços na mesma disposição. Estes se prendem um ao outro por meio de uma haste,
através de orifícios no meio dos discos. Quando os discos são girados, o observador vê
as imagens em movimento através dos espaços, o que permite a interrupção requerida
pelo olho para combiná-las corretamente.
O zootroscópio, inventado em 1834 por William George Horner, conhecido como
roda viva, era um brinquedo no qual os desenhos eram feitos em tiras de papel e
montados num tambor giratório, e através dos seus espaços se observava o movimento,
seguindo o mesmo princípio de montagem dos brinquedos anteriores;

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Cinema de animação: um estudo comparativo dos filmes A Noiva Cadáver (Tim Burton, 2005) e Dossiê Rê Bordosa (César Cabral, 2008)

Filipi César Silva

O flipbook foi inventado em 1968 e ficou conhecido como livro mágico em português,
construído através de imagens ou fotografias montadas em ordem de movimento, como
num pequeno livro de histórias em quadrinhos. Quando as páginas são viradas rapida-
mente, cria-se a ilusão de movimento dos desenhos. De acordo com Lucena “Pela sua
praticidade e eficiência, ainda hoje se usa esse recurso ao se produzirem filmes baseados
em animação com desenhos – os animadores pioneiros foram categóricos em apontá-lo
como o brinquedo óptico que mais os inspirou”. (LUCENA, 2001, p. 35)
O praxinoscópio foi um aparelho inventado em 1877 por Émile Reynaud, o qual
introduziu muitos aperfeiçoamentos, por isso passaria a chamar-se Teatro Óptico. Mais
tarde, com a aplicação da lanterna mágica ao praxinoscópio, Émile Reynaud conse-
guiu projetar perfeitamente, a distância, desenhos animados ainda mais elaborados.
As histórias contadas eram muito simples, com uma duração entre 8 e 15 minutos. Os
desenhos eram “incrustados” numa forte tira de tela, para lhes dar mais consistência e
flexibilidade, com perfurações para facilitar o arrasto através de uma série de carretos.
A fita corria no sentido horizontal no projetor, um lampascópio (variante da lanter-
na mágica), e era acionada manualmente a uma determinada velocidade. As imagens
eram projetadas a distância sobre uma pantalha enquadrada por décors fixos, com boa
nitidez e sem grande trepidação.
De acordo com Ceram:
Para projetar as imagens animadas sobre a tela, ele utilizava um “lampascópio” que criava o
fundo e uma lanterna mágica suplementar para projetar as fases do movimento sobre a tela.
A partir de 1892 ele pintava as imagens sobre tiras transparentes e perfuradas de celulóide e
as projetava por trás da tela, ocultando assim, obviamente, o aparelho (CERAM, 1966; p. 207).

Estes brinquedos ópticos vieram a colaborar na descoberta e desenvolvimento da


técnica do registro do movimento e, consequentemente, com o cinema de animação.
No caso, o diretor Tim Burton, o mesmo sempre usa de diversas técnicas de animação e
efeitos nonsense em seus filmes, já são caraterísticas marcantes de seus filmes fantásticos.

II. ESTUDO COMPARATIVO ENTRE OS FILMES A NOIVA CADÁVER (TIM


BURTON – 2005) E DOSSIÊ RÊ BORDOSA (CÉSAR CABRAL – 2008)
Os filmes A Noiva Cadáver (Tim Burton – 2005) e Dossiê Rê Bordosa (César Cabral – 2008)
são duas obras desenvolvidas segundo o mesmo tipo de técnica de animação. A Noiva
Cadáver (Tim Burton – 2005) é um filme de animação em Stop- Motion, produzido e rea-
lizado por Tim Burton e Mike Johnson nos EUA; o curta Dossiê Rê Bordosa (César Cabral
– 2008) é um filme realizado no Brasil, por uma empresa de animação, a Coala Filmes.
Os dois filmes podem ser comparados somente em função da técnica de anima-
ção aplicada a ambos, dado que os mesmos não possuem semelhanças relacionadas
ao enredo. Com relação à duração de cada filme, há diferença, pois o filme Dossiê Rê
Bordosa (César Cabral – 2008) é um curta de 16min, enquanto o filme A Noiva Cadáver
(Tim Burton – 2005) é um longa de 78min.
Em ambos os filmes, tanto no de Tim Burton, como no de César Cabral, foi empre-
gada a mesma técnica de animação em massa plástica, lembrando que o filme A Noiva

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Cinema de animação: um estudo comparativo dos filmes A Noiva Cadáver (Tim Burton, 2005) e Dossiê Rê Bordosa (César Cabral, 2008)

Filipi César Silva

Cadáver (Tim Burton – 2005) dispõe de mais recursos financeiros, mão-de-obra e equi-
pamentos, exigindo, pois, um esforço bem maior de produção do que do filme Dossiê
Rê Bordosa (César Cabral – 2008). Todavia, apesar de suas limitações financeiras, a Coala
Filmes tem um desempenho apreciável, mesmo se comparado a alguns estúdios norte-
-americanos. A empresa brasileira dispõe de equipamento adequado para o desenvol-
vimento de projetos em Stop-Motion.
O filme de Tim Burton continua a tradição dos clássicos românticos, pois nele se
observa a presença do horror gótico e da comédia negra. Já o curta Dossiê Rê Bordosa
(César Cabral – 2008) é baseado na personagem chamada Rê Bordosa, criada pelo cartunista
Angeli. Essa personagem era uma mulher emancipada, independente e desprendida
das regras morais estabelecidas pela sociedade.
O curta realizado por César Cabral desenvolve-se a partir de um dossiê que busca
descobrir o real motivo da morte desta personagem em quadrinhos que, na década
de 80, saía em notas do jornal Folha de São Paulo. Isso porque seu criador, o cartunista
Angeli, matou Rê Bordosa sem dar nenhuma explicação aos seus milhares de fãs. Então
surgiu a idéia, por parte do diretor César Cabral, de realizar um filme de animação, em
massa plástica, para desenvolver o tema sobre uma personagem tão famosa e querida
pelos leitores do jornal.
A técnica de animação em Stop-Motion foi inventada nos primórdios da história do
cinema e utilizada pela primeira vez no clássico “The Humpty Dumpty Circus”, de Albert
E. Smith, realizado em 1898, onde um circo de bonecos ganhava vida diante da tela.

III. CONSIDERAÇÕES FINAIS


A pesquisa realizada apresentou, por meio de estudos bibliográficos, uma análise
descritiva e comparativa relacionada aos filmes A Noiva Cadáver (Tim Burton – 2005) e
Dossiê Rê Bordosa (César Cabral – 2008). Uma semelhança na técnica aplicada na execução
de ambos os filmes é a técnica de animação em Stop- Motion ou Massa Plástica.
No primeiro capítulo foi realizado um estudo do contexto histórico e técnico do cine-
ma de animação. Assim, este capítulo permitiu dar um embasamento teórico suficiente
para se ter uma noção do início, presente e futuro do cinema de animação no mercado
cinematográfico. Além disso, os levantamentos bibliográficos permitiram compreender
os aspectos técnicos e históricos que contribuíram para uma melhor fundamentação
da pesquisa realizada.
No segundo capítulo falou-se um pouco da técnica de animação em Stop- Motion ou
Massa Plástica, expondo suas etapas de desenvolvimento e execução no curta-metragem
Dossiê Rê Bordosa (César Cabral – 2008). Através deste capítulo é possível avaliar todas
as dificuldades, necessidades, carências e vantagens de se realizar uma animação em
massa plástica no Brasil. Ademais, permite a avaliação da parte técnica e de equipamentos
utilizados na elaboração de um filme de animação.
Ainda no segundo capítulo é possível ler uma entrevista do diretor do curta- metra-
gem Dossiê Rê Bordosa (César Cabral – 2008) e dono de uma empresa de animação, Coala
Filmes, em que ele fala um pouco da história e das técnicas da animação executadas
por sua empresa.

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Cinema de animação: um estudo comparativo dos filmes A Noiva Cadáver (Tim Burton, 2005) e Dossiê Rê Bordosa (César Cabral, 2008)

Filipi César Silva

No terceiro capítulo desta pesquisa, é apresentada uma análise descritiva do filme


A Noiva Cadáver (Tim Burton – 2005), levando-se em consideração a técnica de anima-
ção utilizada na obra. Tal estudo foi realizado por meio de uma decupagem das cenas
do filme, assim, formulando-se a conclusão de que um filme como A Noiva Cadáver
(Tim Burton – 2005), dispõe de recursos técnicos, financeiros e de equipamentos de alta
qualidade para seu desenvolvimento. Desta forma, este tipo de cinema com animação
em Stop-Motion não deixa a desejar, em questão de realismo e satisfação, em relação a
grandes filmes de atores famosos que se beneficiam de efeitos especiais e computação
gráfica em suas produções.
Nesta perspectiva, realizou-se um estudo que visa ambientar o leitor no que se
refere à aplicação da técnica de animação em massa plástica no filme de Tim Burton,
apontado-lhe suas principais características e técnicas. Para tanto, foram apresentadas
imagens do filme A Noiva Cadáver (Tim Burton – 2005), e em seguida, uma descrição das
cenas relacionando o desenvolvimento da técnica de animação em Stop-Motion com a
aplicação estética e da linguagem.
No quarto capítulo desenvolveu-se um estudo comparativo entre os filmes A Noiva
Cadáver (Tim Burton – 2005) e o curta-metragem Dossiê Rê Bordosa (César Cabral – 2008),
levando-se em consideração a linguagem e a técnica dos filmes pesquisados, na tenta-
tiva de identificar relações entre produções cinematográficas animadas no Brasil e nos
EUA. Tal estudo visou ambientar o leitor no que se refere às diferenças, semelhanças e
benefícios de um desenvolvimento da técnica de animação em massa plástica nos dois
filmes da pesquisa.
Esta relação entre os dois filmes, no quarto capítulo da pesquisa, foi desenvolvida
através da comparação de uma entrevista e making of cedidos pelos diretores de ambos
os filmes. O diretor do curta-metragem Dossiê Rê Bordosa (César Cabral – 2008) fala um
pouco da técnica de animação e mostra a preparação dos cenários e dos bonecos de seu
filme. Já o diretor do filme A Noiva Cadáver (Tim Burton – 2005) explica um pouco como
foi gravado e surgiu a idéia do seu filme, explicando as complicações de se realizar um
filme animado em Stop-Motion.
A resposta à pergunta que apresentamos na introdução desta pesquisa é que ambos
os filmes, tanto o curta-metragem Dossiê Rê Bordosa (César Cabral – 2008) e o filme A Noiva
Cadáver (Tim Burton – 2005), são duas obras que apresentam o mesmo processo de pro-
dução, a saber: primeiramente desenvolve-se uma idéia, em seguida, modelam-se os
bonecos e cenários. Passada a etapa de modelagem, inicia-se a realização da animação
ou aplicação do movimento aos personagens e, por fim, aplica-se o áudio. Conclui-se,
por tanto, que o cinema de animação em massa plástica brasileiro não produz nada de
original; ao contrário, reproduz a mesma técnica desenvolvida pelo cinema de animação
em massa plástica nos EUA.
Outra conclusão a que chegamos diz respeito à capacidade técnica do cinema de
animação brasileiro em relação ao americano, pois o cinema de animação nacional, ape-
sar de suas dificuldades financeiras, não deixa a desejar em relação ao resultado final
de um filme animado dos EUA. O curta-metragem Dossiê Rê Bordosa (César Cabral – 2008),
vale lembrar, tem, hoje, uma boa repercussão nos festivais e mercado cinematográfico

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Cinema de animação: um estudo comparativo dos filmes A Noiva Cadáver (Tim Burton, 2005) e Dossiê Rê Bordosa (César Cabral, 2008)

Filipi César Silva

nacional. Tendo em visa sua boa qualidade técnica e estética, não vai demorar para que
venha a ganhar prêmios internacionais.
A pesquisa realizada foi apenas um passo para melhor conhecermos a capacidade
produtiva do cinema de animação brasileiro em relação ao cinema de animação dos
EUA. Assim, pode-se concluir que ambos possuem semelhanças significativas entre si.
Vale lembrar que é necessário a aplicação de novas pesquisas, com intuito de melhor
entender o desenvolvimento e o avanço do cinema de animação no mercado cinema-
tográfico brasileiro.

IV. REFERÊNCIAS
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5976
O uso da estereoscopia como fator de imersão na
franquia de animação “Como treinar seu dragão”
The use of stereoscopic as immersion factor in the
animation’s franchise “How to train your dragon”
Pa u l a P o i e t S a m p e d r o 1
D i o g o A u g u s t o G o n ç a lv e s 2
L eonardo Antônio Andr ade3

Resumo: A estereoscopia vem conquistando espaço na atualidade em virtude


dos adventos tecnológicos que expandiram as obras audiovisuais das telas de
cinema para televisores e telas que possibilitam a visualização em profundidade.
Dentre essas obras, destacam-se as animações, pois em sua composição as duas
imagens são captadas por câmeras virtuais que podem estar em quaisquer
posições. No presente trabalho, o uso da estereoscopia como intensificador da
imersão do espectador será analisado a partir da franquia cinematográfica de
animação “Como Treinar seu Dragão”, cujo primeiro filme foi lançado em 2010
e o segundo em 2014, apresentando um estudo comparativo sobre a forma como
a estereoscopia foi utilizada em ambos os filmes, assim como sua aliança com
a modelagem dos personagens e cenários, enquadramento e composição de
cenas. Dentre os resultados encontrados ressalta-se a necessidade de repensar
o uso de determinados efeitos visuais herdados dos filmes bidimensionais em
filmes estereoscópicos, assim como quais tipos de planos e composições de cena
enfatizam a visualidade tridimensional e permitem enriquecer a experiência
imersiva que a estereoscopia vem trazendo ao mundo cinematográfico.
Palavras-Chave: Estereoscopia. 3D. Animação. Como Treinar Seu Dragão. Cinema.

Abstract: The stereoscopy has been conquering more space nowadays because
of technological advents that enlarged audiovisuals work from the cinema to
television and screens that allow visualization in depth. Among this work,
animation movies are underlined, because, in their composition both images
are shooting by virtual cameras that could be in any positions. In this current
work, the use of stereoscopy as a spectator immersion booster, is going to be
analyzed from the cinematograph animation franchise “How to Train Your
Dragon”, whose first film was released in 2010 and the second in 2014, presenting
a comparative study about how the stereoscopy was used in both films, as well
as their alliance with characters and scenario modeling, framing and scene
compositions. Among the final results, it was underlined the need to rethink
the use of some visual effects inherited by bidimensional films in stereoscopic

1.  Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som, UFSCar, e-mail: paulapoiet@gmail.com


2.  Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som, UFSCar, e-mail: diogoatgs@gmail.com
3.  Doutor, pesquisador do PPGIS – UFSCar, e-mail: landrade@ufscar.br

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O uso da estereoscopia como fator de imersão na franquia de animação “Como treinar seu dragão”

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films, as well as the types of planes and scene composition emphasize the
tridimensional visuality and allow to improve the immersive experience that
the stereoscopy has been bringing to the cinematographic world.
Keywords: Stereoscopy. 3D. Animation. How To Train Your Dragon. Cinema.

INTRODUÇÃO

D ESDE OS primórdios da humanidade o ser humano busca maneiras de registrar e


dar vida à sua imaginação por meio de expressões artísticas. O desejo humano de
representar e interpretar sua própria percepção, sua visão do mundo, impulsionou
a arte durante séculos. A representação do espaço tridimensional nas artes plásticas
passou por diversas tentativas e estudos ao longo de sua história (SANTOS, 2014).
A tecnologia nos fascina e nos impressiona mais a cada momento, e quando seu uso
através da exploração estética é realizado dentro da narrativa de uma obra, impressiona
ainda mais o espectador. Essa evolução, além de aperfeiçoar as ferramentas midiáticas,
traz novos recursos que fazem com que o espectador possa se relacionar de maneiras
diferentes com o universo fictício apresentado. Como exemplo de novas ferramentas,
podemos citar a manipulação de imagens tridimensionais concebidas por meio de sof-
twares que emulam um espaço tridimensional computacionalmente; já com relação
os aprimoramentos advindos pelas novas tecnologias, pode-se citar o grande avanço
da estereoscopia (visualização tridimensional enxergada por meio de óculos e telas
especiais), já conhecida há muito tempo e com considerável evolução tecnológica na
última década.
Nossa percepção de espaço tridimensional é permitida devido à capacidade que o
ser humano tem de fundir duas imagens ligeiramente diferentes. Os olhos humanos
estão, em média, distantes cerca de 65 milímetros um do outro (McKAY, 1953), e a con-
vergência dos eixos ópticos acontecem quando um objeto está a poucos centímetros à
frente do observador, sendo que os eixos ópticos ficam quase paralelos quando focamos
objetos que estão distantes do observador. O cérebro trabalha de modo a coordenar e
aferir o grau de convergência dos eixos ópticos, o que possibilita a nossa percepção de
profundidade (ANDRADE, 2012). Essa distinta habilidade perceptiva foi provada cien-
tificamente em 1833 por Charles Wheatstone e Sir David Breswster, os quais possuíam
uma extensa bibliografia a respeito de ilusões óticas, teoria das cores, pós-imagem e
outros fenômenos visuais (CRARY, 2012).
Quando tratamos de imagens estereoscópicas em suporte bidimensional (como
é o caso de fotografias, vídeos e filmes), exploramos essa característica fisiológica da
distância entre os olhos e as diferentes imagens visualizadas por cada olho (LIPTON,
1982). Para obter essas duas imagens, também conhecidas como “par estéreo” registram-
se duas imagens, cada uma correspondente a um dos olhos, essas imagens são exibidas
sobrepostas em um plano e, para direcioná-las cada uma ao olho apropriado, são usados
dispositivos como, por exemplo, os óculos especiais que separam as imagens. Nesse
sentido, a visão binocular utiliza a proximidade física para recongraçar a disparidade,
numa operação que torna duas imagens distintas em uma única imagem.

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O uso da estereoscopia como fator de imersão na franquia de animação “Como treinar seu dragão”

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Segundo Lipton (1982) a diferença entre dois pontos correspondentes no par estéreo
é denominada “paralaxe”. É essa diferença que da a sensação de volume aos objetos e a
sensação de distância espacial em um filme ou imagem 3D. Quando temos a sensação
dos objetos estarem dentro da superfície da tela, mais distantes de nós do que a tela de
projeção, a paralaxe é chamada “positiva”; quando os objetos parecem saltar da tela, se
apresentam mais próximos de nós, a paralaxe é negativa; quando não existe diferença
entre esses dois pontos, as duas imagens se sobrepõem exatamente, a paralaxe é zero.
A Figura 1 ilustra esses aspectos.

Figura 1. Tipos de paralaxe4.

A estereoscopia contribuiu transformando as imagens bidimensionais em ilusões


tridimensionais, feito que permitiu realçar ainda mais, os elementos da narrativa. Há
outra técnica, desenvolvida sob o viés cinematográfico, que se aproveitou de desenhos
e fotografias e realçou a o aspecto fantástico, a animação.
Pesquisadores se debruçaram sobre o processo de animar imagens ao longo dos
séculos, porém, a primeira sequência animada frame5 a frame combinando desenhos
e fotografias foi criada em 1906, desenhada por James Stuart Blackton e fotografada e
animada por Thomas Edson (WILLIAMS, 2001). Em 1939 a união entre a animação e
a estereoscopia veio a público em uma feira em Nova York. A animação foi feita em
stop motion, produzida pelo estúdio Loucks and Norling para a empresa automobilística
Chrysler e intitulada “In Tune with Tomorrow” com doze minutos de duração (ZONE, 2007).
Por volta de 1951, Norman McLaren, famoso animador devido ao seu desenvolvimento
artístico, também desenvolveu animações estereoscópicas. Por volta de 1953 e 1954
grandes estúdios e cineastas investiram no sistema, porém, mesmo com o entusiasmo
dos cineastas e dos estúdios, a técnica da estereoscopia sucumbiu rapidamente devido
à inconsistência da tecnologia na época (GODOY DE SOUZA, 2005; ANDRADE, 2009).
A evolução tecnológica propiciou novos caminhos e possibilidades à estereoscopia
e hoje, essa se apresenta em filmes (seja para o cinema ou televisão), em jogos, câmeras
de vídeo e mesmo em celulares. Esse novo nicho de mercado chama a atenção devido
à forma como é usufruído, algumas vezes somente de forma mercadológica, onde o 3D
estereoscópico é inserido com maior intuito de chamar a atenção do espectador, com
pouco a acrescentar à narrativa. Já outras vezes a estereoscopia é inserida para incre-
mentar a emoção que a mídia proporciona; o amplo uso dessa segunda vertente da
visualização tridimensional exigiu dos produtores desses conteúdos um aperfeiçoamento
na sua aplicação. Assim, filmes pensados para serem tridimensionais, necessitam de

4.  ANDRADE, 2012, p.10.


5.  Cada quadro estático de uma obra audiovisual.

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supervisores estereoscópicos, profissionais que auxiliam na forma como a estereosco-


pia vai agir no filme. Segundo Mendiburu (2009) a estereoscopia pode ser comparada
a cor e ao som, ambos tem significante impacto na narrativa e no processo de criação,
produção e pós produção.
Atualmente, um dos maiores nomes nesse ramo é Phil “Captain 3D” MacNally,
supervisor estereoscópico que participou das animações Como Treinar Seu Dragão
(2010 e 2014), Gato de Botas (ambas produzidas pelo estúdio DreamWorks), entre outras.
Ele destaca o poder da estereoscopia em deixar os personagens mais próximos ou
distantes emotivamente, a partir do uso da ilusão espacial, além da grande influência
na intensidade emocional da narrativa (PENNINGTON & GIARDINA, 2013).
Atualmente vários filmes longas metragens estão sendo projetados pensando no uso
da estereoscopia, os filmes Como Treinar seu Dragão 1 e 2 são exemplos dessa nova forma
de realizar o cinema, ambos foram planejados com intuito de utilizar a percepção tridi-
mensional para trazer mais emoção ao filme e mais imersão do espectador na narrativa.
O primeiro filme da franquia animada foi dirigido por Chris Sanders e Dean DeBlois,
enquanto o segundo manteve apenas DeBlois como diretor. DeBlois deixa claro que
no primeiro filme o 3D foi utilizado somente nos momentos em que beneficiaria as
cenas, nas palavras do diretor, “Nós não tentamos encaixar isso [a estereoscopia] nas
cenas que não necessitaram ou não se beneficiariam disso ou traria problemas óticos”6
(tradução nossa, PENNINGTON & GIARDINA, 2013, p. 52). Sobre o assunto MacNally
ainda ressalta “Tudo trabalha junto – luz, composição, animação, música – tudo está em
sincronia. A estereoscopia está funcionando em sincronia com os outros componentes
da narrativa”7 (tradução nossa, PENNINGTON & GIARDINA, 2013, p. 53).
Por meio dessas citações podemos perceber como o 3D influencia na linguagem do
longa metragem de animação e a maneira como ele foi inserido nessa franquia animada
como ferramenta de aproximação entre as situações vividas pelos personagens e o
espectador.

Nota: Sempre que o ícone ao lado aparecer nas imagens será necessário
o uso de óculos anaglífico para sua visualização.

ANIMAÇÃO
Muitas experimentações foram realizadas, porém, a animação é uma arte, e como tal,
não é composta somente de técnicas e artifícios, esses são ferramentas para a constituição
de uma obra, mas o sentido impregnado vem da mente do homem. No caso da animação,
esse é expresso pela narrativa em conjunto dos modelos dos personagens, composição
de cenas, cores, texturas e todas as outras técnicas empregadas.
No ano de 2010 foi lançado o longa metragem Como Treinar Seu Dragão (DreamWorks),
um filme que misturou cultura popular, humor e criaturas míticas. Os personagens
foram detalhadamente elaborados em suas características físicas e as cenas aéreas dos

6.  Nas palavras do diretor, “We didn’t try to shoehorn it into scenes that didn’t require it or benefit from
it or would cause optical problems.”
7.  Nas palavras de McNally, “[...] Everything works together – light, composition, animation, music –
everything is in sync. The stereo is working in sync with the other components of storytelling.”

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O uso da estereoscopia como fator de imersão na franquia de animação “Como treinar seu dragão”

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vôos dos dragões foram bastante exploradas, aumentando o impacto da estereoscopia


e inserindo o espectador no universo do filme. Quatro anos mais tarde, os estúdios
DreamWorks lançaram a continuação da narrativa (Como Treinar Seu Dragão 2, 2014),
o longa metragem animado demonstrou uma visual mais carregado de cores e cenas
que frisaram ainda mais a beleza dos cenários. As cores vibrantes e os personagens
carismáticos contribuíram não somente com o universo fílmico, mas com a imersão do
espectador nesse universo. Esses dois filmes são exemplos, tanto da evolução tecnológica,
quanto da evolução do trabalho conjunto entre narrativa, composição e efeitos visuais.
A história do longa metragem lançado em 2010 concentra-se no protagonista Soluço,
um adolescente franzino de 15 anos, viking, morador de uma vila chamada Berk (onde
todos são inimigos dos dragões), filho de Estóico (o chefe da vila) e sua amizade com
Banguela, um dragão o qual Soluço capturou e não conseguiu matar. Soluço é um menino
inteligente que ao capturar o dragão Banguela, faz com ele perca parte da cauda. Para
remediar a situação, o menino constrói uma prótese rudimentar para que ele possa
voltar a voar, porém, com ajuda de um humano. O personagem Estóico nutre ódio pelos
dragões, e quando finalmente descobre onde fica a montanha que serve de ninho para
os animais, ele e outros vikings partem para destruí-la, ignorando o alerta de Soluço
sobre um perigoso e imenso dragão que lá habitava. A história se conclui com Banguela
e Soluço se unindo contra esse dragão terrível e os vikings descobrindo que é possível
conviver em paz com os dragões. Soluço perde parte da perna durante esse ultimo
confronto, e assim como banguela, torna-se deficiente físico. O foco da narrativa, além
da amizade entre os dois protagonistas, apela para as diferenças físicas superadas pelo
afeto emocional.
O segundo filme da narrativa (2014) continua mantendo o foco na amizade entre
Soluço e Banguela. A narrativa se inicia com os vikings e dragões convivendo pacifica-
mente, vários humanos tem dragões de estimação. Na história, Estóico deseja que Soluço
(agora com 20 anos) se torne o chefe da tribo, porém, esse desejo, segue na contra mão
do espírito de liberdade do protagonista. Soluço descobre que há um inimigo (Drago)
capturando dragões para montar um exército, logo, Soluço almeja encontrar com esse
inimigo para convencê-lo a conviver pacificamente com os dragões. Nessa jornada a
procura de Drago, descobre um santuário de dragões, os quais obedecem às ordens de
um grande dragão da espécie Alpha. Drago ataca o santuário com seu exército de dra-
gões junto de outro dragão gigante também da espécie Alpha, na disputa entre os dois
Alphas, o dragão de Drago vence, adquirindo controle sobre todos os dragões. Sob o
comando do Alpha, Banguela e os outros dragões partem para atacar Berk. A narrativa,
então, apresenta o momento que Soluço e seus amigos voltam para enfrentar Drago e
devolver a liberdade aos dragões graças a Banguela, que subverte o comando do Alpha
de Drago. Banguela assume a postura de líder, desafiando o enorme dragão e ganhando
o desafio junto com todos os outros dragões como seus aliados. Por fim, Soluço assume o
papel de novo chefe de Berk. Nessa segunda obra é notado o uso da estereoscopia para
exaltar o significado das cenas.
Como Treinar o Seu Dragão foi lançado em 2010 e sua sequência foi lançada
em 2014, nesse ínterim de quatro anos foi suficiente para ocorrem grandes avanços
tecnológicos na metodologia de produção de animações. A evolução tecnológica nesse

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período proporcionou novas ferramentas para a animação, como a possibilidade de


uma modelagem bastante minuciosa de personagens, cenários e objetos em ambiente
digital tridimensional (ambiente virtual que emula um espaço tridimensional, modelos
criados a partir desse ambiente, podem ser visualizados em por todos os ângulos), além
da inserção de iluminação e texturas muito mais reais. Para aproximar essas fantasias,
que tangem o limiar entre a nossa imaginação e o que vivenciamos, e proporcionar uma
experiência diferenciada ao espectador, a estereoscopia é inserida, porém, no caso da
animação criada em ambiente digital, a captura dos dois pontos de vista não é realizada
com o uso de câmeras físicas, pois nos softwares de animação existem câmeras virtuais.
As câmeras virtuais são formadas por um sistema de captura de um ou mais pontos
de vistas de um ambiente criado digitalmente, sendo que o uso dessas câmeras elimina
problemas encontrados quando se utiliza câmeras físicas, tais como a diferença entre
objetivas, calibragem precisa ou mesmo condições do ambiente natural que possam
interferir no efeito estereoscópico e nas filmagens. O ambiente computacional ainda
permite que a cena seja repetida exatamente igual quantas vezes necessário. Todos esses
fatores facilitam a exploração do efeito estereoscópico incorporado à animação digital.
A animação computadorizada permite ainda filmagens impossíveis com câmeras reais,
como a de um vôo de um pássaro ou mesmo de um dragão visto sob o ponto de vista
do animal, paisagens fisicamente inexistentes, personagens e acessórios criados de
acordo com a vontade e a imaginação dos produtores, onde nem a gravidade e nem as
condições climáticas irão interferir. Por tais razões a função da estereoscopia em trazer
a fantasia para mais próxima do limiar da realidade é tão perceptível nas animações.
Outra contribuição bastante relevante é a modelagem dos personagens e cenários em
ambiente digital 3D, a partir do uso de programas que simulam virtualmente um espaço
físico em suas três dimensões. A modelagem nesse espaço implica em enxergar uma
imagem em todos seus ângulos, e consequentemente, visa à aplicação de volume, não
um volume tátil, mas um volume visual. Diferentemente da animação 2D, na animação
a partir de softwares 3D, como Maya8, 3D Studio Max9, entre outros, o modelo já
é concebido com profundidade, ele não é uma ilustração isolada como na animação
clássica10, o personagem realmente existe no espaço virtual, possuindo volume definido.
Dessa forma o modelo 3D apresenta características de profundidade que podem ser
melhor exploradas com a estereoscopia.
Neste trabalho escolhemos tais filmes pela vasta exploração das técnicas empregadas.
Consideramos ainda a possibilidade de apontar os avanços tecnológicos e como esses
avanços e essas novas possibilidades trazidas por eles, influenciaram um segundo filme
de narrativa intrincada ao primeiro. A vasta exploração de cenas de vôos, a detalhada
modelagem em ambiente digital tridimensional, com inserção de cores, texturas e
sombras, também a exímia animação dos personagens e a intrigante narrativa, ancorados
a um uso da estereoscopia para exaltar tais aspectos, foram fundamentais para tal
escolha. A animação traz vida aos personagens aproxima o espectador de um mundo
imaginário e o faz se enxergar enquanto alguém que vivencia a cena.

8.  Software de animação e modelagem 3D da Autodesk.


9.  Software de animação e modelagem 3D da Autodesk.
10.  Técnica de animação que consiste em desenhos feitos a mão, quadro a quadro.

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ANÁLISE
Os avanços contemporâneos no poder de processamento computacional
acompanhados da evolução dos softwares de modelagem e animação têm possibilitado o
desenvolvimento de animações 3D mais complexas e com maior detalhamento de cenários
e personagens. Aliado este fato as novas tecnologias de visualização esterescópica,
vivenciamos um momento no qual a estereoscopia está propondo uma nova forma de
pensar a espacialidade nas obras audiovisuais. Nesse contexto, o primeiro e segundo
filmes da franquia “Como Treinar seu Dragão” (DreamWorks) apresenta duas obras
audiovisuais que utilizam da estereoscopia em dois momentos distantes. Entre os dois
filmes, houve um espaço de quatro anos e a influência da evolução tecnológica é bastante
perceptível, quando comparamos os dois filmes. Para essa análise foram selecionadas
cenas nas quais a composição apresenta variação de cenário e de personagens onde o
uso da estereoscopia tem relevância na apresentação da narrativa.
A animação de personagens como os dragões, exige bastante poder de processamento
computacional, devido ao alto grau de detalhamento desses modelos, percebe-se que no
primeiro filme, há poucas cenas de vôo com vários dragões, situação bastante diferente
no segundo.
A Figura 2 pertence a uma cena em que o humano Soluço está montado no dragão
Banguela em pleno vôo, sendo que Soluço está testando pela primeira vez o aparato
que desenvolveu para a calda de Banguela. Na cena a insegurança de Soluço é clara, e
alguns segundos antes do frame capturado, o menino perde o controle e se desprende
de Banguela, fazendo com que ambos caiam. Soluço não consegue alcançar o dragão
e este não consegue voar sozinho, e após alguns segundos de queda livre, o menino
finalmente consegue voltar para o dorso de Banguela e percebe que precisa se “conectar”
ao animal para controlar o equipamento e os dois voarem juntos. O frame escolhido é
exibido logo após Soluço entender sua conexão com o dragão.

Figura 2. Anaglifo de Como Treinar Seu Dragão (DREAMWORKS 2010).

Por meio da imagem podemos perceber que a cena usa da estereoscopia para trazer
ao plano geral a sensação de mais espaço. Com o rápido movimento de Banguela voan-
do próximo à água e, se aproximando de formações rochosas ao fundo, a sensação de
velocidade também é aumentada. Devido à disposição das rochas o uso da estereoscopia

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traz a sensação de que elas se aproximam rapidamente com o voo, proporcionando ao


espectador a sensação de velocidade.
Outro fator que observamos claramente na imagem é à disposição dos personagens
com relação ao cenário. A estereoscopia traz a sensação de que ambos estão, de fato,
voando no espaço enquanto o cenário é observado ao longe, sua proximidade do
espectador é quase um convite para “voar” junto com eles, aumentando a sensação de
imersão.
Na Figura 3, Soluço leva Astride, seu interesse romântico, para voar com ele e
Banguela. Segundo DeBlois (PENNINGTON & GIARDINA, 2013), a sequência de onde
esse frame foi retirado é dividida em duas partes, na primeira a menina está aterrorizada,
pois a situação contraria sua crença (e crença comum da vila de Berk) de que os dragões
são maus e devem ser mortos. As cenas são cheias de movimentos e adrenalina, e
exaltam os sentimentos de Astride. Na segunda parte ela aceita que os humanos e
dragões podem conviver juntos, então Banguela os leva para um vôo suave por entre as
nuvens, nas palavras de DeBlois “Era tudo sobre poesia e beleza e observar aquilo sob
o ponto de vista da Astride”11 (tradução nossa, PENNINGTON & GIARDINA, 2013, p.
51). A Figura 3 demonstra um frame dessa segunda parte da sequência, onde se destaca
as emoções da menina.

Figura 3. Anaglifo de Como Treinar Seu Dragão (DREAMWORKS 2010).

A cena estimula a imaginação pela possibilidade de voar por cima das nuvens no
dorso de um dragão. As nuvens são apresentadas em várias camadas com paralaxe
positiva, que se movem em velocidades diferentes, resultando na percepção de vários
níveis de profundidade. Os personagens se situam em uma camada com a paralaxe mais
próxima de zero, e em seu vôo flutuam na tela. A forma como as nuvens estão dispostas
em relação aos personagens promovem um distanciamento gradual do observador, e
esse efeito faz com que o espectador tenha uma melhor noção do espaço e transforma
a borda da imagem em uma espécie de janela, onde o espectador pode olhar através,
ampliando o sentimento de imersão do mesmo.

11.  Nas palavras de DeBlois, “That was all about poetry and beauty and seeing it from Astrid’s point of view”.

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A Figura 4 pertence ao segundo filme da franquia, durante a sequência, Banguela


vence o poder do Alpha e se torna o novo líder. A cena demonstra o momento em que
o Alpha percebe a derrota e vai embora, o frame capturado demonstra a superioridade
de Banguela sobre o Alpha.

Figura 4. Anaglifo de Como Treinar Seu Dragão 2 (DREAMWORKS 2014).

Inicialmente percebemos a posição da câmera, Banguela, mesmo menor em


tamanho, é colocado no alto, enquanto o Alpha é colocado numa posição inferior, a
cabeça baixa e o olhar do personagem, transmitem a sensação de derrota. A estereoscopia
influencia na emoção da sequência distanciando ainda mais os personagens no espaço.
Conforme supracitado, o final do filme faz uso da estereoscopia para proporcionar
mais emoção às cenas, a espacialidade apresentada traz a ideia de distanciamento e
aproximação impregnada em seu cerne. Nesse frame Banguela é colocado bastante
próximo do espectador, parte do seu corpo chega a ocupar a paralaxe negativa (saltar
da tela) enquanto o Alpha é colocado em um plano distante. Esse uso da estereoscopia
é ainda intensificado no decorrer da sequência, Banguela e Soluço estão constantemente
próximos à paralaxe zero, muitas vezes assumindo a paralaxe negativa enquanto o
Alpha sempre assume uma camada mais distante em paralaxe positiva. Esse tipo de
disposição dos personagens induz ao espectador a ideia de identificação ao aproximar
os personagens e antipatia ao distanciá-los.
A Figura 5 demonstra o momento em que Soluço e Banguela entram no santuário
de dragões e vêem quantos dragões vivem sob comando de um dragão da espécie
Alpha. A cena capta a emoção dos dois ao verem a beleza do ambiente e dos animais
que vivem nesse lugar, a evolução tecnológica permitiu representar vários dragões
voando ao mesmo tempo, as belezas de um cenário modelado detalhadamente, suas
texturas e formas.

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O uso da estereoscopia como fator de imersão na franquia de animação “Como treinar seu dragão”

Paula Poiet Sampedro • Diogo Augusto Gonçalves • Leonardo Antônio Andrade

Figura 5. Anaglifo de Como Treinar Seu Dragão 2 (DREAMWORKS 2014).

A estereoscopia, mais uma vez, acrescentou à cena a ideia da espacialidade e


amplitude espacial, ressaltando ao espectador os sentimentos dos personagens exibidos
pela imagem.
Para além da tecnologia disponível, percebe-se um tratamento bastante diferente
nas cores utilizadas e em alguns efeitos que compõem as cenas. Enquanto o primeiro
filme deu ênfase nos tons de marrom e verde, talvez devido à atmosfera emocional
que carrega, deixou as cores mais vivas para os dragões, mais uma vez ressaltando
esses personagens. O segundo filme explora uma paleta bem mais colorida e agrega
um aspecto mais alegre, esse visual está presente nos dragões e dessa vez também nos
humanos, nas roupas e adereços, assim como nas casas e outras construções.
A estereoscopia, por sua vez, como toda ferramenta do audiovisual, demanda alguns
cuidados, além dos cuidados na produção e pós-produção, o uso exagerado do efeito,
seja na paralaxe positiva ou negativa, gera desconforto ao espectador.
Esse mundo cinematográfico aproximado do espectador propicia ao mesmo
a oportunidade de viver outras experiências, imerso em um mundo imaginário o
espectador torna, de certa forma, essa imaginação e mundo de sonhos crível, quase
palpável. O modelamento dos personagens e cenários que emulam o volume, juntamente
com a estereoscopia, deixam o espectador mais próximo do limiar entre o mundo real
e o imaginário. Mendiburu (2009) destaca que devido ao fato de nosso sistema visual
enxergar em 3D naturalmente, um filme em três dimensões é interpretado como mais
real, pois nós não precisamos refazer o volume das coisas que estamos enxergando
na cena, o volume já está lá, “Reduzindo o esforço envolvido para a suspensão da
descrença, nós significativamente aumentamos a experiência de imersão” (p.03, tradução
nossa)12. Segundo Murray (2003, p. 111) “Por causa do nosso desejo de vivenciar a imersão,
concentramos nossa atenção no mundo que nos envolve e usamos nossa inteligência
mais para reforçar do que para questionar a veracidade da experiência”.
A estereoscopia exige do espectador uma maior atividade cognitiva, conectando ele
com a obra intimamente e aprimorando o prazer que a narrativa pode proporcionar. O
público enxerga os espaços fictícios de outro ponto de vista, a quarta parede não existe

12.  Nas palavras do autor, “By reducing the effort involved in the suspension of disbelief, we significantly
increase the immersion experience” (grifo do autor).

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O uso da estereoscopia como fator de imersão na franquia de animação “Como treinar seu dragão”

Paula Poiet Sampedro • Diogo Augusto Gonçalves • Leonardo Antônio Andrade

no cinema estereoscópico, o observador está inserido na narrativa, a interação narrativa


ocorre em outro nível imaginário. Os grandes planos abertos em Como Treinar o Seu
Dragão1 e 2, transmitem a sensação de liberdade, Banguela e Soluço não estão voando
sozinhos, o público é convidado a voar junto com a dupla de protagonistas pela imen-
sidão das nuvens que acentuam a ilusão da profundidade. Os planos em ambientes
fechados são um convite à exploração do espaço, os olhos do espectador percorrem toda
a beleza de detalhes que é proposto pela direção de arte, pois os objetos, no cinema
estereoscópico, possuem a propriedade de ficar em foco, tornando a experiência muito
mais que imersiva, mas em certo nível lúdica, pelas possibilidades apresentadas ao
público, que não precisa mais apenas aceitar o que lhe é mostrado, mas procurar outro
lugar para observar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebeu-se que no primeiro filme da franquia (lançado em 2010) os produtores
ainda utilizaram o desfoque em algumas cenas para direcionar o ponto de vista do
espectador. Essa herança dos filmes bidimensionais tem seu funcionamento um pouco
prejudicado em filmes estereoscópicos, pois muitas vezes o espectador quer apreciar
a imagem em profundidade, “passear” o olhar pela tela. O desfoque não só prejudica
esse ato como, muitas vezes, traz de volta o espectador ao mundo natural, pois ele não
consegue enxergar detalhadamente os elementos dispostos em profundidade. Além
disso, as câmeras virtuais não têm problemas com limitação de campo em foco como
as câmeras manuais, deixando o desfoque apenas como um detalhe estético. O segundo
filme da franquia animada evita esse uso, deixando o espectador livre para percorrer
visualmente os campos e paisagens exibidos, proporcionando maior sensação de imersão
e presença do mesmo no universo fílmico.
Outro apontamento importante é o fato de que, muitas vezes, dependendo do pla-
no utilizado na cena, partes dos personagens são cortadas, isso prejudica o efeito de
profundidade. Quando os personagens são apresentados em paralaxe positiva (mais
longe do observador que a tela), esse recorte torna-se aceitável, pois intuitivamente o
espectador enxerga na tela uma janela, a qual obstrui parte da visão. Porém quando o
objeto está em paralaxe negativa, esse recorte pode prejudicar a imersão do espectador.
Essa herança dos filmes bidimensionais ainda persiste, quando o objeto ou persona-
gem, em paralaxe negativa, é recortado, pelo plano, na parte superior ou nas laterais o
recorte tende a ser mais perceptível, devido à tendência humana de observar da linha
dos olhos para cima e não para baixo. Desse modo, recortes que mantém a cabeça ou
parte superior inteira de um objeto ou personagem mesmo que corte a parte inferior e
estejam em paralaxe negativa, são mais aceitos do que recortes laterais ou superiores
(BLOCK & McNALLY, 2013). Ambos os filmes apresentam alguns recortes indesejados,
porém esses geralmente tomam poucos segundos, o que os deixa mais aceitáveis à
compreensão espacial do espectador.
Godoy de Souza (2005) cita que a época em que estamos é propícia para uma nova
disseminação da estereoscopia devido aos avanços tecnológicos. Mendiburu (2009)
questiona se a estereoscopia, dessa vez, será incorporada ao cinema como foi o som e
a cor, o que provavelmente vai transformar, ainda mais, a experiência proporcionada

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O uso da estereoscopia como fator de imersão na franquia de animação “Como treinar seu dragão”

Paula Poiet Sampedro • Diogo Augusto Gonçalves • Leonardo Antônio Andrade

pelo filme. Ambos os autores apontam para uma possível evolução da técnica e sua
importância na mídia atual, fatores que reforçam a necessidade de estudos nesse âmbito.
Apesar da evolução técnica no uso da estereoscopia, percebe-se que há certa carência
de estudos que observam seu emprego na produção de um sentido dramático nos filmes,
as pesquisas nessa área voltam-se, principalmente à técnica em si. Essa falta de estudos
ancorados à narrativa implica em um uso ainda tímido da estereoscopia, a qual detém
grande potencial estético e grande influência na percepção da história.
O uso da estereoscopia alcança a função narrativa quando completa o significado
que a imagem transmite. A tecnologia em conjunto com a criatividade dos produtores
de conteúdo está fazendo jus a esse aspecto, em um âmbito com potencial de trazer
grandes diferenciais para a indústria do entretenimento e produzir novas formas do
espectador se aproximar da fantasia do cinema.

REFERÊNCIAS
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Digital e seus Desdobramentos Estéticos. ISSN 1983-3725. Disponível em http://www.
rua.ufscar.br/site/?p=657 Acesso em 20 de março de 2015.
________. (2012). Compressão espacial de vídeos estereoscópicos: Uma abordagem baseada em codi-
ficação anaglífica. 2012. (Tese de doutorado em ciências da Computação e Matemática
Computacional). Universidade de São Paulo, USP, São Carlos.
BLOCK, B., MCNALLY, P. (2013). 3D Storytelling: How stereoscopic 3D works and how to use
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CRARY, J. (2012). Técnicas do observador: Visão e modernidade no século XIX. Tradução Verrah
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GODOY DE SOUZA, H. A. (2005). A imagem tridimensional e o documentário. Revista
Visualidades, 3(2), 110-126. doi: 10.5216/issn. 2317-6784. Disponível em <http://www.
revistas.ufg.br/index.php/VISUAL/article/view/17967/10721>, Acesso em 20 de março
de 2015.
LIPTON, L. (1982). Foundations of the stereoscopic cinema: A study in depht. Nova Iorque, NY,
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McKAY, C. H. (1953). Three-dimensional photography: Principles of stereoscopy. Nova Iorque,
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MENDIBURU, B. (2009). 3D Movie making: Stereoscopic digital cinema from script to screen.
Nova Iorque, NY, Focal Press / Elsevier.
MURRAY, J. H. (2003). Hamlet no holodeck: O futuro da narrativa no ciberespaço. São Paulo,
SP, Itaú Cultural: Fundação Editora da Unesp [FEU].
PENNINGTON, A. & GIARDINA, C. (2013). Exploring 3D: The new grammar of stereoscopic
filmmaking. Nova Iorque, NY, Focal Press.
SANTOS, T. E. (2014). Animação estereoscópia: Relações entre a tecnologia audiovisual e a
percepção da profundidade (Dissertação de Mestrado), PPGIS, UFSCar. São Carlos.
WILLIAMS, R. (2001). The animator’s survival kit. Nova Iorque, NY, Faber & Faber.
ZONE, R. (2007). Stereoscopic cinema and the origins of 3D film: 1838 – 1952. Kentucky, KY, The
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O uso da estereoscopia como fator de imersão na franquia de animação “Como treinar seu dragão”

Paula Poiet Sampedro • Diogo Augusto Gonçalves • Leonardo Antônio Andrade

Filmografia
John Norling (Diretor) (1953). In Tune with Tomorrow. E.U.A.: Polaroid.
Chris Sanders (Diretor), Dean DeBlois (Diretor), Bonnie Arnold (Produtor) (2010). How to
Train Your Dragon (Como Treinar Seu Dragão). E.U.A.: DreamWorks.
Dean DeBlois (Diretor/ Escritor), Bonnie Arnold (Produtor) (2014). How to Train Your Dragon
2 (Como Treinar Seu Dragão 2). E.U.A.: DreamWorks.

