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Os movimentos sociais € a emergéncia de uma nova noc¢ao de cidadania EVELINA DAGNINO A expressio cidadania esta hoje por toda parte, apropriada por todo mundo, evidentemente com sentidos e intengGes diferentes. Se isso € po- sitivo, num certo sentido, porque indica que a expresso ganhou espaco na sociedade, por outro lado, face a velocidade e voracidade das varias apropriacées dessa nocao, nos coloca a necessidade de precisar € delimi tar o seu significado: o que entendemos por cidadania, o que queremos entender por isso. A minha apresentacio sera uma tentativa nessa dire- ¢io, um esforco de marcar o terreno, de indicar alguns parametros do campo teérico ¢ politico onde essa nogéo emerge, especialmente a partir da década de 1980,/Nesse esforco — preliminar, como vocés vero ~ vou procurar enfatizar, de um lado, 0 que acho que € o seu significado origi nal (falo da sua origem contemporanea); de outro lado, aquilo que con- sidero seja inovador, aquilo que pode justificar o falar-se hoje de uma nova cidadania. Acho que é possivel marcar, desde logo, esses dois senti- dos da cidadania destacando o seu carter de estratégia politica, 0 fato de que ela expressa € responde hoje a um conjunto de interesses, desejos e aspiracdes de uma parte sem diivida significativa da sociedade, mas que certamente nio se confunde com toda sociedade. Nesse sentido, evidente- mente as apropriagdes e a crescente banalizacio desse termo néio s6 abrigam projetos diferentes no interior da sociedade, mas também certamente tenta tivas de esvaziamento do seu sentido original ¢ inovador. Ha uma disputa his t6rica pela fixago do scu significativo e, portanto, de seus limites. 104 UMANOVANOGAO DE cIDANANIA Acho que ha duas dimensdes que presidem a emergéncia dessa nova nocdo de cidadania e que devem ser lembradas para marcar o seu terreno proprio. Em primeiro lugar, o fato de que ela deriva e portanto esta intrinsecamente ligada A experiéncia concreta dos movimentos so- ciais, tanto os de tipo urbano ~ € aqui é interessante anotar como cida- dania se entrelaca com 0 acesso 3 cidade ~ quanto os movimentos de mulheres, negros, homossexuais, ecolégicos etc. Na organizacao desses movimentos sociais, a luta por direitos ~ tanto o direito a igualdade como fi o direito a diferenca - constituiu a base fundamental para a emergéncia de uma nova nocio de cidadania. Em segundo lugar, o fato de que, a essa experiéncia concreta, se agregou cumulativamente uma énfase mais ampla na construcio da de- mocracia, porém, mais do que isso, na sua extensao e no seu aprofunda- mento. Nesse sentido, a nova nocio de cidadania expressa 0 novo es tuto tedrico ¢ politico que assumiu a questio da democracia em todo o mundo, especialmente a partir da crise do socialismo real. 2 Como conseqiiéncia dessas duas dimensées, eu destacaria um ter- af ceiro elemento que considero fundamental nessa nogao de cidadania: 0 fato de que ela organiza uma estratégia de construcio democratica, de ce transformacao social, que afirma um nexo constitutivo entre as dimensdes da cultura e da politica. Incorporando caracteristicas da sociedade con- e tempordnea, como o papel das subjetividades, a emergéncia de sujeitos = sociais de novo tipo e de direitos de novo tipo, a ampliacao do espaco da politica, essa € uma estratégia que reconhece e enfatiza o carater intrin- r co € constitutive da transformacio cultural para a construcio demo- hb cratica. Nesse sentido, a construgao da cidadania aponta para a constru- q io e difusio de uma cultura democritica. A questio da cultura democratica assume um cardter crucial no Brasil e na América Latina como um todo. Esta é uma sociedade na qual a desigualdade econdmica, a miséria, a foe sio os aspectos mais visi- veis de um ordenamento social presidido pela organizacao hierarquica ¢ desigual do conjunio das relagdes sociais: 0 que podemos chamar de auto- ritarismo social. Profundamente enraizado na cultura brasileira ¢ baseado predominantemente em critérios de classe, raca género, esse autorita- rismo social se expressa num sistema