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marcelina | hic et nunc

© 2010 Faculdade Santa Marcelina – Unidade Perdizes

Coordenação do projeto e edição


Lisette Lagnado
Mirtes Marins de Oliveira

Conselho editorial
Dawn Ades (University of Essex-UK)
Ricardo Basbaum (UERJ, Fasm-SP)
Maria Aparecida Bento (Fasm-SP)
Sheila Geraldo Cabo (UERJ-RJ)
Celso Fernando Favaretto (FE-USP)
Esther Hamburger (ECA-USP)
Shirley Paes Leme (Fasm-SP)
Maria Angélica Melendi (EBA-UFMG)
Christine Mello (Fasm-SP)
Luiz Camillo Osório (Unirio/Puc-RJ)
Beatriz Rauscher (UFU-MG)
Sandra Rey (Instituto de Arte UFRGS)

Pareceristas
Suzana Avelar
Eliana Asche
Ana Letícia Fialho
Claudia Marinho
Marly de Menezes
Paulo Zuben

Revisão ortográfica
Regina Stocklen

Agradecimentos
Benjamin Seroussi (Centro da Cultura Judaica)

Capa e contra-capa
Cristina Ribas

Projeto gráfico
Roberta Guedes

Impressão e acabamento
Expressão & Arte - Editora e Gráfica

Fontes usadas: Minion e Whitney

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(FASM–Perdizes. Biblioteca ‘Ir. Sophia Marchetti’)

MARCELINA. Revista do Mestrado em Artes Visuais da Faculdade Santa Marcelina. - Ano 3, v. 4 (1. sem.
2010). – São Paulo: FASM, 2010.

Semestral
ISSN: 1983-2842

1. Artes Visuais - Periódicos. I. Faculdade Santa Marcelina.

CDU-7(05)

Marcelina é uma publicação da Fasm. As opiniões expressas nos artigos são de inteira responsabilidade de seus
autores. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio, sem a prévia autorização do
autores. Para os critérios de publicação acesse: http://www.fasm.edu.br

m arcelin a | hit et nunc


m arcelina | hi c e t nunc
SUMÁRIO
DOSSIÊ | HIC ET NUNC

4 E dito r ia l

6 Série Walter Benjamin, 2002 | Fernando Bryce

17 O Sujeito e a aura | Tania Rivera

28 Notas sobre narrativa, experiência e pobreza em Walter Benjamin e


suas relações com a contemporaneidade | Luisa Duarte

42 O novo bárbaro, o narrador e o anjo da história | Sybil Safdie Douek

55 CADERNO DE ARTISTA | Cristina Ribas

64 À sombra da teoria crítica | Vinicius Spricigo

73 Íntimo ou público: o lócus da criação artística | Elisa de Souza Martinez

MESTRADO EM REVISTA
90 Banalidades | Mariana Rocha

V SEMINÁRIO DE CURADORIA
99 Conferência dialógica entre Denise Mattar e Lisette Lagnado

112 Ócio e ociosidade | Walter Benjamin


BH 2002, de Cao Guimarães e Rivane Neuenschwander

Marilá Dardot, hic et nunc, 2002. Videoinstalação. Projeção sobre lousa branca de 60x43 cm. 11’ Cor, sem som.
Para cada especialista, há uma proposição dominante na obra de Walter Benjamin.
E D I TO R I A L

Só não há consenso, felizmente, em torno do filósofo berlinense. Foram setenta anos


sem Benjamin, desaparecido no dia 26 de setembro de 1940. Entretanto, uma ironia
o acompanha até hoje: aquele que introduz o termo “aura”, a fim de caracterizar o
estatuto da obra de arte depois de uma série de inovações tecnológicas, parece ter im-
pregnado todos os campos do conhecimento, avançado por sobre as linhas divisórias
das disciplinas, forçando seus leitores e críticos atentos ao desafio de zelar e reinventar
os limites de patrimônio histórico sem render-se à história nostálgica.

Por onde então abordar esse autor, quando todas as homenagens prosperam
de vento em popa; quando a celebração arrisca prestar antes um desserviço à sua co-
munidade de leitores; quando a figura em questão antecipa toda sorte de traição em
nome da interpretação?1

A fim de que novas gerações possam conhecer, e igualmente ultrapassar o


consumo fetichizado de Benjamin, recomenda-se evitar os comentários que homoge-
neizam, aperfeiçoam e dão unidade à sua obra. Ou seja, vale insistir nas ambigüidades
e assumir uma circunscrição provisória (e inesperada) em meio a categorias conso-
lidadas. Mesmo assim, quais eleger dentre tantos temas sedutores: Paris, Baudelaire,
o haschich, a moda, o marxismo, o narrador, Brecht, Kafka, Proust, Angelus Novus...?

Pensar na razão do discurso universitário sequer consegue colocar um final


satisfatório à indecisão. Mesmo optando pelo conceito de “experiência”, ainda resta-
ria reconstituir uma infinitude de trilhas que permanecem em aberto: experiência da
infância, da guerra, da cidade moderna, da revolução russa...? Ou teria sido mais fácil
eleger um “personagem”: o historiador, o crítico literário, o crítico estético, o tradutor,
o poeta, o artista...?

A edição de marcelina | hic et nunc tomou o partido de aumentar as páginas


dedicadas a projetos de artistas, entendendo que são seus leitores mais diretamente impli-
cados, e deixar-lhes a bússola para que comandem a atual excursão. Além de respeitar o
contexto correspondente, a revisitação do labirinto seguiu por estilhaços quiçá imprevis-
tos, considerando implícita a idéia de que a capacidade decortar e ressignificar fragmentos
é procedimento contemporâneo investigativo, dentro e fora da universidade.

Sabendo que a riqueza de artistas de inspiração benjaminiana é extraordiná-


ria, marcelina | hic et nunc tem o grande prazer de expor suas escolhas, sem pretender
encerrar um universo de possibilidades. Nesta ocasião, fazemos eco a ensaístas como
Néstor García Canclini e Beatriz Sarlo, pioneiros em distinguir a especificidade dos
imaginários e promessas urbanas no continente latino-americano.

1 marcelina | hic et nunc agradece as observações da Profª Drª Jeanne Marie Gagnebin, presente aqui por meio de
artigos assinados por ex-orientandas, a nos lembrar cotidianamente que “Benjamin se tornou uma mercadoria que
vende bem demais” e objeto de um “processo de ‘fetichização’ que ele próprio denunciou”.

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Isso posto, a faceta do Benjamin que reflete sobre a construção da história, o do-
cumento, a memória, a cópia, a tradução, surge no método de Fernando Bryce, peruano
radicado em Berlim; junto dele, decorre a contradição: se esses desenhos são reproduções
e originais simultaneamente, não seria tarefa urgente redefinir o hic et nunc?

Em seguida, apresentamos o trabalho de Cristina Ribas, que evoca as técnicas


da fotografia, do fragmento e da montagem, e defende a necessidade de uma certa
distração para entregar-se à embriaguez de uma composição todavia efêmera. Para
isso, voltou a manipular seu arquivo de negativos e imagens de aglomerações humanas
destruídas por bombardeios.

Afinado ao propósito de marcelina, Marilá Dardot comparece com stills da obra


hic et nunc (2002), vídeoinstalação, na qual a artista apresenta suas máquinas capazes de
construir o trabalho: 72 verbos escritos pela mão direita em uma lousa branca e apagados
pela esquerda gravados em looping. O ato voluntário e repetitivo de escrever e apagar, lem-
brar e esquecer o que constrói e destrói, remete a preciosidade que Benjamin atribui tanto
ao texto escrito quanto à conexão intrínseca entre civilização e barbárie.

Quanto ao alfabeto trouvé na série BH de Cao Guimarães e Rivane Neuens-


chwander, é um pequeno ensaio que mostra a “modernidade periférica” de Belo Ho-
rizonte, primeira cidade brasileira moderna planejada – nascida portanto sob o signo
da obsolescência. Pelo olhar desses flâneurs, será curioso observar a ausência do antigo
dilema entre trabalho e preguiça: há um ganho inestimável na disponibilidade para o
ócio e a ociosidade, o que talvez permita o encontro da experiência e da vivência.

Assim, “Ocio e ociosidade” é o título do arquivo m do Das Passagen-Werk2


escolhido pelos editores de marcelina como agente em um processo dialógico com a
obra de Guimarães e Neuenschwander. O Trabalho das Passagens é um conjunto de
citações e comentários manuscritos organizados por Benjamin durante treze anos.
Projeto enciclopédico, cujo método é, segundo o autor, a montagem literária, tendo
como foco a cidade de Paris e a modernidade do século XIX. Em diálogo também es-
tão, portanto, as cidades modernas, suas arquiteturas e apropriações operadas por seus
passantes, principalmente artistas.

A revista agradece as valiosas colaborações de Tania Rivera, Sybil Safdie Dou-


ek, Luisa Duarte, Elisa de Souza Martínez, Vinicius Spricigo, Mariana Rocha e Deni-
se Mattar, que tornaram possível uma edição modesta, porém sincera, no esforço de
compreender por que Benjamin é um ator incontornável hoje. Hic et nunc, no âmbito
curatorial dessa publicação, indica a impossibilidade de rastrear a origem de seu autor
aqui e agora: poluído, apropriado, profano e plural — pós-aurático.

2 A versão brasileira, da qual os editores selecionaram o trecho utilizado, tem o título de Passagens/Walter Benjamin.
Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. A versão brasileira teve
como editores Willi Bolle e editora convidada, Olgária Matos.

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Sér ie Walter B e n jam in , 2 0 02
Fernando Bryce*

A qualidade do desenho de Fernando Bryce não reside na sim-


ples mímese de documentos selecionados (entre centenas de
milhares) para serem reproduzidos. Não se trata de fazer o elo-
gio da “regressão” ao ofício do artesão, que decerto alimentou a
psicologia baseada em estudos fisionômicos: segundo o escritor
Dominic Eichler, os retratos de Bryce evocam a tarefa do tradu-
tor que deve transpor, de uma linguagem para outra, um teor de
verdade, “exumar e reativar” um original. Nesse caso, o artista
foi da fotografia para o desenho. O projeto vem se desdobran-
do na análise da construção da notícia através de recortes na
imprensa mundial desde os anos 1930, com ênfase no lugar da
América Latina no mapa geopolítico. [LL]

* Fernando Bryce nasceu em 1965 em Lima. Atualmente, vive e trabalha entre Lima e
Berlim. Participou da 28ª Bienal de São Paulo (2008). Sobre a Série Walter Benjamin,
consultar: http://www.frieze.com/issue/article/fernando_bryce/

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DOSSIÊ | A AURA DE WALTER BENJAMIN
O sujeito e a au ra
Tania Rivera*

Conta-se à boca pequena um dito de Schuler, segundo o qual todo


conhecimento deve conter um grão de não senso, assim como os
tapetes ou frisas ornamentais da Antiguidade sempre apresentavam
em algum lugar uma ligeira irregularidade em seu desenho.

Dito de outro modo, o decisivo não é a progressão de conhecimento


em conhecimento, mas a rachadura no interior de cada um deles.
Imperceptível marca de autenticidade, que a distingue de toda
mercadoria feita em série, a partir de um modelo.

Walter Benjamin (1933)

Palavras-chave Resumo: O ensaio busca expandir a leitura do conceito benjaminiano


aura; psicanálise; de aura e, trazendo a psicanálise para a discussão, explorar suas
olhar; sujeito; arte conexões com a questão do olhar e do lugar do sujeito na arte
contemporânea. contemporânea.

Key words Abstract: This essay seeks to expand the understanding possibilities
aura; psychoanalysis; of Benjamin’s concept of aura and, in a dialogue with psychoanalysis,
gaze; subject; to explore its connections with the gaze and the subject’s place in
contemporary art. contemporary art.

* Psicanalista, professora do Departamento de Arte da Universidade Federal Fluminense,


professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de
Brasília e do Programa de Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília.
Pesquisadora do CNPq.

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Em Los Velázquez (1993), reproduzido posteriormente no Livro Velázquez (1996),
Waltercio Caldas “apaga” as personagens do grande clássico da história da arte Las
Meninas (1656), apresentando, em pequeno quadro a óleo, apenas a sala do palácio
que abriga a cena da corte. O quadro não tem, é claro, a intenção de fazer-se passar
pelo original – bem maior do que ele, inclusive –, mas se afirma como reprodução
assumida ou, antes, mero lembrete daquela cena que se reconhece de saída, apesar da
estranheza de sua “manipulação”. O que é um quadro, um grande quadro, uma obra-
-prima como Las Meninas? Se não consiste nas personagens e no arranjo cênico entre
elas, residirá ele em uma certa composição de luz? Uma arquitetura?

Para completar, uma placa de vidro semiopaca interpõe-se entre o pequeno


quadro e nosso olhar, tornando-o embaçado, um tanto desfocado. Como se tivéssemos
fechado um pouco os olhos, para ver melhor (ou pior) – ou seja, para ver nele o que
não está ali. Algo se apresenta, se transmite, então, curiosamente, dessa obra-prima,
apesar de toda a limitação em sua reprodução. Ou melhor, algo traz de volta a aura
do grande quadro do pintor espanhol, graças, justamente, ao fato de sua reprodução
assumir-se como limitada e manipulada, além de um pouco borrada.

A aura está fora do quadro.

***

A aura não é simplesmente, em Benjamin, a tradição, a autenticidade assina-


lando em uma obra seu pertencimento histórico. Ela marca “o aqui e agora da obra
de arte, sua existência única, no lugar em que ela se encontra” (Benjamin, 1935/1994,
p. 167). Esse aqui e agora não é mais, é óbvio, aquele do ritual, cujos resquícios ainda
dariam à obra um caráter mágico no qual o valor de existência conta mais do que de
exposição. Ele tampouco é aquele da exposição de Las Meninas no museu do Prado,
em sala adequada à sua grandeza. Esse “aqui e agora” da aura, no momento em que
Benjamin o formula, nos anos 1930, designa um momento preciso e, no entanto, im-
previsível: o do olhar. Este se separa da contemplação prevista institucionalmente,
que dá forma aos museus como lugares de fruição de obras. No campo do olhar, a
encenação mostra-se abertamente e autocritica-se: não se trata mais de quadro, mas
de ganhar o espaço, de tornar-se arquitetura (a arte por excelência, a única que sempre
existiu, como nota o filósofo).

O olhar dissemina-se no mundo, enquanto a contemplação estava confinada


a lugares: a igreja, o museu. No mundo, o olhar é móvel, incerto.

As formulações benjaminianas em torno da aura, como afirma o início do


célebre “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, “põem de lado nu-
merosos conceitos tradicionais – como criatividade e gênio, validade eterna e estilo,
forma e conteúdo” (Benjamin, 1935/1994, p. 166) ­–, que poderiam, segundo ele, ser
utilizados com fins “fascistas”. Os conceitos concebidos pelo filósofo, em contrapon-

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to, “podem ser utilizados para a formulação de exigências revolucionárias na política
artística” (ibid.), porque são dialéticos. Da arte, pode-se então pretender retirar uma
reflexão que vá além dela, além do princípio, para Benjamin, reacionário, da “arte pela
arte”, para atingir elaborações sobre o homem e a sociedade.

Nesse sentido ampliado, o estético é sempre político, e é a aura – em sua crí-


tica, ou na medida em que ela é pensada já em crise, identificada em seu ocaso – que
permite tal articulação fundamental. Mas devemos ir mais devagar, e voltar à própria
definição desse conceito por Benjamin.

Em suma, o que é a aura? É uma figura singular, composta de elementos espa-


ciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja.
Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte,
ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas mon-
tanhas, desse galho. (Ibid., p. 171).

A reprodutibilidade, expandida e bem-acabada graças à invenção da fotogra-


fia e do cinema, põe em declínio a aura como “existência única” e garantia de autenti-
cidade da obra de arte. Isso é fato, e constitui a leitura mais disseminada a respeito da
aura, sublinhando um aspecto fundamental a toda produção artística do século XX,
até os dias atuais. Mas isso não é tudo. A sofisticada dialética benjaminiana aponta
como fundamental à aura, como vemos no trecho que acabo de citar, um caráter de
“aparição”, implicando uma temporalidade própria: à aparição deve-se suceder, por
definição, um desaparecimento. Ou talvez haja um desaparecimento anterior à apari-
ção, e esta seja sempre, mais rigorosamente falando, uma reaparição (apesar de única,
a cada vez). A cadeia de montanhas que se observa em repouso, numa tarde de verão,
já estava, sem dúvida, à nossa vista. Mas é de súbito que ela aparece, em sua qualidade
aurática, ao nosso olhar. O instante em que isso se dá desdobra-se em um passado. Por
mais perto que esteja, a coisa olhada faz-se distante, porque é perdida no momento
mesmo de sua aparição.

É essa a sutil dialética convocada por Waltercio: ele opera sobre uma obra
de “existência única”, aurática no sentido da tradição, para fazer dela uma perda. A
reprodução serve, mais do que ao propósito de re-apresentar a obra, para que ela seja
evocada como perda. Reproduzir é fazer perder e, no entanto, nessa perda – ou um
instante antes dela –, dá-se uma aparição única. Só em perda, algo pode apresentar-se
ao olhar; apenas à distância, uma mera visão pode tornar-se aparição única. Tal é a
temporalidade do olhar: só retroativamente, após a perda, uma vez estabelecida uma
certa distância, acontece o instante aurático.

A referência a uma cadeia de montanhas é, a esse respeito, eloquente: em se


tratando de arte, de representação, essa aura, que respiraríamos na paisagem, está, de
saída, perdida. Mas algo na representação deve ser capaz de “projetar sua sombra sobre
nós”, como o galho de Benjamin. A aura nomeia esse momento em que estamos na re-

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presentação, como em repouso em uma paisagem. Habitar a representação é torná-la
uma apresentação, ou seja, é vivê-la como uma aparição.

O jogo perto/longe da dialética benjaminiana implica, de fato, uma localiza-


ção do sujeito. Ele talvez encontre um modelo no jogo do fort/da, a célebre brincadeira
do netinho de Freud (1920/1976). O menino de dezoito meses jogava seu carretel para
dentro do cortinado onde ele desaparecia (acompanhado da vocalização “oooo”, en-
tendida por seus familiares como fort, algo como “longe”) e, então, puxava o barbante
para si, de modo a saldá-lo com um sonoro “aaaa”: da, aí está. Essa alternância é o mar-
co zero da aquisição da linguagem pela criança e indica, segundo o psicanalista, uma
grande realização cultural efetuada pelo menino: ele substituiria a mãe pelo carretel
e, assim, separar-se-ia dela ao mesmo tempo em que criaria, a partir desse primeiro
objeto, um mundo plural de objetos referidos a ele mesmo – perto ou longe, perdidos
ou achados pelo olhar. A aura parece nomear o ponto de congelamento, a cristalização
desse movimento, dessa alternância, pondo à distância o objeto, por mais perto que
ele esteja. Nesse instante, mais importante do que o carretel – suas propriedades, suas
características – é o fio que o liga à mão do menino. Fora de cena, em geral, ele não é
parte da imagem, do objeto, mas não deixa de ser a condição fundamental para que
algo se ofereça ao olhar.

***

Talvez a aura possa ser aproximada da efêmera beleza de que fala Freud em
seu texto “A transitoriedade”, de 1915. Para o psicanalista, é justamente a transitorieda-
de da beleza, seu caráter passageiro, que aumenta seu valor. “O valor da transitorieda-
de”, diz ele, “é o valor de escassez no tempo”. E prossegue: “a limitação da possibilidade
de uma fruição eleva o valor dessa fruição” (Freud, 1915/1996, p. 317). Fruir a beleza
de uma paisagem, ou das mais elevadas obras da civilização, implica, portanto, um
luto antecipado por elas. Só é belo o que está fadado à destruição, logo posto à distân-
cia de nós, mesmo quando se encontra muito próximo.

Se a técnica de reprodução retira a obra do domínio da tradição, aquele da


“unidade” e da “durabilidade” (para usar os termos de Benjamin [1935/1994, p. 170]),
lançando-a no terreno mais incerto da “transitoriedade” e da “repetibilidade”, seu ca-
ráter de aparição súbita já o indicava, de modo fundamental. A aura coincide, nesse
sentido, com seu declínio. Este não indica exclusivamente que a obra perdeu sua liga-
ção à tradição e à história e, com isso, abriram-se as portas para sua utilização política
como meio de controle das massas (o que o cinema viria realizar como nenhum outro
meio, graças a seu caráter intrinsecamente coletivo e a seu alcance em escala indus-
trial). Mais sutil, porém poderosamente, a reprodutibilidade põe em crise as noções
de gênio, criação, estilo etc., de modo a reconfigurar o próprio campo da produção
artística, pois marca uma transformação radical do campo da mimese. À primeira
vista, a reprodução reforça a representação mimética, à maneira como a fotografia e

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o cinema refletiriam o real. Mas “retirar o objeto de seu invólucro, destruir sua aura,
é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de captar ‘o semelhante
no mundo’ é tão aguda, que graças à reprodução ela consegue captá-lo até no fenô-
meno único” (ibid.). O “original” já não é mais que um “semelhante”, e ali onde tudo
é semelhante, não pode mais se tratar de produzir semelhança. Quando não há mais
distância entre o referente, autêntico, e sua reprodução, é a própria lógica da cópia
que se revira, revelando a quebra do laço entre signo e coisa, e marcando o colapso da
garantia última da representação. A reprodução toma o lugar da mimese e configura
um território de dessemelhança e de distância entre signo e coisa, campo aberto para
operações cruzadas e horizontais, no lugar da verticalidade hierárquica e restrita entre
a representação mimética e seu referente.

Por isso “a arte contemporânea será tanto mais eficaz quanto mais se
orientar em função da reprodutibilidade”, ou seja, “quanto menos colocar em seu
centro a obra original” (ibid., p. 180). A reprodutibilidade não diz respeito ape-
nas à possibilidade de copiar uma obra, mas desestabiliza a própria ideia de um
original a se representar. De fato, a reprodutibilidade técnica é uma operação que
ganha um alcance político, nesse sentido: ela desdobra-se em gesto transformador
da realidade, ao questionar o fundamento mimético da arte. Deixando definitiva-
mente para trás o uso ritual ou mágico dos seus primórdios, ela alcança uma outra
esfera fundamental. Como diz Benjamin, “em vez de fundar-se no ritual, ela passa
a fundar-se em outra práxis: a política”. (Ibid., p. 171-172).

A crítica da aura, e sua transformação em aparição para um olhar implicado


num campo incerto de representação, já era perceptível nos dadaístas que, mesmo
sem fazer uso de técnicas de reprodução, “aniquilavam impiedosamente a aura de suas
criações” (ibid., p. 191), ao fazerem seus poemas fonéticos ou “saladas de palavras”,
ao misturarem em seus quadros ou colagens elementos díspares, usando materiais
pouco nobres como botões ou tíquetes de trem. “De espetáculo atraente para o olhar
e sedutor para o ouvido, a obra convertia-se num tiro”, diz Benjamin sobre tais mani-
festações. Elas não se coadunam mais com a lógica da contemplação, mas com aquela
que o filósofo chama, profundamente influenciado pela teoria freudiana do trauma,
“choque”. O choque pode ser “moral”, nas agressões dos dadaístas, ou “físico”, percep-
tivo, como nas bruscas mudanças de ponto de vista exigidas pelo cinema; o ponto fun-
damental é que ele corresponde às metamorfoses pelas quais passa o homem contem-
porâneo. Ou seja, o choque nomeia a falta de lugar estável para o sujeito, sua condição
errante, a perda do lugar de “senhor em sua própria casa”, como diz Freud. Em vez de
contemplar em repouso a cadeia de montanhas no horizonte, o homem moderno põe-
-se a se exercitar, nos parques de diversão, por exemplo, no que Benjamin chamava “a
arte de ser excêntrico” (Benjamin, 2000a, p. 56).

A aparição súbita segue a lógica do choque, do trauma e é, portanto, como já


notamos, retroativa, só-depois, na temporalidade que é aquela do trauma, para Freud:

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apenas um instante mais tarde ela pode ter acontecido (Benjamin fala, a respeito da fo-
tografia, de um “choque póstumo”). Essa operação temporal revira-se ainda, contudo,
para visar o futuro. Sobre a fotografia, Benjamin já falava de uma centelha de acaso, de
“aqui e agora”, com a qual “a realidade chamuscou a imagem”. O espectador o procura,
esse “lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos,
há muito extintos, e com tanta eloquência que podemos descobri-lo, olhando para
trás” (Benjamin, 1931/1994, p. 94). O “aqui e agora” continua pulsando, há nele uma
promessa de futuro localizada no passado. Algo virá, numa “aura” como aquela que o
vocabulário médico conjuga à epilepsia: discretos sinais anunciando a crise declarada.
E é esse o fulcro do “inconsciente ótico”: algo já aconteceu, deu-se uma aparição e, no
entanto, ela vai se reproduzir, deve se repetir, portanto, nos mantém diante desse obje-
to, dessa imagem, em uma suspensão tão angustiosa quanto gozosa.

***

Através é uma instalação de Cildo Meireles que tem quinze metros de lado e,
em seu centro, uma grande bola de papel celofane de cerca de três metros de diâmetro.
O artista localiza a origem da concepção deste trabalho no fato de um dia, em seu ate-
liê, ter chamado sua atenção um ruído vindo da cesta de lixo. Era um papel de presen-
te, uma folha de celofane que ali ainda se expandia. A bola ao centro da instalação não
se expande, mas irradia uma luz própria, fazendo, tal como a folha descartada, com
que se levante o olhar, ou se movimente o sujeito. Um barulho semelhante ao de sua
expansão é assumido por nós, espectadores, convidados a caminhar sobre dezesseis
toneladas de vidro quebrado, que vai se partindo e reacomodando sob o peso de nos-
sas passadas. Em volta da bola, andamos por entre planos retangulares de superfícies
diversas: tela de náilon, grade, cerca de madeira, aquário de vidro onde nadam pei-
xinhos transparentes, numa espécie de labirinto, mas um labirinto que o olhar pode
atravessar quase totalmente.

Os anteparos translúcidos ou vazados fazem da bola de luz algo dis-


tante, por mais perto que ela esteja. Através desses materiais diversos, a bola
pode de repente aparecer, graças a essa modulação entre distância e presença
que agencia nosso olhar sobre a esfera de celofane amassado, matizando sua lu-
minosidade e, ao mesmo tempo, construindo um espaço ordenado para nossa
movimentação. Ordenado e um tanto violento: as grades nos detêm, algumas
barreiras nos limitam, ainda que transparentes. É essa a violência do desloca-
mento, da falta de lugar fixo e garantido para o homem – sob seus pés o solo
não é firme, mas instável e quase perigoso. Sujeito a choques, condenado a
flâner (o flâneur, para Benjamin, é o homem que saiu do enquadramento), esse
passante não deixa pistas, não imprime pegadas nesse chão móvel. Cada passa-
da dissemina-se em mil pequenos choques entre os mínimos pedaços de vidro,
na ameaça talvez de que toda a cena se rompa em pedaços.

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A “sensação de modernidade” conquista-se ao preço da “dissolução da aura
através da experiência do choque”, diz Benjamin (2000a, p. 70). Sua dissolução talvez
não seja, porém, um aniquilamento, mas uma disseminação. Mesmo porque a aura
não está circunscrita à posição tradicional do espectador frente à obra – ela chega até
a aparecer na pluma do filósofo vinculada ao amor, em rápido comentário a versos de
Baudelaire que seriam “a descrição clássica do amor, saturado da experiência da aura”:

Nenhuma distância te faz difícil

Vir voando e apaixonada (ibid., p. 67)

De fato, a aura é “manifestação irrepetível de uma distância” (ibid., p. 66), na


medida em que sua complexa estrutura de proximidade e distância (como já vimos, ela é
“a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja”) é aquela do desejo.
Um dos versos de mais um poema de Baudelaire, citado logo a seguir por Benjamin, traz
à luz essa posição do objeto de desejo perdido para sempre, e sempre a reencontrar: “E te
amo tanto mais, bela, que tu de mim foges” (ibid., p. 67, tradução nossa).

Em sonho, Walter estava na rive gauche, diante da Catedral de Notre-Dame.


Mas não havia Notre-Dame, e ele fica transtornado de nostalgia:
A extraordinária nostalgia que, no seio do objeto desejado, me
assaltara, não era aquela que, de longe, tende à imagem. Era a bem-
aventurada nostalgia que já franqueou o limiar da imagem e da posse,
e só tem consciência da força do nome do qual vive a coisa amada,
no qual ela se transforma, envelhece, rejuvenesce e, ela mesma sem
imagem, é o refúgio de toda imagem. (Benjamin, 1933/2000b, p. 343,
tradução nossa).

Há uma nostalgia, portanto, que “tende à imagem”, “de longe”: o desejo enche de aura, então, o
objeto, tornando-o uma verdadeira imagem (ou seja, um objeto para o olhar). Mas existe um
“além” da imagem, no nome da coisa, que acaba sendo o refúgio de toda imagem. Uma ope-
ração aqui faz da imagem aurática, digamos, uma outra coisa que, graças à linguagem, a uma
potência literal, e não mais imagética, é capaz de transformar a imagem.

O sujeito aí não apenas habita a cena, vivenciando a aparição aurática, mas é


deslocado no campo do olhar – que se une àquele, tão vasto e incerto, da linguagem.
Como em Através, entre sujeito e obra de arte não há transparência e imediatez, mas
anteparo, véus, grades diversas (inclusive aquela da geometria, da perspectiva artifi-
cial), superfícies translúcidas. Não é exatamente o sujeito quem olha, senhor e centro
do campo da visão, mas, ex-cêntrico, ele torna-se olhado: “Quem é olhado ou se crê
olhado levanta os olhos. Experimentar a aura de um fenômeno significa dotá-lo da ca-
pacidade de fazer com que se levante o olhar” (Benjamin, 2000a, p. 66). É o fenômeno
que chama o sujeito, numa caracterização do campo do olhar que se revela precursora
das análises de Maurice Merleau-Ponty e Jacques Lacan. Benjamin cita Proust: “Certos

24 m arcelin a | hit et nunc


amantes do mistério querem acreditar que nos objetos fica algo dos olhares que os
roçam” (ibid.). A célebre experiência da madeleine, a sublime memória involuntária
do escritor, teria a ver com a aura: capacidade de o objeto reacender sensivelmente no
sujeito o desejo.

Para Benjamin, Paul Valéry fala da percepção no sonho como “caracterizada


pela aura”:
Quando digo: vejo esta coisa, não interponho uma equação entre mim
mesmo e a coisa. (…) No sonho, em troca, subsiste uma equação. As
coisas que vejo me vêm como eu as vejo.” (Ibid., p. 66).

O olhar revira-se entre sujeito e objeto, e é então este último que parece olhar o sujeito,
retirando-o do lugar de senhor da representação, brincando com sua ex-centricidade.
Mas tal jogo de olhares não é recíproco. Assim como dizem do amor, o olhar é cego.
“Poder-se-ia dizer”, escreve Benjamin, “que é tanto mais subjugante um olhar quanto
mais profunda é a ausência de quem olha.” (Ibid., p. 67).

Quem olha se ausenta, não é mais um sujeito em pé de igualdade com aquele


que é olhado. Mostrando como esse jogo do olhar se dá no campo da linguagem e,
portanto, comanda também a literatura, o filósofo afirma: “Mesmo as palavras podem
ter sua aura”. Como disse Karl Krauss, “quanto mais perto se olha uma palavra, mais
longe a palavra olha” (ibid., p. 76). A palavra nos olha, subjugando-nos em sua poesia;
ela estará, portanto, distante, quanto mais perto estiver. E a palavra “tem” ou “pode
ter” aura, porque a aura não é atributo de qualquer imagem ou palavra, em si mesma,
mas se define como relação entre objeto (imagem, palavra…) e sujeito. Essa relação
pode também chamar-se olhar. Em outros versos de Baudelaire citados por Benjamin:
L’homme y passe à travers des forêts de symboles

Qui l’observent avec des regards familiers.1

Em seguida, o filósofo comenta: “Quanto mais se dá conta Baudelaire deste fato, mais
claramente se percebe a decadência da aura em sua poesia” (ibid., p. 66). Entre as coi-
sas nos vendo como nós as vemos, no sonho de Valéry, e a inquietante floresta de Bau-
delaire, há uma diferença sutil, porém importante: na segunda, a aura só se apresenta
ao decair. Os símbolos formam florestas pelas quais o homem apenas passa, flâneur,
incapaz de atravessá-las do início ao fim, e os olhares lançados sobre ele pelos símbo-
los tornaram-se inquietantes em sua “familiaridade”. Uma palavra pode então desmo-
ronar sobre si mesma, como aconteceria na poesia do escritor francês, diz Benjamin
(ibid., p. 45). Em vez de roçar nossa pele como a sombra do galho na cena campestre
da aura, a palavra baudelairiana cairia sobre nossas cabeças como o céu dos gauleses,
derrubando-nos, sem dúvida. Ou apenas desestabilizando, com esse choque, a posição
do sujeito. Como mostrando sua própria engrenagem, a aura denuncia sua própria

1 “O homem passa através de florestas de símbolos/ Que o observam com olhares familiares” (tradução nossa).

25
impossibilidade – ela não deixa, apesar de tudo, e paradoxalmente, de performar o
encontro com a coisa, a vivência da cena do olhar, mesmo que ali o sujeito não tenha
mais lugar garantido (ou justamente por isso).