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O humano digitalizado: o uso da tecnologia
para representar a sociedade no cinema
Human scanned: the technology of use to
represent the company in cinema
Se rgio Rob e rto Vi ei r a M a rt in s 1

Resumo: Boa parte do que é visto no cinema são apenas imagens digitais.
Embora isso ocorra há muito tempo, hoje temos mais do que cenários criados
digitalmente, também personagens ou partes deles, entre outros efeitos que
contribuem para representar a vida. Animais e coisas ganham sentimentos,
emoções e comportamentos humanos (personificação). Filmes em que aparecem
animais falando também não é novidade, mas são as atitudes que se revelam mais
fortes; robôs não só substituem pessoas, fazem tarefas humanas, eles são usados
para simular a vida e são produzidas digitalmente. Essas imagens procuram
transmitir algo muito próximo de uma vida real, provocando a identificação e
aceitação por parte do espectador. Assim, a organização social que é apresentada
nos enredos tem como base a cultura humana. Avanços tecnológicos, bem como
o fenômeno das mídias sociais e de compartilhamento também são temas de
filmes mais contemporâneos. O artigo discute sobre a humanização de elementos
cinematográficos em alguns filmes, entre eles, a representação da realidade, a
simulação, a digitalização, a influência da tecnologia nos cenários, figurinos,
personagens, comportamento, os problemas sociais, entre outros.
Palavras-chave: audiovisual; cinema; ficção; humanização; digital; simulação.

Abstract: Much of what is seen in the movies are just digital images. While this
occurs a long time, today we have more than scenarios created digitally, also
characters or parts of them, among other effects that contribute to represent
life. Animals and things gain feelings, emotions and human behavior
(personification). Movies that appear talking animals is not new, but are the
attitudes revealed stronger; robots not only replace people make human tasks,
they are used to simulate life and are digitally produced. These images seek to
convey something very close to a real life, leading to identification and acceptance
by the viewer. Thus, the social organization of which is shown in the plots is
based on human culture. Technological advances and the phenomenon of social
and sharing media are also themes of a more contemporary films. The article
discusses the humanization of cinematic elements in some films, among them,
the representation of reality, simulation, digitization, the influence of technology
on sets, costumes, characters, behavior, social problems, among others.
Keywords: audiovisual; cinema; fiction; humanization; digital; simulation.

1.  Graduado em Letras (2006) e Artes Visuais (2012), com Especialização em Fundamentos de Ensino da Arte
(2008) e Cinema, com Ênfase em Produção (2014), ambas pela Faculdade de Artes do Paraná (UNESPAR).
Mestrando do Curso de Comunicação e Linguagens: Estudos de Cinema e Audiovisual pela Universidade
Tuiuti do Paraná (UTP), email: sergiobertovi@gmail.com

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O humano digitalizado: o uso da tecnologia para representar a sociedade no cinema

Sergio Roberto Vieira Martins

É MUITO COMUM as pessoas assistirem a desenhos animados em que um objeto


aparece com boca ou mesmo algumas figuras que representam animais falantes,
isso se chama personificação, que não está presente só nos filmes, mas também
na literatura de modo geral. A Disney, por exemplo, produziu uma série de fábulas já
consagradas, entre outros filmes do gênero infantil, que simulam um mundo de fanta-
sia, na qual toda a criança vê aquilo como algo normal. Indiscutivelmente, nessa fase
da vida, isso é natural, como também é natural e faz parte do aprendizado, o chamado
“universo da criança” – criar um mundo imaginário, usando o que tem em mãos, seja
em argila, madeira, bichos de pelúcia, bonecos de pano ou de plástico, entre outros
objetos criados para este fim, produzidos pela indústria ou mesmo criados pela própria
criança – dependendo dos estímulos dos adultos (pais, irmãos, educadores), de outras
crianças (amiguinhos) ou mesmo por conta da mídia.
Contudo, o que tem acontecido atualmente não são apenas desenhos animados que
simulam fábulas tiradas de alguns textos infanto-juvenis, a indústria cinematográfica tem
investido em filmes complexos de animação, que por vezes passam muito longe de um
gênero infantil. Várias produções que são até baseadas em livros, voltados para o público
jovem (ou crianças), se tornaram grandes produções, com enredos complexos, e linguagens
também complexas. Em filmes de conteúdo ou contexto adulto também são utilizadas
técnicas de animação variadas e muitos outros recursos disponíveis para produzir efeitos
visuais, graças a democratização das mídias e do acesso um pouco menos dispendioso,
pequenas produtoras também conseguem colocar seus trabalhos para um bom público,
diversificando, servindo de inspiração ou por vezes colaborando com as grandes.
Para Maya Deren (2012, p. 134), a câmera cinematográfica, especialmente depois dos
avanços tecnológicos ao longo de sua história, consegue realizar produções grandiosas
“mediante esforços virtualmente mínimos: ele requer de seu operador apenas um pouco
de aptidão e energia; de seu assunto, que apenas exista; e de sua audiência, que apenas
possa ver”. Deren, diretora e fotógrafa norte-americana, reafirma as potencialidades
do cinema, de como é possível utilizar-se das relações de movimento, tempo e espaço,
além de um poder extraordinária de expressão e de manipulação.
Assim, muito do que vemos nas telas de cinema nada mais é do que estratégias
narrativas e cinematográficas combinadas com a percepção ou a cultura do olhar estético
dos próprios espectadores.
Entre várias estratégias combinatórias “o cinema nos dá o mundo plástico e dinâ-
mico” (MÜNSTERBERG apud XAVIER, 1983, p. 35), em que parece não haver limites
para a imaginação. Para Sergei Eisenstein (2002), a “montagem” e a “produção” ganham
um papel fundamental nos filmes, as histórias ganham maior dinamismo, com novas
experiências, subversões, transgressões. Por conta da montagem é possível trabalhar
com elementos aparentemente contraditórios, histórias cruzadas ou desconexas, às vezes
paralelas, dão novos sentidos ou significados, o que também atrai os espectadores, que
buscam novas experiências visuais (como o 3D, por exemplo).
Esse tipo de montagem, mais dinâmica, pode garantir maior proximidade com a
vida, pois o cotidiano é feito de contradições, complexidade e dinamismo, ficando muito
mais próxima do que temos na sociedade.

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O humano digitalizado: o uso da tecnologia para representar a sociedade no cinema

Sergio Roberto Vieira Martins

Reforçando as ideias de Sergei Eisenstein (2002), sobre a “montagem” e “produção”,


cabe um bom exemplo, que também relaciona os elementos humanos, mesmo que num
ambiente hibrido de fantasia com “realidade” (cotidiano, porém dentro das atividades
típicas de um casal), temperado por sátira (das histórias infantis e do que estaria por
trás dessas), no longa metragem de animação Shrek 2 (Fig. 1)2. Na cena – quando da
chegada do casal (protagonistas do filme), o ogro e sua esposa, ao castelo do rei de “Tão
Tão Distante” – há um diálogo lógico entre Shrek e Fiona, em contra partida há outro
diálogo também lógico e paralelo entre Harold e Lilian (rei e rainha, ou seja, pai e mãe
da princesa Fiona), tal combinação de frases ocorre enquanto eles vão se aproximando,
como se um personagem terminasse a frase do outro (no outro diálogo), que cada vez
vai ganhando ritmo (e a música de fundo também vai contribui para a cena) até que o
clímax ocorre quando estão frente a frente, a música termina completamente e o diálogo
também. Uma ação, aparentemente comum, do encontro dos casais, ganha dinamis-
mo e comicidade por conta da montagem. Criou-se um outro diálogo (um terceiro),
da combinação entre os diálogos, como se estivessem num mesmo plano, algo que na
vida real seria muito raro de acontecer, talvez uma pessoa completar a frase de outra,
criando uma nova ideia.

Figura 1. Shrek e Fiona diante de Harold e Lilian, 2004. (DREAMWORKS, 2011)

Os planos escolhidos, desse trecho da animação, podem denotar várias


interpretações, porém eles ajudam (entre outras coisas) a perceber o constrangimento de
Shrek e Fiona diante dos pais da princesa, sensação semelhante a qualquer casal diante
dos pais da moça, principalmente quando já estão a muito tempo juntos sem a “permissão
deles”. Não importa aqui se os protagonistas são verdes, o público se identifica com a
semelhança dos acontecimentos, das tramas, dos sentimentos e emoções dos dois.

2.  DREAMWORKS. Shrek 2 - The Movie. Disponível em: <http://www.shrek2-themovie.com/> Acesso


em: 29 de Julho de 2014.

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O humano digitalizado: o uso da tecnologia para representar a sociedade no cinema

Sergio Roberto Vieira Martins

Observando a imagem acima, podemos perceber o quanto a animação trabalha os


detalhes dos corpos humanos: o rei (imagem vista por trás) possui linhas no pescoço que
sumulam as dobras da pele, o cabelo do casal real também é extremamente complexo,
com linhas douradas nele e no estilo luzes na rainha, ou seja, não são meros espaços
preenchidos por cor. Já Fiona e Shrek embora não sejam humanos na sua totalidade,
possuem elementos semelhantes: expressões faciais, olhar, quantidade de dedos nas
mãos; porém outros tantos detalhes vão além das aparências, que é justamente o lado
humano, sentimentos, atitudes. Essa ênfase expressiva acaba aproximando o público
da história, provoca maior dinamismo ou dramaticidade, a animação é elaborada nos
mesmos moldes de um filme convencional, com planos e contraplanos idênticos, dei-
xando fora de foco o fundo, incluindo aqueles que fazem o papel de figurantes, também
ganham o mesmo trato que seus protagonistas.
Aqui, a função do cinema é reproduzir o mais precisamente possível as chamadas con-
dições naturais da percepção humana. A tecnologia fotográfica (conforme demonstra a
profundidade de campo em particular), e os movimentos de câmera (motivados pela ação
dos protagonistas), combinados com a montagem invisível (exigida pelo realismo), tudo isto
tende a confundir os limites do espaço da tela. (MULVEY, 1983, p. 444).

Mesmo que por vezes os personagens sejam fantasiosos, com histórias quase impos-
síveis, são os elementos humanos implícitos e explícitos que ajudam na verossimilhan-
ça. Boa parte desses atributos se deve as pequenas semelhanças, ou seja, o espectador
precisa se identificar com aquilo, mesmo que minimamente.
Para Laura Mulvey (1983, p. 441-442), “as convenções do cinema dominante dirigem
a atenção para a forma humana”, assim, tudo que envolve as imagens convergem para o
corpo. Assim, há uma fascinação, que aumenta quando há essa semelhança, quando há
reconhecimento, rosto, cabelo, corpo, e talvez tudo que rodeia o arquétipo que em geral
está moldado na perfeição, mesmo que aparente. Porém, segundo a pesquisadora, esse
reconhecimento não é verdadeiro, pois é representada como numa imagem-espelho,
ou seja, é um reflexo, uma projeção, e faz parte de uma matriz do imaginário humano,
portanto, é um falso reconhecimento, criado a partir de nossa subjetividade; mesmo
que similares (o indivíduo e seu reflexo), a forma projetada no espelho não é a pessoa
em si. Talvez, dessa forma, tudo o que vemos projetado acaba por criar em nós esse
falso reconhecimento, e no cinema não deixa de ser diferente. Mesmo que haja glamour,
extravagância fora do comum, mesmo que o personagem seja muito distinto do espec-
tador, desde a cor da pele até a quantidade de dedos nas mãos e nos pés, ele acaba se
reconhecendo, por semelhança, mesmo que exista muita diferença entre aquilo que é
visualizado, para aquele que está visualizando.
Edgar Morin fez do processo de identificação/projeção praticamente o núcleo de seu livro –
O cinema ou o homem imaginário (1958). Neste trabalho, que ele próprio denomina “ensaio
antropológico”, seu interesse concentra-se na discussão de um fenômeno que considera
básico dentro da cultura do século XX: a metamorfose do cinematógrafo em cinema. O
primeiro seria simplesmente a técnica de duplicação e projeção da imagem em movimento;
o segundo seria a constituição do mundo imaginário que vem transformar-se no lugar por

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O humano digitalizado: o uso da tecnologia para representar a sociedade no cinema

Sergio Roberto Vieira Martins

excelência de manifestação dos desejos, sonhos e mitos do homem, graças à convergência


entre as características da imagem cinematográfica e determinadas estruturas mentais de
base. (XAVIER, 2005, p. 23).

O reconhecimento, a identificação e a ilusão são elementos essenciais para o chamado


fascínio, em que há esse deslumbramento, por conta das imagens. Esse apelo visual é muito
forte, a ponto do espectador confundir aquilo que é projetado com a vida real. Dependendo
de sua psicologia e do tipo de projeção, ele pode enchergar o cinema como uma tela pictórica,
como um buraco de fechadura, quando o fluxo de imagens é grande e contínuo, entendê-lo
como um sonho, como um espaço para o onírico ou simplesmente lembranças, por mais
que não pertença as suas próprias, desde de que se mantenha a identificação e a impressão
de realidade, tudo lhe parecerá “normal”. A diegése carrega significações e veracidade, por
vezes conduz as imagens, dando caminhos para o homem criar sua fantasia.
Ainda mais extraordinário realismo, mesmo em formas aparentemente não huma-
nas, encontramos em Rango3, 2011, de Gore Verbinski, que se não fosse uma animação,
poderia ser classificada como um filme épico, pois transborda elementos do western.
Rango vai muito além de uma “simples animação divertida”, discute política, problemas
sociais e dramas do cotidiano; trabalha sobre a organização da sociedade, futilidade,
discórdia e até questões de ordem religiosa ou filosófica. É uma animação rica em
detalhes, tanto no enredo, quanto nos elementos compositivos. Pode ser considerado
um filme hiper-realista (em especial na construção dos personagens e suas expressões),
também tem um toque de metalinguagem e ironia.
O que chama a atenção em Rango é que o filme busca uma proximidade com a
verossimilhança, com a ideia de que cinema pode ser representação da realidade, fazen-
do com que o espectador perceba detalhes, que muitas animações não mostram, tanto
no movimento, quanto na textura, na cor, e outros elementos (fílmicos ou imagéticos),
além da narratividade; o personagem não se torna imortal por ser um “desenho”, tem
uma história (um passado), possui desejos que se mesclam ora mais humano, ora mais
animal, e tantas outras características que se assemelham ao mundo real.
O filme, em princípio, parece causar certa estranheza, ficando difícil classificá-lo
em relação ao público que deseja atingir. Mas, em se tratando de grandes realizações
norte-americanas, de certa forma, isso não é novidade, pois também ocorre com as pro-
duções de Matt Groening, em The Simpsons (Filme de 2007, e, Série de TV, desde 1989),
e, consequentemente em Futurama (Série de TV, desde 1999), ambas para o Canal Fox; é
possível encontrar outras que trabalham com uma linguagem, e contexto, que nem sem-
pre está direcionado ao público infantil, embora tenha formato de “desenho animado”.
Já as animações desenvolvidas pela Pixar, Walt Disney, por exemplo, costumam con-
siderar seu público, trazendo diálogos e roteiros mais simples, com personagens mais
“bonitos”, aos olhos das crianças. Em Futurama, Matt Groening trabalha muito bem a ironia
e o exagero da personificação. Os robôs são apresentados como figuras grotescas, mas têm
atitudes humanas, embora ideologicamente as vezes estejam bem distantes disso. Muito
semelhante a série Bob Esponja (que também virou filme de longa metragem, em 2004,
dirigido por Stephen Hillenburg), que simula um mundo embaixo d’água, em que lulas,

3.  Rango foi vencedor de inúmeros prêmios, entre eles o Oscar de Melhor Filme de Animação, em 2012.

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O humano digitalizado: o uso da tecnologia para representar a sociedade no cinema

Sergio Roberto Vieira Martins

peixes, crustáceos e outros bichos da fauna marítima ganham bocas, falas, sentimentos
e tudo o que um ser humano representa. Voltado para um público infantil, seu enredo
também é simples como nos contos de fadas e nas fábulas, muitas vezes trazendo “moral
da história”, músicas divertidas, sem tanta violência, mortes ou coisas assim, numa lin-
guagem mais acessível, e, porque não, mais direta, sem grandes devaneios.
Porém, em Rango a linguagem é mais complexa, assim como seu roteiro; palavras
como hidratação, próstata, bolo fecal, epifania, entre outras, se misturam com piadas
que requer mais conhecimento do público, além de tratar de assuntos políticos e do uso
da metalinguagem (as vezes através do Quarteto de Corujas Mexicanas, as vezes por
intermédio do protagonista que gosta de fazer representações teatrais, simulando que
está num palco, diante de seu público). A própria história traz momentos de divagação ou
digressão, talvez para dar fôlego ou mesmo para trabalhar a ironia. Alguns personagens
são assustadores e deformados, ao menos sob o olhar infantil, mas ganham carisma
quando apresentam características humanas. Em contrapartida, possui boa dose de
cenas de ação, em especial quando aparece a Águia, do qual o protagonista tenta escapar
em dois momentos distintos, no deserto e na cidade conhecida como “Poeira” (Dirt).
Os personagens são personificações, ou seja, animais humanizados, assim como
os dramas vividos por eles. Os detalhes das paisagens, das vestimentas e de outros
adereços imitam a “realidade”. A presença de um personagem “totalmente humano”
justamente aparece no papel do Espírito do Oeste, mencionado pelo Tatu, ainda no início
do filme, mas não compreendido pelo futuro herói da trama. Ali, distante dos problemas
e frustrações vividas pelo protagonista, o Espírito do Oeste atua como se tudo aquilo
fosse um sonho, um devaneio ou ideário, porém fazendo as vezes da consciência ou da
representação divina.

Figura 2. O quarteto de corujas mexicanas, narram a história, de forma pessimista,


aparecem em determinados momentos, como que buscando, de forma irônica,
prever os acontecimentos do protagonista (RANGO, 2011, frame: 10min38seg).

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O humano digitalizado: o uso da tecnologia para representar a sociedade no cinema

Sergio Roberto Vieira Martins

O quarteto de corujas aparece várias vezes, narram a história (Fig. 2), pode ser compa-
rado ao Coro do Teatro Grego, eles cantam-contam alguns versos, apontando outro lado
metalinguístico da história, tentam provocar a ironia, com frases que simulam previsões
dos acontecimentos no estilo do “velho oeste”, também colaboram com a diegese e estão
cercados de detalhes que surpreende o espectador (as penas, as cores, os movimentos, os
olhares, as roupas, os instrumentos). Esta estratégia não é novidade em filmes e animações
norte-americanas, nesse caso colabora para a comicidade e musicalidade da trama (ora
mais intensa, ora mais calma, “controlando” o ritmo da narrativa). Dentro da cidade, as
falas e as imagens estão sempre relacionadas a água, principalmente a ausência dela.
São garrafas pra todos os lados, e famílias desistindo de suas terras por escassez. Nessa
animação, a água representa a riqueza (dinheiro, moeda, valor), inclusive o banco tra-
balha com ela; e, portanto, geradora do chamado “conflito”, essência de uma narrativa.
Podemos entender que essa animação segue um pressuposto cinematográfico mui-
to bem definido, a ideia básica que o cinema tem sempre que levar em consideração: a
percepção, através dos sentidos. “Reagimos diante da imagem fílmica como diante da
representação muito realista de um espaço imaginário que aparentemente estamos vendo.”
(AUMONT, 1995, p. 21). Mesmo sendo uma animação, prende-se ao realismo (ou ultrarrea-
lismo, se considerarmos as texturas dos personagens), no conteúdo e na forma, mantendo
regras do gênero western e explorando uma discussão contemporânea, a exploração dos
recursos naturais, a corrupção e, também, questões puramente humana (em especial, a
esperança), aproximando o público através desses elementos por afinidade ou semelhança.
Para Aumont, “desde os primórdios do cinema, os filmes ditos ’representativos‘
foram a imensa maioria da produção mundial (inclusive os ’documentários‘), embora,
desde bem cedo, esse tipo de cinema tenha sido muito criticado.” (1995, p. 26, grifo do
autor). Outro ponto importante sobre a impressão de realidade do cinema e da anima-
ção se encontra no termo conhecido como diegese. A denominação serve para designar
ou apontar certa lógica, quando os elementos que aparecem na tela estão conectados a
outros de sonoridade (por exemplo). A narrativa chamada de cronológica parece dar
certo conforto ao espectador, que consegue compreender melhor o que está vendo, pois
ele segue uma linha lógica de planos sucessivos, uma continuidade relacionada com a
dimensão espaço-temporal que todos estão acostumados, pois vive isso diariamente. Ou
seja, a vida é cronológica, apenas deixa de ser quando sonhamos ou projetamos as coisas
(no futuro) e lembramos (do passado), mesmo assim, geralmente, seguimos uma ordem
dos fatos. Diegese seria o processo que oferece, à narração, a possibilidade de construir
um enredo que frui quase que automaticamente. Tal efeito se encontra muito presente
na literatura, no teatro e também no cinema, “quanto maior for a impressão de realidade,
mais diegético é o efeito da ficção”, aponta Costa (2005, p. 32). Assim, a animação consegue,
também, através do áudio, em especial, colaborar para o “realismo”, mesmo quando algo
possa ou pareça estar tão distante dele (pois se trata de uma criação utilizando técnicas
de animação). O som diegético, portanto, ajuda o espectador na compreensão narrativa,
e, mesmo que apareçam animais falando da mesma maneira que os seres humanos ou
mesmo animais de espécies diferentes convivendo de forma relativamente harmoniosa,
em ambiente fora da realidade cotidiana, sabendo manusear armas, usando roupas extra-
vagantes, ainda assim, o público sai diante da tela convencido de que aquilo realmente

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O humano digitalizado: o uso da tecnologia para representar a sociedade no cinema

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está dentro de uma “normalidade”. O mesmo ocorre como a animação Kung Fu Panda (da
DreamWorks Animation, 2008, dirigido por John Stevenson e Mark Osborne), que simula
uma vila tipicamente humana, porém habitada por animais de várias espécies, dentro de
uma organização social, política e filosófica semelhante a vida cotidiana “orientalizada”,
acrescendo apenas o enredo ligado as lutas marciais (neste caso). Para garantir a diegese,
investiu-se muito também no elenco, com vozes de personalidades conhecidas, em espe-
cial dentro de filmes do gênero das artes marciais ou semelhantes, como exemplo Jackie
Chan, Lucy Liu, além de outros famosos que certamente encareceram o orçamento, que
fez tanto sucesso que não só ganhou uma continuidade, em 2011 (Kung Fu Panda 2), mas
também uma Série de TV (também em 2011), conhecida como Kung Fu Panda: Lendas do
Dragão Guerreiro (em inglês: Fung Fu Panda: Legends of Awesomeness).
Também seguindo os moldes dessas produções, que simulam mundos semelhantes
aos da civilização humana, Bee Movie (2007), de Steve Hickner e Simon J. Smith, pro-
duzida pela DreamWorks, traz uma complexa cidade com características hibridas (uma
espécie de colmeia com elementos humanos mesclados), porém são os dramas que são
mais humanizados e a viagem para fora da colmeia (numa cidade que representa a vida
humana) que gerará os conflitos do enredo, porém, nesse caso, a relação entre humanos
e abelhas ocorre de forma ao mesmo tempo estranha, pois na realidade esses insetos
não poderiam se relacionar com as pessoas (regra das próprias abelhas), foi quebrada,
e passa a ser aceita pelo filme (enredo), e automaticamente pelo espectador.
Outra animação, na qual a Fox investiu bastante, e que é muito semelhante as estraté-
gias de algumas de suas séries de TV, em especial o Futurama, onde aparecem personifi-
cações que exploram as relações humanas, foi o longa Robôs (Robots, 2005, de Chris Wedge
e Carlos Saldanha). De orçamento milionário, a produção do filme tem como base uma
cidade com características humanas, na periferia da cidade grande chamada Robópolis,
com dramas familiares, políticos e sociais, além de simular sentimentos humanos como
inveja, paixões, desejos, esperança de vida melhor, entre outras estratégias. A animação
segue os moldes dos filmes para a família (infantil), sem palavrões, mortes e coisas muito
exageradas. Usando do artifício de que todos são robôs, e que podem ser remontados,
a história ganha ironia, pois todas as atitudes (alimentação, por exemplo) seguem uma
estrutura semelhante a humana, lembrando a animação Vida de Inseto (A Bug’s Life, 1998),
de John Lasseter e Andrew Stanfon, produzido pela Disney, em que os pequenos insetos
falam, têm sentimentos humanos, comem, bebem, porém diferente do filme da Fox, eles
vivem num mundo não humano, fazendo outras coisas que geralmente os insetos fariam
(carregando folhas, construindo formigueiros, entre outras).
Quando os elementos humanos, junto com estratégias de enredo, que sumulam a
vida, são trabalhados em harmonia com montagem e produção, o filme ganha noto-
riedade. Possivelmente tais elementos são aceitáveis por semelhança, como já foi visto,
mesmo que por vezes eles sejam muito simples, quase primitivos, como colocar olhos e
boca em algum objeto, o filme ganha status quando há uma voz humana, movimento e
ações similares ao a vida cotidiana ou muito semelhante a ela: a organização social, os
sentimentos, as expressões, junto com a ideia de continuidade narrativa, a diegese, toda
essa soma de estratégias serve para “enganar o espectador” ou simplesmente levá-lo a
acreditar naquela fantasia, como se fosse sua.

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O humano digitalizado: o uso da tecnologia para representar a sociedade no cinema

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Nem sempre no cinema é possível se filmar a vida, na sua totalidade, como cópia
do mundo real, que é o que acontece com aqueles que não trabalham com animação
gráfica. Muitas vezes são em partes ou totalmente digitalizados (como representação
ou simulação da vida), e são esses que mais surpreendem, pois facilmente enganam os
olhos dos espectadores.
Os estúdios Disney, desde a década de 40, são capazes de produzir filmes híbridos, em
que personagens de carne e osso (captados pela objetiva de uma câmera cinematográfica)
contracenam com personagens desenhados à mão e animados por uma truca. “Uma cilada
para Roger Rabbit” (1988), de Roberto Zemeckis [...] levou essa hibridação ao limite máximo
da tecnologia então existente, com excelentes resultados artísticos. (GERBASE, 2003, p. 35)

Muitos filmes foram produzidos na sequência e trazem uma espécie de hibridismo,


em destaque o filme do Garfield: The Movie, produzido pela Fox, em 2004, com direção
de Peter Hewitt, Garfield: A Tail Of Two Kitties, dirigido por Tim Hill, 2006, e as sequên-
cias, bem como os filmes do Stuart Little, 2000, de Rob Minkoff, produzido pela Sony
e distribuído pela Columbia Pictures, entre outros exemplos, segue a mesma ideia de
Roberto Zemeckis, misturar animação, em especial alguns personagens animados, com
filme live-action, com personagens feitos por atores reais. E tudo isso é possível graças
a evolução digital, a manipulação e o hibridismo cinematográfico.
A digitalização começou aos poucos no cinema, e hoje toma conta muitas vezes
de quase a totalidade do filme, não distante alguns são totalmente digitalizados. Os
chamados efeitos especiais de George Méliès ganharam quase infinitas possibilidades,
chegando a criar universos totalmente digitais, porém, muitas vezes, simulando a civili-
zação humana ou parte dela. Para Carlos Gerbase, “todos os elementos que fazem parte
da trilha sonora de um filme contemporâneo – diálogos, música, som ambiente, efeitos,
etc. – são, via de regra, gravados, manipulados e mixados digitalmente” (GERBASE,
2003, p. 31), além da própria montagem, edição, filmagem, armazenamento e reprodução.
O cineasta por vezes conta com um longo processo de pós-produção, em que boa
parte dos recursos financeiros são utilizados nessa etapa, entre eles a criação através de
meios eletrônicos, como efeitos especiais ou visuais, modelagem, digitalização de ima-
gens, efeitos sonoros, entre outros, porém todos pensados e captados anteriormente, seja
na pré-produção ou na produção em si (etapa da filmagem). “A produção das imagens
eletrônicas se estabelece como resultado das infinitas possibilidades a explorar, contidas
na combinatória do algoritmo, e/ou a partir das potencialidades e especificidades da
nova infraestrutura tecnológica” (TAVARES, 1996, p. 114). Por sua vez “a introdução das
tecnologias digitais facilitou imensamente os processos do cinema industrial e massivo,
ao mesmo tempo em que ampliou possibilidades estéticas e abriu novos caminhos aos
realizadores independentes” (FELINTO, 2006, p. 414) Ou seja, tanto as grandes produ-
toras quanto as pequenas ganharam com a tecnologia digital.
O que antigamente era privilégio de poucos, (fazer cinema implicava em alto custo
financeiro), o cineasta independente ficava com um trabalho mais precário, não renderia
grandes lucros ou mesmo chegaria a um público considerável. Ou seja, “ao mesmo tempo,
as câmeras digitais e a edição digital não apenas disponibilizam novas possibilidades
de montagem, como facilitam as produções de baixo orçamento” (STAM, 2003, p. 353),

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O humano digitalizado: o uso da tecnologia para representar a sociedade no cinema

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o digital trouxe uma espécie de democratização (ao menos em partes), ainda gerando
muitos lucros para as grandes produtoras (por conta da divulgação e distribuição, que
para as pequenas se torna as vezes dificultoso), mas ainda assim é possível fazer bons
filmes e conseguir um bom público com poucos recursos.
A invasão de elementos digitais no cinema vem crescendo espantosamente, um
dos fenômenos de bilheteria, e que trouxe muitas mudanças no cenário cinematográfi-
co mundial em termos de possibilidade e uso criativo da tecnologia, foi o filme Matrix
(1999), dos irmãos Wachowski, tanto na edição, efeitos visuais, efeitos sonoros, quanto no
enredo, provocou fervores, explorando a ideia de que cinema é, antes de tudo, ficção, e
que na ficção tudo é possível (desde que tenha sentido, verossimilhança dentro daquele
universo criado pelo cineasta), deixando de lado a ideia de que o mundo cinematográ-
fico tem que ter os moldes da realidade cotidiana (muito embora, sem a sua essência,
o público não vai acreditar, ou seja, dar crédito àquela produção), porém os irmãos
Wachowski tinham seus argumentos e conseguiram sustentar o “Mundo de Matrix”
com suas regras e propósitos, além do que, a experiência humana, os desejos e outras
tantas facetas fazem parte da narrativa, o que torna a produção aceitável pela maioria, ou
seja, quando há humanização, o senso comum prevalece. A trilogia pode ser traduzida
como uma releitura de vários segmentos, tanto ideológico, quanto filosófico, passando
pela literatura e textos científicos: Mito da Caverna (de Platão), Mitologia Greco-Romana
(Pandora, Oráculo, Morpheu), a ideia do Apocalipse, da dominação das máquinas e
pela perda da condição humana para a tecnologia (robótica, automação), pela epidemia
(crise financeira ou intelectual), considerando ainda algumas literaturas como Alice no
País das Maravilhas, chegando a obra Simulacros e Simulação, de Jean Baudrillard, no qual
os irmãos Wachowski se inspiraram para criar o filme. A grande questão é que o filme
ficou recheado de referências, embora não se tornou totalmente complexo, o roteiro e
o enredo são pontos fortes, mas perderam para os efeitos visuais, que chamou muito
mais atenção do público.
Se por um lado não se pode fechar os olhos aos riscos que assumimos em nossa cultura cada
vez mais tecnológica e espetacularizada, também não parece sensato negar os rumos do
tempo e buscar um retorno a idílicos passados. As incríveis potencialidades das tecnologias
digitais e do universo midiático em que vivemos mal começaram a ser exploradas. Nesse
sentido, há muito que fenômenos como “Avatar” podem nos dizer a respeito dos futuros
que escolheremos para trilhar. (FELINTO; BENTES, 2010, p. 9)

Talvez não seja prudente apenas subjulgar as produções, acreditando que se torna-
ram um amontoado de tecnologia digital, pelos quais muitos são seduzidos, com seus
olhares compenetrados nos prazeres que ela nos proporciona, de um mundo cibernético
ou repleto de efeitos visuais. Tanto Matrix (1999), dos irmãos Warchonski, quanto Avatar
(2009), de James Cameron, trazem no roteiro discussões sobre a valorização do humano,
fazendo com que as pessoas reflitam sobre a condição humana na contemporaneidade.
Ou seja, dos perigos da civilização tecnológica em buscar apenas o prazer sob o filtro
(ou a ótica) de um dispositivo eletrônico (ou máquina), muitas vezes até confiando mais
nesses dispositivos e o que ele traz (texto, imagem, etc.) do que nas pessoas e o que elas
dizem.

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O humano digitalizado: o uso da tecnologia para representar a sociedade no cinema

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Figura 3. Eu, Robô apresenta figuras cibernéticas, produzidas para se assemelhar


ao ser humano, tanto nas atitudes, quando na aparência (EU, ROBÔ, 2004)

Assim, outro bom exemplo que mistura tecnologia e discussão da própria tecnologia,
em que trabalha a ideia da dominação da humanidade pelas máquinas, é o filme de Alex
Proyas, Eu, Robô, de 2004 (Fig. 3), em que seres artificiais estão presentes na maioria dos
lares, fazendo companhia e realizando tarefas aos humanos. Uma das discussões mais
intensas do filme (roteiro) é a similaridade dos rostos dos robôs com os seres humanos,
além da simulação de pensamento, criatividade, sentimentos e até sonhos; o que jamais
poderia ser alcançado por qualquer criatura não humana (em especial cibernética), em
O Homem Bicentenário, do diretor Chris Columbus, 1999, esses últimos temas já eram
foco de discussão no enredo, a perda do humano e a busca de algo que substituísse essa
ausência, esse último também em destaque no filme Ela (She, 2014), de Spike Jonze, em
que um homem solitário (escritor) compra um sistema operacional que simula a voz
humana, o surpreendente é que ele acaba por se apaixonar por ela, que é apenas uma
voz artificial, programada.
Tais representações revelam nossa “dependência” tecnológica. A substituição do
humano por elementos que simulam a vida e até nossas relações é uma tendência que
aumenta gradativamente na contemporaneidade, em que é constante trocarmos a pre-
sença humana por aparelhos, sejam eles pequenos ou grandes. Eles servem tanto para
nos entreter, como para nos fazer companhia. No caso do cinema, eles ajudam não só
na simulação, mas também para criar um universo mágico, que as vezes só encontra-
mos em nossos sonhos e fantasias, promovendo a imaginação de seus produtores ou
realizadores. Para que isso se torne aceitável, há a necessidade do elemento humano,
independente do enredo ou contexto, precisamos de algo que se aproxime, que seja
semelhante, que nos represente.

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O humano digitalizado: o uso da tecnologia para representar a sociedade no cinema

Sergio Roberto Vieira Martins

REFERÊNCIAS
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Baudrillard, Jean. Simulacro e simulação. Lisboa: Relógio d’Água, 1991.
Costa, F.C. O primeiro cinema: espetáculo, narração, domesticação. Rio de Janeiro: Azougue, 2005.
Deren, Maya. Cinema: o uso criativo da realidade. Boston, Massachussetts: Daedallus – Journal
of the American Academy of Arts and Sciences. 1960. Belo Horizonte: Devires, V. 9, N.º 1, p.
128-149, Jan./Jun. 2012. Traduzido por José Gatti e Maria Cristina Mendes.
EisensteiN, Sergei. A forma do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
Eu, Robô. Direção de Alex Proyas. Produção 20th Century Fox. Elenco: Will Smith, Bridget
Moynahan, Alan Tudyk… et. al. Trilha Sonora: Marco Beltrami. Roteiro: Akiva Goldsman
e Jeff Vintar. Gênero: Ficção / Drama. Cor: Colorido. Ano de Lançamento: 2004.
Felinto, Erick. “Cinema e tecnologia digitais.” In: Fernando Mascarello. (Org.). História do
cinema mundial. 1 ed. Campinas: Papirus, 2006, p. 413-428.
________; Bentes, Ivana. Avatar: o futuro do cinema e a ecologia das imagens digitais. Porto Alegre:
Sulina, 2010.
Gerbase, Carlos. Impactos das tecnologias digitais na narrativa cinematográfica. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2003.
Kung Fu Panda. Direção de John Stevenson e Mark Osborne. Coprodução de Jonathan Aibel
e Glen Berger. Elenco (vozes): Jack Black, Jackie Chan, Dustin Hoffman, Lucy Liu, Ian
McShane, Angelina Jolie e Seth Rogen… et a. Trilha Sonora: Hans Zimmer e John Powell.
Gênero: Ação. Produtora: DreamWorks Animation. Distribuidora: Paramount Pictures.
Duração: 90 minutos. Animação. Cor: Colorido. Origem: EUA. Ano de Lançamento: 2008.
Mulvey, Laura. “Prazer visual e cinema narrativo”, in Xavier, I. (org.) A Experiência do Cinema,
Rio: Graal, 1983, p. 437-453.
Rango. Direção de Gori Verbinski. Produção de Graham King e Gore Verbinski. Elenco
(vozes): Johnny Depp, Isla Fisher, Abigail Breslin, Bill Nighy, Alfred Molina, Harry Dean
Stanton, Ray Winstone, Ned Beatty e Timothy Olyphant … et al. Trilha Sonora: Hans
Zimmer. Gênero: Western. Produtoras: GK Films e Nickelodeon Movies. Distribuidora:
Paramount Pictures. Duração: 107 minutos. Animação. Cor: Colorido. Origem: EUA.
Ano de Lançamento: 2011.
Robôs. Direção de Chris Wedge e Carlos Saldanha. Produção Fox Animation e Blue Sky
Studios. Elenco (Vozes): Jim McClain, David Lindsay-Abaire, Ron Mita... et al. Tralha
Sonora: John Powell. Gênero: Comédia / Drama. Animação. Cor: Colorido. Origem:
EUA, Ano de Lançamento: 2005.
Shrek 2. Direção de Andrew Adamson, Kelly Asbury e Conrad Vernon. Produzida pela
DreamWorks Animation. Vozes originais dos principais personagens são: Mike Myers
(Shrek), Eddie Murphy (Burro), Cameron Diaz (Princisa Fiona), Antonio Banderas (Gato
de Botas), Julie Andrews (Rainha Lilian), John Cleese (Rei Harold), Rupert Everett
(Príncipe Encantado, filho da Fada Madrinha) and Jennifer Saunders (Fada Madrinha).
Animação. Colorido. EUA, 2004.
Stam, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus, 2003.
Tavares, Monica. Os processos criativos com os meios eletrônicos. Intercom - Revista Brasileira
de Ciências da Comunicação, v. 19, n. 2, 1996.
Xavier, Ismail (org.). A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal –
Embrafilme, 1983.

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6001
Interação com objetos digitais em estúdios virtuais
Interaction with digital objects in virtual studios
R a fa e l Gu i m a r ã es P e droso 1
A n t o n i o C a rl o s S e m e n t i ll e 2

Resumo: O estúdio virtual é um sistema para a criação de cenas com objetos


virtuais integrados digitalmente – e em tempo real – a imagens capturadas em
estúdio. Seu emprego flexibiliza a produção audiovisual, permitindo a utilização
de objetos e efeitos difíceis de serem recriados fisicamente. Diferente da forma
clássica de produção, em que os efeitos são inseridos somente na pós-produção,
o estúdio virtual insere o conteúdo digital na fase on-set, facilitando direção e
fotografia. O objeto dessa pesquisa é a interação de atores com objetos virtuais
utilizando técnicas de Realidade Aumentada (RA) em estúdios virtuais. As técni-
cas aqui tratadas referem-se ao emprego de marcadores fiduciais para o registro
da posição e orientação dos objetos virtuais aliados com o ambiente; utilização de
interfaces tangíveis pelo ator para manipular objetos que existem virtualmente;
isso tudo aliado ao uso de câmeras de detecção de profundidade para a rende-
rização correta de objetos reais e virtuais na cena final combinada. Por fim são
apresentados experimentos com o ARSTUDIO, software de estúdio virtual que
está em desenvolvimento na Unesp/Bauru, que permite geração de cenas com RA.
Palavras-Chave: Estúdios virtuais, Realidade Aumentada, Interação 3D,
Produção audiovisual.

Abstract: The virtual studio is a system for creating scenes with digitally
integrated virtual objects - in real time - to images captured in the studio. Its
use eases the audiovisual production, allowing the use of difficult physically
rebuilt objects and effects. Unlike the classic form of production, in which the
effects are inserted just in post-production, the virtual studio inserts the digital
content in the on set phase, facilitating direction and cinematography. The goal
of this research is the interaction of actors with virtual objects using Augmented
Reality (AR) techniques in virtual studios. The techniques here treated refer to
the use of fiducial markers to record the position and orientation of the virtual
objects allied with the environment and the real objects; using tangible interfaces
by actor to manipulate objects that exist virtually; all this combined with the use
of depth sensing cameras to correct rendering of real and virtual objects in the
final combined scene. Finally experiments are presented with the ARSTUDIO,
virtual studio software that is under development at UNESP / Bauru, which
allows the generation of AR scenes.
Keywords: Virtual Studios, Augmented Reality, 3D Interaction, Audiovisual
production.

1.  Mestrando, discente do Programa de Pós Graduação em Televisão Digital: Informação e Conhecimento
da Universidade Estadual Paulista, UNESP – Campus de Bauru, rafaelgpedroso@gmail.com.
2.  Doutor em Ciências, Professor Adjunto da Universidade Estadual Paulista, UNESP – Campus de Bauru,
docente e orientador do Programa de Pós Graduação em Televisão Digital: Informação e Conhecimento e
do Programa de Pós Graduação em Ciência da Computação, semente@fc.unesp.br.

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6002
Interação com objetos digitais em estúdios virtuais

Rafael Guimarães Pedroso • Antonio Carlos Sementille

INTRODUÇÃO

A COMPUTAÇÃO GRÁFICA para a produção de conteúdo audiovisual em live-action


tem se sido cada vez mais empregada no cinema e na televisão, tanto para dimi-
nuir custos de produção como para obter efeitos especiais com fotorrealismo.
De acordo com Thomas (2006, apud SEMENTILLE, et al., 2012, p. 2) a forma como esta
tecnologia pode ser empregada evoluiu: o entusiasmo inicial de se substituir completa-
mente o cenário real pelo cenário virtual, tem cedido lugar à uma abordagem mais prática
(e realista), de se adicionar objetos virtuais3 ao ambiente real, permitindo que apenas
aqueles elementos que não são facilmente reproduzidos no mundo real sejam sintetizados.
Dessa forma, cabe aos produtores definir, em face das condições de produção, que
cenários e que objetos devem ser capturados por câmera e quais devem ser produzidos
por meio de computação gráfica.
Um sistema que tanto a produção para a TV digital quanto para o cinema podem se bene-
ficiar é aquele denominado “Estúdio Virtual”. Consiste na criação de cenários virtuais,
bem como de quaisquer objetos virtuais tridimensionais, os quais podem ser integrados
digitalmente às cenas capturadas em um estúdio real. Por meio de técnicas como o chroma-
-key, computação gráfica, realidade aumentada e realidade virtual é possível flexibilizar a
produção de conteúdo para a TV digital, cinema e internet, bem como baratear seu custo
(SEMENTILLE, et al., 2012, p. 1).

Com a evolução das tecnologias de computação gráfica tornou-se possível a produ-


ção de imagens digitais com elevada qualidade e grau de realismo. Essas imagens são
muitas vezes produzidas a aplicadas na fase de pós-produção, podendo ser trabalhadas
e retrabalhadas. Contudo, a capacidade de processamento na atualidade permite a
renderização4 em tempo real de cenas virtuais tridimensionais alinhadas corretamente
com o ponto de vista de uma câmera posicionada no mundo real, permitindo assim
que elementos que eram visíveis somente na fase de pós-produção possam ser vistos
também na fase on-set.
Com as técnicas de Realidade Aumentada, os modelos gráficos gerados por computador
podem ser renderizados na tela a cada quadro de vídeo. Sistemas de controle permitem que
a câmera possa ser movimentada, fornecem um controle rígido de iluminação e possibili-
tam que objetos de primeiro plano ou planos de fundo virtuais possam ser redesenhados
em uma taxa de 50 a 60 vezes por segundo, para acompanhar o ponto de visão da câmera
(THOMAS, 2006, apud SEMENTILLE, et al., 2012, p. 6).

O CENÁRIO VIRTUAL TRADICIONAL E O ESTÚDIO VIRTUAL


COM REALIDADE AUMENTADA
A abordagem tradicional para a produção de conteúdo audiovisual com aplicação
de recursos de computação gráfica é o emprego do cenário virtual para a utilização
de ambientes cenográficos parcialmente ou totalmente produzidos por computador,

3.  Objetos virtuais, ou objetos digitais, ou mesmo objetos 3D são objetos criados por computador que tem
representação tridimensional. Podem ser renderizados em diferentes ângulos, ou seja, rotacionados nos
eixos x, y e z para exibição em tela.
4.  A renderização consiste em adicionar iluminação, sombreamento e cores a uma cena 3D.

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6003
Interação com objetos digitais em estúdios virtuais

Rafael Guimarães Pedroso • Antonio Carlos Sementille

nos quais o fundo real é substituído por meio de técnicas de segmentação de ima-
gem. Os objetos que são manipulados em cena, simplesmente não estão presentes
no momento da gravação, a fase on-set. Desse modo diretores, atores e equipe de
produção não tem retorno visível desses objetos durante a gravação e essa limitação
pode ter interferência direta nas decisões de gravação, principalmente com relação a
enquadramento e fotografia.
No estúdio virtual com técnicas de Realidade Aumentada, é possível inserir objetos
virtuais criados por computador na fase on-set, oferecendo a equipe uma pré-visualização
dos elementos que devem ser inseridos na pós-produção. Apesar da flexibilização que o
estúdio virtual oferece, a pesquisa nesse campo e a estruturação de ambientes com esses
recursos, envolve questões como “o ‘registro’ de objetos virtuais, a oclusão mútua, a
reconstrução tridimensional de atores e ambientes, visando a obtenção de conteúdo
de qualidade” (SEMENTILLE; et al., 2012, p.11).
Uma dessas questões é a interação bidirecional entre atores reais com objetos virtuais.
Trata-se da manipulação de objetos virtuais pelo ator, bem como as interferências dos
objetos virtuais no mundo real, e as do mundo real no mundo virtual. A correta interação
desses mundos requer o rastreamento dos movimentos executados pelo ator bem como
a reação do mundo virtual e o correto retorno para o ator.

TÉCNICAS DE REALIDADE AUMENTADA (RA)


Realidade Aumentada, segundo Azuma (apud TORI; et al., 2006), é um sistema que
suplementa o mundo real com objetos virtuais gerados por computador, parecendo coe-
xistir no mesmo espaço e apresentando as seguintes propriedades: combina objetos reais
e virtuais no ambiente real; executa interativamente em tempo real; alinha objetos reais
e virtuais entre si; aplica-se a todos os sentidos, incluindo audição, tato, força e cheiro.
Trata-se então do enriquecimento do ambiente real com objetos virtuais 3D, sendo
que todos os objetos adicionados ao mundo real devem estar corretamente alinhados
com os objetos físicos do mundo real na exibição da cena combinada. Um sistema de RA
deve prover interação do usuário com esses objetos e que essa interação seja de forma
natural sem necessidade de treinamento ou adaptação.
A Realidade Aumentada possui um mecanismo para combinar o mundo real com o mundo
virtual; mantém o senso de presença do usuário no mundo real; enfatiza a qualidade das
imagens e a interação do usuário (TORI, et al., 2006, p. 24).