de classificagGes que estabelece di- ferentes categorias de pessoas, dispostas nos seus respectivos lugares na sociedade. Essa nocao de lugares sociais constitui um e6digo estrito, que pervade a casa ¢ a rua, a sociedade e 0 Estado. £ visivel no nosso cotidia no até fisicamente: é o clevador de servigo, a cozinha que é o lugar de muiher, cada macaco no seu galho etc. etc. Esse autoritarismo social EVELINADAGNINO 105, engendra formas de sociabilidade e uma cultura autoritéria de exchusio que subjaz ao conjunto das praticas sociais e reproduz a desigualdade nas relag6es sociais em todos os seus niveis. Nesse sentido, sua eliminacao constitui um desafio fundamental para a efetiva democratizagao da so- ciedade. A consideracao dessa dimensao implica desde logo uma redefi- nico daquilo que é normalmente visto como o terreno da politica e das relagdes de poder a serem transformadas.' E, fundamentalmente, signi- fica uma amplia¢ao e aprofundamento da concepgao de democrac modo a inchuir 0 conjunto das praticas sociais ¢ culturais, uma concep- cao de democracia que transcende o nivel institucional formal ¢ se de- bruga sobre 0 conjunto das relacdes sociais permeadas pelo autoritarismo social € no apenas pela exclusio politica no sentido estrito. Nossa refe- réncia aqui, portanto, é,mais do que um regime politico democratico, uma sociedade democratica.* £ um pouco constrangedor e desconfortavel falar disso atualmente, mum contexto onde, com o agravamento das desigualdades econ6micas, a fome, a miséria, o autoritarismo social se transformou em apartheid so- Gial, em violencia, em genocidio. No entanto, talvez seja exatamente mais importante ainda, num momento em que a gravidade da crise eco- némica acaba determinando © que considero um certo “reducionismo econémico” na anilise da questio da democracia, enfatizar essa dimen- sto cultural da cidadania. Mesmo porque, de outro lado, me parece evi- dente 0 vinculo entre esse autoritarismo social enquanto matriz histérica de ordenamento da nossa sociedade e o quadro de miséria a que chegamos hoje, sem falar da privatizacio desvairada do Estado ¢ dos recursos pitblicos a que assistimos hoje como componente da crise politica que vivemos. Nesse sentido, eu gostaria de mencionar uma pesquisa sobre Cultu- ra Democratica e Cidadania realizada em junho de 1993 em Campinas, Sio Paulo, cujos resultados ainda esto sendo analisados. Foram realiza- das 51 entrevistas, e aplicado um questionério, com pessoas com algum tipo de experiéncia associativa, distribuidas em seis setores: sindicatos de tabalhadores, sindicatos de classes médias, movimentos sociais de tipo urbano, movimentos sociais de cardter mais amplo (de mulheres, de ne- gros ¢ ecol6gicos), associacées de empresirios ¢ vereadores. Estivamos 1. Ver Emest Laclau. “New Social Movements and the Plurality ofthe Social”, e David Slater. ‘Social Movements and a Recasting of the Political", in New Social movements and the State in Latin America, org, por David Slater, Amsterda, Cedla, 1985, 2. Esforcos recentes de reconceitualizagio da nocio de democracia expressam preacupages seme- Thantes ¢ evidenciam o novo estatuto teérico e politica que ela tem assumido nos tiltimos anos em. todo o mundo. Ver, por exemplo. Dimensions of Radical Democragy, org. por Chantal Moutfe, Lon- Ares, Verso, 1992; Francisco Weffort, Qual democraciat, Sao Paulo, Companhia das Letras, 1992. 105 UMANOVANOGAO DE CIDADANIA interessados em identificar opinides, valores ¢ concepcées com relacao democracia, a idéia de direitos ¢ cidadania, referidas nao s6 a sociedade brasileira mas também ao funcionamento interno das associagées, sindi- catos € movimentos em que participavam. A minha expectativa era de que a desigualdade social e econémica fosse macicamente privilegiada nas res- postas, dado inclusive o carater reivindicatério que marca a atividade po- litica de grande parte dos entrevistados. Havia uma pergunta que dizia: Na sua opinio, o que é mais importante para se dizer que um pais € democratico? E em segundo lugar? — Que existam varios partidos politicos — Que todos tenham