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Universidade Federal do Rio Grande do Sul


Instituto de Filosofia e Ciências Humanas vol. 06 num. 12
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Núcleo de Antropologia Visual - Banco de Imagens e Efeitos Visuais

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Organização
José Luís Abalos Júnior - Doutorando em Antropologia Social (PPGAS/UFRGS), Brasil 
Hermes de Sousa Veras - Doutorando em Antropologia Social (PPGAS/UFRGS), Brasil 
Editoras
Fotos da Capa e Contracapa
Ana Luiza Carvalho da Rocha, UFRGS, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil 
Daniel Meirinho, Leandro Barbosa dos Santos, Diego Omar da Silveira, Helon da Silva Coelho, Renan Jorge Souza
Cornelia Eckert, UFRGS, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil 
da Mota, Yandrei Souza Farias e Fábio Gama Soares Evangelista
Comissão Editorial
Diagramação e Editoração
Camila Braz, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — caamilabraaz@gmail.com Felipe da Silva Rodrigues - Pesquisador associado Biev - UFRGS, Brasil
Fabricio Barreto, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — fabriciobarreto@gmail.com
Felipe da Silva Rodrigues, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — felipe.editoracao@gmail.com
Guillermo Gómez, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — guillermorosagomez@gmail.com
Joanna Sevaio, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — jmsevaio@gmail.com
José Luis Abalos Junior, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — abalosjunior@gmail.com

foto
Leonardo Palhano Cabreira, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — leo.csociais@outlook.com
Manoela Laitano Chaves, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — manoelalaitano@gmail.com
Marcelo Fraga, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — mrsfraga@gmail.com
Matheus Cervo, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — cervomatheus@gmail.com
Thiago Batista Rocha, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil — thiago.batista@ufrgs.br

crono
Conselho Editorial

Angela de Souza Torresan, University of Manchester, Inglaterra


Carlos Masotta, UBA, Argentina 
Carmen Sílvia de Moraes Rial, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Christine Louveau de la Guigneraye, Centre Pierre Neville, Université d’Évry-Val-d’Essonne, Maître de conférences
en communication, França 
Daniel Daza Prado, IDES, Argentina 
Daniel S Fernandes , UFPA, Universidade Federal do Pará — Campus Bragança 
Fernando de Tacca, Unicamp, Brasil 
Flávio Leonel da Silveira, Universidade Federal do Pará, Brasil 
Gisela Canepá Koch, Departamento de Ciencias Sociales de la Pontificia Universidad Católica del Perú, Perú 
Jesus Marmanillo, Universidade Federal do Maranhão, Brasil 
João Braga de Mendonça, Universidade Federal da Paraíba, Brasil
Luciano Magnus de Araújo, Universidade Federal do Amapá, Brasil
Luiz Eduardo Achutti, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil 
Milton Guran 
Paula Guerra, Universidade do Porto, Portugal 
Renato Athias, Universidade Federal de Pernambuco, Brasil 
Rumi Kubo, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil 
Sarah Pink Instituto Real de Tecnologia de Melbourne, Austrália 
Sylvaine Conord, Université Nanterre, França Imagens da religião:
www.ufrgs.br/biev/
pa isagens e terr itór ios do sagrado
medium.com/fotocronografias
fotocronografia@gmail.com
+55 (51) 3308 6647

2020
Ritual e(é) imagem: gestos, corpos e materialidades 142
Sumário
vol.06 num.12
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Laroyê, Exu Mulher! A Festa da Rainha 144
Imagens da Religião: Jean Souza dos Anjos
Pa isagens e Terr itór ios do Sagrado
A dança dos orixás: 160
quando o sagrado é arte do corpo
Apresentação 07 Leandro Barbosa dos Santos
José Luís Abalos Júnior
Hermes de Sousa Veras O jabá de Ogum 178
Lucas Marques

Corpo-Nanã: 194
uma experiência de encantamento no manguezal
Cleyce Silva Colins
Religião em imagem e movimento 12
Larissa Colins Micenas

Na função” - fotoetnografia de um dia no terreiro de candomblé 16 Os encantos da encantaria: imagéticas do encantar-se 206


Aisha - A. L. Diéne

Divino: A Festa do Divino em São João del-Rei 34


Thiago de Andrade Morandi
A sombra da Jurema 208
Clédisson Junior
Dia de São Jorge Ogum do Mundo 48
Fábio Gama Soares Evangelista Um Toque para os Encantados 226
Kauã Vasconcelos
Penedo te abraça, Penedo te quer bem: 70
O festejo a Santo Antônio no antigo Barro Vermelho Territórios encantados: 240
Paula Louise Fernandes Silva
etnografias visuais das religiões populares em Parintins (Amazonas)
Una estrella resplandece: danza, trabajo 86 Diego Omar da Silveira
Helon da Silva Coelho
y servicio en la peregrinación al Señor de Qoyllurit’i Renan Jorge Souza da Mota
Mirrah Iañez Gonçalves Da Silva
Yandrei Souza Farias
Sofía Silva
O universo ritualístico do povo indígena Jiripankó: 256
La realización de “El Divino Rostro”: 102
espaços, personagens e paisagens
Un documental de la danza de Santiagos José Adelson Lopes Peixoto
José Manuel Moreno Carvallo
Yuri Franklin dos Santos Rodrigues
David Robichaux Haydel
Jorge Martínez Galván
A performance ritualística no 276
Peregrinos em Sodo, Haiti 122 Toré Pankará — Fotoetnografia do encantamento
Nadège Mézié Daniel Meirinho

Conclusão 296
2020
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Apresentação
José Luís Abalos Júnior ¹
Hermes de Sousa Veras ²

vol. 06 num. 12
Imagens da religião:
pa isagens e terr itór ios do sagrado

Quando tiro uma fotografia, não sou eu que fotografo, mas alguma coisa
dentro de mim que aperta o clic sem o meu próprio domínio… (Verger, P. 1991)

Religião e fotografia. Imagem e Sagrado. De um lado, a Antropologia Visual


e da Imagem. De outro, a Antropologia da Religião. Quais os desafios no
debate sobre as fronteiras, aproximações e distanciamentos entre essas
duas áreas? A gênese deste dossiê parte da própria trajetória de pesquisa
dos organizadores, que têm formação no Núcleo de Antropologia Visual
(NAVISUAL/PPGAS/UFRGS), no Banco de Imagens e Efeitos Visuais (BIEV/
PPGAS/UFRGS) e no Núcleo de Antropologia da Religião (NER/PPGAS/UFR-
GS). Ao perceber a Revista Fotocronografias como um espaço interessante
para publicações textuais e imagético/fotográficas, que articulem o tema
da religião com o da imagem, propomos esse dossiê que, desde a constru-
ção da sua chamada, se mostrou, para nós pelo menos, como um horizon-
te muito interessante de composição.

1 - Doutorando em Antropologia Social (PPGAS/UFRGS) tem vínculo com o Núcleo de Antropologia Visual (NAVISUAL/PPGAS/UFRGS) e com
o Banco de Imagens e Efeitos Visuais (BIEV/PPGAS/UFRGS) realizando pesquisas que envolvem o tema da imagem, arte, cidade e memória.
abalosjunior@gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-2821-0969
http://lattes.cnpq.br/2132831693109488

2 - Doutorando em Antropologia Social (PPGAS/UFRGS), participa como membro doutorando do Núcleo de Antropologia da Religião (NER/PP-
GAS/UFRGS), e do MARES — Religião, arte, materialidade, espaço público: grupo de antropologia (UFRGS/CNPq). Também atua como pesqui-
sador do LEBARA — Religião e Sociedade (UNIFESSPA/CNPq). Realiza pesquisas junto a povos de terreiro e encantaria na Amazônia paraense.
hermesociais@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-5740-4028
http://lattes.cnpq.br/0623441518771115
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A relação entre religião e fotografia é historicamente marcada pela cons- la inha editorial da Revista Fotocronografias. A revista é construída pela
tituição de grandes imagens que se tornaram ícones das descobertas de equipe do Banco de Imagens e Efeitos Visuais (BIEV/PPGAS/UFRGS) que há
novos modos de crer e estar no mundo. Também passou por significativas mais de 20 anos é um espaço acolhedor de pesquisadores e pesquisadoras
contradições éticas, quando pesquisadores/fotógrafos se aventuraram com com trajetória de pesquisa etnográfica envolvendo os temas da imagem, da
suas lentes no território religioso³. Contudo, mais que construir uma produ- cidade e da memória. Quais a conexões entre as imagens advindas do campo
ção visual sobre o assunto, as análises antropológicas se detinham, e mui- religioso com essa linha editorial? Para responder tal questão incluímos na
tas ainda se detêm, em uma reflexão sobre o material visual produzido por chamada a ideia de “paisagem” e “território” como elementos identificado-
diversas matrizes religiosas. O que é muito importante para o acompanha- res dessa tradição de pesquisa. Assim, foram selecionados ensaios que, em
mento do processo de difusão, crescimento e embate entre distintas matri- maior ou menor medida, se relacionam com essas temáticas dentro da pes-
zes religiosas⁴. quisa com matrizes religiosas.

Por outro lado, Birgit Meyer (2018) e outras pessoas têm mostrado que a in- Ao trazer um panorama geral das contribuições que aqui se encontram, nos
fluência da análise de Max Weber do protestantismo nos estudos de religiões deparamos com a realidade de que esta publicação não representa um “raio
néo e pentecostais, mas também outras religiões cristãs, acaba por fazer x” do campo religioso brasileiro, mas sim um esforço de apresentação de
com que esses estudos deixem de lado as estéticas e materialidades. Há alguns trabalhos levando em consideração a pluralidade religiosa do país.
o esforço para que isso seja revisto. Contudo, devemos mencionar que nas Por uma diversidade de motivos a chamada acessou mais umas redes do que
religiões de matrizes africanas esses aspectos sempre estiveram presentes, outras⁶.Nesse sentido tivemos quatro matrizes religiosas, nas suas hetero-
justamente pela própria epistemologia e corporalidade dessas religiões. Se geneidades internas, que aqui aparecem: catolicismo (25%), religiões de
as pesquisas nem sempre estiveram atentas a isso, as lideranças de reli- matrizes africanas (38%), religiões que estão no cruzamento entre matrizes
giões de matrizes africanas e seus coletivos mostram que corpo, espírito, afros e indígenas (18,5%) e religiões ligadas aos povos indígenas (18,5%)⁷.
ritmo e estética sempre caminham com certa materialidade e re-existência.
Outro elemento a ser apresentado é a distribuição geográfica de onde as
Pierre Verger parece ser um marco na união entre religião e imagem. O fo- pesquisas foram realizadas. Dos 16 trabalhos aqui expostos, vemos uma pre-
tógrafo franco-brasileiro territorializou-se em Salvador, na Bahia, em 1946, ponderância da região nordeste, com sete trabalhos produzidos, seguidos
constituindo uma relação profunda com as religiões de matrizes africanas. do eixo sul/sudeste com quatro e da região norte com duas pesquisas. Com-
Através da fotografia produziu imagens que marcam a história desse casa- plementam esse quadro três pesquisa realizadas fora do Brasil, no Peru, Mé-
mento entre fotografia e religião⁵. Também influência metodologicamente o xico e Haiti. As produções atravessam vários temas ora relacionados ao cam-
campo através do “método instintivo” no qual o fotógrafo e etnógrafo privi- po da Antropologia Visual, como o debate sobre representação imagética e
legia a espontaneidade das expressões e das cenas, buscando imagens não restituição, ora mais ligadas ao campo da Antropologia da Religião, como as
marcadas por uma composição estudada. Todavia, não se pode deixar de relações inter-religiosas e a encantaria. Interessante perceber as multiplici-
colocar um contraponto à sua visão relativamente idealizada do candomblé dades de conexões possíveis entre áreas e conceitos distintos que fazem um
e da harmonia racial na Bahia. (Sauty, 2011. p 421). movimento de aproximação e distanciamento nos trabalhos aqui expostos.

Umas das preocupações que nos acompanhou nesse processo de edição, O sincretismo é uma noção que aparece em alguns trabalhos aqui apre-
montagem e curadoria deste dossiê foi a da vinculação dos ensaios com sentados. Esse controverso conceito é geralmente utilizado para descrever

3 - No Brasil, as primeiras imagens do Candomblé, como escreve Fernando De Tacca (2004), dizem respeito a uma reportagem do jornal O Cruzeiro 6 - Desde de o início do processo de divulgação da chamada encaminhamos para vários núcleos e pesquisa em religião e em imagem, assim como
com o título sensacionalista “As noivas dos deuses sanguinários”. O ensaio do fotojornalista José Medeiros, que depois veio a virar um livro chamado para associações como ABA, ANPOCS, SBS, e la Asociación de Cientistas Sociales de la Religión do Mercosul (https://www.acsrm.org/nosotros/)
“Candomblé” em 1957, teve grande repercussão nacional.
7 - Uma questão interessante a se colocar é a falta de trabalhos recebidos no campo evangélico (em todas as suas complexidades e diferenças).
4 - Na sétima edição do “Cadernos de Antropologia e Imagem” que traz o tema “Imagens da Religião” (1998) percebemos esse perfil mais reflexivo, Apesar de várias pesquisas já terem apontado para os interditos da fotografia dentro do culto, o templo como local sagrado, além de outros empe-
por parte dos antropólogos e antropólogas, referentes às imagens produzidas por setores do campo religioso. cilhos, isso não necessariamente impede que pesquisas sejam feitas em igrejas de menor escala, distribuídas pelos bairros. De qualquer maneira,
nesse campo religioso, parece permanecer o estudo de produção e recepção das imagens, ao contrário da sua produção pela pesquisadora ou
5 - Fundação Pierre Verger https://www.pierreverger.org/br/ pesquisador.
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processos envolvidos nas religiosidades de matrizes africanas e indígena. A questões importantes na antropologia visual como a ideia de representação
sua utilização acaba por congelar o colonialismo e racismo que engendrou (Gonçalves, 2009; Novaes, 2008). Aqui muito trabalhos assumem o desafio
o catolicismo enquanto religião central no Brasil. Sérgio Ferretti (2013), em de exporem imagens que dialoguem com as palavras, num fluxo contínuo
sua síntese do conceito, relembra que se observamos bem, todas as religiões que não se associa somente uma descrição textual e visual. Cabe ressaltar
são sincréticas, no sentido em que recebem influências e se relacionam com a importância das imagens não como mera ilustração, mas como elementos
as demais. Também reforça que várias lideranças dos movimentos negros e que revelam aspectos, por vezes ocultos quando somente analisados numa
de terreiros repudiaram o sincretismo enquanto possibilidade de descrever perspectiva textual, das situações religiosas e ritualísticas observadas. Isso
as suas religiões. Diante disso, os ensaios apresentados neste dossiê, em- significa que levar as imagens a sério (Samain, 2012) nos dá um duplo traba-
bora alguns mesmos façam uso do termo, apresentam em suas imagens a lho: um relacionado ao objeto de pesquisa, outro que diz respeito ao traba-
potência do encontro entre religiões de matrizes indígenas e africanas: a Ju- lho das imagens. Ao escrever sobre e fotografar religião, este duplo trabalho,
rema, a encantaria afro-brasileira dos terreiros na Amazônia, e as encanta- parece ser mais significativo levando em conta os imponderáveis estéticos e
rias indígenas apresentadas no toré mobilizado pela nação Pankará, no ser- éticos provenientes da fotografia no campo religioso.
tão Pernambucano e pelos rituais praticados pela nação Jiripankó, no sertão
alagoano. De maneiras diferentes, tanto em forma quanto em intensidade, O conceito de “fotoetnografia” também parece ser bastante mobilizado por
talvez com exceção do caso Jiripankó que mostra um modo bem específico pesquisadoras e pesquisadores que trabalham com imagem no campo re-
e particular de encantamento e religiosidade, essas imagens trazem aquilo ligioso. Construído no fim dos anos noventa pelo antropólogo Luiz Eduardo
que Abdias Nascimento denominou de único encontro que mereceu o nome Robinson Achutti o conceito se disseminou por inúmeras redes de pesqui-
de sincretismo, isto é, aquele entre as próprias culturas africanas entre si, e sas que relacionam a fotografia com diversas áreas. E quando falamos no
destas com as culturas e religiões indígenas (2016). campo religioso a disseminação da fotoetnografia é notável. Isso demonstra
o quanto o uso etnográfico de narrativas fotográficas que, na sua potência
Na relação afro-católica, que veremos em um ensaio apresentando neste visual, passem uma mensagem que vá além do texto escrito, que “falem por
dossiê, perpassa um movimento de resistência negra para a preservação de si só” (Achutti, 1997), se difundiu enquanto conceito e enquanto prática na
parte de sua religiosidade, assim como também um movimento de criação, Antropologia Visual no Brasil.
esse aspecto envolvendo a criatividade e a resistência para pensarmos as
relações afro-católicas que foram bem trabalhadas por José Carlos dos Anjos Outro elemento a ser mencionado ao falarmos das produções visuais conti-
e Ari Oro (2009), Maria da Consolação Lucinda (2016), Talita Neves (2018), das neste dossiê, é o da técnica fotográfica associada a questões de pesqui-
dentre outras e outros. Com os ensaios apresentados, acreditamos que eles sa em campo. Em muito trabalhos, após o conhecimento dos pesquisadores
evidenciam, a partir de suas narrativas visuais, muito mais a criação, a re- e pesquisadoras das questões culturais apresentadas por seus grupos de
sistência e o movimento a partir do encontro de religiosidades, do que a interlocutores e interlocutoras, a etnógrafa e o etnógrafo, equipado com câ-
simples imagem de um conceito congelado. meras, procura uma fórmula técnica adequada para deixar esteticamente
exposta as dimensões êmicas do campo de pesquisa. Quando opções feitas
Abordando questões diretamente ligadas ao perfil de quem produziu as ima- como a velocidade de obturador, uso do preto e branco e enquadramentos
gens desta edição podemos perceber que recebemos trabalhos de pesqui- dialogam com as expressividades religiosas aqui apresentadas, percebemos
sadores e pesquisadoras que tem como temática principal o campo religio- um quadro criativo de descrições. Por exemplo, captar movimentos através
so, e usam a câmera fotográfica como aporte a suas pesquisas. Por outro de uma baixa velocidade de exposição pode ser um diálogo interessante com
lado, também temos submissões de antropólogas e antropólogos visuais que uma religiosidade que vê algo de sagrado na ideia de movimentos. O uso do
se aventuram em produzir fotografias do campo religioso. Estes dois perfis preto e branco, que aparece em 5 ensaios, também parece ser um impera-
são complementados por pesquisas desenvolvidas em outras áreas, princi- tivo estético conectado com as cosmologias dos grupos fotografados. Então,
palmente artes, arquitetura e fotojornalismo. vimos aqui bons exemplos de como a técnica se associa ao êmico e de como
o click fotográfico pode ser pensando de inúmeras maneiras, principalmente
Tal gênese da trajetória de quem produziu as pesquisas nos leva a debater quando falamos de religião.
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Agregamos os ensaios em três eixos temáticos que dialogam, de certa ma-


neira, entre si. O primeiro traz referência a uma interessante relação entre
religião em movimento, referenciando festas, festejos e peregrinações que
parecem ser o foco de muitas produções fotográficas no campo religioso. O
segundo eixo é composto por ensaios nos quais os pesquisadores e pesqui-
sadoras, através de uma prerrogativa ética, acessam momentos rituais das
religiões pesquisadas, trazendo elementos como gestos, corpos e materiali-
dades. Por fim, no último eixo, expomos as imagens da “encantaria” na qual
as estéticas do encanto e do encantar-se são parte sensível, principalmente
das imbricações entre religiões de matrizes africanas e indígenas.

Referências

ACHUTTI, L. E. R. Fotoetnografia : um estudo de antropologia visual sobre cotidiano, lixo e trabalho. 1a ed. Porto Alegre, RS : Livraria Palmarinca
: Tomo Editorial, 1997

ABALOS JUNIOR, J. L; KUBO, R. Entrevista com Luiz Eduardo Robinson Achutti. Iluminuras, Porto Alegre, v. 16, n. 40, p. 393–410, ago/dez, 2015.

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LUCINDA, Maria da Consolação. Territórios Religiosos. Conexões entre passado e presente. 1ª edição. Curitiba: Appris, 2016, 285 p.

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MEYER, Bergit. A estética da persuasão: as formas sensoriais do cristianismo global e do pentecostalismo. Debates do NER, n. 34, p. 47–54,
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MORGAN, D. The Embodied Eye. Religious visual culture and the social life of feeling. Berkeley: University of California Press, 2012, Part I, p.
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NEVES, Talita Viana. O Moçambique de Tonho e Lena: um eixo na tradição afro-brasileira do reinado de Nossa Senhora do Rosário. 2018. 259f.
Tese (Doutorado em Antropologia) — Universidade de Brasília, Brasília, 2018.