Para isso funcionar, há alguns problemas tecnológicos que precisam ser bem resolvidos,
entre eles: rastreamento de objetos reais; alinhamento e calibração das sobreposições no
ambiente tridimensional misturado e interação. Em geral, as soluções são específicas, exi-
gindo uma delimitação bem definida para as aplicações, o que se constitui em obstáculos
para aplicações de uso geral (TORI, et al., 2006, p. 27).
Portanto, o sistema de RA deve ser ajustado mesmo que o usuário se movimente.
Como suporte em tempo real, o software de realidade aumentada deve promover o rastrea-
mento de objetos reais estáticos e móveis e ajustar os objetos virtuais no cenário, tanto para
pontos de vista fixos quanto para pontos de vista em movimento (TORI, et al., 2006, p. 29).

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6004
Interação com objetos digitais em estúdios virtuais

Rafael Guimarães Pedroso • Antonio Carlos Sementille

INTERAÇÃO EM REALIDADE AUMENTADA


A interação com objetos virtuais é um importante tópico dentro da Realidade
Aumentada (BASTOS; et al., 2006), pois é preciso que ela ocorra de forma bastante natural,
podendo o usuário executar tarefas com objetos reais e virtuais simultaneamente, sem
que haja diferenças muito perceptíveis da natureza desses objetos.
Essa interação refere-se então a comunicação do usuário com o mundo virtual,
sendo ele capaz de gerar eventos no mundo virtual e este, por sua, emitindo respostas
que refletem no mundo real. Em RA esses conceitos são assim colocados:
a) Mundo real
É um mundo criado contendo materiais físicos que podem ser compreendidos por huma-
nos, sendo o material restrito a sua forma e em seu lugar, podendo ser modificados em sua
geometria de acordo com as leis naturais (ARIYANA & WURYANDARI, 2012, p. 3).

b) Mundo virtual
É um mundo que contém material digital projetado usando computação mas de tal modo
que pareça poder ser usado e experimentado pelo ser humano. O mundo virtual é limitado
ao espaço desenhado e pode ser observado por humanos por meio de dispositivos audio-
visuais (ARIYANA & WURYANDARI, 2012, p. 4).

Segundo Bastos et al. (2006), as técnicas para interação em ambientes de RA são


divididas em quatro grupos:
a) Interação Espacial: utiliza objetos físicos como interface tangível para manipulação
dos objetos 3D. Assim, se o objeto virtual tem formato semelhante a um cubo, um outro
cubo real pode ser manipulado pelo ator. Mudanças de posição, rotação ou translação
do objeto real são refletidas no objeto virtual.
b) Interação Baseada em Agentes: utiliza algum tipo de entrada simbólica para
execução de comandos. Por exemplo, para que o objeto virtual faça uma rotação, o ator,
com o dedo indicador levantado, faz movimentos circulares com a mão.
c) Interação de Controle Virtual: utiliza widgets 3D para os comandos, como se
os menus das interfaces digitais existissem no mundo físico. Essa técnica simplifica
comandos complexos e também é uma metáfora de um sistema familiar, os menus
eletrônicos.
d) Interação de Controle Físico: emprega controle remoto, como botões e painéis. É
uma interface bastante robusta, pois não requer calibragem nem treinamento.

Cada técnica possui vantagens próprias dependendo dos efeitos que se pretende
atingir.
As interações espaciais, por exemplo, são adequadas para a seleção e realização das trans-
formações espaciais dos objetos virtuais no espaço tridimensional. A interação baseada em
comandos é muito utilizada em sistemas que usam diferentes formatos de entrada como
meios de interação. A interação por controle virtual se apresenta como uma metáfora de
utilização conhecida, enquanto a interação por controle físico faz uso da integração de
ferramentas físicas na interface do usuário (ZORZAL, et al., 2009, p.1).

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6005
Interação com objetos digitais em estúdios virtuais

Rafael Guimarães Pedroso • Antonio Carlos Sementille

MARCADORES E INTERFACES TANGÍVEIS PARA A INTERAÇÃO EM RA


Marcadores fiduciais são imagens conhecidas impressas em cartões ou outro tipo
de superfície plana, normalmente compostos de um desenho isolado por uma borda
proeminente a fim de destacá-lo e diferenciá-lo do resto do ambiente. O sistema de RA
reconhece o marcador, calcula e registra a coerência do posicionamento deste com relação
ao visor da câmera. Na identificação dos marcadores em cena, são utilizadas técnicas
de visão computacional. Para ser utilizado, um marcador precisa ser cadastrado no
sistema. A partir da imagem do marcador registrada, várias outras imagens são geradas
aplicando rotações em seus eixos criando um banco de dados das possíveis posições
que o marcador pode se encontrar na cena. Sendo o tamanho do marcador conhecido, o
sistema pode calcular a distância do marcador até a câmera, de acordo com o tamanho
que ele aparece na cena capturada.
As seguintes etapas são executadas para a detecção dos marcadores: inicialmente, a imagem
capturada pela câmera ou por outro processo é transformada em uma imagem binária (com
valores em preto e branco). Logo após, o software analisa a imagem e encontra os marca-
dores, e os compara com os previamente cadastrados. Quando encontrado um marcador,
um objeto tridimensional virtual é adicionado à imagem real, na posição e orientação do
marcador original. (KIRNER & SISCOUTTO, 2007, p. 124)

Os marcadores podem ser utilizados também na interação com objetos virtuais,


além do posicionamento dos objetos alinhados com o ambiente. Quando determinado
objeto sofrer ação do ator em cena, ele deve estar associado a um marcador específico.
Os movimentos que o ator executar com o marcador refletirão diretamente no objeto
virtual, em uma relação de um para um.

Figura 1. Exemplos de marcadores: (1) plano, (2) multimarcador plano e (3) multimarcador tridimensional

Contudo, nem sempre os marcadores em formas de cartão são convenientes para


interação com objetos virtuais. Por exemplo, se o objeto for uma esfera, o ator não
poderá segurá-lo da mesma forma que segura um cartão. Objetos muito grandes também
terão problemas quando representados por pequenos marcadores. Nesse caso, torna-se
necessário o uso de interfaces tangíveis que representam o objeto virtual. Utilizando
um elemento físico qualquer, com forma e dimensão semelhantes ao objeto que se quer
representar, associa-se a ele um marcador, ou alguns marcadores, colados na superfície.
Conforme o elemento físico é manipulado, o marcador sofrerá as modificações de posição
e orientação correspondentes. Na imagem final, a interface tangível é substituída pelo
objeto virtual associado.

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6006
Interação com objetos digitais em estúdios virtuais

Rafael Guimarães Pedroso • Antonio Carlos Sementille

CÂMERAS DE DETECÇÃO DE PROFUNDIDADE


As câmeras convencionais tem como princípio de funcionamento o fornecimento de
imagens 2D, ou seja, informação matricial, em que a imagem é representada por pontos
(pixels) e cada unidade possui uma informação com relação a sua cor. As técnicas de
Realidade Aumentada, como os marcadores, visam a partir das informações de uma
imagem bidimensional, estruturar um ambiente tridimensional no qual os elementos
virtuais possam ser posicionados, integrados e renderizados, por fim, com todo o
resultado convertido então para duas dimensões, para a apresentação em uma tela.
Os problemas dessa técnica surgem quando da necessidade de se utilizar objetos
ou atores, reais e virtuais, em sobreposição e o sistema não é capaz de registrar o
que está mais frente, e o que está mais ao fundo. Uma solução para este problema é
o emprego de câmeras de detecção de profundidade, como por exemplo o Microsoft
Kinect®. O Kinect utiliza uma câmera especial que emite e detecta o retorno de raios
infravermelhos, e a partir dessa reposta é capaz de calcular a distância da câmera
de cada elemento captado na imagem. Uma câmera de detecção de profundidade é
então capaz de fornecer para cada pixel, ou grupo de pixels, uma informação a mais,
referente a profundidade, ou seja, a distância no eixo transversal ao plano de visão da
câmera (eixo z).
Muito útil para o controle de exibição dos elementos na ordem em que se posicionam
com relação ao ponto de vista da câmera no ambiente aumentado, esse tipo de câmera
também possui aplicação na interação. Com a informação de profundidade, no momento
da segmentação do objeto de interesse – o ator, sua mão ou outra parte do corpo – na
imagem captada, é possível calcular sua distância no eixo transversal ao plano de visão
da câmera (z) e, em consequência, sua distância do objeto nesse eixo, uma vez que os
objetos são posicionados de acordo com o ponto de vista da câmera.

O PROJETO ARSTUDIO
O ARSTUDIO é um  software de estúdio virtual que permite a  geração de cenas
com Realidade Aumentada, o emprego de técnicas de  chroma-key, bem como a adi-
ção de som. Está sendo desenvolvido pela equipe de pesquisa do Laboratório de
Sistemas Adaptativos e Computação Inteligente (SACI) da Faculdade de Ciências da
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP/Bauru, em que par-
ticipam pesquisadores do Programa de Pós-graduação em Televisão Digital: Informação
e Conhecimento (PPGTVD/FAAC) e do Programa de Pós-graduação em Ciência da
Computação (PPGCC/FC).
O projeto tem o objetivo de estudar e aplicar técnicas de Realidade Aumentada na
criação de estúdios virtuais com uso de equipamentos convencionais, analisando os
diferentes desafios para a obtenção de cenas aumentadas (SEMENTILLE; et al., 2012,
p. 10). O ARSTUDIO provê uma interface que apresenta a cena capturada em tempo
real em que o operador do sistema pode escolher marcadores previamente cadas-
trados e associar a eles modelos 3D (dos objetos virtuais) produzidos e cadastrados
previamente. Com os marcadores visíveis em cena, o software é capaz de renderizar
os objetos 3D na cena.

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6007
Interação com objetos digitais em estúdios virtuais

Rafael Guimarães Pedroso • Antonio Carlos Sementille

Modelos 3D (produzidos por softwares e/ou equipamentos específicos) tem por


natureza a existência de um ponto de origem. Esse ponto de origem tem por função
a manipulação da posição e orientação desse objeto quando inserido em uma cena
virtual. Toda translação ou rotação do objeto é feita com relação a essa origem. É impor-
tante ressaltar que essa origem não necessariamente é o centro de massa do objeto
representado, mas uma opção do modelador ou do software utilizado na modelagem
(podendo inclusive estar fora da geometria do objeto). Quando o objeto é inserido na
cena pelo ARSTUDIO, ele é colocado de forma que a origem do modelo coincide com
o centro do marcador. Para o posicionamento correto do objeto, o operador utiliza os
recursos do software para rotacionar e transladar o objeto de acordo com as necessi-
dades da cena.
Para os experimentos relatados a seguir, o ambiente do ARSTUDIO foi configurado
com uma webcam com resolução 1080p fixa em tripé, alinhada com um Kinect v1,
calibrados para que os planos de captura estejam muito próximos para cenas registradas
entre 1 e 4 metros de distância aproximadamente. Foi utilizado um fundo de cenário
verde para a segmentação utilizando algoritmo de Color Diference. Para iluminação,
foram aplicados dois refletores de luz suave.

EXPERIMENTOS COM O ARSTUDIO


O objetivo dos experimentos relatados é verificar a aplicabilidade das técnicas
de Realidade Aumentada expostas para a obtenção de determinados efeitos em cena,
empregando os marcadores fiduciais, as interfaces tangíveis e câmera de detecção
de profundidade (Kinect) na inserção e interação com objetos virtuais nas cenas
capturadas.

Experimento 1
No primeiro experimento, mostrado na Figura 2, foram inseridos objetos virtuais
em uma cena para a confecção de cenário fixo. O objetivo é criar um mecanismo de
profundidade de cena em que ator real possa se movimentar entre os objetos virtuais
respeitando a ordem em que eles estão posicionados em cena com relação à distância
da câmera. Ou seja, quando o ator estiver na frente do objeto, que sua imagem apareça
em frente ao objeto e que o objeto não seja renderizado sobrepondo o ator, registrando
corretamente a oclusão dos elementos cenográficos pelo corpo do ator (braços, pernas,
cabeça, etc). O mesmo deve ocorrer na situação inversa, em que o objeto é renderizado
fazendo oclusão do corpo do ator.
Os dois objetos virtuais foram inseridos na cena utilizando um marcador plano de
15 cm. Após a composição da cena, como nem a câmera e nem os objetos precisariam
mudar de posição, os objetos foram fixados, ou seja, a posição com relação a câmera
foi guardada e mantida por toda a duração da cena, sem a necessidade da presença do
marcador que foi retirado da cena.

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6008
Interação com objetos digitais em estúdios virtuais

Rafael Guimarães Pedroso • Antonio Carlos Sementille

Figura 2. Praça com estátuas: experimento com objetos virtuais fixos compondo o cenário

Para a obtenção dessa cena é necessário o uso do Kinect para registrar a posição
do ator com relação à distância da câmera. Na primeira dupla de fotos, não há oclusão
de nenhum elemento. Pela movimentação do ator na cena, na segunda dupla de fotos,
o ator se posicionou atrás de um objeto virtual, portanto ocorre oclusão de parte da
sua imagem. Na terceira dupla ocorre a oclusão de um dos objetos quando o ator se
posiciona a frente dele. Nesse terceiro caso é possível notar a zona de dúvida no registro
da posição do ator pelo Kinect, exatamente na divisa entre os pontos que compõem a
imagem do ator e os que compõem o objeto. Nesse caso, é possível ver que a imagem
de fundo transparece nos pontos que compõem essa zona de dúvida.

Experimento 2
Esse experimento tem a utilização de um multimarcador tridimensional em
formato de cubo para a manipulação de um objeto virtual. Nesse caso, o marcador é
utilizado para registrar a posição do objeto e também como interface tangível para o
ator manipulá-lo. Dessa forma toda a movimentação sofrida pelo cubo pela ação do
ator se reflete no objeto virtual, como se o ator de fato o segurasse durante a cena, como
ilustrado na Figura 3.

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6009
Interação com objetos digitais em estúdios virtuais

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Figura 3. Miniatura dragão virtual: experimento com multimarcador


cúbico para a manipulação de objeto.

Nesse caso, como o objeto precisa ser manipulado pelo ator, o marcador deve
obrigatoriamente permanecer na cena. Assim para que o marcador não contamine a cena
final, o objeto virtual possui dimensão e formato adequado para sobrepor o marcador
na totalidade. Também é necessário que o objeto virtual possua formato compatível
para a empunhadura do ator relativa ao cubo, constituindo uma cena coerente para a
visualização. O multimarcador tridimensional permite que o objeto seja rotacionado em
qualquer eixo, uma vez que sempre haverá uma face do marcador visível para a câmera.

Experimento 3
Utilizar uma interface tangível aliada a um marcador plano é o objetivo desse
experimento (Figura 4). Para garantir a correta empunhadura de uma garrafa, como se
o ator estivesse de fato segurando-a, foi utilizado um cilindro real com um marcador
de 4 cm embutido.

Figura 4. Garrafa virtual: experimento com interface tangível cilíndrica aliada a marcador.

O objeto físico usado como interface tangível, o cilindro, pode ser confeccionado em
cor verde para que se ocorrer de ele ser maior que o objeto virtual, ele possa desaparecer
na segmentação de cor. Porém deve-se evitar que a interface tangível seja maior, mesmo
sendo verde, para o caso de o autor trazer o objeto a frente do seu próprio corpo, onde
a transposição da imagem de fundo não pode ocorrer.

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6010
Interação com objetos digitais em estúdios virtuais

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Experimento 4
Nesse experimento, o multimarcador cúbico está associado a uma interface tangível
que permite ao ator segurar e manipular uma guitarra virtual (Figura 5). O objeto físico
foi confeccionado para possuir o comprimento apropriado para a empunhadura. O
multimarcador é composto por 5 marcadores diferentes de 4 cm (a sexta face do cubo
é utilizada para fixar o elemento tangível). O Kinect é requerido nesse caso para que a
mão do ator possa se posicionar em frente ao objeto virtual.

Figura 5. Guitarra virtual: experimento com multimarcador cúbico aliado a interface tangível.

O marcador tridimensional permite alguma movimentação do ator, mas este deve


evitar que alguns movimentos recorram na oclusão do marcador pelo próprio ator, uma
vez que o instrumento deve estar colado ao seu corpo.

Experimento 5
Esse experimento tem o objetivo de estruturar uma cena em que o ator possa vestir
um objeto virtual, no caso um capacete. É empregado um multimarcador tridimensional
em forma de coroa. Assim o objeto virtual reproduzirá as rotações e translações feitas
pela cabeça do ator.

Figura 6. Capacete virtual: experimento com marcador tridimensional em forma de coroa.

O Kinect tem como função nesse caso, garantir que o rosto apareça no interior a
frente da face oposta do capacete, exibindo com coerência física o envolvimento da
cabeça pelo capacete. Na Figura 6 é possível observar que existe uma área onde o Kinect
não foi capaz de calcular a profundidade, provocando um erro de alinhamento entre o
capacete virtual e a cabeça do ator.

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6011
Interação com objetos digitais em estúdios virtuais

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ANÁLISE DOS RESULTADOS


Os experimentos permitiram encontrar e investigar questões que envolvem o uso
dos marcadores fiduciais, interfaces tangíveis e câmera de detecção de profundidade
para interação com objetos virtuais em estúdio. Uma delas, já citada anteriormente na
descrição dos experimentos, diz respeito às partes da cena em que o Kinect não consegue
calcular corretamente a profundidade. Em alguns casos a influência dessa questão está
no contorno das imagens e, nos casos mais críticos, ocorre de o fundo transparecer nos
locais de divisa entre a imagem de um objeto ou ator real e a imagem do objeto virtual.
Para as interfaces tangíveis, a questão mais importante refere-se a situações mais
complexas em que o objeto virtual se posicionará em frente a um objeto ou ator real. Nesse
caso o elemento tangível precisa ser confeccionado em forma e dimensão de maneira a
ser totalmente envolvido pela geometria do objeto 3D, pois há o risco que esse elemento
apareça na imagem final ou deixe transparecer o cenário se ele for da mesma cor do fundo.
Convém ressaltar que, para o uso como pré-visualização para o diretor e a equipe
de filmagem, essas limitações não interferem na eficiência do estúdio virtual, uma vez
que as imagens serão tratadas em pós-produção.
Com relação aos marcadores, foi constatada a necessidade de cuidado especial
com a iluminação, pois excesso, ou falta dela, prejudica o reconhecimento destes pelas
técnicas de visão computacional empregadas. Os marcadores grandes de 15 cm não
demonstraram problemas de identificação no ambiente do estúdio, contudo são mais
propensos a ser invasivos na cena pelo seu tamanho. Em casos em que o marcador
precisa ser mantido em cena e manipulado pelo ator, os marcadores de 4 cm foram os
mais apropriados. Porém, esses marcadores precisaram ser posicionados com maior
proximidade da câmera para garantir o reconhecimento do padrão.
Por fim, com relação aos marcadores tridimensionais, os experimentos permitiram
constatar a necessidade de produzir ou modificar os modelos 3D empregados para
que a origem do modelo fosse colocada exatamente no ponto da origem do marcador
sem o uso dos recursos de translação do objeto. Isso porque, como esses marcadores
precisavam ser manipulados durante a cena, refletindo suas translações e rotações no
objeto, a combinação desses movimentos com uma translação inicial para posicionar o
elemento provocou movimentos incoerentes. Esse problema foi resolvido, portanto, com
a modificação da origem do modelo 3D empregado, adaptando-o ao uso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O emprego do estúdio virtual com técnicas de realidade aumentada modifica a
rotina de produção aprimorando a forma como a equipe de produção pode pré-visualizar
produtos que utilizam computação gráfica. Contudo, novas demandas ocorrem da
necessidade de aplicar técnicas não convencionais que exigem adaptações nos objetos
reais, na iluminação e nos modelos 3D utilizados na cena.
Assim, a utilização de marcadores e interfaces tangíveis precisa ser estruturada de
acordo com as necessidades de manipulações durante a cena, sendo as opções avalia-
das caso a caso. As técnicas aqui apresentadas de uma maneira geral se tornam mais
apropriadas para a pré-visualização, sendo necessário uma pós-produção para obtenção
de um produto final.

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6012
Interação com objetos digitais em estúdios virtuais

Rafael Guimarães Pedroso • Antonio Carlos Sementille

REFERÊNCIAS
Ariyana, Y. & Wuryandari, A. I. (2012). Virtual interaction at virtual environment applied for
Augmented Reality. Bandung: International Conference in Cloud Computing and Social
Networking (Icccsn). p. 1-7.
Bastos, N. C. et al. (2006). Interação com Realidade Virtual e Aumentada. In TORI, R. et al.
Fundamentos e Tecnologia de Realidade Virtual e Aumentada. p. 101-120. Porto Alegre: SBC.
Kirner, C & Siscoutto, R. (2007). Realidade Virtual e Aumentada. Conceitos Projetos e Aplicações.
IX Simpósio de RV e RA. Petrópolis: SBC.
Tori, R. et al. (2006). Fundamentos e Tecnologia de Realidade Virtual e Aumentada. Porto Alegre:
SBC.
Sementille, A. C. et al. (2012). Inovação em Televisão Digital: A Aplicação de Realidade
Aumentada e Virtual na Criação de Estúdios Virtuais. In Gobbi, M. C. (Ed.) & Morais, O.
J. Televisão Digital na América Latina: avanços e perpectivas. v. 2, p. 655-680. São Paulo: SBC.
Zorzal, E. R. et al. (2009). Técnicas de Interação para Ambientes de Realidade Aumentada. Santos:
Wrva’09: Workshop de Realidade Virtual e Aumentada.

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6013
A permanência dos signos na mídia:
a relação vida/morte na reconstrução da imagem de
celebridades na publicidade do perfume J’adore
The permanence of the signs in media:
the life/death relationship in the reconstruction of the image
of the celebrities in the advertising of J’adore perfume
E lton C a r a m a n t e A n t un e s1

Resumo: Este artigo tem como contexto a relação vida/morte das celebridades,
com foco em peças publicitárias com celebridades mortas interagindo com
personagens vivos. Assim, tomamos como corpus, a peça publicitária da marca
Dior para o Perfume J’adore, 2011, em que a atriz Charlize Theron, por meio de
recurso tecnológico, contracena com Grace Kelly, Marlene Dietrich e Marilyn
Monroe. Para essas celebridades adquirirem vida em novos contextos midiáticos,
as campanhas contaram com recursos avançados de CGI (Computer-Generated
Imagery), uma interface tecnológica que possibilita a permanência, a dissimulação
ou uma pseudo-existência através da (re)construção da imagem. Para tanto, as
estratégias metodológicas envolvem a fundamentação teórica que se faz com
Michel Maffesoli, ao tratar de valores expressivos da pós-modernidade, nos
quais a imagem ganha destaque como elemento propulsor da comunicação, bem
como a análise semiótica, na perspectiva peirceana, a qual permite enfatizar os
aspectos referenciais e simbólicos engendrados pela imagem desta publicidade.
A relevância deste artigo está na possibilidade de refletir e de redimensionar
a relação vida/morte no cotidiano, também avaliar como a tecnologia pode
contribuir para o prolongamento da vida.
Palavras-Chave: Comunicação audiovisual. Imagens midiáticas. Publicidade.
Vida/Morte. Signos/celebridades.

Abstract: This article has as the context the life/death relationship of celebrities,
focusing on advertisement materials with dead celebrities interacting with liv-
ing characters. Therefore, it has was taken as corpus, the advertising material of
Dior J’adore perfume brand in 2011, in which, through technological resource,
the actress Charlize Theron acts with Grace Kelly, Marlene Dietrich and Marilyn
Monroe. The campaigns relied on advanced features of CGI (Computer-Generated
Imagery) in order that these celebrities take on a life in new media contexts. CGI
is a technological interface that provides permanence, concealment or a pseudo-
existence through the (re)construction of the image. Hence the methodological

1.  Mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade de Sorocaba (UNISO), professor da Faculdade de
Sorocaba (UNIESP) e aluno especial do doutorado em Artes Visuais da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP). E-mail: caramante@gmail.com

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A permanência dos signos na mídia: a relação vida/morte na reconstrução da imagem de celebridades na publicidade do perfume J’adore

Elton Caramante Antunes

strategies involve the theoretical basis on Michel Maffesoli, when dealing with
significant values of post-modernity, in which the image is highlighted as the driv-
ing element of the communication, as well as the semiotic analysis from Peirce’s
semiotics, which allows to emphasize the referential and symbolic aspects gener-
ated by the image of this advertisement. The relevance of this article lies on the
possibility to reflect and to bring a new dimension to the relationship life/death
in daily life, and to assess how technology may contribute to the extension of life.
Keywords: Audiovisual Media. Media Image. Advertising. Life/Death. Signs/
Celebrities.

INTRODUÇÃO

A IMAGEM VIVIDA no cotidiano, a imagem banal das lembranças, a imagem dos


rituais diários, imobiliza o tempo que passa. Para Maffesoli (1996), seja a da
publicidade, a da teatralidade urbana, a da televisão onipresente ou dos objetos
a consumir, sempre insignificante ou frívola, ela não deixa de balizar um ambiente que
delimita bem a sequência de passagens em momentos, lugares, encontros justapostos.
Sucessões de situações mais ou menos aceleradas em que cada uma vale por si própria,
redundando num inegável efeito de composição. Algo que dá a intensidade, ou pelo
menos a excitação, da configuração caleidoscópica na qual vivemos.
Ao contemplarmos grande parte das imagens veiculadas pela mídia, é recorrente
que pareçam ocas. Entretanto, ao serem analisadas, essas imagens podem revelar que são
latentes de representações e significados. Mesmo estáticas, como é o caso da fotografia, as
imagens possuem um dinamismo próprio, uma viscosidade na medida em que resgatam
valores da pós-modernidade. Na esteira desse pensamento esses valores correspondem às
metáforas que traduzem o comportamento social contemporâneo através do imaginário
que se organiza em torno da aparência, do estilo e de imagens midiáticas.
No entanto, esses valores exigem mais do que contextualizar um tempo histórico
– e em processo – importa também verificar como a comunicação se configura nessa
malha sociocultural pós-moderna. Nosso objeto de estudo nasce do universo midiático
– produto, portanto, de novas tecnologias de produção e difusão de bens simbólicos.
Para Maffesoli (2010), a concepção de imagem contemporânea que adotamos nesse
trabalho pode ser considerada como produções visuais da condição pós-moderna. Para
este autor, essas representações tecem as relações que configuram a sociedade con-
temporânea ao incorporarem, sob algum aspecto, ao imaginário do corpo social. Este
último, ganha terreno neste mundo reencantado, onde os pequenos acontecimentos
anódinos, cotidianos, anedóticos, imaginários, constitutivos de uma cultura, exprimem
forte carga de vitalidade.
Nesse sentido este artigo tem o intuito investigar a relação vida/morte das
celebridades, com foco no vídeo da campanha publicitária do perfume J’adore da
marca Dior, de 2011. A propaganda apresenta celebridades “mortas” interagindo com
personagens “vivos” através de recursos tecnológicos. Assim, com o objetivo de explicitar
como se dá a continuidade da vida de celebridades, ou a rematerialização de signos/
celebridades, tomamos como corpus tal questão.

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A permanência dos signos na mídia: a relação vida/morte na reconstrução da imagem de celebridades na publicidade do perfume J’adore

Elton Caramante Antunes

Estas imagens reconstruídas através da tecnologia evocam questões que merecem


atenção. Pode haver neste processo uma simulação ou uma dissimulação do real, além
de um resgate sintético da vida a partir da pixalização e da virtualidade da imagem.
Para Martins (2011, p. 72 e 73) “a virtualização é um processo criativo que coloca em
crise o actual, dado o facto de reenviar a um problema. Por sua vez, este irreversível nos
seus efeitos, indeterminado no seu processo e inventivo no seu esforço de actualização”.
Sabemos que as imagens são fabricadas. No entanto, fazemos de conta que elas são a coisa
mesma. Tranquilizam-nos as leituras imediatas, simples, que confundem a imagem com o
seu referente, dado o facto de ser profunda em nós a crença na transparência das imagens:
realidade é aquilo que nos é dado a ver pela imagem. (MARTINS, 2011, p. 82)

Para Morin (1989, p 11), as celebridades do cinema hollywoodiano estabelecem


uma relação entre seus consumidores a partir de suas representações midiáticas. É o
universo do star system, “precisamente o lugar de simbiose no qual o imaginário e real
se confundem e se alimentam um do outro; o amor, fenômeno da alma que mistura
de maneira mais íntima nossas projeções identificações imaginárias e nossa vida real,
ganha mais importância”.
As imagens midiáticas da publicidade, assim como as próprias celebridades,
podem ser consideradas, portanto, signos ou representações. Por essa razão, nossa
opção metodológica é pela análise semiótica de origem peirceana. Este percurso pode
propiciar a apreensão de qualidades, de existentes e de aspectos simbólicos. Isto posto,
relacionamos os valores que se inscrevem nessas imagens/signos para compor esse
universo contemporâneo ou pós-moderno.

IMAGEM, MITO E PUBLICIDADE


Para Maffesoli (2006) é na publicidade que se encontra o lugar onde a mitologia
ganha força ao recontar histórias e também o resgate da imagem e do imaginário, na
medida em que reedita os arquétipos e as coisas mais antigas. A ruptura da iconoclastia
é, portanto, marca da pós-modernidade.
O retorno do mito também pode ser utilizado enquanto recurso ressignificador de
um novo contexto a partir de estilos ou narrativas antigas como as aventuras e desventu-
ras da jornada do herói ou o culto e o cortejo da mais bela. Essas narrativas emblemáticas
que ganham uma nova roupagem em campanhas e filmes publicitários contemporâneos
seguindo velhas fórmulas, que mesmo recicladas, ainda se fazem eficazes.
Para Kellner (2001, p. 317), a publicidade põe à disposição alguns equivalentes
funcionais do mito ao solucionar contradições sociais. O mito e a publicidade enaltecem
a ordem social vigente e fornecem modelos de identidade, onde as imagens presentes nos
vídeos publicitários não necessariamente apresentam uma linearidade narrativa. Essa
fragmentação editada geralmente apresenta o cotidiano contemporâneo idealizado em
um comercial que exibe fraturas e sobreposições de imagens lentas e rápidas capazes
de atrair a atenção do espectador.
Nessas imagens existe um processo analógico, ou seja, um processo de participação
ontológica que pode ser exemplificado através do culto de imagens sagradas e à comunhão
com diversas imagens santificadas. Trata-se do que Maffesoli (2006) chama de teologia da

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A permanência dos signos na mídia: a relação vida/morte na reconstrução da imagem de celebridades na publicidade do perfume J’adore

Elton Caramante Antunes

imagem, que não se baseia numa demonstração argumentativa, mas no ornamentalismo.


Para o autor esses ornamentos nos remetem ao triunfo da natureza, em suas palavras:
É interessante perceber como a publicidade também retoma inúmeros elementos vegetais
e animais. Creio que, no fundo, trata-se de algo que nos remete ao processo analógico.
Talvez essa analogia seja a alavanca mais importante para percebermos que existe algo que
faz com que o eu esteja em comunhão com o mundo. Além da comunhão, também uma
exaltação universal, uma amabilidade, uma suavidade, uma deleitabilidade e, sobretudo,
uma desejabilidade deste mundo, baseada na vontade e no desejo. Reencontraremos esse
tema em Lagnis, quando ele fala do “appetitus”. Essa palavra “apetite” tem um sentido
filosófico. Mas analisando pelo seu sentido mais básico, quer dizer: vontade de alguma
coisa. (MAFFESOLI, 2006, p. 33)

Diante disso, a imagem tem a função de fazer vínculo e criar um elo pelo qual as
pessoas se conectam, que por sua vez também se conectam com o mundo. A imagem na
pós-modernidade é, portanto, religante. “Dessa forma, a publicidade seria uma espécie
de exemplarismo: o que foi marginal, agora volta” (MAFFESOLI, 2006, p.33).
O exemplarismo é uma maneira de viver a religiosidade, e a publicidade é uma
forma de religiosidade em si. No entanto, não se trata de uma religião, doutrina ou
dogma específico, mas no sentido em latim do termo religare – uma reconexão do
homem com a natureza, com o outro e com a religiosidade. “Não quero dizer, com isso,
que os publicitários pensem nisso de forma profunda. Eles apenas são os porta-vozes
conscientes da voz do espírito do tempo [...]” (MAFFESOLI, 2006, p. 34).
Em suas reflexões, Maffesoli (2006) retoma Gilbert Durand, que em seu trabalho sobre
o imaginário menciona três conceitos que podem ser aplicados à publicidade: a repetição,
a redundância e a reutilização. Esses conceitos caracterizam a pós-modernidade através
de ingresso, termo que traduz o retorno à imagem com a valorização da beleza, das
cores, do compartilhamento dos gostos e da felicidade terrena. Nas palavras do autor,
“seria uma energia societal que é projetiva, mas também uma forma de acomodar-se
no mundo e com os outros. A realidade é, no fundo, a grande emancipação em relação
a este mundo e que nos remete a uma emancipação estética” (MAFFESOLI, 2006, p.35).
A imagem não quer ser o objeto, isto é, substituí-lo com exatidão ou verossimilhança.
A imagem nada mais é que um veículo de contemplação, de comunhão com os outros.
O que se poderia chamar de função icônica não tem validade em si mesma, é apenas
invocação, suporte de outras coisas: relação com Deus, com os outros, com a vida e com a
morte. Em suma, a imagem não se prende ao absoluto, ela é relativa (coloca em relação).
Exatamente esse relativismo a torna suspeita, pois não permite a certeza, a segurança
que engendra o dogma. Como se sabe, a razão pura segue a via da utilidade, da eficácia.
Nada mais evidente que a presença da imagem em nosso cotidiano, quer na
publicidade, na TV, nos objetos de consumo, na “teatralidade urbana”; quer nas nossas
lembranças, enfim, imagens sempre fúteis ou insignificantes povoam nosso estar no
mundo. Mas essa presença pregnante é coisa mais recente. O que predominou desde
tempos remotos foi a tentativa de desvalorização do papel da imagem. Basta retomar
a iconoclastia e logo nos deparamos com a desconfiança frente à imagem da tradição
judaico-cristã. Pode-se salientar que o mundo das imagens, jamais foi considerado, a não

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A permanência dos signos na mídia: a relação vida/morte na reconstrução da imagem de celebridades na publicidade do perfume J’adore

Elton Caramante Antunes

ser separado de Deus. Isso traduz a evidente separação calcada na diferença de natureza
existente entre Deus (a perfeição) e a imperfeição (mundo). De um lado, a razão como
sede de perfeição; de outro a imaginação, julgada “desrazão”. Esta última liga-se àquilo
tudo que no homem remete à animalidade ou, em uma palavra, ao mundo subterrâneo
e demoníaco, do qual é preciso tomar distância ou que é preciso tentar resgatar...

A CONTINUIDADE DA VIDA NA PUBLICIDADE DO PERFUME J’ADORE


O vídeo publicitário do perfume J’adore, da marca Dior, de 2011, dirigido por Jean-
Jacques Annoud, objeto deste estudo, segue uma narrativa linear e apresenta a atriz
Charlize Theron, por meio de recurso tecnológico, contracenando com as atrizes já
falecidas, Grace Kelly, Marlene Dietrich e Marilyn Monroe, num backstage de desfile de
moda. A narrativa é embalada pela música Heavy Cross da banda de indie rock, The Gossip.
O plano da imagem dos golden gates do Palácio de Versalhes na França marca o
início da propaganda para, em seguida, mostrar Charlize Theron percorrendo o interior
do local apressadamente. Usando óculos escuros, a atriz segue como se quisesse passar
despercebida para o Salão dos Espelhos, que serve de cenário para o desfile de moda
da marca Dior. Nos bastidores a atriz interage com diversos personagens presentes na
cena, dentre eles, a atriz Grace Kelly (Figura 1), famosa por estrelar filmes na década
de 1950 e morta em 1982. A cena em questão tem foco na aproximação dos rostos e na
interação dessas duas celebridades, uma viva e a outra morta, representando a coexis-
tência de pessoas de diferentes épocas. Trata-se de uma técnica de efeito digital, que
se dá a partir do registro de imagens com possibilidade de manipulação. Tal efeito
permite a ilusão da presença da atriz Grace Kelly em um novo contexto. O resgate da
imagem da atriz, por meio dessa técnica digital, é possível através do CGI (Computer-
Genereted Imagery), recurso de computação gráfica, comumente utilizado no cinema,
em jogos de vídeo game, comerciais e programas televisivos, capaz de criar mundos
virtuais, cenários em três dimensões, personagens fictícios e até mesmo ressuscitar
digitalmente figuras célebres.

Figura 1. Frames da interação entre as atrizes Charlize Theron e Grace Kelly (em close).
Fonte: Wanda Productions. Disponível em: < http://www.wanda.net/fr/directors/jean-jacques-
annaud-63/8> Acesso em: 22 dez 2014.

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Para Lemos (2002), a técnica digital de imagens evoca uma ruptura radical em nossas
construções e percepções e permite ao homem tratar da imagem matematicamente,
controlando-a ponto a ponto. Nesse sentido, a forma como o objeto é representado pela
digitalização da imagem torna-se mais importante que o objeto em si, em suas palavras:
A infografia cria imagens sintéticas (imagens de sínteses) que são, de certo modo (em rela-
ção à fotografia, ao cinema e ao vídeo), independentes de um objeto original. Como mostra
Couchot2, o vídeo, a televisão, o cinema e a fotografia produzem imagens , com possibili-
dades mais ou menos alargadas de manipulação, mas sempre partindo de um objeto matéria
original: o modelo do fotógrafo ou o cenário e os atores da TV, no cinema e no vídeo. Estes
media estão, assim, intrinsicamente ligados a um objeto original (aquele que está na origem
da imagem) criando um sentido de correlação (LEMOS, 2002, p.170).

Retomando a descrição do vídeo, chega a vez de outra aparição, não menos inusitada,
que se dá através do mesmo recurso tecnológico, a da atriz Marlene Dietrich (Figura
2). Os cortes rápidos entre uma cena e outra sugerem a troca de olhares entre Theron
e Dietrich. Esta última, falecida em 1992, teve sua imagem imortalizada em filmes do
cinema clássico. No vídeo essas imagens ganham novos contornos, trazendo a atriz,
aparentemente, de volta à vida ao interagir numa sessão de fotos com personagens atuais,
nos mesmos bastidores do desfile de moda, cenário em que a narrativa da propaganda
é centrada. O rosto renascido/reconstruído/digitalizado ganha novas dimensões
midiáticas na medida em que se faz reconhecer.

Figura 2. Marlene Dietrich posando para os fotógrafos nos bastidores do desfile.


Fonte: Wanda Productions. Disponível em: < http://www.wanda.net/fr/directors/jean-jacques-
annaud-63/8> Acesso em: 22 dez 2014.

Marilyn Monroe, atriz emblemática, talvez a que mais tenha marcado uma época,
também se faz presente neste cenário a partir de sua imagem digitalizada. No vídeo,
sua imagem (Figura 3) resgatada a partir de outros registros, editada e redigitalizada,
aparece neste novo contexto e interage diretamente com o frasco do perfume e verbaliza
o nome da marca Dior, realçando a proximidade da estrela com o produto.

2.  Edmond Couchot em Simpósio “A obra de arte na era da sua realidade numérica”, realizado pela Escola
Nacional Superior de belas Artes, França, 1993.

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Figura 3. Marilyn Monroe em cena interagindo com o frasco do perfume J’adore.


Fonte: Wanda Productions. Disponível em: < http://www.wanda.net/fr/directors/jean-jacques-
annaud-63/8> Acesso em: 22 dez 2014.

Símbolo da feminilidade e da beleza, a atriz redefiniu, com sua sensualidade


latente, os padrões do cinema hollywoodiano entre a década de 1940 e 1960. Teve sua
imagem eternizada na Pop Art de Andy Warhol e reproduzida a exaustão em objetos
kitschs. Sua morte prematura, no entanto, não impediu a longevidade, a popularidade
e a continuidade de sua imagem. Nesse sentido, a estrela pode ser considerada um
fenômeno cultural e midiático.
Ao assistir o retorno dessas figuras emblemáticas e míticas que marcaram
determinada época, o espectador atualiza sua subjetividade em torno de algo que,
aparentemente, nunca se foi. Para Maffesoli (1998), essa adesão corresponde a um tipo
de participação mágica, característica do estilo social da pós-modernidade. Ela está
relacionada com o fascínio e a proximidade que as célebres figuras midiáticas exercem
em relação ao outro:
aprecia-se o mundo tal como ele é, tal como convida a ser visto e tal como convida a
ser vivido. Sendo assim, vai-se buscar identificação naqueles que tipificam esse mundo.
Posteriormente, vai-se reproduzir, nas relações cotidianas, esse mesmo processo fascínio-
-identificação. Encontra-se aqui o que Nietzsche chamava de afirmação da existência: dizer
sim à vida é apreciar (dar o justo preço) o presente e as situações ou relações que ele engen-
dra.” (MAFFESOLI, 1998, p.107).

Essa afirmação da existência ganha força e vitalidade ao promover o encontro de


celebridades de diferentes épocas nesta publicidade. A marca reedita velhos arquétipos,
na medida em que evoca a presença das imagens das atrizes mortas, angariando valores
tradicionais e novos contornos ao coloca-las frente a frente com a protagonista da
campanha, a atriz Charlize Theron (Figura 4).

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Figura 4. Em cena as atrizes Marlene Dietrich, Marilyn Monroe, Grace Kelly e Charlize Theron.
Fonte: Wanda Productions. Disponível em: < http://www.wanda.net/fr/directors/jean-jacques-
annaud-63/8> Acesso em: 22 dez 2014.

As imagens reeditadas das atrizes presentes na publicidade do perfume empenham-


se em espiritualizar-se na publicidade e a raiz dessa concepção está na materialidade
da imagem. Para fundamentar essa ideia, Maffesoli (1995, p. 121) retoma Deleuze, que
define concepção através do exemplo da arte barroca como testemunho da presença dos
organismos nas pinturas da época: “A matéria segunda é ‘vestida’, mas ‘vestida’ quer
dizer duas coisas: que a matéria é superfície portadora, estrutura revestida de um tecido
orgânico, ou então que ela é o próprio tecido ou o revestimento, textura que envolve a
estrutura abstrata”. Dizer que a matéria é o próprio tecido orgânico implica dizer que
ela é composta de uma multiplicidade de elementos que entram em interação uns com
os outros e formam a textura acima mencionada. Essa concepção barroca da matéria
permite-nos compreender o tecido social contemporâneo que, em vez de buscar uma
finalidade distante, de um ideal a ser atingido, elabora-se a partir de uma “vida material
próxima” composta de coisas sem importância – anódinas – concretas. Nelas participam
também as emoções, os sentimentos.
Um exemplo: da mesma forma como no barroco, em que a matéria é ilustrada sob a
forma de estátuas, quadros e de igrejas; nos nossos dias, é a imagem que é a metáfora da
matéria. Maffesoli (1995, p. 122) afirma que, contemporaneamente, é o objeto que pode ser
uma modulação da matéria. Os vários tipos de objeto: aqueles que trazem recordações
de um tempo feliz; aqueles que são úteis; mas principalmente os que são supérfluos,
acessórios, sem valor, que proliferam nos templos de consumo. Talvez possa ser vista
no objeto “uma cristalização de sonhos, imagens, em suma, do desejo de infinito que
sempre atormenta o ser humano” (MAFFESOLI, 1995, p.122).
O objeto corresponde à lembrança de uma imagem primordial, o que explicaria o
fetichismo, o encantamento e o fascínio que Grace Kelly, Marlene Dietrich e Marilyn
Monroe exercem se juntam a tantas outras e elucidam a comunhão que estabelecemos
com as imagens do mundo.
Desse modo, tudo isso reforça o que foi dito: é no cenário midiático que abraça a
publicidade, a televisão e o cinema que a mitologia ganha força e também promove
o resgate da imagem e do imaginário, na medida em que reedita os arquétipos e os

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A permanência dos signos na mídia: a relação vida/morte na reconstrução da imagem de celebridades na publicidade do perfume J’adore

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elementos mais antigos. A imagem aqui vence a ausência. E a ruptura da iconoclastia


é, desse modo, marca da pós-modernidade.

POR UM OLHAR SEMIÓTICO: A PUBLICIDADE EM FOCO


Antes de darmos início às análises, faremos um breve apanhado sobre uma pequena
parte da ampla teoria de Charles Sanders Peirce, que está alicerçada na fenomenologia,
“[...] uma quase-ciência que investiga os modos como apreendemos qualquer coisa que
aparece em nossa mente [...]” (SANTAELLA, 2002, p.2).
Da fenomenologia nascem as categorias subjacentes a todo o construto teórico
peirciano: a primeiridade, a secundidade, e a terceiridade. Essas categorias são conjuntos
de disciplinas que interferem diretamente no estudo dos signos. Começaremos pelo
conceito de signo e, mais adiante, voltaremos às categorias. Para elucidá-lo, valemo-nos
de Pierce (2003, p.46):
[...] um signo, ou representamen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo
para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa, um signo equivalente,
ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado denomino interpretante do
primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Representa esse objeto não
em todos os seus aspectos, mas com referência a um tipo de ideia [...].

Signo, objeto e interpretante são os três elementos constituintes do signo. O signo


representa, ocupa o lugar de um objeto e provoca numa mente qualquer uma reação
denominada interpretante. O interpretante é o terceiro elemento da tríade e desencadeia
a semiose, isto é põe o signo em ação.
Para os propósitos desta análise, serão utilizadas estas relações triádicas entre o
signo, objeto e interpretante, ou seja, alguns elementos significativos da publicidade do
perfume J’adore serão analisados na sua materialidade, nas suas referências àquilo que
eles indicam, designam ou representam e nos tipos de interpretação que os signos em
potencial podem despertar.
Ao apresentar as grades douradas do palácio de Versalhes, o vídeo anuncia a entra-
da para o universo do luxo, da riqueza e da glória. Os portões como signo podem gerar
interpretantes que levem o leitor a relacionar seus aspectos simbólicos. Essa relação aponta
para o observador que ele está diante de uma passagem para algo novo, para aquilo que
está além das grades e, ainda, pode representar a conquista para aqueles que conseguiram
passar pela entrada, como é o caso da personagem encenada pela atriz Charlize Theron.
Segundo Chevalier e Gheerbrant (2009), a porta é local de passagem entre dois mundos,
o conhecido e o desconhecido, ela se abre sobre o mistério e convida para ir além.
Ao caminhar pelo interior do palácio, o porte sóbrio e elegante da atriz outros
signos vêm à tona por sua carga de referencialidade com a beleza, o feminismo, a
emancipação da mulher contemporânea. Na sala de espelhos, ambiente onde acontece o
desfile notamos que esses signos confrontam a tradição de ligação ao passado, na medida
em que a carga histórica e mitológica é evidenciada pela suntuosidade do ambiente.
A beleza arquitetônica do Palácio deslumbra e serve de cenário para o universo
da moda. A imponência do local pode despertar fascínio no espectador da publicidade

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A permanência dos signos na mídia: a relação vida/morte na reconstrução da imagem de celebridades na publicidade do perfume J’adore

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ao promover a ideia de elegância, riqueza e glamour na marca Dior. Depois de passar


pelos bastidores e interagir com outras personagens, a atriz Charlize Theron se dirige
à sala de espelhos para iniciar o desfile de moda. O local volta a ser o centro da ação.
Dadas algumas considerações sobre o contexto que envolve a narrativa dessa
publicidade, passemos para a análise de duas imagens (Figuras 6 e 7) pinçadas do final
do vídeo.

Figura 6. Charlize Theron em cena na passarela do desfile da Dior.


Fonte: Wanda Productions. Disponível em: < http://www.wanda.net/fr/directors/jean-jacques-
annaud-63/8> Acesso em: 22 dez 2014.

Figura 7. O frasco do perfume J’adore emergindo da passarela


Fonte: Wanda Productions. Disponível em: < http://www.wanda.net/fr/directors/jean-jacques-
annaud-63/8> Acesso em: 22 dez 2014.