alimentacdo e moradia — Que brancos, negros, homens, mulheres, pobres ¢ ricos, todos se- jam tratados igualmente — Que as pessoas possam participar de sindicatos ¢ associagdes — Que se possa criticar e protestar Para minha surpresa, 60,8% dos entrevistados apontaram o trata mento igual para brancos, negros, homens, mulheres, ricos e pobres em primeiro lugar. A distribui¢io do resultado nos varios setores também é significativa: ‘Movimentes socials de carter mais amplo 70,0% Movimentos socials de tipo urbano Sincates de classe mésia 625% Sincates de trabahadores| 600% Empresiios 57.1% Vereadores 428% O que esses resultados indicam é que a existéncia do autoritarismo social e da hierarquizagao das relagdes sociais é percebida, mais do que a desigualdade econémica ou a inexisténcia de liberdade de expressio, de organizagio sindical e partidaria, como um sério obstaculo & construgao democritica. Essa percepcio parece ser mais agueada entre os movimentos sociais, a cuja experiéncia se vincula a nova nocao de cidadania. Mesmo entre os movimentos sociais urbanos, certamente aqui o setor mais penaliza- do pela desigualdade econémica, essa dimensio é a mais enfatizada. Registrados esses trés elementos inter-relacionados que pavimen- tam o terreno da nogao de cidadania ~ sua vinculacao a experiéncia dos 3. Paraa nogio de cidadania como estratégia politica, ver Antie Wiener, “Citizenship New Dynamics of an Old C tional Congress, da Latin Americ EVELINADAGNINO 107 movimentos sociais, & construcio democritica e seu aprofundamento, € © nexo constitutivo entre, cultura e politica que, do meu ponto de vista, caracteriza essa nogao ~/eu gostaria de retomar agora um ponto funda- mental que mencionei no inicio, que € a idéia de cidadania enquanto estratégia politica,’ Afirmar a cidadania como estratégia significa enfatizar © seu carater de construcao hist6rica, definida portanto por interesses concretos € praticas concretas de luta e pela sua continua transforma- 40. Significa dizer que nao ha uma esséncia tinica imanente ao conce- to de cidadania, que 0 seu contetido e seu significado nao sio univer- sais, nao esto definidos e delimitados previamente, mas respondem & dinamica dos conflitos reais, tais como vividos pela sociedade num de- terminado momento histérico. Esse contetido e significado, portanto, serao sempre definidos pela huta politica,/ Uma das conseqiténcias dessa perspectiva é a necessidade de distin- guir a nova cidadania dos anos 90 da visio liberal que, tendo gerado esse termo nos fins do século XVIII como uma resposta do Estado as rei vindicagées da sociedade, acabou por essencializar a nogao de cidada- nia, Essa “esséncia”, de cunho liberal, continua vigente até hoje, latando para permanecer como tal e certamente desempenhando fungoes bas. tante diferentes daquelas que caracterizaram a sua origem. Essa distincao, que € ao mesmo tempo politica e tedrica, na verda- de, € 0 que torna possivel falar de sentido inovador e de uma nova cida- dania. Por outro lado, como reflexio, essa distincao ainda nao avancou suficientemente, 0 que cu acho que explica varias das criticas que a nova, cidadania enfrenta De maneira muito preliminar, acho que € possivel indicar alguns itens que apontam para essa distingao. Para além de uma semelhanca de vocabulario que expressa evidentemente referéncias comuns, as mais Obvias se referindo a prépria questio da democracia e A nogio de direi- tos, centrais em ambas as concepcoes, € preciso examinar em que medi- da as diferencas politicas que emergem também de um contexto histori co diferente, como acabei de mencionar, se expressam também como diferencas conceituais. Esses itens esto, € Sbvio, claramente vinculados com 0 que foi dito até aqui. 1. Um primeiro item se refere 4 prépria nogao de direitos. Conside- ro que a nova cidadania trabalha com uma redefinigao da idéia de direi- tos, cujo ponto de partida € a concepgao de um direito a ter direitos. Essa oncept. A Comparative Perspective", mimeo, trabalho apresentado no XVII Interna. Studies Association, Los Angeles, California, 1992, 108 UMANOVA NOGA concepeao