NOVAES, Sylvia Caiuby (org.). Imagem, Magia e Imaginação: desafios ao texto antropológico. MANA 14(2): 455–475, 2008

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SAMAIN, Etienne.(org.). Como pensam as imagens. São Paulo. Editora da Unicamp, 2012.

SOUTY, Jérôme. Pierre Fatumbi Verger: do olhar livre ao conhecimento iniciático. Tradução Michel Colin. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2011.

VERGER,, P. Entretien avec Emmanuel Garrigues. L’Ethnographie, numéro especial. Ethnographie et Photographie, CXXXIII, 1 (1991), pp. 45–178
Religião em imagem e movimento
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Neste primeiro eixo, “Religião em Imagem e Movimento”, os trabalhos lançam mão de para acompanhar as danças ofertadas para os santos. No caso, os santos aqui são
diversos conceitos para construírem suas narrativas. Estão presentes, principalmen- as próprias máscaras produzidas pelos dançantes. No ensaio podemos acompanhar
te, as noções de festa/festejo, peregrinação e a dança. Veremos surgir nos diversos a fabricação dos santos, a sua utilização e a união entre santo e dançante: o santo
ensaios apresentados o movimento enquanto experiência no território, mas também dança. Por fim, Nadège Mézié encerra o primeiro núcleo temático com ““Peregrinos
enquanto ação dele. Neste eixo também visualizamos as correspondências possíveis em Sodo, Haiti”. Em suas fotos, o vodu haitiano é vivenciado por mulheres e homens,
entre imagem, religião e patrimônio. A importância do registro imagético de cele- quando há uma peregrinação anual à Sodó, vilarejo que fica na região central do
brações históricas expondo a relevância de tais acontecimentos na memória e na Haiti. Nesse momento são celebradas a entidade do vodu haitiano, Ezili Dantò, junto
história do Brasil. com Nossa Senhora do Carmo (ou Nossa Senhora do Monte Carmelo) além de outras
entidades do vodu haitiano. Na narrativa, a vida se engaja na natureza territorializada
Aisha Diéne, com “Na função: fotoetnografia de um dia no terreiro de Candomblé” e celebrada junto aos espíritos do vodu.
traz os engajamentos, cuidados e convivência mobilizados em um dia no terreiro,
e embora uma festa seja iminente, a sua narrativa foca nos preparativos para que
tudo ocorra bem e que a festa comungue humanos com Nkisses/Orixás, no terreiro
de raíz quilombola Manzo Ngunzo Kaiango, localizado na região metropolitana de
Belo Horizonte, Minas Gerais. Uns dos aspectos interessantes no ensaio de Aisha é a
demonstração dos processos cotidianos que envolvem a preparação de uma festa, e
não necessariamente a festa em si. Ainda no estado de Minas Gerais, Thiago Morandy
apresenta “Divino: A Festa do Divino em São João Del-Rei”, lançando mão de técnicas
de congelamento das imagens, os movimentos das congadas são narrados em movi-
mentos, cores e ritmos de uma manifestação que tem raiz na resistência de africanos
que foram escravizados em solo brasileiro.

Ogum e São Jorge se encontram no ensaio de Fábio Evangelista, “Dia de São Jorge
Ogum do Mundo”, trazendo a celebração do santo orixá na cidade do Rio De Janeiro.
Na zona norte carioca, temos a entidade na igreja e no terreiro, além de ser apresen-
tada em um bar na região central da capital do estado. Em sua narrativa Fábio põe em
movimento a devoção a um santo múltiplo, amado em sua possibilidade de proteção
e ação a partir de suas armas, escudos e armaduras. Já Santo Antônio surge neste
dossiê na cidade alagoana de Penedo, pelas lentes de Paula Fernandes. Ao correr
pelas fotos, vemos pessoas se movimentando para o santo, e dessa maneira, a cidade
e o território são modificados e atravessados pela festa: cavalgadas, peregrinações e
diversas maneiras de se engajar materialmente com esse santo são apresentadas em
“Penedo te quer bem: o festejo a Santo Antônio no antigo Barro Vermelho”.

A seguir temos três contribuições de pesquisas realizadas por pesquisado-


ras e pesquisadores estrangeiros que se concentraram nas dimensões das fes-
tas e peregrinações do dossiê. Mirrah da Silva e Sofía Silva nos levam para a
cidade peruana de Cusco em “Una estrella resplandece. Danza, trabajo y servi-
cio en la peregrinación del Qoyllurit´y”. A paisagem andina compõe junto com
as fotografias, as personagens que celebram e dançam a Qoyllurit´y, conjugan-
do uma espiritualidade andina revestida de catolicismo. Já Manuel Moreno, jun-
to a uma equipe, nos leva para o México, a 30 quilômetros da cidade do México,
Aisha Angéle Diéne ¹
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“Na função” — Fotoetnografia de um
dia no terreiro de candomblé

Resumo: Acompanhar a intensa rotina de um dia no terreiro de candomblé


perpassa por compreender algumas das várias atividades que ocorrem até
se chegar ao momento da festa pública, circunstância pela qual o público
externo à comunidade interage e celebra em conjunto com os membros e
Nkisses/Orixás da casa.

Palavras chave: Na função; Rotina; Terreiro de candomblé;

“In Function” — Photoethnography of a day in the


yard of candomblé

Abstract: To follow the intense routine of a day in the candomblé yard involves understanding
some of the various activities that occur until the moment of the public party, circumstance by
which the public outside the community interacts and celebrates together with the members
and Nkisses /Orixás of the house.

Key words: In function; Routine; Terreiro de Candomblé;

1 - Arquiteta e Urbanista (CAU n° A153871–3);


Mestranda em Antropologia Social — PPGAS/DAN/UnB (Bolsista CNPQ);
Membra do corpo editorial da Revista Calundu (http://periodicos.unb.br/index.php/revistacalundu/index); aisha.diene@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-6297-5386;
http://lattes.cnpq.br/4688462694996135.
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Os registros fotográficos a aqui expostos deriva de um trabalho de campo
ocorrido entre os anos 2019 e 2020, onde uma das metodologias etnográ-
ficas utilizadas para a narrativa foi a Fotoetnografia (ACHUTTI, 2003), am-
bientado na comunidade Remanescente de Quilombo e terreiro de can-
domblé Manzo Ngunzo Kaiango, localizado no município de Santa Luzia,
região metropolitana de Belo Horizonte/MG.

Durante o período de vivência, acompanhei um dia sobressalente no cro-


nograma das atividades para os membros do terreiro, não era somente
um dia de “função²”, mas um dia festivo em que o Nkisse³ da casa se-
ria celebrada. Era a festa do Nkisse da matriarca e Mãe de santo Mametu
Muiandê- a sacerdotisa da casa. No candomblé costuma-se convidar a
comunidade externa para ir ao terreiro através das festas que costumam
acontecer em datas previamente agendadas; são momentos de interação
e de celebração (SILVA, 2015), onde os Nkisses/Orixás e os membros da
casa se relacionam no espaço limítrofe dessa interação: o Barracão.

“O barracão é uma espécie de salão onde a maioria dos ritos abertos acon-
tecem e por onde a maioria dos ritos fechados perpassam. É a própria
composição da comunidade, a sala de estar em uma casa onde somente
os mais íntimos e familiares conhecem os demais cômodos. Todos tran-
sitavam por esse espaço, mas nem todos transitavam por todas as partes
internas que o compõe. No centro do barracão, tanto no chão quanto no
teto, estava uma espécie de representação de umbigo do terreiro, que o
liga a todas as casas, pessoas e inquices que lhe antecederam.

Assim, o barracão é também um espaço público que abriga não somente


a comunidade do terreiro, como também a comunidade não adepta da-
quela liturgia; é um espaço ritualístico aberto a quem pertence à lógica
do candomblé e a quem não transita por ele. Também é um espaço polí-
tico, posto que simbolicamente é o espaço [dentro do espaço] da resis-
tência do candomblé por excelência.” (DIÉNE, AHUALLI, 2019; p.6)

2 - Expressão usualmente utilizada pelos membros do terreiro para se referir ao momento que estão no ambiente religioso, limpando, brincando,
orientando e realizando outras atividades litúrgicas.

3 - Palavra que remete à divindade para os povos de origem Bantu, comum nos candomblés de Nação Angola no contexto brasileiro.
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A intensa rotina de um terreiro durante os dias de atividade, rito e fes-
ta, incluem diversas funções para o preparo do espaço até o momento da
grande festa. Lavar, passar, engomar roupas para usar na roda⁴, varrer, la-
var, limpar os bancos que receberão os convidados, barracão e demais es-
paços internos que serão de uso comum; cozinhar e preparar o jantar que
será servido após o momento festivo para os convidados; aquecer o couro
dos atabaques; todas essas atividades acontecem entre brincadeiras e o
corre-corre das crianças, no horizonte onde o tempo cronológico vai de
encontro a hora de receber os convidados e sempre o parece contrariar
(FABIAN, 2013). A casa se prepara para festejar!

4 - Momento que antecede a festa, chamado pelos membros dos candomblés de Nação Angola de Jumberesu ou pelos de Nação Ketu: Xirê.
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É chegado o momento da grande festa e o Barracão logo se enche, tornado
pelos membros do terreiro e os convidados que se acomodam na plateia,
entre as cadeiras e esquadrias das janelas que compõem a arquitetura
desse espaço político e intermediário que conecta a casa à comunidade
externa (DA MOTTA LODY, 1987).

Referências

ACHUTTI, Luiz Eduardo Robinson. Fotos e palavras, do campo aos livros. Studium, n. 12, p. 5–16, 2003.

DA MOTTA LODY, Raul Giovanni. Candomblé: religião e resistência cultural. Editora Atica, 1987.

DIÉNE, A. A. L.; AHUALLI, I. F. LUGAR DE MAIS VELHXS? Uma observação fenomenológica dos limites espaciais no terreiro de candomblé
Tumba Nzo Jimona dia Nzambi. 2019.

FABIAN, Johannes. 2013 [1983]. “O tempo e o outro emergente”. In O Tempo e o Outro: como a antropologia estabelece seu objeto. Petrópolis:
Vozes. Pp. 39- 70.

SILVA, Vagner Gonçalves da; O Antropólogo e sua Magia: Trabalho de Campo e Texto Etnográfico nas Pesquisas Antropológicas sobre Religi-
ões Afro-brasileiras/ Vagner Gonçalves da Silva. — 1° ed., 2ª reimp. — São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015.
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Thiago de Andrade Morandi ¹
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Divino: A Festa do Divino
em São João del-Rei
Resumo: Ensaio fotográfico realizado no principal dia da festa de Pentecostes
em um dos bairros mais populosos de São João del-Rei, cidade histórica em
Minas Gerais. Divino busca retratar o festejo e emoções de grupos de congado
que participam da Festa, para isso as fotos foram captadas em baixa velocidade
e com um flash externo para congelar determinados movimentos.

Palavras chave: festa do divino, congado, sincretismo, fotografia documental

Divino: The Festa do Divino in São João del-Rei


Abstract: Photo shoot held on the main day of the Pentecost feast in one of the most populous
neighborhoods in São João del-Rei, a historic city in Minas Gerais. Divino seeks to portray
the celebration and emotions of groups from Congo that participate in the Party, for this the
photos were captured at low speed and with an external flash to freeze certain movements.

Key words: feast of the divine, congado, syncretism, documentary photography

1 - Doutorando em Ciências Sociais (PUC Minas) — Bolsista da FAPEMIG — Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais
morandi.pesquisa@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-7265-7288
http://lattes.cnpq.br/4605268133887821
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Este ensaio fotográfico registra o principal dia da Festa do Divino no bairro de O ensaio fotográfico Divino busca retratar em formato de uma fotoetnografia
Matosinhos, em São João del-Rei, cidade histórica em Minas Gerais. A festa é (ACHUTTI, 2004) um pouco das devoções presentes na Festa do Divino, com
uma das principais no calendário cristão e celebra a descida do Espirito San- um recorte de enquadramento (BUTLER, 2018) intencional com propósito de
to sobre os apóstolos, Nossa Senhora e outros seguidores de Jesus Cristo. O destacar movimentos e ações temporais da prática religiosa. Para trazer as-
dia de Pentecostes é móvel e acontece 50 dias após o Domingo de Páscoa, pectos de transição de tempo a exposição da captação fotográfica foi de um
quando é celebrada a Ressureição de Cristo. segundo, utilizando um flash externo na mão afim de congelar determinados
acontecimentos.
Em São João del-Rei essa festa acontece desde 1774 e é chamada de Festa
do Divino, historicamente ela tem três momentos principais: 1. 1774 a 1924, Ao utilizar a baixa velocidade na captação das imagens buscou-se revelar o
considerada a festa mais popular da cidade, reunindo todo tipo de público e não revelado, “a fotografia, no que supostamente revela e no caráter indi-
eram realizadas cavalhadas, simbolizando as disputas de cristãos e mouros cial, revela também o ausente, dá-lhe visibilidade, propõe-se antes de tudo
em torneios medievais. 2. 1924 a 1997 com celebrações internas e sem cava- como realismo da incerteza” (MARTINS, 2019). As imagens do ensaio trazem
lhadas. Em 1924 houve sua suspensão, segundo Adão (2011) o frei Cândido e rastros de luzes, movimentos fantasmas e outras características que carre-
padre Gustavo, responsáveis pela Igreja de Matosinhos na época, solicitaram gam no seu ato intuitivo (OSTROWER, 1997) o desejo de retratar o festejo e
a suspensão da festa, “o pedido feito ao arcebispo de Mariana, Dom Helvécio as emoções na manifestação dos congados durante a procissão da Festa do
Gomes de Oliveira, alega dentre outros motivos o excesso de jogatina e o ca- Divino.
ráter profano da mesma” (ADÃO, 2011, p. 196). 3. Em 1998 a Festa do Divino
é resgatada por uma comissão de pessoas ligadas à igreja, pesquisadores e Os registros foram captados originalmente em RAW com uma câmera Nikon
leigos, que inseriram a participação de grupos de congados, substituído as 5100, com objetiva Sigma 18–50 mm (f.2.8–4). A maior parte das fotos uti-
cavalhadas. lizou a seguinte configuração técnica: abertura f.8 ou f.10, com 1s de velo-
cidade e ISO 100 ou 200. Um flash externo Nikon SB 600 era disparado de
A Festa manteve outras características de seu primeiro momento, como a fi- forma manual, enquanto os cliques eram realizados. Na prática com a mão
gura do Imperador do Divino e diversos elementos simbólicos² ligados às fes- esquerda o flash era disparado e com a mão direita o registro era feito. Os
tividades antigas de influência ibérica. A inserção dos congados possibilitou ajustes finais das imagens foram feitos no software Adobe Photoshop Ligh-
ainda outro resgate, que foi o das influências de raízes africanas presentes troom e finalizados em formato JPEG, com tamanho médio de 12 megapixel
na cidade desde seu período colonial. (3500X 2318 pixels).

Referências
Os grupos de congados surgiram em Minas Gerais no Século XVIII e ao ce-
ACHUTTI, Luiz Eduardo Robinson. Fotoetnografia da Biblioteca Jardim. Porto Alegre: Editora da UFRGS: Tomo Editorial, 2004.
lebrar santos católicos como Santa Efigênia, São Benedito e Nossa Senhora
do Rosário, as pessoas escravizadas encontravam uma forma de cultuar em ADÃO, Kleber do Sacramento. Diversões e devoções em São João del-Rei: um estudo sobre as festas do Bom Jesus de Matosinhos, 1884–
1924. Tese de Doutorado. Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP: [s.n.], 2001.
forma de sincretismo os Deuses africanos, conhecidos como Orixás. Para
BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? 4. ed. — Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
Ferreira (2017) alguns elementos como guias, pimentas e objetos naturais
diversos são alguns dos diversos símbolos de sincretismo presentes no Con- FERREIRA, Talita Ariane da Silva. Sincretismo, cultura e tradição: diálogos. CSOnline — Revista Eletrônica de Ciências Sociais, Juiz de Fora, n.
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gado, sobretudo nas vestimentas e instrumentos de seus integrantes.
MARTINS, José de Souza. Sociologia da fotografia e da imagem. 2 ed., 5º reimpressão.- São Paulo: Contexto, 2019
2 - Mais detalhes sobre a festa e seus símbolos podem ser acessados no Portal da Comissão do Divino, que é responsável pela organização das fes2tivida-
des na Igreja Bom Jesus de Matosinhos, em São João del-Rei. Disponível em: http://www.portaldodivino.com/Brasil/jubileu.htm. Acesso em 28 mai. 2020. OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 6 ed.- Petrópolis: Editora Vozes, 1997
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Fábio Gama Soares Evangelista ¹
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Dia de São Jorge Ogum do Mundo

Resumo: O presente ensaio é uma homenagem a devoção das pessoas no dia


de São Jorge Ogum. Desde 2007 fotografo as festividades deste santo. A maior
parte destes registros fotográficos foram realizados no bairro de Quintino,
Rio de Janeiro. São Jorge é múltiplo. Por onde passa a imagem de São Jorge
acontecem transformações nos espaços. Seus devotos formam um conjunto
heterogêneo de pessoas. Por meio desta festividade é possível refletir sobre
várias questões que atravessam o Brasil contemporâneo.

Palavras chave: São Jorge, Ogum, festa, santo, devoção. Religiosidade

World St. George Ogum Day

Abstract: This essay is a tribute to people’s devotion on the day of São Jorge Ogum. Since 2007
I photographed the festivities of this saint. Most of these photographic records were made in
the neighborhood of Quintino, Rio de Janeiro. São Jorge is multiple. Wherever the image of
São Jorge passes, transformations take place in spaces. Its devotees form a heterogeneous
group of people. Through this festivity it is possible to reflect on several issues that cross
contemporary Brazil.

Key words: São Jorge, Ogum, party, saint, devotion. religiosity

1 - Mestrando em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas — FEBF /UERJ — Bolsista CAPES
e-mail: fabiofotocaffe@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-4829-4672
http://lattes.cnpq.br/4624194152881661
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O presente ensaio é uma homenagem a devoção das pessoas no dia de São realizadas ali certas atividades rituais. Ou seja, uma rua pode ser um local
Jorge Ogum. Desde 2007 fotografo as festividades deste santo. O guerreiro funcional de passagem de pessoas e carros, mas se forem realizados ritu-
me acompanha desde a infância, pois na casa de minha avó em Vila Valquei- ais este mesmo local pode se transformar numa passarela sagrada por onde
re (Rio de Janeiro) tem um quadro de São Jorge, essa imagem ficou gravada desfila a imagem do santo guerreiro. Todo o espaço por onde a imagem pas-
na minha história de afetos que trago comigo. Outra lembrança que trago no sa se transforma num espaço sagrado. Um profundo encantamento toma o
peito é que sempre ao ir para o colégio eu passava pela igreja Matriz de São bairro de Quintino principalmente no caminho da procissão. Pessoas ficam
Jorge em Quintino, essa imagem também passou a morar no meu coração. nas ruas, calçadas, janelas de suas casas, cada uma aguardando da sua ma-
Imagem potente que traz sentimento de garra, de companheirismo como neira, orando, agradecendo. Um aguardado momento é quando a imagem
diz a música domingo 23 composta por Jorge Benjor, devoto de São Jorge, e passa pela estação de trem de Quintino. Ali são jogadas flores em cima do
na minha memória afetiva cantada por Rita Beneditto: “Nunca neste mundo santo.
se está sozinho”.
Outro diálogo também se dá com o texto de Magnani (2003) uma vez que a
A maior parte destes registros fotográficos foram realizadas no bairro de calçada no subúrbio é um espaço muito importante onde as pessoas reúnem
Quintino, Rio de Janeiro: na Igreja Matriz de São Jorge e nos arredores (in- para jogar futebol, fazer churrasco. Aqui temos modulações do espaço para
cluindo o caminho que a procissão percorre). Outras fotos deste ensaio foram além da dicotomia entre casa x rua. A calçada é um espaço intermediário
realizadas na gira para Ogum no centro espírita CEUIM em Irajá , no Morro da onde temos a proximidade do lar e os imprevistos da rua. Em uma das fotos
Providência e em um bar em Ramos. Estas fotografias² em sua maioria foram deste ensaio podemos ver um bolo e em cima a imagem de São Jorge. Isto
publicadas no facebook do projeto Folia de Imagens que realizamos desde estava na calçada em frente a uma casa. O bolo foi feito por dona Vanda em
2013. homenagem a São Jorge, sendo (2019) o quarto ano que ela faz isso.