O desencontro entre homem e símbolo, entre sujeito e signo, reflete-se em


nossa relação com os aparatos, a técnica e a tecnologia. “Uma das funções sociais mais
importantes do cinema é criar um equilíbrio entre o homem e o aparelho” (Benja-
min, 1935/1994, p. 189). Esse equilíbrio parece perigoso, ele pode ser o das massas, da
propaganda, da ideologia disseminada graças à distração. Mas Benjamin não deixa de
apontar outra possibilidade:
Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto das
inervações humanas – é essa a tarefa histórica cuja realização dá ao
cinema o seu verdadeiro sentido. (Ibid., p. 174).

Fazer da técnica, um objeto humano. O aparelho técnico do nosso tempo não seria
mais do que um algo intermediário entre mim e o outro, não para que formemos, a
partir daí, uma massa coesa e compacta, sempre em torno de um líder, como na céle-
bre descrição freudiana de “Psicologia das massas e análise do ego” (Freud, 1921/1976).
Mas um meio no qual se podem introduzir desvios, brechas onde o desejo possa fu-
gidiamente aparecer, e o sujeito se apresente numa aura incerta, bruxuleante, sob o
modo do mal-estar na cultura de que falava o psicanalista.

Na arte, o sujeito não se apresenta completamente, maciçamente, mas, na


lição fundamental deixada por Freud, ele mal-está (1929/2010). De banda, meio atra-
vessado, é aí o lugar privilegiado de sua súbita aparição – nessa morada da qual ele
não é o senhor. É na cultura que surge, efêmero, o mais íntimo e singular – um pouco
como Benjamin faz dizer um “poeta contemporâneo”: “para cada homem existe uma
imagem que faz o mundo inteiro desaparecer” (1928/1994, p. 253). A imagem não está
no mundo como a paisagem diante de nós, mas dele se exclui, se destaca, no momento
agudo em que o homem (mal) está nela. Na decadência do mundo, a poesia triunfa,
pois ela divisa “espaços vazios” e neles se insere (como teria feito Baudelaire, ainda e
sempre Baudelaire, segundo Benjamin (2000a, p. 43).

No desconforto, no deslocamento, pulsa uma centelha, no lugar da aura pe-


rene e bem estabelecida. Nossa tarefa histórica é com ela acender a técnica, refazendo
espaços vazios e neles inserindo poesia. Mas já não seria esta a tarefa de um Velásquez,
ou de todos os artistas?

Baudelaire, visionário, concebia como tarefa artística em geral “que toda mo-
dernidade deva ter valor para se tornar futuramente antiguidade” (apud Benjamin,
2000a, p. 17).

26 m arcelin a | hit et nunc


Re fe r ê n cias b ib liogr áficas
BENJAMIN, Walter. “Brinquedo e brincadeira. Observações sobre uma obra Monu-
mental” (1928). In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasi-
liense, 1994, pp. 165-196.
_______. “Pequena história da fotografia”. In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e
política, op. cit., 1994, pp. 91-107.
_______. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (primeira versão,
1935). Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. In: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e
política, op. cit., 1994, pp. 249-253.
_______. A modernidade e os modernos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000a.
_______. “Brèves Ombres” (1933). In: Œuvres II. Paris: Gallimard (Folio essais),
2000b, pp. 340-354.
FREUD, Sigmund. “Sobre a transitoriedade” (1915). In: Edição standard brasileira das
Obras psicológicas completas de S. Freud (ESB). Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. XIV.
_______. “Para além do princípio de prazer” (1920). In: ESB, op. cit., 1976, vol. XVIII.
_______. “Psicologia das massas e análise do ego” (1921). In: ESB, op. cit., 1976, vol.
XVIII.
_______. O mal-estar na cultura (1929). Porto Alegre: L&PM, 2010.

27
Notas s ob re na rrativa,
experiência e po breza e m Wal te r
Benjamin e s uas re l aç õ e s co m a
contemporaneid ad e
Luisa Duarte*

Palavras-chave Resumo: O ensaio, ao analisar dois textos seminais de Walter


Walter Benjamin; Benjamin, “O narrador” e “Experiência e pobreza”, visa retomar a
narrador; figura do narrador, conceito-chave na obra do autor, e, através dessa
experiência; retomada, notar como as mudanças sofridas pela arte de narrar
vivência; são um sintoma da chegada da modernidade e de sua pobreza no
modernidade; começo do século XX – objeto de estudo de W. Benjamin. Através
contemporaneidade. das transformações da figura do narrador, vê-se a passagem de um
tempo da “experiência” para o da “vivência”, e as consequências dessa
Key words mudança. Ao final do ensaio, abre-se uma especulação acerca de uma
Walter Benjamin; pobreza da contemporaneidade, buscando relacionar o pensamento
the storyteller; de Benjamin a sintomas da pobreza do nosso tempo presente.
experience;
existence; Abstract: This essay will discuss two seminal texts by Walter Benjamin,
modernity; ‘The Storyteller’ and ‘Experience and Poverty’ in order to return to
contemporaneity the figure of the storyteller/narrator, a key concept in his oeuvre,
thus noting how the changes undergone by the art of narration are
symptomatic of the arrival of modernity and of its poverty in the early
20th century, which is the object of Benjamin’s study. By addressing the
transformations undergone by the figure of the narrator/storyteller, it
is possible to grasp the passage from the moment/time of ‘experience’
[experiência] to that of ‘lived-through experience’ [vivência] and also
the consequences of this shift. The essay draws to a close by suggesting
ways to relate Benjamin’s thought with the symptoms of poverty in the
present times.

* Luisa Duarte é crítica de arte e curadora independente. Mestre em filosofia pela


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

28 m arcelin a | hit et nunc


A atualidade da obra de Walter Benjamin é o que, sem dúvida, motiva as homenagens
ao septuagésimo ano de sua morte. Mas, afinal, a que se deve essa atualidade? A
pergunta em si já justificaria uma dissertação inteira, mas fiquemos com alguns pontos
já colocados na proposta de ensaio da revista marcelina, que o apresenta como um
pensador da “experiência estética da urbe”. Entre as perguntas propostas pela revista,
escolho uma delas: Como explicar a longevidade de figuras conceituais como o flâneur,
o narrador e o colecionador, entre muitos outros?

As figuras do flâneur e do narrador estão intimamente ligadas ao tempo. A


do colecionador também, pois este é movido por um desejo, um fetiche mesmo, pela
acumulação, que somente o tempo permite que se concretize. Entretanto, neste texto
iremos nos deter na figura do narrador e nas transformações pelas quais essa figura
passou na modernidade. As mudanças na maneira de se experimentar o tempo e as
consequências das mudanças nessa experiência fizeram com que Benjamin nomeasse
de maneira distinta o que seria a relação com o tempo em uma era pré-moderna e
aquela vivida na era moderna. Antes, existiria o que ele chama de “experiência”, depois,
surgiria o tempo da “vivência”.

Atento às transformações radicais da temporalidade no começo do século


XX, Benjamin em seu pensamento cria figuras emblemáticas que o auxiliam a melhor
compreender a sua época, ou seja, aquela da passagem do século XIX para a primeira
metade do século XX.

A leitura de Benjamin do texto “Para além do princípio do prazer” (1920), de


Sigmund Freud, foi fundamental para a sua elaboração do par conceitual “experiência”
(Erfahrung) e “vivência” (Erlebnis). Cabe salientar que esta é uma leitura que dá mar-
gem a ressalvas, e que contribui mais para a elaboração reflexiva do próprio filósofo
do que para um melhor entendimento da teoria freudiana.

Em “Sobre alguns temas em Baudelaire” (1939), Benjamin apresenta sua teo-


ria da memória, que possui como principais referências três autores: Sigmund Freud,
Henri Bergson e Marcel Proust. Benjamin recorre ao texto de Freud “na busca de uma
definição mais concreta do que parece ser um subproduto da teoria bergsoniana no
conceito proustiano de memória da inteligência”.1

Em “Para além do princípio do prazer”, Freud estabelece uma correlação en-


tre a memória e o consciente. Diante disso, é colocada a hipótese segundo a qual “o
consciente surge no lugar de uma impressão mnemônica”.2 O consciente “caracterizar-
-se-ia, portanto, por uma particularidade: o processo estimulador não deixa nele qual-
quer modificação duradoura de seus elementos, como acontece em todos os outros

1 W. Benjamin, “Sobre alguns temas em Baudelaire”. In: Obras escolhidas, vol. III. São Paulo:
Brasiliense, 1989, p. 108.
2 S. Freud, “Jenseits des Lustprinzips”. Viena:..., 1923, p. 31.

29
sistemas psíquicos, porém como que se esfumaça no fenômeno da conscientização”.3
A conclusão desta hipótese reside no fato de que a conscientização e a permanência de
um traço mnemônico são incompatíveis entre si para um mesmo sistema.

Segundo Freud, a função de acumular memória em processos estimuladores


caberia a “outros sistemas”, que não o consciente. Assim, a função do consciente, não
sendo a de registrar traços mnemônicos, seria justamente a de agir como proteção
contra estímulos. A ameaça desses estímulos se faz sentir através dos choques. Quanto
mais a consciência está permanentemente alerta a esses choques, menos se pode espe-
rar deles um efeito traumático. Assim, quanto mais consciente for o homem, menos
memória espontânea ele terá.

A experiência (Erfahrung), tal como nos diz Benjamin, constitui-se menos


em dados isolados e rigorosamente fixados na memória, do que em dados acumula-
dos, e com frequência inconscientes, que afluem na memória, estando assim ligada aos
traços mnêmicos.

Dessa forma, sua atrofia na modernidade deve-se a um estado de alerta da


percepção às múltiplas possibilidades de choque existentes na metrópole. No mundo
moderno, os homens são bombardeados cada vez mais por estímulos externos, que
se transformam em choques. Essa intermitente percepção do choque que atravessa o
homem citadino, incorporada ao inventário da lembrança consciente, transforma-se
em vivência (Erlebnis). Ou seja, a vivência seria justamente esse encontro do choque
com a lembrança consciente, que possui a utilidade de proteger o habitante da grande
cidade de efeitos traumáticos.

Desse modo, Benjamin está tentando compreender o funcionamento psíqui-


co nas condições de existência típicas da modernidade. Pois a intensidade de estímu-
los da vida moderna, em contraposição ao apaziguamento do mundo pré-moderno,
legou a este homem citadino um novo tipo de apreensão do mundo.

A experiência (Erfahrung) é aqui entendida como correlata à ideia de tradi-


ção. Tradição como aquilo que é transmitido quase que inconscientemente de geração
em geração. Assim sendo, o conteúdo dessa transmissão possui validade através do
tempo. Essa validade é garantida justamente por essa continuidade no tempo, típica da
época pré-moderna. Também é marca desse tempo da experiência um entrelaçamento
entre memória individual e memória coletiva.

A vivência (Erlebnis), por sua vez, é precisamente a experiência típica da


modernidade, órfã da tradição. Para os homens da vivência já não é possível so-
mente repetir o que os outros fizeram e ter a certeza de assim lograr um bom
caminho. Esses homens não contam mais com exemplos. São homens solitários,

3 Id., ibid.

30 m arcelin a | hit et nunc


privados dos vínculos coletivos. A experiência para o homem da modernidade, ou
seja, a ligação entre passado e presente, tem de ser construída, pois esta já não lhe
é dada espontaneamente.

A impossibilidade de partilhar experiências

Os ensaios “Experiência e pobreza” (1933) e “O narrador” (1936) constituem-se dois


importantes escritos benjaminianos sobre a queda da experiência e a ascensão da vi-
vência na modernidade.

Em “Experiência e pobreza”, Benjamin inicia o texto contando a pará-


bola de um velho que, no momento da morte, revela aos seus filhos a existência
de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos então se põem a cavar, mas
não descobrem tesouro algum. Chegando o outono, as vinhas produzem mais que
quaisquer outras na região. Só aí os filhos compreendem que o pai havia lhes
transmitido uma experiência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho.

O exemplo traz consigo a marca de um tempo no qual a experiência, no


caso transmitida oralmente de pai para filho, fazia as vezes de um laço que conec-
tava gerações distantes no tempo ou homens distantes no espaço. É justamente a
validade dessas experiências que cai por terra com a chegada da modernidade.
Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela
sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com a
autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com
a sua loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativas
de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos.
Que foi feito de tudo isso? (…) Que moribundos dizem hoje
palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como
um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por
um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a
juventude invocando sua experiência?4

Benjamin enxerga com acuidade a chegada desse novo tempo, no qual já não é
possível trocar experiências. Tudo mudou tanto, e de maneira tão drástica, que as
experiências passam a não ter mais sentido coletivo. O rompimento entre passado
e futuro lega um tempo sem referências para os homens modernos. A experiência
de um pai já não vale para o filho. Chegou o tempo das experiências individuais
ou, como afirmou Benjamin, da vivência.

O filósofo localiza a ruptura da Primeira Guerra Mundial como um ápice

4 W. Benjamin, “Experiência e pobreza”. In: Obras escolhidas, vol. I. São Paulo: Brasiliense, 1989,
p. 114.

31
dessa impossibilidade de troca que já vinha se anunciando há tempos. A tecnologia
que se volta contra o próprio homem e o silêncio dos combatentes que voltam da
guerra mais pobres em experiências comunicáveis são exemplos extremamente repre-
sentativos, para Benjamin, dessa ruína. Os diversos livros escritos por esses mesmos
combatentes, nos anos que se seguiram à guerra, são um sinal de que aquelas histórias
não poderiam ser contadas de boca em boca. Cada livro é a vivência de cada um da-
quele episódio. Essa versão de cada um só pode ser contada na forma de livro que, por
sua vez, será também lido por um leitor, individualmente, num gesto de interioridade
que é exemplar desse novo tempo.

A queda da narrativa

Essa questão, do declínio da arte de narrar e a consequente ascensão do romance,


é o tema central de “O narrador”. Esse ensaio descreve o processo de derrocada da
experiência através da queda de um gênero literário, ou seja, a narrativa. “Quando se
pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como
se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia inalienável: a faculdade
de intercambiar experiências.”5 É na esteira dessa falência da experiência comunicável
que ocorre o rompimento entre os interesses do homem e os de sua vida coletiva. Esse
fenômeno será fundamental para o surgimento do romance como forma paradigmá-
tica de expressão literária do homem moderno e testemunho exemplar do hiato cada
vez maior entre o indivíduo e a sociedade.

Assim como em “Experiência e pobreza”, em “O narrador” Benjamin também


relaciona a experiência à distância. Essa distância pode se dar tanto no plano temporal,
quanto no espacial. Dessa forma, os narradores se dividem em dois tipos exemplares: de
um lado, está a figura do camponês sedentário e, de outro, a do marinheiro comerciante.

Tanto o camponês, que nunca saiu de sua terra, quanto o marinheiro, que já
caminhou por diversas, possuem uma certa experiência a ser transmitida. É justamen-
te essa necessidade de solucionar o problema da distância que a narrativa irá cumprir.
Assim, é possível entrever que a experiência é coletiva, pressupõe um encontro, ao
mesmo tempo em que está vinculada a um modo mais artesanal de estar no mundo,
típico do que podemos chamar de uma era pré-moderna.

Através da figura do narrador, Benjamin mostra como a memória coletiva e


a memória individual relacionavam-se intimamente. Esse narrador, no ato de narrar
(oralmente), incorpora não só as experiências do passado, mas também a sua própria.
A narração transmitida aos ouvintes é o resultado desse encontro. Ou seja, não se deve
pensar que essa narração é plena de objetividade, como se fosse possível transmitir o
fato como ele realmente foi. É exatamente a confluência do fato com a vida do nar-
rador no presente que o transforma em experiência a ser transmitida. “Nela ficam

5 W. Benjamin, “O narrador”. In: Obras escolhidas, vol. I, op. cit., p. 198.

32 m arcelin a | hit et nunc


impressas as marcas do narrador como os vestígios da mão do oleiro.”6

“O narrador é um homem que sabe dar conselhos.”7 Uma característica im-


portante das narrativas é o conhecimento prático nelas contido. Ou seja, a dimensão
utilitária, que tem como fim ajudar os homens a se portarem no mundo; é um traço
marcante desse gênero que se extinguiu. “O conselho tecido na substância viva da
existência tem um nome: sabedoria. A arte de narrar está definhando, porque a sabe-
doria – o lado épico da verdade – está em extinção.”8 Era justamente essa sabedoria na
forma de conselho que passava de pessoa em pessoa através da narrativa. Num mundo
no qual esta transmissibilidade da experiência já não é mais possível, a autoridade da
sabedoria contida na narrativa também chega ao fim.

Esse processo a que Benjamin se refere de forma alguma tem sua origem na
modernidade. Não estamos aqui nos referindo a uma “característica moderna”, mas
sim a um processo que vem se desenvolvendo “concomitantemente com toda uma
evolução secular das forças primitivas”, e encontra na modernidade um ápice.


A pobreza da modernidade

Retornamos agora ao texto brevemente mencionado, “Experiência e pobreza”. Junto


com “O narrador”, esse ensaio constitui-se uma excelente porta de entrada para a re-
flexão acerca da queda da experiência na modernidade, e o consequente surgimento
da vivência.

Com “O narrador”, vimos que os novos tempos já não podem mais abrigar
uma forma de arte como a narrativa, cuja vida dependia de um outro mundo. Mundo
este que, por sua vez, encontrava-se ligado a um modo de produção artesanal, em que
a experiência coletiva entre os homens ainda se fazia presente, e as distâncias eram
superadas através do ato de contar histórias.

Ou seja, toda essa engrenagem da qual a narrativa necessitava para se


manter viva, dinâmica, foi ruindo ao longo do tempo. Benjamin testemunha o
fim desse processo. É em “Experiência e pobreza” que temos acesso ao veredicto
acerca desse fim, e o que a partir daí é possível ser feito. Nesse aspecto, esse pe-
queno ensaio possui ares de panfleto, como se ali estivessem contidas indicações
de ordem utilitária, sobre o que fazer diante de uma determinada situação. Assim
sendo, podemos pensá-lo como um texto filosófico extremamente conectado com
a realidade política e social daquele tempo.

A falência da experiência
6 W. Benjamin, “Sobre alguns temas em Baudelaire”. In: Obras escolhidas, vol. III, op. cit., p. 107.
7 W. Benjamin, “O narrador”. In: Obras escolhidas, vol. I, op. cit., p. 200.
8 W. Benjamin, ibid., p. 201.

33
Neste texto não estamos nos ocupando de uma importante questão, ou seja, a da des-
truição da aura das obras de arte, assunto esse profundamente discutido por Benjamin
em seu ensaio “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica” (escrito em
1955, publicado pela primeira vez em 1965). Porém, cabe aqui assinalar que este é mais
um fenômeno – junto com a queda da narrativa, a deterioração da validade contida
nos conselhos e tantos outros aspectos – que aponta para o mesmo diagnóstico, isto é,
o do fim da experiência na modernidade.

A ruína desse vasto repertório de traços de uma cultura pré-moderna deixa


como legado para a modernidade um tempo sem experiência que, por sua vez, torna-
-se um tempo pobre. É essa miséria do presente, e os seus desdobramentos, que Ben-
jamin expõe em “Experiência e pobreza”.

O prefácio de Hannah Arendt para seu livro Entre o passado e o futuro


ilumina a reflexão presente ao afirmar que não é segredo para ninguém que a tra-
dição foi-se esgarçando à medida que a época moderna foi progredindo. E o que
ocorre quando esta afinal se rompe? A experiência de viver na lacuna entre pas-
sado e futuro torna-se uma realidade de todos os homens, ganhando, assim, uma
importância política.

Talvez este seja um prisma adequado para compreender a pobreza que Ben-
jamin menciona, em seu texto de 1933, que a miséria de seu tempo não é uma miséria
privada, mas sim de toda a humanidade. É sob o efeito de dois fatos de enorme im-
portância sociopolítica que abalaram os antigos parâmetros de racionalidade – as duas
Guerras Mundiais – que Benjamin sentencia o auge dessa pobreza.
Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas
que a experiência pela guerra de trincheiras, a experiência econômica
pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral
pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde
puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem
diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo
de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e
minúsculo corpo humano.9

Assim, trata-se de um ápice que possui como resultado o rompimento do fio da tra-
dição. Nesse turbilhão de forças, encontra-se um covarde embate entre o frágil e mi-
núsculo corpo humano e a torrente brutal protagonizada pela tecnologia. “Uma nova
forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepon-
do-se ao homem.”10

Diante de tragédias de tal monta, como a Primeira Guerra Mundial e o mas-

9 W. Benjamin, “Experiência e pobreza”. In: Obras escolhidas, vol. I, op. cit., p. 115.
10 W. Benjamin, ibid., p. 115.

34 m arcelin a | hit et nunc


sacre de Auschwitz, a constatação de que o fundamento do ideário iluminista não se
realizou é óbvia. Esse ideário seria a convicção segundo a qual a razão seria capaz de
conduzir a humanidade progressivamente em direção à paz e à justiça social em prol
de sua emancipação, tal como Kant a enunciara. Desse modo, podemos pensar que
Benjamin está presenciando uma modificação brutal na visão histórica processual,
segundo a qual o tempo, como uma linha reta, estaria sempre sendo impelido para
frente por uma força chamada progresso rumo a um futuro melhor. Este viés do pen-
samento benjaminiano pode ser mais bem compreendido através da leitura do seu
último texto, “Teses sobre o conceito de história” (1940).

Ou seja, não se trata de pouca coisa o que se passa naquele início de século
XX. As condições históricas são totalmente diversas das anteriores, exceto pelas nuvens
no céu. Esta sentença sinaliza para as mudanças ocorridas na passagem do século XIX
para o XX. Debaixo daquele céu, por sua vez, encontra-se uma pobreza que é de toda
a humanidade, e por ela deve ser assumida.

A pobreza da contemporaneidade

Benjamin relatou com precisão aguda as transformações radicais pelas quais o Oci-
dente passou no início do século passado. Hoje vivemos transformações tão profundas
quanto. Estas, atuais, disseminam também o seu tipo de “pobreza”, que, assim como
aquela delineada pelo autor, diz respeito a todos, e por nós deve ser assumida.

Se Benjamin foi o filósofo da modernidade, hoje essa etapa deu lugar à con-
temporaneidade. Assim, retornar ao início disso que chamamos de contemporâneo
torna-se pertinente. “Soyons réalistes, demandons l’impossible!” – uma articulação
entre o tempo da “realidade” e o tempo do “im-possível” – era o grito que inundava
as ruas de Paris em maio de 1968. Esse clamor que mesclava realidade e sonho, que
é parente do utópico, continha o desejo de rechaçar o poder vigente, ditatorial, em
diversas partes do planeta, bem como a vida alienada pelo consumismo, o culto da
produtividade semeado pelo capitalismo, a tendência à uniformização e segregação do
diferente que gerava uma padronização igualmente alienante.

Um pensador como Michel Foucault advogava então não por utopias, mas
por heterotopias,11 pelo local, o setorial, para que o pequeno e o cotidiano não se-
guissem sepultados pela política em letras maiúsculas e pelas razões de Estado. Teste-
munhava-se também o surgimento das chamadas micropolíticas. As práticas sociais
reiniciam-se em um nível micro. Nas palavras de Félix Guattari: “Tudo que eram for-
mações políticas, sociais e sindicais na época de Sartre desmoronaram. (…) Na época

11 Ver ensaio “Outros espaços”, de Michel Foucault. In: Michel Foucault, Ditos e escritos III –
Estética: literatura e pintura, música e cinema. Forense Universitária, 2001, p. 415.

35
de Michel Foucault o que aparece de pronto são problemáticas em todos os níveis do
social: no plano da educação, das prisões, da psiquiatria, sobre a homossexualidade e
a prostituição. Essa problemática é irreversível, apesar de sua capa de chumbo, apesar
dos anos invernais pelos quais passamos. Mas notamos que há uma micropolítica, um
nível microssocial que é um lugar onde operam e se reiniciam as práticas sociais”.12

Tratava-se de cultivar o possível, ainda que os olhos mirassem, mesmo que


de soslaio, o impossível. Essa nova forma de se relacionar com o mundo ao redor, na
qual o possível pede lugar na criação de mundos diversos, traz modificações na esfera
do tempo e do espaço. O presente ganha valor, e aquilo que se encontra mais próximo
(cotidiano), também.

É preciso, entretanto, sublinhar que Félix Guattari não tomava a micropolí-


tica tão somente como o pequeno, o individual, o privado, mas seria, sim, como uma
lógica nomeada pelo autor de “molecular”, que opera por toda parte, que atravessa, in-
clusive, as grandes estruturas, bem como as pequenas. Se há, no contexto do final dos
anos 1960, uma atenção como nunca antes ao micro, isso não quer dizer que o macro
seja excluído. Mais parece que naquele tempo eram traçadas novas estratégias, novos
caminhos, para influenciar e modificar tanto o micro, quanto o macro. Descobria-se
que a partir do micro poder-se-ia interferir no macro, e vice-versa. Esse momento his-
tórico expressa justamente uma clivagem em relação ao período moderno.

Somado ao que já foi dito, cabe recordar que o ano de 1968 marca o mo-
mento de revoluções radicais mundo afora. Argentina, Brasil, Chile, China, Cuba,
EUA, França e muitos outros países viviam momentos decisivos, fossem de golpes
ditatoriais sangrentos, fossem de luta por conquistas no território da sociedade
civil. Homens e mulheres lutavam por seus direitos, jovens tomavam como alvo as
instituições em busca de mais liberdade. A década de 1970 inicia-se abrigando não
um mundo de plena realização das ambições antes pretendidas, mas sim de desilu-
sões no contexto macropolítico e conquistas no universo micropolítico. A famosa
crise do petróleo em 1973 gera uma mudança na economia mundial que coincide
com o aparecimento do termo “pós-moderno” nos estudos de J. F. Lyotard, e o
início do fim da era das grandes narrativas.

A mesma década de 1970 tem o seu crepúsculo anunciando um novo começo


que iria provocar mudanças massivas em todo o planeta, uma guinada conservadora
começava. Em 1979 a conservadora Margareth Thatcher assume o poder na Inglater-
ra, tornando-se primeira-ministra, enquanto nos EUA, o republicano Ronald Reagan
ganha a presidência em 1980. Começava então a era do neoliberalismo, a economia de
mercado ganhava espaço, enquanto ocorria o esvaziamento do papel do Estado. A aids
12 F. Guattari, “De La Philosophie Essentielle À L’Existence Humaine”, entrevista com Antoine
Spire. Paris: Éditions de L’Aube, p. 30. Citado em Micro Políticas, Arte y Cotidianeidad 2001 –
1968, Juan Vicente Aliaga, María de Corral, José Miguel Cortés, p. 31.

36 m arcelin a | hit et nunc


surge na mesma época e retrai comportamentos sexuais libertários recém-conquista-
dos. A nova economia leva a uma competição desenfreada, e o capitalismo segue sendo
capaz de colonizar as camadas mais sutis da vida, como a subjetividade e o inconscien-
te, deixando-nos sob um ar claustrofóbico, como assinalou o crítico Fredric Jameson,
em sua tentativa de pensar filosofia e psicanálise.

Na década de 1990, com a queda do Muro de Berlim e o fim da URSS, o mun-


do assiste a uma nova guinada em direção a um Estado no qual as sociais-democracias
associadas ao capital dão as cartas. O filósofo italiano Giorgio Agamben inicia justa-
mente nesse contexto a gestação de um pensamento que vincula filosofia e política.
Nesse pensamento é forjado o conceito de “vida nua”, expressão cujos sentidos podem
nos auxiliar a compreender parte da pobreza da nossa contemporaneidade.

Agamben recorda que, para os gregos antigos, não havia um termo único
para exprimir o que queremos dizer com a palavra vida. Na Grécia antiga, ela se divi-
dia em dois: zoé, que significa o mero fato da vida biológica, de se estar vivo, valendo
para animais, homens ou deuses; e um outro termo, bíos, “que indicava a forma ou
maneira de viver própria de um indivíduo ou um grupo”.13

Grosso modo, Agamben mostra como o biopoder, o poder sobre a vida, teria
conseguido colonizar de tal forma as vidas, as nossas vidas, que elas se tornaram “vida
nua”, ou seja, vida como simples fato biológico, subtraída de toda a sua potência de
singularidade, autenticidade. A vida empobrecida, essa “vida besta”, está indissocia-
velmente ligada a uma dissolução do caráter político de nossas relações, da queda da
experiência da qual já falava Benjamin no começo do século passado. A experiência
capaz de ser transmitida. Uma vivência torna-se experiência no momento em que se
torna passível de ser comunicada, partilhada. Quando essa qualidade do que vivemos
se rompe, temos tão somente vivência, e não experiência.

Esse diagnóstico sinaliza para um mundo sem fora, sem possibilidade de


recuo diante de imperativos avassaladores que ditam nossos modos de sentir, querer,
amar, comportar-se, falar e até mesmo sonhar. Trata-se de uma tradução dura e lú-
cida da pobreza da nossa contemporaneidade. Formada tanto pelos mais facilmente
identificados como excluídos (aí estaria um “fora”? Fica a pergunta.) – as vítimas da
limpeza étnica, da xenofobia na Europa, da segunda guerra no Iraque, da multidão de
desempregados, da pobreza crônica dos países do Terceiro Mundo, do continente afri-
cano recalcado –, como por todos nós. Pois a crueldade, a perversão do atual estado de
coisas, é justamente que tudo parece escorregar como areia por entre os dedos. Toda
transgressão é absorvida como mercadoria para consumo, todo desejo, em alguma
ponta, está vinculado a um desejo que nos foi endereçado previamente sem que sequer
soubéssemos. Mesmo os chamados princípios, mesmo a nossa ética, estão passíveis de
turbulências em um mundo de extremo individualismo e competitividade que gera o

13 G. Agamben, “Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I”. Editora UFMG, p. 10. 2002

37
que o sociólogo Richard Sennett batizou em um de seus livros de “corrosão do caráter”.

Alguém mais otimista poderia advogar que as redes digitais constituem-se hoje
em um ponto de entrelaçamento, de vínculo, entre as pessoas. Para além de todas as faci-
lidades e formas democráticas de distribuição de conteúdo que elas proporcionam, penso
que as redes são hoje um receptáculo de inúmeros sintomas das compulsões contempo-
râneas. Receptáculo do vício de enviar e receber mensagens – espécies de choques con-
temporâneos, tais como aqueles diagnosticados por Benjamin. A novidade agora não é a
quantidade de informação que uma metrópole despeja em cada um de nós ao sair da rua,
mas sim a quantidade de informação, de tempo gasto, de mensagens e aparições (Ser é ser
visto) que envolvem a rede (Internet) dentro de nossas casas ou nos locais de trabalho.
Ou mesmo na hora do “lazer”. Estamos envoltos naquilo que o teórico alemão Christoph
Türcke chama hoje de “distração concentrada”.14 Em um contexto como esse, o ato de re-
sistência seria conseguir filtrar a quantidade de envios e a nossa compulsão por responder
aos mesmos. A conquista que pode advir daí, dessa diminuição na voltagem de envios e re-
cebimentos de mensagens e informações, pode-se supor, é um silêncio que nos coloca em
contato com nós mesmos (reside aí um grande medo? O que ocorreria se “parássemos”?)
e, por consequência, podemos supor, poderia se abrir um caminho para uma vida mais
densa, permeada por uma concentração no sentido forte do termo. A fuga da “distração
concentrada” torna-se assim um dos grandes desafios da nossa época.

Como um pensador como Benjamin reagiria a esse atual estado de coisas?


Benjamin que viu na fotografia e no cinema possibilidades de democratização da es-
fera estética e os localizou como fontes de mudanças na percepção, sem valorar para o
mal tais mudanças. O mesmo Benjamin que fez a crítica da época da vivência, na qual
a troca de experiências perdera o sentido. Como reagiria Benjamin a este mundo de
solitários egoicos compulsivos que têm em mãos revoluções tecnológicas que possuem
um lado realmente democrático e, ao mesmo tempo, são o destinatário de nossos ví-
cios diários?

Somos viciados em estar conectados, fazendo algo, temerosos do tédio, da


tristeza, pois estes são sinônimos de fracasso em um mundo que valoriza o sucesso e a
produtividade, associados a uma falsa alegria constante – quando sabemos que a ale-
gria só se pode dar em intervalos; ninguém saberia valorar a felicidade sem o contraste
da infelicidade. Esse mesmo mundo que gera uma quantidade infindável de consu-
midores de psicofármacos e que caminha para um tempo no qual a depressão será a
segunda doença mais comum entre os homens na Terra. “A Organização Mundial da
Saúde (OMS) estima que a depressão, no início dos anos 2000, acometia 6% da popu-
lação mundial e prevê que, até 2020, terá se tornado a segunda causa de morbidade no
mundo industrializado, precedida apenas pelas doenças cardíacas.”15

14 Ver o livro Sociedade excitada – filosofia da sensação, de Christoph Türcke. Editora Unicamp.
15 M. R. Kehl, O tempo e o cão – a atualidade das depressões. Boitempo, p. 13.

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Todas essas palavras ditas até aqui possuem, sem dúvida, um tom grave. Mas
não se trata de cairmos em um niilismo paralisante, no saudosismo melancólico, tam-
pouco no cinismo complacente diante da realidade, todas estas formas de resposta
recorrentes ao atual estado de coisas. Trata-se, sim, de pensarmos, e pensar é doar
dignidade ao tempo presente. Recordar Benjamin é não só notar que a temporalidade
hoje, assim como ontem, é uma questão-chave para se pensar as causas dos maiores
sintomas de nossa época, mas também é na obra de Benjamin que podemos encontrar
um sopro de esperança (de caráter messiânico, é verdade) no que tange à nossa tarefa
enquanto sujeitos vivos participantes, ou seja, sujeitos que se querem políticos.