nao se limita portanto a conquistas legais ou ao acesso a di reitos previamente definidos, ou 4 implementacao efetiva de direitos abstratos € formais, ¢ inclui fortemente a inven¢io/criagio de novos direitos, que emergem de lutas especificas e da sua pritica concreta. A disputa hist6rica é aqui também pela fixagao do significado de direito € pela afirmacio de algo enquanto um direito. O direito 3 autonomia so- bre o seu proprio corpo, o direito 4 protecio ambiental e o direito a moradia sio exemplos ~ propositadamente bastante diferentes ~ dessa criagio de novos direitos.' Além disso, acho que € possivel afirmar que essa redefinicao contempla nao s6 o direito a igualdade, mas também 0 direito a diferenga, uma questo polémica a qual vou voltar. 2. Um segundo ponto, que retoma o direito a ter direitos, é que a nova cidadania, ao contrério da concepcio liberal, nao se vincula a uma estratégia das classes dominantes do Estado para a incorporacio polit ca progressiva dos setores excluidos, com vistas a uma maior integracio social, ou como condicao juridica e politica indispensavel 3 instalacao do capitalismo. A nova cidadania requer (e até é pensada como sendo esse proceso) constituicao de sujeitos sociais ativos, definindo o que eles consideram ser os seus direitos e lutando pelo seu reconhecimento. Nesse sentido, ela é uma estratégia dos nio-cidadios, dos excluidos, uma cidadania “de baixo para cima”. 3. A énfase nesse proceso de constitui¢ao de sujeitos, no “tornar-se cidadio”, na difusio de uma “cultura de direitos" retoma a questio da cultura democratica que mencionei antes e mostra um terceiro ponto de diferenca que é 0 alargamento do Ambito da nova cidadania, cujo sig- nificado e importancia estao longe de se esgotar no seu resultado en- quanto aquisicio formaliegal de um conjunto de direitos. Ela se consti- tui também enquanto uma proposta de sociabilidade, Novas formas de sociabilidade, um desenho mais igualitério das relagdes sociais em todos (08 seus niveis, € nao apenas a incorporacio ao sistema politico no seu senti- do estrito. Esse alargamento do ambito da cidadania no Brasil de hoje pode também ser pensado em termos de uma simultaneidade da conquista dos direitos civis, politicos e sociais, a que se refere Marshall, uma situacao bastante distinta da que o proprio Marshall considera tenha sido aquela dos paises avancados, onde essas conquistas se deram em momentos distinios 4, Por exemplo, juntamente com os direitos tradicionalmente assegurados res, foram incorporados 4 Lei Orginica do Municipio de Porto Alegre em 1989, 0 diteito ao ‘meio ambiente equilibrado’ e o direito a habilitagio. Na Constituicio Federal de 1988, diferentemente, a {questio da habitacao nio foi reconhecida como direito, a0 lado de outros como educagio etc., r- cebendo outro tipo de tratamento no texto constitucional. legislagdes anterio- INADAGNINO 109 4, Essa ampliacao implica, em relaco com a concepgio liberal, que a nova c tem que transcender 0 foco privilegiado da relacio com 0 Estado, ou entre 0 Estado e 0 individuo, para incluir fortemente a relagao com a sociedade civil. O processo de construcio da cidadania enquanto afirmacao € reconhecimento de direitos é, especialmente na sociedade brasileira, um processo de transformacio das praticas sociais enraizadas na sociedade como.um todo. Um processo de aprendizado social, de construcao de novas formas de relacao, que inclui de um lado, evidentemente, a constituicao de cidadaos enquanto sujeitos sociais ati- vos, mas também, de outro lado, para a sociedade como um todo, um aprendizado de convivéncia com esses cidados emergentes que recu- sam permanecer nos lugares que foram definidos socialmente e cultu- ralmente para eles. Isso supée uma “reforma intelectual ¢ moral”, para usar um termo gramsciano. Parece-me que af est exatamente a radicali- dade da cidadania enquanto estratégia politica. Supor que 0 reconheci- mento formal de direitos pelo Estado encerra a luta pela cidadania um equivoco que subestima tanto 0 espaco da sociedade civil como are- na politica, como o enraizamento do autoritarismo social. 