O projeto Folia de Imagens foi criado por nós do coletivo Favela em Foco ini- Outra transformação no espaço durante a festa de São Jorge: parte da rua
cialmente para fotografar o carnaval em favelas e subúrbios do Rio de Janei- Clarimundo de Melo é fechada para facilitar o caminhar da multidão que fre-
ro. Com o passar do tempo fomos estendendo a documentação fotográfica quenta a igreja e os arredores neste dia ³. Este trecho até a igreja é ocupado
para outras festas populares no Rio de Janeiro dentre elas a festa de São por vendedores dos mais variados produtos: roupas, bijuterias, flores, comi-
Jorge. das. A medida que vamos caminhando rumo a igreja vemos do lado esquerdo
alguns bares que ficam lotados neste dia, em frente a um deles um grupo de
Ao ver esse conjunto de fotos pode — se perceber como os devotos fazem pessoas se reúne tocando sambas e uma roda de capoeira em homenagem
circular a imagem deste santo. São Jorge está presente na igreja, nos terrei- ao santo guerreiro. Profano e sagrado juntos.
ros, centros espíritas, nas ruas, nas casas. O guerreiro está presente de dia
e durante a noite protegendo os nossos caminhos. A partir de nossas vivências nos dias de festa podemos perceber a variedade
de pessoas que costumam frequentá- la. Assim nos diz a pesquisadora Ana
A imagem de São Jorge provoca transformações nos espaços. Estamos dia- Paula Alves Ribeiro.
logando com o conceito de terreiro elaborado por Simas e Rufino (2018).
Segundo eles um espaço pode ser transformado num terreiro se forem
3 - Vale frisar que esta ação é feita pela prefeitura que desde 2017 é comandada por Marcelo Crivella que é evangélico e é sobrinho de Edir Macedo
2 -Algumas destas fotografias participaram de exposições fotográficas como por exemplo As Muitas Faces de Jorge no Museu de Folclore Edison líder da Igreja Universal do Reino de Deus. A cidade está em permanente disputa por diversos grupos sociais. É importante lembrar também que o
Carneiro (RJ) em 2011. conceito de religião também não é fixo, estando em constante disputa.
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O grupo de devotos está longe de ser homogêneo, podem ser identifi-


cados em sua multiplicidade e se intercruzam. Pessoas que afluem de
todas as partes da cidade para estar nas missas e comemorações no dia
de Santo. Pessoas pagando, renovando e fazendo promessas. Católicos e
umbandistas. Músicos e integrantes de várias escolas de samba. (RIBEI-
RO. 2016, p. 170)

Em matéria do Jornal O Globo escrita por Jéssica Lauritzen podemos ver his-
tórias de devotos como a de Waltecir Marques, de 40 anos, educador físico.
Ele conta que o parto do seu filho seria de risco e coincidiu com o dia de São
Jorge: “Pedi muito pelo meu filho, e deu tudo certo. Eu não peço para con-
quistar bens materiais; quero saúde para trabalhar.”

Como conclusão gostaríamos de falar sobre a importância de São Jorge


Ogum nestes tempos de Coronavírus onde muitas pessoas morreram ou fo-
ram diagnosticadas com covid-19 no Brasil. Isso sem falar nos casos que não
são registrados. O santo guerreiro pode nos transmitir confiança, coragem
para vencermos tal cenário. Mas aliado a isso se faz urgente e necessário
constantemente lutarmos pela construção de uma sociedade antirracista,
mais justa e cobrarmos as autoridades para a tomada de medidas que visem
reduzir os impactos do Coronavírus no Brasil.

Referências

LAURITZEN, Jéssica. Devotos contam suas histórias de amor e gratidão a São Jorge. (Matéria publicada no jornal O Globo no dia 23 de abril de
2016) https://oglobo.globo.com/rio/bairros/devotos-contam-suas-historias-de-amor-gratidao-sao-jorge-19137354 (Consultado no dia 31 de maio
de 2019)

MAGNANI, José Guilherme Cantor. Festa no Pedaço: Cultura popular e lazer na cidade. São Paulo. ucitec/UNESP, 2003

RIBEIRO, Ana Paula Alves. Caminhos de Ogum: Florindo as ruas, festejando São Jorge e Ocupando a Cidade. Dossiê Capitalismo Cultura.
Arquivos do CMD, Volume 4, N.2 Jul/Dez, 2016

https://periodicos.unb.br/index.php/CMD/article/view/9152/8155

SIMAS, Luiz Antonio & RUFINO, Luiz. Fogo no Mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro. Editora Mórula, 2018.
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Paula Louise Fernandes Silva ¹
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Penedo te abraça, Penedo te quer bem:
O festejo a Santo Antônio no
antigo Barro Vermelho
Resumo: O ensaio resulta do trabalho final do curso de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade Federal de Alagoas, intitulado por “Patrimônios
Coexistentes: o entrelaçar do Padroeiro com o Bairro Santo Antônio, na cidade
de Penedo”, sob orientação da Profª Drª Juliana Michaello Macedo Dias. Tem
como objetivo apresentar uma experiência etnográfica durante o trezenário de
Santo Antônio, onde busco entender as relações entre homem, religiosidade e
transformações do espaço urbano, por meio da fotografia.

Palavras chave: festa do divino, congado, sincretismo, fotografia documental

Penedo embraces you, Penedo holds you dear: Saint Anthony’s


festivities in the old Barro Vermelho neighbourhood
Abstract: This paper derives from the Architecture and Urban Planning Bachelor Degree’s final
thesis named “Coexisting heritage: the connection between the patron saint and the Santo
Antonio neighbourhood in the city of Penedo”, under the Professor Ph.D Juliana Michaello
Macedo Dias mentorship. The work aims to present an ethnographic experience during the
13-day Saint Anthony’s festivities, where I seek to understand the relations between men,
religiousness and urban space transformations through photography.

Key words: Ethno-photography. Heritage. Celebration. Penedo-AL.

1 - Bacharela em Arquitetura e Urbanismo-Universidade Federal de Alagoas. paulalouise93@gmail.com


https://orcid.org/0000-0002-6199-2088
http: //lattes.cnpq.br/6306700650722941
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Para integrar a necessidade de imaginar o sagrado, a fotografia no universo O bairro vive dias de euforia e o marco inicial da trezena é a “Cavalgada de
da fé é uma tentativa de materializar os símbolos intangíveis. A imagem não Santo Antônio”. Nas ruas, carroças são decoradas e pessoas circulam, outras
é vista aqui como congelamento, e sim um instante que apresenta camadas permanecem nas calçadas, sentadas, ou por trás das portas. Os animais são
de significados codificados, registros das relações mais íntimas de mundos direcionados à frente da igreja para receber a benção do pároco. As toadas
invisíveis. se misturam ao ronco dos motores de carros e motos, que acompanham o
trajeto.
Localizada ao sul do estado de Alagoas, às margens do Rio São Francisco,
Penedo tem origens que remontam ao período colonial. A então Vila do São Ao entardecer do dia seguinte uma escada é colocada na rua, em meio a de-
Francisco teve seu primeiro orago Santo Antônio, por volta de 1614, perma- sordem e gritos, tem-se início a decoração. Subir aqueles degraus é um ato
necendo padroeiro durante anos, até a mudança para Nossa Senhora do Ro- de coragem e porque não devoção? Um leque de bandeirolas se entrelaça
sário. Segundo Vainfas (2003), a devoção à Santo Antônio se popularizou no às gambiarras e demarca o espaço da festa. O interior da igreja mantém-se
Brasil ao longo da colonização portuguesa, sendo este o santo com maior nú- em silêncio profundo, contrastando com a rua, parece aguardar os fiéis para
mero de freguesias, vilas e cidades dedicadas, tamanha sua popularidade. celebrar as treze noites de orações, agradecimentos, promessas; são dias
de encontros, abraços e cânticos. A festividade ultrapassa os limites físicos
Permanências dessa devoção podem ser notadas no bairro Santo Antônio, da igreja e se estende para as ruas, a frente do templo se comporta como
o qual o santo é patrono, popularmente conhecido como Barro Vermelho. um lugar de apresentações, janelas tornam-se arquibancadas e mesmo com
Próximo ao centro histórico da cidade, ruas estreitas são testemunhas do chuva um público diverso se acomoda na rua. O parque parece estar no rit-
processo de povoamento do Penedo. Margeia o rio, que mantém o ofício da mo da música, as luzes encantam os olhos e divide o espaço com bancas de
pesca e preserva na arquitetura a memória de um bairro industrial. guloseimas.

Durante o Trezenário de seu santo protetor o bairro passa por um processo No dia que antecede a peregrinação a imagem de Santo Antônio é retirada
de transformação efêmera, novos equipamentos urbanos são associados aos do altar e levada ao andor, como num ritual. O fiel designado para a função
existentes: gambiarras, bandeirolas, parque, além das barracas de comidas tem a imagem na altura dos olhos, sendo um momento único de cuidados ao
e bebidas. Tais características são oriundas de tradições portuguesas, em seu padroeiro.
decorar as ruas com ornatos temporários, principalmente durante as pro-
cissões. A procissão é o momento mais aguardado, a ansiedade é vista nas ruas. As
casas estão decoradas, na janela o tecido vincado parece mostrar que foi
A festa é composta por diferentes camadas, e estabelecendo um vínculo de guardado para a ocasião. Oratórios, bandeiras, anjos, plantas e toalhas es-
confiança adentrei no espaço sagrado e profano do Trezenário de Santo An- tampadas, o que têm de mais belo nas casas é utilizado para receber o santo
tônio dos Pobres. Nesse ensaio fotográfico, retrato uma miscelânea de de- padroeiro. As pessoas aguardam nas calçadas, sozinhas ou acompanhadas,
voção, pessoas e espaço de diversão (SERRA, 1999), caracterizada pelo en- independente das crenças que às movem. Naquele chão, que brilha em pa-
contro e peregrinação ao santuário, ultrapassando os limites físicos da igreja péis coloridos se dá o serpentear.
e ocupando a rua, através de conexões e interações entre pessoas e lugar.
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Salvas de fogos, cantos, e palmas marcam o trajeto. Com o anoitecer, a pe-


regrinação retorna ao bairro, uma névoa provocada pelos rojões toma o es-
paço, entre velas, flores e olhares. Mais adiante, na porta da igreja, a noite
escura emoldura o mastro da bandeira do padroeiro, prestes a ser recolhido.
Os fiéis contemplam, acenam e se despedem, ao som das ladainhas, chega
ao fim a trezena de Santo Antônio.

Após treze dias imersa na celebração, me fiz distante do bairro por um perío-
do, essa ruptura é aqui destacada com a quebra da narrativa fotográfica. Ao
observar as imagens percebi que as mesmas poderiam ser utilizadas como
um recurso de reaproximação, utilizei os registros capturados durante a tre-
zena para presentear alguns moradores. Os cartões feitos a mão, continham
a ladainha de Santo Antônio e registros espontâneos dos fiéis, sendo este
um gesto de agradecimento e mote introdutório para as memórias da festa.
Ponto crucial para a narrativa, as imagens passaram a ser vistas como recor-
tes do tempo no espaço que apontam para o invisível, representam instantes
do momento presente que podem ser usados no futuro para a construção de
novas realidades (KOSSOY, 1999).

Embora sendo efêmera, pois só acontece uma vez a cada ano, a festa de
Santo Antônio confere ao bairro um significado próprio e através da fotogra-
fia foi possível acompanhar o processo de transformação do lugar. Utiliza-
da inicialmente para descobrir, em seguida reaproximar, e posteriormente
contar, a captura da imagem passou a ser uma ferramenta singular na cons-
trução da pesquisa.

Referências

KOSSOY, Boris. Realidades e Ficções na Trama Fotográfica. São Paulo, Ateliê Editorial, 1999.

SERRA, Ordep. Rumores de Festa. Salvador; Edufba, 1999b.

VAINFAS, Ronaldo. Catolização e poder no tempo do tráfico. Rio de Janeiro; Tempo, 1998.
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Mirrah Iañez Gonçalves Da Silva ¹
Sofía Silva ²
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Una estrella resplandece: danza, trabajo
y servicio en la peregrinación al Señor
de Qoyllurit’i
Resumo: El ensayo acontece entre imágenes y narrativas etnográficas que
procuran captar un microcosmos de religiosidad popular. Qoyllurit´i es una
peregrinación a 5.200 mts. de altura que conjuga espiritualidad andina y
catolicismo. Las imágenes blanco y negro invitan a un lúdico recorrido entre
pasado y presente. En la expresión de los danzantes se transmite la fuerza y el
esfuerzo de estar allí que, salvando las distancias, para las autoras contó con
dos viajes (2018–2019), profundas bocanadas de aire y abundante abrigo.

Palavras chave: Lo andino; Movilidades; Peregrinación; Qoyllurit´i.

A star shine: dance, work and service in pilgrimage to the sir of


qoyllurit’y

Abstract: The essay takes place between images and ethnographic narratives that seek
to capture a microcosm of popular religiosity. Qoyllurit´i is a pilgrimage to 5,200 meters. of
height that combines andean spirituality and catholicism. The white and black images invite
us to a playful temporality between past and present. In the expression of the dancers it is
transmitted the strength and the effort to be there that, despite the distances for the authors,
included two travels (2018–2019), abundant coat and shortened breath.

Key words: The Andean; Mobilities; Pilgrimage; Qoyllurit´i.

1 - documentalista, fotógrafa y educadora en Universidade Livre dos Saberes Amotara Zabelê


offilmes@gmail.com |www.mirrahianez.com
https://orcid.org/0000-0001-7562-0296

2 -Antropóloga de la Universidad Nacional de La Plata (Buenos Aires, Argentina).


Profesora de escuelas medias
sofiasilva1986@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-9369-722X
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Mujer trabajando. (Foto: Mirrah da Silva)
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En esta peregrinación, muchos/as rememoran el hielo que antes lo cubría
todo. Las laderas montañosas del Ausangate, en los andes centrales del
Perú, sin duda han mermado sus hielos, pero continúan recibiendo cami-
nantes, y cada vez más. Son cientos/as de miles que atraviesan un camino
de altura durante la luna llena de junio. Las fotografías de hoy y de ayer han
demorado sus focos en los varones, por cierto, porque la conmemoración al
taytacha Qoyllurit´i³ tiene su centro en la masculinidad, es esencialmente la
celebración del hombre andino⁴.

Ellas, las mujeres, trabajan de cocineras los días y noches en que todo ocur-
re. Me han hurk´awan⁵ y cocino por devoción a toda la comparsa, alguna
dice. La mujer, allí, alimenta a multitudes. Es la vendedora de velas, de abri-
gos y de objetos a ofrendar. Sólo unas pocas danzan. Si la ocasión se presen-
ta a lo mejor jueguen a “comprarse un carro” o sueñen con ser dueñas de sus
comercios, en las alasitas⁶ de más altura.

La noche en que están por subir al nevado se las oye conversar, y juntar
los billetes “sencillos” que sacan de sus delantales para contarlos. Mientras
regatean al hombre de los caballos, ya gélido por el viento y el frío, las más
jóvenes se animan a cargar los enseres pesados y las niñeces sobre sus cuer-
pos. Para subir ligeras, las más adultas acomodan minuciosamente garrafas,
mercadería y cruces en el lomo oblicuo del animal. Quizás, la pose de quie-
tud de la mujer pelando papas, sea un espejismo captado por la cámara, un
hallazgo inusual. No ha de vérselas tan detenidas en las orillas de la peregri-
nación.

2 - taytacha: padre o padrecito, expresado con afecto y deferencia. Qoyllurit´y: estrella resplandeciente.

3 - Declarada Patrimonio Cultural Inmaterial de la Humanidad por la UNESCO en 2004.

4 - hurk´awan: acción de invitar a uno/a a cumplir con un compromiso. Suele hacerse con un pan de sabor dulce que prepara especialmente la familia
encargada de realizar una fiesta o patrocinar a una comparsa.
La danza ch´unchu. (Foto: Mirrah da Silva)
5 - Alasitas: espacio de juego a través de objetos y rocas (lajas y esquistos) de la superficie montañosa.
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El qhapaq qolla enmascarado. (Foto: Mirrah da Silva)

Las plumas, y la virtud de las aves de comunicarse con otros mundos, trasla- Pese a ello, debajo del traje costoso, no existe más que la simpleza del traba-
da al público hacia el corazón de la amazonía. Desde la selva y en otro tiem- jador de la chacra, preocupado por el alimento de una familia numerosa; el
po, partieron las ofrendas al inca. El danzante (re) presenta al poderoso inca, minero que clama por cinco días libres a su empleador, o el constructor de
al oneroso anfitrión, con brillos y joyas. Es el qhapaq ch´unchu ⁷ que danza casas que se ha salvado de otra caída mortal días atrás. La música de vientos
por los siglos, el privilegiado por las deidades (Aguayo Figueroa, 2009). Po- y bombos resuena incansable durante la celebración, de sol a sol, noche tras
der, dinero y capa, cabello largo azabache y bastón de chonta incluye la dan- noche. Son los guerreros de la peregrinación, obstinados en que la injusticia
za ch’unchu, de pasos y brincos al compás de la melodía del chákiri. del presente les deje al menos la memoria.
7 - qhapaq ch´unchu: el gran nativo de la selva.
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Antiguamente los qhapaq qolla⁸ llegaban desde Puno a danzar luego de un
extenuante viaje a pie. Eran comerciantes, foráneos, los recién llegados de
la fiesta. Con una montera en la espalda, el látigo rodeándole el cuello y la
alpaca diminuta vistiendo su cintura comenzaban a danzar al ritmo del acor-
deón, y a rivalizar.

En la actualidad es posible ver cómo ciertas prácticas escapan al pasado.


Los hombres todavía contienden entre hermanos y suben las alpacas de sus
criaderos, para que la gente compre un plato de comida caliente a mejor
precio.

El gesto de sacarse la capucha al paralizarse la danza da lugar a una mez-


cla de confesión, compromiso y nerviosismo. La escena tiene sentido en las
inmediaciones de la iglesia con la presencia del público. El gesto del rostro
descubierto, ¿es la acción de encontrarse con uno mismo? ¿Cuánto importa
ser reconocido?

El ukuku⁹ celador, del cual sólo se ven sus pies, observa y se funde entre el
tumulto. Ya sin máscara, en silencio y de rodillas, el cristiano murmura pe-
cados, arrepentimiento, perdón. El hombre quechua, sin culpa, murmura
rogativas y agradecimientos. En ese instante de inmovilidad, breve porque
Qoyllurit´i es sinónimo de movimiento, reside el gesto de lealtad. Además,
como dice Theidon en su trabajo Entre prójimos (2004) la máscara es la am-
A cara descubierta. (Foto: Mirrah da Silva)
bigüedad, la doble cara; permite al portador del látigo distanciarse de sus
propias acciones y delegarlas a un doble, ¿permitirá al resto, o sea al público,
algún grado de negación de esta violencia física que hay detrás de la fe?

8 - qhapaqqolla: gran habitante de la región altiplánica del Qollasuyu. 9 - ukuku: hombre-oso.


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Toda comparsa carga con una cruz, y en cada posta se la deja reposar. Ata-
viada de plumas, tal vez sahumada con q´oa¹⁰ a escondidas, le ofrecen una
melodía de alabado y se la echa en andas. Las hay de madera de árbol de
tayanka¹¹ como de metal, y de tamaños más pequeños hasta colosales. Las
cruces se cargan de poder con el movimiento, y cuando escuchan la misa en
el templo junto con los Apu Yaya¹², ciriones o “lágrimas del cristo”. El resto
del tiempo, acompañan la movilidad de los grupos. En el film La cruz del sur
(1991) de Patricio Guzmán son las imágenes que escuchan misa, y aquí su-
cede de forma similar. Ya en el santuario, son dejados los objetos sagrados
para que escuchen misa en quechua mientras todos bailan. El templo tiene
una singularidad, que es la de no tener bancos para sentarse. Que no haya
bancos, pautando el orden y los cuerpos de los fieles, a la manera tradicional
del catolicismo, configura de nuevo y de forma única la celebración.

Una cruz en movimiento. (Foto: Mirrah da Silva)

10 - q´oa: planta o arbusto aromático que al quemarse sirve para sahumar, a modo de limpieza espiritual.