Na tese 12 de seu Teses sobre o conceito de história, encontra-se a conhecida


imagem dialética do quadro de Paul Klee, Angelus Novus, na qual temos a expressão do
que Benjamin chama de materialista histórico:
Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um
anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente.
Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O
anjo da história deve ter este aspecto. Seu rosto está dirigido para o
passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma
catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as
dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e
juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-
se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa
tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira
as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa
tempestade é o que chamamos progresso.16

O materialista histórico é aquele que tem os olhos voltados numa direção: a do que
precisa ser salvo. Aqui ele aparece transfigurado como o anjo da história. Ele está vol-
tado para o passado, e não enxerga sem espanto a realidade que tem a sua frente. Pois,
onde o historiador clássico vê uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma grande ca-
tástrofe, onde aquele vê uma sucessão de vitórias, ele vê um amontoado de ruínas. Ele
quer parar, recolher os destroços, juntar os fragmentos, acordar os mortos, salvar. Mas
não pode. A tempestade que o impede é demasiadamente forte. Essa tempestade o leva
em direção ao futuro. Futuro que se chama progresso.

O ímpeto progressista vai deixando para trás ruínas sobre ruínas. Essas ruínas são a
transfiguração do acúmulo de sofrimento dos perdedores, dos não incluídos. É para reverter
esse processo, e transformar a história num campo de luta, e não de complacência, que trabalha
o materialista histórico. A nova temporalidade proposta por Benjamin é o mecanismo que
propicia essa transformação. Aqui, o ato de acessar o passado tem como bússola a urgência do
presente. Pois só tendo em vista este prisma é que a retirada do objeto histórico do continuum
do tempo pode significar uma modificação do presente, ou seja, pode ser útil a esse presente.

16 W. Benjamin, “Teses sobre o conceito de história”. In: Obras escolhidas, vol. I, op. cit., p. 226.

39
Mas o materialista histórico escuta não só o presente, mas também o passado.
Esse também é sujeito. Ao dirigir apelos ao presente, o alvo é a “frágil força messiânica”
presente nos homens.
O passado traz consigo um misterioso índice, que o impele à redenção.
Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes?
(…) Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas nem chegaram
a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as
gerações precedentes e as nossas. Alguém na Terra está à nossa espera.
Nesse caso, como a cada geração, foi-nos concedida uma frágil força
messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode
ser rejeitado impunemente. O materialista histórico sabe disso.17


“Alguém na Terra está à nossa espera.” Cabe a nós responder a esta convocação. Esta
não pode ser rejeitada impunemente. O preço de se ignorar as ruínas e seguir em fren-
te é um retorno do recalcado sob a forma de uma barbárie negativa, catastrófica, geral
e irrestrita. É preciso parar, através do “tempo agora”, e nos voltar para o passado, à luz
do presente, a fim de juntar os fragmentos, acordar os mortos. Esta é uma possibilida-
de que se abre para a saída do ciclo fantasmagórico de repetição do mesmo, que nas
Teses tem o selo da perpetuação de uma história contada sempre sob o ponto de vista
dos vencedores. É nesta nova relação com a história, tecida no reenvio entre presente
e passado, que habita a esperança de um futuro diferente do sempre-igual. Cabe a nós,
munidos de uma “frágil força messiânica”, não só contemplar as ruínas, mas também
transformá-las. Estas palavras, escritas há exatos setenta anos soam hoje extremamen-
te atuais e necessárias. Elas incluem o modo de lidar com o tempo que é nosso, que nos
foi dado, de maneira política, de forma responsável. A busca por esse lugar que solicita
e deseja um senso de coletividade é uma saída possível para este estado de Vida Nua,
de zumbis distraidamente concentrados, supostamente conectados e verdadeiramente
solitários, e tantas vezes indiferentes. Reler Walter Benjamin nos recorda a um só tem-
po a sua dimensão política e humana. Em um tempo despolitizado e desumano como
o nosso, o seu pensamento torna-se, sem dúvida, ainda mais necessário e urgente.

17 W. Benjamin, “Teses sobre o conceito de história”. In: Obras escolhidas, vol. I, op. cit., p. 223.

40 m arcelin a | hit et nunc


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41
O novo b arb áro, o n arrad o r e o
anjo da his tóri a
Sybil Safdie Douek*

Palavras-chave Resumo: Teria Benjamin algo a nos ensinar hoje? Esta é a questão
memória; história; central deste artigo. Inspirando-se nos escritos de Walter Benjamin,
tradição; salvar o parte-se da problemática da perda da memória e da tradição no
passado; tempo século XX, problemática que vem acompanhada de uma pergunta:
do agora; tempo teria a tradição ainda algo a ensinar ao homem do século XX? A
descontínuo; concepção benjaminiana da história, fruto de uma inusitada aliança
rememoração; entre a teologia judaica e o materialismo histórico, consiste em ‘salvar’
renovação; criação o passado, convocando-o no solo de hoje para recriá-lo e renová-lo,
do passado a partir do tempo presente, de um ‘agora’ que para o fluxo contínuo
do tempo, evidenciando um tempo, portanto, descontínuo e tecido
Key words de rupturas. A memória benjaminiana realiza-se no Eingedenken, na
memory; history; rememoração: não é retomada passiva de um passado tal como de
tradition; saving fato aconteceu, mas é renovação e criação.
the past; present
time (now); Abstract: Does Benjamin still have something to teach us today? This is
discontinuous the core question in this article. Inspired by Walter Benjamin’s writings,
flow of time; it starts from the problem of loss of memory and tradition in the 20th
remembrance; century, a problem accompanied by a question: Does tradition have
renovation; creation something to teach to 20th-century mankind yet? The Benjaminian
of the past conception of history, result of an unusual alliance between Jewish
theology and historical materialism, consists in ‘saving’ the past,
convoking it on the grounds of today, to recreate and renovate it in the
present time, in a ‘now’ that stops the continuous flow of time; therefore,
it renders evident a discontinuous time, interlaced with ruptures.
Benjaminian memory realizes itself in Eingedenken, in remembrance:
it is not a passive retaking of the past just as it really happened, but it
is renovation and creation.

* Sybil Safdie Douek é psicóloga e doutora em filosofia pela PUC-SP. Publicou Memória
e exílio, pela Editora Escuta, em 2003, e publicará Paul Ricoeur e Emmanuel Lévinas: Um
elegante desacordo, pela Editora Loyola (no prelo).

42 m arcelin a | hit et nunc


A questão a ser pensada neste artigo, “teria Benjamin algo a nos ensinar hoje?”, não po-
deria ser mais pertinente. Não somente pela atualidade das questões por ele colocadas
(o que não é privilégio de Benjamin: penso nos clássicos e sempre atuais gregos!), mas
também, e principalmente, porque traz à baila uma questão recorrente e essencial em
Benjamin, a saber: teria o passado algo a nos ensinar hoje?

Esta problemática, direta ou indiretamente, está presente em muitos de seus


textos: em “Experiência e pobreza” e “O narrador”, sob a forma da oposição entre Er-
fahrung e Erlebnis; sobre a perda da aura, problema que aparece em seus escritos sobre
Baudelaire e também em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”; suas
reflexões sobre Kafka e o fim da transmissibilidade da palavra; sobre Proust, o narra-
dor por excelência, que causou tamanho fascínio em Benjamin; seu relato “Infância
em Berlim”, como também nos fragmentos recolhidos em Imagens do pensamento; e
em suas famosas teses “Sobre o conceito da história”, último texto do filósofo, no qual
convida a teologia a penetrar no materialismo histórico.

Em todos esses textos, uma mesma indagação parece voltar com insistência:
o que fazer a partir dessa ruptura que o homem do século XX operou com o passado?
Seria ainda possível, ou até mesmo desejável, recuperá-lo? Poder-se-ia definitivamente
esquecer a memória e começar de novo? Ou dever-se-ia chamá-la novamente? Teria a
tradição ainda algo a nos ensinar?

Tantas questões que, bem ao estilo benjaminiano, não foram resolvidas: não
se encontra nele uma resposta conclusiva. Sua obra não forma um sistema fechado e
coerente, constituindo-se mais em fragmentos e elementos heterogêneos, a partir dos
quais se pode formar um desenho, como no mosaico, ou no caleidoscópio: nestes, a
cada vez, um novo desenho pode ser inventado a partir do jogo de espelhos e cores.
Assim também acontece em seus textos: os mesmos elementos combinam-se sob dife-
rentes formas, as mesmas questões reaparecem a cada vez iluminadas sob nova ótica.

É o que ocorre em “Experiência e pobreza” (1933) e “O narrador” (1936),


onde a mesma problemática, a da perda da experiência (Erfahrung), recebe dois trata-
mentos diferentes. O autor abre seu texto “Experiência e pobreza” com a imagem de
“um velho que no momento da morte revela a seus filhos a existência de um tesouro
enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas não descobrem qualquer vestígio
do tesouro. Com a chegada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer outra
na região. Só então compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa ex-
periência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho”. (Benjamin, 1985a, p. 114).

Esta bela parábola pode ser interpretada de muitas maneiras, entre as quais
se destaca a imagem do tesouro: este não está nem no ouro não encontrado, nem
nos vinhedos que deram frutos, mas nas palavras do pai e nos ouvidos dos filhos, ou
seja, na palavra transmitida de pai para filho, de geração em geração, palavra que diz
respeito à transmissão de uma experiência: esta pode ser assim compartilhada e ter

43
continuidade, atravessando, de certo modo, a morte do pai. A experiência podia en-
tão ser comunicada sob diferentes formas: provérbios, histórias e/ou narrativas. Mas,
“Que foi feito de tudo isso?” (Ibid.). Morreu, diz Benjamin: ninguém mais sabe nem
contar, nem ouvir histórias, ninguém mais se interessa por aquilo que os velhos e
moribundos têm a dizer. A imagem paradigmática do velho moribundo rodeado de
seus descendentes atentos a suas palavras, encontra-se hoje, tal como uma amarelada
e desbotada fotografia, apagada pelo tempo. Não somente por não se ouvirem mais as
histórias que os velhos contam, tampouco por não se lhes pedirem conselhos (afinal
de que serve sua experiência?), mas também pelo fato de que a morte hoje é vivida so-
litária e secretamente, quase clandestinamente: do quarto do moribundo ao asséptico
quarto do hospital, não é apenas o local da morte que muda, mas, entre outras coisas, a
possibilidade de não mais ver a morte de perto, de escondê-la, cercando-a de silêncio:
“Em espaços que ficaram purificados de morte, os cidadãos hoje são habitantes enxu-
tos de eternidade e, quando seu fim se aproxima, eles são dispostos pelos herdeiros em
sanatórios ou hospitais” (Benjamin, 1985b, p. 64). É na hora da morte, entretanto, que
a palavra assume sua transmissibilidade: com a recusa do espetáculo da morte, joga-se
fora também a palavra do ancião em seu leito de morte.

Silêncio dos moribundos, como também silêncio daqueles que voltaram do


campo de batalha da Primeira Guerra Mundial: “Está claro que as ações da experi-
ência estão em baixa, e isso numa geração que entre 1914 e 1918 viveu uma das mais
terríveis experiências da história (…) os combatentes tinham voltado silenciosos do
campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos.” (Ben-
jamin, 1985a, pp. 114-115).

As experiências não mais podem ser transmitidas “de boca em boca”, e isso
porque a experiência radical e incomunicável da guerra emudeceu os homens e, as-
sim, empobreceu-os, privando-os do tesouro da experiência. Este foi enterrado nas
trincheiras da Primeira Guerra. Proféticas palavras, quando se pensa nos relatos dos
sobreviventes dos campos de concentração, onde a palavra se paralisou diante do hor-
ror: algum trágico tempo depois, Primo Levi tenta descrever isto em É isto um homem?

O tom nostálgico do início deste texto será, no entanto, logo abandonado,


pois Benjamin, em vez de lamentar a pobreza de experiência do homem moderno,
procura dela tirar proveito para a construção de um novo homem. Um homem que
assuma sua miséria, que confesse sua pobreza de experiência, pobreza de toda a huma-
nidade. Ele exorta o homem sem experiência e tradição a “partir para a frente, a come-
çar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a
direita nem para a esquerda” (Benjamin, 1985a, p. 116), a começar do zero, como fize-
ram Descartes e Einstein. Convida o espírito, na esteira de Nietzsche, a transformar-se
em criança, a não mais olhar para trás, carregando o fardo de uma memória que para-
lisa e impede a criação de novos valores. Convida a deixar para trás “a imagem do ho-
mem tradicional, solene, nobre, adormecido com todas as oferendas do passado, para

44 m arcelin a | hit et nunc


dirigir-se ao contemporâneo nu, deitado como um recém-nascido nas fraldas sujas de
nossa época” (ibid.). E busca este homem contemporâneo na literatura de Paul Scheer-
bart, nos quadros de Klee, no teatro de Brecht e na arquitetura de Loos e Le Corbusier.
Na literatura de Scheerbart, novas criaturas tomam o lugar do homem: até mesmo os
nomes dos personagens (Peka, Labu, Sofanti) nada têm de humano. Suas casas são de
vidro e aço, como as projetadas por Loos e Le Corbusier, e em nada se assemelham
às casas burguesas, com persianas e portas de madeira que escondem seus habitantes
do espaço público, criando um microcosmo privado, no aconchego do lar forrado de
veludo, pleno de mil e um objetos, vestígios de seus proprietários. Em contraposição
a elas, “As coisas de vidro não têm nenhuma aura. O vidro é em geral inimigo do
mistério. É também o inimigo da propriedade” (Benjamin, 1985a, p. 117). O vidro,
em oposição ao veludo, não deixa marcas, vestígios, nem rastros, como recomenda
Brecht em seu poema “Apague as pegadas”. Este novo homem, em vez de lamentar
sua pobreza, deve ostentá-la, livrando-se das pegadas que foi deixando pelo caminho,
libertando-se de toda experiência, para que algo novo possa surgir no horizonte: um
novo homem. A morte da experiência não deve ser lamentada: se a cultura tem sido a
dos vencedores, se a tradição é tradição da opressão, se o resultado da civilização foi a
guerra, então a solução seja talvez a barbárie, um conceito novo e positivo de barbárie:
os novos bárbaros, em oposição aos civilizados, contentam-se com pouco e podem
começar de novo. Barbárie? Sem dúvida, mas uma nova barbárie que permitirá a este
novo homem assumir sua nudez e construir um mundo novo.

Nova barbárie da qual Benjamin pouco fala em “O narrador”, talvez pelo fato
de a barbárie nazista ter levado às últimas consequências essa desumanização e des-
personificação: a impensável barbárie real, na qual desaparece o homem enquanto tal,
para dar lugar ao puríssimo ariano, interrompe o desejo benjaminiano da “nova bar-
bárie”. Em “O narrador”, Benjamin não fala mais em barbárie, nem em apagar os ras-
tros ou fazer tábula rasa do passado, mas detém-se mais demoradamente no conceito
de experiência, desta vez, pensado sob o prisma de um gênero literário: a narração, em
oposição ao romance clássico. Nesse texto, em que analisa a obra de Nikolai Leskow,
Benjamin lamenta o fim da narração. Assim como em “Experiência e pobreza” a pala-
vra emudece na voz do ancião às portas da morte, também se cala a voz do narrador:
“a arte de narrar caminha para o fim” (Benjamin, 1985b, p. 57). E, com isso, “uma
faculdade, que nos parecia inalienável, a mais garantida entre as coisas seguras, nos [é]
retirada. Ou seja: a de trocar experiências.” (Ibid.). Após esta constatação, Benjamin
retoma quase ipsis litteris o trecho de “Experiência e pobreza”, no qual dizia que este
silêncio é fruto da experiência da Primeira Guerra, experiência incomunicável, que
silenciou os que voltaram do campo de batalha.

A experiência (Erfahrung) anda de boca em boca, remetendo mais à tradição oral


do que à escrita, tradição oral que se emudeceu nas trincheiras da Primeira Guerra, mas
que ouvidos sensíveis podem reconhecer nas histórias contadas pelo marinheiro mercante
ou pelo lavrador sedentário, “representantes arcaicos” dos narradores: o marinheiro volta

45
de suas longínquas viagens com algo para contar, e o povo quer ouvi-lo, mas o lavrador
também conhece as histórias e tradições da sua terra. A esse respeito, lembra Jeanne-Marie
Gagnebin que “a palavra Erfahrung vem do radical fahr – usado no antigo alemão no seu
sentido literal de percorrer, de atravessar uma região durante uma viagem” (Gagnebin,
1994, p. 66) . Aquele que viaja, no espaço ou no tempo, este é o autêntico narrador, que
transmite aos seus ouvintes o conhecimento do passado ou do lugar distante, superando,
por assim dizer, a distância espacial e/ou temporal. A experiência, material da narração, é
assim compartilhada pelo narrador e seus ouvintes. Mas faltam hoje narradores e ouvintes:
não só a arte de narrar caminha para o fim, mas também a arte de escutar. A questão da
escuta é fundamental no processo de transmissão da experiência: sem a escuta, as palavras
perdem-se ao vento, e as narrativas não são mais retidas, não podendo mais ser recontadas
(Benjamin, 1985b, p. 62).

A experiência (Erfahrung) diz respeito a um conhecimento transmitido de gera-


ção em geração, vitalmente ligado a uma tradição que garante uma linguagem e uma me-
mória comuns, a partir das quais as experiências podem ser compartilhadas. A experiência
funda-se na tradição, e ambas só encontram possibilidade de existência na comunidade,
onde a unidade é dada a partir do comum, no compartilhar de um de uma palavra comum
a quem fala e a quem ouve. Ninguém mais sabe contar, ninguém mais sabe escutar: fim
da narração, perda da experiência. “Mas este é um processo que vem de longe (…) uma
manifestação secundária de forças produtivas históricas seculares que aos poucos afastou a
narrativa do âmbito do discurso vivo” (Benjamin, 1985b, p. 59). Forças produtivas históri-
cas seculares? O capitalismo, evidentemente! Embora Benjamin não mencione aqui direta
e explicitamente o capitalismo, não há como evitar a aproximação entre o fim da experi-
ência e o triunfo do individualismo, com sua vivência (Erlebnis), triunfo este inaugurado
por uma nova concepção do homem-indivíduo, homem da liberdade individual, da livre
concorrência, da privacidade e subjetividade.

Com a hegemonia do indivíduo e da privacidade, assiste-se ao desaparecimento da


comunidade; a tradição perde-se no caminho, e a experiência coletiva dá lugar à vivência expe-
rimentada na solidão, privada e individualizada – Erlebnis. Aos indivíduos, só resta a possibili-
dade da vivência e da subjetividade. Tal processo, iniciado no século XVIII, pode ser observado
na literatura (romance clássico), na arquitetura (valorização do interior da casa e dos objetos
pessoais, privatização do espaço de cada membro da família), nas ciências (surgimento da psi-
cologia e psicanálise – lugar privilegiado da subjetividade). O ponto de referência é agora o ‘eu-
-indivíduo’ e não mais o ‘nós-coletivo’. No vazio da experiência que diz respeito à comunidade,
instala-se a vivência onde triunfa o indivíduo. O homem moderno fecha-se sobre si mesmo:
o individualismo condenou o homem não somente ao esquecimento, mas também à solidão.

Dois textos e uma mesma problemática: a pobreza da experiência e a substi-


tuição desta pela vivência, a fragmentação da comunidade e o surgimento da privaci-
dade, o esfacelamento da tradição diante da busca incessante da novidade, a impos-
sibilidade de uma palavra transmissível, a morte da narração, a perda da memória e

46 m arcelin a | hit et nunc


da história. Dois textos e duas atitudes diferentes diante da mesma problemática: em
“Experiência e pobreza”, apagar e negar o passado, fazer dele tábula rasa e começar de
novo, criar novos valores, um novo homem, dirigir o olhar para o futuro; nas linhas
ou entrelinhas de “O narrador”, um certo tom nostálgico e saudosista parece glorificar
um passado morto, perdido para sempre. O que fazer com esta perda? Como viver esse
luto? Esquecer os mortos e começar de novo, ou chorar melancolicamente sobre eles?
Nas teses “Sobre o conceito da história”, uma alternativa toma forma: ‘salvar’ o passa-
do, acordar os mortos. Alternativa que exige uma nova postura em relação ao passado,
portanto, uma nova concepção de história e de tempo; esta instigante filosofia da his-
tória que Benjamin propõe pode ser pensada a partir de uma famosa metáfora: a do
Anjo da história.
Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um
anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente.
Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O
anjo da história deve ter este aspecto. Seu rosto está dirigido para o
passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma
catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as
dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e
juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-
se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa
tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira
as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa
tempestade é o que chamamos progresso. (Tese 9).

Esta imagem do Anjo na gravura de Paul Klee, adquirida por Benjamin em 1921, tor-
nou-se, de certa forma, sua marca registrada – pode-se dela extrair a sua filosofia da
história: esta não é uma cadeia de acontecimentos rumo ao progresso, mas uma catás-
trofe, um amontoado de ruínas, de fragmentos e despojos.

O progresso é uma tempestade destrutiva e avassaladora que aprisiona e arrasta


consigo o Anjo. A crítica do progresso, noção tão cara ao pensamento ocidental, particu-
larmente desde o Iluminismo, constituirá o ponto de partida da filosofia benjaminiana da
história. O progresso só pode ser pensado se o tempo é concebido numa linha temporal
contínua, aonde vêm se inscrever os acontecimentos, “no interior de um tempo homogê-
neo e vazio” (Tese 13). Benjamin identifica essa concepção de tempo como sendo funda-
mento de uma determinada visão de história: a do historicismo, principal alvo de crítica
desse ensaio. O historicismo, filosofia da história preponderante na época, opôs-se à filoso-
fia hegeliana da história. Dilthey, um dos representantes mais expressivos do historicismo,
certamente opõe-se a Hegel em inúmeros aspectos, mas preserva, em sua concepção de
história, os três pilares, por assim dizer, da Razão histórica: a ideia de continuidade, de
causalidade e de progresso, três noções que encontrarão em Benjamin um crítico feroz.

Na visão historicista, cada momento histórico adiciona-se ao seguinte, e os fatos ins-


crevem-se num tempo que é sempre igual, sucedendo-se cronologicamente numa linha tem-

47
Paul Klee
1879, Munchenbuchsee, Suiça - 1940, Muralto, Suiça
Angelus Novus, 1920
Oil transfer and watercolor on paper
31,8 x 24,2 cm
Presente de Fania e Gershom Scholem, Jerusalem; John Herring, Marlene e Paul
Herring, Jo Carole e Ronald Lauder, Nova York © VG Bild-Kunst, Bonn

48 m arcelin a | hit et nunc


poral contínua (Tese 17). É precisamente tal linha que permite conceber a história como palco
de um progresso, pois a ideia de progresso pressupõe a de continuidade temporal. E, par a par
com elas, também caminha a noção de causalidade histórica, em que, na sucessão de eventos,
o que ocorre antes é causa do que vem depois: este tipo de causalidade, onde o antes determi-
na o depois, é diretamente retirado do modelo da física newtoniana, que se apresentou como
paradigma científico a ser transposto nas ciências humanas. Benjamin critica tanto a noção de
um progresso na história, quanto este modelo de uma causalidade estreita e embotada que, se
pode servir para a física newtoniana, não pode ser transposto para o plano da história: aqui a
cronologia não garante de modo nenhum a causalidade.

O Angelus Novus não se deixa seduzir por essa causalidade: “Onde nós vemos
uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavel-
mente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés” (Tese 9); tampouco pelo progresso
na história, que o arrasta, malgrado seu desejo, mas ao qual ele dá as costas. “Essa tem-
pestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto
o amontoado de ruínas cresce até o céu.” (Tese 9). A tempestade arrasta o Anjo para
longe: aqui está claramente figurada a impotência do Anjo, cuja força é menor do que
a do progresso. No entanto, num certo sentido, esse afastamento figura não só uma
impotência, mas também uma necessidade: a necessidade do Anjo de afastar-se de tal
perspectiva, na qual a história é uma cadeia de acontecimentos, inscrita na continui-
dade e linearidade do tempo.

Mas a crítica de Benjamin não para aí: pois é esta mesma concepção de tempo
que permite ao historicista um mergulho no passado, de tal modo que ele o capte em
sua integridade ou “como ele de fato foi” (Tese 6). O historicista acredita que há uma
verdade do passado que pode ser objetivamente apreendida hoje. A atividade essencial
do intérprete é sua capacidade de compreensão, isto é, de transportar-se para aquele
momento passado, colocando-se no lugar do outro, identificando-se com ele, tentando
compreendê-lo como de fato foi, sem que o presente o atrapalhe nessa empreitada, em
que o presente, de certa forma, se anula diante do passado para recuperá-lo enquanto
tal. Esta suposta empatia passa ao largo do verdadeiro diálogo, na medida em que
anula as diferenças entre seus interlocutores: o passado, que supostamente deveria ser
ressuscitado, é na realidade negado em sua alteridade e diferença. Ao mesmo tempo, o
presente é colocado em suspensão: anula-se a presença daquele que escreve a história.
Mistificadora empatia que, anulando a presença daquele que escreve a história, anula
também sua capacidade de autorreflexão crítica. O resultado de tal empatia só pode
ser empatia com o vencedor (Tese 7). O método historicista de compreensão mostra-
-se, assim, menos inocente do que parece, pois sua pretensa neutralidade faz com que
compactue com a história dos vencedores, a história oficial da qual não constam a dor
e o sofrimento dos vencidos e/ou oprimidos:
Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que
os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados
no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses
despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista histórico
os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que
ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror.
Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que
os criaram, como à corveia anônima dos seus contemporâneos. Nunca
houve um documento da cultura que não fosse também um monumento
da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é,
tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida
do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa
escovar a história a contrapelo. (Tese 7)

Os bens culturais são despojos que nascem do sofrimento da “corveia anônima”, dos
“corpos prostrados no chão”. Por isso, como já estava indicado no texto “Experiência e
pobreza”, a cultura, inseparável do processo de sua transmissão, é barbárie. Por isso o
Angelus Novus não vem apenas como redentor, aquele que gostaria de juntar os cacos
e fragmentos da história, mas também como destruidor.

A história é uma catástrofe, um amontoado de despojos e ruínas que somente


o Anjo enxerga. O Anjo, que tudo pode ver, ou ao menos ver melhor que os humanos,
vê a barbárie, recusando-se a compactuar com uma enganosa empatia, que cria uma
falsa história de conquistas e vitórias, história construída sobre “os corpos dos que es-
tão prostrados no chão”. Assim como o Anjo, nas antípodas da empatia, com distância
e desconfiança, deve situar-se o historiador.

Desviar-se, distanciar-se, desconfiar, duvidar da cultura triunfante e da história ofi-


cial: Benjamin propõe a escrita de uma outra história que ponha a nu a catástrofe que constitui
a cadeia de acontecimentos da história oficial, uma contra-história, uma história na contramão
ou “a contrapelo”, uma história não contada, não dita, das falhas e das lacunas, uma história
que recupere a tradição dos vencidos e dos oprimidos, que dê voz ao sofrimento dessa “corveia
anônima”. Não se trata mais de começar de novo e apagar os rastros, como em “Experiência e
pobreza”, mas de reescrever uma história mal contada, de “arrancar a tradição ao conformismo,
que quer apoderar-se dela” (Tese 6), de salvá-la do perigo de ser instrumento da classe domi-
nante, de “escovar a história a contrapelo”, na contramão do progresso, de costas para ele.

Não se trata de substituir uma história por outra, escrevendo a história dos ven-
cidos, como negativo da fotografia da história oficial: não somente é outra história que
deve ser contada, mas, principalmente, e esse ponto é essencial, esta nova história deve
ser contada de um outro jeito: a partir do “tempo de agora” (Jetztzeit). “Articular histo-
ricamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’” (Tese 6). Não há um
tempo passado puro, mas um passado recriado, ou melhor, capturado pelo presente: “A
verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem
que relampeja irreversivelmente no momento em que é reconhecido”. (Tese 5). O passado
só pode ser reconhecido no presente, enquanto se torna presente hoje.

50 m arcelin a | hit et nunc


A reconstrução do passado só é possível a partir do presente de quem a es-
creve, a imagem do passado toma forma sob a pena do historiador, através das narra-
tivas e/ou dos discursos que dele nos fazemos no presente. É no e pelo presente que
se reconstroem as imagens do passado. A história é entendida como reconstrução do
passado a partir dos vestígios – restos, cacos, ruínas e fragmentos – que a humanidade
legou ao presente.

Na escrita dessa história, o presente deixa de ser um ponto de transição no


fluxo contínuo do tempo: torna-se momento privilegiado a partir do qual se escre-
ve a história, momento que se destaca nesse fluxo, momento em que o tempo para,
imobiliza-se, um “tempo saturado de ‘agoras’” (Tese 14), que rompe o tranquilo e
homogêneo curso de um tempo monótono: o instante presente faz “saltar pelos ares o
continuum da história”. (Tese 16).

Este tempo que para, explodindo o continuum da história, é o tempo do


Anjo que “gostaria de deter-se”, gesto angelical, mas também gesto político e re-
volucionário; como os revolucionários franceses evocados na Tese 15, Benjamin
também dispara tiros contra os relógios e quer parar o tempo. Com este gesto,
“salto de tigre em direção ao passado” (Tese 14), uma outra história vem à tona.
O salto (Sprung) de tigre é salto do passado que irrompe no presente, é “o surgi-
mento (Ursprung) do passado no presente” (Gagnebin, 1994, p. 111) e, nesse sur-
gimento, criação. Se o historiador materialista escreve no e pelo presente, convoca
um passado que é transformado pelo presente, cria um novo passado no presente
e, nesse sentido, inscreve nele novas possibilidades. E é aqui que reside uma das
mais fecundas intuições de Benjamin: o inacabamento de um passado em aberto,
à espera de um presente que o liberte. O passado não é apenas o que passou, mas
nele está contido também, e principalmente, o que poderia ter sido e não foi.

Benjamin insiste num presente que libere as possibilidades não aconteci-


das do passado. O que poderia ter sido e não foi ainda está aí, convocando o pre-
sente: o passado não morreu, mas contém nele elementos inacabados que se diri-
gem ao presente, seu inacabamento pede ao presente uma continuação, o passado
oprimido pede ao presente sua libertação: cabe a este presente redimi-lo, salvá-lo,
ressuscitá-lo, cabe a este presente concretizar o desejo do Anjo de “acordar os mor-
tos e juntar os fragmentos”. Como o Anjo, o historiador materialista deve fazer
face a essa catástrofe, deter-se diante desse amontoado de ruínas que compõe a
história oficial e juntar seus cacos ou fragmentos, acordar os mortos, pois é a par-
tir deles, e não das gerações futuras, “dos passados escravizados, e não dos descen-
dentes liberados” que se faz possível a salvação (Tese 12). A história deve ‘salvar’
o passado: o Anjo está de costas para o futuro, seu olhar dirige-se para o passado,
liberando nele as possibilidades que não puderam cumprir-se, reacendendo nele
“as centelhas da esperança” (Tese 6).

51
Parar o tempo, ‘salvar’ o passado, acordar os mortos, juntar os fragmentos: eis
uma definição bastante inusitada da tarefa do historiador materialista, que só pode ser
compreendida à luz da primeira Tese: a aliança entre teologia e materialismo histórico.
Um autômato ou fantoche joga xadrez e ganha sempre: suas jogadas são conduzidas,
através de cordéis atados à sua mão, por um anão corcunda, escondido na mesa do
tabuleiro. “O fantoche chamado ‘materialismo histórico’ ganhará sempre. Ele pode
enfrentar qualquer desafio, desde que tome a seu serviço a teologia” (Tese 1): a teologia
é este anão. Pode-se imaginar a celeuma que causou tal metáfora: os amigos da teolo-
gia a dizer que ela conduz o fantoche, enquanto os marxistas a ostentar que ela está a
serviço do materialismo. Nem uma nem outra, mas ambas.

É apenas no apêndice do final do texto que Benjamin especifica a que tipo de


teologia se refere: à teologia judaica, que ele conheceu através de seu amigo Gershom
Scholem. Desta, Benjamin retém a ideia, central no judaísmo, da redenção e do mes-
sianismo. Sabe-se, a partir dos estudos de Gershom Scholem, que não há uma concep-
ção única e hegemônica do Messias. Mas, para Benjamin, esse Messias tão esperado
surge inesperadamente, a qualquer momento. O que está indicado em formulações
como: “imobilização messiânica dos acontecimentos” (Tese 17); ou então: o “‘agora’,
modelo do messiânico” (Tese 18); ou ainda: o “‘agora’ no qual se infiltram estilhaços
do messiânico” (Apêndice 1); como também: “Cada segundo era a porta estreita pela
qual podia penetrar o Messias”. (Apêndice 2). Tantas formulações que indicam clara-
mente que o Messias de Benjamin interrompe o curso da história e, nesse surgimento
abrupto, para o tempo. O tempo messiânico não pode mais ser concebido sob o signo
de uma cronologia evolutiva, mas deve ser pensado enquanto interrupção e imobili-
zação do fluxo temporal.