Na busca pelos aspectos qualitativos de ambas imagens, nota-se a predominância


da cor dourada presentes em vários elementos da cena. O dourado remete ao ouro,
que, de acordo com Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 669), é o mais precioso dos metais,
refere-se à iluminação, a perfeição absoluta e também pode ser considerado símbolo do
conhecimento. É através deste último que se atinge a imortalidade terrestre.

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A permanência dos signos na mídia: a relação vida/morte na reconstrução da imagem de celebridades na publicidade do perfume J’adore

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As sensações provocadas pelas imagens é de dinamismo devido ao ângulo em que


a cena foi captada, promovendo uma noção de perspectiva e profundidade em direção
a uma passagem bastante iluminada no final da passarela, que ajuda a delinear as
formas do corpo da modelo, que caminha em direção a luz. Na primeira imagem, a atriz
caminha em direção a essa porta. Segundo Chevalier e Gheerbrant (2009, p.735 -736), a
porta introduz a alma ao reino de Deus e prefigura um movimento de ascendência. A
luz tão evidente nas imagens também possui uma forte carga de referencialidade com
simbolismos atrelados ao divino e espiritual.
Ao retomarmos a definição dada anteriormente sobre à simbologia da porta, outros
interpretantes surgem para dar sentido ao encerramento do ciclo da existência. A relação
entre a vida e a morte volta à baila agora, mas em outro contexto. Outros elementos
presentes nas imagens reforçam essa ideia.
O vestido dourado e a silhueta bem marcada da atriz é ofuscada por um intenso
feixe de luz que surge no final da passarela e cede espaço para o surgimento do frasco
do perfume J’adore. O chão da passarela ganha um aspecto líquido, de onde emerge o
produto, como é possível observar na figura 7. Para Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 15)
aquilo que emerge da água tem relação com a purificação e regeneração. Esse surgimento
também pode estar relacionado com a origem da vida.
A cor e transparência do frasco, bem como as linhas sinuosas do design se
assemelham com os elementos evidenciados pelo corpo da atriz. Esse efeito sugere
que a imagem da atriz se atualiza em frasco de perfume. Outra insinuação é de que
agora o frasco contém a atriz, na medida em que sua imagem aparece refratada pela
transparência do perfume.
A dinâmica presente nesta cena sugere através dos interpretantes que há uma
renovação da atriz ao fundir-se com o frasco do perfume, indicando o encerramento
de um ciclo e o início de outro. Charlize Theron é, portanto, transformada em perfume.
Esse processo sugere ao espectador que agora os atributos da atriz estão contidos no
frasco de J’adore.
Este olhar especializado que buscamos lançar é o último nível de interpretante, que
depois de contemplar e observar articula informações, propõe novas ideias e estabelece
comparações. Nesse sentido, a própria publicidade revelou as associações que foram
propostas em relação à discussão sobre vida, morte e continuidade em outros signos a
partir das análises propostas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao traçarmos considerações sobre o papel social imagem na pós-modernidade
pudemos esboçar os contornos de onde elas circulam: a mídia. Esta promove o fluxo
de imagens, que, por sua vez, baliza o estar junto social, evidenciando este universo
estético em que essas representações se fazem ver e encorajam o fervilhamento de
emoções. A imagem, sobretudo constata um elo vital. Esse vitalismo apreendido nas
representações deste de estudo reforça a importância da imagem e do imaginário pós-
moderno, principalmente o estar no mundo de cada indivíduo receptor dessas imagens
presentes na publicidade.

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A permanência dos signos na mídia: a relação vida/morte na reconstrução da imagem de celebridades na publicidade do perfume J’adore

Elton Caramante Antunes

Encontramos também através da análise semiótica algumas fendas necessárias


para a produção de novos significados possíveis que agregam as pessoas através da
publicidade. Dados os interpretantes, deparamo-nos com uma associação bastante
significativa, uma relação entre alguns elementos do vídeo e a renovação da vida.
Os recursos tecnológicos atuais permitem a possibilidade de manipulação, edição,
(re)construção e digitalização da imagem em diferentes conjunturas. Desse modo, a
continuidade da imagem de celebridades ou de figuras emblemáticas mortas, ganham
novos contextos. A espiritualização delas ou a materialização de suas representações
indicam o retorno ao passado, mas ao mesmo tempo indica uma atualização, promovendo
novas formas de interação. Aí está uma característica evidente da pós-modernidade: o
arcaico aliado à tecnologia.
Nesse sentido, a imagem contorna os obstáculos da ausência e da morte. Pelo
menos para os propósitos da publicidade do perfume J’adore, ela cumpre esse papel. A
tecnologia permitiu, a partir de antigos registros das atrizes e de uma nova interface
tecnológica, a afirmação para o espectador de que o imaginário ganha força e que a
vida pode garantir a sua permanência em outras circunstâncias.

REFERÊNCIAS
CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. (2009). Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes,
gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: J. Olympio.
KELLNER, D. (2001). A cultura da mídia - estudos culturais: identidade e política entre o
moderno e o pós-moderno. Bauru: EDUSC.
LEMOS, A. (2002). Cibercultura, tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto
Alegre/RS: Sulina.
MAFFESOLI, M. (1995). Contemplação do mundo. Porto Alegre: Artes e Ofícios
MAFFESOLI, M. (1998). Elogio da razão sensível. Petrópolis: Vozes.
MAFFESOLI, M. (2006). “Publicidade e Pós-modernidade”, in Revista da ESPM, nº 5, vol.
13, ano 12, São Paulo, set./out, p. 28-43. Palestra transcrita com Francisco Gracioso, J.
Roberto Withaker Penteado e Clóvis de Barros Filho.
MAFFESOLI, M. (2010). No fundo das aparências. Rio de Janeiro: Vozes.
MAFFESOLI, M. (2014). Homo eroticus: comunhões emocionais. Rio de Janeiro: Forense
Universitária.
MARTINS, M. L. (2011). Crise no castelo da cultura. Das estrelas para o ecrã. Coimbra: Grácio
Editor.
MORIN, E. (1989). As estrelas, mito e sedução no cinema. Rio de Janeiro: José Olympio.
PEIRCE, C. S. (2003). Semiótica. São Paulo: Perspectiva.
SANTAELLA, L. (2002). Semiótica aplicada. São Paulo: Thomson.

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A estética audiovisual da publicidade
na internet – caso Youtube
The audiovisual aesthetic in advertising
on the internet – Youtube case
M a ria Inês A l meida Godinho1

Resumo: A internet multiplicou os canais de veiculação de produtos


publicitários audiovisuais ao possibilitar sua veiculação em sites, redes de
relacionamento, games, etc. Mas além das várias possibilidades de atingir
o consumidor, a nova plataforma trouxe modificações profundas quanto ao
consumo destas mensagens por parte do usuário. Para a criação de uma peça a
ser veiculada na internet e visualizada através de plataformas móveis – objeto
de análise neste artigo - deve-se levar em conta o modo como os usuários
consomem suas informações, o que, consequentemente, definirá a estrutura
narrativa a ser concebida para esta peça. Mas o que se percebe na maioria
dos casos é o desconhecimento quanto às especificidades narrativas destas
plataformas, a exemplo de comerciais que são simples reproduções de peças
criadas para a televisão. O objeto desta pesquisa é analisar peças publicitárias
nos formatos Invideo e TrueView veiculadas no Youtube.
Palavras-Chave: Audiovisual. Publicidade. Linguagem. Internet. Youtube.

Abstract: The internet has multiplied the channels serving audiovisual


advertising products by allowing its placement on websites, social networks,
games, etc. But besides the various possibilities to reach consumers, the new
platform brought profound changes regarding the use of these by the user
messages. To create a play to be broadcast on the Internet and viewed through
mobile platforms - the object of analysis in this article - should take into
account how users consume their information, which, in turn, defines the
narrative structure to be designed for this piece. But what is perceived in most
cases is ignore the characteristics for the narratives of these platforms, like an
advertising that are simple reproductions of audiovisual pieces created for
television. The object of this research is to analyze advertisements in Invideo
and TrueView formats transmitted on YouTube.
Keywords: Audiovisual. Advertising. Language. Internet. Youtube.

1.  Mestre em Ciências da Comunicação – ECA/USP e docente na área de audiovisual da Universidade de


Marília. minesgodinho@hotmail.com

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6026
A estética audiovisual da publicidade na internet – caso Youtube

Maria Inês Almeida Godinho

A LINGUAGEM DA PEÇA AUDIOVISUAL PUBLICITÁRIA BRASILEIRA

A PEÇA PUBLICITÁRIA audiovisual se valeu de vários meios de expressão para cons-


truir seu discurso, transferindo para a narrativa particularidades de inúmeras
manifestações culturais, a exemplo das histórias em quadrinhos e dos videogames,
além de correntes artísticas, políticas e ideológicas que estejam em ascensão, desde que
já testados e consumidos pelo público. De acordo com Carvalho (1998, p. 14) o objetivo
deste posicionamento é provocar interesse, “convencer e, finalmente, transformar essa
convicção no ato de compra”. Mas para Rocco (1999, p. 37) a inovação logo se transforma
clichê, “ficando mais na linha da moda que na da evolução artística”.
A linguagem-matriz do filme publicitário originou-se no cinema, a partir do qual
desenvolveu sua técnica narrativa e operacional. Mas a televisão, por ser o meio de
comunicação onde sua veiculação é tradicional, além de base de sua estrutura comercial,
também imprimiu ao filme publicitário suas características estéticas.
Por ter curta duração – no máximo 60 segundos –, o filme publicitário passou a
utilizar-se da linguagem de códigos convencionados do cinema norte-americano, prin-
cipalmente dos estereótipos já introduzidos no imaginário mundial a fim de conseguir
uma rápida identificação de seus espectadores com os personagens e uma escolha ime-
diata de significados.
Além disso, os Estados Unidos, país com uma indústria cinematográfica consolida-
da, acabaram gerando quadros para a produção publicitária, que se beneficiou do talento
dos operadores de câmera, dos iluminadores, dos cenógrafos, figurinistas, maquiadores,
dos fotógrafos e dos próprios atores e diretores do longa-metragem. Assim, sua estética
foi transmitida ao filme publicitário.
O cinema brasileiro não contribuiu para o desenvolvimento da linguagem de nos-
sos filmes publicitários, e tampouco da televisão, pois sempre tivemos uma indústria
cinematográfica deficiente, fruto de toda uma conjuntura adversa em termos econômi-
cos, burocráticos e governamentais. Mas, ao contrário, o cinema publicitário foi escola
e o ganha-pão de muitos cineastas brasileiros, constituindo-se um grande laboratório,
já que a produção publicitária sempre trabalhou com uma verba maior, o que acabou
gerando uma ampliação do espaço de experimentação.
A estética da peça audiovisual publicitária também foi profundamente influen-
ciada pela televisão, sendo a maior influência seu poder de síntese, decisivo para que
o comercial consiga vender, em poucos segundos, uma ideia, ou melhor, um produto.
Duas das principais características da televisão são a instantaneidade e o imediatismo.
Essa a razão pela qual a captação do público alvo também deve ser realizada com muito
mais rapidez do que no cinema, cujo público deve ser seduzido e conquistado aos poucos.
(Pozenato, 1997, 62)

As narrativas da publicidade e da TV brasileira confundem-se, até porque a


implantação da televisão no Brasil teve como base econômica a publicidade, que
anteriormente já tinha servido como suporte de desenvolvimento do rádio. Segundo
Xavier e Sacchi (2000, p. 69), um ditado dos anos 60 já explicitava a estreita ligação entre
televisão e publicidade: “O televisor é um corretor que mora na casa do comprador”.

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6027
A estética audiovisual da publicidade na internet – caso Youtube

Maria Inês Almeida Godinho

Linguagem matriz – o cinema clássico norte-americano


A linguagem-matriz do filme publicitário origina-se no modelo narrativo consa-
grado pelo cinema norte-americano – denominado cinema clássico – que segue uma
estratégia de naturalização do discurso, insistindo na verossimilhança das imagens,
principalmente no que se refere às transições de tempo e de espaço, através do que Wollen
(1996, p. 78) chama de texto sem costuras: uma narrativa que não revela suas lacunas e
interrupções para que não se quebre o encanto da história. Para o autor, o cinema de
Hollywood é “um cinema cuja linguagem quer ser ignorada, cujas técnicas e modos de
produção devem ser invisíveis”.
Para Xavier (1984, p. 31), o projeto estético do cinema clássico norte-americano
trabalha a linguagem cinematográfica de modo a impor a representação construída
como se fosse a própria realidade, objetivando estabelecer o sentido de orientação que o
espectador experimenta em seu dia-a-dia, e assim, “produzir o ilusionismo e deflagrar
o mecanismo de identificação”.
A partir de 1950 os filmes norte-americanos começaram a ser exibidos para espec-
tadores acostumados a olhar as imagens em movimento da televisão, o que provocou
uma aceleração no ritmo da montagem. De acordo com Merten (1995, p. 68) as percepções
dos espectadores da TV já não eram mais lineares, “como as que originam da leitura de
um livro, mas assimilações instantâneas da cena como um todo”.

A INFLUÊNCIA DA TELEVISÃO BRASILEIRA


Da televisão – veículo comercialmente eficaz, pois atinge um grande público – a
publicidade absorveu o poder de padronização, facilmente identificável pelo público: a
redução de tipos humanos a estereótipos e de situações complexas a esquemas básicos.
De acordo com Marcondes Filho (1988, p.44), essa padronização narrativa “empobre-
ce, sem dúvida alguma, a reprodução da vida, reduzindo-a a um agrupamento de
cenas-padrão”.
A recepção da televisão também influenciou sua narrativa: a atenção dispersa pelos
ruídos da casa, o tamanho da tela e, principalmente, a fragmentação imposta pelos inter-
valos comerciais, levou a uma estruturação narrativa superficial, que não demandasse
grande atenção por parte do público.
Ao contrário de outros países, a televisão brasileira não sofreu influência direta
do cinema brasileiro, que na época de sua implantação estava em franca decadência.
Por isso, a televisão brasileira absorveu influências do rádio, do teatro de revista, da
chanchada e do circo, com todos os seus vícios e virtudes. De acordo com Santaella
(1992, p. 24), a televisão tem um caráter antropofágico: “ela absorve e devora todas as
outras mídias e formas de cultura, desde as mais artesanais, folclóricas e prosaicas até
as formas mais eruditas”.
Segundo Mira (1997, p. 124), a influência mais importante é reconhecidamente a do
rádio, uma das formas de entretenimento mais consumidas no Brasil dos anos 1950.
Como foram os atores e técnicos do rádio que inicialmente migraram para o novo
veículo, a televisão evocou, por vários anos, a linguagem radiofônica. Como comenta
Furtado (1988, p. 60), “a primeira fase da televisão era totalmente baseada na fala, com
pouca visualização; quando muito com visuais simbólicos e slides”.

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As primeiras peças publicitárias para a televisão também se resumiam a sequências


de cartões pintados ou slides, com um texto lido ao vivo, em off, por um locutor, já que
ainda não existia um método de gravação – o videoteipe só chegaria em 1960. Mas a
grande maioria dos comerciais era feita ao vivo pelas garotas-propaganda. Para criar
um clima intimista eram utilizados planos frontais – o olhar dirigia-se ao espectador – e
planos fechados no rosto das apresentadoras, mas sempre enquadrando o produto. A
intenção era agregar à marca a felicidade estampada no sorriso das belas moças.
Os textos eram longos, legado do rádio, e seguiam a linha de demonstração de
produto, com discursos lógicos e racionais, e não de sedução do público. De acordo
com Marcondes e Ramos (1995, p. 52) eram “verdadeiras plataformas de texto, somente
faladas, muitas vezes simples estratégias de produtos ou proposições e venda. O lado
criativo? Estava submerso na avalanche de razões de compra, mal repontava aqui e ali”.
Mas as empresas de propaganda multinacionais que haviam se instalado no país
estavam descontentes com a qualidade destes primeiros comerciais brasileiros, já que não
existiam empresas de produção e a estrutura técnica da TV brasileira era precária. Ao
contratar os profissionais do rádio, que nada entendiam de linguagem audiovisual, a tele-
visão abriu espaço para que as agências multinacionais tomassem a frente das produções.
Podemos citar alguns programas, onde houve grande participação do pessoal das agências,
tais como Divertimento Ducal, Esta é a Sua Vida, Ginkana Kibon, O Céu é o Limite, Repórter
Esso, Resenha Esportiva, Os Gols da Rodada, TV Rio Ring, Circo Bombril, Diga Isso por
Mímica, Encontro entre Amigos, O Jornal na TV, Histórias Animadas Nestlé, Quero Saber
mais, Quem Sou Eu, etc. (Leite, 1990, p. 244)

Para tentar manter o mesmo padrão das produções norte-americanas, geralmente


o país de origem destas empresas, as agências recorreram à tradição audiovisual já
estabelecida: contrataram técnicos oriundos da recém-extinta Vera Cruz, produtora
cinematográfica paulistana que formou toda uma geração de mão de obra do cinema
brasileiro.
Da Vera Cruz desmantelada saíam os primeiros quadros cinematográficos para a publicidade
(...). A importação de técnicos europeus, efetivada por Alberto Cavalcanti para conseguir o
‘padrão internacional da Vera Cruz’, acabava alimentando com quadros e práticas cinema-
tográficas o início do cinema publicitário brasileiro. (Ramos, 1995, p. 72)

Mesmo com o novo quadro de profissionais, as agências norte-americanas instaladas


no Brasil importam cinegrafistas, diretores de arte e redatores publicitários para trabalhar
no país e alavancar a qualidade dos comerciais. Duailibi (1991, p. 41) descreve a surpresa
dos primeiros homens de criação com os comerciais trazidos dos Estados Unidos por
Julio Cosi, da agência Standard: “Ficávamos espantados como eles abordavam tudo
com textos superconcisos, com uma interpretação muito boa, com um conhecimento
de montagem fora do comum”.
Em 1952, a TV Tupi constrói o primeiro estúdio para a produção de comerciais de
televisão, abrindo espaço para um trabalho mais apurado de cenografia, que até ali se
inspiravam na linguagem teatral: eram parecidos com grandes telas pintadas. O som
também começa a ser trabalhado especificamente para os comerciais. Segundo Furtado

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(1990, p. 238), “o primeiro filme a contar com trilha musical apropriada foi o da Casa Clô”.
Nos anos 1960, a linguagem publicitária toma novos rumos, associando seus pro-
dutos a um clima de otimismo. De acordo com Siqueira (1995, p. 79), “a Kolynos, por
exemplo, já usava filmes onde pessoas jovens demonstravam toda sua alegria e dina-
mismo, determinando as características do slogan: ‘Gente dinâmica prefere Kolynos’”.
O videoteipe chega ao Brasil no início desta década, como um equipamento de
apoio à televisão, ajudando a resolver seus problemas estruturais, a exemplo dos pro-
gramas ao vivo, sujeitos a erros, que passaram a ser gravados e a ter melhor qualidade.
De acordo com Priolli (2000, p. 18), o VT também serviu para reproduzir programas e
alimentar o conteúdo várias praças, “já os programas, até então, tinham apenas uma
única emissão, a original, ao vivo”.
Porém o videoteipe ainda não era utilizado como um recurso de linguagem. A
primeira máquina de edição de vídeo só foi lançada em 1963. A partir daí os recursos
da imagem e do som começaram a ser mais bem utilizados, já que o processo eletrônico
permitiu a utilização de efeitos visuais eletrônicos e também imprimiu um ritmo mais
rápido às peças, além de dar maior liberdade criativa aos produtores com a captação de
cenas externas e a possibilidade de criação de efeitos.
A edição eletrônica também provocou uma maior fragmentação das cenas. Daniel
Filho (2001, p. 56) comenta que a televisão passou a ser ‘telegráfica’, “tão rápida que os
programas tinham que ter um apelo muito forte para prender o telespectador na cadeira
e no canal”.
O início da televisão no Brasil também não viu grandes trabalhos de iluminação,
até porque a própria imagem não exigia: eram quase que borrões e fantasmas na tela. A
luz era feita com os chamados panelões, enormes refletores que trabalhavam com uma
lâmpada muito forte. De acordo com Daniel Filho (2001, p. 262), o trabalho de iluminação
se sofisticou quando o mercado absorveu diretores de cinema relutantes em trabalhar
com o videoteipe, “pois estavam acostumados com uma melhor qualidade de imagem.”
Não é coincidência que isso tenha acontecido na mesma época em que os profissionais
de cinema estrangeiros vieram para trabalhar na publicidade.
O trabalho de iluminação foi aprimorado quando a cor chegou à televisão brasileira,
em 1972. Os comerciais passaram a trabalhar os simbolismos que os tons podiam trazer
à cenografia, ao figurino, à maquiagem e, principalmente à iluminação.
Aproveitando a iniciativa da Tupi, que transmitia eventuais sessões coloridas, a agência
Panam Propaganda realizou em 1964 o primeiro comercial em cores da TV brasileira. Poucos
espectadores privilegiados puderam ver o novo filme em desenho animado das geladeiras e
fogões Brastemp, estrelado pela já famosa família de esquimós. (Xavier & Sacchi, 2000, p. 130)

Nesta década a publicidade se afasta das argumentações racionais e intensifica o


apelo às emoções. Segundo Carvalho (1996, p.12), com “lógica e uma linguagem próprias,
nas quais a sedução e a persuasão substituem a objetividade informativa”. Datam daí
comerciais como Primeiro Soutien, criado em 1978 pela agência W/GGK para a indústria
de lingerie Valisiére, e Morte do Orelhão, de 1981, criação da DPZ para a Telesp. Além
disso, os comerciais de televisão começam a trabalhar com temas mais polêmicos e com
sensualidade explícita.

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Ainda na década de 1970 surge outra influência da televisão sobre a publicidade:


os efeitos visuais e os grafismos, que ajudaram a imprimir um ar de modernidade aos
programas, e principalmente às vinhetas: “a feição da TV passava por uma boa refor-
ma de fachada, dando-lhe aspecto, sem dúvida, mais moderno e mais internacional”
(Marcondes e Ramos, 1995, p. 104).
A explosão dos videoclipes, em meados da década de 1980, trouxe uma gama de
possibilidades de efeitos visuais e sonoros, que possibilitaram ao clip atingir o status de
espaço de experimentação de linguagem dentro da televisão. A principal diferença do
que se via na televisão naquele momento é que o videoclipe se apropriou desses efei-
tos especiais não utilizando uma narrativa linear, como era trabalhado nas produções
televisivas, mas sim para transmitir sensações da música divulgada.
Assim uma nova linguagem começava a invadir a televisão, apesar de não ser muito
bem compreendida pelos adultos. Porém, de acordo com Machado (1990, p. 170) o públi-
co jovem já estava preparado para aceitar imagens sem nenhum significado imediato,
“sem qualquer denotação direta, sem referência alguma no sentido fotográfico do termo,
desde que o seu movimento fosse harmônico como o da música”.
A publicidade logo absorveu a estética do videoclipe. Um dos exemplos foi a cam-
panha Abuse&Use da C&A, “com agitadas coreografias, mais de 350 figurantes em cena
e direção geral do diretor de teatro e coreógrafo José Possi Neto, a campanha foi um
impacto só.” (Marcondes e Ramos, 1995, p. 140)
Na década de 1990 a MTV chega ao Brasil, criada nos Estados Unidos em 1981 com
uma programação baseada na veiculação de videoclipes, o que baratearia sua implan-
tação. De acordo com Marcondes (2001, p. 190), “as gravadoras fariam esse investimento
emprestando seu material de divulgação, que já produziam mesmo. A propaganda seria
a própria programação”.
Segundo o autor, quando a emissora chegou ao Brasil houve muita agitação no
mercado publicitário porque era a primeira emissora do país voltada para o público
jovem. A MTV Brasil adotaria a celebrada linguagem inovadora adotada pela MTV,
alicerçada basicamente em uma edição fragmentada e forte presença de elementos
gráficos e efeitos visuais e sonoros.
Ainda na década de 1990 o controle remoto torna-se um elemento decisivo de trans-
formação da estética televisiva, ao forçar uma mudança de hábitos muito significativa
na audiência das emissoras ao alterar o formato de apresentação dos programas, pela
rapidez com que se pode mudar de canal, principalmente no horário dos intervalos
comerciais, o que acabou tirando o sono dos anunciantes. Era o efeito zapping, que intro-
duziu uma nova fragmentação no hábito de assistir televisão. De acordo com Armes
(1999, p. 236), essa fragmentação foi logo sintetizada pela publicidade, e “demandou
comerciais mais chamativos, principalmente pela trilha sonora”.
No final desta década volta à cena uma variação das garotas-propaganda do início
da publicidade televisiva brasileira: os apresentadores dos canais de compra das emis-
soras de televisão por assinatura, recém-instaladas no Brasil. Eram os infomerciais,
com demonstrações exaustivas dos produtos anunciados, textos longos – com duração
muito superior aos 30 segundos determinados como padrão de inserção comercial – e
imagens precárias, “contrapondo-se à sofisticação da linguagem da propaganda dos

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anos 80, e totalmente explícitos, assumindo sem vergonha o consumismo explícito”,


como comenta Xavier e Sacchi (2000, p. 72).
A influência dos programas jornalísticos na publicidade televisiva não pode ser
esquecida. Em todos os momentos da publicidade brasileira, notadamente nos períodos
de incertezas políticas e econômicas, podemos ver comerciais – institucionais ou não
–, apelando para a emotividade que algumas cenas do telejornalismo provocam. Um
exemplo é a premiada série de comerciais Grand Prix produzidas em 1998 pelo jornal
O Globo, do Rio de Janeiro, que reconstituía fatos apurados pelos jornalistas do jornal
impresso.
Mas a publicidade não se contenta em utilizar ou refazer as cenas que foram ao ar
pelos programas jornalísticos; também recorre às peculiaridades destas cenas, como as
imagens trêmulas provocadas pela movimentação das câmeras apoiadas somente nos
ombros dos operadores e as imagens em preto-e-branco que remetem ao documentário.
Além disso, muitos comerciais utilizam o próprio formato jornalístico como estrutura
narrativa, com apresentadores dirigindo-se ao público, cenário com balcão, etc.
Na última década do século XX as tecnologias digitais iniciaram uma mudança
drástica na televisão, que pela capacidade do tráfego de sinais, da qualidade do sinal
distribuído e de sua capacidade interativa, alteraram de modo decisivo sua narrativa e
os métodos de trabalho de toda a equipe envolvida na produção.
A captação de imagens com câmeras digitais e de alta definição, além do salto de
qualidade das imagens, alterou o formato das transmissões para 16:9, similar à das
telas de cinema, enquanto a televisão convencional apresenta uma relação de 4:3. Em
termos de dinâmica da imagem, a HDTV permite que a composição e a edição sejam
mais contemplativas, justamente devido à expansão da imagem.
Do ponto de vista da direção de arte, a nova resolução de imagem exigiu cuidados,
já que os detalhes que não eram visíveis na resolução convencional passaram a ser per-
ceptíveis. Na iluminação, por exemplo, as mudanças entre exposições de luz permitiu
uma maior percepção de contraste.
Mas foi na edição de imagens que o uso das tecnologias digitais se tornou irreversí-
vel. O AVID, por exemplo, um sistema digital não linear de edição off-line, transformou
todo o processo de edição realizado até 1991, ao possibilitar, por sua rapidez, uma maior
experimentação na combinação dos elementos da linguagem audiovisual.
Com uma rapidez fantástica, ele permite que o diretor veja a cena que idealizou. Se em vez
de começar com um plano geral, o diretor quiser começar com um close, em menos de um
minuto ele estará vendo a cena montada e sabendo o efeito que dá. Ou pode ainda deixar
várias opções montadas e ver em sequência qual a que melhor se adapta à narrativa. (...)
Com o AVID fica muito mais simples a montagem, mas os montadores têm que ter um
conhecimento semelhante ao do montador de cinema, pois o ritmo da cena fica na mão
dele. (Daniel Filho, 2001, p. 318).

INTERNET – NOVAS PLATAFORMAS, NOVAS ESTÉTICAS.


Agora, neste início de século XXI, vemos o incremento da internet, que multipli-
cou os canais de veiculação de produtos publicitários audiovisuais ao possibilitar sua

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veiculação em sites, redes de relacionamento, games, etc., além de possibilitar a veiculação


em plataformas móveis, como celulares e tablets, alavancadas pelo surgimento das redes
de internet de terceira geração (3G), concebidas para transmitir dados, imagens e sons.
As plataformas móveis têm, entretanto, suas próprias características de transmissão,
recepção e audiência, que estão alterando a estética da publicidade audiovisual. Além
da definição do público-alvo que se quer atingir e tempo adequado de duração para
aquele tipo de receptor, a produção de conteúdo publicitário audiovisual para os novos
suportes demandam atenção quanto às especificidades técnicas e de recepção – a exemplo
de tamanho da tela, interferências de som e luz externa, nível de ruído de transmissão
e recepção, velocidade de download e a concorrência com textos escritos, fotos e sons.
Além disso, o modo de consumo das informações contidas na peça depende também
dos usos que cada tipo de receptor faz destas plataformas e como se relacionam com
elas, por isso as peças ainda devem estar adequadas ao tempo médio de navegação dos
usuários e seu tempo de atenção dedicado a cada peça.

ANÁLISE DAS PEÇAS – BANCO BRADESCO (TUDO DE BRA PRA VOCÊ)


X CHOCOLATE BATOM (BATOM COM LEITE)
Neste artigo, pretendemos analisar a estrutura narrativa de peças publicitárias
audiovisuais veiculadas no canal de compartilhamento de vídeos Youtube, mapeando
sua adequação às especificidades das plataformas móveis. As peças escolhidas foram
as do formato TrueViewInStream, especificamente as produzidas pelo Banco Bradesco
(Campanha Tudo de BRA pra você) e do lançamento do chocolate Batom com leite.
Os vídeos TrueViewInStream (Visualização verdadeira dentro do vídeo, em tradu-
ção aproximada) são peças publicitárias que surgem antes do início do vídeo principal
selecionado pelo usuário do Youtube. Os espectadores têm a opção de assistir ao anúncio
na íntegra ou obrigatoriamente deve assistir os 05 primeiros segundos do vídeo antes
da opção “ignorar este anúncio agora”. Em ambos os casos, os anúncios aparecerão na
parte inferior dos vídeos, e o anunciante somente pagará se o usuário assistir mais de
30 segundos ou completar a visualização do anúncio.
Os anúncios tipo TrueView normalmente são ignorados pelos usuários do Youtube.
Nossa hipótese é que a criação e a produção destas peças não observam as especifici-
dades e as possibilidades narrativas das plataformas online, principalmente as móveis.
De acordo com Himpe (2007), uma peça publicitária somente estará a contento se
responder afirmativamente às seguintes questões: A estética audiovisual é adequada
ao modo de consumo da plataforma? Está próxima do público-alvo? A mensagem é
inesperada e surpreendente?
Em nossa análise detectamos que a maioria das peças publicitárias inseridas no
Youtube no formato TrueView não se enquadra nestes parâmetros. Verificamos que
muitas têm longa duração, chegando há três minutos, o que leva a crer que exista um
desconhecimento quanto à forma de recepção das plataformas móveis, cujo conteúdo
é acessado normalmente em situações de deslocamento ou espera, e por isso devem
ser curtos, objetivos, com linguagem clara e direta. Segundo Cannito (2010, p. 107), a
portabilidade pede “conteúdos leves e curtos, que não sejam afetados pelas interrupções
do dia a dia”.

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A estética audiovisual da publicidade na internet – caso Youtube

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No caso da peça do Banco Bradesco, a duração é de 30 segundos, tempo muito


superior aos 05 segundos obrigatórios de visualização. Além disso, a menção ao cliente
dentro dos 05 segundos de obrigatoriedade de visualização dos vídeos foi ignorada:
não existe qualquer menção sonora ou visual do banco até os 15 segundos da peça. Já a
peça do chocolate Baton com leite tem duração de 15 segundos e faz menção ao produto
antes dos 05 segundos obrigatórios de veiculação.
Quanto ao enquadramento, o espaço reduzido das telas impossibilita a observação
de detalhes, por isso é melhor privilegiar planos mais fechados, destacando, assim, pou-
cos elementos por vez. Deve-se também evitar movimentos rápidos da câmera, já que
a baixa velocidade de download pode provocar distorção na imagem. Na peça do banco
Bradesco existem vários movimentos, e a ação é enquadrada em planos muitos abertos
em quase toda sua duração. O comercial do chocolate Batom com leite é trabalhado com
planos fechados e sem movimentação da câmera.
No caso da iluminação, a concorrência com a luz externa impede a resolução ideal
das imagens, principalmente aquelas mais escuras ou muito claras, a exemplo da peça
do Banco Bradesco, que utiliza uma iluminação lavada, clara e que compromete a nitidez.
Na peça Baton com leite a iluminação foi elaborada com cores contrastantes com o fundo
e com a embalagem do produto, o que permite uma melhor visualização.
A concorrência com os ruídos do ambiente externo faz com que uma trilha sonora
possa se acabe se perdendo na narrativa, ou, pior ainda, não ser ouvida, como é o caso
do comercial do Banco Bradesco, onde a música é o elemento principal da narrativa.
No caso da peça do chocolate Batom com leite, observa-se o cuidado quanto à edi-
ção, trabalhada com planos-sequência, quase sem cortes. O ponto fraco das plataformas
móveis é justamente a edição, onde cortes abruptos e ritmo rápido pedem maior atenção
do receptor.
Nesta peça também se verifica a utilização cuidadosa também dos elementos gráfi-
cos, que em excesso desviam a atenção da mensagem principal. No comercial do Batom
com leite as informações escritas – letterings – são inseridas uma de cada vez, com tipo-
grafia sem serifas e kerning suficientemente grande a ponto das letras não se fundirem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na análise aqui realizada, verificamos que estética trabalhada na maior parte das
peças publicitárias audiovisuais Trueview In Stream no Youtube não observa as especifi-
cidades das plataformas móveis. Além das peças publicitárias aqui analisadas, notamos
que vários vídeos deste formato ignoraram as variáveis técnicas que influenciam a
narrativa audiovisual para os novos suportes.
O que chamou mais a atenção foi que, em sua grande maioria, as peças veiculadas
no Youtube não passam de meras reproduções de peças criadas para a televisão, o que as
tornam, assim, previsíveis e desinteressantes. Para Jenkins (2009, p. 138), a redundância
acaba com o interesse do fã, ao contrário de novas experiências, que motivam o consumo.
Também é ignorado o poder do usuário de escolher e controlar as mensagens publi-
citárias que deseja consumir nas plataformas online. Como comenta Cannito (2010, p.
107), os usuários querem usar as plataformas móveis para “personalizar e controlar

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conteúdos e também para interagir com eles”. Além disso, muitas estão inseridas em
vídeos que o usuário não tem interesse por não terem relação com o conteúdo procurado.
Hoje a internet está repleta de opções de conteúdos que atraem a atenção dos consu-
midores de todas as idades e camadas sociais pelo simples motivo de que ela possibilita
que cada um escolha o que quer, por isso acreditamos que uma melhor utilização das
possibilidades narrativas das plataformas móveis pode criar um modo de participação
mais eficiente do consumidor, já que a forma como consomem propaganda mudou
radicalmente. Como comenta Longo (2008), “antes a luta era apenas para que alguém
visse a nossa mensagem. Hoje ela é pela capacidade de efetivamente influenciar, moti-
var, emocionar, impactar”.
O apelo da publicidade tradicional perdeu o impacto e a eficiência de antes. É
ponto pacífico que o comercial de televisão de 30 segundos, apesar de ainda estar no
ar no Brasil, é uma peça morta, porque procura atrair a atenção de seus consumidores
através da interrupção, o que hoje não é viável. A partir do controle remoto e seu efeito
zapping, os telespectadores se tornaram mais seletivos, buscando conteúdos que mais
o atraíssem. Para fugir do zap, os anúncios televisivos pularam para dentro dos pro-
gramas, que foram uma solução paliativa para o problema, como os merchandisings e os
advertainments, publicidade travestida de entretenimento.
Nos Estados Unidos, já em 2005, a Procter & Gamble, que focava mais de 80% de seu fatura-
mento em anúncios publicitários, anunciou a redução em 25% nos anúncios de TV nas redes
a cabo e 5% nas terrestres. Essa decisão decorre do fato da nova tecnologia de transmissão
permitir ao espectador pular os anúncios. (Cannito, 2010, p. 116)

A publicidade também deve estar atenta à proliferação de conteúdos criados para


a convergência midiática, tendência no campo da comunicação justamente pela diversi-
dade e rapidez com que novas mídias surgem. O conceito que engloba transformações
tecnológicas, mercadológicas, culturais e sociais. De acordo com Jenkins (2009, p. 35)
convergência midiática define “o fluxo de conteúdos através de múltiplas plataformas
de mídia, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migra-
tório do público dos meios de comunicação, que vão a quase qualquer parte em busca
de experiências de entretenimento que desejam”.
A convergência midiática vem alterando o modo como os meios de comunicação
se expressam, e, consequentemente, alterando a maneira como o usuário consome estes
meios e sua função em suas vidas. Para Jenkins (2009), a cultura da convergência repre-
senta uma transformação cultural, uma vez que a circulação do conteúdo depende da
participação e interação dos consumidores. Consequentemente, isso leva a publicidade
a manter novas relações com seu consumidor, a fim de atingi-lo das mais variadas
maneiras. No ambiente de convergência midiática o consumidor ganha voz ativa e passa
a ser o protagonista do processo comunicacional.

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Vera Cruz: Um Diálogo Histórico Narrativo
Vera Cruz: A Historical Narrative Dialogue
Fernanda Bastos1

Resumo: Vera Cruz (2000), da artista plástica Rosângela Rennó, obra analisada
neste artigo, se baseia na carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel I, por
ocasião do Descobrimento do Brasil, portanto aborda um tema histórico - o que
é raro na videoarte - sob um enfoque extremamente narrativo-cinematográfico,
reforçado pela montagem audiovisual, característica também pouco comum
neste tipo de obra de arte. Com esta obra, a artista interpela o espectador e seu
repertório imagético construído pelo contexto histórico-cultural, além de criar
um jogo de ver e não-ver, chamando atenção para o que permanece e o que é
descartado, temas bastante recorrentes no conjunto de seus trabalhos.
Palavras-Chave: videoarte, narrativa, diálogo, montagem audiovisual

Abstract: Rosaâgela Rennó’s Vera Cruz (2000), analyzed in this paper is a vídeo
version to the letter of Pero Vaz de Caminha addressed to King Manuel I, by the
occasion of the discovery of Brazil. Historical themes are pretty rare in video
art, and to realize thins work, Rannó uses a very narrative-cinematographic
approach, reinforced by audiovisual editing, aspect also unusual in this kind
of work of art. In Vera Cruz, the artist challenges her public and its imagistic
repertoire built by the historical and cultural context, and create a game of seeing
and not-seeing, drawing attention to what remains and what is discarded, quite
recurring themes in her work.
Keywords: video art, narrative, dialogue, video editing

BREVE INTRODUÇÃO

O S ARTISTAS visuais se interessam pelas tecnologias da imagem em movimento


desde o surgimento do cinema, mas foi o desenvolvimento das tecnologias de
vídeo, e principalmente de seus equipamentos portáteis de captação, que abriram
essa nova vertente nas artes plásticas a partir da década de 1960. Mais tarde, nos anos
1980, a disponibilidade dos equipamentos de captação e edição de vídeo cresceu, e com
ela cresceu também esta produção artística, que, hoje, na era do vídeo digital, atinge
larga escala, visto que esta tecnologia tornou-se simples e acessível.
Curiosamente, as duas obras inaugurais de videoarte, no mundo e posteriormente
no Brasil, não contam com a captação de imagem. A obra Distorted TV Sets (1963), de
Nam June Paik – artista coreano atuante nos Estados Unidos e integrante do grupo
Fluxus –, é considerada a primeira videoarte da história. Neste trabalho, Paik interfere na

1.  Mestranda em Comunicação, ECO-UFRJ e fernandabastos1@gmail.com

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Vera Cruz: Um Diálogo Histórico Narrativo

Fernanda Bastos

recepção da imagem de uma televisão – que transmitia a programação normal – através


da inversão de seus circuitos internos. Ele só gravaria suas primeiras imagens dois anos
mais tarde, por ocasião de uma visita do Papa à Nova York, com um Portapak, que foi
o primeiro equipamento portátil de captação de vídeo. No Brasil, a primeira obra de
arte a conter um aparelho de TV foi PN3 – Penetrável Imagético (1966), de Hélio Oiticica,
um penetrável – ambiente imersivo feito de madeira e tecido – com uma televisão, que
transmitia a programação normal no final do percurso. Paik e Oiticica eram artistas que,
em sintonia com outros de sua época, começavam a questionar o papel do espectador/
observador na arte. O brasileiro chegou a criar o termo “participador” para realçar a
importância do espectador dentro do seu trabalho.
Ainda nos primeiros tempos (1969-1975), muitos videoartistas voltaram suas obras
para as questões do dispositivo tecnológico e dos desafios que este poderia apresentar,
como é o caso de De La, de Michael Snow, Allvision, de Steina Vasulka, Peep Hole, de Bill
Viola, Two viewing rooms, de Dan Grahan, entre outras. Todas tendo como questão central
a captação e reprodução em circuito fechado ao vivo, fazendo com que o espectador
precise deslocar-se para se posicionar em relação à obra, tirando esse espectador da
situação de simples receptor para fazê-lo participador, implicando-o em uma tripla
função: sujeito / objeto / receptor. Também aqui podemos identificar um pensamento
artístico herdado da arte minimalista e relacional, que procura implicar o espectador
intelectual e fisicamente, rompendo o limite entre arte e vida. (MACIEL, 2009)
Katia Maciel, no texto Transcinema e a estética da interrupção (FATORELLI e BRUNO,
2006) problematiza a questão comportamento do espectador/participador, que nem
sempre assiste a videoarte em sua totalidade. Esta escolha, que foge do controle do
artista, pode interferir na narrativa da obra, já que o espectador absorve apenas um
trecho desta. No campo das Belas Artes, a questão da arte relacional é cada vez mais
pertinente. Cada vez menos se pensa Arte independente do espectador. Assim, pode-se
pensar que, para a videoarte, o tempo do espectador, de certa forma, atualiza a imagem.
Em suma, a arte, em sua forma, une a mesma relação entre o agir e o sofrer, entre a energia
da saída e a de entrada, que faz que uma experiência seja uma experiência. (...) O ato de
produzir, quando norteado pela intenção de criar algo que seja desfrutado na experiência
imediata da percepção, tem qualidades que faltam a atividade espontânea ou não contro-
lada. O artista, ao trabalhar, incorpora em si a atitude do espectador. (DEWEY, 2010, p.128)

Neste artigo analiso Vera Cruz2 (2000), uma videoarte, da artista mineira Rosangela
Rennó, feita para a mostra Brasil +500, da Bienal de São Paulo, levando em conta justamente
a questão da participação do espectador, que neste caso é estrutural.