11 - tayanka (baccharis odorata): arbusto de la región, tiene importancia agrícola por ser un indicador de terrenos fértiles para el cultivo de papa en
el ande.
El joven ukuku. (Foto: Mirrah da Silva)
12 -Apu Yaya: imagen portátil de carácter religioso.
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El protagonista que mira desde la fotografía logró subir a una festividad que
ansiaba de niño, empujado por el taytawayra¹³. Una festividad que mucho
antes se limitó a una foto enmarcada en la pared de su casa, hasta que su
madre le dio permiso para ir y fue. Se lo ve fumando un cigarro, así lo hacen
los ukuku cuando descansan de sus obligaciones, porque son ellos los que
imparten la ley. Motivadores de los danzantes, de voz afinada y máscara, al
tiempo que ejercen la dura disciplina.

Más cerca del sol, hacia las alturas de Tayankani, por un nuevo camino de
24 horas cuesta arriba, el protagonista ha dicho: cuando estás por danzar,
algo está dentro de ti, algo impronunciable. Cuando te pones la vestimenta
te ponés la vida de esa vestimenta, ya no eres Qosqo sino el oso, el ukuku de
Quispicanchis, que está en vínculo con las deidades, con el universo, con el
corazón.

13 - taytawayra: padre viento.


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Referências
link01.Chakiri I. https://youtu.be/hTrD8glZVnc
link02.Chakiri II. https://youtu.be/Z4GMlhhmiY4
AGUAYO FIGUEROA, Armando. “El intialabado”. In: OCHOA, Jorge. A Flores (Ed.). Celebrando la fe: Fiesta y devoción en el Cuzco. Cusco:
[Vídeo: Mirrah da Silva]
UNSAAC y CBC, 2009, pp: 213–237.

LA CRUZ DEL SUR. Direção: Patricio Guzmán. Venezuela/Espanha: Quasar Filmes/RTVE, 1991.
Agradecimientos: a Luiggi Peralta Mora que compartió su sensibilidad y uno de los relatos. A Teresa Rayme Molina, por presentarnos y abrirnos las
puertas de su hogar en Cusco (Perú). Al yachachiq Mario Aucca Rayme por su voz quechua. A nuestras/os interlocutoras/es. A Marco Giovannetti por
THEIDON, Kimberly. Entre prójimos: El conflicto armado interno y la política de la reconciliación en el Perú. Lima: lnstituto de Estudios Peruanos,
la gran ayuda con las entrevistas, y a Darwin Flores que respondió a una duda urgente. A Carolina Oliveira, por sus magias técnicas.
2004.
José Manuel Moreno Carvallo ¹
David Robichaux Haydel ²

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Jorge Martínez Galván ³

La realización de “El Divino Rostro”:


Un documental de la danza
de Santiagos
Resumo: Con fotografías y un video este artículo resume el documental, “El
Divino Rostro”, realizado en la Región Texcocana, en el México central. El título
se refiere a un objeto “milagroso” utilizado en la danza de “Santiagos” que
cualquiera identificaría como una máscara. Sin embargo, para la gente local
se trata de un santo o “imagen” como las de las iglesias. Al crear una unión
danzante-santo, quién lo porta debe cumplir ciertas “requisitos”, o sufrir
graves consecuencias.

Palavras chave: Divino Rostro, Texcoco, Santiagos, danza, México central.

The realization of “El Divino Rostro”: a documentary of the


dance of Santiagos
Abstract: This article presents photographs and videos highlighting the documentary, “The
Divine Visage”, shot in the Texcoco Region in central Mexico. The title refers to a “miraculous”
object, used in the “Santiagos” dance, that an observer could readily identify as a mask.
Local inhabitants, however, view it as a saint or religious image like those found in churches.
Since saint and dancer become fused into one, whoever wears it must comply with certain
“requirements” or suffer grave consequences.

Key words: Divine Face, Texcoco, Santiagos, dance, central Mexico.

Ubicación de la región de Texcoco y la Ciudad de México. Fuente Google Earth, elaboración propia (2019).

1 - Université de Picardie Jules Verne, Amiens, Francia


manuelmoreno_8212@yahoo.com.mx

2 - Universidad Iberoamericana, Ciudad de México


davidrobichaux@hotmail.com

3 - Universidad Iberoamericana, Ciudad de México


tlalocman2@hotmail.com
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En 2011, David Robichaux, Jorge Martínez y Manuel Moreno comenzaron un (mole, picante y carne de cerdo), así como el mantener una buena relación
estudio sobre las danzas ofrendadas a los santos en la Región Texcocana, con los habitantes de su casa los miembros de la cuadrilla de danzantes.
ubicada a 30 km de la Ciudad de México (ver mapa 1). En más de veinte Además, se debe colocar la imagen en un altar con sus flores y veladoras,
comunidades hemos registrado danzas llamadas de: “Santiagos”, “Santia- darle de comer y beber (ver imágenes 7 y 8), llevarla a misa (ver imágenes 9
gos locos”, “Carlomagno y los 12 pares de Francia”, “Chareos”, “Arrieros”, y 10), no dejarla sola en casa y tener un buen comportamiento frente a ella.
“Vaqueros”, “Serranos”, “Segadores”, “Sembradores” y “Dancitas”. Con ex-
cepción de los trabajos de Fernando Horcasitas (1975; 1985), Jesús Jáuregui
(1996), y Elva Vianney Maya (2008), el estudio de las danzas en la región ha
sido poco explorado.

Con el uso de herramientas audiovisuales en la investigación hemos regis-


trado de cerca la preparación de la danza, así como su ejecución y las acti-
vidades que realizan las cuadrillas –grupos de danza- durante las festivida-
des. Hemos conformado un archivo audiovisual sobre ensayos, vestimentas,
máscaras, música, danzas, cuadernos de diálogos, banquetes, procesiones,
peregrinaciones y entrevistas a danzantes, maestros de baile y músicos.

“El Divino Rostro” (2017) es el producto de la documentación de “Los Santia-


gos”, una danza de “Moros y Cristianos” (ver imagen 1). Nuestro interés co-
menzó en 2011, cuando en la fiesta de San Jerónimo Doctor (30 de septiem-
bre) de la comunidad de San Jerónimo Amanalco, municipio de Texcoco,
observamos el uso de un Divino Rostro que se manejaba con gran cuidado.
Se trata de un objeto sagrado que representa a Santiago Apóstol a la vez que
Jesucristo, y es considerado como un “santito” muy milagroso, pero también
“muy castigador” (ver Robichaux y Moreno, 2019 y imagen 2).

La única mención del Divino Rostro en una danza de “Moros y Cristianos”


es en el trabajo de Jesús Jáuregui (1996) sobre la localidad de San Pablo
Ixayotl, municipio de Texcoco. Esto sorprende, dada la importancia que tie-
Imagen 1: Danza de Santiagos, San Jerónimo Amanalco, Texcoco. (Fotografía de David Robichaux, 2011)
ne en la vida ritual de las comunidades, pues se cree que la persona que
lo porta “le presta su cuerpo al santo” (ver imágenes de 3 a 6). En la regi-
ón existen –con diferentes variantes- determinados “requisitos” que deben
ser cubiertos por el danzante que encarna a Santiago y porta la imagen,
entre ellos, la abstinencia sexual, la confesión ante un cura, el estar casa-
do por la Iglesia, la abstinencia de bebidas alcohólicas y ciertos alimentos
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La única mención del Divino Rostro en una danza de “Moros y Cristianos” es
en el trabajo de Jesús Jáuregui (1996) sobre la localidad de San Pablo Ixayotl,
municipio de Texcoco. Esto sorprende, dada la importancia que tiene en la
vida ritual de las comunidades, pues se cree que la persona que lo porta “le
presta su cuerpo al santo” (ver imágenes de 3 a 6). En la región existen –con
diferentes variantes- determinados “requisitos” que deben ser cubiertos por
el danzante que encarna a Santiago y porta la imagen, entre ellos, la abs-
tinencia sexual, la confesión ante un cura, el estar casado por la Iglesia, la
abstinencia de bebidas alcohólicas y ciertos alimentos (mole, picante y car-
ne de cerdo), así como el mantener una buena relación con los habitantes de
su casa los miembros de la cuadrilla de danzantes. Además, se debe colocar
la imagen en un altar con sus flores y veladoras, darle de comer y beber (ver
imágenes 7 y 8), llevarla a misa (ver imágenes 9 y 10), no dejarla sola en casa
y tener un buen comportamiento frente a ella.

Imágenes 2 y 3: Dos Divinos Rostros y la entrada al atrio de la iglesia, Tequexquinahuac, Texcoco (Fotografías de Manuel Moreno, 2015) Imagen 1: Danza de Santiagos, San Jerónimo Amanalco, Texcoco. (Fotografía de David Robichaux, 2011)
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Imágenes 5 y 6: Danzantes y Divinos Rostros bailando la “marcha” de los Santiagos, Tequexquinahuac, Texcoco. (Fotografías de Manuel Moreno,
2015)
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Imagen 7 y e 8: Altar para Divinos Rostros recién bendecidos, compuesto por arreglos florales, velas, alimentos y bebidas, Tulantongo, Texcoco. (Fotografía de Jorge Martínez, 2017) y la ofrenda de alimentos y bebidas para el “santito” y su caballo, Tequexquinahuac, Texcoco. (Fotografía de Manuel Moreno, 2015)
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Imagen 9: Rumbo a la iglesia para bendecir a los Divinos Rostros, Tulantongo, Texcoco. (Fotografía de Jorge Martínez, 2017)
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Imagen 11: Fuente: Libro II, Códice Florentino (1577)

El desconocimiento sobre la devoción al Divino Rostro y la riqueza del mate-


rial recolectado nos llevaron a elaborar el documental, un proceso que duró
varios años e implicó el desarrollo de un eje conceptual, la colaboración con
algunos pobladores y la presentación en eventos académicos. Las ideas de
la realeza sagrada (Dehouve, 2016; Hocart, 1970), el concepto de ixiptla que
tenían los antiguos mexicanos del siglo XVI para referirse a la persona u ob-
jeto que encarnaba a los dioses en rituales (ver Lopez Austin, 1973; Dehouve,
2016b e imagen 11), y la acción de jugar a ser otro (Huizinga, 2007; Caillois,
1994) nos dieron las bases para un cuerpo conceptual propio. Por otro lado,
el caso de un ebanista del pueblo de Papalotla, a quien le realizamos un
video sobre su oficio en gratitud por permitirnos grabar la elaboración de
Divinos Rostros (ver imágenes de 12 a 18, y link video colaborativo) y por
habernos presentado con clientes suyos, es un ejemplo de la colaboraci-
ón estrecha que tuvimos con algunos pobladores. Finalmente, la edición de
pequeños clips para eventos académicos abrió la posibilidad de trabajar de
forma continua el material. Estos procesos permitieron hilar una narrativa
sobre la hechura del Divino Rostro, la forma en que adquiere su poder, la
unión danzante-santo, los requisitos que debe cumplir la persona que lo
porta, y los milagros y castigos que realiza la imagen. Tales temas tocados a
lo largo del documental intentan llevar al espectador a preguntarse si acaso

Imagen 10: Escuchando misa, Tulantongo, Texcoco. (Fotografía de Jorge Martínez, 2017)
estamos frente a una serie de prácticas que se asemejan a la idea de ixiptla,
la personificación de los dioses en el México antiguo.
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Imagen 13: Elaboración Divino Rostro: lijando el mascarón de fibra de vidrio. Barrio de Belén, Papalotla. Fotografía Jorge Martínez, 2015. Links videos:

Trailer “Divino Rostro”


https://vimeo.com/418785865

Video colaborativo
https://www.youtube.com/watch?v=yrpowoMibHg&t=17s
Referências

Caillois, Roger, 1994 Los juegos y los hombres. La máscara y el vértigo, Fondo de Cultura Económica, México.

Dehouve, Danièle, 2016a, La realeza sagrada, Secretaria de Cultura-INAH, Colegio de Michoacán-CEMCA, México.

2016b, “El papel de la vestimenta en los rituales mexicas de ‘personificación’ ”, Nuevo Mundo Mundos Nuevos [en línea], Coloquios, disponible en:
https://journals.openedition.org/nuevomundo/69305#quotation.

Hocart, Maurice, 1970, Kings and councilors, Universidad de Chicago, Chicago.

Horcasitas, Fernando, 1975, “El teatro popular en náhuatl y una danza de Santiago”, Revista de la Universidad de México, no. 5, enero, 1975.

Horcasitas. Fernando, 1985, “Los santiagueros de Tepetlaoztoc: dialogo de una danza”, en De la historia. Homenaje a Jorge Gurría Lacroix, UNAM,
México, pp. 445–478.

Huizinga, Johan, 2007 Homo ludens, Alianza Editorial –Emecé Editores, Buenos Aires.

Jáuregui, Jesús, 1996, “Santiago contra Pilatos: ¿la reconquista de España?” en Jesús Jáuregui y Carlo Bonfiglioli (coords.) Las danzas de con-
quista. I México contemporáneo. CONACULTA/FCE, México, pp. 165–204.

López Austin, Alfredo, 1973, Hombre-dios. Religión y Política en el Mundo Náhuatl, México, Unam-IIH.

Maya González, Elva Vianney, 2018, “Hay que ir a la vanguardia”: la danza de las Sembradoras. Cambio, continuidad y género en Santa Inés
Hueyotlipan Titicályatl (Municipio de Texcoco). Tesis de maestría en Antropología Social, Universidad Iberoamericana.

Robichaux, David y José Manuel Moreno Carvallo, 2019, “El Divino Rostro y la danza de Santiagos en el Acolhuacan Septentrional: ¿ixiptla en el
siglo XXI?”, Trace, 76, 21–47.

Imagen 10: Escuchando misa, Tulantongo, Texcoco. (Fotografía de Jorge Martínez, 2017) Robichaux, David, Manuel Moreno y Jorge Martínez, 2017, documental “El Divino Rostro”, Universidad Iberoamericana. 39 min.
Sahagún, fray Bernardino, 1577, Códice Florentino. Libro II, Florencia, Biblioteca Laurenciana. https://www.wdl.org/es/item/10613/
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Imágenes 14 y 15: Documentando la elaboración de un Divino Rostro. Barrio de Belén, Papalotla. (Fotografía de Jorge Martínez, 2015) (Ebanista Martín Nava). Y na imagen 15 el reflejo en el espejo del mascarón del Divino Rostro en la
prueba que realiza el danzante para afinar detalles y continuar con su elaboración. Barrio de Belén, Papalotla. (Fotografía de Jorge Martínez, 2015)

Imagen 16: La mirada del mascarón. Barrio de Belén, Papalotla, (Fotografía de Jorge Martínez, 2015)
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Imágenes 17 y 18: Ebanista Martín Nava tallado del resplandor de la imagen, Barrio de Belén. Y, en la imagen 18, preparando la imagen
para iniciar con la encarrnación, Papalotla. (Fotografía de Jorge Martínez, 2016)
Nadège Mézié ¹

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Peregrinos em Sodo, Haiti

Resumo: Este ensaio fotográfico trata da peregrinação anual à Sodo, vilarejo


no centro do Haiti, e a sua cachoeira sagrada. Desde 1849, todo 15 de julho
milhares de pessoas do país e de fora chegam ali para homenagear e fazer
pedidos à Virgem do Monte Carmel, à Ezili Dantò e outros espíritos do vodu. A
relações dinâmicas entre peregrinos, a Virgem, espíritos e a natureza ganham
corpo nas imagens. As fotografias foram tiradas durante a peregrinação
de 2006, na qual participei com um amigo haitiano. A máquina fotográfica
utilizada foi uma Nikon D70. Abrem o ensaio duas fotografias de Pierre Verger,
que registrou a peregrinação em 1948 (reproduzidas aqui com autorização da
Fundação Pierre Verger).

Palavras chave: Haiti, peregrinação, vodu, catolicismo

Pilgrims at Sodo, Haiti

Abstract: This is a visual essay on the annual pilgrimage to Sodo, a village in central Haiti,
and to its sacred waterfall. Since 1849, every 15th of July thousands of people from the country
and abroad come to honor and ask help of the Virgin of Mount Carmel, Ezili Dantò and other
voodoo spirits. The dynamic relationships between pilgrims, the Virgin, spirits and nature
appear in the images. The photographs were taken during the 2006 pilgrimage, in which I
participated with a Haitian friend. The camera used was a Nikon D70. Since Pierre Verger also
registered the pilgrimage, in 1948, two of his pictures open the essay (reproduced here with
the authorization from the Pierre Verger Foundation).

Key words: Haiti, pilgrimage, vodou, catholicism

1 - Pós-doutoranda, programa Capes-Print Unicamp.


nagmezie@gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-0850-8020
http://lattes.cnpq.br/4679531188554549
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Todo ano, entre junho e setembro, diversas peregrinações acontecem em
todo o Haiti, sobretudo em homenagem à Virgem Maria (Rey, 2005a). Elas
incarnam de maneira exemplar o agenciamento criativo, que nasce nas
plantations da colônia francesa, de elementos de origem católica (culto aos
santos) e de tradições religiosas africanas (da antiga Costa dos Escravos,
mas também dos Bantou da África central — e é importante lembrar que
muitos Bantou que foram enviados à Santo Domingo haviam convertido-se
ao catolicismo já na África). Nas peregrinações contemporâneas, rituais ca-
tólicos e vodu coexistem e os peregrinos passam de um a outro. Em 15 de ju-
lho, e nos dias precedentes e seguintes, a festa da Virgem do Monte Carmel
reúne no vilarejo de Saut d’Eau (“Salto d’água”), Sodo em crioulo haitiano
(termo que também significa “cachoeira” nesta língua), milhares de pere-
grinos vindos das várias regiões do país e também membros da diáspora, em
grande parte jovens. Sodo fica a 50 km de Porto Príncipe, no departamento
Centro, e a uma hora de caminhada do vilarejo encontra-se uma cachoeira
de 15 metros de altura, formada durante o grande terremoto de 1842. Ela é
desde então considerada um lugar sagrado, associado à Virgem Maria e à
Ezili Dantò (espírito vodu correspondente à Virgem católica) e é também
a morada de Danbala-Wedo, a “serpente arco-íris” vodu. Conta-se que em
1849 a Virgem Maria apareceu ali para um jovem, embaixo de uma árvore
próxima à cachoeira. Sodo tornou-se então destino de peregrinação sob o
incentivo do imperador Soulouque (presidente de 1847 a 1849, data em que
se autoproclamou imperador, ocupando essa posição por dez anos) (Laguer-
re, 1989). Em 1948, Pierre Verger esteve em Sodo e nos deixou fotografias da
peregrinação naquele ano. Apresentamos duas delas na abertura do ensaio,
com a devida autorização da Fundação Pierre Verger (termo de licença ref.
às fotografias 44991 e 44993 do inventário da Fundação).

Na manhã de 15 de julho de 2006 chego de ônibus à Sodo acompanhada


de David, um amigo haitiano. Desde Porto-Príncipe, os peregrinos vieram
cantando: Sodo m prale, an verite Sodo m prale / Limen limyè-a pou mwen
m prale/Sonen ason-an pou mwen m’prale / Sesil-O, Vyèj Mirak-O, ban m
demann mwen, m prale (“Eu vou a Sodo, é verdade bom Deus, eu vou a Sodo/
Acenda-me a luz, estou chegando / Balance a maraca, estou chegando /
Santa Cecília, oh Virgem milagreira, atenda meus votos que estou chegando,
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estou chegando”). Uma multidão de fieis já ocupava as poucas ruas do vila- Domingo de manhã partimos para a cachoeira. A maior parte dos peregrinos
rejo. Fotografo e filmo sem que ninguém dê sinais de me notar, muitos outros passou a noite em claro, participando de rituais ou dançando mizik rasin
fazem o mesmo com seus celulares, sobretudo peregrinos-diáspora, “pere- (música raiz). No caminho, mulheres vendem o que comer, velas, plantas
grinos-turistas” (Steil, 2003) e alguns outros blan (estrangeiros) presentes. medicinais. Chegamos à cachoeira por cima, e o barulho da queda d’água se
A igreja católica, dedicada à Virgem do Monte Carmel, e o calvário trans- soma aos clamores renovados pela comemoração da chegada. Na beira do
bordam de gente. Na rua, grupos dançam e alguns seguem pequenas ban- poço, adultos e crianças tiram parte da roupa, entram na água e esfregam
das de músicos “a pé” (bann a pye). O vilarejo ecoa sonoridades religiosas: plantas medicinais em seus corpos. Dentro da água ou nas margens, vê-se
escuta-se uma multitude de clamores, encantações, objurgações, preces corpos que se ativam em manipulações rituais e técnicas de cura (rituais de
inflamadas, murmúrios, cantos. Volumes e estilos diferentes se misturam possessão, consultas com um médecin-feuille — conhecedor de remédios
numa cacofonia de sons em fervor. Em 1974 e 1976, Jean Dominique, grande naturais — ou com um mambo, banhos, danças, oferendas…). Buscam se
jornalista haitiano, acompanhou a peregrinação em Sodo e também ficou conectar às divindades e se livrar, assim, dos males que os atormentam. Em
marcado pelo “furor de seus clamores”. Pode-se ouvir a emissão radiofônica Sodo, água, flamas, plantas, espíritos e a Virgem Maria formam um universo
que realizou para rádio Haiti-Inter nos arquivos criados pela Universidade sensível que constitui, envolve, possui e enche de poderes os corpos pere-
de Duke, na coleção “Radio Haiti” (arquivo disponível em: https://repository. grinos.
duke.edu/dc/radiohaiti/RL10059-RR-0077_01).