5. Um quinto ponto seria a idéia de que a nova cidadania transcen- de uma referéncia central do conceito liberal que € a reivindicagio de acesso, inclusio, membership, “pertencimento” (belonging) ao sistema poli- tico na medida em que o que esta de fato em jogo € 0 direito de participar efetivamente da propria definicao desse sistema, o direito de definir aquilo no qual queremos ser incluidos, a inven¢io de uma nova sociedade. Estou pensando aqui, de um lado, no fato de que a conquista dos direitos de cidadania, tal como definidos por aqueles que hoje no Brasil estio ex- cluidos dela, implicara, desde logo, modificacées radicais na nossa socie- dade e na estrutura das relacdes de poder que a caracterizam. Mas, por outro lado, penso também, e em termos mais concretos, em praticas po- Iiticas recentes, como por exemplo as que tém surgido em algumas cida- des, administradas por governos municipais das Frentes Populares (26 prefeituras entre 1988 e 1992), onde os setores populares € suas organi- zacdes abriram espago para uma participago efetiva na gestio das politicas publicas. Estou me referindo aqui a experiéncias como a dos Conselhos Populares de Porto Alegre, especialmente o do Orgamento Participati- vo, talvez a mais bem-sucedida delas. O Férum do Orcamento Participa- tivo € um processo que se iniciou em 1989 na gestio de Olivio Dutra e que tem se ampliado com a nova gestio de Tarso Genro, chegando a envolver, em 1983, dez mil pessoas nas “rodadas” de discussao realizadas até o més de jutho. Essas rodadas inchiem reunides em 16 regides da ci 10 UMANOVA NOGAO DE CIDADANIA dade que, nos seus Gonselhos Populares e Plendrias Regionais, decidem as prioridades de investimento da Prefeitura, que sio entio encaminha- das para o Forum, com representantes eleitos (1 para cada 10 presentes nas assembléias ou 1 para cada 20 presentes nas reunides preparatérias nos bairros: em 1993 foram eleitos 700 delegados). Além disso, esses de- legados se organizam em comissdes que acompanham 0 trabalho das empreiteiras contratadas pela Prefeitura, fiscalizando prazos, qualidade e adequacao das obras realizadas. Porto Alegre é um exemplo entre muitos. Ha um pipocar de micro- experiéncias que nao pode ser minimizado porque deixa entrever as possibi- Tidades de transformacées importantes como resultados da construgio da ci dadania, Acho também que essas experiéncias apontam uma nova fase dos proprios movimentos sociais, representada pelo seu esforco de adequacio a institucionalidade democratica, que revela uma alteracao qualitativa nas suas praticas, Esse “salto de qualidade” interpela diretamente, embora nao invali- de seu sentido, algumas observagdes ja classicas sobre o carter dos movimen- tos sociais, por exemplo, a predominancia de interesses de tipo corporativo, que 0s fariam competir frente ao Estado pelo seu atendimento, uma relacao meramente clientelista com o Estado ou com quem pudesse atender esses interesses, a idéia dos movimentos contra o Estado ete Ao contrario do que possa parecer, nao me parece haver nenhuma contradicao em enfatizar essas experiéncias de interven¢ao popular no Estado, logo depois de ter mencionado a importancia da sociedade civil ¢ da transformagao cultural como espacos fundamentais de luta politica para a construcao da cidadania. O que essas experiéncias apontam é exatamente que essa redefinicio nao € apenas dos modos de tomada de decisdes no interior do Estado como também dos modos como se dao as relacdes Estado-sociedade. Além disso, no parece haver diivida quanto ao fato de que clas expressam — ¢ contribuem para reforcar — a existéncia de sujeitos-cidadios e de uma cultura de direitos que inclui o direito de ser co-participe da gestao da cidade. As dificuldades comumente apon- tadas para que os setores populares venham efetivamente a desempe- nhar esse papel, dificuldades que sao reais e extremamente complexas, como as assimetrias de informagio, de uso da linguagem, de saber técni- co, nao esto servindo de pretexto para que se descarte essa possibilida- de, mas estio sendo enfrentadas na pratica, Mais ainda, eu diria que esse tipo de proceso contribui para a cria- ao de um espaco publico onde os interesses comuns ¢ os particulares, as especificidades ¢ diferencas podem ser discutidos, como tem ocorri- do, por exemplo, tanto no ambito dos Conselhos Populares dos bairros, EVELINA DAGNINO 11 como na discussio mais ampla no Férum do Orgamento Participative. Um espaco piiblico como uma cena na qual 0 conflito é visto como “ne- cessirio, irredutivel e legitimo”, onde “o proprio direito é sujeito a uma constante reinterpretacao, enquanto debate sempre reaberto sobre o justo e 0 injusto, o legitimo ¢ o ilegitimo”.’ Gosto de contar a historinha ~ real ~ sobre o bispo de Porto Alegre, que trés anos atrés procurou o entio prefeito Olivio Dutra no seu gabinete para apresentar a proposta de construcao de um novo estacionamento para um santuario no bairro da Gloria. Ele foi gentilmente remetido ao Conselho Popular‘do bairro, onde Sua Eminéncia teve que responder a perguntas sobre por que a igreja, com tantos figis no bairro sem ter onde morar, queria usar um terreno daquele tamanho para estacionamento. Ser sempre possivel argumentar, de novo, que esse tipo de espaco pablico é instituido pelo Estado com intengdes autolegitimadoras, como instrumento de cooptacio etc. Gostaria de antecipar dois alertas a essa interpretacio, que nao é certamente descabida mas corre 0 risco de simplificar excessivamente a situacao real. O primeiro vem por via em- pirica: no caso especifico de Porto Alegre, a pesquisa tem ressaltado que 0s movimentos populares urbanos de Porto Alegre tém uma longa ¢ s6- lida hist6ria de luta, que inclui nao sé a construcao institucional de asso- ciagdes como a FRACAB e a UAMPA, como um esforco constante de construir estruturas de representacao democraticas e transparentes, que reivindicam hoje a co-gestio dos servicos que significam o atendimento dos direitos sociais.* Além disso, esses movimentos tém tido historica- mente uma vinculacio partidaria relativamente diversificada, com uma participacdo importante do PDT, em cuja gestio na Prefeitura, alias, se niciaram as discussdes sobre a criacao dos Conselhos Populares, além, evidentemente, do PT. Essas caracteristicas dificultam uma anélise sim- plista de pura instrumentalizacao pelo Estado. O segundo ponto é de cardter te6rico ¢ se liga a idéia de pensar os movimentos sociais como redes, com maior ou menor visibilidade mas sempre com certa perm: néncia, como sujeitos politicos nao 86 coletivos mas miiltiplos, heterogé- neos, que compartilham alguns principios basicos sobre a participacao popular, a cidadania a construgao democritica, e que hoje podem ser 5. A primeira citagio de Claude Lefort, Pensando o politico, Rio de Janeiro, Paz € Terra, 1991, p, 264. A segunda, de Vera da Siva Telle, “Espaco paiblico ¢ espaco privado na constituicio do social: notas sobre o pensamento de Hannah Arendt", Tempo Social, 2(1), 1990, p. 5. 6. Ver Sergio Baicrle, “Um novo principio ético politico: Pritica social e sujeito nos movimentos po- pulares urbanos em Porto Alegre nos anos 80", dissertacZo de Mestrado, Departamento de C Politica, UNICAMP, 1992. lig UMANOVANOGgAO DE vistos como incluindo desde associacdes de moradores até organizacées nao governamentais, setores partidarios e, por que nao, setores do Esta- do, especialmente nos niveis municipal ¢ estadual.’ Esses experimentos de co-gestio dos servigos piiblicos sio evidentemente tanto mais com- plexos quanto ¢scassos s4o 0s recursos piiblicos destinados a novos inves- timentos, demandando o processamento politico das demandas especificas € a sua negociacio no ambito da cidade como um todo, processos que apontam, numa proporgio até microscépica, se quiserem, para um cle- mento fundamental na construcao democratica: a caréncia se generali- zando como interesse comum e se universalizando como direito, 6. Um sexto e iiltimo ponto, que é conseqiténcia dos anteriores, se refere a idéia de que essa nova nogio de cidadania pode constituir um quadro de referéncia complexo e aberto para dar conta da diversidade de questdes emergentes nas sociedades