Se, entretanto, para os judeus a era messiânica é esperança depositada


no futuro, Benjamin parece, de certo modo, antecipar tal esperança no hoje, no
agora. O Messias benjaminiano não se encontra em um futuro distante: é o pre-
sente que, com sua frágil força messiânica, deve liberar o passado, reacendendo a
esperança que nele não pôde ser cumprida. O ‘hoje’ é modelo do messiânico, nele
infiltraram-se estilhaços do messiânico: o “tempo de agora” é um tempo messiâni-
co, que deve olhar para o passado, de costas para o futuro, como o Angelus Novus.
“Sabe-se que era proibido aos judeus investigarem o futuro. Ao contrário, a Torá e
a prece se ensinam na rememoração.” (Apêndice 2). Não é o futuro que preocupa o
homem bíblico: seu olhar dirige-se ao passado, mais importante que o futuro, pois
é no passado que se encontram seus ancestrais, que estiveram mais próximos de
Deus. Certamente, para Benjamin, tal olhar não se compraz apenas contemplan-
do o passado: não se trata de a ele querer voltar, mas de convocá-lo no presente
através da rememoração, Eingedenken, transformando-o e libertando-o. A utopia
benjaminiana não se inscreve num futuro longínquo, mas é tarefa do presente em
relação ao passado.

52 m arcelin a | hit et nunc


É assim, inspirado pelo judaísmo, que Benjamin opera uma inversão ou
reorientação temporal – onde passado, presente e futuro não se sucedem como nos
relógios, mas são instantes únicos e separados – inaugurando uma descontinuidade
temporal, em que se destaca o presente. Por isso, o historiador é um profeta às avessas
que, em vez de olhar para o futuro, tem a missão de convocar “os antepassados escra-
vizados, e não os descendentes liberados”. (Tese 12). Em consonância com a crença
judaica da ressurreição dos mortos com a vinda do Messias, o Anjo gostaria de deter-se
para “acordar os mortos”: Benjamin quer aqui dar voz aos mortos, aos antepassados
escravizados: “Os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse ini-
migo não tem cessado de vencer”. (Tese 6). O inimigo é o conformismo para o qual a
história é história dos vencedores. Os mortos poderão contar-nos uma outra história
que não a oficial, mas essa outra que morreu com eles e à qual o “agora messiânico”
deve dar vida. Gesto revolucionário, sem dúvida, aliás, duplamente revolucionário:
parece haver, nessa metáfora, mais do que a convocação da escrita de uma outra his-
tória, a introdução de um elemento absolutamente inimaginável, absolutamente novo
no coração da utopia benjaminiana. Ressuscitar os mortos: o que pode haver de mais
radicalmente impensável do que esta subversão absoluta na ordem natural das coisas?
Com esta metáfora, Benjamin sublinha a novidade absoluta que caracteriza cada ins-
tante, novidade que o historiador materialista deverá trazer à vida.

Mas o historiador, assim como o Anjo, quer também “juntar os fragmentos”,


ou seja, restaurar o que foi quebrado, reencontrar uma harmonia perdida, harmonia
que seria recuperada no fim dos tempos. Tal recolhimento não desemboca necessaria-
mente na reedição de um fim igual ao início: a harmonia do fim não corresponde à
harmonia original e de outro modo não poderia ser, haja vista o peso que o presente
tem na filosofia da história de Benjamin. A redenção seria “correção dos erros do pas-
sado”, mas também “aparição do novo”, e estes dois movimentos se efetuam no e pelo
presente. A retomada do passado pelo presente possibilita a reparação, reconstrução,
reunião de pedaços dispersos e disseminados, dos restos e cacos da história, inscreven-
do, nessa própria retomada, a novidade radical que promete o futuro em cada instan-
te do presente. Mas o Anjo também é destruidor. A destruição encontra-se presente
não só no modo como Benjamin concebe a história, um “amontoado de ruínas”, mas
também no advento da era messiânica: “O Messias”, diz ele, “não vem apenas como
redentor, mas também como vencedor do Anticristo”. (Tese 6).

Anjo messiânico apocalíptico, restaurador e utópico, mas também, e disto


não se pode esquecer, frágil e impotente: olhos escancarados, boca dilatada, asas aber-
tas que não pode fechar, arrastado pela tempestade. Benjamin já tinha apontado nossa
“frágil força messiânica” (Tese 2), mas aqui a fragilidade converte-se em impotência.
E, assim, nasce novamente a dúvida no coração feliz de quem se achou capaz de ‘salvar’
o passado, última alternativa para aquele que não queria nem negá-lo com o coração
leve, nem sobre ele chorar com o coração cheio de saudades. Se é verdade que o “inimi-
go não tem cessado de vencer” (Tese 6), também é verdade que “O fantoche chamado

53
‘materialismo histórico’ ganhará sempre. Ele pode enfrentar qualquer desafio, desde
que tome a seu serviço a teologia”. (Tese 1). Trata-se de uma luta: de um lado, o Mes-
sias, de outro, o Anticristo. Por isso certamente ‘salvar’ o passado não é tarefa que se
possa deixar ao sabor do acaso, mas decisão ética e política. É isto que Benjamin tem
a nos ensinar…

Refe r ê n c i a s b ib liográficas
BENJAMIN, Walter. “Experiência e pobreza”. In: Obras escolhidas, volume I, Magia
e técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense,
1985a.
. “O narrador: Observações sobre a obra de Nikolai Leskow”. In: Benja-
min, Adorno, Horkheimer, Habermas. Coleção Os pensadores. Tradução de Modesto
Carone. São Paulo, Abril Cultural, 2ed.,1983. Há também a tradução de Sérgio Paulo
Rouanet, in: Obras escolhidas, volume I, Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Bra-
siliense, 1985b.
______________. “Sobre o conceito da história”. In: Obras escolhidas, volume I, Magia e
técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. Há
também a tradução de Jeanne-Marie Gagnebin e Marcos Luiz Muller, in: Michael Löwy.
Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.
GAGNEBIN, Jeanne-Marie. “Prefácio: Walter Benjamin ou a história aberta”. In: Walter
Benjamin, obras escolhidas I, Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
_____________________. Walter Benjamin: Os cacos da história. São Paulo: Brasilien-
se, Coleção Encanto Radical, 1982.
_____________________. História e narração em W. Benjamin. Campinas, São Paulo:
Fapesp, Perspectiva, 1994.
MOSÈS, Stéphane. L’Ange de L’Histoire: Rosenzweig, Benjamin, Scholem. Paris: Seuil,
1992.
REHFELD, Walter. Tempo e religião: A experiência do homem bíblico. São Paulo: Edusp,
Perspectiva, 1988.
SCHOLEM, Gershom. “Pour comprendre le Messianisme Juif ”. In: The Messianic Idea
in Judaism and other Essays on Jewish Spirituality. Nova York: Shocken Books, 1971.
Tradução francesa de Bernard Dupuy, Le Messianisme Juif: Essais sur la Spiritualité du
Judaïsme. Paris: Presses Pocket, Calmann-Lévy, 1974.

54 m arcelin a | hit et nunc


Cristina Ribas
CO L AG E NS

55
C A D E R N O DA A R T I S TA : C R I S T I N A R I B A S
Há pouco mais de um ano, resolvi voltar para algumas imagens que pareciam
inócuas em meu arquivo pessoal de negativos. O corte da tesoura abre uma brecha
como espaço novo nas fotografias de construções destruídas, feitas cerca de dez
anos atrás. Com o projeto Protótipos/Prototypes, convidei pessoas para realizarmos
colagens. Usamos as imagens de meu arquivo pessoal, assim como convido os par-
ticipantes a trazerem imagens de seus repertórios visuais. Conversas acompanham
a formação de novos cenários, lugares, paisagens e, logo, situações novamente in-
classificáveis, oscilantes entre realidades e tempos históricos distintos. Há imagens
de guerra (bombardeios aéreos e quarteirões inteiros destruídos), demolições e
reconstruções, escavações arqueológicas; operações que deformam as cidades, tais
como a “regeneração” de cidades europeias.

Para marcelina | hic et nunc, somaram-se imagens de outra ordem (ou outro
arquivo): resolvi usar o mesmo procedimento da colagem ou montagem para foto-
grafias já amassadas de situações de exposição de meu trabalho como artista, como as
instalações e objetos que, dispostos nos ambientes, desenham sombras. O espaço da
imagem, aqui “explodido”, destaca a estrutura de cada elemento. Com os fragmentos,
começa a surgir uma composição móvel de imagens. E a câmera fotográfica reaparece
como ferramenta para registrar montagens temporais. No movimento das mãos que
mixam os recortes, fica em aberto o que será a próxima “colagem”.

56 m arcelin a | hit et nunc


Recentemente fiquei presa, e ao mesmo tempo solta, entre dois textos de Wal-
ter Benjamin: “Teoria da distração” e “O caráter destrutivo”, textos-anotação que se
tornam territórios, induzindo às pequenas imagens um vazio repleto de contexto; de
certa maneira forçando uma vulgaridade e sugerindo novas consignações e constela-
ções. Com as sobras de recortes de fotografia, pergunto: há “fotografia” que se refaz?

Rio de Janeiro, setembro/outubro de 2010

Referências bibliográficas
ALBUQUERQUE, Fernanda. “Sobre arquivos vivos e outras emergências”. Número
Nove (revista), São Paulo, dezembro de 2006, pp. 14-16.
OLIVA, Fernando. “As paredes estão ruindo ou estão sendo pintadas?” Número Quatro
(revista), São Paulo, 2004, p. 12.
SANTOS, Alexandre dos. “Da cidade como resposta à cidade como pergunta: a foto-
grafia como dispositivo de representação/apresentação do espaço urbano”. In: SAN-
TOS, Alexandre dos e SANTOS, Maria Ivone dos (orgs.). A fotografia nos processos
artísticos contemporâneos. Porto Alegre: Unidade Editorial SEC, editora da UFRGS,
2004, pp. 38-60.

57
À sombra da teo ria crítica
Vinicius Spricigo*

Palavras-chave Resumo: O artigo discute a questão da autonomia da arte,


Walter Benjamin; aproximando o pensamento de Vilém Flusser à teoria crítica da
Vilém Flusser; Escola de Frankfurt, pioneira ao trazer a cultura e as novas mídias
teoria crítica; para o campo filosófico. Através da “filosofia da fotografia” de Flusser,
teoria da pode-se repensar a politização da arte nos termos colocados por
vanguarda; Walter Benjamin. No contexto atual de crise das imagens técnicas,
autonomia da arte. pode a arte (de vanguarda) estar à frente e seu tempo?

Keywords: Abstract: The article discusses the autonomy of art approaching


Walter Vilém Flusser’s thought to the critical theory of the Frankfurt School,
Benjamin; Vilém a pioneer in bringing culture and new media to the field of philosophy.
Flusser; critical Through Flusser’s “philosophy of photography,” it is possible to rethink
theory; avant- the politicization of art in the terms set by Walter Benjamin. In the
garde theory; current context of crisis of the technical images, can (avant-garde) art
autonomy of art. be ahead of its time?

* Vinicius Spricigo é doutor pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de


São Paulo e ex-editor do “Fórum Permanente: Museus de arte, entre o domínio público e
privado”. Foi pesquisador visitante no Royal College of Art (Londres, 2007) e no GAM – Arte
Global e o Museu, um projeto do ZKM – Centro de Arte e Mídia (Karlsruhe, 2008).
Computadores fazem arte
Artistas fazem dinheiro
Computadores avançam
Artistas pegam carona
Cientistas criam o novo
Artistas levam a fama
(Fred Zeroquatro)

[…] desde que o critério de autenticidade não é mais aplicável à produção artística, toda a
função da arte fica subvertida. Em lugar de se basear sobre o ritual, ela se funda, doravante,
sobre outra forma de praxis: a política.
(Walter Benjamin)

O argumento central do ensaio “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”1


está baseado na ideia de que uma arte de vanguarda, por situar-se numa época de crise, se-
ria capaz de antecipar um tipo de “experiência” que seria produzida posteriormente, fruto
de uma nova técnica. Walter Benjamin afirma que o dadaísmo já requeria do espectador
uma recepção distraída, própria do público do cinema. Entretanto, como aponta Peter
Buerger em sua crítica à teoria estética benjaminiana, essa colocação fragiliza a tese central
de que as mudanças na técnica de (re)produção das imagens reverberam na relação entre
a obra e o público2. Como o próprio Benjamin identifica, as transformações no sistema da
arte precederam o advento do cinema. Desse modo, não seria mais prudente admitirmos
que a mudança na recepção, que o filósofo alemão identificou, não seria mais uma de uma
série de transformações que aconteceram no século XIX?

Consolidação do capitalismo, revolução nos meios de transporte, revoluções


científicas e sociais, desencantamento da tradição cultural, para citar algumas. Assim, o
determinismo tecnológico e o pioneirismo artístico dão espaço a uma compreensão das
mudanças sociais, culturais e tecnológicas como um processo complexo e contraditório,
impossível de ser explicado pela velha noção historicista de causa e efeito. Apesar dos li-
mites da teoria estética proposta por Benjamin e do conservadorismo do conceito de arte
de Theodor Adorno e Herbert Marcuse, a teoria crítica da Escola de Frankfurt ainda é
considerada marco teórico fundamental para o estudo da arte na sociedade contemporâ-

1 No ensaio, Walter Benjamin identifica a secularização do campo artístico na perda da “aura” da obra arte. O objeto
artístico que primeiramente se prestava ao culto, e encontrava-se sempre fora do alcance do espectador, gradualmente
vai se desprendendo do seu significado religioso e torna-se acessível a todos, através da sua reprodutibilidade técnica.
Walter Benjamin, “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural,
1975, pp. 10-34.
2 Peter Buerger, Teoria da vanguarda. Lisboa: Vega, 1993.

65
nea, abarcando questões como a massificação da cultura, transformações na experiência
estética, reprodução da obra de arte, autonomia e função social da arte, entre outras.

O advento do fascismo levou os intelectuais da Escola de Frankfurt a cunhar um


pensamento crítico à dura realidade vivida, cujo inconformismo perdura até os dias de
hoje. Além disso, os escritos desses autores são importantes textos de época que auxiliam
na compreensão do pós-guerra e da Guerra Fria, contexto histórico das neovanguardas e
do surgimento das tecnologias digitais. Assim, conceitos resgatados das décadas de 1960 e
70 podem ser utilizados como fundamentos para uma análise crítica das proposições artís-
ticas atuais. Nesse sentido, uma determinada experiência resgatada do passado serve-nos
como parâmetro para uma reflexão crítica acerca do discurso atual dos artistas e críticos
sobre a chamada “virada midiática” da arte contemporânea.

Contudo, não podemos esquecer o caráter “combativo” das teses apresentadas


por Walter Benjamin sobre a obra de arte na época das suas técnicas de reprodução: diante
da estetização da política praticada pelo fascismo, o filósofo alemão propôs a politização
da arte. Benjamin tinha em vista combater um inimigo: o fascismo. O “tempo de agora” de
Benjamin, possibilidade de redenção, de reviver a revolução diante do fascismo, significa
ainda alguma coisa numa época marcada pelo niilismo pós-vanguardista?

Hoje, na ausência de um inimigo identificável, defrontamo-nos com a au-


tonomia dos “aparelhos”, a espetacularização desumanizante dos meios de massa, a
impossibilidade da poesia e da política na arte. O final da barbárie do fascismo, além
de calar a música alemã, abriu espaço para um “reencantamento” da cultura. Retorno
de uma “aura”, agora “midiática”, para os bens culturais.

Os entusiastas das novas tecnologias adivinham o futuro construído pelos


aparelhos. Esse futuro, para eles, é uma imagem mágica. Questiona Flusser: “a crítica
pode ainda desmagicizar a imagem?” O “exorcismo do exorcismo”?3 O “caráter com-
bativo” do trabalho de Flusser consiste em criticar essa “aura midiática” que envolve a
produção estética contemporânea e, consequentemente, questionar uma perspectiva
histórica que se baseia nesse “reencantamento” da “cultura”. Essa reflexão sobre a arte
e a cultura atuais abre também a possibilidade de uma reflexão sobre o esvaziamento
dos sonhos utópicos das vanguardas artísticas e sobre o lugar e o papel da crítica no
cenário contemporâneo.

É possível uma politização da arte contemporânea? A perspectiva é crítica. As


principais correntes que abordam as influências das novas tecnologias na cultura o fazem
de tal modo que o processo de desenvolvimento tecnológico é algo previsível e inevitável.
Segundo Walter Benjamin, essa é uma noção do tempo histórico como vazio e homogê-
neo4. O intuito desse autor é criticar essa visão histórica, adotando um outro conceito de
3 Vilém Flusser, Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2002, p. 59.
4 Walter Benjamin, “Sobre o conceito da história”. In: Obras escolhidas, volume I, Magia e técnica, arte e política: ensaios

66 m arcelin a | hit et nunc


tempo. Nesse outro tempo histórico, o fazer artístico é um ato, e não somente um gesto5.
Como ato, ele transforma o “tempo de agora”. O artista pode ser um dos francoatiradores
que, como comenta Benjamin, após a Revolução Francesa, atiraram nos relógios da torre
para fundar um tempo revolucionário.

Contudo, resta uma indagação: quem são os inimigos e os combatentes nos dias
de hoje? Numa época de perspectiva revolucionária, os intelectuais depositaram suas ex-
pectativas em classes revolucionárias. Primeiramente nas classes operárias, depois nos es-
tudantes e demais arautos da contracultura. Já o inimigo foi sempre o mesmo: a classe
dominante. Quem são esses personagens nos dias de hoje? Sobrou algum deles, quando o
avanço do capitalismo e da tecnologia atingiu seu estágio mais avançado?

Na concepção de Flusser, mesmo as classes dominantes são dominadas pelos apa-


relhos6. Serão os aparelhos então os grandes vilões? Numa visão adorniana, os aparelhos,
via indústria cultural, desumanizaram os indivíduos e dessublimaram a arte. Para Adorno
e Marcuse, o único combate contra esse monstro terrível é uma visão de arte que não possui
nenhuma ligação com a realidade e a história, uma arte como “grande recusa”7. Benjamin
e Flusser, apesar da visão desiludida e pessimista do presente, não se deixam dominar pela
melancolia. Ambos propõem novas formas de combate. Ambos através de teorias estéticas.
Benjamin pensa o cinema; Flusser, a fotografia. Essa vertente pode contribuir para o atual
campo de estudos sobre a mídia. No encontro das filosofias de Walter Benjamin e Vilém
Flusser – nos seus esboços de uma teoria estética – com as neovanguardas dos anos 1960 e
70, é possível construir uma reflexão crítica sobre a arte atual. Arlindo Machado já criou a
ponte entre o pensamento de Vilém Flusser e a arte midiática, para pensar criticamente o
papel “da intervenção artística numa época marcada pelo tecnocentrismo”8. Resta avaliar a
contribuição dos artistas no contexto atual para desfazer o encantamento das máquinas e a
dessublimação da arte, sem recairmos na visão do artista como “gênio criador” ou “arauto
da revolução”. Talvez o caminho não esteja somente na desconstrução do aparelho pelo
experimentalismo artístico, mas também no resgate das esperanças passadas. Somente a
esperança pode “apontar o caminho da liberdade”9 e reabilitar o impulso utópico de uma
arte experimental de vanguarda.

sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 223-232.
5 “Há um momento em que os gestos de ruptura dos artistas que não conseguem converter-se em atos (intervenções
eficazes em processos sociais) tornam-se ritos. O impulso originário das vanguardas levou a associá-las com o
projeto secularizador da modernidade: suas irrupções procuravam desencantar o mundo e dessacralizar os modos
convencionais, belos, complacentes, com que a cultura burguesa o representava. Mas a incorporação progressiva das
insolências aos museus, sua digestão analisada nos catálogos e no ensino oficial da arte, fizeram das rupturas uma
convenção. […] Não é estranho, então, que a produção artística das vanguardas seja submetida às formas mais frívolas
da ritualidade: os vernissages, as entregas de prêmios e as consagrações acadêmicas.” Nestor Canclini, Culturas híbridas:
Estratégias para entrar e sair da modernidade. 2 ed. São Paulo: Edusp, 2003. (Ensaios Latino-americanos, 1).
6 Vilém Flusser, op. cit.
7 Barbara Freitag, A teoria crítica: ontem e hoje. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1990.
8 Arlindo Machado, Repensando Flusser e as imagens técnicas. Disponível em: http://www.arteuna.com/critica/flusser.
htm. Acesso em: 29 set. 2003.
9 Vilém Flusser, op. cit., p. 76.

67
No livro A filosofia da caixa preta, que reúne “ensaios para uma futura filosofia
da fotografia”, Vilém Flusser, define as imagens como “superfícies que pretendem repre-
sentar algo [o mundo]. […] [As imagens] devem a sua origem à capacidade específica de
abstração que podemos chamar de imaginação. […] Imaginação é a capacidade de fazer e
decifrar imagens”10. A decifração das imagens, para o autor, ocorre num espaço interpre-
tativo – imagens são símbolos conotativos – e num tempo circular e mágico – o eterno
retorno: “O tempo que circula e estabelece relações significativas é muito específico: tempo
de magia […] No tempo de magia, um elemento explica o outro, e este explica o primeiro
[tempo circular]. O significado das imagens é o contexto mágico das relações reversíveis”11.
Esta magicização das imagens para o pensador tcheco é um problema, pois reverbera na
percepção que temos da realidade. As imagens que inicialmente deveriam representar o
mundo, na medida em que apresentam uma realidade mágica, impedem o acesso do ho-
mem ao mundo: “Imagens são mediações entre homem e mundo. […] Imagens têm o
propósito de representar o mundo. Mas, ao fazê-lo, entrepõem-se entre mundo e homem.
Seu propósito é serem mapas, mas passam a ser biombos. […] Podemos observar, hoje,
de que forma se processa a magicização da vida: ilustram a inversão da função imagética e
remagicizam a vida”12. Tal fenômeno é intitulado pelo autor de idolatria da imagem.

Quando esta alucinação (idolatria), que faz o homem acreditar que o mundo das
imagens é o mundo real, alcançou o seu ápice, “surgiram pessoas empenhadas no ‘relem-
bramento’ da função original das imagens, que passaram a rasgá-las, a fim de abrir a visão
para o mundo concreto escondido pelas imagens. […] Eis como foi inventada a escrita
linear. Tratava-se de transcodificar o tempo circular em linear, traduzir cenas em proces-
sos. Surgiu assim a consciência histórica, consciência dirigida contra as imagens”13. Flusser
propõe inicialmente uma oposição entre pensamento conceitual (escrita) e pensamento
imaginativo (imagem). A escrita teria o papel de conscientizar o homem da magicização
das imagens. Entretanto, o efeito de rasgar as imagens foi contrário ao pretendido, “ao in-
ventar a escrita, o homem se afastou ainda mais do mundo concreto quando, efetivamente,
pretendia dele se aproximar. […] Os textos, não significam o mundo diretamente, mas
através de imagens rasgadas”14. A oposição entre escrita e imagem se desfaz, porém, com
a magicização do texto: “Embora textos expliquem imagens a fim de rasgá-las, imagens
são capazes de ilustrar textos, a fim de remagicizá-los. Graças a tal dialética, imaginação
e conceituação que mutuamente se negam, vão mutuamente se reforçando. As imagens
tornam-se cada vez mais conceituais e os textos, cada vez mais imaginativos”15.

A magicização do texto resulta, para Flusser, numa textolatria “tão alucinató-


ria como a idolatria”16. Neste contexto de crise do texto, surgem as imagens técnicas:

10 Id., ibid., p. 7.
11 Id., ibid., p. 8.
12 Id., ibid., p. 9.
13 Id.
14 Id., ibid., p. 10.
15 Id., ibid.
16 Id., ibid., p. 11.

68 m arcelin a | hit et nunc


Trata-se de imagem produzida por aparelhos. Aparelhos são produtos da técnica
que, por sua vez, é texto científico aplicado. Imagens técnicas são, portanto, produtos in-
diretos de texto – o que lhes confere posição histórica e ontológica diferente das imagens
tradicionais. Historicamente, as imagens tradicionais precedem os textos, por milhares de
anos, e as imagens técnicas sucedem aos textos altamente evoluídos. Ontologicamente, a
imagem tradicional é abstração de primeiro grau: abstrai duas dimensões do fenômeno
concreto; a imagem técnica é abstração de terceiro grau: abstrai uma das dimensões da
imagem tradicional para resultar em texto (abstração de segundo grau); depois, recons-
tituem a dimensão abstraída, a fim de resultar novamente em imagem. […] Ontologi-
camente, as imagens tradicionais imaginam o mundo; as imagens técnicas imaginam os
textos que concebem imagens que imaginam o mundo. […]17

Por tomarmos as imagens técnicas como impressões automáticas do real sobre su-
perfícies, temos a impressão de que as imagens técnicas não precisam ser decifradas, o que torna
mais difícil decifrá-las. “O caráter aparentemente não simbólico, objetivo das imagens técnicas
faz com que seu observador as olhe como se fossem janelas, e não imagens. O observador con-
fia nas imagens técnicas tanto quanto confia em seus próprios olhos. […]”18

O autor questiona, no entanto, essa objetividade das imagens técnicas: “[…] as


imagens técnicas, longe de serem janelas, são imagens, superfícies que transcodificam pro-
cessos em cenas. Como toda imagem, é também mágica, e seu observador tende a projetar
essa magia sobre o mundo. […]”19

Criadas com o objetivo de substituir os textos, na medida em que estes ha-


viam se magicizado, e dar ao homem uma nova percepção do real, as imagens técnicas,
assim como havia acontecido com os textos, inverteram o seu papel inicial. Tornaram-
-se mágicas e, novamente, segregaram o homem do mundo.

Vemos, na argumentação de Vilém Flusser, uma cadeia de invenções frustra-


das, criadas pelo homem para aproximá-lo do mundo. Primeiramente as imagens que
tinham como objetivo representar o mundo, mas que se magicizaram e perderam tal
função pela idolatria. Depois, os textos, que tentaram combater a idolatria das ima-
gens e reaproximar homem e mundo, mas também falharam. Foram infectados pelas
imagens e se magicizaram. Finalmente as imagens técnicas, que surgiram para com-
bater a textolatria, mas não obtiveram êxito, em função de abstração de terceiro grau.

A magicização das imagens representa para Flusser um panorama apocalíptico


para a sociedade tecnocrática atual20. Desumanização, automaticidade e autonomia dos
aparelhos, programação mágica da sociedade, do comportamento e do pensamento, perda
da percepção do real e do “progresso” etc. Seria, porém, a arte atual capaz de desmagicizar

17 Id., ibid., p. 13.


18 Id., ibid., pp. 13-14.
19 Id., ibid., p. 16.
20 Id., ibid., pp. 61-70.

69
as imagens técnicas e reinserir a arte na vida cotidiana, alterando esse estado?

Arlindo Machado, numa leitura da obra de Vilém Flusser, acredita que cabe
justamente aos artistas tal labor:

A verdadeira tarefa da arte (e da filosofia que a ampara teoricamente) seria,


ainda segundo Flusser, se insurgir contra essa automação estúpida, contra essa robo-
tização da consciência e da sensibilidade, e recolocar as questões da liberdade e da
criatividade no contexto de uma sociedade cada vez mais informatizada e cada vez
mais dependente da tecnologia21.

Questionando sobre quais seriam as estratégias dos artistas nesta tarefa de


desmagicizar as imagens, Machado privilegia uma arte experimental; aquela que sub-
verte a lógica dos aparelhos, agindo, muitas vezes, no interior dessas caixas pretas que
são os aparelhos eletrônicos:

O que faz um verdadeiro criador, em vez de submeter-se simplesmente a um certo núme-


ro de possibilidades impostas pelo aparato técnico, é subverter continuamente a função da máquina
de que ele se utiliza, é manejá-la no sentido contrário de sua produtividade programada. Talvez se
possa até dizer que um dos papéis mais importantes da arte numa sociedade tecnocrática seja justa-
mente a recusa sistemática de submeter-se à lógica dos instrumentos de trabalho, ou de cumprir o
projeto industrial das máquinas semióticas, reinventando, em contrapartida, as suas funções e finali-
dades. Longe de deixar-se escravizar por uma norma, por um modo estandardizado de comunicar,
obras realmente fundantes na verdade reinventam a maneira de se apropriar de uma tecnologia22.

São pertinentes as questões colocadas pelo autor a respeito do modo como os


artistas (funcionários) permutam os “símbolos programáveis” dos aparelhos digitais.
Manipular programas e imagens técnicas a fim de subverter a lógica imposta pelos
aparelhos e produzir arte, utilizando-se de tais aparelhos, seria uma das maneiras de
a arte “apontar o caminho da liberdade”, “a única revolução ainda possível”, segun-
do Flusser. Contudo, para além do problema da produção das obras de arte, outras
questões urgentes sobre a função da arte numa época cada vez mais influenciada por
aparelhos também demandam a nossa atenção. Uma dessas questões seria justamente
sobre a autonomia da arte. É no contexto atual de crise das imagens técnicas que Vilém
Flusser pensa a autonomia da arte:
A invenção da imprensa e a introdução da escola obrigatória generalizaram
a consciência histórica; […] Tal conscientização se deu graças a textos
baratos […] Simultaneamente todos os textos tornaram-se mais baratos.
O pensamento conceitual barato venceu o pensamento mágico-imagético
com dois efeitos inesperados. De um lado, as imagens se protegiam dos
textos baratos, refugiando-se em guetos chamados ‘museus’ e ‘exposições’,
deixando de influir na vida cotidiana. De outro lado surgiram textos

21 Arlindo Machado, op. cit.


22 Id., ibid.

70 m arcelin a | hit et nunc


herméticos (sobretudo os científicos), inacessíveis ao pensamento
conceitual barato, a fim de se salvarem da inflação textual galopante.
Deste modo, a cultura ocidental se dividiu em três ramos: a imaginação
marginalizada pela sociedade [a arte], o pensamento conceitual hermético
[a ciência] e o pensamento conceitual barato [a moral barata do dia a
dia]. Uma cultura assim dividida não pode sobreviver, a não ser que seja
reunificada. A tarefa das imagens técnicas é estabelecer código geral para
reunificar a cultura. Mais exatamente: o propósito das imagens técnicas
era reintroduzir as imagens na vida cotidiana, tornar imagináveis os textos
herméticos, e tornar visível a magia subliminar que se escondia nos textos
baratos. Ou seja, as imagens técnicas deviam constituir denominador
comum entre conhecimento científico, experiência artística e vivência
política de todos os dias. Toda imagem técnica devia ser, simultaneamente,
conhecimento (verdade), vivência (beleza) e modelo de comportamento
(bondade). Na realidade, porém, a revolução das imagens técnicas tomou
rumo diferente: elas não tornam visível o conhecimento científico, mas o
falseiam; não reintroduzem as imagens tradicionais, mas as substituem;
não tornam visível a magia subliminar, mas a substituem por outra. Neste
sentido, as imagens técnicas passam a ser ‘falsas’, ‘feias’ e ‘ruins’, além de
não terem sido capazes de reunificar a cultura, mas apenas de fundir a
sociedade em massa amorfa.23

As imagens técnicas teriam potencial para reunificar as três dimensões autônomas da


sociedade moderna: a ciência, a moralidade e a arte. Vilém Flusser indica que as ima-
gens técnicas poderiam realizar o objetivo utópico das vanguardas participacionistas,
reinserir a arte na vida cotidiana. Não seria um dos papéis de uma vanguarda imagé-
tica, além daquele objetivo de experimentar com a lógica dos aparelhos, reaproximar
a arte da vida cotidiana? Poderíamos afirmar que o impulso utópico que motiva a arte
tecnológica contra a lógica do desempenho de uma sociedade tecnocrática é similar
àquele das vanguardas dos anos 1960 e 70? Seria a tentativa de reconciliar arte e vida
uma característica que marcou todo o espírito vanguardista do século XX?

As neovanguardas, seguindo uma trilha aberta pelas vanguardas históricas, e


dialogando com o surgimento das imagens técnicas, destituíram a obra de arte de sua
aura tradicional; a recepção dessas imagens dessacralizadas, desmagicizadas, não se
dava mais conceitualmente ou através da imaginação, mas ocorria no espaço e tempo
reais. A arte contemporânea não serve como mediação entre o homem e o mundo, mas
permite ao homem, através de uma experiência sensorial e descondicionada, descobrir
esse mundo encoberto pelas imagens. Numa sociedade tecnocrática regida pela lógica
do desempenho e pela mais-repressão, onde a realidade está encoberta pelas imagens
técnicas destituídas de seu sentido original, a arte participacionista rasga as imagens e
permite ao homem apreender o mundo, experimentá-lo, vivenciá-lo.

23 Vilém Flusser, op. cit., p. 18.

71
Entretanto, o impulso utópico das vanguardas artísticas se esvaneceu na me-
dida em que ela foi institucionalizada. O retorno da arte para os museus não impede
essa experiência do mundo, mas elimina a sua continuidade com a vida cotidiana. Ou
seja, a arte de vanguarda teve o poder de desmagicizar a imagem, e o fez; contudo, teve
o seu lugar no mundo substituído pelas imagens técnicas, como afirma Flusser, e teve
que se recolher novamente no seu gueto.

Refe r ê n c i a s b ib liográficas
BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito da história”. In: Obras escolhidas, volume I, Ma-
gia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo:
Brasiliense, 1994, pp. 223-232.
_____. “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”. In: Os pensadores. São
Paulo: Abril Cultural, 1975, pp. 10-34.
BUERGER, Peter. Teoria da vanguarda. Lisboa: Vega, 1993.
CANCLINI. Nestor. Culturas híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade.
2 ed. São Paulo: Edusp, 2003. (Ensaios Latino-americanos, 1)
FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
FREITAG, Barbara. A teoria crítica: ontem e hoje. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1990.
MACHADO, Arlindo. Repensando Flusser e as imagens técnicas. Disponível em: http://
www.arteuna.com/critica/flusser.htm. Acesso em: 29 set. 2003.