Grupos de peregrinos se reúnem em volta das árvores que ficam na beira da


estrada e nas praças. Dispõem velas e oferendas em seus galhos e raízes.
Em alto e bom som ou, ao contrário, bem baixinho, eles pedem que o espíri-
to que ocupa aquela árvore atenda suas preces. No vodu haitiano, espíritos
e ancestrais gostam de se assentar em elementos da natureza, sobretudo
em árvores, como Loko por exemplo, espírito da vegetação e da força vital
das plantas. Ele fornece aos especialistas rituais o poder da cura pelas plan-
tas (Rey, 2005b). Algumas essências de árvores são consideradas sagradas
e elas são cultivadas nas proximidades dos ounfò (templos vodu). Entre os
peregrinos, pequenos grupos de ougan, mambo e ounsi (respectivamente:
sacerdotes vodu homens, mulheres e seus iniciados) se distinguem por suas
roupas coloridas, sobretudo em azul e vermelho, e por trazerem cordas e Referências

tecidos amarrados nos quadris, ao redor do peito e dos chapéus de palha. LAGUERRE, Michel S. 1989. Vodou and Politics in Haiti. Nova York: Palgrave Macmillan.

Amarrar (mare) — uma corda ou tecido — é amarrar-se ao poder de um es-


REY, Terry. 2005a. Toward an ethnohistory of Haitian pilgrimage. Journal de la société des américanistes. v.91, n.1, p.161–183.
pírito ou da Virgem Maria (Rey e Richman, 2010).
REY, Terry. 2005b. Trees in Haitian Vodou. In: B. R. Taylor; J. Kaplan (coord.), The Encyclopedia of Religion and Nature. Vol. 2. Londres/Nova
York: Thoemmes Continuum. p.1658–1659.

REY, Terry; RICHMAN, Karen. 2010. The Somatics of Syncretism: Tying Body and Soul in Haitian Religion. Studies in Religion / Sciences Reli-
gieuses. v. 39, n. 3, p.379–403.

STEIL, Carlos. 2003. Romeiros e Turistas no santuário de Bom Jesus da Lapa. Horizontes Antropológicos. Ano 9, n. 20, p.249–261.
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Ritual e(é) imagem: gestos, corpos
e materialidades

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Como se sabe, ritual é um conceito basilar na antropologia. Tanto se tem dito a res-
peito dele que pouco podemos acrescentar. Isso quando a pretensão é apenas teo-
rizar. Contudo, junto com as imagens apresentadas neste eixo, acreditamos que as
narrativas em questão trazem potências mais criativas do que as noções clássicas
e modernas de ritual. Nesse sentido, ritual é imagem na medida em que, a partir
de uma operação esteticamente mobilizada e apresentada, tem efeito no mundo. O
ritual/ a imagem apresenta um conhecimento corpóreo e vivo desse mundo. Mes-
mo quando as imagens estão opacas e nebulosas, elas estão dizendo, assim como o
ritual. Algo que Denise Camargo (2010) nos mostra tão bem, tanto pela sua escrita,
quanto pela sua narrativa fotográfica.

Abrindo os trabalhos em “Laroyê, Exu Mulher! A Festa da Rainha”, Jean dos Anjos
apresenta a festa para a Maria Padilha das Sete Encruzilhadas, exu feminino que
subverte a ordem patriarcal e os desejos e anseios esperados para a mulher em nos-
sa sociedade. Ela transgride também a relação não corpórea que muitos têm com o
alimento. Em sua festa, há a sacralização animal, inserindo a carne e o sangue em
um circuito vital onde as pessoas e as entidades se ligam, criam paisagem e território
de festa.

Leandro Barbosa, com o trabalho “A dança dos Orixás: quando o sagrado é a arte do
corpo”, apresenta como uma performance negra, que dialoga com a imagética e os
símbolos das religiões dos orixás, re-significa um espaço na cidade de Pelotas, RS.
Esse espaço tem a marca histórica da escravidão. A partir da dança e dos corpos ne-
gros, esse espaço é territorializado enquanto lugar de resistência negra, na medida
em que desfaz a tese de que a cidade de Pelotas não tem marca e raízes negras. Já
em “O Jabá de Ogum”, Lucas Marques apresenta o pai de santo e artífice de ferra-
mentas de orixás, Zé Diabo. Com uma câmera intimista, acompanhamos o processo
de feitura de uma ferramenta que após diversos ritos, será transformada no próprio
orixá. A oficina é apresentada enquanto território que é atravessado e compõe forças,
forças estas que estarão nos objetos fabricados. O jabá é o ato técnico e ritual que
transforma o ferro em algo que ele não é por si só.

Cleyce Colins e Larissa Micenas encerram esse núcleo com um experimento de encan-
tamento e arte, fazendo uma ponte para o eixo que termina o dossiê, pois se apropria
da noção de encantamento, tanto para tangenciar as religiões de matrizes africanas,
quanto para conceber a arte produzida. Mobilizando o conceito afro-brasileiro e indí-
gena de encantamento, as duas autoras em “Corpo-Nanã: uma experiência de encan-
tamento no manguezal”, fazem do território, corpo, e do corpo, expressão, território e
casa de Nanã, orixá que além de muitas características, é também associada aos man-
guezais. Para tal experimentação, o ifá e o pai de santo de Cleyce Colins foram consul-
tados, aprovando as fotografias de Larissa Micenas que vocês encontram neste dossiê.
Jean Souza dos Anjos ¹
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Laroyê, Exu Mulher! A Festa da Rainha

Resumo: Ensaio fotográfico da Festa da Rainha Pombagira Sete Encruzilhadas


na Cabana do Preto Velho da Mata Escura, em Fortaleza, Ceará. Este é um
trabalho de macumba que, com imagens, gira com a Rainha Pombagira em
sua festa anual. Com uma estética de beleza, a Festa da Rainha afeta todos
e todas que presenciam sua encarnação no mundo material. Pombagira sara
e cura, protege suas filhas e filhos e anima sua comunidade para o amor e a
caridade. A Pombagira vence guerra. Laroyê, Exu Mulher!

Palavras chave: Pombagira; Umbanda; Festa.

Laroyê, Exu Woman! Queen’s Party

Abstract: Photographic essay of the Queen Pombagira Sete Encruzilhadas Party in the Cabana
of Preto Velho da Mata Escura, in Fortaleza, Ceará. This is a macumba work that, with images,
revolves with Queen Pombagira at her annual party. With a beauty aesthetic, the Queen’s
party affects everyone who witnesses her incarnation in the material world. Pombagira heals,
protects her sons and animates her community for love and charity. Pombagira wins the war.
Laroyê, Exu Woman!

Key words: Pombagira; Umbanda: Party.

1 -Mestre em Antropologia pelo PPGA associado da Universidade Federal do Ceará (UFC) e Universidade da Integração Internacional da Lusofo-
nia Afro-Brasileira (UNILAB). Especialista em Ciências da Religião pela Faculdade Católica de Fortaleza (FCF). Bacharel e licenciado em Ciências
Sociais pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Pesquisador do Laboratório de Antropologia e Imagem (LAI/UFC).
jeanjos09@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-7216-4747
http://lattes.cnpq.br/1948207778073696
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“Foi numa noite de lua que eu vi duas mulheres bebendo cachaça e girando A Pombagira é uma mulher (ANJOS, 2019). Ela é um Exu Mulher, ou seja, é
na rua. Mas uma era a Pombagira, a outra era Maria Padilha”. Laroyê, Maria dona das encruzilhadas, das porteiras e dos caminhos. Silva (2015) indica
Padilha da Estrada! É ela quem abre este ensaio fotográfico e é ela quem que a Pombagira seria um trickster feminino que desafia a ordem patriarcal
abre os caminhos para este trabalho. Mas é a Rainha Pombagira Sete Encru- da sociedade brasileira porque não aceita a subordinação da mulher aos pa-
zilhadas e sua festa na Cabana do Preto Velho da Mata Escura, em Fortaleza, péis domésticos tradicionais de esposa e mãe. Sua iconografia umbandista
Ceará, que brilha nesta edição². é representada na figura de uma diaba, cujo corpo exibe uma plástica exu-
berante (AUGRAS, 2009).

A experiência etnográfica (CLIFFORD, 2014) realizada na Cabana do Preto


Velho da Mata Escura revela que a Rainha Pombagira Sete Encruzilhadas
encarna no Pai Valdo de Iansã. “Não incorpora. Encarna”, diz Mãe Aparecida,
Ekedi da casa. No mesmo local funciona o Ilé Asé Ojú Oyá, Candomblé da Na-
ção Ketu, com calendário litúrgico próprio. José Lopes de Maria, o Babalorixá
Valdo de Oyá, é o zelador da casa, tanto na Umbanda como no Candomblé.
A Festa da Rainha Pombagira é realizada por ele desde o final da década de
1980.

Este trabalho me afeta do ponto de vista metodológico (FAVRET-SAADA,


2005) quando a presença da Pombagira age sobre o meu corpo, muitas ve-
zes, fazendo-me tremer e arrepiar. Afeta, também, quando faço uso da câ-
mera fotográfica produzindo imagens que, por vezes, ganham espaço nos
estatutos da arte. As imagens que compõem este ensaio foram autorizadas
pela própria Pombagira e pelo Pai Valdo de Iansã. Existe entre nós uma re-
lação de respeito e confiança construída em mais de dez anos de pesquisa.
A Festa da Rainha Pombagira Sete Encruzilhadas acontece, geralmente,
no segundo sábado de novembro. Para a celebração acontecer são reali-
zadas sete giras, o cortejo e a matança. As giras, que são rituais de cura e
de afirmação, começam a acontecer no mês de outubro e obedecem a um
calendário organizado pela própria Pombagira. Giras são trabalhos onde a
entidade exerce a sua força para ajudar aqueles e aquelas que nela creem.
A Pombagira canta, dança, fuma, bebe e dá sua gargalhada. Girando e can-
tando seus pontos, ela pede que todos e todas se concentrem naquilo que
desejam. Ela será a intercessora para a realização dos desejos de seu povo.

2 - Esta pesquisa teve o apoio da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP).
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O cortejo acontece quando os assentamentos da Rainha Pombagira Sete En-
cruzilhadas e do Exu Duas Cabeças são levados para alguns pontos da cida-
de. Os assentamentos saem do terreiro por volta das 21 h, são levados para
um cemitério, uma praia, um banco, uma igreja, um cabaré e um mercado.
Passa, ainda, por sete encruzilhadas no Centro da cidade. Em todos esses
locais, os assentamentos são alimentados com padês preparados especial-
mente para a ocasião. O cortejo evidencia que Exus e Pombagiras são cele-
brados nas ruas e nas encruzilhadas, suas moradas.
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A Pombagira recebe a carne e o sangue sacrificial em um dos momentos
mais divinos da celebração: ela se banha com o sangue. Há quem diga que o
momento da matança é mais emocionante do que a própria festa. A aceita-
ção do sacrifício é o ápice da organização da grande festa.

A matança é o ritual do sacrifício. Uma vaca é dada para a Rainha Pombagira


Sete Encruzilhadas. Ela é preparada para a imolação com rituais de limpeza
ficando pura para o sacrifício. Além da vaca, filhos e filhas da casa oferecem
bodes e galinhas para os seus Exus e Pombagiras. A celebração do rito sacrifi-
cial abre passagem para a festa. É um retorno à ordem íntima (BATAILLE, 2015).
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A festa é o evento, o lugar onde estamos junto com os deuses (HAN, ganha flores, perfumes, joias, champanhe, entre outros regalos. Seus com-
2017). Na festa tudo se torna divino. Nela, a Rainha Pombagira confir- padres, Exu Tranca Rua e Exu Marabô, ficam sempre ao lado dela. A mulher
ma todos os desejos de seus súditos. Ela recebe pessoas de toda a cidade, encarnada vibra na terra celebrando o amor e a vida. Laroyê, Exu Mulher!

Referências

ANJOS, Jean Souza dos. Amor, festa, devoção: a rainha Pombagira Sete Encruzilhadas. 2019. 158f. — Dissertação (Mestrado) — Universida- CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2014.
de Federal do Ceará, Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira, Centro de Humanidades, Programa Associado de
Pós-graduação em Antropologia Social, Fortaleza (CE), 2019. Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/50245 Acesso em: 26 FAVRET-SAADA, Jeanne. Ser afetado. Tradução de Paula Siqueira. Cadernos de campo n. 13: 155–161, 2005. Disponível em: <http://www.
Mai. 2020. revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/viewFile/50263/54376> Acesso em: 27 Mai. 2020.

AUGRAS, Monique. Imaginário da magia: magia do imaginário. Petrópolis, RJ: Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC, 2009. HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

BATAILLE, Georges. Teoria da religião: seguida de Esquema de uma história das religiões. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. SILVA, Vagner Gonçalves da. Exu: o guardião da casa do futuro. Rio de Janeiro: Pallas, 2015
Leandro Barbosa dos Santos ¹
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A dança dos orixás:
quando o sagrado é arte do corpo
Resumo: O ensaio foi desenvolvido a partir das performances evocativas do
espetáculo Dança dos Orixás, buscando conduzir o espectador a observar o
jogo de símbolos e atuações que se articulam no decorrer da apresentação.
Podemos perceber como os artistas lançam mão (ou não) de sua herança
afro-brasileira em experiências individuais e coletivas, permitindo que os
espectadores sejam conduzidos por uma percepção que projeta a duração da
memória sobre o espaço, acendendo fervores da fé e etnicidade.

Palavras chave: Orixá, Batuque, Performance, Corpo.

The Orixas’ Dance: when the sacred is art of the body

Abstract: The photo essay was developed from the evocative performances of the spectacle
Orixas’ Dance, long to lead the viewer to observe the play of symbols and acting that articulated
during the presentation. We realize how artists use (or not) their Afro-Brazilian heritage in
individual and collective experiences, allowing viewers to be guided by a perception that
projects the duration of memory over space, igniting fervors of faith and ethnicity.

Key words: Orixá, Batuque, Performance, Body.

1 - PPGANT — Universidade Federal de Pelotas


Bolsista CAPES
profleandrobarbosa@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0003-1236-9457
http://lattes.cnpq.br/7419628324692362
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Pelotas, RS, Brasil é uma das cidades que surge no contexto da exploração proposta de ressignificação para estes espaços de sofrimento, afirmando
do trabalho escravo nas charqueadas, principalmente na região do Arroio que “é na ressignificação que o espetáculo encontra a sua força”.
Pelotas. A cidade tornou-se um polo que demandava constante aquisição de
cativos, muitos que eram trazidos a fins de serem punidos no trabalho dos É importante destacar que a cidade apresenta uma narrativa conflitante
saladeiros². Atualmente na cidade, as ruas e prédios denunciam o passado com o passado escravagista da região, elemento que traz a tona o conflito
escravagista impresso nas grades e paredes dos antigos casarões. Ao mes- manifesto no presente. Não se resume apenas a uma narrativa histórica,
mo tempo em que se nega a história, se reforça a narrativa da criação de mas a uma disputa de narrativas que tem como ponto principal a constitui-
uma cidade aos moldes europeus, que resiste a memória da escravização. ção destes corpos e o direito de apropriação dos espaços de sofrimento. “As
Como símbolo de resistência, após mais de um século, os descendentes des- pessoas se confundem quando a gente comenta dança dos orixás (…). Eu
tes escravizados retornam para estes espaços de sofrimento, não mais para entendo que o papel da arte é sintonizar as pessoas a uma herança de um
serem vítimas, e sim para reivindicar o direito da ressignificação, da criação povo que veio escravizado para o Brasil.”.
de sentidos, de tomar para si as lágrimas dos seus antepassados, protagoni-
zando a narrativa da história da região. Neste sentido o espetáculo traz o tema para debate, o inserindo dentro do
contexto cultural/turístico de Pelotas, RS, Brasil. Através de diferentes es-
É neste contexto que surge o espetáculo Dança dos Orixás, que desde 2017 tratégias, Daniel busca viabilizar a realização fixando as datas em diálogo
utiliza o espaço da Charqueada São João para criar este ambiente de ressig- com as festividades afro-brasileiras, no intuito de valorizar as religiosidades
nificação, embalados por seus Orixás e ritos. Professor, coreógrafo, e diretor neste contexto e mostrando que a presença negra é fundamental na cons-
artístico Daniel Amaro que é o idealizador do espetáculo Dança dos Orixás, tituição da cidade. “Quando você evoca a memória, você meche com uma
joga com diferentes imaginários, permitindo que o espetáculo transite entre coisa muito louca. Você meche com o passado, e ninguém quer mexer com
os limites da arte e religiosidades afro-brasileiras. o passado”.

Em entrevista, Amaro destaca a força do efeito que o contexto em conjun- Dumas (2019) enfatiza que é importante entender que o processo de violên-
to com os ritos produz nos expectadores, os conduzindo a transitar entre o cia no período das charqueadas foi uma “mudança de curso nestes corpos”,
imaginário e experiências individuais com os Orixás. Tal situação faz emergir mas não uma ruptura com estas histórias ou apagamento destas culturas.
sentimentos que suscitam contradições que apontam para a flexibilidade Embora tenha ocorrido um processo castrador instituído no Brasil, ele não
dos limites entre o espetáculo e as religiosidades presentes. Ele enfatiza três foi capaz de apagar as marcas africanas presentes no passado. Todo um ad-
elementos como fundamentais para constituição do espetáculo, que são: quirido de gestos, práticas, comidas, rituais, crenças, fazem parte da cons-
“Espaço, performance e religião, é o que fazem a beleza do espetáculo”. tituição deste corpo negro, atrelado a percepção de si e do corpo. Os corpos
negros são corpos africanos e carregam suas marcas identitárias, estas que
Embora inicialmente a realização da Dança dos Orixás tenha gerado polê- são ressignificadas na diáspora brasileira.
mica, em principal pela divergência sobre uso de um espaço de sofrimento
como palco, ele destaca que o propósito foi “construir uma narrativa negra, Embora o espaço da charqueada seja carregado de significados e símbo-
estabelecida por negros que narram a sua própria história”. Oferecendo uma los, o campo onde está apropriação acontece é o corpo, em especial o cor-
po negro. No espetáculo o corpo é o que dinamiza ressaltando a trajetória,

2 - Casa onde se salgava o charque.


aguçando as sensibilidades e despertando para aquilo que aconteceu na
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história. O corpo é o espaço reservado para manifestação desta ambiguida-
de. No decorrer da performance os sentidos se constroem, os símbolos estão
presentes como tinta para escrita do corpo, que gradualmente produz refle-
xos nas percepções dos ali presentes.

Não somente o corpo dos dançarinos e atores é alvo desta trama, mas tam-
bém o corpo imaginado e sentido dos escravizados que assume forma no
ritmo e dança de seus Orixás. É no corpo que acontece o jogo da memória, o
corpo enquanto espaço, onde no presente está o dançarino, e no passado o
escravizado. Ambos dançam juntos, conduzidos pelo Orixá, através de uma
religiosidade imanente, seguindo os ritos em um espaço que obedece aos
requisitos do cerimonial, realizando a junção de corpo, espaço e tempo.

Referências

DUMAS, Alexandre Gouvêa. Corpo Negro: Uma conveniente construção conceitual. In: XV Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura,
2019, Salvador. Anais XV Enecult. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2019, v.01. Disponível em: https://www.cult.ufba.br/enecult/anais/
edicao-2019-xv-enecult/

GUTIERREZ, E. J. B.; SANTOS, C. A. A. Narrativas Macabras: Viajantes e Artistas no sul da América. In: XVII Seminário de História da Arte —
Anacronias do Tempo, n.03, 2013, Pelotas. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/arte/article/view/3078

LATOUR, B. How to Talk About the Body? The Normative Dimension of Science Studies. Body & Society, Califórnia: Sage, v. 10, n. 2–3, p.
205–229, 2004.
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Lucas Marques ¹
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O jabá de Ogum

Resumo: O ensaio é centrado na oficina de José Adário dos Santos, mais


conhecido como “Zé Diabo”, um ferreiro e pai-de-santo que há mais de 50
anos produz as chamadas ferramentas de orixás, artefatos pertencentes às
religiões de matriz africana que, após uma série de gestos técnicos e rituais,
se tornam as próprias entidades materializadas. Através de imagens de
movimentos e gestos técnicos, busco captar o processo criativo agenciado
por Zé Diabo: o processo de criação de uma nova força, um Orixá.