latino-americanas: da igualdade a diferenca, da satide aos meios de comunicagao de massa, do racismo a0 aborto, do meio ambiente 4 moradia. E nesse contexto que eu queria retomar uma questéo dificil que mencionei antes, a de que a nova no- sao de cidadania € capaz de incorporar tanto a nocdo de igualdade como a da diferenca. Acho que um esforco de diferenciacao com rela- 40 A visio liberal, como o que eu apenas consegui esbocar aqui, é abso- lutamente crucial para confrontar as criticas que a nogdo de cidadania tem recebido, especialmente as que vém da teoria feminista. A visio critica da teoria feminista sobre a cidadania, que se estende também 4 nogio de um espaco piblico como espaco de construcio de direitos, pode ser resumida na objecio que coloca as premissas de racionalidade, universalidade e imparcialidade, que presidiriam esas nogées. Estou me referindo aqui especialmente as criticas desenvolvidas por Iris Marion Young, Nancy Fraser e Mary Diew,* Para escapar a esses determinantes, que basicamente nao contemplariam a questao da‘dife- renga, tdo vital ao pensamento feminista, sugere-se, por exemplo, uma 7. A idéia de pensar 05 movimentos sociais como redes foi desenvolvida, entre outros, por Sonia AWarez © Ana Maria Doimo. Ver Sonia Aharez. "Deepening Democracy: Popular Movement Networks. Constitutional Reform and Radical Urban Regimes in Contemporary Brazil’, em Mobilizing the Community: Local Politics im the Era of the Global City, org. por Robert Fischer ¢ Joseph Kling, California, Sage Publications, 1993, ¢ Ana Maria Doimo, “Movimento Popular p70: Formha cao de um campo ético-politico”, tese de Doutoramento, USP, 1993. 8. Ver, por exemplo. Iris Marion Young. “Polity and Group Difference: A Critique of the Ideal of Universal Citizenship”, Ethics, 99 (jan, 1989), e "Imparcialidade e piblico civico: Algumas implica ‘cGes das eriticas feministas da teoria moral ¢ politica’, em 8. Benhabib e D. Cornell, O feminismo como critica da modernidade, Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 1992; Nancy Fraser, “Rethinking the Public Sphere", Social Text, 25/26, 1991; Mary Dietz. “Context is All: Feminisin and Theories of Gitizenship", em Chantal Mouffe. Dimensions of Radical Democracy Londres, Verso, 1992. INADAGNINO 113 “cidadania diferenciada” ¢ um “piiblico heterogéneo”. Nao é a ocasiio . para desenvolver uma andlise mais detida dessas criticas, ¢ eu nem te- : nho competéncia para isso. Mas gostaria de sugerir que 0 que eu tentei - apontar aqui como uma visio historicizada da cidadania como estraté- - gia me parece um quadro de referéncia tedrico ¢ politico onde seria : possivel articular o direito 4 igualdade com o direito a diferenca. En- : quanto estratégia, 0 contetido da cidadania é sempre definido pela luta : politica ¢ é portanto capaz de incorporar dimens6es da subjetividade, - aspiragées ¢ desejos, em suma, interesses ~ no sentido de Ihes da E. P. Thompson quando diz: “Interesse € tudo aquilo que interessa a pes- soas, inclusive 0 que Ihes é mais caro”,? na medida em que esses interes- ses, através da huta politica, consigam se generalizar como interesse cole- tivo e se instituir em direitos. - : : Se eu no ouso empreender aqui a tarefa de uma andlise sistematica : : da teoria feminista sobre a cidadania, e me sentindo obrigada a argu- mentar em defesa dessa possibilidade de articulagio, vou me valer de um ar- tigo de Flavio Pierucci, cujo titulo é “Ciladas da diferenca” e que me aju- dou enormente a organizar as poucas idéias claras que talvez eu tenha sobre o assunto."" O argumento central do texto é que a questo da dife- renca, a aten¢io, a obsessio € a celebracio da diferenga tém sido histori camentee certamente, hoje, 0 neo-racismo europeu é uma evidéncia disso = um clemento fundamental do pensamento e da pritica do conservado- rismo, da direita. Para 0 autor, 0 “efeito perverso por exceléncia do enfoque na diferenca (...) como bandeira de luta dos movimentos de es querda (...) 