72 m arcelin a | hit et nunc


Í ntimo ou p ú bl ico : o l ó c u s d a
criação ar tístic a
Elisa de Souza Martinez*

Palavras-chave Resumo: O ensino de arte tem sido marcado pelo contraste de


formação artística; duas posturas. A formação do artista tanto pode ser vista como
academia de arte; decorrência natural da posse de um dom quanto como um processo
sistema de ensino. de aprendizado segundo critérios elaborados para proporcionar a
todos uma compreensão ampla dos fenômenos artísticos e de sua
Key words história. O texto aborda alguns aspectos desta situação pendular e
education in the destaca algumas características do ensino de artes que distanciam e
arts; art academy; aproximam as academias e escolas de diferentes períodos e contextos
education system. socioculturais.

Abstract: The teaching of art has been marked by the contrast of two
postures. The education of the artist can be seen both as a natural
consequence of possession of a gift or as a learning process in accordance
with criteria designed to give everyone a broad understanding of artistic
phenomena and their history. The paper discusses some aspects of this
situation and highlights some commuting characteristics of teaching
art that can be identified in academies and schools of different periods
and sociocultural contexts.

* Departamento de Artes Visuais, Instituto de Artes, Universidade de Brasília – UnB,


Brasília, DF, Brasil.

73
I have been led from an understanding of creative work derived from an
observation of the processes of my own work and from discussions with
my fellow artists to a wider interest in the psychological and sociological
basis of the arts.

In the last two years I have done considerable reading in the psychology
of the arts. I would now like to add a formal training in psychology to the
insight into the interpretation of visual forms given me by my personal
experience of the last fifteen years.

My purpose in undertaking these courses is therefore a double one:

To enrich and deepen my own future artistic production.

To acquire the necessary theoretical and experimental foundations so


that I will be able to find a useful position in the field of diagnostic testing
and remedial care of childrens1.

Louise Bourgeois (1998, p. 69).

As palavras de Louise Bourgeois marcam o início deste texto com a afirmação de que o pro-
cesso de aquisição de conhecimento teórico é, tanto quanto a produção artística em si, englo-
bado pelas reflexões da artista sobre a criação e a inserção da arte no sistema da cultura. Intro-
duzem, portanto, duas posições antagônicas. Por um lado, durante muito tempo, e ainda hoje,
considera-se que o contato com a arte só é frutífero quando tem por base a posse de um dom
natural, espontâneo. Em contraposição a essa visão, que reconhece o aprendizado no campo
da arte apenas quando este ocorre segundo uma tendência biológica, podemos perguntar:
se a arte é um dom, o que se pode esperar de um projeto institucional para o ensino de arte?

No desenvolvimento da primeira parte deste texto, a expressão “educação artís-


tica” é intencionalmente adotada para denominar situações de ensino cujas caracterís-
ticas gerais não se restringem a níveis e contextos educacionais específicos2. A expressão
“ensino de arte” será adotada na segunda parte, para abranger de modo específico os
aspectos, sobretudo históricos, relacionados à formação do artista3.
1 Nos últimos dois anos, fiz uma quantidade considerável de leituras em psicologia da arte. Gostaria de acrescentar agora um
estudo formal em psicologia à interpretação das formas visuais que se apresentam por meio de minha experiência pessoal
dos últimos quinze anos. O objetivo que me leva ao estudo formal é, portanto, duplo:1. Enriquecer e aprofundar minha
própria produção artística no futuro.2. Adquirir os fundamentos teóricos e experimentais que me tornarão apta a encontrar
uma posição útil no campo dos testes de diagnóstico e de tratamento de crianças. (Tradução da autora.)
2 Adotamos a postura defendida por Roman Jakobson (2003, p. 19) que denuncia a “doença terminológica” que tem
gerado neologismos e afirma que, em vez de ceder a uma necessidade de parecer atualizado diante de um círculo de
leitores mais amplo, preferia evitar “termos novos em excesso” e, em vez disso, considerar que “era possível, mesmo ao
discutir problemas totalmente novos, livrar o trabalho de termos novos” (ibid., p. 20).
3 Na tradução para a língua portuguesa do livro Academias de arte: passado e presente, de Nikolaus Pevsner (2005), que
abrange apenas a história do ensino de arte para adultos, a tradutora optou pela expressão “educação artística” para
referir-se ao ensino de arte.

74 m arcelin a | hit et nunc


No contexto de uma revista publicada por um programa de pós-graduação em
artes, é desnecessário descrever a genealogia de cada um dos diversos termos utilizados
no século XX para marcar diferentes propostas teórico-metodológicas para o ensino de
artes, seja na educação básica ou na superior. Ademais, o que diferencia o campo da arte
de outros não é um corpo de conteúdos específicos estruturados de modo fixo, imper-
meável às abordagens interdisciplinares, mas sim um modo orgânico de compreender
os fenômenos ao alcance do indivíduo, construído na medida em que se desenvolve uma
visão e um modo de atuar, nos quais o conhecimento de arte é indispensável.

Além das posições antagônicas que podem justificar a necessidade de um pro-


jeto pedagógico para as artes, apresenta-se outra ressalva, fundamental para que se com-
preenda que as reflexões expostas neste texto estão apoiadas em uma experiência de
ensino em um sistema que oferece cursos de pós-graduação em artes. Constata-se, na
experiência didática, que nem a posse de um dom nem a aquisição de um título acadê-
mico garantem a formação de um artista ou de um profissional para o campo das artes.
Partindo dessa constatação óbvia, o desenvolvimento deste texto é permeado de ques-
tionamentos para os quais não se pretende encontrar respostas conclusivas. O primeiro
é: quais são as condições necessárias para a educação artística?

Em vez de considerar a prática artística apenas como a aplicação de um conjun-


to predeterminado de conhecimentos e procedimentos técnicos, adquiridos por meio de
um sistema de ensino, identificam-se traços gerais de procedimentos artísticos que per-
tencem a um contexto funcional. Para compreender o significado de uma obra de arte, é
preciso estudar o mecanismo que a gerou, o conjunto de relações entre os elementos que
a constituem e os modos de organização destes em um processo de significação. Cada
ato artístico é, nessa perspectiva, compreendido em uma situação, ou seja, no contexto
em que se configura e a partir do qual tem um significado único4.

Na perspectiva funcionalista5, na medida em que esta pode ser transposta do contexto


de análise dos textos verbais para a abordagem de situações do campo das artes, os elementos da
linguagem plástica, cujo universo é ilimitado, não são, em si mesmos, portadores de significado.
O texto plástico6 é o resultado de dois procedimentos básicos: a seleção dos elementos que irão
constituí-lo e a combinação destes na produção de um objeto. Com essa perspectiva, estuda-se
o modo pelo qual um fenômeno artístico se manifesta e pode até mesmo negar as coerções do
sistema em que foi gerado. Embora a mera existência de um elenco de procedimentos artísticos
definido a priori pareça garantir a viabilidade de uma intenção artística, o apego incondicional
a um modo de produção pode ser considerado ultrapassado. Nos processos de criação, o artista

4 Não necessariamente imutável.


5 Há aqui um paralelo com a “linguística funcional” desenvolvida a partir da obra de F. de Saussure por H. Frei,
segundo o qual é estudada “não apenas a linguagem dita ‘correta’, mas ‘tudo o que destoa com respeito à língua
tradicional, erros, inovações, linguagem popular, gíria, casos insólitos ou litigiosos, perplexidades gramaticais etc.’”
(Ducrot; Todorov, 2001, p. 38).
6 Sobre a distinção de um “texto plástico”, recomendamos a leitura de “Semiótica figurativa e semiótica plástica”, de Algirdas
Julien Greimas. In: Ana Claudia de Oliveira, (org.), Semiótica plástica. São Paulo: Hacker Editores, 2004, pp. 75-96.

75
pode tanto se deixar guiar unicamente pelas contingências objetivas de uma situação de comu-
nicação quanto pela necessidade de escolher e combinar os elementos de sua obra para imprimir
marcas subjetivas de autoria ou de originalidade. Por outro lado, diante da obra, o destinatário
pode acreditar que a experiência que essa lhe proporciona é excepcional e inigualável, ainda que
esteja inserida em um amplo sistema cultural em que todas as qualidades aparentemente únicas
podem também parecer, sob outros pontos de vista, previsíveis. Conforme a funcionalidade das
situações geradas por objetos do campo da arte, o uso correto dos elementos de uma linguagem
plástica, ou o “bom uso”, é, portanto, irrelevante.

Considerando que existe um repertório de imagens no acervo mental de quem vê


uma obra de arte, supõe-se que esse seja um elemento facilitador da ancoragem dos objetos
que o destinatário tem ao seu alcance. Entretanto, ainda que o campo da arte se configure
a partir de propriedades gerais7, a dinâmica característica das artes plásticas, diferentemente
da que é própria das línguas falada e escrita, não guarda qualquer tipo de compromisso com
a integridade de leis estruturais gerais. Pode-se questionar em que medida o processo de
interlocução é comprometido quando o artista, ou o produtor de objetos artísticos, ignora a
existência de um repertório de soluções previstas em um código compartilhado, ou um “fi-
chário de representações pré-fabricadas” (Jakobson, 2003, p. 37), e as possibilidades que essas
podem oferecer para que a relação com um interlocutor8 seja facilitada. Quando as coerções
do meio, ou as expectativas de direcionar o processo interativo desencadeado pelo contato
com uma obra de arte superam a necessidade de desenvolver livremente a auto expressão, o
risco reside em ceder à pressão para que sejam utilizados clichês ou “enunciados estereotipa-
dos” (ibid., p. 39) que, acredita-se, facilitadores do processo comunicacional.

Às vezes, confundem-se os objetivos de um sistema de ensino de arte com a transmis-


são de um cânone artístico. Na busca de aceitação imediata, o estudante pode mimetizar um
modo de fazer objetos que, segundo a crença predominante no grupo em que desenvolve sua
formação, é o mais adequado – trendy. Nesse caso, o desempenho do estudante em resposta a
um contexto coercitivo é justificado pela necessidade de desenvolver uma conduta adequada à
realidade exterior, fora da situação insular da escola de arte. Diz-se que esse tipo de adequação dos
modos de conceber e produzir arte é uma preparação mais eficiente para a “realidade”, ou seja,
instrumentaliza o estudante para que seu trabalho tenha boa aceitação por uma fatia do mercado
e/ou da crítica. Numa época em que já não se pode falar em “escolas” ou estilos, ou até mesmo
em originalidade, o que nos resta como critério para diferenciar estudantes de arte e imitadores
humildes de uma tendência de mercado? A atividade do artista profissional é livre de coerções?

7 Jakobson (2003, p. 28) descreve a existência de leis gerais de estruturação das línguas como as que guardam “o valor
de uma constatação artística de peso”. Para o campo da arte, as constatações são, em uma dinâmica própria, voláteis.
8 Pressupomos que a relação interlocutor/interlocutário é reversível e, portanto, ambos são ativamente engajados
no processo comunicacional. Poderia parecer que estamos favorecendo a posição ativa do sujeito que responde à
mensagem, e ignorando o papel do sujeito que a criou. Não é assim. Utilizamos o termo interlocutor para definir um
tipo de relação intersubjetiva, assim como utilizaremos neste texto a expressão “destinatário” em referência a um campo
conceitual diferente. Segundo Jakobson (2003, p. 37), quem fala “não é de modo algum um agente completamente livre
na sua escolha de palavras: a seleção (exceto nos raros casos de efetivo neologismo) deve ser feita a partir do repertório
lexical que ele próprio e o destinatário da mensagem possuem em comum”.

76 m arcelin a | hit et nunc


Voltamos à educação artística. Em suas reflexões sobre o ensino de arte na escola e o
modo pelo qual este deveria refletir a necessidade de implantar “uma pedagogia do racional,
da aprendizagem, do trabalho”, Louis Porcher (1982, p. 14) nega a visão de arte que privilegia
“a inspiração, o dom, a sensibilidade imediata e espontânea, ou seja, nitidamente toda uma
coleção de conceitos vagos” que a definem. Seu desprezo pelo discurso conformista em favor
do cultivo de um dom inato para as artes está apoiado na posição irredutível que adota em
favor do ensino no sistema público de educação. Em sua visão, é altamente negativo que a arte
tenha sido tradicionalmente associada ao “ócio elegante”, objeto de deleite de um reduzido
número de indivíduos que não estão submetidos às mesmas restrições impostas à “massa”,
cuja educação se restringe à aquisição de conhecimentos elementares, relevantes apenas para
a sua sobrevivência em seu sentido mais elementar. Consequentemente, a sociedade é dividi-
da em dois grupos contrastantes, portadores de papéis diferenciados no sistema da cultura e
descritos por Porcher de modo excessivamente simplificado, o que contribui para a contun-
dência de seus argumentos. Ao questionar o papel da educação na perpetuação de modos
desiguais de acesso ao patrimônio artístico-cultural, denuncia as contribuições dessa para
a perpetuação de uma concepção de arte como atividade supérflua e inútil, indiferente aos
propósitos de uma missão pedagógica abrangente, destinada a beneficiar indistintamente os
vários segmentos de uma sociedade e destruir as “ilusões segregacionistas do irracionalismo”.9.

A chave para compreender o conflito entre o culto ao dom inato ou natural,


e a missão da educação pública não reside, segundo Porcher, em um critério bioló-
gico para a distinção de estudantes talentosos. Em vez de associar o talento a algum
tipo de dom ou genialidade gratuita, afirma que essa aptidão é produto de uma
condição social privilegiada:
O imediato é, na verdade, mediado, a sensibilidade é construída; o
talento pode ser formado, a inspiração adquirida, a emoção preparada,
o dom não passa de uma maneira de denominar provisoriamente um
processo que não é misterioso, mas que não sabemos ainda explicar; a
sociedade camufla seu trabalho debaixo das fumaças de uma natureza
espertamente deformada (Porcher, 1982, pp. 14-15)10.

Qual é, afinal, a relação entre a visão de Porcher e a reflexão atual sobre a formação
do artista? Tendo em vista que, de fato, a dicotomia entre “talentosos” e “esforçados” acom-
panha todo o sistema de avaliação dos estudantes dos cursos superiores de arte, não é difícil
imaginar a pertinência das reflexões que citamos anteriormente sobre o papel do sistema

9 Porcher (1982, p. 20) estende sua crítica do modo pelo qual as posições antagônicas parecem, de fato, interdependentes:
“Os métodos tradicionais e os métodos liberais representam, aliás, sob este aspecto, as duas faces de uma mesma
moeda. Como acontece mais frequentemente do que se pensa, estas duas igrejinhas concorrentes, e que se excomungam
mutuamente, acreditam no mesmo Deus da arte, e estão pelo menos de acordo quanto à natureza sagrada das relações
que é preciso cultivar com ele. As diferenças residem apenas nos exercícios do culto, mas a finalidade perseguida é
idêntica nos dois casos. Essas lutas – essenciais, sem dúvida, sob outros pontos de vista – não passam na verdade de
uma briga entre irmãos rivais”.
10 Conforme foi publicado no Brasil, a edição do livro omite dados contextuais essenciais. Sua apresentação, como
se espelhasse uma constatação universal sobre o ensino de arte nas escolas e que, portanto, poderia servir a qualquer
educador, é ingênua. Talvez fosse hoje mais adequado e produtivo oferecer ao leitor brasileiro uma edição comentada.

77
educacional na superação de barreiras socio-culturais para o esboço de uma visão crítica da
missão educacional que os cursos superiores em arte têm assumido. Entretanto, qualquer
tentativa de revisão dos procedimentos pedagógicos pode tornar-se circunstancial ou equi-
vocada, na medida em que está condicionada às posturas intelectuais e artísticas do corpo
docente que o implementa. Por esta razão, as reflexões que este texto apresenta podem pa-
recer inespecíficas. O conjunto de ideias que se apresenta aqui reflete a possibilidade atual
de elencar aspectos gerais, que emergem com maior ou menor intensidade no ambiente
acadêmico, conforme diretrizes internas ou externas que lhe são impostas.

Os argumentos de Porcher em favor da democratização da educação artística


partem de três afirmações igualmente relevantes para uma discussão sobre a atual si-
tuação do ensino de arte em nível superior:
– a atividade artística possui funções intelectuais;

– as noções de espontaneidade e de liberdade, equivocadamente associadas a


um estado natural em que a criatividade é imanente, dão lugar à noção de “li-
berdade real” associada ao domínio dos meios e processos de auto expressão e
suas inevitáveis coerções;

– o conhecimento dos códigos artísticos e suas variações proporciona ao es-


tudante o acesso ao patrimônio artístico, bem como condições de participar
como interlocutor no processo de decodificação de seus significados.

O ensino superior é gerenciado segundo princípios gerais e, por esta razão, não
é difícil imaginar que o sistema curricular deve privilegiar uma pedagogia racional. O uso
desta expressão, no campo da arte causa, geralmente, certo estranhamento, e até mesmo
desconforto. Alguns podem contra-argumentar que, ao atribuir uma importância desme-
dida a uma atitude mental, pode-se sufocar o florescimento de uma sensibilidade plena.
Entretanto, o argumento em favor da pedagogia racional apoia-se na convicção de que
é necessário, para implantar um sistema de ensino universal resistente às pressões de um
contexto socioeconômico que gera formas desiguais de acesso à arte, encontrar um deno-
minador comum, um caminho reto. Porcher (1982, p. 17) defende a transmissão de conhe-
cimento regulada exclusivamente pela razão e nos faz pensar nos desafios que emergem da
reflexão sobre um currículo que deve contemplar as expectativas de formação de indivídu-
os criativos e, ao mesmo tempo, verificar os resultados dos métodos empregados por meio
de sistemas de avaliação que, desde o ingresso, atribuem nota a habilidades individuais11.

Como formular um currículo que, no contexto de uma expectativa política


crescente pela expansão numérica do ensino superior12 no Brasil, possa prescindir de

11 Referimo-nos aqui especificamente à Prova de Habilidade Específica para a seleção de candidatos aos cursos de artes
plásticas (bacharelado e licenciatura) da Universidade de Brasília. Essa prova não avalia, de fato, o domínio de técnicas
de desenho que o candidato possa ter adquirido previamente, mas sim o modo pelo qual realiza um exercício que deve
solucionar em um tempo limitado.
12 A implantação do Reuni é um sinal inequívoco da expansão do ensino superior de modo apressado, merecedor de

78 m arcelin a | hit et nunc


uma abordagem racional? Ainda que esta possa parecer devastadora, aniquiladora da
sensibilidade e da emoção, e instauradora de um modo impessoal de ensinar e aprender
arte que contradiz os objetivos de uma educação artística, no contexto da implementa-
ção de um sistema democrático, com critérios equânimes de avaliação, parece não existir
outro modo possível de agir13.

A objetividade e o racionalismo defendidos fervorosamente por Porcher refle-


tem também suas posições diante do modo quase perverso pelo qual a livre expressão
foi, e tem sido, defendida. Mesmo quando o processo de formação do artista ocorre fora
do sistema formal de ensino, a expressão individual não é garantida pela mera existência
de um contexto de liberalidade irrestrita. A necessidade de expressão é acompanhada
pela busca de um modo individual de utilização de um código, até mesmo nos casos em
que a sistematização de um corpo de conhecimentos parece irrelevante ou inexistente.
Como ocorrem os procedimentos de seleção de elementos plásticos, expressivos, e a sua
combinação na obra? Qual é o lócus privilegiado da criação artística?

Se nos últimos quarenta anos a importância antes atribuída à obra passa gra-
dualmente a se voltar para o artista, o indivíduo criador, o ateliê, por sua vez, deixa de ser
o espaço entre quatro paredes em que a obra de arte se materializa para ser um espaço
mental, radicalmente íntimo. A ocorrência da criação deixa de depender diretamente
de uma infraestrutura física, e o lócus de criação e produção de arte torna-se, portanto,
ambulante, independente, também, dos espaços das instituições de ensino.

Outro aspecto importante a ser mencionado aqui é que, não obstante a per-
tinência de um princípio racional para o ensino de arte, este não pode ser reduzido a
um modelo técnico, em que a execução de tarefas mecânicas e quantificáveis dispensa a
reflexão crítica sobre o papel da arte na veiculação de valores, individuais ou universais.
O racionalismo não é uma via estreita na qual o estudante de arte carrega o fardo da
tradição, a que deve dar continuidade, mas sim a abertura de um terreno livre da visão
mística do dom, em que a investigação das soluções poéticas seja proporcionada, indis-
tintamente, a todos os que busquem na linguagem plástica um meio de expressão.

É comum exemplificar o modo pelo qual, nas artes, o gênio nasce e se desenvolve li-
vremente à margem de sistemas de ensino com uma menção a Vincent Van Gogh e sua busca
obstinada por um domínio da linguagem pictórica. Esse artista, tanto quanto Paul Gauguin
e outros românticos que o antecederam, não se considerava um eleito, agraciado com um
dom natural. Em vez disso, considerava-se um condenado ao trabalho árduo e incansável
que o tornaria digno de ser considerado um pintor. Notamos nas cartas que escreveu a seu
irmão Theo que via o desenvolvimento de habilidades artísticas como o caminho que, na sua
opinião, lhe permitiria ser o instrumento para a expressão de uma verdade que lhe escapava,
uma análise aprofundada que escapa ao objetivo central deste texto.
13 Com a finalidade de tranqüilizar os que temem a razão, Porcher (1982, p. 17) defende seu papel na implantação
de um sistema que deve incluir também estratégias de avaliação e a formulação de uma “propedêutica necessária à
emoção artística”, independentemente das pré-disposições individuais dos estudantes.

79
sempre. Então, laboriosamente, insistiu. Em que pese a tradição pictórica holandesa que,
desde o século XVII havia consolidado a participação da arte e do artista em um mercado
de bens culturais muito amplo, Van Gogh parece querer restaurar, e por isso sua obra está
em sintonia com o século em que viveu, um modo de fazer arte autônomo, individual. Em-
bora não estivesse subjugado a uma escola ou a um mercado, Van Gogh estava condenado à
sua visão, ao seu conhecimento sobre arte persistentemente ampliado pelo estudo das obras
dos mestres que admirava com profunda humildade. Valorizava a observação das obras de
outros pintores, inclusive de seus contemporâneos, bem como o estudo obstinado do
modo pelo qual estes se tornaram – pelo domínio técnico e expressivo – instrumento de
uma voz divina. A visão autocrítica de suas limitações, que lhe pareciam mais evidentes
na medida em que confrontava suas pinturas com as de outros artistas, levava-o a bus-
car as fontes “teóricas” de um aprendizado que não havia recebido, como neste episódio
narrado em uma carta a seu irmão:
Lo que ha puesto fin a mi duda es la lectura del libro, muy comprensivo
sobre la perspectiva, de Cassagne: La Guía del A.B.C. del dibujo, y el
hecho de que ocho días después he dibujado el interior de una pequeña
cocina con sartén, silla, mesa y ventana, todo en su sitio y bien plantado,
mientras que antes atribuía a un milagro o a un acaso el que un dibujo
tuviera profundidad y una perspectiva exacta O que pôs fim à minha
dúvida foi a leitura do livro, muito abrangente sobre a perspectiva, de
Cassagne: A guia do ABC do desenho, e o fato de que oito dias depois
desenhei o interior de uma pequena cozinha com frigideira, cadeira,
mesa e janela, cada coisa em seu lugar e bem situada. Antes eu atribuía
a um milagre ou a um acaso que o desenho tivesse profundidade e uma
perspectiva exata14. (Van Gogh, 1975, p. 67).

No artigo “Van Gogh and the Problem with Tradition”, o pintor norte-americano Ross
Neher15 analisa a obra de Van Gogh como o resultado da dedicação ao estudo da pintura
e da disciplina que impôs a si mesmo com a finalidade de dominar os meios que lhe
permitiriam expressar sua visão da realidade. Um conjunto de atitudes fornecia a Van
Gogh as condições que fariam deste um artista menos intuitivo e mais consciente de suas
conquistas pictóricas. Para compreender o modo pelo qual Van Gogh construiu, com
extrema humildade, sua obra pictórica, é necessário estudar com atenção a maneira pela
qual em suas cartas ele expressa uma visão extremamente lúcida e analítica das obras
que tem a seu alcance, inclusive das gravuras japonesas que eram admiradas pelos pin-
tores franceses de sua época. Tal como Louise Bourgeois, que citamos na abertura deste
texto, além do estudo das obras, Van Gogh buscava as fontes que lhe poderiam ajudar a
conhecer melhor a linguagem:

14 O que pôs fim à minha dúvida foi a leitura do livro, muito abrangente sobre a perspectiva, de Cassagne: Guia do
ABC do desenho, e o fato de que oito dias depois desenhei o interior de uma pequena cozinha com frigideira, cadeira,
mesa e janela, cada coisa em seu lugar e bem situada. Antes eu atribuía a um milagre ou a um acaso que o desenho
tivesse profundidade e uma perspectiva exata. (Tradução da autora.)
15 Cf. Neher, 1989.

80 m arcelin a | hit et nunc


Tengo la intención de aprender seriamente la teoría; no considero en
absoluto esto como inútil, y creo que a menudo lo que uno siente o
capta instintivamente, se vuelve claro y seguro cuando se está guiado en
sus búsquedas por algunos textos que tengan un sentido real práctico.
Tenho a intenção de aprender seriamente a teoria. Não considero em
absoluto que isto seja inútil, e creio que o que sentimos ou captamos
instintivamente torna-se claro e seguro quando estamos guiados em
nossas buscas por alguns textos que tenham sentido real prático16. (Van
Gogh, 1975, p. 122).

O exemplo de Van Gogh tem sido reduzido a um dos clichês mais utilizados quando se
pretende afirmar que nenhum indivíduo depende de um sistema de arte para tornar-se
artista. É, também, exemplo estereotipado de um modo de ser artista que ignora as coer-
ções do mercado de arte e a influência do colecionismo sobre sua produção. A esses dois
aspectos pode-se acrescentar um terceiro, a ser desenvolvido nas próximas páginas: con-
siderando que existem três instituições com poder de sancionar a produção artística – a
academia, o mercado de arte e a história da arte – qual destas exerce seu papel com maior
ou menor flexibilidade? Como um desdobramento desta questão, podemos perguntar
também se alguma dessas instituições pode ser considerada anticoercitiva.

Com frequência, ouvimos comentários irônicos sobre a situação coercitiva


e homogeneizante que a “academia” impõe aos artistas. Parte-se do pressuposto de
que o problema está no sistema de ensino organizado e administrado como grade
curricular, na qual cada jovem é enquadrado17. Vista desse modo, a academia é o
único sistema reconhecido, sobretudo por seus detratores, para o desenvolvimento
do talento para as artes.

Se é desse modo, e a academia é a única instituição que outorga ao talentoso


ou ao apreciador das artes um tipo qualquer de certificação artística, de que maneira
seu funcionamento espelha o sistema de valores que compartilha com as demais insti-
tuições da arte – história da arte e mercado – em diferentes épocas? Em Academias de
arte: passado e presente, Nikolaus Pevsner (2005, p. 22) cita um comentário de Goethe
que denunciava o “amplo descrédito que atinge o próprio conceito de academia na cul-
tura contemporânea”. O peso dessas palavras, como as dos contemporâneos de Goethe,
ressoa no contexto atual, em que subsiste a “afirmação de poéticas neorromânticas”. En-
tretanto, é necessário lembrar que o ensino de arte acadêmico tal como o entendemos
hoje, não é o mesmo do tempo do Romantismo alemão. No modelo atual, sobretudo no

16 Tenho a intenção de aprender seriamente a teoria. Não considero em absoluto que isto seja inútil, e creio que o que
sentimos ou captamos instintivamente torna-se claro e seguro quando estamos guiados em nossas buscas por alguns
textos que tenham sentido real prático. (Tradução da autora.)
17 Em um texto escrito por F. G. Stevens em 1859 e citado por Pevsner (2005, p. 62), o sistema de ensino acadêmico
“desprovido de inteligência e entendimento sempre foi o protetor da mediocridade e o inimigo do gênio”. Ainda
que o “gênio” seja um contraponto interessante no debate sobre a pertinência de um modelo de ensino universal,
consideramos, neste texto, “genialidade” uma palavra que, em nossa opinião, não expressa uma visão crítica de um
modo “natural” que, segundo o senso comum, é o único responsável pela formação de um artista.

81
Brasil, o candidato ao ingresso em um curso de nível superior em arte, é avaliado tanto
em seus conhecimentos gerais quanto na habilidade que demonstra por meio de um tes-
te específico, que pode ser complementado com a apresentação de um portfólio. Após a
aprovação, o estudante é submetido a outras avaliações ao longo do curso que, mediante
aprovação, garantem a ele o direito de receber um diploma.

Se atribuímos ao ensino de arte em nível superior qualidades “acadêmicas”,


o que caracteriza seu academicismo? Existe algum modo de transmissão de um saber
artístico que esteja livre da denominação de “acadêmico”? Existe algum sistema de en-
sino de arte que não seja formal? Encontram-se, no texto de Pevsner, alguns aspectos
implícitos nesses questionamentos que fazem parte de uma abordagem que compreende
a correspondência entre o saber artístico e seu ensino ao Zeitgeist, o contexto em que
a relação entre artista e sociedade se configura nas obras de arte que são produzidas18.
Partindo desse pressuposto, torna-se difícil aceitar que o liberalismo radical e o panora-
ma artístico caracterizado como uma “miscelânea de realizações individuais” (Pevsner,
2005, p. 32) sejam compatíveis com a sistematização do fazer artístico. A funcionalidade
histórica contrapõe-se também ao “gozo subjetivo e fechado em si mesmo da erudição”
(Pinelli, 2005, p. 33), que se manifesta na ética moderna.

Embora o termo academia tenha sido amplamente utilizado para definir ape-
nas o ensino de arte na universidade19, em sua origem, a academia20 não era um centro
de ensino formal. Por meio da leitura de Academias de arte (Pevsner, 2005), obtém-se um
panorama histórico abrangente da instituição “academia”21 como lócus para o ensino de
arte, assim como dos diversos usos da palavra “academia”, que historicamente têm sido
associados a diferentes sistemas de ensino, condizentes com as condições socio políticas
em que se desenvolvem. Interessa-nos resgatar do texto de Pevsner o modo pelo qual o
sistema de ensino de arte reflete em cada período um conjunto de valores que define a
situação da produção e da circulação de bens culturais.

Não é necessário argumentar em favor do óbvio: um curso de graduação ou


de pós-graduação em arte não é um mal necessário, porque o título de Bacharel em
Artes Plásticas não é uma exigência imposta pelo mercado de trabalho. Esse curso talvez

18 Na “Introdução à edição italiana (1982)” incluída na edição brasileira de Academias de arte, seu autor, Antonio
Pinelli, fornece um amplo contexto de relações para o desenvolvimento das pesquisas e da obra de Pevsner, e apresenta
uma importante ressalva. No contexto da Geistesgeschichte, a relevância do Zeitgeist é inegável, o que não se pode dizer
do conceito que, aparentemente, o complementa: o Volkgeist. O espírito de um povo ou de uma “entidade étnico-
histórica”, que pode conduzir a apreciação do contexto cultural de uma época ao risco de “tocar perigosamente no a
priori do preconceito, da mitologia, do determinismo vulgar ou, pior, do racismo” (Pevsner, 2005, p. 27).
19 Sobre o uso dos temos, Pevsner (2005, p. 72) afirma: “Embora no sentido vernacular o termo universidade se
mantenha até o presente, a palavra academia foi adotada como sua tradução latina. Ainda hoje, em alguns lugares, os
dois termos são usados indistintamente”.
20 Segundo Pevsner (2005, p.100) “não sabemos nem quando nem como a palavra ‘academia’ foi usada pela primeira
vez para designar um lugar dedicado à educação de artistas”.
21 Assim como na Grécia antiga, no Quattrocento a palavra “academia” foi usada de início para designar um lugar,
depois um grupo de filósofos e, por fim, um sistema filosófico (Pevsner, 2005, p. 71). É também no Renascimento que
a palavra academia passa a ser adotada como a tradução latina de “universidade” (ibid., p. 72).

82 m arcelin a | hit et nunc


seja o único do rol de cursos de nível superior oferecidos atualmente que é totalmente
opcional. O diploma de bacharel não é exigido na avaliação de um portfólio, seja para
admissão em uma competição pública, como um salão, seja para a aprovação de um pe-
dido de pauta em uma galeria. Tampouco é exigido que a obra de um artista seja incluída
no catálogo de uma galeria comercial ou adquirida por um museu. Diferentemente do
arquiteto, que para ser contratado por um cliente ou para executar sua obra depende de
um registro profissional, o artista pode ser um autodidata.

Apesar desse quadro, em que a opção por um curso superior em artes parece
ser uma atitude que reflete uma certa radicalidade de escolha, isenta de qualquer tipo de
pressão socio-cultural para que se alcance o sucesso profissional, um fantasma ronda a
consciência dos estudantes de arte. É o velho medo de que o fluxo sagrado de intuição, es-
pontaneidade e força criativa seja corrompido pela compreensão intelectual dos processos
artísticos. Para responder à pergunta “Pode-se ensinar arte?”, Rudolf Arnhein apresenta
uma posição que se funda num único princípio: embora tanto a produção quanto a apre-
ciação de obras de arte sejam decorrentes do cultivo da intuição, toda a argumentação em
sua defesa é, paradoxalmente, intelectual. Para Arnhein, a campanha iniciada pelos Ro-
mânticos, de ataque aos vários aspectos de uma abordagem intelectual da arte, teve como
alvo principal no século XX a interpretação de manifestações visuais das tendências da
mente humana segundo a psicanálise. Desse modo, a interpretação psicanalítica foi vista
como ameaça ao fluxo livre da criatividade, na medida em que os exemplos22 retirados da
história da arte desempenhavam um papel ilustrativo de conceitos teóricos23. Esse contex-
to, que predominou no século passado24 é diferente do atual, em que parece ter ocorrido
uma inversão na relação de subordinação. Com a intenção de demonstrar uma erudição
que não possuem, alguns artistas e estudantes de artes têm utilizado livremente conceitos
retirados de outros campos teóricos, das ciências biológicas à filosofia, e os transformam
aleatoriamente em temas que parecem pertencer ao senso comum.