Palavras chave: candomblé; ferramenta de orixá; foto-transe; cosmotécnica.

The work of Ogum

Abstract: The essay focuses on the workshop of José Adário dos Santos, best known as Zé
Diabo, a traditional blacksmith and father-of-saint that has been making ferramentas de
orixás (orisha tools) for more than 50 years. These artifacts belong to the Afro-Brazilian
religions, and after a series of technical gestures and rituals, they materialize the entities.
Throughout images and technical gestures, the essay seeks to capture the creative process
assembled by Zé Diabo: a process of creation of a new force, an Orixá.

Key words: candomblé; afro-brazilian religions; photo-trance; cosmotechnics.

1 -Filiação Institucional: Doutorando em Antropologia Social (Museu Nacional/UFRJ)


https://orcid.org/0000-0001-8145-8301
http://lattes.cnpq.br/9811620783172902
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Este ensaio fotográfico² é uma tentativa de capturar as linhas de interação e movi- Ocidental — de onde esse conhecimento certamente veio –, o ferreiro é intrinseca-
mento acionadas na oficina de José Adário, localizada na Ladeira da Conceição da mente relacionado à figura do feiticeiro, e sua atividade, a forja, é sagrada, análoga
Praia, em Salvador, Bahia. José, mais conhecido como “Zé Diabo”, é um ferreiro e ao nascimento (cf. Childs & Killick, 1993). Trata-se , para utilizarmos um termo pro-
pai-de-santo que há mais de 50 anos produz as chamadas ferramentas de orixás, posto pelo filósofo chinês Yuk Hui (2017), de uma outra cosmotécnica: outro modo de
artefatos pertencentes às religiões de matriz africana que, após uma série de gestos se relacionar com aquilo que chamamos de “técnica” — de natureza, de matéria ou
técnicos e rituais, se tornam as próprias entidades materializadas. No ensaio, busco de transformação. É essa, creio, a verdadeira arte praticada por Zé Diabo: uma arte
explorar a oficina de Zé Diabo como um território atravessado por forças, ritmos e da criação de vida, de “algo mais” — algo que escapa à concepção ocidental de arte,
materiais distintos, percorrendo as diversas formas de relação estabelecidas com os e que, na maioria das vezes, escapa às tentativas de incorporação de sua arte no es-
materiais e as forças que os habitam. Através das imagens, tento captar o processo paço público, em mostras de arte ou exposições³.
criativo agenciado por Zé Diabo: um processo vital de criação de uma nova força que
passa a vir ao mundo, um Orixá. É essa arte, o jabá de Ogum, que busco “captar” nesse ensaio fotográfico. Por isso,
meu foco aqui não são nem os “objetos” (as ferramentas de orixás) nem o “sujeito”
“No terreiro é que se faz o Orixá, aqui é o jabá de Ogum” — me alertava Zé Diabo, da ação (o ferreiro), mas sobretudo os processos, os movimentos e interações: cor-
sempre que buscava me explicar a sua atividade na oficina. “O jabá é o trabalho com tar, martelar, soldar, desenhar, montar. Entre materiais e gestos, busco analisar o
o ferro”, costumava complementar, “mas o ferro já sai daqui uma outra coisa”. A pala- modo como as forças preenchem a oficina e são ali transformadas. Me inspiro na-
vra que ele utilizava para descrever seu ofício sempre foi algo que me intrigou muito. quilo que Claudine de France (1983) chamou de “análise praxeológica”, um método
Em geral, ao descrevê-lo como um jabá, ele se referia não apenas ao processo técni- de investigação das formas de ação (das técnicas) onde o dispositivo de captação
co-material da construção das ferramentas de orixás, mas também a todo o processo de imagens (a câmera) é articulado à própria ação técnica, permitindo, a partir da
energético que envolvia essa atividade. Jabá, para Zé, é o trabalho de Ogum, mas interação rítmica, perceber os encadeamentos gestuais da ação. Mas para capturar
também pode ser visto como uma espécie de “dom”, ou melhor, de caminho para se esses processos cosmotécnicos é preciso algo mais: deixar que a fotografia possa ser
trabalhar com o ferro. É o caminho de Ogum: o poder de transformar o mineral em afetada por essa “outra coisa” que permeia a oficina de Zé Diabo. Jean Rouch (1975),
uma ferramenta, em “algo mais”. inspirado nos fenômenos de possessão que ele tanto filmou, propôs o conceito de “ci-
ne-transe” para lidar com esses processos de interação entre a câmera e o que está
Ogum, no candomblé, é o orixá do ferro, dos conhecimentos técnicos e da guerra. Toda sendo filmado. É esse mesmo tipo de inspiração que permeia esse ensaio: tornar a
a produção deve passar pelo caminho de Ogum — por isso ele é também o senhor dos câmera partícipe desse processo de interação e movimento e, através das imagens,
caminhos. Segundo Zé Diabo, “Ogum é tudo o que há. Tudo tem que ter Ogum. Toda do enquadramento, das cores, da textura e do movimento, evocar a força que atra-
ferramenta carrega Ogum, o jabá de Ogum. Não se pode fazer nada sem ele”. Todo fer- vessa os materiais, os gestos, o ferreiro e a própria oficina. O jabá de Ogum.
ro, assim, carrega a energia desse orixá — e o ferreiro, através do caminho de Ogum,
é o maestro dessa orquestra de ritmos, gestos e forças. O processo de transformação 3 - A obra de Zé Diabo já participou de diferentes mostras fotográficas e exposições artísticas, apesar de nunca ter recebido o devido e merecido reconhecimento (finan-
ceiro e artístico). Suas peças estão espalhadas por museus como o Museu Afro Brasil, em São Paulo e o Museu Fowler, na Califórnia. É interessante pensar como essas
desse ferro em uma ferramenta de orixá, mais que meramente técnico, é um proces- obras são apropriadas e agenciadas nesses locais, mas isso já é papo para outra conversa.

so de canalização de forças (de axé) naquele material, através de gestos técnicos, Referências

materiais e movimentos ritmados: no martelar do ferro na bigorna, na serra, na fu- CHILDS, Terry; KILLICK, David. “Indigenous African Metallurgy: Nature and Culture”. Annu. Rev. Anthropol. N.22, pp.317–337, 1993

maça presente na forja, na solda ou nas baforadas de charuto (cf. Marques, 2018). FRANCE, Claudine de. “L’analyse praxéologique: composition, ordre et articulation d’un procès”. Techniques & Culture. 54–55 v. 1, pp. 223–241, 2010 [1983].

Mais que forma e conteúdo, matéria e energia, ser e devir, o que parece estar em jogo HUI, Yuk. “Cosmotechnics as Cosmopolitics”. e-flux jornal. n.86, 2017

nesse processo de criação são as forças e suas composições. É por isso que, na África MARQUES, Lucas. “Na oficina do Diabo: ritmos, sinergias e transformações na ferramentaria de orixás na Bahia”. In: Carlos Sautchuk. (Org.). Técnica e transformação:
perspectivas antropológicas. Rio de Janeiro: ABA Publicações, p. 350–375, 2018
2 - arte desse ensaio foi exibido, com algumas modificações, na exposição principal do Prêmio Pierre Verger da 29º Reunião Brasileira de Antropologia, em 2014, ocorrida
na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em Nata-RN. ROUCH, Jean. “The Camera and Man”. In: Paul Hockings (org). Principles of Visual Anthropology. Nova York: Mouton de Gruyer, pp. 79–98, 2003 [1975]
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Cleyce Silva Colins ¹
Larissa Colins Micenas ²
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Corpo-Nanã: uma experiência de
encantamento no manguezal³
Resumo: Este ensaio traz o registro do experimento Corpo-Nanã desenvolvido
no manguezal em Alcântara — MA no ano de 2020. Fruto de uma parceria
entre a adepta e pesquisadora da religião de umbanda Cleyce Colins com a
artista e fotógrafa Larissa Micenas, o experimento se propõe a elaborar uma
relação entre ancestralidade, orixalidade e manguezal, investigando a partir
desta relação práticas artístico-educacionais que estejam firmadas na ética e
saberes do terreiro de umbanda.

Palavras chave: Encantamento. Umbanda. Fotografia. Nanã. Dança educação.

Corpo-Nanã: enchantment experience in the mangrove ⁴

Abstract: This essay the record of the Corpo-Nanã experiment developed in the mangrove in
Alcântara — MA year 2020. Result of partnership between adept and researcher of the religion
of Umbanda Cleyce Colins with artist and photographer Larissa Micenas, the experiment
proposes to elaborate a relationship between ancestry, orixality and mangrove, investigating
from this relationship educational artistic practices that is established in the ethics and
knowledge of the umbanda terreiro (space of rituals).

Key words: Enchantment. Umbanda. Nanã. Picture. Body. Dance Education.

1 - Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
cleycesc@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-8460-7920
http://lattes.cnpq.br/8723467714178720

2 - Graduanda em Artes Visuais pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).


larissamicenas96@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-6939-4843
http://lattes.cnpq.br/660970877584735

3 - O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior — Brasil (CAPES) — Código
de Financiamento 001

4 - This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior — Brasil (CAPES) — Finance Code
001
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Os registros fotográficos deste ensaio emergem como desdobramento da mútuos saberes e olhares, para diferentes percepções de um mesmo territó-
pesquisa em curso intitulada “Dramaturgia do Encante: camadas para a rio. Assim está fotoetnografia para além de um registro do experimento con-
criação em dança desde os saberes do terreiro.”, desenvolvida junto ao Pro- duz a uma possível narrativa desses três universos, trazendo as memórias
grama de Pós Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do RS e os trajetos elaborados pelo corpo em meio ao mangue. Neste contexto de
com orientação da professora Celina Alcântara. imbricamento a pesquisadora Cleyce Colins compreendeu que por a pesqui-
sa tratar-se de um atravessamento com a religiosidade de umbanda, ela en-
A narrativa imagética deste ensaio trás a transformação do corpo no experi- contra-se envolta em questões éticas da própria religiosidade. Assim, para
mento performático intitulado Corpo- Nanã, que desenvolveu-se em parce- melhor desenvolver esta pesquisa o Ifá ⁶ foi consultado, assim como o pai de
ria entre a adpta a umbanda e pesquisadora Cleyce Colins com a fotógrafa santo da pesquisadora Cleyce Colins, recebendo autorização de ambos.
Larissa Micenas. O qual foi realizado em janeiro de 2020, no manguezal ⁵ da
cidade de Alcântara - MA, uma cidade histórica, localizada a 1h20min de Os saberes e ética do terreiro são levados como parte da constituição des-
São Luís, por meio do mar. Seu acontecimento se deu nesta cidade por ela te experimento performático e não buscam infringir o segredo e o mistério
apresentar em sua faixa litorânea abundância de manguezais, aspecto im- contido nesta religiosidade. Aqui as vivências dentro da umbanda são dis-
portante para a constituição desta vivência. O experimento em questão foi postas como experiências de encantamento, por encantamento trazemos a
inspirado e tecido com base na experiência de Colins com a orixá Nanã den- visão do autor Oliveira (2012), onde o encantamento não é uma experiência
tro da religião de Umbanda. Nanã é considerada pela cosmovisão Iorubá um que impõe suas maravilhas, mas experiência de ancestralidade ⁷. O encan-
dos orixás mais velhos, sendo conhecida por ceder a lama que cria os corpos tamento a partir do prisma vivenciado na Umbanda é formulado por (CO-
humanos, por isso considerada a senhora da lama e dos manguezais. Desta LINS, 2019), como:
forma a escolha pelo mangue se deu pelo desejo de estarmos próximas ao
“um modo de ser, estar no mundo onde não há cisões, divisões, mas
local físico desta Orixá e a investigação ali realizada objetivou a experimen- nem por isso um uno. Trata-se quiçá de algum tipo de conhecimen-
tação performática pautada na relação corpo, mangue e orixalidade. A partir to que parece transcorrer por vias das quais o entendimento não está
fundamentado numa racionalidade instrumental, mas antes, tem
desta relação emergem as imagens deste trabalho, que tratam-se de uma
o corpo como lócus de múltiplas visões de mundo e onde os huma-
fotoetnografia. Utilizamos este conceito com base no autor Achutti (1997), nos não são os únicos agentes significantes”. (COLINS, 2019, p. 2011)
em sua perspectiva a fotoetnografia é fotografia narrativa que preserva em
si o dado assim permitindo ao receptor uma informação cultural. Neste sen- Com base nesta compreensão o encantamento e ancestralidade forjados no
tido, vislumbramos que o material desta fotoetnografia Corpo-Nanã expõe chão do terreiro são alicerces usados por Colins para pensar práticas artís-
ao receptor as transformações e experimentações vividas no espaço-tem- tico-educacionais de criação em dança. O movimento corporal manifestado
po deste experimento performático. Para além, entendemos que “fotografar pela pesquisadora Colins em relação aos elementos naturais constituintes
não é apenas refletir a realidade, é também reflexionar sobre ela e nela refle- do bioma dos manguezais, confere a possibilidade de tecer movimentos mí-
tir-se”. (ACHUTTI, 2004, p. 71) Nesse sentido está fotoetnografia é o momen- ticos poéticos da orixá Nanã para além de sua fé, apontando para um pen-
to onde convergem diferentes modos de entendimento e reflexões do ex- samento e prática acerca de um possível caminho à construção de uma po-
perimento performático, nesta ocasião presenciamos de forma imbricada a ética de decolonialidade do corpo, ou seja, é a lama do manguezal como
religião de umbanda, as artes visuais e as artes cênicas, que aqui produzem simbologia de Nanã, sua textura, cor e todos os aspectos ali presentes que
6 - Ifá é considerado pela cosmovisão iorubá como a divindade da sabedoria. Ele é consultado por meio de um complexo sistema divinatório.

5 - Manguezal é um ecossistema costeiro que localiza-se em faixas de encontro entre os biomas aquáticos e terrestres, apresenta elevada biodiver- 7 - Este conceito é utilizado no sentido da teoria do Corpo e Ancestralidade da pesquisadora Inaicyra Falcão (2006), a ancestralidade é por ela en-
sidade, sendo considerado um espaço de berçário e local de reprodução para várias espécies. tendida não apenas como hereditariedade, mas como passado histórico mítico e cultural que se inscreve no corpo.
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se condensam e convergem em direção ao corpo conferindo-lhe densidade
e revelando outras possibilidades de movimento corporal. Nesta fotoetno-
grafia é possível observa o corpo metamorfoseando-se em mangue e for-
jando para si um outro espaço-tempo de criação de movimento. Seguem as
imagens do experimento “Corpo-Nanã”, realizado na cidade de Alcântara,
estado do Maranhão.

Referências

ACHUTTI, Luiz Eduardo Robinson. Fotoetnografia: um estudo de Antropologia Visual sobre cotidiano, lixo e trabalho. Porto Alegre: Tomo, 1997.

_________. Fotoetnografia da Biblioteca Jardim. Porto Alegre: UFRGS/Tomo, 2004.

COLINS, Cleyce Silva. O corpo como lócus de encantamento na criação em dança. Anais do VI Encontro Científico da Associação Nacional
de Pesquisadores em Dança-ANDA.Salvador: ANDA, 2019.p.2005-2013.

OLIVEIRA, Eduardo David de. Filosofia da ancestralidade como filosofia africana: Educação e cultura afro-brasileira. Revista Sul-Americana de
Filosofia e Educação. Número 18: maio-out/2012, p. 28-47.

SANTOS, Inaicyra Falcão dos. Corpo e Ancestralidade: uma Proposta Pluricultural de dança-arteeducação. 2. ed. São Paulo: Terceira Margem,
2006.
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Os encantos da encantaria:
imagéticas do encantar-se
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A encantaria é território infinito de possibilidades. Lugar de vários territórios místi- no sertão alagoano, no município de Pariconha. Na narrativa, acompanhamos a utili-
cos, que podem fazer parte do nosso mundo a partir da interseção com rios, igara- zação do Praiá, utensílio vestual que modifica o corpo e possibilita que ele, em ritual,
pés, cachoeiras, beira-mares e diversos outros lugares. Os encantados são os seres entre em contato com os encantados, pois o Praiá materializa esses seres, que para
que transitam pelas encantarias e alcançam a nossa realidade, geralmente tendo os Jiripankó, foram indígenas que não passaram pela experiência da morte, e sim do
cooperação de pajés, mestres, pais e mães de santo. Em várias mitologias, os seres encantamento. Os rituais da composição apresentada aqui são dois: Menino do Ran-
encantados são descritos como sujeitos que não passaram pela experiência da mor- cho e Corrida do Umbu. Essas manifestações rituais estão associadas ao rompimento
te, sofrendo outro processo antes disso, o do encantamento. Essa mitologia perpas- da seca pelas fortes chuvas que atingiram a região durante a pesquisa de campo dos
sa tanto territórios de matrizes africanas, quanto indígenas, em muitos momentos, autores, modificando a paisagem e possibilitando a agricultura.
sendo tangenciado pelas duas matrizes ao mesmo tempo. Uma noção interessante
para pensar a encantaria é a de confluência, pensada pelo mestre quilombola Antô- Encerramos o dossiê e esse núcleo temático com Daniel Meirinho, em seu ensaio “A
nio Bispo dos Santos: nesse aspecto, as diferenças dos coletivos negros e as diver- performance ritualística do Toré Pankará”. Nessa narrativa vamos para a Serra do
sas matrizes indígenas confluem, articulando-se como experiência contra-colonial Arapuá, visitar a nação Pankará. Aqui podemos acompanhar o Toré, uns dos princi-
(Santos, 2015). pais rituais realizados pelas mais diversas nações indígenas que estão territorializa-
das no nordeste brasileiro. Temos uma composição, nesse ritual, que faz jus ao que
Clédisson Junior abre a sessão com “A sombra da Jurema”. Jurema é uma religião de se apresenta durante todo esse dossiê. No Toré, o maracá faz acontecer o contato
raiz indígena, que perpassa várias nações indígenas do nordeste brasileiro. Ela se com o mundo dos encantados e espíritos, onde são mobilizados santos católicos e
aproximou da umbanda de uma maneira muito peculiar, criando praticamente uma entidades do universo afro-brasileiro, além do mais, há a ingestão da Jurema, com-
nova religião. No ensaio, nos aproximamos da Casa das Matas dos Reis Malunguinho, pondo um ritual de forte afirmação e resistência. A paisagem se encanta com o Toré
um terreiro de Jurema que fica em Olinda, Pernambuco. As velas, bengalas, fumaças, Pankará.
tambores em relação com os corpos das pessoas praticantes da Jurema, mostram
territórios da encantaria incrustada no urbano pernambucano, construindo territo-
rialidades negras e indígenas que confluem no terreiro.

Kauã Vasconcelos, em “Um Toque para os Encantados”, traz uma articulação seme-
lhante apresentada por Clédisson. Aqui, a pajelança e a linha do fundo, religião de
matriz tupi, se cruzou com a umbanda e o tambor de mina. Nesse sentido, Kauã
apresenta um ritual (o toque) que aconteceu na cidade de Soure, na ilha do Marajó
(a maior ilha fluviomarítima do mundo), onde encantados descem em seus filhos e
filhas para dançar, festejar, beber e curar. Em um cenário ainda amazônico, mas
agora no estado do Amazonas, Diego Omar apresenta “Territórios encantados: etno-
grafias visuais das religiões populares em Parintins (Amazonas)”, junto com Helon
Coelho, Renan Mota e Yandrei Farias. Na narrativa, diversos territórios sagrados são
articulados pelas pessoas para com que eles sejam morada — desde o corpo — de
encantados, entidades, bichos do fundo e orixás. Nesse aspecto, a própria compo-
sição afroindígena das expressividades apresentadas, evidenciam a importância e
força das coletividades negras na Amazônia.