VERA CRUZ E O ESPECTADOR


Um filme sem imagem, sem diálogos audíveis, sem trilha sonora, cujo enredo trata
do momento fundador de uma nação, assim é Vera Cruz. Roteirizada a partir da carta
de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel I, a obra simula um filme – documentário ou

2.  Todas as obras de Rosângela Rennó podem ser visualizadas no site da artista: http://www.rosangelarenno.
com.br/obras

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Vera Cruz: Um Diálogo Histórico Narrativo

Fernanda Bastos

ficção de época –, em que a imagem e o áudio dos diálogos foram apagados pelo tempo,
e do qual restam apenas as legendas e o som do vento, sobre um negativo arranhado,
manchado e mofado.
Recorrentemente rotulada como uma fotógrafa que não fotografa, por reutilizar, na
maior parte de suas obras, imagens e equipamentos fotográficos destinados ao descarte,
Rennó é uma verdadeira garimpeira de feiras de troca-troca, uma arqueóloga de indícios
imagéticos e documentais. Ela escava arquivos privados, como no caso de Bibliotheca
(2002), e arquivos públicos, como na Série Cicatriz (1996).
Bibliotheca é uma instalação composta por um conjunto de 37 vitrines lacradas com
álbuns de fotografias em seu interior. Cada vitrine encerra três ou quatro álbuns cole-
cionados em feiras de refugo ao redor do mundo. Cada fotografia destes álbuns está
catalogada de acordo com várias categorias, como local do registro fotográfico, local da
aquisição do álbum, época etc., e registradas em cartões como livros de uma biblioteca.
A Série Cicatriz é formada por doze textos esculpidos em gesso e dezoito fotografias
reproduzidas a partir de negativos de vidro dos registros de identificação dos detentos
do Presídio do Carandiru das décadas de 1920 a 1940. Para realizar este trabalho, Rennó
precisou limpar, restaurar e catalogar mais de 15.000 negativos que estavam amontoados
e abandonados em um arquivo morto do Museu Penitenciário Paulista. Nesta obra vemos
cicatrizes, tatuagens e marcas peculiares de detentos documentadas para facilitar sua
identificação, mas nunca vemos seus rostos, o que traz à tona outro viés da obra desta
artista, a questão da identidade e seu apagamento ou dissolução na esfera social. Rennó
se interessa pelo ciclo de vida das imagens que, em geral, são feitas para eternizar um
encontro, um momento, enfim, um acontecimento, mas acabam esquecidas, abandona-
das ou descartadas. Ao resgatar estas imagens em vias de desaparecimento, o que ela
realça é justamente o processo de desaparecimento.
Rennó trabalha primordialmente questões de memória, arquivo e coleção, seu gesto
artístico mais marcante é criar novas narrativas para imagens abandonadas ou novas
imagens para histórias esquecidas. A interação texto-imagem está sempre presente em
suas obras, com destaque especial para Arquivo Universal e Hipocampo.
Arquivo Universal (iniciado em 1992 e ainda em progresso) consiste na transformação
de imagens fotográficas em textos, que são mais que descrição ou legenda, são mesmo uma
conversão, um arquivo de imagens sem imagens ou de “imagens escritas”, como a própria
artista costuma definir. Com esta obra, Rennó interpela o acervo visual do espectador.
Hipocampo (1992-1995) é uma instalação na qual vemos textos impressos com tinta flu-
orescente nas paredes da sala de exposição. A sala, que permanece escura na maior parte
do tempo, é iluminada por uma luz muito forte em intervalos breves e regulares. Quando
a luz se apaga, os textos se revelam aos olhos do espectador para, em seguida, começarem
a se esvanecer lentamente até desaparecerem por completo e a luz se acender de novo.
Majoritariamente baseada na questão fotográfica, a artista enveredou pelo suporte
do vídeo na virada do século XX para o XXI, primeiro com Vulgo (1999) e em seguida
com Vera Cruz (2000), em que ela pôde criar, segundo declarou, “uma possível leitura
para aquele texto que, na minha infância, parecia tão rebuscado”.3

3.  Texto de divulgação da mostra Memórias Inapagáveis, disponível em: http://www.maxpressnet.com.br/

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Vera Cruz: Um Diálogo Histórico Narrativo

Fernanda Bastos

Entre as obras em vídeo com texto escrito, vale destacar, além de Vera Cruz, Vulgo e Si
loin mais pourtant si près [so far and yet so close]. Em Vulgo, nomes de bandidos se sucedem
girando na tela à moda de caça-níqueis, através de uma técnica de animação. Si loin
mais pourtant si près [so far and yet so close] (2008) é uma video-instalação composta de
duas telas, uma em tons de azul e outra em tons sépia, em que personagens brancos, do
lado sépia, e negros, do lado azul, falam sobre comida típica da Louisiana, nos Estados
Unidos, revelando através das suas receitas questões das culturas cajun e creóle que até
hoje coexistem naquela região. Enquanto um personagem fala, frases extraídas de seu
discurso cruzam, horizontalmente, a outra tela.
Vera Cruz é uma obra que estabelece diálogos diversos e aponta para muitas
referências. Primeiramente, no próprio campo da arte, a obra dialoga com o Minimalismo
e com a arte relacional. Se nas instalações de Robert Morris o espectador precisa se
deslocar através do ambiente para apreender a obra como um todo; se um Parangolé, de
Hélio Oiticica, só “vira” arte quando alguém o veste; se na vídeo-instalação Arvorar, de
Katia Maciel, é preciso que o espectador sopre o microfone para que a árvore do vídeo se
mova; ou seja, se todas estas obras demandam uma implicação física do espectador para
que se completem na busca de romper o limite entre arte e vida, podemos considerar Vera
Cruz uma obra quase relacional a seu modo. Ainda que sua forma – videoarte em tela
única – não demande uma ação física do espectador, esta obra joga com as possibilidades
e impossibilidades de registro audiovisual do acontecimento convocando espectador a
completar o filme em sua imaginação como um documentário ou como uma ficção de
época, de acordo com o repertório de cada um. Além disso, suscita possíveis memórias
engendradas por outras imagens (não filmadas) provenientes das mais variadas origens.
Não devemos esquecer que a colonização se faz também pelo olhar, pelas imagens que
são apresentadas e reapresentadas, impostas mesmo, ao colonizado. Essas imagens,
criadas por cada espectador para completar o vazio deixado pela artista, são devires
imagéticos singulares deste momento histórico registrado em sua imaginação, sobretudo
se este espectador for brasileiro ou português.
Esta obra borra, ainda que temporariamente, o limite entre sujeito e objeto,
considerando que ela só se completa imageticamente através do observador, ratificando a
afirmação de H. U. Gumbrecht, segundo a qual, “presença e sentido estão sempre juntos
e em tensão” (GUMBRECHT, 2010, P.134) e podendo ser considerada um típico exemplo
do que Bruno Latour chama de híbrido, no livro Jamais fomos Modernos.
O artista leva o “observador” a participar de um dispositivo, a lhe dar vida, a completar a
obra e a participar da elaboração de seu sentido. (...) esse tipo de obra (...) tem sua origem na
arte minimalista, cujo fundo fenomenológico especulava sobre a presença do observador
como parte integrante da obra. É essa “participação” ocular que Michael Fried denuncia
sob a designação genérica de “teatralidade”: “A experiência da arte literal (o minimalismo)
é a de um objeto em situação, a qual, por definição, inclui o observador.4”  (BOURRIAUD,
2009, p. 83)

Conteudo/1,721085,Mostra_Memorias_Inapagaveis_recebe_debate_sobre_invisibilidade_do_negro_e_do_
indio_na_historia_e_na_arte,721085,1.htm
4.  FRIED apud BOURRIAUD

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6040
Vera Cruz: Um Diálogo Histórico Narrativo

Fernanda Bastos

Vera Cruz engendra diversos níveis de temporalidade: o histórico – presentificando


um fato ocorrido há mais de meio século; o real – duração do filme e atração da atenção
do espectador; e o dramatúrgico, uma vez que o ritmo de ação dos personagens é
determinado pelo tempo das legendas somado às intensidades do áudio e das manchas
do vídeo. Além disso, humaniza através do discurso livre direto, personagens históricos,
que até então eram apenas nomes em um livro.
Outra questão possível ainda sobre a imagem que Vera Cruz não mostra é a fé
absoluta que temos na fidelidade do registro imagético, na sua força como documento,
apesar de sabermos bem que todo registro é um recorte, feito a partir de uma escolha
submetida a diversas condições de possibilidade. A obra de Rennó é sempre provocativa,
deixando sempre um espaço a ser preenchido pelo observador. Ela valoriza o que Marcel
Duchamp chamava de “coeficiente de arte”: 
Uma boa obra de arte sempre pretende mais do que sua mera presença no espaço: ela se abre
ao diálogo, à discussão, a essa forma de negociação inter-humana que Marcel Duchamp
chamava de “o coeficiente de arte” - e que é um processo temporal, que se dá aqui e agora.
(BOURRIAUD, 2009, p. 57) 

Outro diálogo que Vera Cruz estabelece é no campo cinematográfico. Apesar de


até hoje só ter sido exposto em instituições de arte, o vídeo, com seus 44’ de duração, é
um média metragem que poderia ser exibido em salas de cinema. Fazendo o caminho
contrário do que Philippe Dubois chama de o efeito cinema, muito bem descrito pelas
palavras de Beatriz Furtado:
As práticas cinematográficas são hoje constitutivas das artes contemporâneas, entre seus
devires múltiplos, o cinema ocupa cada vez de forma mais recorrente o espaço das galerias,
dos museus, das bienais de arte, se fazendo como obra. (GONÇALVES, 2014, P.32)

Como filme Vera Cruz tem roteiro adaptado do relato escrito de Pero Vaz de Caminha,
a partir do qual foram criados os diálogos (fictícios) da tripulação portuguesa, que
aparecem em forma de legendas, ou seja, um documento histórico transformado em
discurso livre direto, que usa como suporte um recurso auxiliar do cinema – nenhum
filme nasce legendado, as legendas só são incorporados se o filme é vendido para países
de idioma diferente do original. No filme, a passagem de tempo é fiel à da carta – se
inicia na quinta-feira, 21 de abril, quando a tripulação, depois de mais de dois meses
de viagem, começa a identificar sinais de que há terra próxima, como algas marinhas
na superfície da água e aves que sobrevoam o barco. A suposta ação ganha corpo na
montagem, através da escolha e combinação dos trechos de negativo com mais ou menos
arranhões e manchas, usados em velocidades diferentes – acelerado para intensificar
o ritmo e ralentado para suavizá-lo –, somados ao áudio de um vento também em
momentos mais fortes ou mais brandos, associados ainda à duração das legendas que
nos informam sobre os acontecimentos e impressões dos navegadores portugueses.
Além disso, o filme começa com a tradicional contagem regressiva de um negativo
ótico, remetendo o espectador diretamente a um filme antigo de cinema. Em seguida,
surgem as cartelas pretas com letras brancas com o título do filme e a data em que a

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Vera Cruz: Um Diálogo Histórico Narrativo

Fernanda Bastos

ação se desenrola. Essas cartelas fazem referência direta às cartelas tradicionalmente


usadas pelo cinema mudo e pontuam, dia a dia, toda a passagem de tempo.
Vera Cruz dialoga, perfeitamente, com o cinema experimental – que se define mais
por oposição ao chamado cinema narrativo clássico do que por uma marca ou estilo
comum aos filmes reunidos sob este rótulo –, ainda que Rennó retire do filme aquilo que
é o âmago do cinema: a imagem. Vera Cruz é radicalmente narrativo e não-imagético,
sendo quase um avesso do “cine-olho”, de Dziga Vertov, mantendo assim a ruptura
entre narrativa e imagem, perseguida por todas as vertentes do cinema experimental.
Segundo Philippe Dubois:
A narrativa é evidentemente uma das dimensões essenciais do cinema, que não parou de
se posicionar em relação a ela e de (re) definir suas modalidades de funcionamento. (…)
Mesmo minimamente a narratividade parece indissociável do cinema. Em contrapartida,
está longe de ser uma categoria tão central no campo das artes plásticas e mesmo da arte em
geral, onde ela foi frequentemente tida como secundária ou como parasita. (GONÇALVES,
2014, P.146 -147)

Rennó desafia o senso comum que aproxima a narrativa fílmica à concepção de


narrativa em geral, que tende a associar a narrativa a um enunciado e desafia também
as teorias do cinema que condicionam a representação cinematográfica da realidade
ao dispositivo narrativo, uma vez que deixa para o espectador apenas a narrativa e
ele precisa fazer o resto. Se a narrativa é, antes de tudo, o enunciável, Rennó, em Vera
Cruz, desloca a imagem para o campo do imaginável. Vale lembrar que a produção
cinematográfica brasileira sobre este tema se limita ao filme Descobrimento do Brasil
(1937), de Humberto Mauro.
Rennó propõe ao espectador um jogo de verdadeiro e falso. A começar pelo uso
de um documento muito conhecido – ao contrário do gesto mais comum em sua obra
que é de trazer à luz documentos obscuros e imagens em desuso –, o primeiro redigido
no Brasil, a certidão de nascimento deste país mestiço. Em seguida “exibe” imagens
produzidas através da telecinagem de negativos virgens estragados (ou seja, imagens que
nunca foram filmadas), somadas ao som do vento e a diálogos totalmente inventados. Ela
segue a trilha aberta por alguns cineastas pertencentes ao Situacionismo e ao Letrismo
que, segundo André Parente,
Radicalizaram certos aspectos relacionados ao dispositivo, introduzidos pelo cinema estru-
tural (...) e pelas vídeo-instalações de circuito fechado (...). Em vez de criar uma imagem
puramente luminosa e gasosa (...), eles criaram situações outras de frustração e/ou deso-
cultamento do espetáculo cinematográfico. (PARENTE, 2013b, p. 65)

Com seu filme Rennó cria uma pequena linha de fuga em um mundo dividido
entre colonizadores e colonizados, todos eles “capturados pela imagem-informação”
(PARENTE, 2013, p.95). E promove uma desmontagem do registro por meio de uma
tática iconoclasta, fazendo um antidocumentário (MELLO, 2008, p. 121). Ela questiona
o visível, seu lugar e seu valor; questiona o consumo das imagens dentro e fora do
mercado da arte; questiona o estatuto da fotografia – seja ele abordado pelo viés artístico,
documental, afetivo ou jornalístico – e interroga o tempo a partir de imagens e objetos

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Vera Cruz: Um Diálogo Histórico Narrativo

Fernanda Bastos

despotencializados, evidenciando a efemeridade da existência humana e a obsolescência,


programada ou não, de objetos destinados a registros da memória, revelando o constante
descarte daquilo que é feito para permanecer.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BOISSIER, Jean-Louis. A imagem-relação. In: MACIEL, Katia (org.). Transcinemas. Rio de
Janeiro: Contra Capa, 2009. 432p. (N-Imagem)
BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins, 2009.
DELEUZE, Gilles. Cinema - A Imagem Movimento. São Paulo: Brasiliense, 1983.
DUBOIS, Philippe. A questão da “forma-tela”: espaço, luz, narração, espectador. In
GONÇALVES, Osmar (org.). Narrativas sensoriais. Rio de Janeiro: Editora Circuito, 2014.
DUGUET, Anne-Marie. Dispositivos. In: MACIEL, Katia (org.). Transcinemas. Rio de Janeiro:
Contra Capa, 2009. 432p. (N-Imagem)
FURTADO, Beatriz. Um campo difuso de experimentações. In GONÇALVES, Osmar (org.).
Narrativas sensoriais. Rio de Janeiro: Editora Circuito, 2014.
GONÇALVES, Osmar (org.). Narrativas sensoriais. Rio de Janeiro: Editora Circuito, 2014.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio
de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2010.
MELLO, Christine. Extremidades do vídeo. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008.
PARENTE, André (org.). Cinema/Deleuze. Campinas: Papirus, 2013a
________ . Cinemáticos. Rio de Janeiro: +2 Editora, 2013b
________ . Narrativa e Modernidade: os cinemas não-narrativos do pós-guerra. Campinas:
Papirus, 2000.
RENNÓ, Rosângela. O Arquivo Universal e outros arquivos. São Paulo: Cosac Naify / CCBB,
2003.
RUSH, Michael. Novas mídias na arte contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

Fontes digitais:
BOUSSO, Daniela. Da imagem fotográfica à imagem em movimento: Rosângela. 2007, em:
site VIDEOBRASIL. Disponível em: <http://site.videobrasil.org.br/pt/acervo/artistas/
textos/37544> Acesso em 15/07/2013
GALERIA VERMELHO. Disponível em: http://www.galeriavermelho.com.br/pt/galeria,
acesso em 15/10/2013
MACIEL, Katia. A arte da presença, 2006. Disponível em: http://www.canalcontemporaneo.
art.br/documenta12magazines/archives/001042.php. Acesso em 15/10/2013
ROSÂNGELA RENNÓ. Página oficial da artista. Apresenta amostras de vídeos, fotografias
e bibliografia sobre a artista e sua obra. Disponível em: <http://www.rosangelarenno.
com.br/bem_vindo>. Acesso em: 04/08/2013.
SCHENKEL, Camila Monteiro. Arquivos revisitados de Rosângela Rennó: entre memórias, fic-
ções e curto-circuitos - disponível em: http://www.anpap.org.br/anais/2011/pdf/chtca/
camila_monteiro_schenkel.pdf
VIDEOBRASIL. FF>>Dossier029>>Rosângela Rennó. Apresenta biografia, obras e textos sobre
a artista. Disponível em: <http://www2.sescsp.org.br/sesc/videobrasil/site/dossier029/
apresenta.asp> . Acesso em 01/08/2013

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6043
Aproximaciones al estudio de la estética del videoclip
musical contemporáneo: un análisis comparativo
Approaches to the study of the aesthetics of
contemporary music video: a comparative analysis.
A n a M a r i a S e d e ñ o -V a l d e ll ó s 1

Resumen: A pesar de ser uno de los formatos centrales en la convergencia


audiovisual, aún no se puede afirmar que exista algo así como una teoría del
videoclip contemporáneo. Creemos en la necesidad de estudiar esta segunda
etapa de la estética videoclip, que sitúe su especificidad tras acontecimientos
que han modificado su narrativa y discurso como la incorporación de páginas
web contenedoras, (Vimeo, YouTube), la irrupción del fan video y la llegada
del videoclip interactivo y el web-based. Este texto trata de reflexionar sobre
cuáles serían los parámetros con los que estudiar el videoclip contemporáneo en
busca de una caracterización lo más completa posible de este formato y aplicarlos
en un análisis comparativo de 10 videoclips de éxito (más visualizaciones en
YouTube según Music Video Database), con diez videoclips de tendencia más
artística posteriores a 2005, seleccionados de algunas de las webs especializadas
de videoclips como Pitchfork, Top of the clips… Los resultados apuntan a la
diferencia de opciones de estos dos tipos de videoclips y a posiciones encontradas
en su relación entre visuales y letras, así como en otros criterios.
Palabras clave: Videoclip musical. estética audiovisual contemporánea. Comuni-
cación Audiovisual

Abstract: Despite being one of the main formats in the audiovisual convergence,
we can say that there isn´t anything like a theory of contemporary music video.
We believe in the need to study this second stage of music video´s aesthetics,
which defines its specificity after events which have changed its narrative and
discourse, such as the incorporation of storing web-sites, the emergence of video
fan and the arrival of interactive video and web-based clip.
This text tries to reflect on what the parameters with we need to focus to study
contemporary music video, for the aim to the most complete characterization of in
this format. We apply a comparative analysis of ten successed music videos (with
more views on YouTube according to data from Music Video Database) with ten
artistic music videos, selected from some of the specialized music websites like
Pitchfork or Top of the clips... All of them are produced after 2005. The results
point to the difference in choices of these two kinds of music videos and in posi-
tions found in the relationship between visual and letters, as well as other criteria.
Keywords: Music video. Contemporary Audiovisual Aesthetic. Audiovisual
Communication

1. Doctora en Comunicación Audiovisual y Publicidad. Universidad de Málaga (España). valdellos@uma.es

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6044
Aproximaciones al estudio de la estética del videoclip musical contemporáneo: un análisis comparativo

Ana Maria Sedeño-Valdellós

EL VIDEOCLIP MUSICAL INSERTO EN UNA NUEVA


ESTÉTICA AUDIOVISUAL

E N LA actualidad puede afirmarse que existen unas nuevas condiciones o nue-


va ecología de los medios de comunicación, caracterizada principalmente por la
convergencia en el lenguaje audiovisual digital de todos los formatos y prácticas
visuales. Un panorama de audiovisualidad creciente dibuja un renovado mapa donde
resulta fácil que se generen nuevos procesos y fórmulas de interrelación audiovisual,
gracias a procesos de intermedialidad y transmedialidad.
Esto afecta a todas las industrias del entretenimiento. Como afirma Fabian Holt
(2011, p. 52), la industria musical, por ejemplo, experimenta un giro hacia el vídeo.
Aunque los artistas y las discográficas continúan produciendo primero el contenido
musical y más tarde el visual como apoyo promocional, el balance está cambiando y la
tendencia se escora al aprovechamiento de todos los formatos posibles (video expandido,
fan video, MTV versión, video expandido, versión breve, versión completa…) frente a
los que aparecen el vídeo musical oficial, que denota la variedad a veces incognoscible
de producciones visuales en torno a una canción, tanto en lo que se refiere a diversos
formatos (teaser, promo...) como a todo lo referido al videoclip amateur o videoclip
musical de usuario (versiones de los fans, literal video...).
Todo esto se enmarca en una nueva etapa de estética audiovisual, un conjunto
de nuevas condiciones mediales que ha sido descrita por John Richardson y Claudia
Gorbman (2013, pp. 20-31) con las siguientes características:
- Una mayor interrelación audiovisual: se tiende a un crecimiento de los formatos
de hibridación audiovisual y se busca generar otras experiencias sensoriales (3D,
inmersión).
- Intertextualidad e intermedialidad: la convergencia de medios, la remediaci-
ón, la “representación de un medio en otro” (BOLTER y GRUSIN, 1996, p. 339;
AUSLANDER, 2008, pp. 6-7).
- Interactividad e inmersión: la performance audiovisual actual sugiere perma-
nentemente al usuario una respuesta interactiva y lo llama a la inmersión en las
historias, en nuevas experiencias.
- Necesidad de atención a la identidad cultural, la afiliación y la espectatorialidad
específica de los diferentes tipos de audiencias, así como a cómo las dimensiones
económicas en relación con la audiovisualidad siguen siendo una prioridad para
comprender los procesos de producción y consumo cultural.
- Importancia del sonido: creciente indeterminación en los límites entre los ele-
mentos de la banda sonora y centralidad de la voz.
Nunca ha resultado habitual la consideración del videoclip como formato de
interés académico desde las ciencias de la comunicación, ni fácil encontrar estudios
que describan características concretas, debido a su alta heterogeneidad como discurso
y la multitud de facetas comunicacionales y creativas que reúne.
Aunque se posiciona como uno de los formatos centrales de la renovación del
audiovisual por su capacidad de adaptación a los canales de distribución digitales y de
hibridación con otros formatos y propuestas aún no se puede afirmar que exista una
teoría del videoclip contemporáneo. Su naturaleza de formato de promoción musical lo ha

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

6045
Aproximaciones al estudio de la estética del videoclip musical contemporáneo: un análisis comparativo

Ana Maria Sedeño-Valdellós

condicionado desde una industria que se encuentra en continuo cambio y transformación


y que por tanto no se encuentra interesada en su archivo o conservación. Esto continúa en
esta segunda fase de la vida del videoclip como género audiovisual, la que se desarrolla
en la red, porque las experimentaciones con software y fórmulas en internet vuelven
muchas de sus propuestas muy volátiles.
Tratando de aliviar esta carencia, este texto trata de reflexionar en torno a una
caracterización de esta segunda estética inserta en una nueva estética audiovisual.
Creemos que lo dispuesto por Andrew Goodwin en Dancing in the distraction factory,
Music Television and Popular Culture (1992), se acerca a unos mínimos que aún siguen
estando vigentes en la descripción de este formato. Seguramente el autor norteamericano
ha propuesto la más escueta pero completa caracterización de un videoclip como listado
de rasgos audiovisuales, destacando acertadamente seis características distintivas del
videoclip musical, que se configuran como un mínimo desde el que analizarlo:
- Los vídeos musicales demuestran las características del género musical (el esce-
nario en los videos de heavy y hardrock, aspiración social en el hip-hop...).
- Existe una relación entre letras y visuales. Las letras se representan con imágenes,
ya de modo ilustrativo, de amplificación o de contradicción.
- Existe una relación entre la música y los efectos visuales. El tono y la atmósfera
de lo visual refleja la de la música (con los mismos modos).
- Las exigencias de la discográfica incluyen la necesidad de gran cantidad de pri-
meros planos; el artista puede desarrollar motivos que se repiten a través de su
trabajo (un estilo visual).
- Con frecuencia hay una referencia a la noción de mirada, referencias a objetos
como s, pantallas, escenarios y un gusto voyeurista por el cuerpo femenino.
- A menudo hay referencias intertextuales (a películas, programas de televisión,
música y otros videos).

CORPUS DE ESTUDIO, MUESTRA Y METODOLOGÍA


El presente texto se encuadra en la necesidad de responder a una pregunta de
investigación general: ¿Hay algo parecido a lo que se llama una segunda estética del
videoclip, diversa a la del clip en su inserción televisiva y sus primeros momentos como
un contenido más en la web?
Carol Vernallis (2013) incide en que existe esta segunda etapa de la estética videoclip,
y en la necesidad de realizar estudios que la describan. Algunos acontecimientos han
modificado su narrativa y discurso: la incorporación de macrosites (Vimeo, YouTube), la
irrupción del fan video y la llegada del videoclip interactivo y el web-based. Desde estas
líneas se es consciente de que, con un corpus tan escueto como el de diez videoclips
sería demasiado precipitado pretender responder a la pregunta. Sin embargo, comenzar
con un análisis preliminar se vuelve necesario, como una forma de trabajo previo de
“inmersión cualitativa” (Neuendorf, 2002). Se pretende realizar un análisis comparativo
de diez videoclips de éxito (más visualizaciones en YouTube según Music Video Database
www.imvdb.com), con diez videoclips de tendencia más artística, seleccionados de
algunas de las webs especializadas de videoclips como Pitchfork o Top of the clips.
Todos los ejemplos escogidos son posteriores a 2005, año de nacimiento de YouTube,

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Aproximaciones al estudio de la estética del videoclip musical contemporáneo: un análisis comparativo

Ana Maria Sedeño-Valdellós

hecho que supuso una modificación en las condiciones de difusión de toda clase de
contenido vídeo.
Los videoclips del primer grupo mencionado que serán analizados como muestra
son los siguientes (se indica título y artista):

-Gangnam Style de Psy2


-Baby de Justin Bieber/fet. Ludacris (2010)3
-On the floor de Jennifer López fet. Pitbull 4
-Party Rock Anthem de LMFO5
-Waka Waka de Shakira6
-Love the way you lie de Eminem
-Gentleman de Psy7
-Wrecking Ball de Miley Cyrus8
-Dark Horse de Katy Perry9
-Roar de Katy Parry10

Por otro lado, se eligen diez clips que tienden a una concepción estética o creativa
del videoclip, de una selección de varias webs especializadas ya citadas:

-Mind Mischief de Time Impala11


-Before your very eyes de Atoms for peace12
-Mirror´s Image de The Horrors13
-A Wolf at the door de Radiohead14
-Fjögur Piano de Sigur Ros
-Here it goes again de Ok Go15
-You only live once de The Strokes16
-Parábola de Tool17
-Human de Carpark North18
-1234 de Feist19

2. Se aporta un link a las letras http://www.kpoplyrics.net/psy-gangnam-style-lyrics-english-romanized.


html
3.  http://www.azlyrics.com/lyrics/justinbieber/baby.html
4.  http://www.azlyrics.com/lyrics/jenniferlopez/onthefloor131588.html
5.  http://www.azlyrics.com/lyrics/lmfao/partyrockanthem.html
6.  http://www.azlyrics.com/lyrics/shakira/wakawakathistimeforafrica.html
7.  http://www.fannube.com/2013/04/psy-gentleman-letra-lyrics-espanol-e.html
8.  http://www.azlyrics.com/lyrics/mileycyrus/wreckingball.html
9.  http://www.azlyrics.com/lyrics/katyperry/darkhorse.html
10.  http://www.azlyrics.com/lyrics/katyperry/roar.html
11.  http://www.azlyrics.com/lyrics/tameimpala/mindmischief.html
12.  http://www.azlyrics.com/lyrics/atomsforpeace/beforeyourveryeyes.html
13.  http://www.azlyrics.com/lyrics/horrors/mirrorsimage.html
14.  http://www.azlyrics.com/lyrics/radiohead/awolfatthedoor.html
15.  http://www.azlyrics.com/lyrics/okgo/hereitgoesagain.html
16.  http://www.azlyrics.com/lyrics/strokes/youonlyliveonce.html
17.  http://www.azlyrics.com/lyrics/tool/parabola.html
18.  http://www.lyricsfreak.com/c/carpark+north/human_20215755.html
19.  http://www.azlyrics.com/lyrics/feist/1234.html

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Aproximaciones al estudio de la estética del videoclip musical contemporáneo: un análisis comparativo

Ana Maria Sedeño-Valdellós

A continuación se detallan las variables de análisis, junto a una justificación de su


razón y la explicación de sus categorías:

Tipo de videoclip
En primer lugar, resulta importante apuntar la necesidad de conocer el tipo de
videoclip mayoritariamente empleado por los realizadores y la industria musical, pues
en ello se comprueba parte del imaginario de la música popular: como reunión común
en forma de actuación o concierto (videoclip performance), como experimentación estética
(videoclip conceptual) o generador de historias ficcionales (videoclip narrativo) o mixto
(híbrido de al menos dos categorías).
El videoclip que se describió (Sedeño, 2002) como descriptivo es aquel “videoclip
en el que vemos al cantante o grupo interpretando el tema que da titulo al video, en un
escenario o en cualquier otro lugar (real o virtualmente creado) y también los videoclips
que son realizados a partir de actuaciones en directo o conciertos” (2002, p. 51). En este
caso es necesario decir que se dividen en performance o conceptuales.
El videoclip narrativo es “todo videoclip que contenga al menos un programa nar-
rativo, aunque este sea simple, es decir, aunque no esté formado por diversos programas
narrativos adjuntos o subordinados. El programa narrativo se define como la sucesión de
estados y cambios que se encadenan en al relación de un sujeto y un objeto, la relación
de pasos o cambios de un estado (relación de un sujeto y un objeto a otro)” (SEDEÑO,
2002, p. 65). Por otro lado, los videoclips mixtoss (conceptual/performance o narrativo/
performance) han sido los preferidos para la industria de la música por su capacidad

Presencia de primeros planos


La localización de las secciones en el clip en que se hace hincapié en la figura física
de los miembros del grupo y, en especial del cantante, resulta altamente interesante en
tanto que demuestra la necesidad de un efecto de anclaje sobre determinados momentos/
secciones de la canción que a veces contienen un contenido narrativo, o en ocasiones
únicamente pretenden destacar parte de la letra.

Relación entre el elemento musical y los efectos visuales


Otro de los criterios que creemos importante es la relación entre el elemento
musical y los efectos visuales. Se emplea aquí la categorización de Simeon (1992), que
analiza la relación entre música e imagen de acuerdo a tres niveles de equivalencia: la
correspondencia kinética, la correspondencia sintagmática, y la correspondencia de
contenido.
La correspondencia kinética se refiere a la velocidad de la música en relación a
la velocidad de la acción. Este acuerdo a veces se logra a través del ajuste en un pulso
subyacente, aunque muchas veces dicho pulso común está ausente.
La correspondencia
sintagmática se refiere al modo en el que la segmentación de la música “secunda” la
segmentación del filme. La correspondencia de contenido se refiere a alusiones directas
en la banda visual respecto a lo sonoro (especialmente las letras).

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Aproximaciones al estudio de la estética del videoclip musical contemporáneo: un análisis comparativo

Ana Maria Sedeño-Valdellós

Presencia de objetos como pantallas, espejos, escenarios


Por otro lado, se encuentra la presencia de objetos como pantallas, espejos, escenarios.
Se trata aquí de averiguar si continúan vigentes algunas ideas de Goodwin en torno a
una ciertas tendencias iconográficas del videoclip.

Representación del género musical


Siendo conscientes de que esto daría para una investigación completa, podemos
decir que algunas “tendencias” en la puesta en escena conllevan un seguimiento de
ciertos patrones genéricos musicales. Desde este planteamiento, la aspiración social
(en forma de objetos de lujo o prodigalidad de poder sexual) está referida al rap como
representación social y étnica tal como se ha demostrado en ciertos estudios; la presencia
de escenarios de música en directo/concierto son propias del heavy y el rock duro, las
historias de adolescentes, tramas sentimentales, problemas de identidad… son propias
de las canciones pop. La utilidad de este criterio se encuentra en lo relacionado con
el estudio de cómo la industria musical aborda la creación de imaginarios o, con una
palabra más actual, cómo afronta el storytelling, el discurso que propone a los fans de la
música popular, elemento decisivo en la construcción del negocio de la música.

Relación entre música (letras) y visuales


En el criterio final de relación letras/música, es necesario ver la estructura por
secciones y de contenido. En el primer caso, se revisará si existe una correspondencia
entre las secciones estructurales de la canción (estrofa/estribillo, estrofa/estribillo, puen-
te, estribillo final) y cambios entre modalidades en el video (cuando es un videoclip
mixto, entre performance/conceptual o performance/narrativo), o cambios profundos
(localización...).
Es Andrew Goodwin (1992) el autor que más ha aportado con su diferenciación
entre la ilustración, la amplificación y la disyunción, que describe tres grados en esta
relación. La ilustración se produce cuando “la narrativa visual cuenta la historia de la
letra de la canción” (GOODWIN, 1992, p. 86). En la amplificación, se añaden acciones
visuales que no se encuentran nombradas directamente en la letra. Según el autor la
mayoría de los videoclips se encuentran en esta categoría, pues necesitan construir un
sentido que vaya más allá de lo textual de la canción. En cuanto a la disyunción, se pro-
duce cuando la letra no tiene relación evidente con la imagen o incluso se contradicen:
“cuando el autor alude a un significado de la canción que es diferente a lo que se infiere
por la imagen del vídeo” (1992, p. 88).
Si investigaciones anteriores afirmaban que la letra de la canción no se vuelve ele-
mento decisivo en la ideación y realización de su videoclip (algunas en los años ochenta,
incluso, período de formación del videoclip como formato) y que la ilustración no es el
tipo preferido, parece ineludible conocer si esto sigue siendo así en esta segunda estética
del videoclip.

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Aproximaciones al estudio de la estética del videoclip musical contemporáneo: un análisis comparativo

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RESULTADOS PARCIALES
Tipos de videoclips
En este apartado es necesario hablar de la preeminencia del videoclip mixto,
especialmente en el primer conjunto. La categoría mayoritaria es la del videoclip
performance/conceptual con cinco casos de diez, que sumados a los dos performance/
narrativos vuelven esta opción la principal. En los videoclips con un mayor cuidado
estético (segundo grupo), el rasgo destacable viene de una tendencia a incluir algún
elemento performance, es decir a la hibridación de estas dos categorías (no a su
diferenciación por secciones). Esto ocurre sobre todo en el caso del tema instrumental
de Sigur Ros Fjögur Piano, que se encuentra dentro de una tendencia creciente: la puesta
de escena basada en una coreografía contemporánea. En relación con ella, el performance
humorístico de Here it goes again (en plano secuencia) supone otro ejemplo (célebres son
ya los videoclips de esta banda, siempre en plano secuencia) y el de Feist 1234, bajo la
modalidad en un único plano.
Volviendo a esta tendencia a la hibridación de lo performativo y lo conceptual en una
puesta en escena, ocurre sobre todo gracias a la tecnología de edición digital mediante
la incrustación (You only live once de The Strokes), o bajo la fórmula de la animación en
Before your very eyes (Atom for peaces).

Empleo del primer plano


El uso del primer plano del cantante como recurso de exposición la presencia física
de cuerpo del cantante -o grupo- (y con ello la diferenciación en su actuación como
modo de particularizar su voz) fue eficaz en una primera época televisiva del videoclip,
donde las técnicas disponibles no eran tantas ni los presupuestos tan amplios (en lo que
se refiere a su aplicación a la industria musical). Tomado de la performance en playback
televisiva y el lenguaje audiovisual publicitario, tal acercamiento suponía implicar al
espectador en el espacio de la representación y hacerle experimentar la vivencia directa
del concierto en un formato diferido como el videoclip.
Sin embargo, parece que este empleo ha perdido vigencia. El primer plano se
encuentra ubicado en secciones específicas en algunos casos entre los videoclips del
primer grupo: casi todas son partes performances de clips mixtos y tienden a ser más
abiertos (tienden a plano medio más que a primer plano). Entre este grupo resulta
especialmente subrayable su uso en el caso de artistas femeninas: Katy Perry a lo largo
de todas las secciones de sus videos, Shakira y Jennifer López en grandes primeros
planos durante su performance, Rihanna, encuadrada casi exclusivamente en ellos.
Adicionalmente, el acento como caso debe hacerse en el videoclip de Mile
Cyrus Wrecking Ball. El ajustado primerísimo primer plano por el que se opta en su
parte performance (junto a la alta definición de la fotografía HD y el fondo blanco),
preferentemente en el estribillo, establece una especial lógica de apelación seductora
al espectador. Similar recurso que apela a una autenticidad del discurso supone una
técnica específica del videoclip desde los años de su formación en los ochenta y puede
citarse el célebre videoclip Nothing compares 2 you de Sinnead O´Connor como ejemplo,
imitado en muchas ocasiones por su alto grado de autenticidad, belleza y pregnancia
de la presencia física de la cantante.

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Aproximaciones al estudio de la estética del videoclip musical contemporáneo: un análisis comparativo

Ana Maria Sedeño-Valdellós

Elemento de interrelación música/visuales


Puede comprobarse una tendencia a las relaciones kinéticas y sintagmáticas. La
razón de la primera tiene de nuevo su origen en la importancia, en la puesta en escena,
de la elección coreográfica. Los videoclips no escogidos de IMVDB mantienen esta
puesta en escena que es herencia del cine musical y la programación televisiva. Ellos
aprovechan las proezas técnicas del registro y grabación digital para hacer posible
videoclips como 1234 de Feist, Fjögur Piano o Human.
En cuanto a la relación de contenido, hay que destacar que los casos en los que
aparece se encuentra limitado al título: es decir, que el nombre de la canción tiende a ser
un elemento a representar por el director y/o creadores del videoclip. O se representa
como objeto, o sirve como inspiración en la escenografía donde se desarrollará una
escena o como acción en la que se mueven los personajes.

Presencia de objetos como pantallas, escenarios, espejos...


En el caso de este criterio no se han encontrado casos de uso especial, más que los
meramente narrativos en videoclips de esta tipología, en el primer grupo. En todo caso,
no parece nada reseñable este criterio en las nuevas condiciones del videoclip en la red.

Representación del género musical


La representación del género musical es un asunto complejo en el análisis del clip
musical, especialmente si no se realiza de una manera sistemática y localizada en un
género. A ello hay que unir la dispersión de géneros de la muestra específica, con
algunos casos poco estudiados y no significativos de su género (como en los clips de
Psy, de estilo K-pop).
Algunas tendencias últimas se encuentran en la animación (ya sea gráficos en 3D o
animación tradicional) como recurso en la música indie y alternativo, esto ocurre hasta
en tres casos de diez entre los videoclips del segundo grupo. En estos tres ejemplos,
además, no aparece la figura del grupo en ningún momento (nos referimos a que no
existe una representación fotográfica de ningún miembro de la formación protagonista).
Otros dos clips más comparten este rasgo, aunque no poseen imagen animada. En esto,
puede confirmarse que la música alternativa sigue prefiriendo no incluir una parte
performance en sus clips, algo coherente con la menor valoración que tiene este tipo de
música popular por la fisicidad o exposición del cuerpo de los artistas.
La representación de la música pop, sin embargo, parece mantenerse en una
preferencia sobre la performance, mezclada con una narratividad clásica , como en los
clips Kate Perry y los de ídolos pop como Eminem y Justin Bieber.

Relación entre música y visuales


La modalidad de amplificación resulta predominante en los dos tipos de videoclip,
cómo era previsible. Con frecuencia los realizadores encuentran inspiración en la letra
de la canción y la narrativa anterior de los vídeos del grupo/artista. Este énfasis en
esa frase o grupo de palabras que da nombre a la canción recuerda la necesidad de
aumentar la pregnancia en la mente del espectador, y se sitúa junto a la repetición en
la letra de la canción como técnica de venta o promoción (también es un clásico recurso

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Aproximaciones al estudio de la estética del videoclip musical contemporáneo: un análisis comparativo

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de composición musical). Así, queda demostrado como la letra y el título de la canción


suponen una inspiración para la elección del tipo de videoclip y la ideación de un
discurso/historia del video. Esto resulta especialmente así en los videoclips del primer
grupo: todos ellos suponen una recreación enriquecida de este último y de parte de
letra. La sucesión de escenas que componen el vídeo representan situaciones en torno
al título en las que el grupo (o en su lugar, el cantante o frontman) resulta protagonista.
En el otro extremo hay que subrayar la ausencia de ilustración: esto es, no se opta
por obviar completamente la letra de la canción. Sin embargo, hay que decir que la
ilustración se encuentra definida de manera demasiado vaga por Goodwin: viene a
concretarse en el seguimiento punto a punto de la letra de la canción. La necesidad de
ambigüedad de la música popular desaconseja la elección de esta tipología: como, de
hecho, sigue ocurriendo preferentemente en el videoclip contemporáneo.

CONCLUSIONES
El vídeo musical en esta segunda estética parece estar extremando sus opciones
de realización y montaje básicas, oponiendo estos dos grandes tipos de clips: por un
lado, los performances y mixtos y, por otro, los conceptuales. Entre el primer grupo, tras
una época de especialización por géneros, la música pop y mainstream (que cuenta con
los videoclips más visitados) prefiere los videoclips de tipo mixtos, especialmente los
narrativos/performances, en los que el cantante/artista juega un papel en la trama o
nudo narrativo.
Los videoclips del segundo grupo apuestan por una banda imagen basada en una
amplificación de la propuesta de la letra de tipo conceptual, basada en escenas o cuadros
vivientes, que amplifican el sentido de la letra y título de la canción pero sin llegar a
un discurso narrativo a su manera clásica. Las técnicas de animación de imagen y de
posproducción (aceleraciones, inversiones, retoque de color y fotografía, juego con capas
de composición de imagen, morphing...) también caracterizan este segundo tipo. Frente
a ello, los videoclips del primer conjunto optan por la iconocidad de imagen fotográfica
pura, filmada en HD: la intensa calidad fotográfica, la precisión de la zona enfocada en
la imagen, el perfecto contraste en la colorimetría se ponen al servicio de la exposición
física de los protagonistas -los músicos- y, en gran medida, en la de las artistas femeninas,
a las que se dedican más primeros planos.
Otros criterios parecen volverse innecesarios en la caracterización del clip
contemporáneo, como en el de presencia de espejos, pantallas... Intuimos, sin embargo,
que se necesita un mayor número de videoclips para poder proporcionar resultados
concluyentes en este criterio específico.
En un territorio audiovisual como el del videoclip, tan diverso en sus posibilidades
(opciones estéticas y creativas), condicionamientos (diferencias en sus condiciones
industriales y contextuales) y vínculos con el campo de la música popular, se vuelve
complejo realizar tareas unificadoras de estilos o tendencias, en especial con un corpus
quizás mínimo de la producción anual (por otro lado, completamente desconocida en sus
dimensiones reales). Sin embargo, en este análisis para caracterizar el videoclip musical
contemporáneo, o como se ha denominado, su segunda estética, se han diseñado caminos
que tomar y se han encontrado líneas de desarrollo con que continuar investigándola.

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Aproximaciones al estudio de la estética del videoclip musical contemporáneo: un análisis comparativo

Ana Maria Sedeño-Valdellós

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6053
Human connection Project 2014 e o Haiku expandido:
Vjing e Live-image no Brasil
The human connection project 2014 and the expanded Haiku:
Vjing and Live-image in Brazil
Almir Almas1
C ec i l i a No r i ko Ito Sa i to2

Resumo: O espetáculo audiovisual em formato de cinema expandido/VJing/


live-image, com direção e atuação ao vivo, procurou abordar a poesia japonesa
“haiku” como mote a guiar imagens e sons expandidos em espetáculo híbrido
e multimidiático. Com o título “O apanhar do sonho-tempo”, o espetáculo foi
realizado como parte da programação do Human Connection Project 2014, um
projeto que reuniu pesquisadores de onze universidades brasileiras em parce-
ria com um professor da Universidade de Harvard. No espetáculo, as ações ao
vivo ocorreram simultaneamente à manipulação de imagens e sons projetados
em um espelho d’água com filtros de texturas constituídos pela materialidade
de três peneiras e um recorte de tela de aço. Os elementos aludiam ao garimpo
de diamantes e a “panha” de café no Brasil, remetendo ao universo particular
vivido pelos artistas em suas infâncias, aproximando o universo audiovisual/
cinematográfico do processo de criação conjunto. Assim, esta pesquisa transita
pelos estudos interculturais, pela poesia e pela arte e tecnologia, seguindo a
fundamentação teórica dos estudos da semiótica da cultura, da tradução inter-
semiótica e da transdisciplinaridade. A investigação procura refletir sobre a
questão da hibridização entre mídia, arte e tecnologia e os estudos do disposto
cinema em sua expansão de enunciação e “expansão” dos dispositivos.
Palavras-Chave: Cinema Expandido. Haiku. VJing. Live-Image. Human
Connection Project.

Abstract: The audio visual spectacle in expanded cinema format/VJing/Live-


Image, directed and in live performance, tried to bring the Japanese poetry
“haiku” as a theme to guide images and sounds expanded in hybrid and mul-
timedia show. With the title “Catch the dream-time” the spectacle was held

1.  Prof. Dr. Almir Almas é videoartista, cineasta, VJ, Doutor pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em
Comunicação e Semiótica da PUC-SP, pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos
Audiovisuais e do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo. Foi bolsista no Japão pela ABK/AOTS/MITI-Governo Japonês e Fundação
Japão. Email: alalmas@usp.br
2.  Profa. Dra. Cecilia Noriko Ito Saito é pesquisadora do Centro de Estudos Orientais da PUC-SP. Doutora
pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Concluiu Pós-Doutorado
PNPD/CAPES/UNISO (2014); Pós-Doutorado FAPESP/PUC-SP (2013). Possui livros e artigos publicados
no Brasil e no exterior. Email: cnisaito@gmail.com

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

6054
Human connection Project 2014 e o Haiku expandido: Vjing e Live-image no Brasil

Almir Almas • Cecilia Noriko Ito Saito

as part of the program of the Human Connection Project 2014, a project that
brought together researchers from eleven Brazilian universities in partnership
with a professor at the Harvard University. In this spectacle the live actions took
place simultaneously with the manipulation of images and sounds designed in a
reflecting pool with textures filters consisting of the materiality of three screens
and a steel screen clipping. The elements alluded to the garimpo of diamonds
and the “panying” of Coffee in Brazil, by referring to the particular universe
lived by artists in their childhood, approaching the audiovisual universe /
film of the creative process. Thus, this research transits through intercultural
studies, poetry and art and technology, following the theoretical foundation of
the semiotic of culture, intersemiotic translation and transdisciplinarity. The
research seeks to reflect on the issue of hybridization between media, art and
technology and cinema studies at its enunciation and “expansion” of devices.
Keywords: Expanded Cinema. Haiku. VJing. Live-Image. Human Connection
Project.

INTRODUÇÃO

E SCREVER UM texto a quatro mãos é um exercício de desapego. Principalmente, para


quem anda as voltas constantemente com a afirmação da autoria, seja acadêmica,
seja artística. Feita a ressalva na frase acima, passa-se ao objeto deste texto coletivo.
Trata-se, aqui, não apenas de um objeto fechado, mas, de dois, que juntos se tornam
um. Ou seja, trata-se da ideia e realização do Human Connection Project 2014, e dentro
dele, a apresentação audiovisual “O apanhar do sonho-tempo”. Foi a partir do projeto
de Pós-Doutoramento da Profa. Dra. Cecilia Noriko Ito Saito (bolsista PNPD/CAPES/
UNISO), que o Human Connection Project 2014 foi realizado, pela segunda vez, como
um projeto em rede, em parceria com onze professores de universidades brasileiras
e um professor da Universidade de Harvard. Durante aproximadamente um ano, os
professores elaboraram de um vídeo de curta duração, com certas especificidades e
algumas regras específicas, conforme metodologia pedagógica em desenvolvimento na
Universidade de Harvard pelo professor Shigehisa Kuriyama do East Asian Language
and Civilizations (EALC). O projeto teve início em 2013, no encerramento do primeiro
pós-doutoramento de Cecilia Saito, realizado no Centro de Estudos Orientais da PUC-
SP, supervisionado pela Profa. Dra. Christine Greiner, com apoio da FAPESP, e cuja
apresentação final ocorreu no auditório do CTR ECA USP com a colaboração do Prof.
Dr. Almir Almas e no Museu da Imagem e do Som em São Paulo. Naquela ocasião, o
professor Kuriyama esteve presente na apresentação final e ministrou dois workshops,
abertos ao público, além de participar do “informal meeting”, momento este em que
os integrantes do projeto, vindos de várias regiões do Brasil puderam trocar experi-
ências e debater suas principais questões. Na primeira edição do Human Connection
Project, as imagens básicas foram enviadas pelo professor Kuriyama e selecionadas
pelas professoras Christine Greiner e Cecilia Saito e em seguida encaminhadas aos
professores de cada universidade. Na edição de 2014, as imagens foram elaboradas pela
fotógrafa Profa. Me. Inês Correa, artista convidada, que elaborou a série chamada por

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

6055
Human connection Project 2014 e o Haiku expandido: Vjing e Live-image no Brasil

Almir Almas • Cecilia Noriko Ito Saito

ela de “Overlap” e a partir de tais imagens, os grupos procuraram pensar seus próprios
roteiros, de forma livre, mas considerando algumas regras pré-estabelecidas. Além da
participação presencial na apresentação, a regra previa que as cinco imagens deveriam
aparecer em sua íntegra, em algum momento do vídeo, estabelecendo relação com o
conteúdo apresentado. Apesar das inúmeras questões que rondaram o início do projeto,
principalmente sobre o nexo entre as cinco imagens e os sons, tais questões foram bre-
vemente abordadas no prefácio do livro “Human Connection Project, isolamento social
como inspiração criativa” lançado em 2014 pela Editora Intermeios. No livro, Kuriyama
(2014, p. 14) compara o projeto a um “jogo” e defende que, em se tratando de regras, as
restrições podem favorecer a criatividade, a interação e o aprendizado coletivo.
Na segunda edição do projeto, o tema escolhido foi “Connectivity and Disturbance”,
sugerido pelo supervisor do pós-doutorado Prof. Dr. Paulo Celso da Silva, e
procurou refletir sobre questões como, as espacialidades midiáticas, os distúrbios da
contemporaneidade, além dos temas da cultura japonesa. O som principal foi enviado
via e-mail, uma colaboração do Professor Arturo Blasco, responsável pelo Vallgrassa
Centre Experimental de les artes, Park del Garraf em Barcelona, e o som opcional foi
igualmente uma colaboração enviada via e-mail pelo Prof. Dr. Marco Souza.
Como parte da programação do Human Connection Project 2014, o espetáculo “O
apanhar do sonho-tempo” pode ser pensado como um emaranhado de conexões, uma
espécie de espetáculo em Haiku Expandido, cuja concepção, criação e direção de Almir
Almas (da USP), contou com a parceria da artista e pesquisadora Clélia Mello (da UFSC)
e com a colaboração musical de Carlos Martins (da UNESP). Além dos professores que
pensaram o teor conceitual e estético, outros colaboradores (técnicos e voluntários)
participaram deste labor coletivo. O espetáculo, uma apresentação audiovisual de
live-image e cinema expandido leva o gênero de poesia haiku a uma expansão para o
universo tecnológico, cibernético/digital. O conceito de haiku expandido inscreve este
espetáculo dentro da linha evolutiva dos trabalhos artísticos que misturam poesia e
tecnologia de vídeo, que Almir Almas pesquisa desde o início dos anos 90. A pesquisa
de Almir Almas adentra conceitos que envolvem a hibridização artística e a tradução
intersemiótica, estabelece proximidade entre a poesia japonesa haiku e a linguagem do
vídeo, o que levou, nos anos 90, à origem do termo Videohaiku, no nomear da criação
de uma obra de videopoemas em série. A obra em série Videohaiku se inscreve dentro
do gênero videopoema, investigação que tem no ano 2000, um importante marco em
sua pesquisa com a conclusão do mestrado, defendido no Programa de Estudos Pós-
Graduados em Comunicação e Semiótica, na PUC/SP. Adiante, abordam-se questões
teóricas sobre gêneros artísticos e audiovisuais, os desdobramentos originários da
pesquisa de videohaiku, a conceitualização da criação do namahaiku e a concepção do
espetáculo atual, “O apanhar do sonho-tempo”.
A comunicação com os integrantes do Human Connection Project se deu através
de canais virtuais como: e-mails, websites, redes sociais, SMS e principalmente
via Blog. Na primeira edição foram criados dois websites principais: https://
humanconnectionproject2013.wordpress.com/ e http://www.huconproject.com.br/ e em
o Blog “Redes e Parcerias”: http://hikikomorismos.blogspot.com.br. Além disso, algumas
universidades criaram seus próprios grupos de discussão nas redes sociais e procuraram

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estabelecer diálogo constante ao longo do projeto. O Human Connection Project 2014


ocorreu em duas etapas: a primeira, na Pousada Salve Floresta, em Tapiraí – SP e a
segunda, no auditório do Bloco F da Universidade de Sorocaba, no interior paulista.
Todos os professores participaram do live presentation: UFAM – Profa. Dra. Ítala Clay,
UnB – Prof. Dr. Ronan Alves Pereira, UFBA – Profa. Dra. Gilsamara Moura, UFG – Profa.
Dra. Ana Paula Salles e Prof. Me. Marcel Sousa, USP – Prof. Dr. Almir Almas, UNESP
– Prof. Dr. Carlos José Martins, UFSCAR – Prof. Dr. Hylio Laganá, PUC-SP – Prof. Dr.
Marco Souza e Profa. Dra. Misaki Tanaka, UFSC – Profa. Dra. Clélia Mello, UCS – Profa.
Dra. Magda Bellini, UNISO – com três grupos: Profa. Dra. Alda Romaguera; Profa. Dra.
Monica Martinez e Profa. Dra. Míriam Cristina Silva; Profa. Dra. Tarcyanie Cajueiro,
e apresentaram seus trabalhos conforme previa a programação. O evento contou com
o apoio do East Asian Language and Civilizations da Harvard University, da Japan
Foundation em São Paulo, do CTR ECA USP, do Centro de Estudos Orientais da PUC-
SP, do Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da ECA-USP,
do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da UNISO, da Editora
Intermeios e do Projeto Salve Floresta. Além disso, alguns nomes foram igualmente
importantes para a concretização da obra “O apanhar do sonho-tempo”, dentre eles:
Danilo Baraúna, Marcelo Leite Milk; Marcos Ito, Jeffer de Oliveira, Gilsamara Moura e
dançarinos, Luciane Pugliesi, Carolina Tomé, Juliana Mendonça, Paola Vasquez, Rener
Oliveira, Carmem Machado, Iam Campigotto, Douglas Giudice, Chico Medina Coca e
Guido Agovino.