Seja como for, é surpreendente que os estudantes de um curso não queiram ser
contaminados pelo contato com o conhecimento e prefiram manter, diante da possibi-
lidade de ampliar seus horizontes para compreender a linguagem e os códigos da arte,
um estado de falsa inocência. Esse resquício do Romantismo dos séculos XVIII e XIX
parece alimentar-se nos dias atuais do narcisismo que é permitido aos artistas a partir do
momento em que a fetichização de seus atos mais banais parece descartar a importância

22 Como exemplo, podemos citar o ensaio “Eine Kindheitserinnerung des Leonardo da Vinci”, de Sigmund Freud,
traduzido para o inglês com o título Leonardo da Vinci and a Memory of His Childhood, traduzido por Alan Tyson, na
primeira edição publicada nos Estados Unidos (Nova York: W. W. Norton & Company, 1964).
23 Para exemplificar a rejeição de seus alunos ao estudo teórico, Arnhein (1989, p. 57) comenta sua experiência no
ensino de psicologia da arte, em que alguns estudantes disseram que “they could not continue their attendance because
some of the rules and explanations I had given them turned up as disturbances during their studio work, interfering
with the freedom of their intuitive decisions” (não podiam continuar a frequentar [meus cursos], porque algumas das
regras e explicações que eu lhes dava se tornaram perturbadoras do trabalho de ateliê, interferindo na liberdade de suas
decisões intuitivas). (Tradução da autora.) ”
24 Embora também seja possível encontrar exemplos da utilização de obras de arte para “ilustrar” conceitos de vários
outros campos teóricos, como se estes pudessem substituir as teorias da arte.

83
do conhecimento de códigos e processos historicamente consolidados, como se estes
nunca tivessem existido.

No Quattrocento italiano, as academias possuíam um caráter informal propício


ao desenvolvimento intelectual dos artistas que queriam ser reconhecidos e diferencia-
dos dos artesãos que eram dotados unicamente de habilidade manual e treinados segun-
do os critérios das corporações de ofícios. Pevsner destaca a contribuição inequívoca
de Leonardo da Vinci para o surgimento de um sistema de normas e a estruturação de
um código no Libro della pittura, no qual apresenta uma teoria da arte que “contraria
os conceitos e a prática da pintura que até então predominavam da mesma forma que
as novas ideias acadêmicas dos humanistas se opunham às teses dominantes das velhas
universidades escolásticas” (Pevsner, 2005, p. 93). Para Leonardo, a expressão “artes me-
cânicas”, quando associada à pintura, era um “vile cognome”. Por sua vez, Michelangelo
afirmava: “Pinta-se com o cérebro, não com a mão”. Aos iniciantes, Leonardo oferecia os
seguintes conselhos: “Estude primeiro a ciência e depois a prática nascida dessa ciência”
e “aqueles que se deixam fascinar pela prática sem a ciência são como pilotos que se
põem a navegar sem leme ou bússola” (apud Pevsner, 2005, p. 97).

Ainda que diferenciasse conhecimento teórico de experiência prática, o pensa-


mento de Leonardo pressupõe uma reversibilidade elementar: teoria deveria ser expe-
rimentada, como demonstram seus inúmeros cadernos de notas, e a prática exigia uma
consciência teórica da linguagem. É com esse princípio, de complementaridade entre as
atividades teórica e prática, que as academias do Renascimento italiano distanciavam-se
do incansável labor manual das guildas medievais. O desenvolvimento da teoria formu-
lada por Leonardo nos mostra que, em sua concepção, a pintura como atividade mental
corresponde, sobretudo, à linguagem abstrata do desenho, e não à expressão plástica
e intuitiva do artista afetado pelos estímulos unicamente sensoriais despertados pelo
contato com a natureza. Quando vemos o grande volume de esboços e desenhos que
deixou, e o comparamos ao pequeno número de pinturas concluídas a partir de temas
obsessivamente recorrentes, vemos os sinais claros de uma postura intelectual em favor
da prática exaustiva do desenho como condição imprescindível para que um artista pos-
sa conquistar uma expressão individual. Além disso, o programa de ensino de Leonardo
era revolucionário porque estava distante do mero treino da habilidade técnica para a
execução de produtos acabados e previa que
a perspectiva deveria ser a primeira matéria ensinada, depois, o aluno
seria iniciado na teoria e na prática da proporção; em seguida, começaria
a exercitar-se na cópia de desenhos dos mestres, no desenho a partir de
relevos, no desenho com modelo-vivo e, por fim, na prática de sua arte.
(Pevsner, 2005, p. 97).

A influência das proposições de Leonardo para o ensino de artes perdurou até o século
XIX25, ainda que não existam provas de que elas tenham sido implementadas sob sua
25 Segundo Pevsner (2005, p. 149), vigorava nas academias dos séculos XVII, XVIII e boa parte do século XIX “[a]

84 m arcelin a | hit et nunc


supervisão em uma rotina pedagógica. Ao escultor Bertoldo di Giovanni é atribuída a
autoria do primeiro método moderno para o ensino de artes, no qual os iniciantes não
tinham que permanecer por vários anos no ateliê de um artista renomado na qualidade
de aprendizes, em que suas atividades se restringiam à “contribuição manual ao trabalho
do mestre” (Pevsner, 2005, p. 100), como ocorria antes da criação das academias. Antes
de Bertoldo, e diferentemente de Leonardo, Vasari agiu diretamente na regulamentação
oficial de um sistema de formação artística26. Sua posição era semelhante à de Leonardo
na defesa de um modelo no qual a atividade artística pudesse ser vista em um patamar
superior ao de mero ofício, baseada primordialmente na prática do disegno como “ex-
pressão e manifestação da ideia que está no espírito” (Pevsner, 2005, p. 107), indepen-
dentemente da técnica a ser utilizada pelo artista na execução de sua obra final. Isso não
significa que o ensino da técnica tenha sido menosprezado na época do Renascimento
italiano. A formação técnica continuava a ser oferecida nos ateliês de artistas reconheci-
dos pelas guildas27, enquanto na academia o artista assistia a aulas de disegno e, ao mes-
mo tempo, a conferências sobre geometria e anatomia28. Desse modo, os vínculos com
as guildas não foram totalmente abandonados, porque as academias não se propuseram
atender as necessidades dos estudantes que buscavam unicamente o desenvolvimento
de competência técnica. Os que se dirigiam às academias buscavam uma compreensão
das técnicas que lhes permitiria produzir obras mais parecidas às da antiguidade greco-
-romana29 e, para que isso ocorresse, engajavam-se na grande novidade, que consistia
nos debates teóricos sobre aspectos técnicos, como os recursos para representação do
corpo humano, e a definição de disegno30.

No sistema acadêmico concebido desde Vasari, depositava-se grande expectativa


nas reformas de estatutos que, de fato, pouco impacto tiveram no modo de ensinar arte e nas
expectativas de inserção dos artistas em um mercado profissional com regras independentes
do sistema acadêmico. Essa parece ser uma postura recorrente nos meios acadêmicos, resis-
tente à passagem do tempo, cuja presença entre as práticas culturais do ensino superior na

sequência de desenhos a partir de desenhos, desenhos a partir de modelos em gesso e desenhos a partir de modelo-
vivo era considerada o fundamento do currículo acadêmico”. Além de refletir uma forte influência do velho currículo
de Leonardo, os currículos também incluíam “aulas teóricas sobre perspectiva, geometria e anatomia” e, na academia
francesa, formou-se, pouco a pouco, uma biblioteca de apoio.
26 Desse modo, a Academia del Disegno, fundada em Florença por Cosimo de Médici sob a influência de Vasari “está
na origem do desenvolvimento das modernas academias de arte” (Pevsner, 2005, p. 105).
27 Segundo Pevsner (2005, p. 137): “O aprendizado nas oficinas dos mestres foi mantido como uma fase preliminar
da educação do artista, talvez visto como ainda mais fundamental depois que as academias privadas suplantaram as
governamentais”.
28 O modelo rígido implantado pela academia do século XVII era, com o objetivo de concretizar finalidades educativas
abrangentes, diferente da formação das confrarias do século XVI, em que artistas falavam para um público de artistas
para “suscitar, pelo debate e pelo mútuo esclarecimento, uma compreensão mais clara da Arte e de seus princípios”
(Pevsner, 2005, p. 149).
29 Leonardo da Vinci, Rafael e Miguelangelo fazem parte de um pequeno conjunto de referências artísticas divinizado
em decorrência do modo pelo qual suas obras se apoiam nos cânones da antiguidade clássica, cultuados como se
fossem eternos.
30 O objetivo, segundo Pevsner (2005, p. 149), era apenas “suscitar, pelo debate e pelo mútuo esclarecimento, uma
compreensão mais clara da Arte e de seus princípios”, diferentemente das atividades que integravam o modelo
implantado pela academia com o intuito de concretizar finalidades educativas abrangentes.

85
atualidade é facilmente reconhecida quando observamos que algumas reformas curriculares
parecem ignorar as condições internas e externas em que serão implementadas31. A reforma
de um currículo, depende de um contexto em que é gestada, do grau de rigidez ou de flexibi-
lidade que caracteriza sua estrutura geral e dos objetivos que estabelece para a formação ar-
tística, que pode ser mais ou menos convergente. A correspondência entre rigidez acadêmica
e contexto socio-político é sinalizada por Pevsner ao descrever o vínculo que existiu entre o
modo autoritário com que os Estados absolutistas se impuseram na Europa e a criação de
academias nos séculos XVII e XVIII.

Em sintonia com o absolutismo no campo socio político, Pevsner (2005, p. 124)


destaca o contexto em que outro tipo de absolutismo prevalece no campo das artes, con-
tribuindo ainda mais para a rigidez do método acadêmico: a posição de destaque ocupada
pelo Maneirismo como a tendência estilística mais esquemática e totalitária, restringindo-se
à recuperação servil de “figuras” e “detalhes das obras dos grandes mestres clássicos”32.

Ao projeto intelectual inicial, que atribuía papel importante às conferências


e aos debates33, foram agregadas, a partir da fundação da academia francesa no século
XVII exposições – salons – e premiações, instrumentos valiosos para a consolidação do
poder social da academia. Ainda que nos dias atuais a convergência na direção de um
critério único de validação da produção artística não seja predominante, esses tipos de
eventos têm sobrevivido como momentos de consagração pública, ainda que sejam con-
traditórios com a postura plural que parece predominar nas instituições artísticas: mer-
cado, academia e história da arte. Nos salões predominava um único estilo, o acadêmico,
e o cânone deveria ser emulado com maestria para que o virtuosismo do artista fosse re-
conhecido. O controle dessa academia sobre as atividades de seus frequentadores tentava
impedir até mesmo que estes seguissem caminhos paralelos como os que levavam aos
ateliês particulares onde grupos de artistas se reuniam para a prática do desenho com
modelo- vivo. Diante dessa situação, parece que, paradoxalmente, as normas que essa
mesma academia impôs eram mais restritivas à atividade do artista do que as que eram
determinadas pelas guildas. Na França dos séculos XVII e XVIII, o artista “do rei”34 era
devotado a um estilo uniforme para que seu trabalho fosse recompensado com o título
de “acadêmico”. Em vez de almejar a representatividade social, como ocorreu com os

31 Para constatá-lo, bastaria percorrer as instalações em que funcionam alguns cursos de artes em nível superior e ver
que algumas salas ainda são mobiliadas como ateliês exclusivos para o aprendizado de técnicas que vão do desenho às
manipulações de recursos eletrônicos.
32 Outro fator importante para as academias do século XVII foi a necessidade de construir e decorar igrejas e edifícios
sacros, tarefa condizente com os ideais da Contrarreforma. Por outro lado, o objetivo comum das instituições italianas
do século XVII era “desenhar ‘dal nudo’ ou ‘dal naturale’, o que desde o Renascimento era considerado fundamental
na educação artística” (Pevsner, 2005, p. 131), e parece ter seu exemplo mais antigo na academia dos Carracci, em
Bolonha, a Accademia degli Incamminati.
33 Essas atividades segundo Pevsner (2005, p. 149), “[v]istas como mais imediatamente indispensáveis para o progresso
da arte na França do que uma biblioteca e aulas de perspectiva ou geometria, até mesmo, talvez, que o desenho, eram as
conferências proferidas durante as reuniões semanais para uma plateia de acadêmicos e estudantes”.
34 “O rei (ou melhor, Colbert) podia impor mais facilmente seus desejos e intenções aos membros de uma academia
real do que a uma sociedade particular, uma guilda ou uma universidade” (Pevsner, 2005, p. 145).

86 m arcelin a | hit et nunc


artistas do Quattrocento que pretendiam receber tratamento equivalente ao que era dado
a seus colegas intelectuais, os artistas da academia francesa abriam mão da autonomia
artística em troca de honrarias35.

Se é fácil admitir que o sistema que adota um cânone é autoritário, seria este
mais coercitivo do que o modelo de ensino que temos nos dias atuais? No passado, o
reconhecimento acadêmico significou, na Itália e, posteriormente, na França, a conso-
lidação do poder da instituição educacional no campo das artes segundo regras que,
apesar de engessadas, prometiam ao estudante o desenvolvimento de habilidades que
o qualificariam para produzir conforme o sistema de valores hegemônicos e, portanto,
alcançar o sucesso. Diferentemente dessa situação, o poder de legitimação hoje parece
estar concentrado no mercado de arte, a terra prometida, e em uma rede de eventos de
apoio a esse sistema. Para conquistá-lo, o curso de bacharelado não é suficiente e, cientes
disso, alguns artistas se associam a pequenos grupos, que comungam modos de pensar e
agir em sintonia com as “tendências” que, ainda que provisoriamente, recebem apoio da
crítica e do mercado. Desse modo, seu comportamento é muito parecido com aquele dos
artistas que, no passado, desprezavam o exercício de uma musculatura intelectual para
se dedicar à reprodução de um elenco pre definido de soluções formais de boa aceitação.
Desvinculada do mercado, a formação nos cursos superiores em artes pode oferecer
liberdade de experimentação, ainda que esteja estruturada em uma grade curricular. En-
tretanto, não há como evitar que um estudante de arte que, ainda na graduação, vê seu
trabalho exposto ao lado de artistas com longa trajetória profissional passe a desprezar o
que o sistema de ensino formal tem a oferecer, e a reproduzir mecanicamente o mesmo
trabalho bem-sucedido. Esse processo é inevitável porque a projeção no mercado é mais
sedutora, e parece mais promissora, do que a do reconhecimento acadêmico. O risco é
transformar a coerência de um estilo rentável em camisa de força para a produção artís-
tica, o que pode ocorrer tanto dentro quanto fora dos muros da academia.

No final da década de 1980, a historiadora da arte e crítica venezuelana Bélgica


Rodriguez afirmava em uma conferência proferida no seminário da exposição The Latin
American Spirit36, no Metropolitan Museum of Art, de Nova York, que os olhos da crítica
e das instituições artísticas da América Latina estavam sempre atentos aos catálogos dos
leilões da Christie’s e Sotheby’s para ver que preços as obras de arte produzidas naquele
continente atingiam no mercado internacional. Conforme a autoridade desses dados, os
colecionadores da América Latina orientavam suas aquisições e, por outro lado, refor-
çava-se o trabalho dos críticos que referendavam as aquisições dos museus. Entretanto,
os preços altos a que se referia a crítica venezuelana eram atingidos apenas por pouquís-
simos pintores, cuja obra ilustrava indubitavelmente o estereótipo de produto exótico
35 De acordo com Pevsner (2005, p. 145), “na era barroca, em que a posse de títulos e o respeito a complicadas ordens
de precedência tinham grande importância, essa honraria devia ser especialmente apreciada”.
36 Exposição realizada por The Bronx Museum of the Arts, Nova York, de 29 de setembro de 1988 a 29 de janeiro de
1989, com itinerância nas seguintes instituições norte-americanas: El Paso Museum of Art (El Paso, Texas), San Diego
Museum of Art (San Diego, Califórnia), Instituto de Cultura Puertorriqueña (San Juan) e Center for the Arts (Vero
Beach, Flórida).

87
atribuído à arte latino-americana. Nessa mesma época, encontrava-se já nas escolas de
arte na América Latina uma abordagem de arte contemporânea que se distanciava dos
modelos consagrados pela história da arte escrita no continente.

A distância que separa, seja porque suas finalidades são divergentes ou porque são
incompatíveis, o ambiente eclético de formação do artista no ensino superior do mercado
de arte pode também ser considerada negativa. Não existe formação que possa garantir ao
estudante sua inserção em um mercado ou a adequação de seu trabalho ao gosto de uma
classe de clientes, como ocorreu com algumas academias do passado. Diante disso, o jovem
estudante passa, ansiosamente, a buscar uma maneira de enquadrar seu trabalho segundo
uma “tendência” de mercado – tal qual um estudante de design – ou busca associar-se a uma
confraria, um grupo de apoio no qual seu trabalho é aceito incondicionalmente, o que difi-
cilmente ocorre no ambiente acadêmico em que seu trabalho é avaliado a partir de critérios
comparativos. Os objetivos curriculares de um curso superior em arte não estão a reboque
das coerções do mercado, tampouco é desejável que estejam. A inquietação experimental
e a visão prospectiva ocorrem quando o espaço de criação – o ateliê – se abre, deixa de ser
exclusivo do universo privado e migra para o local de convivência que está, e talvez perma-
neça assim por muito tempo, sujeito a todos os tipos de conflito que as diferentes posturas,
pensamentos e práticas artísticas podem gerar.

É do convívio caótico, divergente, com múltiplas possibilidades simultâneas,


que se desenvolvem as ferramentas de uma performance artística individual que seja
verdadeiramente diferente da postura acadêmica homogeneizante para que o estudante
possa, até mesmo, realizar um trabalho que destoa do gosto de seu tempo. Se não for as-
sim, o caminho objetivo e pragmático do aprendizado de um modo, ou um estilo, subs-
titui a prática do adestramento técnico pela do adestramento intelectual. Nesse caso, o
que resta ao jovem artista para diferenciar sua obra das de seu círculo é o único dado que
permanecerá, sempre, inexpugnável: a narrativa autobiográfica, a autor referencialidade
dos elementos figurativos de sua obra, em que a excepcionalidade do gênio se manifesta.

Afinal, quem pode superar um artista no domínio de sua própria história?


Qual é a contribuição de um processo de formação universitária para a exploração de
um conteúdo íntimo? Como abordar os aspectos de execução de uma ideia quando esta
passa a ter precedência sobre as questões de linguagem? Como avaliar um trabalho que
parece ter como único objetivo a autos satisfação do artista ou do estudante de artes? Até
que ponto o artista ignora a existência de um “fichário de representações préfabricadas”
e mergulha radicalmente em um território íntimo e autos suficiente? Qual seria a recom-
pensa que poderia ser oferecida ao artista que abandonasse a busca de satisfação pessoal
para colocar nas mãos de seus interlocutores a validação da eficácia dos procedimentos
de produção de sua obra? Tomada como conteúdo, como único parâmetro que invalida
o questionamento de sua competência artística e da eficiência produtiva de seu trabalho,
a autobiografia é texto e contexto. Qual poderia ser o cânone para a história sentimental
do artista? É necessário perguntar?

88 m arcelin a | hit et nunc


Re fe r ê n cias Bib liográficas
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Center for Education in the Arts, 1989.
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VAN GOGH, Vincent. Cartas a Theo. 3 ed. Tradução Instituto del Libro Cubano. Bar-
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89
Pass agens . Wa l te r B e n jam in , as
galerias cob er t as e o fetic h e d a
m ercadoria
Mariana Rocha*

Palavras-chave Resumo: O exercício da observação e da análise crítica dos desfiles


moda; Walter de moda nos meios de comunicação de massa desenvolvido nos
Benjamin; Charles últimos anos e o ensino da disciplina estilismo em nível superior
Baudelaire; desperta para a necessidade de reflexão e debate, na universidade,
Passagens; Paris. sobre a relevância do estudo da moda como fonte de produção de
conhecimento intelectual e meio de aprofundamento da análise
Key words crítica desta manifestação cultural
fashion; Walter no cenário contemporâneo.
Benjamin; Charles A preocupação em entender os significados da moda, a função
Baudelaire; The de sua crítica e a relação da moda com seu tempo, bem como o
Arcades Project; Paris. interesse pessoal que mobilizou a condução da pesquisa presente na
dissertação “Ruas, passagens, passarelas: Charles Baudelaire, Walter
Benjamin e os lugares da moda”, e a convicção da relevância da ação
coletiva e da repercussão da moda no âmbito cultural acabaram por
encaminhar o estudo para a área da crítica da cultura.

* Mariana Rocha é mestre em artes visuais pela Faculdade Santa Marcelina (Fasm, 2009),
além de professora de estilismo no bacharelado de desenho de moda da instituição desde
2002. Sua dissertação foi orientada pela Profª Drª Mirtes Marins de Oliveira, coordenadora
do mestrado em artes visuais da Fasm.

90 m arcelin a | hit et nunc


As galerias não têm lado de fora, são como os sonhos.
Walter Benjamin1

Se, por um lado, a moda nos mostra uma face banal e corriqueira, que pode nos levar
a discursos fúteis e vazios, por outro, ela pode vir a oferecer leituras e sentidos mais
densos para a compreensão das experiências humanas, já que sua linguagem é perce-
bida, cada vez mais, como um elemento significativo na construção da identidade de
uma sociedade. A percepção de que não apenas a economia ou a política, mas também
a estética, possa fazer parte da construção da história amplia as perspectivas de obser-
vação dos significados dessa linguagem.

Na tentativa de analisar as razões do crescente interesse pelo assunto, e procurando


entender o papel que a moda exerce em nossos dias, logo pode se perceber a dificuldade na
delimitação de um campo de estudos: por ainda não se configurar como uma área de conhe-
cimento plenamente estruturada, a moda conta com uma bibliografia diluída em campos di-
versos. Antropologia, filosofia, sociologia, psicologia e semiótica são alguns dos campos que se
dedicaram ao estudo da moda, enquanto existem poucos estudiosos com formação em moda
que se dediquem à parte teórica da matéria.

Para isso, dois autores surgem como indispensáveis.: Charles Baudelaire e, prin-
cipalmente, a meticulosa leitura da Paris baudelaireana realizada por Walter Benjamin.

Passagens: work in progess 2

Se, para Baudelaire, no século XIX, a moda configurava-se como um detalhe da cul-
tura, colhido pelo olhar atento do artista menor Constantin Guys, para Benjamin, no
século posterior, ela já podia ser configurada como uma matéria através da qual se
poderia refletir sobre as consequências do progresso industrial, como a valorização da
mercadoria, a relação entre as classes sociais e os novos valores do homem.

Benjamin, de origem judaica e com formação filosófica, considerado partici-


pante do que se convencionou chamar Escola de Frankfurt3, teve que sair da Alema-
nha, refugiando-se em Paris, para escapar do nazismo, que já dominava seu país e se
espalhava por toda a Europa. Apesar da apreensão causada pelas ameaças bélicas, a
“cidade luz” vivia um período de euforia e magnitude; a urgência de seu texto reflete

1 Walter Benjamin, in Patrice de Moncan, Les Passages Couverts de Paris, Le guide. Plans, promenades, histoire, littérature.
4ème. edition. Paris: Les Éditions Du Mécène. 2003, p. 67.
2 Passagens é o título da edição brasileira, que contou com a organização de Willi Bolle e a colaboração de Olgária
Matos. A primeira publicação da obra, de 1982, é alemã, e recebeu o título Das Passagen Werk. Esse título, escolhido
pelo organizador e editor da obra, Rolf Tiedemann, tem sentido ambíguo, pois Werk refere-se mesmo a um trabalho,
mas também carrega os sentidos de obra de rua e reforma, relacionando-se, assim, às obras de Haussmann no século
XIX. Mesmo que bem “arquitetado”, tal título não encontra registro correspondente na obra em si: daí a preferência
dos editores brasileiros pelo título Passagens.
3 Escola de Frankfurt é o nome pelo qual ficou conhecido o Instituto de Pesquisa Social, instituição ligada à
Universidade de Frankfurt voltada ao pensamento marxista, da qual faziam parte Theodor Adorno, Max Horkheimer,
Herbert Marcuse e Jürgen Habermas, entre outros.

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seu estado de espírito, repleto de angústia e encantamento.
Uma embriaguez apodera-se daquele que, por um longo tempo, caminha
a esmo pelas ruas. A cada passo, o andar adquire um poder crescente; as
seduções das lojas, dos bistrôs e das mulheres sorridentes vão diminuindo,
cada vez mais irresistível torna-se o magnetismo da próxima esquina, de
uma longínqua massa de folhagem, de um nome de rua4.

Mesmo com dificuldades econômicas e tendo diante de si uma cidade em


constante ameaça de invasão, o filósofo sabia admirar os cafés e as excentricidades
parisienses, sua intelectualidade e seus modismos, sua beleza e as contradições que o
fascinavam. Contradições que ele mesmo experimentava diante da sedução da metró-
pole, em contraponto ao seu posicionamento ideológico marxista.

Leitura de Passagens, percebemos que Benjamin não somente colecionou uma infi-
nidade de pensamentos de outros autores inspirados por Paris, como também se dedicou a
observar fatos corriqueiros da capital francesa, percorrendo ruas e monumentos, tal qual um
flâneur, e dessa maneira livre e descompromissada olhava para detalhes que normalmente
não são percebidos, utilizando um método de observação que tudo absorvia, interiorizando
as experiências para depois “pintar o quadro” da cidade mítica. Quando Benjamin trouxe de
volta o flâneur de Baudelaire e seu método de apreensão da realidade urbana, experimentou,
em seus dias de Paris, o olhar dândi do poeta, deslumbrando-se com a magia da cidade, sem,
no entanto, esquecer as consequências do progresso e o horror nazista.

O trabalho das Passagens nunca foi finalizado por seu autor, tendo sido publi-
cado muitos anos depois de sua morte5.

Motivado por sua paixão por mapas e lugares e por seu interesse em arte e cole-
ções, Benjamin configurou a obra Passagens como um banco de dados, organizado a partir
de símbolos e cores que estabeleceu para cada assunto. Trata-se de uma obra inacabada,
um work in progress, que ninguém sabe ao certo quando ou como seria finalizado. Iniciado
como um arquivo de notas para a realização de uma história social da Paris do século XIX,
esse texto, que ocupou Benjamin durante os últimos treze anos de sua vida, foi tomando
vida própria e distanciando-se de seu formato original. Pela grandiosidade e pela ambição
do projeto, tornou-se naquele momento um trabalho inviável.

A busca por uma organização material do saber presente no arquivo, classificado


visualmente de modo poético, resultou em um gráfico com desdobramentos plásticos, que
hoje podemos entender como um vislumbre da linguagem não linear identificada com o
hiperespaço6. Além disso, reunindo fragmentos de vários escritores, ao lado de ricas obser-

4 Walter Benjamin, Passagens. Willi Bolle (org.). Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2007, p. 462.
5 Encontrado na Biblioteca Nacional de Paris, o conjunto de anotações foi escrito entre 1927 e 1940, e publicado em
1982, em alemão, com edição de Rolf Tiedemann, discípulo de Adorno.
6 Segundo reflexões de Willi Bolle no curso “Representação da metrópole”, sobre as Passagens de Walter Benjamin, que

92 m arcelin a | hit et nunc


vações do próprio autor, a já mencionada obra criou uma “escrita polifônica”7, cujo eixo
central era o poeta Charles Baudelaire. Coube a seu editor alemão dar a forma final ao
arquivo, sem que nenhuma orientação tenha sido deixada pelo autor.

O burburinho da multidão da cidade grande e a efervescência provocada pelas


reformas urbanas e pela ascensão da classe burguesa industrial do século XIX fizeram-se
ouvir pela diversidade das vozes recolhidas pelo pensador nesse imenso banco de dados.
Tal qual o “véu agitado através do qual Baudelaire via Paris”8, Benjamin agitou suas pala-
vras de reconhecimento em direção à cidade moderna de outrora, inspirado pela reflexão
crítica e ao mesmo tempo lírica de Baudelaire. Mapeando Paris e revendo sua topografia,
o filósofo não tentou desmistificá-la, mas sim convocar fragmentos de seu cotidiano, bus-
cando reconstituir seu tecido histórico.

Assuntos diversos e aparentemente aleatórios foram reunidos sob títulos como


“Catacumbas”, “Magasins de nouveautées”, “Materialismo antropológico” e “História das
seitas”, demonstrando a amplitude dos aspectos abordados e criando o retrato da cidade.
Do cenário múltiplo parisiense, Benjamin destacou as passagens como símbolo da ilumi-
nação profana: “catedrais do consumo”, as galerias comercias se configuram como “altares
do capitalismo”, revelando a “dialética da modernidade”.

Assim como Baudelaire vislumbrou a modernidade através da obra de Constantin


Guys, Benjamin enxergou através de Baudelaire e das galerias cobertas “o prazer e a dor” de
se viver na cidade moderna, ordenada pelo sistema capitalista burguês, que àquela altura já
evidenciava suas contradições. Retomando personagens baudelairianos e usando o método do
flâneur, criou um texto que, a partir do fragmento, reconstrói as paisagens de afeto e choque
contidas na metrópole francesa. Procurou, assim, explorar diversas facetas e aspectos daquela
realidade sem, no entanto, cegar-se diante dela ou perder-se em seu interior.

Impregnado por uma certa sensação de urgência e com um pensamento


aberto e pouco convencional, perseguindo os sentidos contidos nas coisas do cotidia-
no – “na análise do pequeno momento singular, o cristal do acontecimento total” –,
criou uma obra com características inovadoras, mas ao mesmo tempo muito rigorosa,
que antecipou as construções não lineares, fragmentadas, onde o banal adquire a aura
do extraordinário.

As passagens cobertas de Paris 9

Um dos maiores interesses do pensador em relação à Paris do século XIX – e que aca-
bou dando nome ao seu trabalho – foram as passagens. Galerias cobertas por telhados
aconteceu no Centro Universitário Maria Antonia, de 7 a 28 de agosto de 2007.
7 Id.ibid.
8 Walter Benjamin, “Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo”. In: Obras escolhidas, volume 3. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1989, p. 117.
9 Todas as informações sobre as passagens foram extraídas do livro Les Passages Couvert de Paris, de Patrice de Moncan,
2003.

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envidraçados, tinham um objetivo urbanístico civilizador, por oferecerem uma opção
às alamedas enlameadas, às agruras do tempo chuvoso, aos veículos apressados, à po-
eira e aos entulhos, restos da construção da modernidade que atrapalhavam pedestres
e consumidores. Estabelecimentos comerciais criados entre o final do século XVIII e
meados do XIX, surgiram no momento em que as cidades começavam a crescer em
ritmo desordenado e tiveram sua condição favorecida pelo comércio têxtil10.

No século XVIII as calçadas da cidade, quando existiam, eram estreitas, e as


ruas eram lotadas de gente e de veículos de vários tipos, movidos por animais, que se
misturavam sem ordem no espaço público. Quando chovia, a lama cobria as ruas e,
no tempo seco, a poeira se espalhava, sujando roupas e chapéus. Era difícil caminhar
em Paris. O comércio competia com a multidão pelo pouco espaço das vielas estreitas,
e as lojas não chamavam a atenção: por falta de vitrines as mercadorias tinham de ser
levadas para a rua, para poderem ser vistas pelos fregueses: “A bancada do lojista não
podia sequer transpor a soleira da porta (...) sem que no mesmo instante um cabriolet
insolente a arrebatasse ao voo (...) e a atirasse toda escangalhada na sarjeta”11.

A primeira passagem foi construída acidentalmente pelo Duque de Or-


leans, primo do rei Luís XVI, que por conta de uma necessidade financeira via-
bilizou a abertura, em 1786, da Galeries des Bois, nos jardins do Palais-Royal.
Cercada por lojas luxuosas e cobertas por arcadas imponentes, a Galeries des Bois
fez sua fama não só entre os parisienses, mas também entre visitantes provenientes
de toda a Europa. Em consequência do enorme sucesso e dos lucros obtidos, vá-
rios burgueses com recursos disponíveis, percebendo a potencialidade do negócio,
dedicaram-se a construir passagens por toda a cidade.

Protegidas das intempéries, elas ofereciam ambientes agradáveis e isolados,


e mantinham o conforto do lar, ao mesmo tempo em que expunham produtos e se
abriam ao convívio público. Eram construídas em locais de grande movimento, de
forma que o pedestre pudesse abreviar sua rota, livrar-se do tumulto das ruas e, ainda
por cima, ficar atualizado com as novautées. Lá o tempo passava devagar: era possível
olhar as vitrines sem pressa, observar as pessoas, a maneira como se vestiam e se por-
tavam, “olhar e ser visto”12.

Refúgios da modernidade

Para um ambiente ser considerado uma passagem, era preciso ser reservado aos
pedestres; unir duas ruas movimentadas, oferecendo-lhes um atalho; ser cercado
por lojas; ter, em sua estrutura e em suas lojas, arquitetura e detalhes de luxo; ter
uma cobertura envidraçada, que deixasse passar a luz natural durante o dia, e que,

10 Walter Benjamin, in Patrice de Moncan, op. cit., p. 39.


11 Moncan p. 13. Tradução livre.
12 Conta-se que por lá era moda passear levando uma tartaruga como companhia, para deixar clara a falta de pressa.