0 embacamento do foco ou um obscurecimento ainda maio) das diferencas definidoras dos campos adversirios na guerra ideol6gica”; esse enfoque “(...) legitima que a diferenca seja invocada e as distancias alargadas” (p. 14). A isso ele agrega a necessiria elitizagio do que ele chama a opeao diferencialista da esquerda (p. 16), que exigiria um trabalho conceitual mais cuidadoso, refinado e critico, em contraste com a afirmacao enfitica da diferenca utilizada pela direita, que seria “uma constatacao do bom senso”, um fato concreto, uma “verdade imediata ¢ inconteste Como, ao lado disso, Flavio também parece entreabrir uma porta de safda para a cilada da diferenca, ao dizer: “para a esquerda nao pode 9. “oa nogio de que todos os interesses poclem ser classificadlos em objetivos materiais cientifica- mente identifieaveis nao passa do mau halito do utiitarismo", A miséria da teria, Rio de Janeiro, Zabar, 1981, p. 194. 10. Anténio Flavio Pierucci, “Ciladas da diferenca’, Tempo Socal, revista de Sociol Paulo 2(2), 2" semestre 1993, p. 10. Ver também o texto de Pierucci neste volume, toritérias, voto popula 114 UMANOVANOGKO DE GIDADANIA haver escolha entre a igualdade e a diferenga, como a escolha hi e sem- pre houve para a direita. Se € para alguém da esquerda abracar a dife- Tenca, que 0 faca sem abrir mo da igualdade” (p. 16), eu vou tentar ex- plorar um pouco essa brecha. Para mim nao se trata de recusar a diferenga, mas de entender o que ela designa. Em vez de mergulhar na cilada, eu gostaria de reafirmar, como tem sido uma tendéncia importante também no campo da teoria feminista, a existéncia de um vinculo intrinseco entre a igualdade e a di- ferenca. No campo da direita, a diferenca sempre emerge como afirma- do do privilégio e portanto como defesa da desigualdade. No campo da esquerda, no campo da cidadania, a diferenca emerge enquanto reivin- dicacao precisamente na medida em que ela determina desigualdade. A afirmacao da diferenca est4 sempre ligada 4 reivindicacao de que ela possa simplesmente existir como tal, o direito de que ela possa ser vivida sem que isso signifique, sem que tenha como conseqiéncia, o tratamen- to desigual, a discriminacao. Nao fora a desigualdade construida en- quanto discriminacio a diferenca, ela nio existiria como reivindicacio de direito. Concebido nessa perspectiva, me parece que o direito 3 dife- renga, especifica, aprofunda e amplia o direito a igualdade. Ao querer escapar da cilada nao quero recusar ou negar os riscos dessa articulacio. $6 que eles nio me parecem maiores do que os riscos de aceitar a disjuntiva entre igualdade e diferenca. Com relacio ao risco de embagar 0 foco, de obscurecimento das fronteiras, eu diria que todo campo politico relevante é sempre um campo minado, um campo de disputa pela fixacio de significados. Os mecanismos de apropriagio € desapropriagio de significados so parte constitutiva da luta politica Por outro lado, dizer que a diferenca “positiva” (aquela afirmada na de- fesa de um privilégio) seja um dado sensivel imediato € portanto facil mente apreensivel por todo mundo, e que a diferenga “negativa” (que serve de base & discriminacao e 4 desigualdade) nao o seja, requerendo elaboracio teérica complexa, corre o risco de ser mais um viés profissio- nal de pesquisador do conservadorismo popular do que uma avaliagio adequada senio da consciéncia, pelo menos da sensibilidade dos mi- Ihdes de mulheres, negros, nordestinos, homossexuais, velhos, deficien- tes fisicos etc. etc. etc. que sobrevivem ao seu cotidiano nessa nossa cul- tura autoritaria, Uma das razées fundamentais da seducio que a nocio de uma nova cidadania exerce hoje em dia é a possibilidade de que ela traga res- postas aos desafios deixados pelo fracasso tanto de concepcées tedricas como de estratégias politicas que no foram capazes de articular essa EVELINA DAGNINO multiplicidade de dimens6es que, nas sociedades contemporineas, inte- gram hoje a busca de uma vida melhor. Dessa capacidade de articular os miiltiplos campos onde se trava hoje no Brasil a luta pela construcio da democracia € pelo seu aprofundamento, depende o futuro da nova ci- dadania enquanto estratégia politica

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