HAIKU, VÍDEO E GÊNERO ARTÍSTICO


Será preciso, aqui, introduzir uma pequena discussão a respeito de gêneros artísticos.
Em seu livro “A televisão levada a sério”, Arlindo Machado rearticula o conceito de gênero
chamando a atenção para a teoria de Mikhail Bakhtin. Para ele, trata-se da mais aberta e
flexível discussão para o mundo atual, mesmo sendo essa uma análise “dos fenômenos
linguísticos e literários em suas formas impressas e orais” e não especificamente do
audiovisual contemporâneo. Desse modo, Arlindo diz que:
“Para o pensador Russo, gênero é uma força aglutinadora e estabilizadora dentro de uma
determinada linguagem, um certo modo de organizar ideias, meios e recursos expressivos,
suficientemente estratificado numa cultura, de modo a garantir a comunicabilidade dos
produtos e a continuidade dessa forma junto às comunidades futuras. Num certo senti-
do, é o gênero que orienta todo o uso da linguagem no âmbito de um determinado meio,
pois é nele que se manifestam as tendências expressivas mais estáveis e mais organizadas
da evolução de um meio, acumuladas ao longo de várias gerações de comunicadores.”
(MACHADO, 2000, p. 68).

Ao inserir o trabalho da série de Videohaiku como inscrito no gênero videopoema,


adentra-se a esfera de gêneros televisuais, tratados por Arlindo Machado, nesse livro.
Arlindo enumera os gêneros televisuais mais exemplares, tais como: “as formas fundadas
no diálogo, as narrativas seriadas, o telejornal, as transmissões ao vivo, a poesia televisual,
o videoclipe e outras formas musicais” (MACHADO, 2000, p. 71). Para registro, o que é
chamado de poesia televisual pode ser também chamado de videopoema. Por outro lado,

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essa classificação não é estanque e não diz tudo sobre a obra. Arlindo Machado chama
a atenção também para o fato de que “os gêneros são categorias fundamentalmente
mutáveis e heterogêneas (não apenas no sentido de que são diferentes entre si, mas
também no sentido de que cada enunciado pode estar ‘replicando’ muitos gêneros ao
mesmo tempo)” (MACHADO, 2000, p. 71).
A noção de “replicar” (ou “replicabilidade”), colocada por Arlindo Machado no texto
acima, é discutida a partir da noção de Meme (replicador cultural, equivalente ao que o
gene faz na genética) presente na teoria do “Gene Egoísta”, de Richard Dawkins. Ciente
da origem latina de gênero, proveniente de genus/generis (família, espécie), Arlindo não
deixa de chamar a atenção para as palavras gene e genética, originadas do grego génesis
(geração, criação), apontando aí a “inequívoca relação entre o que faz o gênero no meio
semiótico (ou seja, no interior de uma linguagem) e o que faz o gene no meio biológico”
(MACHADO, 2000, p. 69). O problema na teoria de Dawkins, segundo Arlindo, é que
na cultura não são os enunciados que são “imitados” diretamente, e sim as “estruturas
abstratas, arranjos sintáticos, modos de selecionar e combinar”; sendo, portanto, a teoria
dos gêneros de Mikhail Bakhtin mais precisa para se dar conta do conceito de replicante
cultural.
Tanto na aplicação ao Videohaiku, quanto no desenvolvimento posterior, de haiku ao
vivo (Namahaiku) – a ser tratado posteriormente – e haiku expandido, o conceito de gênero
é pensado sem a preocupação quanto ao fechamento da obra em uma categorização
estática. Gênero é entendido aqui no contexto de sua diversidade, e, principalmente,
diante do hibridismo em que as obras contemporâneas se apresentam. Dessa forma, o
espetáculo de cinema expandido/live-image e haiku expandido “O apanhar do sonho-
tempo” pode ser percebido como um processo de hibridização e de transcriação
intersemiótica, na mesma linha evolutiva apontada pelo trabalho Videohaiku, que se
iniciou em 1990. Conforme dito à página 193, no artigo Videohaiku, publicado no livro/
anais do XI Encontro Nacional de Professores Universitários de Língua, Literatura e
Cultura Japonesa e I Encontro de Estudos Japoneses, no ano 2000,
“Desde o primeiro instante, isto é, desde o momento em que optamos por experimentar
uma forma poética casada ao vídeo, nossa intenção era fazer determinadas escolhas que nos
levassem às experimentações radicais em videoarte com leis e parâmetros da poesia escrita.
Ou seja, buscávamos um processo de experimentação e pesquisa em forma de transposição
de linguagens, ou recriação, ou ‘transcriação’” (ROSA, 2000A. p.193).

O que se realiza é um processo de hibridização e de tradução intersemiótica, que


se reconfiguram, em contaminações mútuas, as sintaxes; e se misturam os gêneros
audiovisuais e literários.
“Nessa transposição da estrutura do haiku para o suporte vídeo, a proposta foi de criar
um conjunto de haiku imagético. Partindo de uma ideia simples de criar poesia em vídeo,
chegamos à complexidade maior de tentar levar para o novo suporte os atributos e meca-
nismos do suporte de saída. Para isso foram necessários, claro, estudos e pesquisas que
nos aprofundassem os conhecimentos que tínhamos tanto da sintaxe de um quanto da do
outro” (ROSA, Almir Antonio, 2000. p. 195).

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Em “O apanhar do sonho-tempo”, a experimentação de transposição entre signos


se torna ainda mais radical e a hibridização dos meios avança na direção de expansão
de duas expressões de arte (ou, de mídia) essencialmente de linhas tênues entre os
gêneros, o cinema e a televisão. Especificamente, esgarçam-se nessa expansão, os limites
de linguagem, técnica, poética e de dispositivos do cinema e da televisão, através de
procedimentos de montagem, de processos e sistemas digitais e do uso do tempo presente
e do ao vivo.

O APANHAR DO SONHO –TEMPO


A concepção do espetáculo “O apanhar do sonho-tempo” traz conceitos de
hibridizações, tanto de gêneros e linguagem, quanto do uso dos dispositivos técnicos
referencias de cinema e televisão. Além disso, a mistura das culturas do Brasil e do Japão
é a linha que move e traz a poética e a narrativa da obra. Os diretores Almir Almas e
Clélia Mello contaram com a participação de Carlos José Martins na trilha sonora ao
vivo. As imagens são projetadas em um espelho d’água e em recortes de três telas de
peneiras de aço.

Figura 1. “O apanhar do sonho-tempo” detalhes da apresentação. Foto: Inês Correa.

As duas primeiras peneiras redondas carregavam em seu sentido semântico


as referências à infância dos diretores, pois são objetos que se usam no garimpo de
diamantes e na “panha” de café em Minas Gerais e pelos colonos japoneses na “panha” de
café no interior do Estado do Paraná. A linha que amarra a narrativa e a poética da obra
é um haiku criado por Almir Almas em 1994, em Tokyo, no Japão, em língua japonesa, e
que foi publicado em 1997 no livro “Haiku”, da Coleção Poesia Orbital, organizada por
Marcelo Dolabela, em Belo Horizonte. O poema fala do primeiro sonho do ano (o kigo
do haiku: hatsuyume) e da saudade de Estrela do Sul, terra natal do autor.
Conforme comentado anteriormente, ao realizar a operação de hibridização e de
tradução intersemiótica entre gêneros e linguagem (a poesia japonesa haiku – haikai,

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anteriormente em sua origem – e a videoarte e videopoema), algumas regras do suporte


de partida foram aplicadas ao suporte de chegada. O uso da palavra-código (Kigo) é
uma dentre essas regras.
“Há de se pensar, além da métrica, na obrigatoriedade do uso da palavra-código (kigo, em
japonês), que é uma referência à estação do ano e à natureza. O kigo não é só uma referência
às estações do ano, mas também uma referência a fenômenos naturais, os quais são par-
ticulares de uma dada estação. “A palavra Kigo em japonês é formada pelos ideogramas
‘ki’ (estação – do ano) e ‘go’ (palavra/fala). “O uso do kigo é uma obrigatoriedade de desde
o começo do haikai, e tem sobrevivido todos esses anos. O curioso é que o tanka e o waka,
de onde o haiku surgiu, não possuem essa obrigatoriedade. Esse uso é, na verdade, o que
diferencia o haikai e haiku das outras formas poéticas curtas. De fato, essa diferenciação foi
a principal chave para que o haikai se constituísse enquanto tal e ganhasse independência
poética” (ROSA, 2000B, p. 49).

Ao se falar da concepção do espetáculo “O apanhar do sonho-tempo” faz-se


necessária a referência ao kigo. Conforme comentado, a linha mestra da narrativa é o
poema elaborado por Almir Almas em 1994, no Japão. O kigo desse poema é hatsuyume,
que quer dizer, literalmente, o primeiro sonho do ano. Então, toda a narrativa do
espetáculo se baseia na construção onírica de um personagem/poeta, que fala de seu
sonho e das imagens que ele – o sonho – lhe suscita. O kigo, – ou a palavra que enuncia
o tempo – é também o que leva o poeta à sua terra natal, pois no seu primeiro sonho
do ano, o poeta sonha com as ladeiras que se fazem presente s em sua cidade e com
sua mãe, o que traz, assim, marcas de sua infância. Cria-se, assim, a relação entre a
condição geral, do tempo e do espaço – da imutabilidade – à percepção do instantâneo, ao
momento inesperado – da transformação –, e juntam-se o caráter universal ao particular,
e se constroem sentido e percepção poética. No espetáculo, essas marcas da infância
e o que o sonho lhe provoca aparecem nas imagens e nos dispositivos aparadores das
imagens projetadas. É como se esses dispositivos aparadores – as peneiras – apanhassem
o sonho e o tempo que compõem o poema. E, claro, as peneiras, ao mesmo tempo em
que são dispositivos físicos que interferem na fisicalidade da imagem projetada, atuam,
metaforicamente, como elementos de métrica do poema.
No haiku, a métrica é tratada como a forma que o poema se inscreve, na divisão de
seus dezessetes sons (ou sílabas) em arranjos de 5/7/5 (ou em um único verso ou em
três versos), ou de como ele se distribui nos três momentos do haikai/haiku.
“A métrica nos três versos obedece o metro 5/7/5 – (em japonês fala-se: go-shichi-go). Essa
contagem obedece também aquele quadro do gojûonzu (cinquenta sons), do qual falamos no
começo deste capítulo. Dessa forma, temos 5 sons (ou sílabas japonesas) no primeiro verso,
7 sons no segundo e 5 no terceiro”. (ROSA, 2000B. p. 34)

Acrescenta-se à divisão 5/7/5, da métrica, o uso do kireji (ou corte ou cesura), que
é a forma como o poeta faz cortes em sua métrica, dividindo-a em secções ou para dar
ênfase a um dos três momentos do haikai/haiku, e com o que cria o ritmo que o poema
apresenta.

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“A contagem métrica também nos leva a uma outra regra do haiku, a qual está ligada, que é o
uso de um corte ou cesura. Essa cesura vai ocorrer ou no final da primeira ou segunda linha.
O nome desse procedimento é kireji, palavra formada pelos ideogramas kiru (cortar) e ji (letra).
Na verdade, o kireji dá a pausa no haiku, dividindo-o sintaticamente em secções. Assim, o 5/7/5,
pode ser (5)/(7-5) ou (5-7)/(5), ou mesmo o (5-7-5). Ou então, o kireji é usado simplesmente para
dar ênfase, e nesse caso, aparece também no final da terceira linha.” (ROSA, 2000B. p. 46)

Dessa forma, os dispositivos aparadores de exibição das imagens – as peneiras e


o espelho d’água – interferem na fisicalidade da imagem projetada e são recursos de
transposição da métrica do poema para a métrica audiovisual e espacial.

Figura 2. “O Apanhar do Sonho-Tempo”: Haiku expandido. Foto: Inês Correa.

O espetáculo “O apanhar do sonho-tempo” foi apresentado em duas noites, nos dias


16 e 17 de novembro, na Pousada Salve Floresta, em Tapiraí, SP, como parte da progra-
mação do Human Connection Project 2014 anunciado por meio digital através do Blog:
hikikomorismos.blogspot.com.br e por meio de catálogo impresso. Um fato que corro-
borou o conceito de “ao vivo” e da mutabilidade do espetáculo foi que, após a primeira
apresentação, a equipe de dança da Universidade Federal da Bahia dirigida pela Profa.
Dra. Gilsamara Moura, e a da Universidade de Sorocaba com a professora Carmem
Machado decidiram participar no espetáculo com uma performance e interagindo na
apresentação seguinte. Assim, os movimentos conjuntos resultaram em um roteiro de
participação coletiva, possibilitando que os dançarinos adentrassem a cena local, total-
mente nus e transformando seus corpos dançantes em telas móveis que refletiam as
imagens projetadas sobre os mesmos. A performance, conforme aponta Glusberg (1987,
p. 76) “procura transformar o corpo em um signo, em um veículo significante” como um
operador de modificação de códigos. A plateia acompanhou os instantes de engenho-
sidade produzida pelos artistas, como “produtos do engenho e da arte como a própria
poesia” (ARAÚJO, 1999, p. 85), conforme lembrava Haroldo de Campos em entrevista a
Ricardo Araújo, quando comentava sobre a ação do computador nos trabalhos artísticos.

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Figura 2. Participação do grupo da UFBA e da UNISO na apresentação.


Foto: Inês Correa.

Figura 3. Público acompanha o espetáculo. Pousada Salve Floresta, Tapiraí, SP.


Foto: Inês Correa.

Arlindo Machado (MACHADO, 2007, p.172) lembra que “no cinema, a


tridimensionalidade do espaço representado é algo que o espectador pode apenas
presumir, mas não experimentar” ou seja, o espectador não consegue alterar a imagem
com os seus movimentos. Além disso, autor afirma que a hegemonia da câmera obscura
separou o ato de ver do corpo físico do observador e assim, o dispositivo acaba impedindo
“pela sua própria arquitetura, que a posição física do observador possa fazer parte da
representação” (MACHADO, 2007, p.176). No espetáculo “O apanhar do sonho-tempo”
um tipo de realidade virtual de novas potencialidades aponta possibilidades para que o
espectador adentre a cena em imersão sensorial como um “sujeito agenciador” que move

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e desloca a imagem; a exemplo do momento em que os dançarinos interagem com seus


corpos em movimentos e ações resignificando as imagens projetadas no espelho d’água.
A tecnologia do ponto de vista coletivo procura aproximar o sensível e o inteligível
para conquistar a indeterminação da máquina. Os artistas desejam realizar obras que
explorem a percepção e a dimensão espaço-temporal, estabelecendo como condição de
intertextualidade o inacabamento da obra, a multiplicidade pela interferência do outro,
e a intertextualidade, requer obras inacabadas e uma abertura dialógica.
O espetáculo audiovisual “O apanhar do sonho-tempo” em seu formato de cinema
expandido/VJing/live-image e Haiku Expandido, se apresenta como evolução natural
da pesquisa com poesia japonesa e vídeo, e dá seguimento também à variação do
videohaiku, chamada Namahaiku, que Almir Almas desenvolveu e criou junto com
Daniel Seda e Cheli Urban, a partir de 2006. O espetáculo Namahaiku, apresentado em
várias ocasiões e verões, é uma intervenção poética audiovisual, que mistura de cinema,
videoarte, teatro de sombras, projeções, áudio ao vivo, performances em cena, cheiros e
sensações, e que leva ao paroxismo o conceito de expansão de conteúdos e interfaces. É
um espetáculo multissensorial, que apresenta um desdobramento de gênero haiku em
interfaces digitais no espaço público urbano e no tempo. Esse desdobramento realiza
em espaço público urbano uma atualização desse gênero poético, e faz emergir suas
principais características, como a contemplação, a leveza, a simplicidade, o particular e
o universal. Neologismo criado por Almir Almas, a partir da língua japonesa, a palavra
“Namahaiku” é a junção das palavras nama (vivo/ao vivo) e haiku (gênero de poesia
japonesa). Pode-se ver o Namahaiku (nama + haiku) como o poema haiku expandido, ao
vivo, em um ambiente sensorial, na criação de experiência poética sensorial, em que o uso
de meios audiovisuais e de interfaces tecnológicas, coloca-o na linha das experimentações
e teorizações propositivas do cinema experimental, cinema de exposição e cinema
expandido. É, nesse sentido, continuidade de trabalhos que os autores desenvolvem, e
que são frutos de processos de estudos em cultura japonesa e tecnologia de ponta, nos
quais a pesquisa de linguagem, gêneros e dispositivos são bases para a hibridização e
o intercâmbio entre linguagens, técnicas e estéticas.

CONCLUSÃO
Como dito, na concepção do espetáculo “O apanhar do sonho-tempo”, bem como
na dos espetáculos de namahaiku, os conceitos de uso de linguagens, gêneros e dos
dispositivos e aparatos técnicos referencias de cinema e televisão são a base para a
criação de uma nova semiose estética e poética. Características do princípio da televisão,
como o a inscrição do tempo presente, a montagem/edição em tempo real, os cortes (ou
escolhas) a partir de diversas fontes de imagens e sons, o registro do acontecimento e sua
exibição simultaneamente, são assimiladas e fazem parte da condição para a existência
do espetáculo da forma como ele é concebido.
Ou seja, trazendo para conceitos atuais do fazer cinematográfico, pelas características
de transposição entre signos e de hibridização artística de linguagem e gêneros, pelo uso
do vídeo, da videoarte, das interfaces computacionais e de sistemas cibernéticos, essa
pesquisa, desde o videohaiku, aponta para a expansão do cinema, tanto em seus dis-
positivos, quanto nos procedimentos de linguagem e estética. Essa visão de um cinema

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Almir Almas • Cecilia Noriko Ito Saito

em expansão aparece no estudo seminal de Gene Youngblood, “Expanded Cinema”,


de 1970 (YOUNGBLOOD, 1970). Nele, o autor identifica que as fronteiras tradicionais
do cinema e de sua tela estariam sendo rompidas e estendidas no sentido da criação
de um todo orgânico na absorção das imagens. Pode-se dizer que o conceito de cinema
expandido identifica aquilo que leva o cineasta a extrapolar os códigos e as linguagens
cinematográficas de suas concepções originais, para fazer um cinema que não é mais
cinema, no sentido tradicional do termo, e que leva o espectador a vivenciar situações
em que todos os seus sentidos são envolvidos para a fruição de um efeito estético. O
espetáculo “O apanhar do sonho-tempo”, bem como as obras anteriores (videohaiku e
namahaiku) trabalham também no sentido da expansão da consciência do espectador,
principalmente na mistura que se faz entre estética, poética e dispositivos tecnológicos.
Neste sentido, entende-se essas experimentações como espetáculo de cinema expandido,
principalmente, em função de que elas buscam, através de rupturas e de hibridização
entre artes e linguagens, levar os códigos existentes a se esgarçar em seu limite para a
expressão de sua arte e a percepção de tempos e espaços e de visão do mundo fora do
estabelecido.
O Human Connect Project, idealizado pela Profa. Dra. Cecilia Noriko Ito Saito,
coloca a si a missão de uma continuidade da rede formada a partir das duas edições
realizadas, em 2013 e 2014. A constituição de rede é de fundamental importância para a
metodologia pedagógica de geração de conhecimento, e a continuidade dela é um desa-
fio, não só para idealizadora do Pós-Doc, quanto para o Professor Shigehisa Kuriyama
e para as onze universidades brasileiras e a Universidade de Havard, todos envolvidos
nesse processo.

REFERÊNCIAS
Araújo, Ricardo. Poesia visual, vídeo poesia. São Paulo: Perspectiva, 1999.
Dawkins, Richard. O gene egoísta. Belo Horizonte: Itatiaia, 1979.
Greiner, Christine; Saito, Cecilia Noriko Ito. Human Connection Project. Isolamento social como
inspiração coletiva. São Paulo: Editora Intermeios, 2014.
Glusberg, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987.
Youngblood, Gene. Expanded Cinema. New York/USA: P. Dutton & Co., Inc., 1970
Lotman, I.; Uspenskii, B.; Ivanov, V. Ensaios de semiótica soviética (trad. V. Navas e S. T.
Menezes). Lisboa: Horizontes.
Machado, Arlindo. O sujeito na tela. Modos de Enunciação no cinema e no ciberespaço. São Paulo:
Editora Paulus, 2007.
Machado, Arlindo. A televisão levada a sério. São Paulo: Editora SENAC, São Paulo, 2000.
Rosa, Almir Antonio. Videohaiku, In: Anais: XI Encontro Nacional de Professores Universitários
de Língua, Literatura e Cultura Japonesa - I Encontro de Estudos Japoneses. Brasília: UNB,
setembro de ano 2000. p.193-197).
Rosa, Almir Antonio. Videohaiku. Dissertação de Mestrado em Comunicação e Semiótica. São
Paulo: Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, 2000.

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Da cultura da portabilidade à cultura do acesso:
a reordenação do mercado de mídia sonora
From the portability culture to the access culture:
the rearrangement of sound media market
Marcelo Kischinhevsky1

Resumo: Este artigo enfoca o mercado de consumo on-line de conteúdos


musicais, segmento dos negócios digitais que articula as indústrias fonográfica
e radiofônica e entra em rota de colisão com o segmento que apostou, nos anos
2000, nos downloads (pagos ou não). Parte-se da hipótese de que, no consumo
de mídia sonora, estamos vivendo a transição de uma cultura da portabilidade
para uma cultura do acesso.
Palavras-Chave: Comunicação. Rádio. Música. Cultura da portabilidade. Cultura
do acesso.

Abstract: This article focuses on the online music content’s consumer market, a
digital business segment that articulates phonographic and radio industries and
enters on a collision course with the segment that bet, in the 2000s, on the down-
loads (paid or not). It starts with the hypothesis that, in the consumption of sound
media, we are living the transition from a portability culture to an access culture.
Keywords: Communication. Radio. Music. Portability culture. Access culture.

STREAMING: MERCADO DE ÁUDIO DIGITAL REDESENHADO

S ERVIÇOS DE streaming vêm catalisando, nos últimos anos, o redesenho das etapas
de produção, circulação e consumo de mídia sonora em nível planetário. Conteúdos
musicais ganham ubiquidade, e conteúdos radiofônicos superam a fugacidade
das transmissões em ondas hertzianas, com a possibilidade do armazenamento e da
recuperação de áudios, facilmente acessíveis aos internautas.
Em todo o mundo, de acordo com o Digital Report da International Federation
of Phonographic Industry (IFPI), em 2013, havia 28 milhões de usuários pagantes de
serviços de streaming de música como Spotify, Deezer, Rdio, KKBox e WiMP, uma
expansão de 40% frente a 2012. Em 2013, a receita das empresas do segmento cresceu
51,3%, superando pela primeira vez a barreira de US$ 1 bilhão. Com isso, a indústria
fonográfica obteve 27% de seu faturamento em royalties pagos por estes serviços, contra
14% no ano anterior2.

1.  Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e do Departamento de Jornalismo da


Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCS/UERJ), doutor em
Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Email: marcelok@uerj.br.
2.  Dados disponíveis em http://www.ifpi.org/downloads/Digital-Music-Report-2014.pdf. Última consulta:
9/1/2015.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

6065
Da cultura da portabilidade à cultura do acesso: a reordenação do mercado de mídia sonora

Marcelo Kischinhevsky

A indústria da música vem se reorganizando em torno de um complexo midiático,


em que novos atores, dos mais diversos portes, ganham destaque em cena. Com o declínio
das vendas físicas, as companhias discográficas passaram a investir em novos modelos
de negócios. As receitas no segmento digital cresceram 22,39% em 2013, segundo dados
da Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABPD), elevando sua participação no
faturamento do setor de 28,37% para 36,46% – o que não foi suficiente para evitar uma
retração de 4,75% das vendas combinadas físicas e digitais naquele ano3.
Neste artigo, busca-se enfocar especificamente o mercado de consumo de conteúdos
musicais franqueado pelos grandes portais internacionais, entendendo-se que este novo
segmento dos negócios digitais que articula as indústrias fonográfica e radiofônica entra
em rota de colisão com o segmento que apostou, nos anos 2000, nos downloads (pagos
ou não) de arquivos sonoros. Parte significativa da publicidade dos novos serviços de
streaming apela justamente para a comodidade de se acessar músicas de forma ilimitada
sem a necessidade de baixar áudios indesejados ou vírus de computador (DE MARCHI,
2014). Outro fator de atratividade é o preço: o download de um único álbum em serviços
como iTunes custa mais do que um mês de assinatura em grandes serviços de streaming,
que proporcionam acesso irrestrito a milhões de fonogramas.
Parte-se da hipótese de que, no consumo de mídia sonora, estamos vivendo a
transição de uma cultura da portabilidade (KISCHINHEVSKY, 2009) para uma cultura
do acesso, em que novos serviços, gratuitos ou por assinatura, oferecem um fluxo
aparentemente infinito de arquivos digitais de áudio e, eventualmente, assumem o
papel de redes sociais on-line.
A reflexão proposta é um desdobramento de projeto desenvolvido no âmbito do
Grupo de Pesquisa Mediações e Interações Radiofônicas, cadastrado no Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e liderado pelo autor. O
grupo está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (PPGCOM/UERJ) e reúne doutores, mestres, mestrandos,
graduados e graduandos, além de professores das Universidades Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS), Federal Fluminense (UFF) e Federal de Ouro Preto (UFOP).
Antes de aprofundar a discussão sobre os serviços de streaming, contudo, cabe
explicitar de que cultura se fala aqui.

MUDANÇA CULTURAL
Poucas palavras foram objeto de tantos abusos quanto “cultura”. Espera-se que, aqui,
não se cometam excessos no recurso à expressão, que permeia grande parte dos estudos
em ciências sociais e humanas desde a primeira metade do século XX. Na maioria dos
casos, prevalece certo determinismo, fruto de leituras apressadas de Marx, em que o
cultural aparece sempre subsumido pelo econômico.

3.  O crescimento foi puxado pelos downloads pagos, que tiveram alta de 87,15%. No mesmo período,
a expansão da receita com serviços de streaming de áudio e vídeo remunerados por publicidade e/ou
assinatura foi de 1,56%. A fatia dos serviços de streaming, no entanto, responde por R$ 59,6 milhões, ou
27,4% das receitas totais com o segmento digital no Brasil, contra R$ 44,4 milhões, ou 21,3%, dos serviços
de download pago. Dados disponíveis em http://www.abpd.org.br/noticias_internas.asp?noticia=245.
Última consulta: 9/1/2015.

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Da cultura da portabilidade à cultura do acesso: a reordenação do mercado de mídia sonora

Marcelo Kischinhevsky

Um dos primeiros a tentar escapar a esta visão determinista foi Raymond Williams,
para quem a cultura deveria ser vista como todo um modo de vida, e não como algo
determinado pela base econômica (infraestrutura), nem como a mera reprodução da
Cultura com C maiúsculo das classes dominantes. Interessado como outros pioneiros
dos estudos culturais, como Richard Hoggart e E. P. Thompson na cultura das classes
trabalhadoras, Williams entende as práticas do cotidiano destas populações como
realizações culturais criativas. Particularmente, interessam ao autor os mecanismos
que possibilitam a mudança cultural:
Dominante, residual e emergente são três categorias que Raymond Williams utiliza para
descrever elementos de diferentes temporalidades e origens que configuram qualquer pro-
cesso cultural. [...]
A discussão [...] aparece recorrentemente nas obras de Williams, e sempre como um modo de
analisar o processo de incorporação tão fundamental para compreendermos como valores
e sentidos do hegemônico são ativamente vividos e configuram práticas e expectativas de
sujeitos sociais em situações sociais concretas e, assim, constroem uma cultura como cultura
hegemônica. Por outro lado, a discussão sobre esses elementos evidencia a preocupação de
Williams com o processo ativo de produção de sentido na cultura e com seu esforço, ao
mesmo tempo teórico e político, de valorizar a mudança cultural (GOMES, 2011, pp. 43-44)

Ana Carolina Escosteguy, por sua vez, destaca o trabalho de Hoggart, que teria
desencadeado uma “virada cultural”, a partir da percepção de que qualquer ordem
econômica só funciona plenamente se for constituída por uma dimensão simbólica,
ou seja, que “o ‘econômico’ é operacionalizado ou se torna ‘real’ dentro da dimensão
cultural” (ESCOSTEGUY, 2012, p. 15).
Já João Freire Filho lembra que a emergência dos estudos culturais ocorre em meio
à proliferação de pesquisas mais ou menos apocalípticas sobre a nova ordem capitalista
do pós-guerra, da “sociedade do consumo capitaneada pelos meios de comunicação
de massa” (FREIRE FILHO, 2007, p. 20). O autor alerta que a noção de cultura, nas
últimas décadas, passou a ganhar uma centralidade inesperada nas dinâmicas sociais,
tornando-se chave para investigação de práticas às quais se atribui resistência de grupos
em posição subalterna. Daí viria o interesse crescente pelas mobilizações sociais nos
estudos contemporâneos de Comunicação e de áreas afins.
A partir do momento em que o conceito de cultura é atrelado expressamente pelos cultural
studies a uma problemática de poder, torna-se inevitável a interrogação sobre dominações e
resistências – seja ela formulada sob os auspícios da obra de Gramsci ou sob o impacto mais
recente dos escritos de Certeau e Foucault. Na realidade, tais contendas constituem a própria
essência do protocolo analítico do novo campo de investigação, cujo objetivo principal é,
em poucas palavras, esmiuçar (por meio de análises textuais e abordagens etnográficas) de
que maneiras os recursos culturais funcionam tanto para forjar a aceitação do status quo e
a dominação social quanto para habilitar e encorajar os estratos subordinados a resistir à
opressão e a contestar ideologias e estruturas de poder conservadoras. A partir dos anos
1980, a segunda parte desta equação passou a ser cada vez mais enfatizada, configurando-se
uma tendência de celebração extrema da capacidade reagente dos grupos inferiorizados
[...] (FREIRE FILHO, op. cit. p. 21)

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Da cultura da portabilidade à cultura do acesso: a reordenação do mercado de mídia sonora

Marcelo Kischinhevsky

Essa percepção da cultura como parte essencial de uma equação das dinâmicas
sociais foi herdada, mais recentemente, por pesquisadores filiados à chamada ciber-
cultura. Proliferaram conceitos como cultura da interface (JOHNSON, 2001), cultura
da virtualidade real (CASTELLS, 1999), cultura da mobilidade (SANTAELLA, 2003),
cultura da convergência (JENKINS, 2008), cultura do compartilhamento (ZANETTI,
2011) e cultura da conexão (JENKINS, GREEN e FORD, 2014). Muitas vezes, as práticas
culturais representadas nestes trabalhos são abordadas como se pairassem acima de
contextos econômicos e políticos. Tratadas de forma totalizante, acabam oferecendo
perspectivas reducionistas dos processos sociais mobilizados nas mudanças culturais
– não raro, atribuindo ao desenvolvimento tecnológico um indevido papel de protago-
nismo e silenciando completamente sobre as relações de poder que se constituem no
próprio ato do consumo.
Em outro trabalho (KISCHINHEVSKY, 2009), eu mesmo caí na tentação, ao propor
a noção de “cultura da portabilidade” para entender as novas práticas interacionais
que emergiam com a proliferação de tocadores multimídia, como iPods. Olhando-se
em perspectiva, no entanto, o conceito parece permanecer de pé, ao oferecer pistas para
compreender a reordenação do mercado de mídia sonora naquele período. Quando
aquele artigo foi escrito, o dispositivo da Apple havia superado, em abril de 2007, a
barreira de 100 milhões de unidades vendidas em todo o mundo. Pouco depois, em
setembro de 2010, bateria a marca de 275 milhões4. No mesmo período, o consumo de
mídia sonora seria impulsionado também pela chegada ao mercado de telefones móveis
inteligentes, processo que continua se acirrando e relegando a segundo plano os MP3
players tão populares em meados dos anos 2000. As vendas de smartphones superaram
as de celulares convencionais pela primeira vez no último trimestre de 2013, totalizando
967,7 milhões de unidades naquele ano, contra 680,1 milhões no ano anterior, um aumento
de 42,3%, segundo levantamento do Gartner Group5.
A partir da segunda metade dos anos 1990, formatos de compressão de áudio
digital como MP3, Ogg Vorbis e FLAC possibilitaram a circulação de conteúdos
sonoros em larga escala, não apenas na rede mundial de computadores, mas também
em dispositivos como tocadores multimídia e telefones móveis. Os arquivos passaram
a ser baixados em diversos serviços de compartilhamento (peer-to-peer ou de-pessoa-a-
pessoa) e entraram em cena novas modalidades de radiodifusão, como as web rádios e o
podcasting. Vale lembrar que o consumo on-line, sobretudo nos anos 2000, era altamente
instável, dependendo das condições de acesso à internet, em geral precárias em países
periféricos como o Brasil – situação que persiste ainda hoje, mesmo em grandes centros
urbanos. Neste cenário, o download assumiu certa centralidade como prática cultural,
a ponto de a Apple, fabricante do iPod, abocanhar cerca de 70% do mercado de música
baixada legalmente via internet6. Gisela Castro (2005) percebia naquele período uma

4.  O iPod foi lançado em janeiro de 2001, oferecendo “1 mil músicas no seu bolso” (no original: “1,000 songs
in your pocket”). Outras informações disponíveis em: https://www.apple.com/pr/products/ipodhistory/.
Consultado em: 12/3/2015.
5.  As vendas totais de telefones celulares atingiram a incrível marca de 1,806 bilhão de unidades em
2013, contra 1,746 bilhão no ano anterior. Disponível em http://www.gartner.com/newsroom/id/2665715.
Consultado em: 12/3/2015.
6.  Cf. “Apple supera a marca de 100 milhões de iPods vendidos no mundo”, reportagem da AFP reproduzida

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Da cultura da portabilidade à cultura do acesso: a reordenação do mercado de mídia sonora

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“onipresença dos telefones celulares e dos fones de ouvido dos mais diversos aparelhos
portáteis que já fazem parte do vestuário urbano atual”.
Claro, a cultura da portabilidade de arquivos sonoros não nasce com o iPod ou
com o podcasting. Com mais de um século de história, remontaria às vitrolas portáteis,
inicialmente acionadas por manivela (STERNE, 2003), aos rádios a pilha viabilizados
pelo transístor (FERRARETTO, 2014) e a dispositivos como o Walkman da Sony (DU
GAY et al., 1997) – quando o consumidor, munido de fitas cassete, viu sua capacidade
de edição de áudio potencializada de forma inédita.
A ubiquidade das redes em banda larga, no entanto, vem mudando o cenário nos
últimos anos, particularmente em centros urbanos onde há investimentos das grandes
operadoras de telefonia móvel e TV a cabo. Políticas de criminalização do download,
articuladas pela indústria fonográfica e acolhidas pela Justiça em diversos países cen-
trais para o mercado da música, e a disseminação de pragas de computador, como vírus,
spywares e adwares, também ajudaram a desestimular a busca de áudio em serviços
P2P, empurrando os internautas para serviços de download pagos ou de streaming.
Com o colapso das vendas físicas de discos, o formato digital tem sido visto pelas
gravadoras como tábua de salvação. Em nível mundial, este segmento cresceu 4,3% em
2013, atingindo faturamento de US$ 5,9 bilhões, o que representa 39% das vendas globais.
No mesmo período, para se ter ideia, as vendas totais da indústria fonográfica totalizaram
US$ 15 bilhões, uma queda de 3,9%, segundo dados da IFPI (op. cit.). Downloads pagos
permanecem a principal fonte de receitas, com 67% do total, mas em cinco anos houve
saltos expressivos no faturamento com assinaturas (de 6%, em 2008, para 19%, em 2013)
e veiculação de publicidade em serviços de streaming (de 3% para 8% do bolo).
No Brasil, onde o download pago jamais liderou de forma inconteste, o mercado da
música digital é mais pulverizado. Segundo dados da ABPD (op. cit.), o faturamento – no
início fortemente concentrado em ringtones – encontrava-se em 2013 dividido de forma
bastante equilibrada, entre downloads pagos (21,3%), venda de fonogramas por telefonia
móvel (26%), serviços de streaming (25,3%) e streaming de vídeos remunerados (27,4%).
É preciso destacar, ainda, que nem sempre os serviços de streaming revertem royalties
para artistas e companhias discográficas, como veremos a seguir.
Muitos portais de grande tráfego seguem a cartilha dos antigos serviços de
compartilhamento, como Napster e KaZaA, que alegam não ter controle sobre os
conteúdos que circulam em suas redes – responsabilidade que seria dos internautas.
Evidentemente, essa postura está sujeita a questionamentos judiciais, como os enfrentados
pelo Grooveshark. O serviço foi processado por todas as grandes gravadoras de discos,
que reclamaram até US$ 17 bilhões em indenizações por violações de direitos autorais,
e teve seu aplicativo retirado da App Store e da Google Play, bem como do Facebook7.

no UOL em 9/4/2007, disponível em http://noticias.uol.com.br/ultnot/afp/2007/04/09/ult1806u5842.jhtm.


Consultado em: 12/3/2015.
7.  Cf., entre outros, “Universal Music Sues Music Streaming Service for 100,000 Illegal Uploads”, Graeme
McMillan, Time, 21/11/2011, disponível em: http://techland.time.com/2011/11/21/universal-music-sues-
music-streaming-service-for-100000-illegal-uploads/, e “Now Grooveshark is being sued by EMI Music”,
também de Graeme McMillan, Time, 6/1/2012, disponível em: http://techland.time.com/2012/01/06/now-
grooveshark-is-being-sued-by-emi-music/. Última consulta: 10/3/2014. Em 6/8/2013, o serviço anunciou
acordo de licenciamento com a EMI, pondo fim a uma das batalhas judiciais que enfrentava.

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Da cultura da portabilidade à cultura do acesso: a reordenação do mercado de mídia sonora

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SERVIÇOS DE RÁDIO SOCIAL


Serviços de streaming já foram entendidos das mais diversas formas: como
plataformas sociais de música (AMARAL, 2007), como sistemas telemáticos que simulam
estações de rádio (LEÃO e PRADO, 2007), como mídias sociais de base radiofônica ou,
abreviadamente, serviços de rádio social (KISCHINHEVSKY e CAMPOS, 2014). São espaços
híbridos, que escapam às tentativas de classificação mais generalizantes. Operam não
apenas nas etapas de distribuição, circulação e consumo de conteúdos musicais e/ou
radiofônicos, mas também oferecem, em alguns casos, a possibilidade de produção de
áudio digital, de expressão artística, social e/ou cultural.
Para Ignácio Gallego Pérez, estes serviços estariam assumindo um novo lugar na
indústria, atuando na prescrição musical, ao lado de tradicionais mediadores, como a
emissora de rádio em ondas hertzianas, o crítico especializado e o produtor responsável
pelas trilhas sonoras da TV aberta. De acordo com o pesquisador espanhol, a música
estaria cada vez mais vinculada a aplicações da chamada web 2.0, abrangendo sites de
redes sociais (como Facebook e MySpace), redes sociais on-line voltadas para a música
(Last.fm), sites de recomendação (Pandora), serviços musicais via streaming (Spotify),
redes de compartilhamento de arquivos, além de fóruns, blogs e fotologs, entre outros
espaços (GALLEGO PÉREZ, 2011).
Em pesquisa exploratória (KISCHINHEVSKY e CAMPOS, op. cit.), investigou-se
em que medida os serviços de rádio social de maior audiência em nível internacional e
com operações no Brasil estabelecem arquiteturas de interação mais ou menos abertas,
assim como hipertextualidade, multimidialidade, possibilidades de personalização e
capacidade de memória.
É possível detectar, nestes serviços, uma enorme diversidade de modelos de negócios
e possibilidades comunicacionais. Muitos, em especial aqueles desenhados com ênfase
no streaming de música, são cuidadosamente planejados para manter o internauta
em terreno conhecido, construindo perfis de usuários que permitem a estes sistemas
sugerir-lhes fonogramas – segundo algoritmos classificatórios mais ou menos eficientes
– supostamente compatíveis com seu gosto pessoal.
Cabe, assim, demarcar dois polos em torno dos quais estes serviços vêm se alinhando:
um construído em torno de acordos comerciais com as companhias discográficas, acordos
que levam à disponibilidade de um catálogo on-line de 37 milhões de fonogramas,
segundo os dados da IFPI; outro articulado em torno de discursos de empoderamento
típicos da web 2.0 e que vendem valores como compartilhamento, interatividade e
amplificação do alcance da voz de artistas e consumidores.
Em torno do primeiro polo, está a maioria dos artistas que integram o cast das
grandes gravadoras multinacionais, que veem nos serviços de streaming uma poderosa
ferramenta de promoção, divulgação e circulação de fonogramas – não é coincidência
que, em serviços como Deezer e Rdio, há “estações de rádio” mantidas por gravadoras
como Universal Music, Warner, Polydor e Som Livre e por artistas dos elencos destes
selos.
No segundo polo, figuram sobretudo artistas independentes, que buscam visibilidade
para seus trabalhos, muitas vezes abrindo mão dos já ínfimos royalties que incidem
sobre a execução de músicas on-line, tais como SoundCloud e Grooveshark, além de

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Da cultura da portabilidade à cultura do acesso: a reordenação do mercado de mídia sonora

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serviços de rádio social que têm como carro-chefe conteúdos radiojornalísticos, como
Radiotube e Radioteca.net.
Apesar da enorme diversidade entre estes novos atores do mercado de mídia sonora,
há um ponto em comum: todos franqueiam acesso a fonogramas em volume inédito,
proporcionando múltiplas práticas interacionais aos internautas e disputando atenção
com os serviços que apostam no download (pago ou não). Quase todos os serviços
de streaming vêm desenvolvendo versões para dispositivos móveis que redesenham
o consumo de mídia sonora, esvaziando a prática de se baixar os arquivos para o
computador e depois transferi-los para tocadores multimídia ou telefones móveis.
Aplicativos para celulares e tablets permitem a rápida leitura de bibliotecas gigantescas,
mesmo sem conexão à internet ou à rede de dados da companhia telefônica.
Estudo realizado pela Edison Research e pela Triton Digital, em 2014, nos Estados
Unidos, maior mercado consumidor de mídia sonora, revela que 47% dos americanos,
o equivalente a 124 milhões de pessoas, ouviram rádio on-line no mês anterior à entre-
vista, contra 45% em 2013. O percentual vem crescendo desde 2007, quando era de 20%
da população com mais de 12 anos de idade. Na faixa até 24 anos de idade, o hábito
chega a 75% dos americanos. O telefone celular, acoplado ao painel do automóvel, pro-
porcionou acesso ao rádio on-line para 26% dos entrevistados – 43% na faixa até 24 anos
de idade. Para os ouvintes, não há distinção entre emissoras AM e FM e serviços de
rádio social, que já desfrutam de extraordinário recall. A marca Pandora é reconhecida
por 70% dos americanos, seguida por iHeartRadio (48%), iTunes Radio (47%, um feito
extraordinário para um serviço lançado apenas em setembro do ano anterior), Rhapsody
(40%) e Spotify (28%).
E a entrada de novos atores, oferecendo serviços por assinatura ou de modelo
freemium, como iTunes Radio, Beats Music (ambos da Apple), YouTube, Songza, Google
Play Music (os três da Google), deve ampliar ainda mais a concorrência no segmento
ao longo dos próximos anos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Há sinais claros de que estamos vivendo um momento de transição rumo a uma
cultura do acesso, um momento em que os consumidores de mídia sonora tendem a fruir
serviços de streaming (pagos ou não), em vez de baixar arquivos digitais da internet
e transferi-los para tocadores multimídia ou telefones móveis. Uma evidência dessa
mudança cultural é o esforço de grandes serviços de download pago, como iTunes, para
desenvolver novos aplicativos que possibilitem a fruição de música em fluxo (no caso,
o iTunes Radio), bem como a interoperabilidade entre os mais diversos dispositivos
(iCloud, por exemplo, que franqueia acesso a bibliotecas crescentemente volumosas
através da tecnologia de computação em nuvem – cloud computing).
Não se pretende afirmar, evidentemente, que uma cultura (do acesso) substitui
a outra (da portabilidade). Seria mais apropriado afirmar que ambas coexistem e
se articulam em diversos níveis. A emergência de uma cultura do acesso deve ser
relacionada ao estágio atual do processo de digitalização das indústrias midiáticas, que
possibilita novas formas de consumo e práticas interacionais sonoras, estimuladas por
uma maior praticidade.