94 m arcelin a | hit et nunc


à noite, fosse iluminado artificialmente – no início com iluminação a gás e, no
futuro, elétrica 13.

As passagens logo se tornaram uma grande atração: eram uma boa resposta
ao burburinho das ruas abarrotadas e estreitas, que não ofereciam comodidade nem
segurança. O apogeu dessas construções ocorreu entre os anos de 1786 e 1860 – quan-
do a última delas, a Passage des Princes, foi criada – e obtiveram sucesso principal-
mente durante a Restauração, entre os anos 1814 e 1830.

Além de oferecer conforto nos deslocamentos, as passagens forneciam


serviços fundamentais para a higiene e a elegância: toaletes e salons de décrottage
– salas para se arrumar com engraxates e funcionários para escovar a poeira dos
casacos – e até mesmo salas de banho. Numa cidade onde estas eram raras em
casas privadas, os banhos públicos eram uma necessidade 14. As damas e os cava-
lheiros, quando iam passear nas passagens, colocavam-se em seus melhores tra-
jes, procurando se apresentar como se estivessem em salões de festa. As diversões
também estavam presentes, desde restaurantes e cafés, bailes e teatros, até jogos
e prostituição. As hirondelles-femmes eram as prostitutas das passagens, e ficavam
nos balcões das janelas que davam para o interior das galerias, flertando com os
fregueses lá embaixo15.

Mas as passagens eram, principalmente, o lugar dos livros. Havia livrarias,


salas de leitura e editores estabelecidos16. Lá era possível folhear à vontade as edições
que estavam disponíveis aos passantes nas bancas, do lado de fora das livrarias. E nos
cafés escritores e poetas se encontravam para discutir literatura.
Não tendo ainda perdido o costume de bancar o misantropo,
sentava-se sozinho, a uma mesa de centro, pedia cerveja, cachimbo,
que enchia de tabaco, acendia, fumava, tudo sem pronunciar uma
palavra durante a noite toda. Mas como já tinha admiradores
entre os jovens da passagem Choiseul, acontecia por vezes que um
neófito viesse vê-lo muito cerimoniosamente, seja para cortejá-lo,
seja para ler os seus versos17.

Anos depois do período de glória das passagens, já na década de 1920, um grupo bizarro
de escritores e artistas passou a se reunir na Passage de l’Opéra, fugindo dos locais da

13 Cf. Luchet, apud Benjamin, op. cit. <há mais de uma obra do Benjamin citada anteriormente, a qual se refere?>,
não sei mais. É necessária referência nesse caso?p. 29.
14 Como curiosidade, havia em Paris, em 1780, apenas 250 banhos públicos, e durante o Segundo Império apenas seis
salas de banho para cada mil pessoas.
15 O jogo e a prostituição eram livres até o reinado de Luís Filipe, que proibiu essas práticas em locais públicos. Como
as passagens eram locais privados, podiam abrigar tais atividades. Moncan, p. 60.
16 Na Passage Choisel havia a editora e livraria Lamerre, onde foram editados os primeiros poemas do jovem Verlaine.
Hoje lá ainda se encontram editores e sebos.
17 Descrição de Philibert Audebrand sobre o poeta Baudelaire contida em Henri Troyart, Baudelaire, trad. Renata
Cordeiro. Coleção Persona. São Paulo: Scritta, 1995, p. 250.

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moda: “Os poetas do movimento dadá estão reunidos ao redor de uma mesa: estes são
meus amigos”18. André Breton, Paul Éluard, Francis Picabia, Tristan Tzara e Man Ray, entre
outros, eram os amigos de Louis Aragon, que costumavam marcar seus encontros ali, pois
apreciavam o ambiente decadente. Em O camponês de Paris, este descreve a atmosfera do
local, associando-a a uma paisagem sobrenatural: “A luz do insólito (...) reina de forma
bizarra nessas galerias cobertas (...) que levam o nome (...) de passagens, como se nesses
corredores (...) não fosse permitido a ninguém parar por mais que um instante”19.

Luz e magia: Paris, a cidade dos espelhos

A magia é um aspecto importante na constituição da atmosfera das passagens. Não


apenas o luxo, o conforto e as nouveautées encantavam o público, mas as luzes, os
brilhos e os reflexos também hipnotizavam os transeuntes que eram atraídos para as
galerias cobertas.

O fato de se criar uma situação ideal para as compras estimulava os comercian-


tes e proprietários a oferecer, além do luxo dos produtos, as inovações tecnológicas em
materiais empregados na arquitetura e na decoração, constituídas à maneira “moderna”.
Investir em materiais novos, como o ferro e o vidro, em substituição à madeira, também
tornava as galerias mais seguras – já que esta propagava incêndios facilmente – e acrescen-
tava leveza às estruturas, criando no interior das galerias uma iluminação entre o artificial
e o natural, que gerava uma atmosfera mágica. Usadas pela primeira vez nas galerias, as
estruturas de ferro e vidro passaram a ser as coberturas-modelo das passagens, tornando-
-se sua marca registrada.

As conquistas obtidas nas técnicas de vidraçaria foram determinantes para o en-


cantamento das passagens. Se levarmos em conta que, até então, as vitrines mais se pareciam
com janelas estreitas, sustentadas por uma cruz de madeira, de um vidro resistente e inovador,
acompanhando toda a extensão das lojas, causava impacto, acrescentando-lhes modernidade,
ao mesmo tempo em que iluminava o interior de cada estabelecimento, possibilitando maior
visibilidade dos produtos e impulsionando as vendas. Uma bela vitrine era garantia de sucesso.
O senhor Corsellet pode se orgulhar de ter a loja mais bonita de comidas
do Palais Royal. Todas as faces dão para a luz do dia e através de soberbas
vidraças da Boêmia nós podemos perceber, arranjadas tanto com gosto
como simetria, tudo que pode mover os desejos do homem mais blasé�.

Além de vidros, as passagens eram forradas por espelhos, que criavam reflexos e brilhos, e garan-
tiam a elegância dos pedestres, que podiam verificar a ordem dos penteados ou a posição de seus
chapéus20. É de Benjamin a observação: “Paris, cidade dos espelhos. As mulheres aqui se veem

18 Moncan, p. 66.
19 No original: La lumière de l’insolite... règne bizarrement dans ces sortes de galeries couvertes... que l’on nome d’une
façon troublante dês passages, comme si dans ces coloirs dérobés au jour, il n’était pás permis à personne de s’arrêter plus
d’um instant. Louis Aragon, Le paysan de Paris. Paris: Gallimard, 1996, p. 64. Tradução livre.
20 Id., ibid., p. 24.

96 m arcelin a | hit et nunc


mais que em outros lugares”; e do vaudeville Les Passages et les rues vem a canção: “Ah! Que char-
me, nas passagens as mulheres parecem estar em suas penteadeiras”21, já que elas podiam parar
para se arrumar em frente aos espelhos.

Quando as passagens surgiram, não havia iluminação em Paris, além de velas


e lâmpadas a óleo. Foi preciso esperar para que, em 1811, surgisse uma inovação que
iria revolucionar a vida dos parisienses. Na Passage des Panoramas uma luz nova bri-
lhou de forma desconhecida: a iluminação a gás, que foi usada pela primeira vez nas
“catedrais da modernidade”. Oferecendo uma atmosfera totalmente nova, as passagens
convidavam a população a sair à noite, iniciando a vida noturna burguesa na cidade.

As passagens mostraram uma nova maneira de exploração comercial que,


além de expor os produtos, trazia para seus domínios novidade, tecnologia, entrete-
nimento, serviços e aparência. O capitalismo conseguiu, na aliança entre as passagens
e a indústria, um impulso considerável. A revolução ocorrida no comércio foi apoia-
da pelos acontecimentos da moda, nos artigos de vestuário e também nos hábitos e
costumes. A ditadura da moda começou a criar seus súditos, na medida em que eram
oferecidos ao público locais adequados para a demonstração das aparências e, princi-
palmente, das novidades. O hábito das compras e da elegância estendeu-se para classes
que até então não tinham acesso a elas. A produção de artigos industriais explodiu, e
as passagens transformaram-se em lugares onde a moda passou a habitar.
Período singular (...) durante o qual a Moda, filha que era da
revolução industrial e da máquina a vapor, vai alcançar mobilidade e
abrangência condizentes com as novas conquistas da modernidade.
Era, portanto, em que o fenômeno do gosto e do consumo ganha
outra ênfase e varia conforme precisos sobressaltos, sabiamente
manipulados por uma nascente indústria, que logo supera e registra
um vasto horizonte de lucro 22.

Com lojas distribuídas nos dois lados da galeria, algumas passagens serviam
de grandes escoadouros de artigos, com expositores abarrotando os corredores de ba-
dulaques. Guarda-chuvas, meias, luvas, chapéus, botas, bengalas. Os comerciantes se
especializaram na distribuição dos produtos recém-lançados pela indústria e tiveram
como tarefa “Satisfazer o luxo, a sedução, os prazeres”23. Não apenas uma grande varie-
dade de mercadorias era exposta aos olhares curiosos dos passantes, mas também uma
paisagem humana diversificada se mostrava no interior de passagens como a Galerie
Delorme, uma das mais apreciadas na primeira metade do século XIX.
Descrito em inúmeras obras e perscrutado por diversos pesquisadores, o flâ-
neur se mostra como uma resistência fantasmagórica a algumas inovações da moder-

21 No original: Ah! c’est charmant puis que dans un passage, Les femmes sont comme dans leur boudoir. Guide, 2003:24
In Patrice de Moncan, op. cit., p. 24. Tradução livre.
22 Gilda de Mello e Souza, O espírito das roupas: A moda no século dezenove. São Paulo: Companhia das Letras, 1987,
p. 12.
23 Cf. Richard, em seu guia de Paris, apud Moncan, op. cit., p. 27.

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nidade. Personagem característico de seu tempo, que vive “mergulhado neste tanque
de eletricidade”, caminha com liberdade e vagar, num elogio à calma e à ociosidade,
estranha aos tempos produtivos do século XIX. Mas seu caminhar não tem fim. Per-
segue a realidade do antigo sonho humano do labirinto, materializado pela cidade:24
“Tenho medo de parar; é o instinto de minha vida”.25 À visão leve e doce daquele
caminhante pacífico e sem rumo que transforma a rua em sua casa, acrescenta-se a
imagem definida por Benjamin, bem mais próxima da ideia da modernidade: “o lobi-
somem a vagar irrequieto em uma selva social”.
Uma embriaguez apodera-se daquele que, por um longo tempo, caminha
a esmo pelas ruas. A cada passo, o andar adquire um poder crescente; as
seduções das lojas, dos bistrôs e das mulheres sorridentes vão diminuindo,
cada vez mais irresistível torna-se o magnetismo da próxima esquina, de
uma longínqua massa de folhagem, de um nome de rua26.

24 Walter Benjamin, “Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo”, op. cit., p. 203.
25 Máxime Du Camp, Les chants modernes (Paris, 1855, p. 104), apud Walter Benjamin, ibid., p. 203.
26 Benjamin, “Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo”, p. 186

98 m arcelin a | hit et nunc


Re fe r ê n cias b ib liográficas
AGAMBEN, Giorgio. Che cos’è Il contemporâneo. Roma: Nottempo, 2008.
ARAGON. Le paysan de Paris. Colletion Folio. Paris: Gallimard, 1996.
BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. Teixeira Coe-
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_____. Poesia e prosa, volume único. In: BARROSO, Ivo (org.). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
BENJAMIN, Walter. “Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo”. Obras
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de Irene Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG; São
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MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de
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WHITE, Edmund. O flâneur: Um passeio pelos paradoxos de Paris. Tradução de Reinal-
do Moraes. 1ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

99
Conferência dial ó gic a e n tre
Denise Mattar* e Lisette Lagnado**
V Seminário de Curadoria

Palavras-chave Resumo: O V Encontro ressalta artistas do modernismo brasileiro,


exposições ; e a tipologia de exposições de caráter retrospectivo, concebidas
curadoria; museu; especialmente para uma instituição museológica. Após um breve
museografia; histórico das principais curadorias que marcaram o circuito artístico
arquitetura local – com Walter Zanini instituindo uma montagem por analogia de
cenográfica. linguagem  na Bienal de São Paulo de 1981, no lugar dos agrupamentos
em países –, Denise Mattar aborda a museografia, o display ou
Key words arquitetura cenográfica, como alguns preferem denominar a maneira
exhibitions ; como as obras são dispostas no espaço para adquirir um sentido que
curatorship; pode ser inovador, construído e polêmico. Outro tópico que merecerá
museum; sua atenção é a necessidade de uma extensa pesquisa preliminar:
display; scenery levantamento bibliográfico, de fotografias, vídeos, e depoimentos. Em
architecture. que medida essa pesquisa difere – ou não – da pesquisa acadêmica?
Como a escrita, uma espacialidade da ordem do discurso, pode
conseguir ser simultaneamente lúdica e linguística?

Abstract: The V Encontro highlights artists from the Brazilian modernism,


and the typologies of retrospective exhibitions, designed especially for a
museum institution. After a brief history of the main curators that marked
the local art scene—Walter Zanini establishing a so-called analogy
of language at the Bienal de São Paulo, in 1981, instead of groups by
countries—Denise Mattar discusses the exhibit design, display, or scenery
architecture, as some prefer to call the way the works are arranged in space
to get a sense that can be innovative, built, and controversial. Another topic
that deserves attention is the need for extensive primary research, literature,
photographs, videos, and testimonials. To what extent does this research
differ—or not—from academic research? Like writing, a spatiality of the
order of discourse, can it be both playful and linguistic?

100 m arcelin a | hit et nunc


Lisette Lagnado: Há um inchaço evidente na procura de curadores: antes mesmo de
concluir uma pós-graduação básica, jovens são requisitados pelo mercado, e a urgência
sobrepõe-se ao despreparo profissional. Ou ainda: aprende-se fazendo, na prática do dia
a dia. Corrida perversa, que certamente contribui para o aumento de uma opinião gene-
ralizada que desmerece o papel do curador – é nesse contexto que consigo compreender o
surgimento do termo pejorativo “criticisismo”. É um termo que desconhece o trabalho in-
telectual de pesquisa e crítica, que fundamenta toda uma rede de relações históricas antes
de se propor uma exposição. É um erro pensar que a tarefa do curador esteja reduzida a
montar espetáculos temporários. O estado atual da prática curatorial no Brasil indica um
desconhecimento da produção recente (em razão, também, de sua extensão, porque hoje
não se trabalha mais com um cânone circunscrito em centros ocidentais ou hegemônicos).
Urge formar historiadores do presente, aptos a localizar as formas dentro das quais os
artistas estão criando.

O V Seminário Semestral de Curadoria da Fasm traz hoje Denise Mattar, a


quem agradeço por ter aceitado o convite para colocar sua experiência em discussão numa
Faculdade. No texto “Os espaços da arte” (2009), você retoma a origem da palavra mu-
seu e observa a inexistência de uma palavra grega para designar as artes ditas plásticas,
diferentemente da história, da poesia, da dança, da música. Ora, você introduz o mou-
seîon como “instituição filosófica, lugar de contemplação”. Esse é o contexto da situação
brasileira, no final dos anos 1940, com a criação praticamente contemporânea (entre
eles) dos Masp (1947), MAM-RJ e MAM-SP (1948). Chama atenção o fato de não haver
menção imediata à Bienal de São Paulo. Como interpretar isso, uma vez que você prefere
seguir o raciocínio com um destaque (justo!) para Lina Bo Bardi como “precursora da
montagem cenográfica”? Deveríamos, então, ler o legado de Lina Bo Bardi como o de
uma “protocuradora”, uma vez que, para você, a questão espacial parece ser determinante
para o conteúdo curatorial (e, lembrando, para quem não conhece seu texto, que logo
em seguida você vai apresentar “A Grande Tela” de Sheila Leirner, de 1985, tido como o
gesto que inauguraria, no Brasil, a dissidência entre a vontade do artista e a vontade do
organizador da exposição)?

Denise Mattar: Aceitei seu convite com grande interesse, pois creio que a questão da
curadoria merece ser discutida. Curador é uma designação relativamente nova para
uma função que existia, mas que ganhou projeção e derivou para novas posturas. An-
tes de qualquer coisa, esclareço que o texto que mandei para você foi escrito para o
Seminário Internacional realizado no Museu Imperial (outubro/2009), cujo tema era
a “Relação curadoria-cenografia”. Fui convidada a participar, porque em meu trabalho
curatorial a cenografia tem muito peso. O título do texto é “Estratégias de sedução”,
pois vejo a cenografia como uma forma de tornar os conceitos curatoriais mais aces-
síveis ao público.

No texto, não fui direto dos museus para a Bienal, porque durante anos a
Bienal de São Paulo copiou a Bienal de Veneza usando uma divisão por países, em

101
montagens quase simplórias. As fotos da II Bienal, por exemplo, até hoje considera-
da internacionalmente uma das grandes exposições de arte já realizadas no mundo,
impressionam pelas obras apresentadas, mas não pelas montagens. Tudo era muito
amador: a seleção das obras, por exemplo, foi realizada como uma ação entre amigos.
Sérgio Milliet era o diretor artístico, mas todos palpitavam, especialmente Yolanda
Penteado e a artista (e embaixatriz) Maria Martins. Picasso emprestou Guernica a pe-
dido de Cícero Dias e contra a vontade de Alfred Barr que dirigia o MoMA, onde a
obra estava. Existia um grande entusiasmo em trazer os artistas mais conhecidos, por
causa do IV Centenário de São Paulo, e todos se uniram nessa luta.

Depois da II Bienal, esse ânimo arrefeceu e entrou no “modo econômico”.


Cada país escolhia o que ia ser mandado para a Bienal, e em cada um deles havia
uma comissão para selecionar os artistas. Como eram os países que pagavam, essas
comissões locais foram se cristalizando, e tudo se tornou muito político e pouco
inspirado. Havia algumas ótimas representações, mas outras eram péssimas. Em
1961, Mário Pedrosa assumiu a direção do MAM e da Bienal, e emprestou um ca-
ráter curatorial (e político) à Bienal. A ação não teve continuidade, pois em 1963
a Bienal e o Museu separaram-se. Nos anos da ditadura, houve o boicote interna-
cional à Bienal e seu esvaziamento. As Bienais chegaram aos anos 1980 combalidas
e foram resgatadas por Walter Zanini, que abandonou o critério de divisão por
países, fez a organização da mostra por analogia de linguagem e convidou alguns
artistas. Ele organizou as Bienais de 1981 e 83, e logo a seguir veio a Bienal com
curadoria de Sheila Leirner.

Enquanto isso, no mesmo período, Lina Bo Bardi desenvolvia um traba-


lho totalmente pessoal e era, sim, uma “protocuradora”, aliás, bem mais curadora
do que Bardi. Ele comprou o acervo do Masp mais preocupado em ter grandes
nomes do que em criar uma linha do tempo ou uma coleção com foco definido.
Por isso sempre realizava, paralelamente, mostras que ele chamava de didáticas, e
que eram feitas com reproduções. Cito um fato paralelo que, creio, reforça minha
opinião sobre Lina. Ela foi para a Bahia quando Bardi e Chateaubriand levaram
a coleção do Masp para a Faap, com a qual fizeram um convênio. A coleção per-
maneceu na Faap de 1958 a 1959, e Lina, inconformada, aceitou, nesse período,
o convite para dirigir o Museu de Arte Moderna da Bahia, onde estabeleceu um
programa “curatorial” extremamente coerente. Na Bahia, continuou negociando
com a Prefeitura de São Paulo para conseguir o terreno do Trianon, para o qual já
havia feito o projeto arquitetônico do museu. Apostou que o convênio Masp-Faap
não duraria, e acertou. Quando os militares a expulsaram do MAM-BA, depois de
um período na Itália, ela voltou a São Paulo e começou a luta pelo Masp, ao qual
se dedicou inteiramente, e que inaugurou em 1967. A ousada concepção de Lina
de criar uma “floresta” de quadros na Pinacoteca do Masp é, em parte, uma saída
expositiva à falta de linearidade do acervo. Uma solução museográfica…

102 m arcelin a | hit et nunc


Há curadores que idealizam propostas interessantes que funcionam bem em
livros. Tratam de questões teóricas para as quais o texto é o meio adequado. Mas uma
exposição é realizada no espaço e, por isso, a questão espacial é determinante.

LL: É importante sinalizar uma mudança de discurso em relação aos anos 1970,
no que diz respeito ao papel do museu, enquanto instituição artística capaz de dinami-
zar a cultura e comunicar-se com o público. A crítica institucional surge inclusive desse
período de descrença, tanto na história como na coleção. Parece-me interessante seguir o
raciocínio de Boris Groys, quando aponta para uma época que se emancipou da necessi-
dade do “novo” a todo custo. Cito-o [os grifos são meus]:
When and under what conditions does art appear to be most alive? There
is a deep-rooted tradition in modernity of history bashing, museum
bashing, library bashing, or more generally, archive bashing in the name
of real life. The library and the museum are the preferred objects of
intense hatred for a majority of modern writers and artists. Rousseau
admired the destruction of the famous ancient Library of Alexandria;
Goethe’s Faust was prepared to sign a contract with the devil if he could
escape the library (and the obligation to read its books). In the texts of
modern artists and theoreticians, the museum is repeatedly described as a
graveyard of art, and museum curators as gravediggers. According to this
tradition, the death of the museum—and of the art history embodied by
the museum—must be interpreted as a resurrection of true, living art, as
a turning toward true reality, life, toward the great Other: If the museum
dies, it is death itself that dies. We suddenly become free, as if we had
escaped a kind of Egyptian bondage and were prepared to travel to the
Promised Land of true life.1

Gostaria que você falasse a respeito do lugar do curador na passagem de um museu que
era declarado “morto”, nos anos 1970, para um museu “mais vivo”. Conseguimos superar
a febre pelo novo e desacelerar os “ismos”? Isso permite maior metabolização ante a mu-
dança de critérios?

DM: As mudanças da sociedade e da arte levaram a essa visão do Museu


como um lugar “morto”, visão, aliás, muito anterior aos anos 1970, é só lembrar-se

1 Cf. Boris Groys, Art Power, 2008. Quando e em quais condições é que a arte parece estar mais viva? Há uma
tradição profundamente enraizada na modernidade de bater com força na história, no museu, na biblioteca ou, mais
comumente, no arquivo em nome da vida real. A biblioteca e o museu são os objetos preferenciais de ódio intenso
para a maioria dos escritores modernos e artistas. Rousseau admirava a destruição da antiga e famosa Biblioteca de
Alexandria. O Fausto de Goethe estava disposto a assinar um contrato com o diabo, se ele pudesse escapar da biblioteca
(e da obrigação de ler seus livros). Nos textos de artistas e teóricos modernos, o museu é repetidamente descrito como
um cemitério de arte, e curadores de museus, como coveiros. Segundo essa tradição, a morte do museu – e da história
da arte encarnada pelo museu – deve ser interpretada como uma ressurreição da verdade, da arte viva, como uma volta
para a verdadeira realidade, vida, em direção ao grande Outro. Se o museu morre, é a própria morte que morre. Nós,
repentinamente, tornamo-nos livres, como se tivéssemos escapado de um tipo de escravidão egípcia e estivéssemos
preparados para viajar à Terra Prometida da vida verdadeira.

103
do futurismo de Marinetti e sua proposta da tabula rasa. E apesar de todos os gritos
e insurreições, uma das missões de um museu continua sendo a de preservar as obras
de arte. Não se pode esquecer que uma das características, que é específica das artes
plásticas, é a de que elas geram um “produto”, que permanece e que, embora seja pro-
priedade do pensamento humano, é também um valor, e um patrimônio, que exige
cuidados e conservação. Os novos caminhos empreendidos com a chamada desmate-
rialização da arte não aboliram esse pressuposto e, mesmo em obras totalmente con-
ceituais, o “fetiche” continua. Ninguém quer ver um simples urinol, as pessoas querem
ver “o” urinol do Duchamp discute-se à exaustão sobre a autenticidade dos Bichos de
Lygia Clark (que ela queria que fossem vendidos na feira) todos querem mostrar os
parangolés “originais” de Hélio Oiticica, e por aí vai. Preservar custa caro, é preciso
ter equipamento, pessoal, espaço etc. Naturalmente o valor da obra de arte leva a uma
complexa imbricação com o mercado de arte, mas isso é outro assunto.

Nos Estados Unidos, a sociedade considera-se dona desse patrimônio dos


museus e cobra de seus empresários um apoio efetivo a eles. Na Europa, esse papel é
desempenhado pelo Estado. Aqui, no Brasil, temos a Lei Rouanet, muito mais voltada
a eventos, e cuja aplicação institucional é difícil. Temos inúmeros Centros Culturais,
sem acervos, e que só apresentam exposições temporárias, graças à agilidade: seu or-
çamento é todo destinado às exposições; são exemplo da arte “viva”, mas grande parte
das mostras só pode ser feita porque alguém cuida de preservar a história. Um museu,
hoje, tem que aceitar múltiplos desafios: a instituição deve estar integrada à comu-
nidade local, nacional e internacional, deve oferecer um espaço atraente e convidati-
vo, sem jamais abdicar da reflexão, e deve estabelecer um equilíbrio entre conservar
e exibir, um binômio gerador de muitos conflitos. As rígidas normas museológicas
chocam-se muitas vezes com as necessidades de certas exposições históricas, e obras
contemporâneas, como instalações, vídeos e projeções, criam problemas inesperados
para as equipes dos museus.

Conciliar todos esses aspectos já seria em si uma tarefa bastante árdua, mas
devemos somar ainda uma constante crise financeira, só driblada com um efetivo de-
sempenho perante as autoridades e os patrocinadores. Os anos 1970 trouxeram uma
exigência de profissionalização que chegou aos museus com a criação de toda uma
estrutura de proteção às obras (uso de luvas, elaboração de laudos técnicos, caixas es-
peciais, museólogos), de divulgação das atividades do museu (departamentos de pro-
gramação visual, criação de uma identidade visual, publicidade), de comunicação com
o público (programas educativos, atendimento a deficientes etc.) e de uso criativo do
acervo (aí é que entra o curador).

Um dos problemas e perigos do acervo permanente é o de transformar o


museu num local de uma só visita. O público vai uma vez, considera visto, e não volta
mais. É o local “morto”. Ao mesmo tempo, é de se notar que é importante a existência
de locais permanentes reunindo obras que façam um panorama da arte, e cujo uso

104 m arcelin a | hit et nunc


e voltado ao público estudantil. Para reunir esses dois aspectos, o curador pode ser
a figura essencial propondo o uso criativo do acervo, utilizando as obras de sua ins-
tituição apresentadas em exposições temporárias com novas leituras. Às vezes, esses
acervos são tão ecléticos que trabalhar apenas com eles é algo muito difícil.

Um exemplo interessante para mudar uma situação como essa ocorreu na


França. Lá o governo, através do Departamento de Museus, fez uma reforma dividindo
os acervos das principais instituições, agrupando-os em períodos cronológicos ou em
movimentos da arte. Grosso modo, o Louvre ficou com obras antigas, o Quai d’Orsay
com o impressionismo, o Beaubourg com os modernos e o Jeu de Paume com os con-
temporâneos. O que não impede cada um de realizar mostras temporárias e contar a
história dos movimentos (o dadaísmo no Beaubourg), ou temáticas, geralmente atra-
vessando todos os períodos, como Mélancolie, no Petit Palais.

LL: Lembrando a história contada por Arthur Danto acerca da atualização da


coleção “moderna” do MoMA, quando Nova York expõe pela primeira vez as caixas pop
de Andy Warhol, alguns autores sustentam que nossa percepção do “presente”, do “con-
temporâneo”, é apenas o reflexo do diagnóstico fabricado pelas instituições, para mante-
rem justamente um contato com o grande público.

DM: A “atualização” das coleções é, sim, destinada a um maior contato com


o público. No MAM do Rio fiz muitas exposições temáticas com a coleção do Gilberto
Chateaubriand e, como curadora independente, também realizei várias outras. A res-
posta do público a elas demonstra que é uma estratégia que facilita o entendimento.

LL: Diante da historicização urgente do presente, como você explicaria que o


Brasil ainda não tenha sucumbido à necessidade de criar seu New Museum?

DM: Os museus brasileiros têm uma situação muito diversa daquela dos mu-
seus americanos. Embora muito criticada, a inter-relação entre artistas, galerias, co-
lecionadores e museus dos EUA é o que forma o seu circuito de arte – e não se pode
dizer que o resultado seja mau. O Brasil está engatinhando e esbarra no erro crucial
de deixar seus museus sem poder aquisitivo para adquirir obras. Instituições, como o
MAC-USP e Niterói, os MAM do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Rio Grande do Sul
não conseguem resolver problemas básicos; fica difícil pensar em algo novo.

Quando entrei como diretora técnica no Museu da Casa Brasileira em 1985, a


convite da gestão de Roberto Duailibi, o museu, apesar de seu local privilegiado, era um
dos espaços mais desprezados da Secretaria. O acervo do museu era composto basicamen-
te de mobiliário, e por isso propus ao Dema (Departamento de Museus) da Secretaria de
Estado da Cultura dar ao museu um perfil específico, o de um museu de design. A proposta
foi aceita e empreendi imediatamente duas ações: a elaboração de uma exposição intitula-
da Cadeira – Evolução e Design, e a criação do Prêmio Museu da Casa Brasileira. A exposi-
ção traçava um panorama das cadeiras produzidas no Brasil, desde o banco indígena até as

105
criações inovadoras do design brasileiro. Foi possível mostrar de maneira criativa o acervo
do museu, que, como quase todos no Brasil, havia sido constituído de maneira arbitrária,
não permitindo por si quase nenhum tipo de leitura.

O critério de cadeiras produzidas no Brasil permitiu-me também mostrar


as estrelas do design internacional, e abriu, para mim, contatos com designers e
produtores. A mostra foi um sucesso e ganhei imediatamente o apoio dos desig-
ners. A instituição do Prêmio Museu da Casa Brasileira foi difícil, pois a burocra-
cia da Secretaria de Estado é assustadora, mas consegui aprovar o regulamento e
mobilizar os melhores designers no sentido de participarem. Outra experiência
foi Morada Paulista, quando trabalhei com a curadora Maria Alice Milliet. Usa-
mos painéis coloridos, música ambiente e iluminação teatral, algo que não era
feito, então; a mostra foi sucesso de público e crítica, e recebeu o prêmio do Icom
(International Council of Museums). Não vou entrar em detalhes de outras ações
mais administrativas, como a criação de uma associação de amigos e a abertura
dos jardins para a realização de eventos pagos, mas tudo contribuiu para tornar o
museu visível e interessante.

Assim que saí, fui convidada a trabalhar no Museu de Arte Moderna de São
Paulo, que tinha na época como presidente o Aparício Basílio da Silva. Os museus pri-
vados brasileiros têm muitos problemas financeiros; Aparício batalhava pelo museu,
mas sua gestão era bastante pessoal. Quando entrei, já havia exposições marcadas para
todo o ano, e as mostras tinham qualidade irregular. O Museu tinha uma Comissão de
Arte que selecionava a programação e que era constituída de pessoas não muito ante-
nadas na produção contemporânea, assim, dirigi meus esforços para trazer algumas
pessoas. Isso nos permitiu mudar o perfil da tradicional exposição chamada Panora-
ma, uma das poucas mostras produzidas pela instituição. É um perigo que ronda os
museus: serem apenas uma casa/casca para exposições prontas e já patrocinadas.

Por razões pessoais, mudei para o Rio no final de 1989 e lá fui convidada a tra-
balhar no MAM, que estava fechado ao público. Marcus de Lontra Costa era o curador
geral. A gestão anterior, de Paulo Herkenhoff, havia criado uma estrutura de funciona-
mento muito interessante, que foi mantida. Paulo pretendia abrir o museu apenas quando
tudo estivesse pronto. Mais pragmáticos, Marcus e eu abrimos o museu imediatamente.
Criamos muitas exposições e cursos bastante interessantes no Galpão das Artes. O Museu
voltou à vida, e em nossa gestão é que se concretizou o comodato da Coleção Gilber-
to Chateaubriand. O Museu recebia exposições já prontas, que eram selecionadas com
muito critério, e produzia outras tantas (com muita dificuldade). A chegada da coleção
do Gilberto foi importantíssima, pois, reunindo artistas desde o período modernista até
contemporâneos, ela permite muitos recortes. Diferentemente da maior parte dos acer-
vos brasileiros, a coleção teve, na sua constituição, o acompanhamento do crítico Roberto
Pontual, o que resultou num conjunto com poucas lacunas.

106 m arcelin a | hit et nunc


Depois de sete anos de trabalho, recebemos a comunicação de que teríamos
obrigatoriamente que fazer uma exposição horrorosa, vinda da Argentina sobre (acre-
dite se quiser) a Eva Perón… Não deu… Assim, depois de onze anos de instituições,
resolvi trabalhar como curadora independente.

LL: Você concordaria que tanto a montagem ou display como o texto/escritura


são formas e são, também, enunciados discursivos? Afinal, na sua prática, o curador pro-
duz algum sentido?

DM: Para quem se monta uma exposição? Para o público em geral, letrado
ou não. Por que condenar o público comum a se sentir excluído em mostras sem uma
única explicação, sem nenhuma ponte, sem nenhuma estratégia de sedução? A mon-
tagem de uma exposição é um enunciado em si, mas que deve sair das obras ou dos
objetos de arte, e assim necessariamente estará no seu contexto de origem.