Finalmente, temos dois trabalhos que narram universos de nações indígenas do nor-
deste brasileiro, mais especificamente do sertão alagoano e pernambucano. José
Peixoto e Yuri Rodrigues em “O universo ritualístico do povo indígena Jiripankó: espa-
ços, personagens e paisagens”, apresentam a nação Jiripankó, que se territorializou
Clédisson Junior ¹
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A sombra da Jurema

Resumo: O ensaio é fruto de um estudo etnografico realizado na Casa das


Matas do Reis Malunguinho, terreiro de Jurema na cidade de Olinda no ano de
2018. Aprendi com os juremeiros que o Catimbó — Jurema liga-se a espécies
de árvores encontradas no sertão nordestino. A jurema preta é utilizada na
fabricação da bebida que dá nome a esse universo religioso, sua origem
remonta a pajelança e ao toré, ambos regimes religiosos que fundamentam a
estrutura indígena do sagrado.

Palavras chave: catimbó, tradição, confluência, Jurema-Sagrada.

The shadow of Jurema

Abstract: The essay result of an ethnographic study carried out at Casa das Matas do Reis
Malunguinho, a Jurema terreiro in the city of Olinda in 2018. I learned from the jurmeiros
that Catimbó — Jurema is linked to species of trees found in the northeastern hinterland.
The black jurema is used in the manufacture of the drink that gives name to this religious
universe. Its origin goes back to pajelança and toré, both religious regimes that underlie the
indigenous structure of the sacred.

Key words: catimbó, tradition, confluence, Jurema-Sagrada.

1 -Doutorando em Ciências Sociais, Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade — CPDA/UFRRJ


Bolsista Capes
cledissonjunior@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-2324-1646
http://lattes.cnpq.br/9566512449043417
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Na “Casa Das Matas do Reis Malunguinho”, terreiro de Jurema Sagrada lo- Os juremeiros instauram o devir como o regime político do religioso por meio
calizado em meio aos casarões seculares da cidade de Olinda (PE), busquei de um processo antropofágico em busca da complementariedade. É essa
apreender a partir da convivência com o seu zelador, afilhados e demais pra- ontologia que permitiu a permanência de uma religião indígena desde a
ticantes do Catimbó — Jurema, seus modos de experimentar os processos chegada dos europeus no século XVI, aos dias de hoje. A Jurema não é mais
de reinvenção da vida a partir do Sagrado, a resiliência dos seus praticantes encontrada somente entre as etnias indígenas ou no sertão nordestino, mas
frente às transformações impetradas pela contemporaneidade, os agencia- está também nos centros urbanos, ela foi e é constantemente ressignificada
mentos humanos e não humanos frente às disputas ontológicas capitanea- por aqueles que a vivenciam.
das pelo racismo religioso e pela modernidade capitalista e em especial sua
relação com o território. A Jurema Sagrada é um projeto societário em construção, um projeto que
articula em seu interior e para fora dele à luta por território e garantia de di-
Walter Benjamin nos ensina que o limiar é uma zona, uma área relacionada reitos, um projeto societário refratário à modernidade/colonialidade. A Jure-
à mudança, à transição e aos fluxos, diferenciando-se rigorosamente da no- ma Sagrada é insurgência politica e desobediência epistêmica (MENDONÇA,
ção de fronteira. Podemos compreendê-lo como uma zona conectora, uma 2013).
zona do “entre”, um local tanto impreciso quanto reservado à imprecisão. Ele
não se inscreve dentro de uma lógica binária, do isso ou aquilo, mas refere- A tradição negra e a indígena são culturas de encruzilhadas, culturas de
-se a algo que é, ao mesmo tempo, isso e aquilo, caracterizando-se por um sincopes, rebeldes e insubmissas. A encruzilhada, locus tangencial, é o lu-
tipo de tensão próxima à figura do paradoxo. É um espaço de deslocamento, gar radial de centramento e descentramento, intersecções e desvios, texto
de flutuações. Território destinado à dúvida, à incerteza, assim como às des- e traduções, confluências e alterações, influências e divergências, fusões
territorializações (BARRETTO, 2018). e rupturas, multiplicidade e convergência, unidade e pluralidade, origem e
disseminação.
A confluência da tradição religiosa africana e indígena se deu quando os
negros fugidos dos engenhos onde se encontravam escravizados foram abri- A potência da Jurema Sagrada se encontra no desvio, na dobra, sua ciência
gados nas aldeias indígenas, e/ou no encontro dos indígenas com os negros é resultado de séculos de conhecimentos produzidos nas frestas do mundo,
nos quilombos onde através desse contato, ambos trocavam o que detinham sua manutenção e sobrevivência se dão na reinvenção do viver, em sua ca-
de conhecimento Os africanos contribuíram com o seu conhecimento sobre pacidade de adaptação, de remontagem, sua batalha não se dá em campo
os eguns e sobre as divindades da natureza, os orixás. Já os indígenas contri- aberto, sua tática é a guerrilha.
buíram com o conhecimento sobre invocações dos espíritos de antigos pajés
e dos trabalhos de cura realizados com os encantados das matas e dos rios. Referências

BARRETTO, Isadora de Vilhena. Voares de incerteza, voares pela incerteza — um estudo sobre a relação entre memória e limiar. Dissertação
A jurema sagrada hoje da continuidade ao que, anteriormente, era chamado de mestrado — Programa de Pós-Graduação em Memória Social — Centro de Ciências Humanas e Sociais — Universidade Federal do Estado

de catimbó por intelectuais e pelas forças repressoras. Uma religião de ori-


do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2018.

gem indígena, mas que abrigou desde cedo os negros que traziam, em suas AYALA, Marcos e AYALA, Maria Ignez Novais. Cultura popular no Brasil. (perspectivas de análise). São Paulo: Ática. (Princípios: 122), 1987.

origens africanas, o culto aos antepassados (AYALA, 1987). MENDONÇA, Caroline Farias Leal. Insurgência política e desobediência epistêmica: movimento descolonial de indígenas e quilombolas na
Serra do Arapuá. (Tese de Doutorado — UFPE) Recife, 2013.

SANTOS JUNIOR, Clédisson. Território Encantado: O Devir Quilombola e a Cosmopolítica Afro-Indígena brasileira. Dissertação de Mestrado —
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural — Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.
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Kauã Vasconcelos ¹
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Um Toque para os Encantados

Resumo: Esse ensaio busca apresentar um festejo realizado para os caboclos


no município de Soure, Ilha de Marajó (PA). O toque é realizado em dos muitos
terreiros dedicados as práticas da Mina ou Umbanda, expressão religiosa que
envolve a relação entre seus praticantes e espíritos também conhecidos como
encantados.

Palavras chave: Religiões de matriz africana; encantaria amazônica; Ilha de


Marajó.

A Beat for the Encantados

Abstract: This essay seeks to present a celebration held for the caboclos in the municipality
of Soure, Ilha de Marajó (PA). The beat is performed in one of the many terreiros dedicated
to the practices of Mina or Umbanda, a religious expression that involves the relationship
between its practitioners and spirits also known as encantados.

Key words: Anthropology of African-based religions; Amazonian encantaria; Ilha de Marajó.

1 - Doutorando pelo PPGAS do Museu Nacional UFRJ


kauamonde@gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-2741-1689
http://lattes.cnpq.br/6492648278321862
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Este ensaio foi realizado em Soure, município da Ilha de Marajó (PA), em o próprio ato de criação das imagens. O observador (fotógrafo) produz um
julho de 2019. Ele acompanha um dos muitos festejos organizados pelos um- tipo de imagem enquanto interpretação, no sentido musical, do processo
bandistas e afroreligiosos da região durante esse período. As fotos foram ritual. As fotos são pontos de vista, mas esses pontos de vista devem produzir
tiradas na casa da mãe Ângela durante a festividade para sua cabocla Maria um diálogo, que reverbere a potência desse encontro. É nesse sentido que
Mineira, realizada todo ano nessa mesma data, 19 de julho. A Mina paraense a produção imagética e a produção etnográfica podem se co-fertilizar pela
realizada na Ilha de Marajó tem forte conexão com as práticas rituais do Ma- força da experiência ritual religiosa: há dimensões criativas, ético-estéticas
ranhão, principalmente com o interior do estado, sendo de origem codoense que perpassam essas práticas[3].
muitos dos caboclos que baixam para dançar, beber e festejar nos terreiros
marajoaras. Muitos pais e mães de santo da região, iniciados primeiramen- As fotos aqui buscam apresentar elementos presentes em um festejo para
te para a Linha do Fundo, o que se convencionou chamar de “pajelança”, caboclos. Os abatazeiros, como são conhecidos os tocadores de atabaque
viraram, cruzaram e se desenvolveram na Linha da Umbanda e da Mina, re- em Soure, iniciam os toques nos festejos para que as primeiras doutrinas
cebendo espíritos mais festeiros que os que participavam dos trabalhos de para os caboclos sejam cantadas. A chegada dos caboclos é geralmente
cura na Linha de Pena e Maracá (como também é conhecida a Linha do Fun- anunciada por uma tontura, desequilíbrio, com o médium levando a mão
do). Nesse ensaio apresento treze fotos que ilustram, brevemente, um toque até a têmpora. Expressões e gestos permitem identificar o encantado que
para esses espíritos. chegou.

Ao contrário de outras experiências religiosas, onde o ato de fotografar pode Os caboclos possuem muitas famílias, como a dos marinheiros. Geralmente,
ser visto não apenas como incômodo, mas proibido (na Linha do Fundo, por nos festejos, caboclos de uma mesma família, ou que possuem afinidade
exemplo, a maioria dos caruanas² não permite que sejam fotografados ou entre si, cantam e dançam juntos. O povo do mar, povo da mata, boiadeiros,
filmados, com poucas exceções; além disso, os trabalhos são realizados no turcos, são algumas dessas famílias de encantados.
escuro ou à luz de velas, o que dificulta o registro), os caboclos costumam
não apenas permitir, mas pedem para serem registrados. Os praticantes dos Nos festejos, os caboclos consomem muito tabaco e cerveja (que costumam
terreiros costumam guardar, impressas ou em forma de arquivo em seus chamar de espumosa). Gostam de mostrar sua força ao anunciar que deixa-
celulares, fotos com os caboclos e vídeos dos festejos onde eles aparecem rão o corpo de seus cavalos sóbrio assim que forem, como se não tivessem
dançando e cantando. dado nem um trago e nem um gole. Durante o festejo, quando não estão
cantando e dançando, os caboclos gostam muito de conversar com a au-
Nesse sentido, o presente ensaio fotográfico se deu dentro de um contexto diência e entre si. É nesse momento que são consultados pelos visitantes e
em que o ato de fotografar é parte do processo ritualístico dos festejos. As fo- membros do terreiro que buscam seu auxílio.
tos aqui, contudo, só foram registradas meses depois da minha chegada ao
campo e após participar de muitos outros festejos. O efeito desse tempo so- Ao chegar em terra, o caboclo anuncia quem é e de onde vem, e o faz por
bre a produção dessas imagens foi importante tanto no sentido de criar um meio de sua doutrina. Durante o festejo muitas doutrinas são puxadas
tipo de relação anterior a do registro, quanto — e principalmente, pela apre- pelos caboclos, e são elas, junto com as danças, que conduzem o toque.
ciação prévia dos atos ritualísticos que colaborou para uma reflexão sobre Ao fim, os caboclos se despedem com doutrinas anunciando sua partida.

2 - Caruanas é como são conhecidos os guias do Fundo, que trabalham no corpo do pajé durante os trabalhos de cura; eles são forças, energias, 3 - Sobre as reflexões entre a produção imagística e a prática etnográfica, ver o interessante trabalho de Marco Antonio Gonçalves sobre o cineasta francês
que “é causa da dinâmica da vida, o que permite o acontecer e o devir” (Lima 2002: 272). Jean Rouche, “O real imaginado: etnografia, cinema e surrealismo em Jean Rouch” (2008). Sobre o observador-fotógrafo no contexto do registro das religiões
de matriz africana ver a dissertação de Iara Cecília Pimentel Rolim sobre o etnógrafo e fotógrafo Pierre Verger, “O Olho do Rei: imagens de Pierre Verger” (2002).
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Quando a noite já avança, os abatazeiros estão cansados e o público, em sua
maioria, já se foi. Contudo, muitos encantados adiam sua partida, perma-
necendo em terra para mais uma espumosa, uma conversa, uma doutrina
entoada sem o toque do tambor.

Esse ensaio é parte de uma pesquisa ainda em andamento (cuja as primei-


ras impressões resultaram no meu trabalho de mestrado), que requer mais
investigações sobre as linhas de trabalho com os encantados — caboclos
e caruanas -, suas práticas, suas variações e singularidades em territórios
marajoaras. Os toques para os encantados aqui retratados são a experiência
viva de uma relação muito profunda, cheia de música, ritmo, dança e ale-
gria, matéria-prima da arte desenvolvida nos terreiros do Marajó. Sua força
está na forma muito singular pela qual seus praticantes devolvem ao mundo
seu estilo enquanto um modo de existência que valha a pena ser vivido. Aqui
podemos apenas sondá-lo.

Referências

GONÇALVES, Marco Antonio. O real imaginado: etnografia, cinema e surrealismo em Jean Rouch. Sollus Distribuidora, 2008.

LIMA, Zeneida. O mundo místico dos caruanas da Ilha do Marajó. Edições CEJUP, 2002.

ROLIM, Iara Cecilia Pimentel et al. O olho do rei: imagens de Pierre Verger. 2002.
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Diego Omar da Silveira ¹
Helon da Silva Coelho ²
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Renan Jorge Souza da Mota ³

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Yandrei Souza Farias ⁴

Territórios encantados: etnografias


visuais das religiões populares em
Parintins (Amazonas)
Resumo: Para além da sua importância acadêmica, os estudos sobre a
diversificação do campo religioso na Amazônia, têm contribuído, nos últimos anos,
para revelar as narrativas provenientes do universo afro-indígena. Na medida
em que mergulham nas estéticas dos terreiros e de outros lugares encantados,
as pesquisas (em especial as etnografias) têm revelado um rico repertório
imagético, que ao mesmo tempo descortina outras/novas epistemologias e
contribui para visibilizar grupos historicamente marginalizados. As fotografias
aqui reunidas, foram produzidas em diferentes momentos e integram variadas
pesquisas monográficas. Têm em comum, no entanto, um mesmo esforço de
compreensão dos sujeitos e práticas que habitam esses territórios sagrados de
Parintins, no Amazonas.

Palavras chave: Diversidade religiosa; Etnografias visuais; Parintins; Amazonas.

Enchanted Territories: visual ethnographies of popular religions


in Parintins (Amazonas)
Abstract: Beside their academic importance, studies on the diversification of the religious
field in the Amazon over the last few years have contributed to reveal narratives originated
from the afro-indigenous universe. While diving into the aesthetics of the terreiros and other
enchanted places, these studies (especially the ethnographies) have uncovered a rich imagetic
repertoire that both unravels different/new epistemologies and at the same time contributes to
making historically marginalized groups visible. The photographs gathered here were produced
in different moments and are part of several undergraduate thesis research studies. However,
they share a commonality: a common effort to the understanding of subjects and practices that
inhabit these sacred territories in Parintins, Amazonas.

Key words: Religious Diversity; Visual Ethnographies; Parintins; Amazonas.

1 - Doutorando emAntropologia Social pela Universidade Federal doAmazonas (UFAM) e mestre em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Trabalha atualmente
como professor assistente no Centro de Estudos Superiores de Parintins da Universidade do Estado doAmazonas (UEA). Coordenou a Regional Norte daAssociação Brasileira de
História das Religiões (ABHR). É membro da Rede de Pesquisa: História e Catolicismo no mundo contemporâneo e do Centro de Estudos Políticos, Religião e Sociedade (CEPRES).
diegomarhistoria@yahoo.com.br
https://orcid.org/0000-0001-6835-3417
http://lattes.cnpq.br/2646291847306206

2 - Bacharel em Comunicação Social — Jornalismo na Universidade Federal do Amazonas (UFAM).


E-mail: heloncoelho@hotmail.com
htto://orcid.org/0000–0001–6187–2847

3 - Bacharel em Comunicação Social — Jornalismo na Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Produtor audiovisual e fotógrafo. Tem se dedicado à pesquisa em
sociologia da religião e folkcomunicação carismática no Amazonas.
renanjorge1771@gmail.com
htto://orcid.org/0000–0003–4902–2051
http://lattes.cnpq.br/1346111777603151

4 - Bacharel em Comunicação Social — Jornalismo na Universidade Federal do Amazonas (UFAM).


yandreifarias@gmail.com
htto://orcid.org/0000–0001–9944–8291
http://lattes.cnpq.br/9066012063626263
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Os estudos sobre o campo religioso amazonense, tomado como um todo, são


recentes e ainda carecem de maior sistematização. Duas fortes tradições
foram importantes ao longo do século XX e deixaram suas marcas muito evi-
dentes: no campo da antropologia e da sociologia prevaleceu uma leitura
de que a Amazônia era iminentemente católica, muito embora as tradições
indígenas e afrorreligiosas existissem, ora se misturando ora se colocando
como uma força paralela, de resistência, às sucessivas levas de colonização
do imaginário religioso; o campo da história foi marcado pelo enfoque sobre
a entrada dos europeus e de sua fé, uma espécie de “conquista espiritual”
narrada de forma apologética pelos seus próprios agentes eclesiásticos e
mais tarde, criticamente, pelos estudiosos, igualmente enredados nos pro-
cessos que levaram à construção dessa hegemonia religiosa.

De qualquer forma, outras vozes — que não as do Cristianismo (católico ou


protestante/ evangélico) — raramente encontraram lugares de enunciação
muito prestigiados. Hoje, porém, felizmente isso tem mudado (Sampaio,
2011). Não apenas porque os números apontam um cenário de transforma-
ção religiosa ou porque as religiões indígenas ou os povos de terreiro estejam
reivindicando seus lugares nessa história. Mas também porque as ciências
sociais, mais sensíveis, redescobrem, a partir de diferentes pontos de vista
teóricos e metodológicos, a riqueza das narrativas, das estéticas, das episte-
mologias presentes nas muitas tradições afroindígenas amazônicas (Maués;
Narrar e permitir que diferentes sujeitos (re)construam suas próprias histó-
Villacorta, 2008; Pacheco, 2013).
rias são, assim, esforços fundamentais para reverter estigmas e preconcei-
tos que, não raro, reforçaram os silenciamentos. Do ponto de vista visual, o
que buscamos apresentar aqui são fotografias provenientes de nossos es-
forços etnográficos, de nossos encontros com os territórios encantados na
cidade de Parintins, interior do Amazonas, já na divisa desse estado com o
Pará. Elas foram produzidas em diferentes momentos, no contexto de va-
riadas pesquisas monográficas e se juntaram pela primeira vez durante o I
Simpósio Norte da Associação Brasileira de História das Religiões, realizado
em 2017. Dois anos mais tarde (2019) voltamos a produzir, juntos, uma expo-
sição durante a II Jornada de Folkcomunicação do Amazonas.
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Temos partido da ideia de que “a fotografia faz falar” (Barbosa, 2016, p. 194)
e de que é possível mobilizar esse “imenso potencial narrativo” em prol dos
grupos subalternos (Carvalho, 2001), contra-hegemônicos (Silveira, 2019),
marginalizados nas histórias oficiais e quase sempre atacados pelos defen-
sores das novas e velhas ortodoxias (Gaspar, 2006). Por isso privilegiamos as
benzedeiras, os rezadores, os encomendadores de almas, as cerimônias da
pajelança e do Santo Daime, as festas e celebrações dos terreiros. Ao lado
deles, produzimos “imagens que provocam ao tornar o significativo [para
esses grupos e pessoas] visível” (Barbosa, 2016, p. 196).

Para além dos registros orais, já bastante utilizados nas pesquisas (Silva;
Pacheco, 2012), as imagens têm aqui a tarefa de presentificar a importância
das corporeidades das tradições afroindígenas para as formas locais de viver
e de se relacionar com sagrado. Delas emergem os sons dos atabaques e
dos cantos, a força das danças ritmadas dos terreiros e a fumaça das ervas
que convoca e acolhe entidades e encantados durante as festas e momentos
rituais.
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As fotografias também privilegiam a possessão e o transe religioso como
momentos fundamentais nas tradições mediúnicas, pondo em evidência as
linguagens não-verbais que atravessam “as identidades e as cosmovisões
amazônicas”, nas quais o mundo natural e o cultural estão permanentemen-
te entrelaçados. Nos territórios em que homens e mulheres se assentam
também baixam Orixás, pretos-velhos, caboclos e pombagiras. Ou sobem os
bichos do fundo, para ajudar na cura dos males do corpo e do espírito.

Referências

BARBOSA, Andrea. Fotografia, narrativa, experiência. In: BARBOSA, Andrea et. al. (org.). A experiência da imagem etnográfica. São Paulo: Terceiro
Nome: FAPESP, 2016. pp. 191–204.