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Da cultura da portabilidade à cultura do acesso: a reordenação do mercado de mídia sonora

Marcelo Kischinhevsky

Não é, contudo, o fim para o podcasting e para as web rádios, modalidades de


radiodifusão que, a exemplo do rádio em ondas hertzianas, cada vez mais marcam
presença também em serviços de rádio social, potencializando a circulação de seus
conteúdos através de um intrincado emaranhado de sites de redes sociais.
Por fim, cabe a ressalva de que a cultura do acesso não traz, por si, maior diversidade
de conteúdos sonoros para os internautas. Os serviços analisados em pesquisa
exploratória em andamento são, na maioria dos casos, extremamente agressivos do
ponto de vista comercial, fechando acordos país a país com companhias discográficas
e impondo políticas de remuneração irrisórias aos artistas. Em vista disso, o acesso
a catálogos de milhões de fonogramas acaba em geral condicionado por interesses
empresariais, alijando artistas do cast de pequenas gravadoras independentes ou que
não aceitem os contratos draconianos oferecidos.
Voltando-se o olhar para o controle societário destes serviços, percebe-se ainda
que há uma crescente concentração empresarial no segmento, em que boa parte dos
principais atores está vinculada a conglomerados de mídia e entretenimento, como
Apple, Google Inc. e Facebook. O potencial de geração do chamado big data para estas
companhias, diante do tráfego de milhões de internautas por seus portais, ainda está
por ser devidamente dimensionado.
Se se quer entender em que medida a fruição de arquivos sonoros digitais fortalece
(ou contesta) a sociedade do consumo, é preciso mergulhar nas práticas interacionais
cotidianas, conciliando aportes da etnografia e análises de representações sociais. Só
assim será possível aferir a construção de identidade e de vínculos entre internautas e
artistas, comunicadores, marcas e serviços.
Este é apenas um primeiro esforço de reflexão sobre a reconfiguração do mercado
de mídia sonora diante do crescimento exponencial dos serviços de streaming. Outras
pesquisas de campo estão sendo empreendidas para cartografar as mudanças culturais
que moldam o consumo de áudio digital na contemporaneidade e que parecem decisivas
para o futuro das indústrias fonográfica e radiofônica.

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Da cultura da portabilidade à cultura do acesso: a reordenação do mercado de mídia sonora

Marcelo Kischinhevsky

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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

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Centros de mídia e inovação:
um estudo sobre o mercado audiovisual
brasileiro contemporâneo
Media centers and innovation:
A study of contemporary Brazilian broadcasting
João M assa rolo 1
D a r i o M e s q u i ta 2
R a m o n M a rl e t 3

Resumo: Neste trabalho sobre os centros de mídia e inovação do entretenimento


audiovisual brasileiro, pretende-se problematizar o termo ‘capital de mídia’ como
referência para elaboração de uma cartografia do centro midiático de São Paulo.
Palavras-Chave: Audiovisual. Capital de mídia. Séries. Inovação

Abstract: In this research about the media centers and innovation of the Brazilian
audiovisual entertainment, we intend to discuss the term ‘media capital’ as a
reference for drawing up a map of the media center of São Paulo.
Keyword: Audiovisual. Media capital.Series. Innovation

INTRODUÇÃO

A INDÚSTRIA AUDIOVISUAL é um empreendimento no qual a dinâmica de gestão


e de inovação, assim como de organização e de estruturação sofre mudanças ao
longo do tempo em função de evoluções e transformações tecnológicas, econô-
micas, sociais e culturais que afetam simultaneamente a produção, a distribuição e o
consumo do entretenimento audiovisual. Além disso, a cadeia de valor também passa
por alterações nos processos em curso de globalização, no qual a incorporação e a fusão
de grandes conglomerados de mídia promovem novas modelagens de negócios, aumen-
tando as alternativas para o consumo de conteu’do audiovisual. No caso específico do
mercado televisivo, por exemplo, o acesso aos conteúdos sob demanda afetou o próprio
modelo de negócios da televisão -agora os espectadores consomem seus conteúdos sem
precisarem obedecer à antiga grade de programação. O usuário pode escolher entre
assistir a um filme no cinema, televisão ou internet (Netflix e iTunes, entre outros ser-
viços de streaming), ou pode ainda criar seu próprio conteúdo e propagá-lo via sistemas
alternativos de valor. A proliferação de meios contribui para a modicidade de preços,
agrega valor à experiência dos indivíduos com o conteúdo e promove a expansão do
mercado, que alcança pu’blicos mais amplos e de forma mais conveniente, passando

1.  Doutor; UFSCar; e-mail: massarolo@terra.com.br


2.  Mestre: UFSCar: e-mail: dario.mirg@gmail.com
3. Mestrando, USP; e-mail: ramonmarlet@gmail.com

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

6074
Centros de mídia e inovação: um estudo sobre o mercado audiovisual brasileiro contemporâneo

João Massarolo • Dario Mesquita • Ramon Marlet

de um modelo industrial vertical com visão corporativa, para um modelo com visão
horizontal e articulado em redes interconectadas. Essas estratégias inovadoras que “cir-
culam pela internet e pelas redes sociais flexibilizam hábitos de consumo e fornecem
novos desafios para a colocação de produtos que não necessariamente devem seguir os
modelos de negócio do consumo de massa” (BIZERRIL, 2012, p.153).
Neste contexto, os centros de mídia expandem o campo das indústrias de conte-
údos e criam novos nichos de mercado, onde antes havia apenas fluxos de produtos
massificados. As relações entre ‘centro’ e ‘periferia’ se tornam mais complexas do que
era no ambiente midiático do século XX, promovendo um maior fluxo de trocas, ao
mesmo tempo em que formatos e canais de mídia se tornaram aparentemente invisíveis
diante da ubiquidade do conteúdo nas redes. A circulação de conteúdos pelas redes
predomina sobre produtos industriais do tradicional modelo centralizador, no qual o
discurso hegemônico se fazia sentir nas regiões mais periféricas do planeta. Esse mode-
lo unidirecional relegava as questões locais ao segundo plano ou subordinava-as aos
interesses de grandes corporações, mas essa situação começa a sofrer mudanças devido
ao aumento da velocidade e do volume de informações de caráter multi-direcional que
transitam entre os principais centros midiáticos contemporâneos.
Essas mudanças tecnológicas, comunicacionais e culturais afetam não somente a
modelagem de negócios que fornece sustentação aos tradicionais conglomerados de
mídia, mas o próprio ambiente de mídia, provocando mudanças significativas na produ-
ção e consumo de conteúdo audiovisual. Este complexo cenário faz com que as empresas
brasileiras produtoras de conteúdo procurem se adaptar às novas lógicas do merca-
do audiovisual, cujas demandam por inovação é cada vez mais crescente. O Governo
Federal, através do Ministério das Comunicações, por exemplo, criou as Diretrizes para
uma Poli’tica Nacional para Conteu’dos Digitais Criativos4 com objetivo de integrar e estimu-
lar o potencial econômico das cadeias produtivas dos setores de audiovisual como forma
de desenvolver e fortalecer os segmentos produtores de conteu’dos criativos no Brasil.
Este artigo trata dos estudos realizados na primeira etapa do projeto de pesquisa
5
em andamento sobre os centros de mídia e inovação do entretenimento audiovisual
brasileiro. Nesta primeira etapa, as discussões concentraram-se em torno da noção de
capital de mídia visando um maior entendimento da cidade de São Paulo como cen-
tro midiático estratégico para o desenvolvimento do setor audiovisual brasileiro. Na
segunda etapa de pesquisa, pretende-se elaborar indicadores para análises da produ-
ção de séries e webséries para diferentes plataformas com o objetivo de realizar uma
cartografia da produção audiovisual realizada no centro midiático de São Paulo. Os
resultados alcançados nos estudos sobre o centro midiático de São Paulo serão utiliza-
dos, posteriormente, como parâmetro para as análises que serão desenvolvidas sobre
outros centros midiáticos brasileiros 6.

4.  Fonte: <http://www.mc.gov.br/doc-crs/doc_download/>. Acesso em: março/2015.


5. Projeto de pesquisa - Laboratório de pesquisa sobre produção seriada audiovisual brasileira para plataforma
transmídia, do Grupo de Estudos sobre Mídias Interativas em Imagem e Som, da UFSCar, aprovado pelo
CTI/CNPQ/MEC/CAPES no. 22/2014 - Ciências Humanas e Sociais.
6. Porto digital de Recife; Parque tecnológico de Salvador; Fapergs no Rio Grande do Sul; Lab Rio Criativo
no Rio de Janeiro, entre outros centros em Belém/Pará; João Pessoa/Paraíba e Aracaju/Sergipe.

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Centros de mídia e inovação: um estudo sobre o mercado audiovisual brasileiro contemporâneo

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CULTURA MAINSTREAM
A cultura mainstream é uma questão importante para a indústria audiovisual e
o seu estudo tem sido desenvolvido pelo campo da comunicação através da criação
de indicadores que permitam destacar e analisar os fatores que contribuem de forma
decisiva para que algumas cidades espalhadas ao redor do mundo sejam consideradas
como capital de mídia. Essas cidades erguidas em lugares estratégicos para a geopolítica
regional são importantes pólos de desenvolvimento econômico localizado, atraindo
sucessivas levas de imigrantes de diferentes regiões, fazendo com que a diversidade
cultural seja uma das principais marcas de sua vitalidade. A capitalização destas cidades
ofereceu condições para a criação de infra-estruturas midiáticas que impulsionaram
a circulação de conteúdos globais, principalmente os produtos dos conglomerados de
mídia tradicional (cinema e televisão, entre outras). Neste aspecto, o termo capital de
mídia se refere a cidades com passaporte global, que se tornaram importantes centros
da produção midiática globalizada.
Cidades que são centros de financeiros de produção e distribuição de produtos audiovisuais,
que apresentam suas próprias lógicas que não correspondem necessariamente aos interesses
políticos do Estado-nação. Nelas, forças complexas interagem, como a cultural, econômica
e a política. (CURTIN, 2003, p. 205)

Na cultura mainstream, estratégias econômicas e estéticas dos blockbusters high


concept exploram as possibilidades oferecidas pelos grandes conglomerados de mídia.
Devido aos altos custos de produção, assim como de propaganda e marketing, esses
filmes encenam um texto global para interagir com o mercado de entretenimento glo-
balizado. Para Waytt (1994), essa proposta estética e narrativa atende às demandas das
novas estratégias de marketing e de venda ao longo de uma cadeia midiática integrada
que aprofunda a sinergia entre os conglomerados de mídia e os mercados de entrete-
nimento. Deste modo, apesar de o cinema vivenciar um processo de interdependência
midiática, ainda é fundamental para gerar novas possibilidades de negócios no setor
de e entretenimento, materializando sistematicamente imaginários de platéias globais
e provocando deste modo, tensões entre uma afirmação de identidade local e/ou regio-
nal, bem como nacional e os processos de subjetivação postos em prática pelos fluxos
mundiais de conteúdo.
Desde os anos 1990, as grandes corporações controlam a produção e a circulação dos
conteúdos em escala global, incluindo os mercados de sala de cinema, home vídeo, TV
paga, Pay-per-view e de videogames, entre outros. Normalmente, esses produtos chegam
ao mercado brasileiro praticamente sem nenhuma barreira de defesa da produção brasi-
leira propriamente dita. Mesmo em mercados altamente regulados, como a China, por
exemplo, a presença das empresas transnacionais do audiovisual tem gerado ruídos na
diplomacia estadunidense. André Gatti (2015), no artigo “1110 Tons de cinza: notas sobre
a ocupação do mercado e a mexicanização dos circuitos de salas de cinema no Brasil”,
recorda que no caso do blockbusters high concept baseado em histórias em quadrinhos de
super-heróis: Homem de Ferro 3, “os chineses resolveram não enviar uma parte dos lucros
que o filme tinha gerado por ocasião do seu lançamento na China”.

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Neste sentido, pesquisas recentes sobre as dinâmicas econômicas, tecnológicas e cul-


turais de produção audiovisual apontam para mudanças na cartografia global, na qual os
contramodelos emergentes se impõem diante do seu público local e/ou regional, mas, de
outro lado, os produtos na linha blockbusters high concept norte-americano são dominan-
tes no plano mundial. Frédéric Martel (2012), ao estudar diversos pólos de produção de
entretenimento tanto no ocidente quanto no oriente, conclui dizendo que nos anos 1980
foram se constituindo novos centros de produção e distribuição de conteúdo audiovisual
global. Segundo o autor, países como a China, a Índia, o México e, inclusive, o Brasil, são
contramodelos emergentes que fazem parte das novas redes de circulação de conteúdos
com uma dimensão cultural e econômica de peso próprio diante do entretenimento norte-
-americano e, em menor escala, da cultura européia. Estes países são protagonistas de
trocas culturais regulares, mas que ainda não são “medidas pelas estatísticas do Banco
Mundial e do FMI, são ignoradas pelas das UNESCO [...] e a Organização Mundial do
Comércio as apresenta com outras categorias de produtos e serviços” (MARTEL, 2012, p. 15).
Nos anos 1990, segundo Keane (2006), os estudos sobre “centros periféricos” come-
çavam a tentar a compreender as produções audiovisuais (filmes, telenovelas e dramas
televisivos) fora dos grandes eixos produtores (Estados Unidos e países Europeus).
Porém, esses estudos compreendiam que essas produções alcançavam apenas regiões
próximas a esses centros periféricos, sob um contexto de diáspora de comunidades sob
condições culturais semelhantes, e ainda abordando a presença de um imperialismo cul-
tural dominante. Eram pesquisas que compreendiam “empresários e redes de televisão
que a partir das periferias se voltavam para o exterior utilizando conexões emergentes
com audiências deslocadas que ansiavam por conteúdo de seu país de origem” (KEANE,
2006, p. 838). Para o autor, o termo “periférico” perdeu relevância nos estudos de mídia
por uma série de fatores: a vivacidade do mercado da televisão via satélite e à cabo;
o crescimento da co-produção internacional; a intensificação das aquisições e fusões
transnacionais; a troca de gêneros e formatos entre diferentes mercados; e o crescimento
de consumo de mídia pela classe média em países em emergentes.
Praticamente, todos os países do mundo produzem e consomem conteúdo audiovi-
sual e essa diversidade cultural condiciona o surgimento de posturas anti-hegemônicas
de caráter globalizante. Neste contexto, a noção globalização das mídias deixa de ser
compreendida como uma força unidirecional, sinônimo de homogeneização cultural ou
de dominação cultural do ocidente sobre as culturas periféricas do planeta. As dinâmicas
globais de mídias resultam de negociações complexas que se sobrepõem, convergem e
colidem entre si, o que rompe com abordagens holísticas para a cultura e a sociedade
(CURTIN, 2003).
A televisão, com seus formatos e produtos narrativos, é vista especialmente como
parte importante de um processo multi-direcional de conteúdos, como afirma Curtin
(2004, p. 270), “embora as exportações de Hollywood continuem a dominar o mercado
de entretenimento mundial, os debates sobre fluxos transnacionais de televisão foram
além da tese imperialista da mídia, para se concentrar em deliberações sobre a globa-
lização”. Os produtos televisivos fazem parte de acordos estabelecidos tanto no âmbito
local e regional, quanto nacional e global, que operam dinamicamente em várias esferas:
econômica, institucional e tecnológica.

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Centros de mídia e inovação: um estudo sobre o mercado audiovisual brasileiro contemporâneo

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CAPITAL DE MÍDIA E OS FLUXOS DE CONTEÚDO AUDIOVISUAL


Na perspectiva da convergência midiática, o fluxo de conteúdo audiovisual por
espaços geográficos diversos (Ásia, Europa e América Latina, entre outros) não é mais
controlado apenas pela lógica do broadcast dos grandes conglomerados de mídia. A
entrada no mercado de empresas de telecomunicações se constitui num dos principais
temas da convergência ao produzir alterações significativas nos esquemas tradicionais da
indústria cultural. Jenkins (2008) denomina esse fenômeno típico da cultura participativa
como convergência corporativa e convergência alternativa, onde conflitos surgem devido
à possibilidade do público participar e interferir numa obra, mesmo que seja contra os
interesses das corporações de mídia.
A associação entre a telecomunicação e a lógica de broadcast evidencia que as relações
da indústria cultural com o audiovisual é apenas um dos aspectos das ‘indústrias de
conteúdos’. Atualmente, são comercializados uma gama de serviços, conteúdos, formatos
e propriedades intelectuais. Mesmo a imagem de uma ‘indústria’ como engrenagem da
economia global das mídias se encontra em questionamento, pois, não se trata apenas
de “indústrias, mas também de governos em busca de soft power7 e de microempresas
atrás de inovações nas mídias e na criação desmaterializada” (MARTEL, 2012, p.15).
O novo padrão de fluxos multilaterais de conteúdos audiovisuais como observa o
pesquisador norte-americano Michael Curtin (2003), não envolve necessariamente trocas
entre Estados soberanos, mas de localidades específicas, cidades que se tornaram cen-
tros de finanças, produção e distribuição de programas de televisão, em especial. São
cidades como que se estabelecem como capitais de mídia, ou seja, espaços geográficos
que funcionam como centros de mídia para atividade da economia criativa audiovisu-
al, que apresentam suas próprias lógicas que não correspondem necessariamente aos
interesses políticos do Estado-nação. Essas capitais de mídia, a exemplo de Hong Kong
e São Paulo, são locais de mediação, onde forças complexas interagem, como a cultural,
economia e a política. Segundo Curtin, esses fluxos “emanam de cidades particulares,
que se tornam centros de finanças, produção e distribuição” (CURTIN, 2003, p. 203) de
produtos audiovisuais, especialmente obras ficcionais seriadas voltadas para televisão,
em diferentes plataformas, que atendem audiências internas e externas.
Um centro de mídia como Hong Kong, um dos principais focos de análise do autor,
possui um grande volume de produções audiovisuais voltadas para televisão, visando
não apenas atender uma audiência local, mas também outras cidades como Taipei,
Beijing, Amsterdam, Vancouver, Bangkok, dentre outros. “O nó central de toda essa
atividade é Hong Kong, mas as lógicas que motivam o desenvolvimento do meio não são
regidas principalmente pelos interesses do Estado chinês” (CURTIN, 2003, p. 204), mas
pelo fluxo cultural e econômico que circunda o espaço urbano, configurado como centro
de mídia. Em contraste, cidades como Beijing possuem grande parte de sua produção
capitaneada pelos interesses do Estado chinês, mas inserida dentro do contexto global.
A constituição desses espaços se dá mediante fatores confluentes à formação e
estruturação econômica de uma cidade, como uma geografia que os coloque perto de

7. Termo do campo das relações internacionais, criado por Joseph Nye em 1990, sobre estratégias culturais
usado para influenciar questões internacional na diplomacia (hard power) (TRUNKOS, 2013).

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Centros de mídia e inovação: um estudo sobre o mercado audiovisual brasileiro contemporâneo

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centros de poder ou que ajudem a sustentar um grande fluxo comercial – como um cen-
tro portuário ou ferroviário, ou atividades como o turismo – fatores que permitem não
apenas o fluxo e a troca econômica, mas também de valores culturais diversos. Curtin
(2007) classifica as capitais de mídias em duas principais categorias: a) comerciais, com
destaque para a lógica de migração criativa e cultural, dinâmica econômica e produção
voltada para a audiência; b) oficiais, com o controle e financiamento do Estado; produções
ideológicas orientadas por uma lógica cultural fechada, e economicamente marcada
pelo monopólio da comunicação e pela forte burocratização das trocas comerciais. O
Autor define como principais fatores para o estabelecimento dessas categorias a inte-
ração de três princípios: (1) acumulação; (2) fluxos migratórios criativos; e (3) variáveis
socioculturais.
Tendo em mente as questões geográficas citadas anteriormente, que permitem o fluxo
econômico de uma região, tais condições viabilizam a acumulação de recursos necessários
para investimentos para os mais diversos setores. De um lado, um centro econômico deve
concentrar e integrar diversas frentes de trabalho a fim de reduzir tempo e recursos para
manufatura de produtos e, por outro, aprimorar a distribuição a fim de atender outras
regiões. Tal dinâmica, segundo Curtin (2007), estabelece a acumulação como primeiro
passo para constituição de uma economia dinâmica e atrativa, que não apenas retém
recursos, mas também se foca em atender outras regiões para expansão do capital.
Toda essa dinâmica que provém da acumulação, contribui para construção de clus-
ters de empresas dos diversos setores, focados na inovação de produtos, serviços e de
distribuição. Para as capitais de mídia, tal demanda requer que elas sejam atendidas
por uma mão de obra qualificada. As cidades precisam atrair fluxos migratórios criativos,
que as abasteçam com pessoas motivadas para um trabalho tanto de inovação estética,
quanto de mercado, “ainda que o casamento entre arte e comércio nunca seja fácil”
(CURTIN, 2007, p. 14).
Mas o maior desafio, como aponta o autor, não é apenas atrair pessoas criativas,
mas mantê-las por valores que não são puramente econômicos, como boas condições de
trabalho e boa qualidade de vida na cidade. Se bem sucedido nesses quesitos, uma capital
de mídia é capaz de se conduzir para a construção de uma forte rede entre comunidades
criativas de diversos interesses econômicos e culturais, não sendo restrito apenas ao
audiovisual, mas abrangendo setores voltados a explorar a cultural e as propriedades
intelectuais criadas nesse ambiente.
Por trás desses princípios ainda há outras forças que envolvem variáveis sociocultu-
rais, que envolvem instituições nacionais e locais com papéis relevantes nas dinâmicas
de produção e especial. O Estado, por exemplo, é um ator importante na regulamen-
tação ou no financiamento da comunicação, podendo criar incentivos para produção
e exportação de produtos culturais de interesse nacional ou regional, criar barreiras
ou cotas para empresas de comunicação ou obras estrangeiras no país, além de deter-
minar a legislação de concessões de rádio e televisão e as normas de dizem respeito a
propriedades intelectuais.
Além da primeira classificação entre comercial e oficial, e os princípios para formação
das capitais de mídias, Curtin (2003) estabelece um segundo eixo de categorização que

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Centros de mídia e inovação: um estudo sobre o mercado audiovisual brasileiro contemporâneo

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aponta qualidades referentes aos processos comerciais e institucionais estabelecidos: a)


formal, em que as negociações são vinculadas a processos formais e burocráticos bem
claros; b) informal, quando não um processo de negociação formalmente estabelecido,
prevalecendo acordos abertos. O gráfico 1, representa alguns exemplos de centros de
mídias alinhados às classificações estabelecidas por Curtin (2014).

Gráfico 1 – Centros de Mídia classificados segundo Curtin (2014)

É interessante observar que as dinâmicas abordadas por Curtin são indicadores


de um modelo mainstream. Ou seja, trata-se de conglomerados de mídia tradicionais
de grande porte com um modelo de produção industrial de conteúdos que opera nos
espaços do mercado asiático, tal como as grandes redes de televisão que exportam
novelas e formatos de programas para países em desenvolvimento na América Latina,
e assim por diante.
Estas análises não compreendem a existência de outras forças – algo justificável
dentro do recorte do autor. Para Steemers (2014) essas outras forças são superficialmente
de cunho tecnológico e permitem a criação de novas formas de distribuição de conteúdos
em multiplataformas e janelas. Porém, as atuais mudanças que serviços como o YouTube,
Netflix, e aplicativos de segunda tela, abrangem “tendências de longa data, como a
comercialização e a desregulamentação, que influenciam as circunstâncias em que o
conteúdo é produzido, distribuído, e recebidos” (STEEMERS, 2014, p. 2).
Neste aspecto, paralelamente as análises em curso sobre as capitais de mídias,
existem novas questões a serem discutidas, que pedem para uma releitura do próprio
conceito. Se imaginarmos um contexto em que convergência de mídias vem se colocando
cada vez mais como um modelo de tecnológico, econômico, produtivo e consumo, os
limites e setores entre os meios de comunicação e os serviços de telecomunicações são

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Centros de mídia e inovação: um estudo sobre o mercado audiovisual brasileiro contemporâneo

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cada vez mais irrelevantes, prevalecendo a lógica em rede. Se os cenários das mídias estão
configurando-se como rede, as cidades tornam-se os nós de onde pulsam os conteúdos
de mídia. Talvez, as cidades sejam algo mais ambíguo e transformador do que uma
idéia de capital (que remete a institucionalização, setorização, geografia estabelecida,
autoridade política, etc.). Compreende-se que um centro de mídia é uma capital de
mídia, mas inserida na lógica da convergência e as análises realizadas da cidade de São
Paulo como um centro midiático, permeado por outros centros brasileiros, convergem
para uma rede inovadora de produção e distribuição de conteúdo audiovisual para
multiplataformas.

CENTRO MIDIÁTICO DE SÃO PAULO: UMA INTRODUÇÃO


Historicamente, ocorre uma concentração dos setores de mídia ligados aos grandes
conglomerados de comunicação na região Sudeste, especialmente no Estado de São
Paulo. Essa realidade promove a concentração dos capitais financeiros e comunidades
criativas do setor nessa região. Esse modelo de negócio centralizado favorece a criação
e o desenvolvimento de produtos audiovisuais com traços identitários relacionados
à cultural local e/ou regional. No entanto, o acelerado desenvolvimento tecnolo’gico
produz uma série de inovações no tradicional modelo de negócio do audiovisual, alte-
rando a lógica de operação do próprio mercado.A cidade de São Paulo, cosmopolita de
formação e multicultural por vocação, acolheu ao longo de sua história inúmera levas
de imigrantes que marcaram a paisagem da cidade com traços da cultura portuguesa,
espanhola, italiana, alemã, japonesa, argentina e boliviana, entre outras.
A cidade de São Paulo opera tais mudanças reconhecíveis no início dos anos de 1950, onde
começa a haver a transformação de sua malha territorial. Naquele momento, os espaços da
cidade já concentram uma significativa imigração estrangeira e começara, também, a ganhar
contornos de um maior crescimento com a emigração interna (CASTRO & BACCEGA, 2009,
pp.172).

Esse processo de mescla/fusão de diferentes culturas num mesmo espaço acaba por
gerar um novo modelo de cultura marcado pela hibridização dessas manifestações, cujas
práticas multiculturais são possibilitadas justamente por estes encontros (CANCLINI,
2011). De acordo com Canclini (2011), desse encontro resulta a formação de gêneros impu-
ros, cuja desarticulação cultural é marcada por dois processos: o descolecionamento, que
da’ sentido, sobretudo, ao fim da produção de bens culturais coleciona’veis, produzindo
a quebra de divisões entre diferentes modalidades de cultura, principalmente devido
ao desenvolvimento dos recursos tecnológicos que permitem que um bem cultural seja
reproduzido e disponibilizado mais facilmente para o público em geral.
Por outro lado, a desterritorialização rompe definitivamente com as barreiras geográ-
ficas físicas ao descentralizar os pólos de produção cultural, permitindo que diversas
instituições interajam de forma mais natural e harmoniosa, possibilitando migrações
efetivas e trocas simbólicas entre os novos mercados estabelecidos. Em linhas gerais, o
multiculturalismo é visto como um espaço que possibilita o diálogo entre as culturas e
permite, entre outros fatores, a consolidação de determinadas localidades como capitais
de mídia, quando observamos a cultura audiovisual contemporânea.

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Centros de mídia e inovação: um estudo sobre o mercado audiovisual brasileiro contemporâneo

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Para Curtin (2003), capital de mídia é um conceito relacional porque o que seria
especifico de uma cidade é o fato de ser um lugar de encontros, de interações e intercâm-
bios entre os imigrantes. Segundo o autor, os estudos de Martin-Barbero apontam que
formas culturais complexas das experiências cotidianas da migração e que são memória
popular da América Latina, encontraram expressão na produção cultural das empresas
de comunicação no século XX. Neste sentido, capital de mídia oferece algo mais que
infra-estrutura física e tecnológica, fazendo uso do talento e da criatividade de seus
moradores para encontrar soluções, superar problemas e conhecer a si mesmo, sabendo
que a sua cultura é única e que só poderá ser encontrada naquela localidade específica.
Valorizar a criatividade é desenvolver a unicidade que marca um determinado
local, o que acaba por determinar seu reconhecimento perante o público. Uma produ-
ção audiovisual pode se aproveitar das particularidades do local, ao passo que o local
também se aproveita dessa produção, ao movimentar toda a cadeia produtiva relacio-
nada a este setor, além de ser um catalisador do comércio local, de atividades culturais
e demais atividades correlatas.
Neste sentido, a cidade de São Paulo se caracteriza por sua vocação de atrair pes-
soas de todas as partes do país e esse histórico a credencia como um centro que agrega
a sede de “importantes empresas produtoras de todos os tipos de mercadorias, onde
o audiovisual poderia ser um importante instrumento de divulgação, modernização,
aperfeiçoamento, competitividade e expansão destas empresas” (GATTI, 2013, p.7). Esses
fatores são os alicerces para uma economia sustentável à cidade e se estendem ao mercado
audiovisual, como pode ser observado na tabela 1 sobre os investimentos da Secretaria
Municipal de Cultura (SMC) no setor Audiovisual (2005 – 2012), na gestão de Carlos
Augusto Calil.

Tabela 1. Investimento da SMC da cidade de São Paulo em Audiovisual (2005 – 2012)8

Ano CM R$* Filmes SP R$ LM R$ Total (R$)

2005 0 - 26 2.21 0 - 2.210

2006 4 0,28 0 0 14 4,0 4.28

2007 10 0.8 10 0.39 12 5.6 8.684

2008 10 0.79 - - 14 0,96 1.75

2009 10 0,79 10 0.24 13 1.689 4.033

2010 10 0.79 13 0.96 17 3.398 5.171

2011 10 0.79 29 1.198 12 4.499 6.496

2012 10 0.79 11 0.798 17 4.0** 9.477

Total 74 3.45 99 4.756 99 24.146 42.1

(*) Em milhões (**) Aproximado

8.  Fonte: GATTI, 2013. ECINE - São Paulo City Film Commission.
<https://www.facebook.com/saopaulofilmcommission>. Acesso em: março/2015.

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Esses investimentos foram distribuídos da seguinte forma: 1) Filmes temáticos sobre


a cidade de São Paulo, incluindo o projeto de documentário ‘História dos bairros de São
Paulo’, ‘Crônicas da Cidade’ e outros produtos audiovisuais: Interprogramas, Virada
Cultural, Web séries, Animação, além de editais para o desenvolvimento de projetos de
sete (07) filmes de longa-metragem e a finalização de outros quatro (04) filmes.
Os investimentos da SMC de São Paulo no setor audiovisual estão em consonância
com os objetivos da criação da agência SPCine9 – Empresa de Cinema e Audiovisual de
São Paulo, uma iniciativa da Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal
de Cultura, em parceria com o Governo do Estado de São Paulo e o Ministério da
Cultura, por meio da Ancine10. A proposta da SPCine é de atuar como escritório de
desenvolvimento, financiamento e implementação de programas e políticas para o
setor audiovisual, com o objetivo de estimular o potencial econômico e criativo do
audiovisual paulista e seu impacto cultural e social da cidade a partir de três eixos: 1)
Inovação, criatividade e acesso: elaboração e apoio a ações de desenvolvimento criativo
e inovação aplicada a novas tecnologias, formatos, linguagens e empreendedorismo
no setor, além da formação, capacitação e requalificação profissional; 2) Promoção e o
desenvolvimento do mercado de audiovisual rumo a um cenário de sustentabilidade
econômica; e 3) Integração e internacionalização: estímulo às co-produções, atração de
produções estrangeiras, exportação do conteúdo audiovisual paulista e o intercâmbio
cultural e de talentos.
O centro de mídia ‘SPCine’ é formado por uma rede audiovisual interconectada
que inclui o SP Film Comission – escritório para filmagens na cidade de São Paulo; o
circuito SP que promove a circulação de filmes pelas regiões da capital paulista e LEIA
– Laboratório de Inovação e Experimentação Audiovisual. Recentemente, o Ministério
das Comunicações 11 e a SMC de São Paulo firmaram convênio que prevê o repasse
de recursos para o centro equipar oficinas, estúdios e laboratórios para produção de
conteúdos digitais criativos. A implementação do centro de mídia SPCine permite
analisar a cidade como um território cultural e criativo. Para André Gatti (2013, p. 6),
por meio deste estudo seria possível obter “o mais completo domínio das dimensões do
espaço ecrânico paulistano. Conhecer as suas principais variáveis, ou seja, sua economia,
cultura e importância social”.
Outros incentivos advindos de diversos editais de fomento da SMC de Cultura são
de patrocínios e co-patrocínios de produtos audiovisuais: longas e curtas metragens,
séries de TV, webséries e games, entre outros. O edital Nº 01/2015/SMC-NFC, lançado
pela SPCine em parceria com o Fundo de Mídia do Canadá, promove o desenvolvimento
de conteúdo audiovisual para TV, internet e jogos eletrônicos. Estes eventos e festivais
contribuem para destacar os produtos audiovisuais circulados12 na cidade. Deste modo,

9. Página da SPCine na SMC: <http://planejasampa.prefeitura.sp.gov.br/metas/projeto/1506/>


10.  Fonte: http://www.culturaemercado.com.br/noticias/sao-paulo-lanca-empresa-de-fomento-ao-
audiovisual/. Acesso em: março/2015.
11. Fonte:<http://www.brasil.gov.br/infraestrutura/2015/01/acordo-preve-repasse-de-r-7-mi-para-centro-
de-inovacao-em-sao-paulo>. Acesso em: março/2015.
12. Brazil’s Independent Games Festival (BIG); Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental; Festival Internacional
de Curtas-Metragens de São Paulo - Curta Kinoforum; Animaldiçoados - Festival Internacional de Animação de
Horror, entre outros.

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Centros de mídia e inovação: um estudo sobre o mercado audiovisual brasileiro contemporâneo

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o centro de mídia SPCine indica um redirecionamento no foco como é tratado o sistema


de produção audiovisual da cidade e oferece indícios de mudanças do mainstream
tradicional calcado no cinema, televisão e na publicidade, para um centro midiático
em formação, com foco na convergência de mídias e deslocado da setorização. Esse
movimento é potencializado pela lógica interacional criada entre os produtores de
conteúdo e as audiências conectadas em rede. Neste aspecto, a busca de um maior
entendimento da cidade de São Paulo como uma capital de mídia no contexto da
convergência (um centro de mídia) se torna uma questão central para a elaboração da
cartografia audiovisual paulistana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
No Brasil, as pesquisas contemporâneas realizadas no campo do audiovisual pri-
vilegiam a elaboração estratégica de cartografias do setor através da coleta de dados
com o objetivo de fazer um mapeamento das atividades. Elas buscam identificar carac-
terísticas locais por meio de avaliações de desempenho do setor perante as atividades
culturais como um todo.
Neste sentido, o aprofundamento dos estudos sobre lugares denominados capitais
de mídia, e a sua atualização em centros de mídia no contexto da convergência, é de
fundamental importância para que se possa elaborar a cartografia do audiovisual –
considerando quais são os segmentos envolvidos e o impacto da atividade na realidade
socioeconômico da cidade, do estado e do país. A associação com a visão de convergência
de mídia, permite a esta abordagem ir além do mapeamento econômico e produtivo
setorizado convencional, tratando questões amplas de inovação e interligadas no campo
do audiovisual.
Problematizando a noção de capital de mídia, com ênfase sobre os centros de mídia
e os processos de inovação no mercado audiovisual brasileiro de entretenimento, este
artigo pretendeu explorar algumas questões da cartografia do audiovisual de São Paulo.
A revisão do conceito de capital de mídia e o estudo comparativo do perfil da cidade
de São Paulo com o de um centro de mídia destacam a existência nestes lugares de
atividades midiáticas criativas, bem como permite observar quais são as suas relações
com outras localidades e quais são as dinâmicas culturais e de poder.
Uma das conclusões que emerge destes estudos é a importância dos estudos sobre
os centros de mídia e inovação para a elaboração de políticas para o setor audiovi-
sual. Tais pesquisas, também ajudariam a compreender as dinâmicas que vêem se
estabelecendo no mercado audiovisual fora do âmbito das grandes redes televisivas
abertas e da produção cinematográfica, que já são objetos de estudos por diferentes
perspectivas, compreendendo produções independentes e alternativas para web e a
TV Paga. Na próxima etapa da pesquisa, pretende-se sistematizar a base de dados e
elaborar indicadores para análises da produção de séries e webséries para diferentes
plataformas com o objetivo de realizar uma cartografia da produção audiovisual do
centro midiático paulista.

Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

6084
Centros de mídia e inovação: um estudo sobre o mercado audiovisual brasileiro contemporâneo

João Massarolo • Dario Mesquita • Ramon Marlet

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Comunicação, Cultura e Mídias Sociais • XIV Congresso Internacional de Comunicação Ibercom 2015 • Anais

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Seduzidas pelo Demônio: sobre traduções e traições
nas Cartas portuguesas de Jess Franco
Seduced by The Devil: on translations and betrayals
in Jess Franco’s Love letters of a Portuguese nun
Ti a g o J o s é L e m o s M o n t e i r o 1

Resumo: Este trabalho insere-se no contexto de uma investigação acerca do


cinema de horror produzido em Portugal ou, melhor dizendo, das apropriações
feitas, pelo cinema português ou pelas co-produções internacionais que se
utilizaram de Portugal como cenário, de determinados elementos constituintes
de uma gramática horrorífica internacionalmente reconhecida. A partir de
uma análise do longa-metragem Cartas de amor de uma freira portuguesa (1976),
co-produção suíço-alemã dirigida por Jess Franco, não apenas discuto alguns
dos procedimentos narrativos e estilísticos característicos daquilo que ficou
conhecido como euro horror, como também problematizo o próprio conceito que,
no entendimento deste artigo, força um sentido de homogeneidade geográfica
que não abrange a totalidade do território europeu, antes metonicamente
representando a produção de alguns poucos e expressivos países, em detrimento
de outros nos quais a presença do gênero horror é praticamente ausente ou
aparece hibridizada com a matriz de universos genéricos distintos, como é o
caso de Portugal. Por fim, busco iniciar uma reflexão sobre como as matrizes
constituintes deste cinema se fazem presentes em alguns filmes realizados em
Portugal, e que narrativas identitárias múltiplas podem surgir daí.
Palavras-Chave: Cinema de horror. Exploitation. Jess Franco. Cinema de horror
em Portugal.

Abstract: This paper aims to discuss some of the narrative procedures which
characterize the euro horror as a very popular and controversial movie style
during the 60’s and the 70’s. The background to this work is a newly started
research on the Portuguese horror cinema, or rather, on the theoretical and
empirical silences about horror movies made in Portugal (but not necessarily by
Portuguese filmmakers). According to the authors with whom I work, the concept
of euro horror presents several problems in itself: one of them is the attempt to
treat as equal and homogenic the diversified film production of countries such as
Italy, France, Spain and England, among others. Here, I analyze the german-swiss
co-production Love letters of a Portuguese nun, directed by the spanish filmmaker
Jess Franco, as an exponent of the style, mainly due to the peculiar “translation”
done by Franco, who turns it’s romantic literary source into a nunexploitation

1.  Doutor em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense. Professor do Instituto Federal do Rio
de Janeiro - Campus Nilópolis. E-mail: tjlmonteiro@yahoo.com.br.

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Seduzidas pelo Demônio: sobre traduções e traições nas Cartas portuguesas de Jess Franco

Tiago José Lemos Monteiro

cum horror movie. By doing this, Franco’s Love letters... helps to redefine the
very idea of “faithful adaptation”, also changing the way viewers will possibly
understand some aspects of Portuguese culture.
Keywords: Horror movies. Exploitation films. Jess Franco. Portuguese horror
cinema.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

E STE TRABALHO insere-se no contexto de uma investigação acerca do cinema de hor-


ror produzido em Portugal ou, melhor dizendo, das apropriações feitas, pelo cinema
português ou pelas co-produções internacionais que se utilizaram de Portugal
como cenário (caso do objeto deste artigo), de determinados elementos constituintes
de uma gramática horrorífica internacionalmente reconhecida.
Cartas de amor de uma freira portuguesa é uma produção suíço-alemã de 1976, realizada
pelo cineasta espanhol Jesús ‘Jess’ Franco. Reconhecido pelo caráter prolixo de sua
trajetória e pelas produções vinculadas à estética B/ exploitation, o cineasta realiza uma
adaptação muito particular das Cartas portuguesas, supostamente atribuídas à irmã
Mariana Alcoforado, transformando a narrativa epistolar e ultra-romântica do livro-
fonte em um nunexploitation macabro de tintas sobrenaturais ambientado na Serra de
Sintra, em Portugal.
A partir de uma análise do longa-metragem de Franco, não apenas discuto alguns
dos procedimentos narrativos e estilísticos característicos daquilo que ficou conhecido
como euro horror, como também problematizo o próprio conceito que, no entendimento
deste artigo, força um sentido de homogeneidade geográfica que não abrange a totalidade
do território europeu, antes metonicamente representando a produção de alguns poucos
e expressivos países, em detrimento de outros nos quais a presença do gênero horror
é praticamente ausente ou aparece hibridizada com a matriz de universos genéricos
distintos, como é o caso de Portugal. Por fim, e na medida em que um levantamento
de cunho historiográfico revelou que o horror nunca chegou a constituir um gênero
expressivo no âmbito da cinematografia lusa, busco iniciar uma reflexão sobre como as
matrizes constituintes deste cinema se fazem presentes em alguns filmes realizados em
Portugal, e que narrativas identitárias múltiplas podem surgir a partir daí.
A título de bibliografia central, este artigo utilizou-se das obras A filosofia do horror, de
Noel Carroll (1999); Horror international (2005), coletânea editada por Steven Jay Schneider
e Tony Williams; Euro Horror (2013), de Ian Olney; The biology of horror (2002), de Jack
Morgan; Sex and violence – percosi nel cinema estremo (2003), de Roberto Curti e Tommaso
La Selva; da tese de doutorado defendida por Laura Cánepa junto ao Programa de Pós-
Graduação em Multimeios da UNICAMP e intitulada Medo de quê? Uma história do horror
nos filmes brasileiros (2008); e por fim, do artigo História do breve cinema de terror português,
de João Monteiro, publicado em 2011 na revista Bang!, entre outros.

SOBRE O CONCEITO DE EURO HORROR , SUAS APLICAÇÕES E LIMITES


O termo euro horror é comumente usado para designar um determinado corpus de
longas-metragens produzidos entre as décadas de 1960 e 1980 em países como Inglaterra,
Espanha, França e Itália, que articulavam de maneira bastante particular determinados

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Seduzidas pelo Demônio: sobre traduções e traições nas Cartas portuguesas de Jess Franco

Tiago José Lemos Monteiro

traços estilísticos e narrativos característicos da gramática do cinema de horror tal qual


internacionalizada por Hollywood. Tais filmes, seja por investirem de forma sistemática
em uma exploração bastante gráfica dos elementos de sexo e violência constituintes
das respectivas tramas, seja por criarem uma atmosfera onírica e estilizada na qual a
própria história, em um certo momento, parecia se dissolver diante do caráter sensorial e
sinestésico das obras, marcavam sua singularidade em relação ao produto estadunidense
e atraíam uma considerável base de aficcionados (OLNEY, 2013).
Embora alguns realizadores que militavam nas trincheiras do euro horror durante
sua época áurea tenham continuado em atividade no decurso das décadas seguintes,
a segunda metade dos anos 1980 parece marcar a derrocada do “estilo”, em paralelo à
consagração e hegemonia mercadológicas do blockbuster holywoodiano, que oferecia
um apuro técnico então inalcançável ao produtor europeu. Entre assistir ao “Tubarão”
original de Steven Spielberg e um similar de baixo orçamento feito na Itália, como
“L’ultimo squalo” (dir.: Enzo G. Castellari, 1981), qual seria a opção majoritária das
platéias nativas?
As mesmas características que singularizavam tais produções, contudo, favoreciam
que estes filmes chegassem aos Estados Unidos (primeiro no circuito dos drive-ins e
grindhouses, posteriormente no mercado de home video) algo desfigurados em relação ao
seu formato original, em edições muitas vezes mutiladas pela censura, precariamente
dubladas em inglês, com capas em nada semelhantes às originais e no aspect ratio
incorreto. A marginalização do euro horror adiou em pelo menos duas décadas sua
descoberta e legitimação pelo universo dos film studies estadunidenses onde, em meados
dos anos 1990, o termo é (algo etnocentricamente) cunhado, como forma de encapsular
a produção bissexta de realizadores como Dario Argento, Mario Bava, Lucio Fulci, Jean
Rollin, José Benazeraf, Jess Franco, Paul Naschy, Michael Reeves, dentre outros, agora
devidamente reposicionados e reconhecidos como autores no sentido cahiérsiano do termo.
A chave para a ressignificação deste cinema residiria, nos dizeres do pesquisador Ian
Olney (2013), na relação da espectatorialidade-como-performance que atravessaria o
processo de recepção destes filmes, sobretudo no decurso dos últimos dez anos, quando
tais títulos passam a circular no mercado estadunidense desfrutando de um outro status
enquanto bens culturais, em edições digitais bem cuidadas, com as versões integrais
sem cortes, áudio original e farto material extra (GUINS, 2005).
Na tentativa de lançar luzes sobre a outrora deslegitimada produção no âmbito do
gênero horror oriunda do continente europeu durante as décadas de 1960-1980, entre-
tanto, o que o termo euro horror acaba criando é um falso sentido de equivalência entre
a Europa como território geográfico constituída por diversos territórios nacionais, e a
produção cinematográfica de horror de alguns países que se revelaram como potências
expressivas neste sentido. Dito de outra forma, para que o conceito de euro horror fosse
plenamente válido, seria no mínimo necessário que duas condições fossem atendidas:
que todos os filmes produzidos por países europeus entre os anos de 1960 e 1980 fossem
estilística e narrativamente afins; e que todos os países europeus tivessem se exercitado no
âmbito da gramática horrorífica, de modo que uma certa estética transnacional pudesse
ser aventada. Na prática, nenhuma das duas condições se verifica: a despeito de inegá-
veis afinidades (sobretudo na representação gráfica do sexo e da violência) entre alguns

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Seduzidas pelo Demônio: sobre traduções e traições nas Cartas portuguesas de Jess Franco

Tiago José Lemos Monteiro

destes filmes, parece-me haver uma nítida diferença entre as preocupações estéticas
de um Lucio Fulci e de um Mario Bava, apenas para nos atermos à Itália como recorte
espacial. E no que tange à homogeneidade entre territórios nacionais, a prática apenas
exige uma complexificação ainda maior do conceito. A Grécia faz parte da Europa: há
um cinema de horror grego?
O que o rótulo euro horror termina por mascarar, portanto, são as assimetrias políti-
cas, econômicas e culturais que, ao fim e ao cabo, constituem a própria ideia de Europa
até os dias de hoje. Não me parece coincidência que a consagração do termo euro horror
no âmbito dos film studies estadunidenses ocorra mais ou menos em paralelo à ins-
titucionalização da Comunidade Econômica Europeia e, posteriormente, da própria
União Europeia (primeira metade dos anos 1990), e que sua problematização enquanto
conceito “guarda-chuva” se dê em um contexto no qual o projeto europeu em si mesmo
encontra-se sob forte questionamento.