CARVALHO, José Jorge. O olhar etnográfico e a voz subalterna. In: Horizontes Antropológicos. Porto Alegre: UFRGS, ano 7, n. 15, julho de 2001.
pp. 107–147.

GASPAR, Eneida Duarte. Guia de Religiões Populares do Brasil. São Paulo: Pallas, 2006.

MAUÉS, Raymundo Heraldo; VILLACORTA, Gisela Macambira (org.). Pajelanças e Religiões Africanas na Amazônia. Belém: EDUFPA, 2008.

PACHECO, Agenor Sarraf. Religiosidade afroindígena e natureza na Amazônia. In: Horizonte. Belo Horizonte: PUC-Minas, v. 11, n. 30, abr./jun. de
2013. pp. 476–508.

SAMPAIO, Patrícia Melo (org.). O fim do silêncio: presença negra na Amazônia. Belém: Editora Açaí; CNPq, 2011.

SILVA, Jerônimo da Silva e; PACHECO, Agenor Sarraf. Oralidades em tempos de possessões afroindígenas. In: História Oral. São Paulo: ABHO,
v. 15, n. 2, jul.-dez. de 2012. pp. 167–192.

SILVEIRA, Diego Omar da. Religiões contra-hegemônicas na Amazônia: desafios de um campo de pesquisas. In: Senso. Belo Horizonte: Grupo
Senso, ed. 13, nov-dez. de 2019.
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José Adelson Lopes Peixoto ¹
Yuri Franklin dos Santos Rodrigues ²
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O universo ritualístico do povo
indígena Jiripankó: espaços,
personagens e paisagens
Resumo: Objetivamos, a partir deste ensaio, apresentar alguns espaços e
personagens que compõem os rituais do povo indígena Jiripankó, localizado
territorialmente no município de Pariconha, Sertão de Alagoas, além de
evidenciar as múltiplas paisagens presentes no território. Seguindo a
perspectiva da Antropologia Visual, buscamos produzir fotografias que nos
auxiliassem na compreensão de um riquíssimo universo religioso.

Palavras chave: Jiripankó. Fotografias. Identidade. Ritual.

The ritualistic universe of the Jiripankó indigenous people:


spaces, characters and landscapes
Abstract: From this essay, we aim to present some spaces and characters that make up the
rituals of the Jiripankó indigenous people, located territorially in the municipality of Pariconha,
outback of Alagoas, in addition to highlighting the multiple landscapes present in the territory.
Following the perspective of Visual Anthropology, we seek to produce photographs that would
help us understand a very rich religious universe.

Key words: Jiripankó. Photographs. Identity. Ritual.

1 - Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco — UNICAP. Professor Adjunto na Universidade Estadual de
Alagoas — UNEAL, Campus III — Palmeira dos Índios. Coordenador do Grupo de Pesquisas em História Indígena de Alagoas — GPHIAL.
adelsonlopes@uneal.edu.br
http://orcid.org/0000-0002-5179-108X http://lattes.cnpq.br/0073629440988196

2 - Graduando em História pela Universidade Estadual de Alagoas — UNEAL, Campus III — Palmeira dos Índios. Bolsista na Secretaria do
Curso de Licenciatura Intercultural Indígena — CLIND/AL. Membro do Grupo de Pesquisas em História Indígena de Alagoas.
yurirodrigueshis@gmail.com
http://orcid.org/0000-0003-3390-0462
http://lattes.cnpq.br/6578151720637552
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Habitantes da zona rural do município de Pariconha, no Sertão de Alagoas, memórias coletivas, compostas de algumas experiências individuais, apesar
o povo indígena Jiripankó reafirma suas identidades e fortifica os laços de de serem socializadas e interligadas com as memórias individuais (HALBWA-
comunhão com seus protetores a partir dos rituais sagrados, que contam CHS, 1990).
com a participação de diversos indivíduos, com atribuições específicas, em
diferentes espaços, com múltiplas paisagens. Ademais, os rituais adquirem uma função importante para o universo cos-
mológico, político e identitário dos Jiripankó, primeiro, por seu caráter co-
A distância percorrida do centro da cidade de Pariconha até a aldeia Ouri- municativo e sagrado, sendo o fio condutor da intermediação entre o mate-
curi — lócus da pesquisa — é de 6 km, se dar por uma estrada com o solo rial e o imaterial (terra e reino dos Encantados); segundo, pela capacidade
predominantemente pedregoso e arenoso, em alguns locais. Seu entorno é de agregação, aglutinação e troca de informações, sendo capazes de de-
recortado por serras, recobertas pela vegetação típica da Caatinga. No início limitar suas fronteiras e instituir alianças com outros grupos étnicos; por
da pesquisa que resultou na produção das fotografias que compõem este último, a posição de construção das identidades, ambiente de fluidez da
ensaio, em janeiro de 2017, a região passava por uma longa temporada de tradição indígena, de sociabilidades e do florescimento do sentimento de
seca, mas nos meses seguintes ocorreram acentuadas chuvas que muda- pertencimento entre as novas gerações, além de possibilitar aos indígenas
ram a paisagem da região e o território indígena ganhou formas diferentes, uma conexão estreita com a natureza, representada em múltiplos espaços e
com grandes extensões de matas verdes, barragens e açudes ficaram acima de diversificadas formas.
do nível, assegurando o plantio de vários gêneros alimentícios.
A produção de fotografias perpassa pela intencionalidade de criar um supor-
É nesse contexto que se desenvolvem os rituais denominados de Menino do te que auxilie na compreensão daquele riquíssimo universo religioso; assim,
Rancho e Corridas do Umbu; o último dividido em três etapas: Flechada do através de documentos visuais conseguimos apresentar a riqueza sociocul-
Umbu, Puxada do Cipó, realizados em um mesmo dia, e a Festa ou Queima do tural e paisagística do povo indígena Jiripankó. Segundo Peixoto, “As foto-
Cansanção, desenvolvido em quatro fins de semana. Através desses eventos grafias, como registro visual, trazem consigo certo grau de interpretação do
ritualísticos, os Jiripankó se relacionam com seus seres Encantados³, que fato representado, pois são recortes dessa realidade e permitem, ao espec-
têm sua força transfigurada e materializada para a roupa ou farda do Praiá⁴. tador, múltiplas idas e retornos temporais […]” (PEIXOTO, 2013, p. 19).

Os rituais Jiripankó também estão associados à continuidade da Tradição⁵, Trabalhamos com a perspectiva das fotografias como fontes de pesquisa e
através da inserção de crianças e adolescentes nos eventos, tendo os anci- de conhecimento, procuramos pensar que os rituais, seus espaços, perso-
ãos e/ou os adultos a missão de compartilhar memórias, aprendizagens e nagens e paisagens são heranças atemporais, e as fotos são transmissoras
valores morais, além de discutirem a importância de alguns espaços, como e guardiãs das suas particularidades, intencionalidades, potencialidade e
as serras. Nesse ambiente, constroem-se sociabilidades e transmissões de multiplicidades estéticas (MENDONÇA, 2000).

Ao lidarmos com essa fonte de pesquisa procuramos, inicialmente, reconhe-


3 - De acordo com os Jiripankó, são indígenas que não passaram pela experiência da morte, se encantando vivos e como tal são cultuados em
diversos espaços pelo povo (PEIXOTO, 2018; AMORIM, 2017).
cer suas possibilidades e limites para o propósito do estudo, verificando as
narrativas que poderiam ser desenvolvidas e sistematizadas, os fatos silen-
4 - Indumentária confeccionada artesanalmente com fibra de caroá, representa a materialização dos Encantados na aldeia (PEIXOTO, 2018;
AMORIM, 2017). ciados ou invisibilizados e as cargas de sentimento, crença, respeito e afe-

5 - Refere-se ao conjunto de práticas religiosas e culturais, permeadas por segredos e interdições.


to construídos nos rituais, que se tornam impossíveis de serem capturados
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pela lente da câmara. Com isso, inferimos que as fotografias provocam com-
preensões, formas e ideias diferentes, dependendo do lugar sociocultural de
quem as observa. As fotografias utilizadas neste trabalho oferecem ao leitor
algo para pensar “[…] um pedaço do real para roer, uma faísca do imaginário
para sonhar” (SAMAIN, 2012, p. 22) e, ambicionam suscitar um passeio pela
cultura e espaços ritualísticos dos indígenas Jiripankó..

Referências

AMORIM, Siloé Soares de. Resistência e ressurgência indígena no Alto Sertão alagoano. Maceió: IPHAN/AL, 2017.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Edições Vértice, 1990.

MENDONÇA, João Martinho de. Os movimentos da imagem da etnografia à reflexão antropológica: experimentos a partir do acervo fotográfico do
professor Roberto Cardoso de Oliveira. 2000. Dissertação (Mestrado em Multimeios) — Instituto de Artes — Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 2000.

PEIXOTO, José Adelson Lopes. Minha identidade é meu costume: religião e pertencimento entre os indígenas Jiripankó — Alagoas. 2018. Tese
(Doutorado em Ciência da Religião) Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2018.

PEIXOTO, José Adelson Lopes. Memórias e imagens em confronto: Os Xucuru-Kariri nos acervos de Luiz Torres e Lenoir Tibiriçá. 2013. Disserta-
ção (Mestrado em Antropologia) — Centro de Ciências Humanas, Letras e Arte, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2013.

SAMAIN, Etienne. As imagens não são bolas de sinuca. Como pensam as imagens. In: SAMAIN, Etienne. (org.). Como pensam as imagens. São
Paulo. Editora da Unicamp, 2012. Cap. 1, p. 21.
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Daniel Meirinho ¹
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A performance ritualística no
Toré Pankará — Fotoetnografia
do encantamento
Resumo: Este trabalho visa apresentar uma fotoetonografia da relação
performática do Toré do povo Pankará, no Sertão de Pernambuco, com foco nos
atravessamentos entre identidade, cultura e religião. A prática ritual envolve
a composição de símbolos e movimentações corporais que transcendem a
materialidade dos objetos e personagens envolvidos e expande a compreensão
entre espiritualidade, corpo e espaço que passam a ocupar no terreiro sagrado.

Palavras chave: Fotoetnografia; Toré, Performance, Ritual, Pankará

The ritualistic performance of the


Pankará Toré — Photography of the enchantment

Abstract: This work aims to present a photoetonography of the performatic relations of the
Toré of the Pankará people, in the hinterland of Pernambuco, focusing on the crossings
between identity, culture and religion. The ritual practice involves the composition of symbols
and body movements that transcend the materiality of the objects and characters involved
and expands the understanding between spirituality, body and space that they occupy in the
sacred terreiro.

Key words: Photoetnography; Toré, Performance, Ritual, Pankará

1 -Professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e do Programa de Pós-graduação
em Estudos da Mídia (PPGEM — UFRN). É mestre em Comunicação e Artes e doutor em Comunicação e Ciências Sociais Universidade Nova
de Lisboa (UNL). Foi pesquisador do Laboratório de Antropologia Visual do Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais
(CEMRI), da Universidade Aberta de Lisboa (UAb). É fotografo e autor de vários artigos científicos e capítulos de livros sobre pesquisas visuais.
danielmeirinho@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0002-4658-5556
http://lattes.cnpq.br/9921846039591174
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As imagens fotográficas têm vindo a ser inestimáveis aliadas nas pesquisas O trabalho fotoetonográfico busca corresponder a relação sincrética entre cor-
etnográficas, não apenas como documento ou suporte, mas como um aporte po, espiritualidade, identidade e território, a partir do “encantamento” propor-
visual que amplia a compreensão do universo simbólico e a expressão do com- cionado pelo Toré Pankará, principal ícone da indianidade nordestina (GRU-
portamento cultural (ANDRADE, 2002). A subjetividade da imagem, que duran- NEWALD, 2005). O ritual de dança e cânticos religiosos incorporam em um
te muito tempo foi um obstáculo relativista, torna a fotografia na contempora- mesmo altar imagens de santos católicos, de pretos velhos e caboclos em uma
neidade uma linguagem altamente flexível e polissémica que auxilia na análise atmosfera religiosa que revela o sincretismo de elementos entre sistemas de
de como os significados são construídos, incutidos e disseminados, bem como crenças brasileiros. Enquanto o Maracá ³ dá o tom das pisadas, em círculo um
uma potente ferramenta científica e artística (NOVAES, 2008). Concordamos grupo de participantes do ritual ingere a Jurema, bebida elaborada a partir de
com Sontag (1986), quando diz que apesar da presunção de veracidade e au- diversas plantas com componentes psicoativos utilizada em rituais sagrados
toridade conferida à fotografia, “o trabalho do fotógrafo não é uma exceção por alguns povos indígenas do Nordeste. Seu preparo é guardado em segredo
genérica às relações habitualmente equívocas entre arte e verdade” (p. 16). pelos pajés e representa uma personificação espiritual das matas nativas bra-
sileiras.
Pesquisar fotograficamente permite ampliar minha narrativa a partir de uma
linguagem que ultrapassa a função simplista dos blocos de anotações, pos- Os encantados ⁴, entidades sagradas manifestadas do mundo espiritual através
sibilitando disparar nas análises percepções subjetivas e sensíveis. Fotogra- dos toantes ⁵, passam a ocupar os lugares religiosos dos terreiros, em uma se-
far um ritual de Toré do povo Pankará ² revela um momento singular no qual quência de movimentos do corpo em um espaço coletivo de culto (GRUNEWALD,
seus mistérios passam a ser partilhados em um exercício de reconfiguração 2018). As incorporações das entidades da natureza denotam uma complexida-
de autoria com o espectador de forma descritiva e conotativa (NOVAES, 2008). de religiosa afroindígena, cuja linguagem ritual guarda a herança colonialista
católica e as alianças territoriais e simbólicas entre os povos indígenas e as
O povo Pankará habita o sertão pernambucano, em um território originaria- comunidades quilombolas que formam a região Nordeste do Brasil. Traços da
mente localizado na Serra do Arapuá, no município de Carnaubeira da Penha. Umbanda, do Candomblé, do Catolicismo e da Jurema compõem um conjunto
Com aproximadamente cinco mil indígenas (IBGE, 2010), muitos deles residen- possível de rearranjos que possibilitam a incorporação de novos elementos e a
tes nas 58 aldeias, a etnia foi reconhecida apenas na década de 40 e as pri- formação de uma “colagem ritualística” com características sincréticas muito
meiras demarcações de terras em meados de 2003 (SILVA, SOUZA e RUFINO, marcantes.
2018). A aldeia Serrote dos Campos é constituída por um grupo de familiares
que desceram a serra e migraram até as margens do Rio São Francisco. Desde O Toré, realizado em outubro de 2019 na aldeia Serrote dos Campos, se revela a
então lutam para a sua regularização fundiária junto à Fundação Nacional do intersecção de uma coletividade representada através da performance de difu-
Índio (FUNAI), sendo esse processo impossibilitado pela proposta de imple- são ritualística simbólica, identitária, ao mesmo tempo que um espaço de ex-
mentação de duas usinas nucleares do Plano Nacional de Energia (PNE) para pressão política de resistência e de resgate de ancestralidade do povo Pankará.
serem construídas até 2030 dentro da reserva Pankará. Pernambuco é quarto Sua performance revela o conjunto harmônico de corpos em movimentos con-
estado brasileiro com maior população autodeclarada de indígenas no país, duzidos pelas toadas, ritmos e vibrações sonoras das pisadas em uma conexão
somando 53.280 índios (IBGE, 2010) e apenas uma etnia não está localizada no
3 - Espécie de chocalho feito da cabaça utilizado para demarcar o compasso e o ritmo do ritual do tore.
semiárido sertanejo.
4 - Para Arruti (1995), os encantados são ‘índios que se encantaram’, voluntária ou involuntariamente e por isso nem sempre pode ser confundido
2 - Esta pesquisa realizou-se graças ao consentimento da cacica Lucélia, dos pajés e das demais lideranças Pankará como representantes com o culto aos mortos.
legais do povo para as tomadas de decisão sobre a garantia de direitos. Assim, foi possível fotografar a atividade religiosa do Toré, realizada na
Aldeia Serrote dos Campos, localizada no município de Itacuruba, em Pernambuco. 5 - Cânticos compostos tanto de uma língua ancestral Pankará, como também por vocábulos em português.
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espiritual, ao mesmo tempo lúdica, com os seus ancestrais. O espaço do terrei-
ro tem um papel aglutinador, em que o indivíduo Pankará é reconhecido a ter
direitos a uma cobertura, sendo ela espiritual, comunitária e territorial.

Do lado de fora do barracão uma fogueira inicia o ritual que vai iluminar o altar
num canto do chão do terreiro em noite de lua cheia. Ao som dos maracás os
encantados eram evocados através dos toantes e incorporados nos participan-
tes médiuns em uma longa performance do ritual. Essa observação foi retrata-
da nas imagens do ensaio fotográfico do Toré Pankará, através da sua compre-
ensão performática ritualista marcadores que indicam, afirmam e delimitam a
presença cultural e espiritual na constituição da indianidade nordestina (AR-
RUTI, 1995). A afirmação contemporânea da etnicidade Pankará funda-se ou
justifica-se, em termos culturais e religiosos, a partir da relação ritualística
com a prática do Toré e suas ambivalências em um corpo que performa um
conjunto de crenças e resistências.

Referências

ANDRADE, R. Fotografia e antropologia: olhares fora-dentro. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.

ARRUTI, J. M. Morte e Vida no Nordeste Indígena: a emergência étnica como fenômeno histórico regional. Revista Estudos Históricos, v. 8, n. 15,
p. 57–94, 1995.

GRUNEWALD, R. A. Toré: regime encantado do índio do Nordeste. Recife: Massangana, 2005.

GRUNEWALD, Rodrigo de Azeredo. Nas Trilhas da Jurema. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 38, n. 1, p. 110–135, 2018.

NOVAES, S. C.. “Corpo, Imagem e Memória”. In: MAMMI, Lorenzo e SCHWARCZ, Lilia. 8 X Fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
p. 113- 131.

SILVA, J., SOUZA, E., RUFINO, M. O ritual do toré como organizador prévio para o conceito de círculo. Zetetike, v. 26, n. 1, p. 75–93, 2018.

SONTAG, S. Ensaios sobre Fotografia. Lisboa: Dom Quixote, 1986.


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Conclusão
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Em resumo, um elemento vinculante entre todos os trabalhos são as articulações
criativas entre território, corpo e religião. Ao território expomos uma diversidade de
ambiências que constituem paisagens religiosas que, seja no urbano, no rural, seja
em suas interseções, no privado e público, dizem muito sobre as práticas que nele
ocorrem. No que se refere aos corpos aqui expostos percebemos uma multiplicida-
de de formas estéticas e performáticas de ser e estar no mundo, seja das pessoas e
grupos que dão um consentimento ético para serem fotografadas em suas práticas
religiosas, seja pela corporeidade da própria fotógrafa e fotógrafo que “entra” em um
campo de pesquisa acompanhado por um instrumento técnico que produz imagens.
Por fim, no que diz respeito a religião, em relação esse território e esse corpo, con-
tamos histórias com imagens de diversas matrizes religiosas que, na sua pluralidade
de inspirações e formas de vivenciar o sagrado, se fizeram aqui presente através dos
olhares de pesquisa das autoras e autores.

Percebemos que o fazer etnográfico realizado no campo da religião pode ser impor-
tante exemplo do potencial de utilização dos recursos fotográficos, bem como dos
seus limites. Até onde, como antropólogas e antropólogos, podemos produzir ima-
gens do campo religioso? As políticas da produção de imagem no campo religioso
nos trazem mais atentamente uma necessidade de uma descrição dos processos de
consentimento e restituição. Mesmo que tal imperativo não se restrinja somente ao
campo religioso, e sim a toda boa etnografia, percebemos nos ensaios aqui expostos
uma preocupação significativa relacionadas a estética e suas derivações éticas.

Por fim, seguindo a metáfora da cruz e da encruzilhada aqui, podemos apontar para
as controvérsias entre o texto e a fotografia e seus impetuosos atravessamentos. Nes-
se cruzamento de palavras e imagens, letras e JPGs, há um duelo de potências narra-
tivas, mas também engajamentos e composições. Se o arcabouço teórico-prático da
Antropologia Visual tem como prerrogativa um mantra anti representativo, nos quais
imagens têm sua autonomia potencializada, sem passar por uma relação funcional-
-utilitarista de descrição/ilustração, o saber fazer da etnografia visual, mesmo crí-
tico, não execrou a produção textual. A linguagem escrita foi, é e continuará sendo,
dentro de uma diversidade de modelos possíveis e reinventados, parte importante e
constitutiva de pesquisas com imagem.
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