SOBRE O “BREVE CINEMA DE HORROR PORTUGUÊS” E SUA INVISIBILIDADE


Meu interesse, nesta investigação cujo início se deu há cerca de dois anos, é discutir
as contradições do euro horror a partir de alguns de seus silenciamentos, quais sejam,
aqueles referentes a países inegavelmente “europeus” mas que, pelo menos na superfície
ou segundo o senso comum, nunca produziram um cinema efetivamente de horror, como
é o caso de Portugal. A questão do senso comum desempenha um papel essencial no
meu olhar de investigador por, em certa medida, já ter estado presente na pesquisa que
resultou em minha tese de Doutorado, defendida em 2012 junto ao Programa de Pós-
Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense, e que versava sobre
o cenário pop/rock português contemporâneo. Ali, também se verificava um esforço no
sentido de desconstruir os estereótipos que, sobretudo no que diz respeito ao público
brasileiro, tendiam a compreender a expressão “música portuguesa” como sinônimo
de fado e manifestações folclóricas tradicionais (MONTEIRO, 2013). O mesmo tipo de
postura se aplica em relação ao cinema de horror português (e guardadas as devidas
proporções, na medida em que, a despeito do estereótipo – ou talvez justamente em
função dele – a música portuguesa possui um reconhecimento, em nível internacional,
inegavelmente superior ao seu equivalente cinematográfico): ao partilhar com algumas
pessoas o tema da presenta investigação, a reação dos interlocutores tendia a ser, quase
sem exceção, “mas existe cinema de horror em Portugal”?
Que tal premissa não forneça a falsa impressão de que utilizo como hipótese de
investigação a ideia de que todo país deva necessariamente possuir um cinema de
horror, contudo. Cada contexto nacional e cultural constrói uma maneira particular de
exorcizar narrativamente seus demônios e temores mais profundos, e isto nem sempre
se dá sob a chave audiovisual2. Entretanto, e aqui recorro ao caso brasileiro a título de
comparação preliminar, o discurso da ausência por vezes precede o esquadrinhamento
sistemático acerca de sua validade. No Brasil, durante muito tempo se acreditou, talvez
por inércia investigativa, que o cinema de horror nacional se restringia à figura de José

2.  Ver as considerações de Delumeau (2001) sobre o caráter social e cultural do medo, embora não diretamente
associado às suas manifestações audiovisuais.

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Seduzidas pelo Demônio: sobre traduções e traições nas Cartas portuguesas de Jess Franco

Tiago José Lemos Monteiro

Mojica Marins, e sua persona midiática, o coveiro Zé do Caixão. Em sua referencial


tese de doutorado sobre o tema, a pesquisadora Laura Cánepa refuta este discurso,
oferecendo como contraprova toda uma gama de filmes e diretores que, à sua maneira
e durante as últimas quatro décadas, também se exercitaram na gramática do horror.
O resultado de tais iniciativas nem sempre poderia ser considerado, sob quaisquer
critérios taxionômicos, 100% vinculado aos traços estilísticos que constituem o gênero
em questão: o que se vê em alguns destes filmes, pelo contrário, é uma apropriação de
elementos da gramática horrorífica no âmbito de outros gêneros, como o melodrama,
o policial e o erótico.
Ou seja, a despeito de a quantidade de filmes de horror stricto sensu ser, de fato,
reduzida, o imaginário horrorífico acaba por ser parte integrante de diversos longas-
-metragens brasileiros. Um exemplo de tal procedimento pode ser encontrado no filme
Promiscuidade – os pivetes de Kátia, dirigido por Fauzi Mansur em 1983, e analisado pela
autora em seu blog3. Na superfície, e durante boa parte dos quase 90 minutos de projeção,
trata-se de um drama erótico algo protocolar sobre a ciranda sexual de uma família da
alta burguesia paulistana; até que, nos 15 minutos finais, a vingança do personagem
interpretado por Ênio Gonçalves contra aqueles que o traíram toma contornos doentios
e termina com diversos personagens sendo eletrocutados no interior de um trem aban-
donado. Ou seja, embora consoante os critérios tradicionais de classificação por gênero,
Promiscuidade nem de longe possa ser considerado um longa de horror, é inegável que há
qualquer coisa de horrorífica na solução encontrada por Mansur para finalizar sua trama.
Enxergo algumas afinidades entre o caso brasileiro e o português. Embora rodeado
por potências expressivas no âmbito deste gênero, o primeiro filme de terror português
considerado “sério” pela crítica surge apenas em 2006: trata-se de Coisa ruim, dirigido
por Frederico Serra e Tiago Guedes, sobre uma família lisboeta que se muda para uma
casa assombrada numa aldeia do interior (CÂMARA, 2006). Sustento como hipótese de
pesquisa que a suposta “seriedade” deste filme talvez revele mais sobre a percepção
hegemônica que a intelligentsia lusa tem do gênero do que sobre a inexistência do mes-
mo em momentos anteriores da história cinematográfica portuguesa. Neste sentido, o
levantamento historiográfico empreendido por João Monteiro (2011) oferece algumas
perspectivas sobre o tema que aproximam ainda mais ambos os contextos: lá como cá,
Monteiro identifica a presença de elementos horroríficos no âmbito de gêneros como o
melodrama histórico e o drama neorrealista; sustenta que, por ser tradicionalmente valo-
rado como um gênero “menor”, sua produção nunca foi incentivada pelos órgãos oficiais
de fomento ao cinema (aqui, vale reforçar que o cinema português, tanto pré quanto pós
Revolução de Abril, sempre foi subsidiado pelo Estado, e a tendência deste sempre foi no
sentido de estimular a inserção da produção lusa no circuito dos festivais, privilegiando
os filmes de nicho em detrimento do cinema massivo/popular/de gênero4); por fim, o
autor diagnostica pelo menos uma consequência perversa do não-reconhecimento de
significância cultural destes títulos: muitos deles encontram-se totalmente perdidos ou

3. Recuperado em 16 de março, 2015, de: http://www.horrorbrasileiro.blogspot.com.br/2012/07/promiscuidade-


os-pivetes-de-katia.html.
4.  Execção feita às “comédias à portuguesa” dos anos 1940. Para uma discussão mais aprofundada acerca
dos mecanismos de fomento do cinema português e seus endereçamentos, ver Areal (2011).

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Seduzidas pelo Demônio: sobre traduções e traições nas Cartas portuguesas de Jess Franco

Tiago José Lemos Monteiro

limitados a alguns poucos rolos sem som, em função de incêndios nos antigos estúdios,
da conservação mal gerida e da indisponibilidade destes filmes em outros formatos.
Em que se pese a (in)validade da comparação entre contextos históricos e sociais
distintos, se tomarmos por exemplo o caso espanhol (ALARCÓN, 2009), veremos nele
tantos pontos de contato em relação ao seu vizinho que o discurso da inexistência de um
cinema de horror português parece ainda mais falho: tanto Portugal quanto Espanha
atravessaram boa parte do século XX sob a vigência de regimes fascistas de orientação
conservadora (Franco na Espanha, Salazar em Portugal); em ambos os países, já à partida
atravessados por uma hegemonia do discurso e das práticas católicas, verificou-se a
permanência tardia dos Tribunais da Inquisição; por fim, tanto um quanto partilham
inúmeras tradições oriundas da mesma matriz ibérica. E mesmo levando-se em conta a
diferença em termos de pujança de suas respectivas indústrias audiovisuais, não deixa
de chamar a atenção a ausência quase total de informações acerca das incursões do
cinema português no universo do filme de gênero/B/ exploitation.
Hoje, Portugal sedia dois importantes festivais dedicados ao cinema de terror/
fantástico: o Fantasporto e o MoteLx, este último sediado na capital, Lisboa, durante
o mês de setembro. Atualmente a caminho de sua nona edição, desde 2009, o MoteLx
possui uma sessão intitulada “Quarto perdido”, cujo objetivo é lançar luz sobre as
eventuais incursões do cinema luso pela seara do terror. Na edição de 2011, Cartas de amor
de uma freira portuguesa foi exibido no “Quarto perdido”, não pelo fato de ser um filme
português que flertasse com a gramática do terror, mas por recorrer a um expediente
algo comum em se tratando da lógica co-produtiva que norteava o Euro Horror dos
anos 1970 – a utilização de Portugal como locação, tópico a que retornarei na próxima
subseção deste artigo, a propósito da análise do longa de Jess Franco.

SOBRE AS CARTAS DE AMOR DE UMA FREIRA PORTUGUESA


COMO EXPOENTE DO CINEMA DE HORROR EM PORTUGAL
O realizador espanhol Jess Franco já mereceria figurar no panteão dos grandes
nomes do cinema mundial apenas em função de sua prolixidade fílmica: estima-se
que, entre 1961 e 2013 (quando veio a falecer em função de um derrame fulminante),
Franco tenha dirigido algo entre 160 e 200 longas-metragens, a totalidade deles no
âmbito do cinema B de gênero. Nascido Jesús Franco Manera em maio de 1930 (e a
respeito do pseudônimo anglófono que o consagrou, o cineasta costumava brincar que
possuir “Jesus” e “Franco” – em referência ao ditador espanhol – num mesmo nome
seria uma carga simbólica pesada demais para suportar...), Jess Franco transitou com
maestria por diversos universos narrativos: embora seja mais conhecido pelos filmes de
horror e erotismo, também constam de sua extensa filmografia películas de guerra, de
espionagem, filmes de aventura-na-selva e ficção científica, dentre outros. Unificando
todas estas produções, o charme low budget, a sensibilidade exploitation e uma fartura
de soluções narrativas originais para driblar as (muitas) limitações de recursos.
Co-produção germano-suíça de 1977, Cartas de amor de uma freira portuguesa afirma-
-se, em diversos níveis, como uma espécie de súmula da carreira de Jess Franco como
diretor de cinema. Estão lá as doses habituais de horror gore e erotismo explícito; os
célebres zooms ins and outs sobre cenários e corpos (principalmente corpos, e sobretudo

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femininos); um insuspeito cuidado com a fotografia e a direção de arte que destoa, e


muito, daquilo que o senso comum aprendeu a associar ao Cinema B; por fim, um rotei-
ro inacreditavelmente inverossímil, ainda mais se nos ativermos à presumida “matriz
literária” da trama.
As Cartas portuguesas são um clássico da literatura romântica lusa. Publicadas pela
primeira vez em finais do século XVII, pelo editor francês Claude Barbin, as cartas do
título são supostamente atribuídas à freira Mariana Alcoforado, que do Convento onde
estava confinada, na cidade alentejana de Beja, teria escrito diversas correspondências
a um oficial de cavalaria francês por quem nutria uma paixão platônica. As cartas de
Mariana ao amado, inicialmente atravessadas por um profundo sentimento de sau-
dade em função da distância, se tornam cada vez mais desencantadas à medida que
a resposta do oficial nunca vem. Posteriormente, a origem das próprias cartas passou
a ser contestada, e sua autoria atribuída a um diplomata e jornalista francês chamado
Gabriel de Guilleragues.
Na adaptação sui generis feita por Franco em finais dos anos 1970, Maria (Susan
Hemingway) é uma espevitada jovem de 16 anos que habita uma tradicional aldeia
portuguesa. A proximidade física que Maria estabelece com os rapazes da aldeia desperta
no Padre Vicente (William Berger) o desejo de levá-la para junto de si, no Convento da
Serra D’Aires, então convencendo a mãe de Maria, uma humilde lavadeira, de que a
internação no Convento seria a melhor maneira de livrá-la dos impulsos pecaminosos.
Ao chegar lá, contudo, Maria encontra um cenário nada divino: logo no primeiro
contato com a Madre Superiora (vivida pela atriz portuguesa Ana Zanatti), esta a examina
de forma minuciosa para atestar-lhe a virgindade. Em seguida, Maria se vê enredada
pelos jogos de sedução capitaneados pelas demais freiras, e pelo modo nada ortodoxo com
que o Padre Vicente conduz o ritual da confissão. Não tarda, somos levados a conhecer
o ambiente lúbrico do Convento da Serra D’Aires, que envolve torturas físicas, sevícias
diversas, humilhações sexuais e, por fim, uma insólita cerimônia na qual o Demônio
em pessoa aparece para copular com Maria, na presença da Madre Superiora, do Padre
Vicente e das demais freiras, que acompanham a cena num frêmito orgiástico que faria
inveja aos relatos das visões de Santa Teresa D’Ávila, e que em muito lembra as sequên-
cias de possessão concebidas por Ken Russell no controverso filme Os demônios, de 1971.
Maria consegue escapar do confinamento e busca auxílio junto às autoridades
locais. Traída pelos próprios salvadores, acaba sendo trazida de volta ao Convento,
onde a Madre Superiora e o Padre Vicente concluem que a melhor forma de silenciar
Maria é entregando-a ao Tribunal da Inquisição. No preciso instante em que está para
ser queimada na fogueira, o Príncipe Manuel de Portugal (numa curiosa participação
do futuramente célebre humorista luso Herman José, que aqui aparece creditado sob o
pseudônimo de Herman Krippahl) aparece montado em seu cavalo branco e a resgata
das garras da morte. A Madre Superiora e o Padre Vicente terminam encurralados no
interior da Igreja pelos soldados do Príncipe, em um final brusco que sugere a ocorrência
de algum problema de produção ou montagem.
Em outras palavras, o que Franco faz em seu longa de 1977 é transformar um
clássico do romantismo luso em um nunexploitation, subvertente dos filmes de exploração
ambientados em presídios femininos (os W.I.P., ou women in prison), no qual as jovens

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Seduzidas pelo Demônio: sobre traduções e traições nas Cartas portuguesas de Jess Franco

Tiago José Lemos Monteiro

delinquentes encarceradas são substituídas por freiras, preservando-se, contudo, a


atmosfera erótica pontuada por longas cenas de nudez e lesbianismo, bem como os
frequentes recursos a punições corporais em caso de desvio comportamental, típicas
dos W.I.P.’s (CURTI & LA SELVA, 2003; PIEDADE, 2002) . Os filmes de women in prison/
nunexploitation costumam ser percebidos como sendo bastante ambivalentes em relação
aos códigos narrativos que articulam e ao discurso que sustentam, pois sob um aparente
endosso da objetificação erótica do corpo feminino, tais filmes (ou, pelo menos, alguns
deles) na verdade proporiam um jogo performático com o espectador, no qual este
seria convidado a assumir um posicionamento oscilante, ora na contramão do discurso
heteronormativo padrão (vale lembrar que as longas sequências de lesbianismo são
uma espécie de regra nos nunexploitations...), ora reforçando estereótipos e convenções
de gênero. Tal oscilação se manifestaria não apenas no nível das tramas, mas também,
e sobretudo, no âmbito da mise-en-scene, razão pela qual não faria o menor sentido
perpetuar o discurso que associa o cinema B/exploitation à precariedade de recursos
ou ao caráter rudimentar e “instintivo” de seus narradores.
A desconexão entre o filme de Franco e as Cartas portuguesas originais é tão extrema
que o próprio título do filme é justificado em apenas dois momentos da trama: em uma
didática cartela inicial, que diz “Esta é a história de uma jovem que escreveu uma carta
para Deus. E Deus escutou seu chamado”, e no terço final do filme, quando Maria, antes
de ser condenada à fogueira, de fato escreve a tal carta, atira-a pela janela de sua cela e,
num primor ex-machina do roteiro, a mesma é encontrada pelo Príncipe Manuel e seu
escudeiro, “casualmente” de passagem pelas cercanias do Convento.
Antes das Cartas..., Franco já havia utilizado Lisboa como locação de seu longa
Succubus/Necronomicon, de 1968, e recorrido aos ares da zona de Sintra (região serrana
distante cerca de hora e meia da capital, Lisboa) para ambientar seu longa Drácula contra
Frankenstein, de 1971, com o habituée de Franco, Howard Vernon, no papel do célebre
Conde. Aos que conhecem minimamente a geografia da vila, chega a ser engraçado ver o
Castelo dos Mouros, uma fortificação que data do século X, fazendo as vezes da moradia
transilvânica de Drácula. As mesmas vielas de Sintra – e, salvo engano, o mesmo take
do Castelo dos Mouros, procedimento bastante comum no universo do euroexploitation
– aparecem nas Cartas..., com o acréscimo de alguns planos do Palácio da Pena (talvez o
maior ponto turístico de Sintra, aqui metonimizado na janela de onde Maria arremessa
a carta que selará seu destino) e, num primor de reconstrução geográfica, do Mosteiro
dos Jerónimos (que fica em Belém, e não em Sintra), cenário da derradeira perseguição
dos soldados do Príncipe à Madre Superiora e ao Padre Vicente. E curiosamente, como
dado biográfico, foi na estrada de Sintra, em 1970, que a primeira companheira e musa de
Franco, a atriz Soledad Miranda, faleceu em decorrência de um acidente automobilístico.
Duas hipóteses podem ser formuladas acerca desta utilização recorrente de Portugal
como locação5: a primeira diria respeito ao caráter semi-periférico do país, tal e qual

5.  Distante ma non troppo do universo do euroexploitation, o mesmo expediente seria posteriormente utilizado
pelo realizador chileno Raul Ruiz, em seu longa O território, de 1981, no qual um grupo de viajantes perdido
(mais uma vez) na Serra de Sintra se vê forçado a recorrer ao canibalismo diante da ausência de socorro.
No ano seguinte, seria a vez do diretor alemão Wim Wenders ambientar seu longa metalinguístico O estado
das coisas no eixo Lisboa-Sintra-Cascais, ao qual retornaria cerca de 10 anos depois, com O céu de Lisboa.

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Seduzidas pelo Demônio: sobre traduções e traições nas Cartas portuguesas de Jess Franco

Tiago José Lemos Monteiro

sustentado pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos (2006). A condição semi-perifé-


rica de Portugal imputaria à sociedade portuguesa, simultaneamente, características
que a aproximariam dos países do centro e traços associados às culturas periféricas. Se
quisermos estabelecer um equivalente cinematográfico a esta condição, teríamos o fato
de Portugal ser um país cuja indústria audiovisual nunca foi particularmente expres-
siva em termos mercadológicos, sobretudo além-fronteiras, mas ao mesmo tempo, em
função do seu reduzido custo de vida em comparação aos demais países europeus, ser
considerado uma opção econômica viável para produções estrangeiras que desejassem
se utilizar do país como cenário.
Em relação à segunda hipótese, Ian Olney (2013) sustenta que a predileção dos cineas-
tas por Portugal residiria não apenas nos custos inferiores oferecidos pelo país em termos
de estrutura de produção, mas também, e sobretudo, na imagem “exótica” que Portugal
projetaria para seus vizinhos europeus. Tal hipótese é, indiretamente, corroborada por
Boaventura de Sousa Santos, citando o filósofo Hans Magnus Enzensberger, que se
perguntava como Portugal, sendo um dos países menos desenvolvidos da Europa, teria
sido capaz de fomentar tantas utopias – do mito Sebastianista à Revolução dos Cravos.
Boaventura postula, então, que esta percepção de Portugal como um país exótico, idios-
sincrático, seria o efeito não apenas de um desconhecimento do restante da Europa em
relação a ele, mas de um auto-desconhecimento, por sua vez fruto dos longos períodos
em que o país viveu sob regimes ideologicamente repressores, culturalmente pautados
pelo obscurantismo e nos quais a produção de conhecimento científico se estagnou.
“Aquele pequeno país no extremo ocidente do continente europeu”, até meados dos anos
1970 habitado majoritariamente por camponeses iletrados, teria, então, o mesmo apelo
exótico que certos territórios da África ou no Extremo Oriente, aqui, no caso, evocando
uma ideia de Europa ancestral, quase pré-Moderna, imune aos eflúvios do Iluminismo
e mantida preservada em seus componentes culturais mais tradicionais.
Não à toa, e neste aspecto as incursões tangenciais do cinema português pelas
veredas do horror diferem consideravelmente da práxis de seu vizinho ibérico, o hor-
ror luso é muito mais rural do que urbano, por exemplo. Filmes como O crime de Aldeia
Velha (Manuel Guimarães, 1964), O leproso (Sinde Felipe, 1974; média-metragem) ou A
maldição de Marialva (António de Macedo, 1989) ambientam suas tramas ou em aldeias
do interior (caso dos dois primeiros), ou em épocas imemoriais da história lusa (caso
do terceiro), expediente semelhante ao utilizado por Franco nas Cartas de amor... Mesmo
o contemporâneo Coisa ruim, embora tenha por protagonistas uma família lisboeta de
classe média, localiza a fonte do medo em uma velha casa situada numa aldeia “atrás do
sol posto”, como comenta um dos personagens do longa. Apenas na produção contem-
porânea de curtas-metragens, cuja maior vitrine continua sendo a mostra competitiva
do MoteLx, é que os cenários e tramas urbanas assumem um papel de maior destaque.
Um último ponto que gostaria de levantar, à guisa de encerramento, seria o da
expansão da ideia de cinema de terror português para a noção de cinema de terror em
Portugal, o que nos autorizaria a também inserir obras como as Cartas de amor... de Jess
Franco numa genealogia do gênero n’Além-Mar. Práticas de co-produção cinematográfica
internacional com vistas ao barateamento dos custos de filmagem não são exclusivas do
contexto do euro horror, embora no âmbito do cinema B/ exploitation tais procedimentos

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Seduzidas pelo Demônio: sobre traduções e traições nas Cartas portuguesas de Jess Franco

Tiago José Lemos Monteiro

sejam particularmente comuns, haja vista as incursões do diretor e produtor Roger


Corman em territórios filipinos na segunda metade dos anos 1970. É verdade que, em
muitas destas iniciativas, uma certa postura predatória por parte das equipes “estran-
geiras” tende a prevalecer frente a um efetivo aperfeiçoamento das indústrias locais:
não é, portanto, como se a produção portuguesa de gênero tivesse necessariamente
colhido os frutos da frequente utilização de Portugal como cenário. No entanto, parece-
-me improvável que a presença recorrente de equipes de cinema em território luso, e
precisamente “exercitando” um tipo de produção cuja gramática, naquele momento, não
fazia parte da práxis local, não tenha exercido algum tipo de interferência, em nível de
especialização de mão-de-obra, no próprio cinema português.
Para além desta, ao meu ver, inegável interferência, há que se investigar, caso a caso,
não apenas os filmes que se utilizaram de Portugal como locação para fins de redução
de custos, mas também e sobretudo aqueles cujas tramas abordam ou tangenciam temas
portugueses. Tomando a filmografia de Jess Franco como exemplo, há uma diferença
significativa entre Drácula, prisioneiro de Frankenstein, em que a vila de Sintra aparece
como mera emulação dos Cárpatos romenos, e as Cartas de amor.... Neste último, não
só uma obra pertencente ao cânone literário português é utilizada como “base” para o
longa de de Franco, como o resultado fornece inúmeros subsídios para um debate acer-
ca da infidelidade inerente a qualquer adaptação. Se todo tradutor é, em certa medida,
um traidor, a máxima, originalmente aplicada ao processo de tradução entre idiomas,
também faria sentido quando relacionada à transposição de uma linguagem (no caso,
a literária) para outra (a audiovisual).
No caso das Cartas de amor... de Franco, um outro elemento complexifica ainda mais
a já suficientemente intrincada dinâmica de toda e qualquer adaptação: a sensibilidade
exploitation dos produtores que, em um certo sentido, permite a resscritura do texto
canônimo “original”, retendo o élan erótico ali contido e reenquadrando-o consoante as
expectativas do consumidor aficcionado por este gênero de filme. Tal movimento nos
permite questionar, por fim, em que medida as Cartas... de Franco não estariam a ten-
sionar quaisquer discursos estáveis acerca da portugalidade como categoria identitária.
Ratificando a tese de Olney (2013) segundo a qual um dos prazeres subjacentes ao euro
horror consistiria na espectatorialidade como performance, consideremos as múltiplas
possibilidades de engajamento em relação à ideia de “cultura portuguesa”, “literatura
portuguesa” ou “história de Portugal” que um espectador das Cartas... de Franco pode
estabelecer a partir do filme. Longe de considerar tais possíveis leituras problemáti-
cas em função da “infidelidade” da adaptação, prefiro, pelo contrário, visualizar estes
engajamentos múltiplos como hipertextos – para a obra de Franco, para a subvertente
do nunexploitation (de matriz ibérica ou não), para a obra literária que serviu de “base”
para o longa-metragem e, por fim, para a exploração em profundidade dos silêncios que
cercam a produção portuguesa (ou sediada em Portugal) no âmbito do horror.
Evidente que as proposições feitas no decorrer dos últimos parágrafos constituem
hipóteses passíveis de serem refutadas no decurso da investigação. Tal como se apre-
sentam aqui, no entanto, elas mais funcionam como estímulos ao debate de ideias, como
provocação ao caráter aparentemente estável do conceito de euro horror e, por fim mas não
menos importante, ao discurso que concebe Portugal como um país alheio ao gênero.

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Seduzidas pelo Demônio: sobre traduções e traições nas Cartas portuguesas de Jess Franco

Tiago José Lemos Monteiro

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Claudia Andujar:
poéticas visuais sobre o cotidiano Yanomami
A n a S h i rl e y P e n a f o r t e C a r d o s o 1

Resumo: Esta pesquisa propõe analisar no âmbito da teoria das imagens


discutida por: (BARTHES 2009); (DUBOIS 2010) e (SONTAG 2004) os pontos
de junção entre a fotografia documental e a fotografia artística. Para isso será
adotado como corpus de análise três fotografias produzidas por Claudia Andujar,
nos estados de Roraima e do Amazonas, em 1970. Essas imagens foram por
ela readaptadas no período de 2000 a 2005 e intitulada “Sonhos Yanomami”.
O projeto estudado, aqui, possui como tema central o cotidiano da sociedade
indígena Yanomami, que se compõe de cenas, recortadas de uma “realidade”
tecida por meio de uma poética do movimento, da luz, da cor, movidos pela
afetividade e interação, entre os sujeitos das narrativas visuais. A fotógrafa (re)
cria uma estética em torno da vida Yanomami e do universo que os cerca. As
fotos versam sobre corpos, sobrepostos, que se confundem entre elementos como
pedras e árvores e possuem o objetivo de mostrar o encontro deste povo com
os espíritos da natureza. Assim pode-se dizer que essa “fusão” resulta numa
construção visual simbólica do encontro entre o ser humano e o sobrenatural e
que podem ser concebidos como enunciados atravessados pelos discursos sobre
o que é ser indígena na contemporaneidade.
Palavras-Chave: Sociedades indígenas, Amazônia, fotografia.

Abstract: This research proposes to analyze, in the image theory field, discussed
by: (BARTHES 2009); (DUBOIS 2010) and (SONTANG 2004) the junction points
among the documentary photography and the artistic photography. For this it
will be assumed as analysis corpus three photos produced by Claudia Andujar,
in the states of Roraima and Amazonas, in 1970. Those images were readapted, by
her, in the period from 2000 to 2005 and were named “Sonhos Yanomami”. The
studied project have as central theme the everyday of the Yanomami indigenous
society, which is composed by scenes, cut from a woven “reality” by means of
a poetic movement, of light, color, moved by affection and interaction, among
the visual narratives subjects. The photography (re)create one esthetic around of
Yanomami’s life and universe that surrounds them. The photos tells about over-
lapped bodies, which confuses themselves among elements, as rocks and trees
and have the goal to show the encounter of these people with the nature spirit.
So, it can be said that “fusion” results in one symbolic visual construction of the
encounter among the human and the supernatural which may be understood
as statements crossed by speeches about what is to be an indigenous nowadays.
Keywords: Indigenous society, Amazon, photography.

1.  Mestre em Comunicação Linguagens e Cultura pela universidade da Amazônia – UNAMA -spenafore@
gmail.com

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Claudia Andujar: poéticas visuais sobre o cotidiano Yanomami

Ana Shirley Penaforte Cardoso

1-TRAJETÓRIAS DA LUZ COMO ESPAÇOS DE MEMÓRIA

A MAIOR PARTE do trabalho de Cláudia Andujar é dedicado à sociedade Yanomami2.


Segundo ela mesma diz (1998) é o fio condutor de sua vida e também de sua tra-
jetória como fotógrafa. A partir de 1971 fez seus primeiros registros junto a essa
sociedade que vive na floresta amazônica entre dois países da América latina, o Brasil
e a Venezuela. Do lado brasileiro, nos estados de Roraima e do Amazonas, por volta
dos anos 1970 as terras Yanomami sofreram bastante interferência em decorrência da
atuação do governo militar na construção da estrada Perimetral Norte, através do Plano
de Integração Nacional (PIN). O que, de certa maneira, promoveu, no mesmo período,
a expansão da exploração garimpeira de jazidas minerais na região. Os acontecimentos
mencionados trouxeram para esses indígenas um choque epidemiológico, que causou
perdas demográficas e degradação sanitária.
Em 1971 Claudia Andujar era responsável pelos registros fotográficos na região
Yanomami para uma reportagem especial sobre a Amazônia pautada pela revista
Realidade, da qual ela era colaboradora. Andujar que não os conhecia, até então,
contrariando a orientação da revista, fez seus primeiros registros, em plena ditadura
militar, nas aldeias próximas. Porém somente no início de 1980, começou efetivamente
o trabalho fotográfico com essa sociedade ao participar da Comissão pela Criação do
Parque Yanomami, doravante CCPY, de onde surgiram alguns projetos sociais, entre
os quais, um programa de saúde, no qual Andujar e uma equipe médica formada por
Rubens Brando e Francisco Pascalichio, visitaram as terras em questão.
Foi necessária a criação de fichas de saúde, nas quais, a equipe visitante buscou
a obtenção de melhorias no acompanhamento médico das pessoas atendidas pelo
programa. O uso desses cadastros reduziu, também, as dificuldades de comunicação,
através da língua. A documentação era composta por fotografias individuais, em preto
e branco, dos indígenas, que os mostravam com pequenas placas numéricas em torno do
pescoço. O conjunto das imagens era impactante e se tornou foco de denúncias, porque
evidenciava os problemas de saúde que as aldeias Yanomami enfrentavam à época.
Atravessada pelos ideais pessoais e os cultivados pela CCPY, Andujar publicizou
a urgência na redução dos problemas de saúde que se alastravam entre a socieda-
de Yanomami, quando fomentou a circulação desses retratos no Brasil e no exterior.
Difundiu-se assim a série fotográfica “Marcados”, anos depois, (2009), publicada em
um livro com o mesmo título. Esse projeto, também, foi exposto em importantes salões
de arte do mundo, como a 27ª bienal de arte em São Paulo. Essas imagens também
deram base estética e conceitual, assim como auxiliaram Andujar em vários trabalhos
posteriores.
É possível pensar que a produção e circulação dessas fotografias atualizaram a
memória do holocausto vivido pelos judeus, nos campos de concentração, em que eram
divididos em categorias e identificados com números, cores ou formas geométricas, à
época da Segunda Guerra Mundial. Este período da história marcou com violência a
infância de Cláudia Andujar, culminando com a sua fuga para os Estados Unidos e com

2.  O Etnômio “Yanomami” foi criado pelos antropólogos a partir das expressões yanamae thëp¨ou
yanãmami thëpë que significam “seres humanos” ALBERT, Bruce in: ANDUJAR, Claudia. Yanomami.
Curitiba: Gráfica e Editora Posigraf, 1998. p. 06 – 10.

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Claudia Andujar: poéticas visuais sobre o cotidiano Yanomami

Ana Shirley Penaforte Cardoso

a morte de sua família paterna, no entanto, a publicação dessas imagens exige, sobretudo,
ações governamentais efetivas, em relação à apropriação indevida das terras indígenas
no Brasil, que não está apartada dos heterogêneos processos históricos por que passam
esses povos desde a invasão portuguesa.
Os trabalhos da fotógrafa Claudia Andujar procuram há mais de 40 anos materializar
o cotidiano e as singularidades do povo Yanomami. Com especial destaque para seus
rituais sagrados, porque estas manifestações estão profundamente ligadas à relação
desse povo com espíritos da natureza. Esses projetos fotográficos circularam o mundo
e possibilitam perceber os processos de interação dessa sociedade com o universo que
os cerca. As imagens disponibilizadas por Cláudia Andujar transparecem a intimidade
e a cumplicidade construída entre eles ao longo desses anos como se pode conferir em
uma de suas últimas produções intitulada “Sonhos Yanomami”, e da qual nos deteremos
nesta comunicação.
Propõem-se, então, reflexões em torno das complexidades que giram em torno da
fotografia documental e/ou conceitual a partir da analise de três imagens que compõe
o projeto fotográfico “Sonhos Yanomami”, de Claudia Andujar, visto aqui como uma
(re)releitura da estética em torno da vida desta sociedade. Enfatizaremos nas análises
as condições de possibilidades históricas que viabilizam sua produção e circulação na
contemporaneidade, sem perder de vista, que são fotografias produzidas na década de
1970, e que em 2005 foram adaptadas para esse projeto. Tomaremos como base teórica
os estudos foucaultianos (2010, 2012) e as teorias de (BARTHES 2009); (DUBOIS 2010) e
(SONTAG 2004).

2-ENTRE CONSTRUÇÕES SIMBÓLICAS E TÉCNICAS


DE MANIPULAÇÃO DE IMAGENS
Há muito se debate sobre os efeitos da fotografia como registro documental e
testemunho de um acontecimento real para Barthes (2009) e Sontag (2004). As discussões
sobre esse tema ainda não foram esgotadas, porque a fotografia, compreendida como
enunciado, transita em espaços de memória que se visibiliza ou se silencia, de acordo com
as ordens estabelecidas nos determinados momentos históricos, ela adquire, portanto,
os contornos de seu tempo. O pensamento sobre a fotografia se confunde bastante com
os detalhamentos técnicos, e há uma tentação em procurar entender as transformações
por que passaram a produção fotográfica, somente a partir das mudanças tecnológicas.
Sem dúvida, este aspecto é fundamental, mas as redes de memórias em que o fotógrafo
e seus interlocutores estão envolvidos devem ser consideradas. Em grande medida, são
as relações entre as pessoas e suas histórias que definem por que uma série fotográfica
ganhou visibilidade e outra não.
Alguns elementos técnicos que compõe uma imagem fotográfica, como por exemplo,
a cor já traz uma calibragem específica programada pelo fabricante do equipamento e
isto interfere na imagem final. Seria o que se pode chamar de conceitos pré-codificados.
Temos que considerar os suportes pelos quais essa imagem será exposta: tela de
computador, impressão em papel, que também afetarão a resolução final da fotografia.
E, consequentemente, trará mudanças em seus efeitos visuais. Sobre o aspecto técnico
Flusser (2011, p. 23) diz:

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Claudia Andujar: poéticas visuais sobre o cotidiano Yanomami

Ana Shirley Penaforte Cardoso

Transcodificam determinadas teorias (em primeiro lugar, teorias da ótica) em imagem. Ao


fazê-lo magicizam tais teorias. Transforma seus conceitos em cenas... A fotografia em cores
é mais abstrata que a fotografia em preto e branco. Mas as fotografias em cores escondem,
para o ignorante em química, o grau de abstração que lhe deu origem. As brancas e pretas
são, pois mais verdadeiras. E quanto mais fiéis se tornarem as cores das fotografias, mais
estas serão mentirosas, escondendo ainda melhor a complexidade teórica que lhes deu
origem (Exemplos: verde “Kodak” contra verde “Fuji”)... O que vale para as cores vale,
igualmente, para todos os elementos da imagem. São todos eles, conceitos transcodificados
que pretendem ser impressões automáticas do mundo lá fora.

Acredita-se que as questões técnicas como já foi dito, modificam a espessura da


imagem fotográfica e pode ser uma maneira de controle dos fabricantes no momento
da confecção das imagens. Entretanto é necessário, também, considerar sua ligação
com a história e a memória, porque há maneiras e formas de “ver” e “visibilizar” que
estão profundamente ligadas ao momento histórico. As imagens da série “Sonhos
Yanomami”, são coloridas e resultam de técnicas de manipulação e sobreposição de
fotografias retiradas do acervo de Andujar, muitas delas, foram produzidas, ainda no
início de sua carreira, outras fizeram parte, inclusive, do projeto “Marcados” descrito,
anteriormente, neste texto, mas que se reconfiguraram, a partir da mudança na técnica
e no conceito visual aplicado ao trabalho.
Uma das interferências sofridas pela imagem acontece durante a revelação de
películas 35 mm, conhecidas no Brasil como diapositivo. Outra maneira de modificação
técnica da imagem, adotada por Andujar, é a reunião de dois ou mais fotogramas no
ampliador, que pode ser definido, em linhas gerais, como: aparelho usado no laboratório
fotográfico para a obtenção de cópias fotográficas. Essas mudanças nas imagens nos
possibilitam perceber que sua fotografia reúne técnicas que modificam a estrutura
imagética e com isso, alteram-se também os efeitos de sentidos gerados por elas, porque
surgem novas imagens, portanto um novo enunciado visual, que acionam outros
mecanismos na memória do observador da imagem.
O enunciado visual construído em “Sonhos Yanomami” nos permite dizer, a partir
de Foucault (2010, 2012), que as condições de possibilidades históricas, favoreceram
essa construção imagética, mas, apesar da modificação estrutural na imagem, mantém
o significativo discurso sobre a questão indígena brasileira. Em outras palavras, pode-
se dizer que as condições de possibilidades históricas permitem que a fotógrafa crie
visualidades sobre a sociedade Yanomami, a partir de sua interpretação do que é ser
um Yanomami hoje.
De maneira mais subjetiva pode-se dizer que a fotógrafa, ao juntar imagens do seu
acervo, de épocas diferentes, em uma única imagem, reúne também temporalidades
distintas, que juntas, tecem narrativas visuais bastantes complexas, porque é dessa
reunião de tempos que emergem as (des)continuidades da história, assim como, a
memória das imagens. E possibilita a elaboração de outros conceitos sobre sociedades
indígenas, mais especificamente, sobre os Yanomami, além de encontrar novas maneiras
de visibilizá-los. Se antes havia uma emergência em denúncias sobre as condições de
saúde das aldeias, hoje, a preocupação tem maior relevância na preservação cultural
desse povo.

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Claudia Andujar: poéticas visuais sobre o cotidiano Yanomami

Ana Shirley Penaforte Cardoso

SOBRE FOTOGRAFIAS DOCUMENTAIS: POÉTICAS POSSÍVEIS


Para os Yanomami, os rios, as plantas e os animais fazem parte de um grande círculo
da vida, em que todos estão interligados. Falar de natureza é falar também do universo
e do ser humano. As imagens da série “Sonhos Yanomami” versam sobre o ritual de
passagem, pelo qual os corpos físicos desses indígenas se transformam em estados de
energia, e se configuram em espíritos da floresta os Xamãs e os Xaripë. As fotografais
mostram uma “fusão” de corpos, sobrepostos, entre pedras, árvores e areia. Traduzem o
que eles acreditam ser a própria natureza. E nos possibilita dizer que essa mistura resulta
numa construção visual simbólica do encontro entre o ser humano e o sobrenatural.
Na Figura 01, o azul é a cor predominante. À esquerda da fotografia, percebe-se um
leve tom magenta. No alto, à direita nota-se um ponto forte de luz que surge no interior
da imagem. O primeiro plano é ocupado, em diagonal, pelas formas de um corpo, do
sexo masculino, caracterizado em detalhes, pelos cabelos curtos, partes do rosto, os olhos
fechados, a boca cerrada, a cabeça virada para a esquerda. Dos membros inferiores e
superiores, apenas uma parte do braço direito está visível na fotografia, um dos fatores
que provoca certa desestabilidade ao olhar do observador, uma vez que desconfigura
o conceito que se estabeleu historicamente sobre a constituição de um corpo humano.
Assim, esse corpo representado na imagem torna-se uma figura que parece flutuar
sobre nuvens. Pode-se dizer que essa representação assume, para nós, características
sobrenaturais. Trata-se, no entanto, de uma cena do ritual Xamânico Yanomami, que
para eles ocupa um lugar de divindade, um lugar de reunião cósmica com a gênese do
seu povo. O corpo do indígena, representado na fotografia, materializa o que para os
Yanomami é a chegada dos espíritos. Observa-se então, que Claudia Andujar, enquanto
fotógrafa, através das “entrelinhas do discurso” como disse Foucault (2010) deixa ver,
algumas temporalidades e singularidades do ritual indígena e propõe outras formas de
visibilidade para o sagrado, que foi engendrado pela voz do colonizador e que reverbera
na contemporaneidade, quando nos deparamos com cena de “Sonhos Yanomami” e nos
remetemos às imagens dos santos, cultuados pela Igreja Católica.
Figura 01. Da série “Sonhos Yanomami”

Foto: Claudia Andujar. Disponível em: http://www.frmaiorana.org.br/2010/2010.pdf

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Claudia Andujar: poéticas visuais sobre o cotidiano Yanomami

Ana Shirley Penaforte Cardoso

A figura 02 destaca, diante de um fundo preto, o detalhe de um rosto humano, que


aparece em diagonal e preenche praticamente todo o quadro. A fotografia também
possui vários pontos escuros e claros, que evidenciam ranhuras e fissuras profundas. E
trazem para ela mais contraste e textura. . Em linhas gerais, a imagem do rosto funde-se
com a imagem de uma rocha e dessa fusão, nasce uma narrativa poética sobre o urihi,
a terra-floresta que para os Yanomami significa a junção das pessoas e animais aos
elementos da natureza.
Todo esse conjunto de efeitos visuais evoca um clima de silêncio e calma, perceptíveis
e reforçados pela profundidade do olhar transversal e longínquo do indígena, que
embora, pareça alheio à cena, transparece confiança e interação com a fotógrafa. Dubois
(2010), diz que o olhar, nos retratos, transborda para além da cena recortada. Diante
desse raciocínio, pensamos que o olhar representado na imagem de Andujar, busca
respostas para a história do povo Yanomami, nas relações que se estabelecem com o
outro e consigo mesmo, a partir da natureza. O rosto é um elemento bastante presente
nos retratos, desde o surgimento da fotografia, até os modernos selfies. Dubois (2010).
Também pontua momentos na história quando o retrato fotográfico passou a ser
usado como documento, como objetos de recordação entre as pessoas.

Figura 02 - Hélio para os brancos – da série: “Sonho Yanomami”

Foto: Claudia Andujar. Disponível em: http://www.frmaiorana.org.br/2010/2010.pdf

O adentramento da fotógrafa Claudia Andujar nas aldeias e, conseqüentemente,


na genealogia e processos culturais do povo Yanomami adquiriu contornos e
aprofundamentos ao longo de décadas de convívio. Andujar mergulha no universo
mítico dessa sociedade, que através dos rituais Xamânicos mantém contato com seus
ancestrais. Andujar traz para série sonhos Yanomami uma interpretação, visual dessa
transcendência, que é vital para a cultura desse povo. Como mostra a figura 03, o
Guerreiro de Toototobi e como narra: Kopenawa Yanomami:

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Claudia Andujar: poéticas visuais sobre o cotidiano Yanomami

Ana Shirley Penaforte Cardoso

Quando se toma pela primeira vez o pó da árvore yãkãanahi os espíritos xaripë começam
chegar até você. Primeiro ouvem-se de longe seus cantos de alegria, tênues como zumbidos
de mosquitos. Depois, quando olhos estão morrendo, começam-se ver luzes cintilantes que
tremem nas alturas, vindas de todas as direções do céu. Aos poucos os espíritos se revelam,
avançando e recuando com passos de dança muito lentos. Eles são minúsculos e pintados de
cores brilhantes. Suas cabeças são cobertas de plumas brancas de gavião e suas braçadeiras
cheias de rabos de arara e de papagaio. Dançam em círculo sem pressa. Mas, de repente,
armados com grandes “espadas”, partem ao meio sua coluna vertebral. Cortam sua cabeça
e sua língua. Sente-se então uma dor intensa e você desmaia. Seu envelope corporal fica
no chão, mas os xaripë voam para longe, levando as partes do seu corpo imaterial. Deitam-
nas em seus espelhos, nas costas do céu, e pintam-nas com urucum. Raspam sua língua e
a cobrem de plumas brancas. Mais tarde recompõem seu corpo, mas ao contrário: juntam
a cabeça no lugar do traseiro e as pernas no lugar dos braços. Uma vez virado do avesso,
você pode responder aos espíritos e imitar seus cantos, você pode ser um xamã.

Figura 03. Guerreiro de Toototobi - da série: “Sonhos Yanomami”


Disponível em: http://www.frmaiorana.org.br/2010/2010.pdf

PARA NOVOS COMEÇOS


A produção de Claudia Andujar nos ajuda a pensar sobre a fotografia como uma
narrativa visual que nasce de uma realidade, vista por determinado sujeito, que se
singulariza ao recortar determinada cena e não outra. Neste sentido, a realidade tecida
cotidianamente pode ter várias versões a partir da observação de diferentes sujeitos.
Roland Barthes (2009, p. 14), ao se referir à imagem fotográfica que possui múltiplas
possibilidades de interpretação: “Seja o que for o que ela dê a ver e qualquer que seja a
sua maneira, uma foto é sempre invisível: não é ela que nós vemos”.
Assim, essa fotografia pode ser modificada, alterada, a partir do modo como é
vista. Esse raciocínio está atravessado também pelas reflexões levantadas por Dubois

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Claudia Andujar: poéticas visuais sobre o cotidiano Yanomami

Ana Shirley Penaforte Cardoso

(2010), das quais também compartilhamos, especialmente, quando ele diz que o instante
recortado do cotidiano deixa de ser real, desde o momento em que vira uma imagem,
porque passa por um crivo, uma interpretação. Essa ideia é defendida também por
Susan Sontag (2010. p, 17): “fotos são interpretações o mundo”.
Para os Yanomami essa noção de realidade também é bastante questionável. Em
entrevista Andujar (2000)3 diz que houve momentos em que alguns indígenas não se
interessaram e nem se reconheciam nas fotografias, mas em outros, gostavam bastante
de serem vistos nas imagens e queriam ser fotografados. Havia uma preocupação espe-
cial em relação à fotografia e à morte entre eles. Claudia Andujar (2011)4 afirma que
as fotografias devem ser destruídas, para que suas almas não fiquem aprisionadas. Na
cosmologia Yanomami, tudo que pertenceu ao indígena que recebeu o ritual de passa-
gem deve ser destruído. Tudo que o ligue à vida deve desaparecer, até a cremação do
seu corpo, porque é o momento da liberação de sua alma.
A série “Sonhos Yanomami” versa sobre um universo entre o visível e o invisível que
atravessa as memórias pessoais, da fotógrafa, dos sujeitos representados nas imagens e
as memórias dos possíveis interlocutores dessa produção. As fotografias se confundem
entre visualidades poéticas e a foto documentação, deixando o espectador livre para
criar a partir de suas experiências e memórias pessoais, suas interpretações a respeito
dos elementos que compõe cada imagem. A série transcende o registro literal físico da
paisagem e do humano da Amazônia.

REFERÊNCIAS
ANDUJAR, Claudia. Yanomami. Curitiba: Gráfica e Editora Posigraf, 1998
BARTHES, Roland. A câmara clara: Nota sobre a fotografia. Lisboa, Portugal: 70, 2009.
DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas, São Paulo: Papirus, 2010.
FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: Ensaios para um futura fotografia. São Paulo:
Annablume, 2011.
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
_______ . A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de
dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola, 2010.
MAIORANA, Roberta. 29º Arte Pará. Belém Pará: Gráfica e Editora Halley, 2011.
PERSICHETTI, Simonetta. Imagens da fotografia brasileira 2. São Paulo: Estação liberdade/
Senac SP, 2000.
SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia de Letras, 2004.

Sites consultados:
<http://tvcultura.cmais.com.br/provocacoes/antonio-abujamra-entrevista-a-fotografa-
-claudia-andujar-bloco-02-> Acessado em 01/03/2015.
<http://www.frmaiorana.org.br/2010/2010.pdf> Acessado em 25/02/2015.

3.  Entrevista disponibilizada em PERSICHETTI, Simonetta. Imagens da fotografia brasileira 2. São Paulo:
Estação liberdade/ Senac SP, 2000. p. 114 – 22.
4.  Entrevista disponível em: <http://tvcultura.cmais.com.br/provocacoes/antonio-abujamra-entrevista-
a-fotografa-claudia-andujar-bloco-02->

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