Quando realizei a exposição Pancetti – O Marinheiro Só (2000/2001, MAM-


-BA, MNBA, MAB-Faap e Pallazzo Pamphilli), as paredes da mostra foram pintadas
em vários tons de azul, todos da paleta do artista. Além disso, a exposição tinha um
som ambiente que mesclava músicas de Caymmi, de quem Pancetti era muito amigo,
e o som do mar. O mar é um elemento arquipresente na vida e na obra de Pancetti, ele
retratou muitas vezes o mar, mas, muito mais do que isso, ele tinha um olhar de mari-
nheiro, de alguém que ficava no tombadilho de um navio com uma luneta. O olhar de
Pancetti era oblíquo, mesmo quando pintava uma natureza-morta…

Na retrospectiva Samson Flexor – Modulações (2003, IMS e Galeria do Sesi),


foi criada uma trilha sonora na qual foram utilizadas as suas músicas preferidas, ao
som das quais ele pintava. Mas o som não era uma ilustração: a obra de Flexor é musi-
cal, ela se desenvolve como uma partitura. Ele falava sobre isso, não foi uma invenção
minha, foi uma observação, foi a seleção de algo que percebi ser importante. Na mes-
ma exposição ousei criar uma sala de paredes roxas, porque Flexor falava muito sobre
essa cor.

O primeiro passo do trabalho de curadoria é a pesquisa. É necessário fazer um le-


vantamento bibliográfico, ver fotografias, vídeos e depoimentos. Curadoria é, fundamen-
talmente, escolha. É um ensaio visual e autoral sobre um determinado assunto. Mas, cada
escolha deve estar baseada nos resultados da pesquisa. A pesquisa para uma exposição dife-
re em vários aspectos daquela para fins acadêmicos, como uma dissertação de mestrado ou
tese de doutorado, embora deva ser um trabalho igualmente criterioso. Em geral, apenas
uma pequena parte da pesquisa desenvolvida tem condições de ser apresentada na expo-
sição, entretanto ela é absolutamente necessária para sustentar as propostas conceituais.
Uma exposição não está restrita ao círculo acadêmico, precisa manter uma comunicação
com o público leigo e, por isso, encontrar nas informações colhidas elementos de encanta-
mento e interação. Dentro desses elementos, incluo textos didáticos e claros que explicitem
meu partido curatorial.

107
Quanto ao texto crítico, ele se destina necessariamente a um público mais res-
trito, e permite ao curador levar longe seu pensamento. Mas é preciso tomar um certo
cuidado para que o curador não escreva apenas para seus pares, como a defesa de tese
para uma banca, que considero algo meio medieval, quase um resquício da Inquisição,
um processo que se prende a detalhes que geralmente não importam. A criatividade
não é bem-vista na academia…

LL: Por que essa mania de separar a escrita da espacialização das obras, como se
as questões teóricas não pudessem se explicitar dentro de um espaço físico, no qual nosso
corpo teria um contato direto com conceitos, mesmo que estes sejam materializados em
instalação, filme, escultura? Como se o display dispensasse qualquer fundamento teórico e
pertencesse apenas à engrenagem da arte…

DM: O contato direto com os conceitos ajuda muito a dispensar os partidos


teóricos e, sobretudo, facilita o entendimento do público comum, que não é capaz de
compreender textos herméticos, mas pode “mergulhar” na obra de um artista, condu-
zido por elementos como música, cor ou mesmo a forma de distribuição dos traba-
lhos. Mas, para que isso ocorra, é necessário que o display seja de fato um conceito.
Quando isso não acontece, temos exposições nas quais a montagem é falsa, não sai “de
dentro”, e aí, sim, temos artifícios “publicitários”, que podem até encantar o visitante,
mas não passam de entretenimento.

LL: Você diria que as vanguardas modificam a historicização da arte?

DM: Atribuo essa transferência de foco aos teóricos das vanguardas, e não
aos artistas. Pegando um exemplo bem brasileiro, Tarsila fez o Abaporu lembrando-se
das histórias de terror que sua babá contava. A obra foi realizada e depois dela veio o
Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade. Os neoconcretos se reuniam, discutiam,
faziam seu trabalho e, depois, Gullar escreve a “Teoria sobre o não objeto”. Mas nossa
historiografia faz pensar que Tarsila criou suas obras a partir do manifesto de Oswald,
o que não é verdade. Essa inversão é um perigo.

LL: A partir da constatação de que vivemos o tempo das exposições com cura-
doria – entendo a exposição sem curadoria como aquela que ou bem segue a “linha do
tempo” ou bem procura ser acrítica e evitar um partido –, seria necessário que cada um
inscrevesse, simultaneamente, os paradigmas de sua pauta para podermos seguir seu ra-
ciocínio. O curador deve explicitar o levantamento que reuniu para expor um (entre mil
outros possíveis) estado estético. E, ainda assim, acho que a função crítica deve permane-
cer, qualquer que seja a tipologia e a missão de cada mostra.

DM: Particularmente não gosto de nada acrítico – nem jornalismo. Como pode
um apresentador de televisão anunciar um fato escandaloso, triste ou chocante sem ma-
nifestar sua opinião? Um curador está para as artes plásticas como um diretor está para
o cinema. Se fosse possível ver os mesmos atores representando uma mesma peça, porém

108 m arcelin a | hit et nunc


encenada por diretores diferentes, seria possível perceber a diferença do resultado final.
Cada diretor daria ênfase maior ou menor a certas falas dos atores, escolheria um cenó-
grafo, uma sonoplastia, uma iluminação diversa. Numa exposição, todos esses elementos
estão presentes. O curador escolhe igualmente um conceito, a partir do qual seleciona as
obras, a iluminação, a ambientação etc. Mas, assim como há estilos de direção, há estilos de
curadoria. Há curadores mais científicos e críticos, há aqueles que se especializam em um
determinado período histórico e outros em um único artista. Sempre procuro alcançar a
maior comunicação possível com o público, e considero que a abordagem poética dá resul-
tados muito mais positivos do que a abordagem crítica hermética, cujo alcance geralmente
é restrito apenas a outros críticos. Muitos mecanismos permitem ao curador explicitar o
caminho que escolheu. Abrir isso para o público, entretanto, exige certa generosidade para
com seus pares, e respeito pelas pessoas que não têm a mesma formação intelectual.

LL: Espacialidade e escritura são dois suportes distintos, com muita ambigui-
dade, pois a escritura tem espacialidade, bastaria evocar O lance de dados de Mallarmé,
os poetas concretos, o teatro seco de Beckett, tantos lugares de experimentação cênica,
lúdico-linguística. Seria interessante ouvi-la por meio de exemplos de trabalhos que você
fez ou até de salas em museus que você considera marcantes.

DM: Como disse anteriormente, considero espacialidade e escritura dois su-


portes distintos, com abrangências diferentes. Mas estamos falando de escritura ana-
lítica, crítica etc. A espacialidade dos concretos, de Mallarmé e de Beckett, é alcançada
porque eles estão utilizando a palavra como poesia, que é arte.

A Bienal de 1985 foi marcada por uma proposta curatorial inovadora. Ao selecio-
nar os artistas, a curadora Sheila Leirner tinha como proposta instalar uma visão reflexiva
sobre a arte contemporânea, que naquele momento assistia à volta da pintura em movi-
mentos como a transvanguarda e o neoexpressionismo. Essa reflexão foi criada através da
espacialidade. A curadora colocou lado a lado, num grande corredor, quase sem respiração,
a exuberante produção pictórica do período. O resultado, chamado por ela de “Grande
Tela”, foi contundente. A montagem foi considerada por alguns como a apologia de uma
tendência e, por outros, como seu enterro. Ela explica como nasceu a ideia:
A Grande Tela nasceu da náusea e da fascinação. Aquele era um período no
qual, mais enjoativo do que o cheiro e a textura da tinta em excesso, era a
saturação de imagens. Em 1985, como se sabe, a pintura renascia de todas as
maneiras, os seus filhotes cresciam como cogumelos, chegavam às centenas
e se acumulavam de uma forma assustadora no pavilhão da Bienal. Muitos
deles com a tinta ainda fresca. Tal fenômeno de multiplicação de imagens
impedia a visão individual e propunha uma abordagem radicalmente
coletiva. Isso era tanto mais possível quanto maior fosse a noção de que o
verdadeiro crítico pode e deve ser também um artista, e de que uma Bienal
não é um museu. De que a Bienal é uma plataforma da mais absoluta
liberdade crítica e do mais íntegro e categórico compromisso com o público.
Eu conduzia o meu carro, como todos os dias, pela avenida 23 de Maio,

109
que leva ao parque do Ibirapuera, mas estava dominada pelas sensações que
me causavam aquela invasão pictórica, plena de luz e de sombras. Como
um desfilar de almas, emanavam delas umas energias mescladas, estranhas.
Todas as problemáticas do mundo pareciam se espelhar naquela produção
feérica. Não se podia compreendê-la ou exprimi-la espacialmente, senão
pela figura de um grande e único conjunto. Eu olhei para a avenida que eu
percorria com o carro e imaginei o grande tecido esticado em chassi, cujas
imagens vistas em alta velocidade animavam-se em toda a sua extensão. Essa
instalação imaginária praticamente se nomeou por si própria: Grande Tela.

LL: Quero enfatizar que não há ingenuidade na montagem; e que, portanto,


quando você fez uma exposição histórica sobre Flavio de Carvalho, privilegiou aspectos
em detrimento de outros. Afinal, por que é um artista que ainda nos interpela hoje?

DM: Flavio de Carvalho foi uma das exposições que mais me fez sentir o peso
das escolhas. Tudo me interessava, e continua interessando, mas um espaço expositivo
tem tamanho, e os orçamentos, também. Como Flavio fez cenários, figurinos, projetos
arquitetônicos e encenações teatrais, utilizei na montagem alguns desses elementos,
como as cortinas coloridas, o aço inoxidável e sua forma de dispor os quadros. O
resultado foi bastante expressivo e fiel a um espírito tão pouco ortodoxo. Há muitas
maneiras de apresentar Flavio de Carvalho, mas certas peças essenciais figurariam em
qualquer seleção. É uma obra tão potente que sobreviveria até ao cubo branco.

LL: Você poderia citar uma exposição que tenha sido um erro, em termos de
formato adotado, e uma que tenha marcado você a ponto de reconhecer uma vontade
similar de usar o espaço?

DM: Penso muito nessa questão, que considero tão importante quanto a escolha
das obras, e não me lembro de ter errado o formato. Mas já vi mostras que, querendo ser
charmosas, comprometem as obras. Um exemplo clássico foi a Brasil 500 anos. O barroco
desapareceu entre as belas flores de crepom de Bia Lessa. A instalação era linda, mas as
obras sumiram. Sem falar nos problemas de conservação advindos da cenografia Parade,
do curador Laurent Le Bon, do Pompidou, na Oca do Ibirapuera. Era uma montagem ino-
vadora, que traçava um panorama cronológico da arte no século XX. Pintada por Picasso,
em 1917, para o balé de Jean Cocteau e Erik Satie, a cortina Parade era o grande símbolo e
pano de fundo da exposição. Parade representava a integração de todas as artes. Era uma
exposição interdisciplinar, composta de desenho, pintura, escultura, fotografia, cinema,
instalação, videoarte, arquitetura e design. A mostra elegeu uma obra – ou mais – para
cada ano do século passado. De 1900 – representado por Douanier Rousseau – a 2001, com
obras do artista francês Franck Scurti e do arquiteto Jean Nouvel, o percurso avançava de
maneira coerente e vertiginosa, levando o público a uma sucessão de corredores e galerias
seguindo a sinuosidade do edifício. A torre de Tatlin e o filme mudo Viagem à lua, abriam
a mostra. Telas de Picasso, Braque e Juan Gris flutuavam contra o teto da Oca; cabeças
escultóricas de Modigliani e Brancusi giravam sobre pedestais; corpos de Yves Klein eram

110 m arcelin a | hit et nunc


carimbados no espaço. Havia salas temáticas, apresentando mestres como Robert Delau-
nay, Marcel Duchamp, Henri Matisse, Luis Buñuel e Le Corbusier…

LL: A Documenta é um tipo de exposição que, aos olhos do Brasil, parece antever
tendências e pautar o futuro, quando, na sua origem, ela é fruto de um forte debate de
reconstrução da identidade alemã, que sai humilhada do pós-guerra. É evidente que não
há como se lembrar dessa mostra sem imaginar, por trás, um projeto intelectual. É um
princípio problemático para justificar uma mostra a cada cinco anos?

DM: Vi duas Documenta, a IX com a curadoria de Jan Hoet (1992), e a X com a


curadoria de Catherine David (1997), e acompanhei in loco a realização da Bienal de Vene-
za de 2007, com a curadoria de Robert Storr, participando do projeto Morrinho. A divisão
da Alemanha foi muito traumática e, em 1955, quando a Documenta foi criada, os ecos da
guerra ainda estavam muito presentes. Hitler classificou a arte de vanguarda como arte de-
generada, e esse fantasma parecia persistir na então União Soviética. Kassel fica no centro
da Alemanha e perto da fronteira da ex-Alemanha Oriental. Na sua origem, a Documenta
era uma afirmação da arte de vanguarda ocidental. Aos poucos, foi se tornando uma mos-
tra importante, mas sua proposta original foi perdendo sentido, e ela tornou-se um espaço
para lançar novas tendências. Alguns críticos dizem que foi se tornando muito submissa ao
mercado de arte. Creio que, com a queda do muro de Berlim, em 1989, o discurso original
da Documenta tenha ficado sem sentido, e não foi por acaso que Jan Hoet, em 1992, bus-
cou outro approach. Pela primeira vez, doze artistas do chamado Terceiro Mundo foram
convidados a participar, e a discussão sobre arte e periferia entrou na ordem do dia.

No início, as Bienais supriam a comunicação entre os países, eram oportuni-


dades de saber o que estava acontecendo no mundo.

Enquanto isso, as feiras de arte se profissionalizaram, e algumas são excelentes.


É certo que, por trás delas, não há um pensamento teórico, mas, em contrapartida, são
menos personalistas e, assim, mais “democráticas”. (Os artistas acham ótimo, pois não pre-
cisam ser escolhidos por um curador, e sua obra pode ser vendida.) É muito interessante
flanar numa Feira de Basel e olhar o que está acontecendo: todas as correntes, todos os ti-
pos de arte, é uma poluição visual, mas o visitante tem a liberdade de fazer as suas escolhas.
É uma terrível contradição, não é?

Re fe r ê n cias Bib liográficas


GROYS, Boris. Art Power. Cambridge: The MIT Press, 2008.
LEIRNER, Sheila. Disponível em: http://entretenimento.uol.com.br/27bienal/entrevistas.
DANTO, Arthur C. After the End of Art: Contemporary Art and the Pale of History. Prin-
ceton, New Jersey: Princeton University Press, 1997.

111
{Ócio e Ociosidade1}

<fase tardia>

Entrecruzamento notável: na Grécia antiga, o trabalho prático era reprovado e proscrito; embora fosse
executado essencialmente por mãos escravas, era condenado principalmente por revelar uma aspira-
ção vulgar por bens terrenos (riquezas); ademais, esta concepção serviu para a difamação do comer-
ciante, apresentando-o como servo de Mammon: “Platão prescreve, nas Leis (VIII, 846), que nenhum
cidadão deve exercer profissão mecânica; a palavra banausos, que significa artesão, torna-se sinonimo
de desprezível...; tudo o que é artesanal ou envolve trabalho manual traz vergonha e deforma a alma e
o corpo ao mesmo tempo. Em geral, os que exercem tais ofícios...só se empenham para satisfazer....o
‘desejo de riqueza, que no priva de todo o tempo de ócio....’ Aristóteles, por sua vez, opõe aos excessos
da crematística [arte de adquirir riquezas]... a sabedoria da economia doméstica...Assim, o desprezo
que se tem pelo artesão estende-se ao comerciante; em relação à vida liberal, ocupada pelo ócio de
estudo (scolé, otium), o comércio e ‘os negócios’ (neg-otium, ascolía) não têm, na maioria das vezes,
senão um valor negativo.” Pierre-Maxime Schuhl, Machinisme et Philosophie, Paris, 1938, pp 11-12.
[m 1, 1]

1 Neste arquivo temático, o “ócio” tradicional, aristocrático, criativo (o otium dos Romanos; o alemão Muße; o francês
loisir, o inglês leisure) é confrontado com a “ociosidade” moderna (respectivamente Müßiggang, oisiveté e idleness). No
sistema de valores burguês, baseado no “negócio” (de necotium, “negação do ócio”), o ócio dos antigos e da sociedade
aristocrática - isto é, o privilégio de estar livre da obrigação de trabalhar - é visto como algo superado e depreciado
como “ociosidade”, ou seja, “indolência” e “preguiça”. Por outro lado, a “ociosidade” moderna é um protesto contra a
fetichização burguesa do trabalho. Nossa distinção entre “ociosidade” e “ócio” procura reproduzir a diferenciação entre
Müßiggang e Muße, tentando expressar, ao mesmo tempo, através da afinidade fonética, a dialética da mudança e da
continuidade históricas. (J.L.; w.b.)

112 m arcelin a | hit et nunc


BH, 2002
Cao Guimarães* e Rivane Neuenschwander**

26 fotografias
24 x 30 cm, cada

113
Quem desfruta do ócio, escapa da Fortuna; quem se rende à ociosidade, não lhe esca-
pa. A Fortuna que o aguarda na ociosidade é, contudo, uma deusa menor do que aque-
la da qual escapou quem se entregou ao ócio. Esta Fortuna não se sente mais em casa na
vita activa; seu quartel general é a vida mundana. “Os imaginários da Idade Média re-
presentam os homens que se dedicam à vida ativa ligados à roda da Fortuna, elevando-
-se ou rebaixando-se segundo o sentido em que ela gira, enquanto o contemplativo per-
manece imóvel no centro.”P.-M. Schuhl, Machinisme et Philosophie, Paris, 1938, p. 30.
[m 1, 2]

Sobre a caracterização do ócio. Sainte-Beuve no ensaio sobre Joubert: “‘conversar e conhecer,


era sobretudo nisso que consistia, segundo Platão, a felicidade da vida privada.’ Esta classe de
conhecedores e amadores... quase desapareceu na França depois que cada um assumiu um ofício.”
Correspondance de Joubert, Paris, 1924, p. XCIX.
[m 1, 3]

Na sociedade burguesa, a preguiça - para usar uma palavra de Marx - tinha deixado de ser “heróica”
(Marx fala da “vitória... da indústria sobre a preguiça heróica”. Bilanz der preußischen Revolution, em
Gesammelte Schriften von Karl Marx und Friedrich Engels, vol. III, Stuttgart, 1902, p. 211.)
[m 1a, 1]

Na figura do dândi, Baudelaire procura encontrar para a ociosidade uma utilidade como aquela
que o ócio tinha anteriormente. A vita contemplativa é representada e substituída por algo que se
poderia chamar de vita contemptiva. (Comparar com a parte III de meu manuscrito “<Das Paris

114
115
des Second Empire bei Baudelaire>.)2
[m 1a, 2]

A experiência [Erfahrung] é o fruto do trabalho, a vivência [Erlebnis] é a fantasmagoria do ocioso.3


[m 1a, 3]

No lugar do campo de força que a humanidade perde com a desvalorização da experiência, um


novo campo se abre para ela na forma do planejamento. A massa das uniformidades desconheci-
das é mobilizada para fazer face à diversidade comprovada do tradicional. “Planificar”, a partir de
então, só é possível em grande escala. Não mais em escala individual, isto é, nem para o indivíduo,
nem por meio dele. Valéry tem razão ao dizer: “Os projetos elaborados ao longo de muito tempo,
os profundos pensamentos de um Maquiavel ou de um Richelieu teriam hoje a consistência e o
valor de um bom palpite na Bolsa de Valores.” Paul Valéry, Oeuvres Complètes, J, Paris, 1938, p. 30.
[m 1a, 4]

O correlato intencional da “vivência” não permaneceu igual. No século XIX, era “a aventura”. Em
nossos dias, ele aparece sob a forma de “destino”.4 No destino, esconde-se a noção da “vivência to-
tal”, que é mortal por natureza. A guerra é sua prefiguração insuperável. (“Pelo fato de ter nascido
alemão, eu morro” - o trauma do nascimento já contém o choque que é mortal. Esta coincidência
define o “destino”.)
[m 1a, 5]

Seria a empatia com o valor de troca o que capacita o ser humano à “vivência total”?
[m 1a, 6]

Com o rastro, a “vivência” adquire uma nova dimensão. Ela não é mais obrigada a esperar pela
“aventura”; aquele que vivencia pode seguir o rastro que o conduz até ela. Quem segue um rastro
não apenas deve estar atento; ele precisa, principalmente, já ter prestado muita atenção em tudo.
(O caçador precisa conhecer a marca da pata do animal que está rastreando; precisa conhecer a
hora em que o animal vai beber água; precisa saber qual é o curso do rio para onde se dirige sua
presa, e onde fica a parte rasa pela qual ele mesmo pode atravessá-lo.) Manifesta-se deste modo a
maneira específica na qual a experiência aparece traduzida para a linguagem da vivência. As expe-
riências podem, de fato, ser inestimáveis para quem persegue um rastro. Trata-se, porém, de expe-
riências de um tipo particular. A caça é a única formade trabalho em que elas são intrinsecamente
úteis. E a caça é uma forma de trabalho muito primitiva. As experiências de quem persegue um
rastro provêm só muito remotamente de uma atividade de trabalho, ou são totalmente desvincu-
ladas dele. (Não é à toa que se fala de “caça à fortuna”.) Elas não possuem nem sequencia, nem sis-
tema. São um produto do acaso e carregam em si a marca do essencialmente inacabável, que ca-

2 W. Benjamin, “Die Moderne”, GS I, 570-604 - “A Modernidade”, OE III, pp. 67-101. (w.b.)


3 Um traço marcante do pensamento de Benjamin é a diferenciação entre “experiência” e “vivência”. Enquanto
Erfahrung ( do verbo erfahren, que originalmente significava “viajar”, “atravessar”) pressupõe tradição e
continuidade; Erlebnis, que é algo mais espontâneo, implica em choque e descontinuidade. Em notas relacionadas
com o ensaio “Über einige Motive bei Baudelaire” (Sobre Alguns Temas em Baudelaire), Benjamin escreve que as
“vivências são, por natureza, não utilizáveis para a produção poética” e que se trata de “transformar as vivências
em experiências” (GS I, 1183). (E/M)
4 A reflexão sobre o destino aparece desde cedo na obra de Benjamin; cf. “Shicksal und Charakter” (1921; Destino e
Caráter), GS II, 171-179. (J.L.)
117
racteriza as obrigações preferidas do ocioso. O acúmulo fundamentalmente interminável de tudo
que é digno de ser conhecido, cuja utilidade depende do acaso, tem o seu protótipo no estudo.
[m 2, 1]

A ociosidade possui poucos elementos representativos, embora seja muito mais exibida que o
ócio. O burguês começou a envergonhar-se do trabalho. Ele, para quem o ócio não tem mais um
significado em si mesmo, gosta de exibir sua ociosidade.
[m 2, 2]

A noção de studio concretizou-se a associação íntima entre a idéia de ociosidade e de estudo. O


studio tornou-se, principalmente para o celibatário, uma espécie de correspondente ao boudouir.
[m 2, 3]

Estudante e caçador. O texto é uma floresta na qual o leitor é o caçador. Rumores na floresta: a idéia - a
presa arisca; a citação - uma peça do quadro (Nem todo leitor consegue encontrar a idéia.)
[m 2a, 1]

Existem duas instituições sociais das quais a ociosidade é parte integrante: o serviço notícias e a vida notur-
na. Ambas exigem uma forma específica de disponibilidade de trabalho. Esta forma é a ociosidade.
[m 2a, 2]

Serviço de notícias e ociosidade. O folhetinista, o repórter e o repórter fotográfico formam uma


escala ascendente em que a espera, o “estar a postos” e o subsequente “avançar” tornam-se cada
vez mais importantes diante das outras atividades.
[m 2a, 3]

O que distingue a experiência da vivência é o fato de que a primeira não pode ser dissociada da
idéia de uma continuidade, de uma sequencia. O acento que recai sobre a vivência torna-se tanto
mais importante quanto mais seu substrato for independente do trabalho de quem a vivenciou
- trabalho que se caracteriza justamente por levar ao conhecimento da experiência, lá onde o
outsider chega no máximo a ter uma vivência.
[m 2a, 4]

Na sociedade feudal, o ócio - a desobrigação do trabalho - era um privilégio reconhecido. Na


sociedade burguesa não é mais assim. O que distingue o ócio, tal como o conhece o feudalismo, é
o fato de ele se comunicar com dois tipos importantes de comportamento social. A contemplação
religiosa e a vida na corte representam, por assim dizer, as matrizes em que podia ser moldado o
ócio do nobre, do prelado, do guerreiro. Estas atitudes - tanto a da piedade quanto da represen-
tação - traziam vantagens ao poeta. Sua obra as favorecia pelo menos indiretamente, ao preservar
o contato com a religião e com a vida na corte. (Voltaire foi o primeiro dos grandes escritores
a romper com a Igreja, mas não deixou de assegurar para si um lugar na corte de Frederico, O
Grande.) Na sociedade feudal, o ócio do poeta é um privilégio reconhecido. É somente na socie-
dade burguesa que o poeta é considerado como alguém que vive na ociosidade.
[m 2a, 5]

A ociosidade procura evitar qualquer relação com o trabalho de quem é ocioso, e mesmo qual-
119
quer relação com o processo de trabalho em geral. Isto diferencia a ociosidade do ócio.
[m 3, 1]

“Todas as idéias religiosas, metafísicas e históricas são, em última análise, produtos de grandes
vivências do passado - representações delas.” Wilhelm Dilthey. Das Erlebnis und die Dichtung,
Leipizig-Berlim, 1929, p.198.

O abalo da experiência relaciona-se intimamente com o abalo das certezas jurídicas. “No período
liberal, o poder economico estava intimamente ligado à propriedade jurídica dos meios de pro-
dução...Mas a rápida concentração....do capital no século passado, impulsionada pelo desenvolvi-
mento da técnica, fez com que a maior parte dos proprietários, em termos legais, fosse afastada da
direção dos negócios...Uma vez que os meros detentores de títulos de propriedade são separados
da produção efetiva..., restringe-se o seu horizonte...e, por fim, o benefício que ainda obtêm de
sua propriedade...parece socialmente inútil...A idéia de um direito autonomo, com um conteúdo
estável e independente da sociedade como um todo, perde sua força.” Ocorre assim “a abolição
de todo direito determinado pelo conteúdo..., que é levada a cabo nos Estados autoritários”. Max
Horkheimer, “traditionelle und kritische Theorie”, Zeitschirift für Sozialforschung, ano VI, 1937,
nº 2, pp. 285-287;cf. Horkheimer, “Bemerkungen zur philosophischen Anthropologie”, op.cit.,
ano IV, nº 1, p.12.
[m 3, 3]

“O verdadeiro campo de atuação da representação concreta do acontecimento atual é o relato de


vivências, a reportagem. Ela se aproxima diretamente do acontecimento e registra a vivência. Isto pres-
supõe que o acontecimento realmente se transforme em vivência também para o jornalista que o
relata...A capacidade de vivenciar é, por isso, um pressuposto...do bom trabalho profissional.” Dovifat,
“Formen und Wirkungsgesetze des Stils in der Zeitung”, Deutsche Presse, 22 jul. 1939, Berlim, p. 285.
[m 3, 4]

A propósito do ocioso: a imagem arcaica dos navios em Baudelaire.


[m 3, 5]

A rígida ética do trabalho e das obras, própria do Calvinismo, está certamente en estreita corre-
lação com o desenvolvimento da vita contemplativa. Essa ética procurava colocar uma barragem
para impedir que o tempo congelado na contemplação se esvaísse na ociosidade.
[m 3a, 1]

Sobre o folhetim. Tratava-se, por assim dizer, de injetar na experiência, por via intravenosa, o
veneno da sensação; isto quer dizer: ressaltar na experiência comum o caráter de vivência. A isto
se prestava, em primeiro lugar, a experiência do habitante das grandes cidades. O folhetinista tira
proveito disso. Ele torna a grande cidade estranha para os seus habitantes. Desta forma, ele é um
dos primeiros técnicos convocados pela necessidade premente de vivências. (A mesma necessi-
dade manifesta-se com a teoria da “beleza moderna”, tal como proposta por Poe, Baudelaire e
Berlioz. A surpresa constitui-se nela como um elemento dominante.)
[m 3a, 2]
121
O processo de estiolamento da experiência começa já na manufatura. Em outras palavras: ele
coincide, em seus primórdios, com os primórdios da produção de mercadorias. (Cf. Marx, Das
Kapital, vol. I ed. Korsch, Berlim, 1932, p. 336.)
[m 3a, 3]

A fantasmagoria é o correlato intencional da vivência.


[m 3a, 4]

Assim como o processo de trabalho industrial se destaca do artesanato, também a forma de


comunicação correspondente a esse processo de trabalho - a informação - destaca-se da forma
de comunicação correspondente ao processo de trabalho artesanal, que é a narração. (Cf. Walter
Benjamin, “Der Erzähler”, Orient und Occident, nova série, nº 3, outubro de 1936, p. 21, pará-
grafo 3 até p. 22, parágrafo 1, linha 3; p. 22, parágrafo 2, linha 1 até o fim da citação de Valéry).5
É preciso prestar atenção a esta correlação para se ter uma idéia da força explosiva contida na
informação. Esta força explode na sensação. Com ela, arrasa-se tudo que ainda evoca a sabedoria,
a tradição oral, o lado épico da verdade.
[m 3a, 5]

O “estudo” é um álibi para as relações que o ocioso gosta de manter com o demi-monde. Em espe-
cial, pode-se afirmar a respeito da boêmia que ela estuda seu próprio meio durante a vida inteira.
[m 3a, 6]

A ociosidade pode ser considerada uma forma precursora da distração ou do divertimento. Ela
se funda na disposição do indivíduo de saborear sozinho uma sucessão aleatória de sensações.
Porém, tão logo o processo de produção começou a mobilizar grandes massas de pessoas, surgiu
entre aqueles que “tinham tempo livre” a necessidade de se distinguir da massa dos que traba-
lhavam. A esta necessidade respondeu a indústria do entretenimento, a que logo passou a con-
frontar-se com seus próprios problemas. Já faz tempo que Saint-Marc Girardin foi obrigado a
constatar que “o homem consegue se divertir por tão pouco tempo”. (O ociosos não se cansa tão
depressa quanto aquele que se diverte.)
[m 4, 1]

O verdadeiro “flâneur assalariado” (Henri Béraud) é o homem-sanduíche.


[m 4, 2]

A imitatio dei do ocioso: como flâneur, ele é onipresente; como jogador, onipotente; e como estu-
dante, onisciente. A jeunesse dorée 6 foi a primeira a encarnar esse tipo de ocioso.
[m 4, 3]

A “empatia” ocorre por um déclic, uma espécie de comutação [Umschaltung]. Com ela, a vida
interior se torna um correspondente do elemento de choque na percepção sensorial. (A empatia
é uma sincronização [Gleichschaltung]7 no sentido íntimo.)

5 W. Benjamin, “Der Erzähler”, GS II, 447, linhas 13-20; e 448, linhas 16-33; “O Narrador”, OE I, p. 205, linhas 15-22,
e p. 206, linhas 14-29. (R.T.;w.b.)
6 A juventude rica e alinhada com a moda; na França, especialmente a juventude contra-revolucionária de 1794. (E/M)
7 Articulada em forma de um trocadilho entre Umschaltung e Gleichschaltung, a crítica benjaminiana da empatia
123
[m 4, 4]

Os hábitos são a armadura das experiências. Esta armadura é atacada pelas vivências.
[m 4, 5]

Deus terminou a tarefa da Criação; ele descansa e se refaz. É este Deus do sétimo dia que o bur-
gues tomou como modelo da ociosidade. Na flânerie, ele tem a onipresença de Deus, no jogo,
sua onipotência; e no estudo, sua onisciência. - Esta trindade está na origem do satanismo em
Baudelaire. - A semelhança do ociosos com Deus indica que a fórmula (protestante) que diz que
“o trabalho é o ornamento do cidadão”8 começou a perder a importância.
[m 4, 6]
As exposições universais foram a escola superior ondeas massas, afastadas do consumo, aprende-
ram a sentir empatia pelo valor de troca. “Olhar tudo, não tocar nada.”
[m 4, 7]

A descrição clássica da ociosidade em Rousseau. Esta passagem indica, ao mesmo tempo, que a exis-
tência do ocioso tem algo de divino e que a solidão é um estado essencial do ocioso. No último livro
das Confessions lê-se o seguinte: “Tendo passado a idade dos projetos romanescos, e tendo a fumaça da
vanglória mais me aturdido que lisonjeado, não me restava, como última esperança, senão viver...num
ócio eterno. É a vida dos bem-aventurados no outro mundo, e ela constituiria minha felicidade supre-
ma, dali em diante, neste mundo aqui./ Os que me recriminam por tantas contradições não deixarão
de me reprovar por mais uma. Eu disse que a ociosidade dos círculos tornava-os insuportáveis para
mim, e eis-me procurando a solidão unicamente para me entregar à ociosidade. A ociosidade dos cír-
culos é mortífera, porque é uma necessidade. A da solidão é encantadora, porque é livre e voluntária.”
Jean-Jacques Rousseau, Les Confessions, Paris, Éd. Hilsum, 1931, vol. IV, p. 173.
[m 4a, 1]

Entre as condições da ociosidade, a solidão adquire um significado especial. Só a solidão, com


efeito, emancipa - virtualmente - a vivência de qualquer acontecimento, não importando o quão
insignificante ou medíocre ele seja: no caminho da empatia, qualquer transeunte pode tornar-se,
graças à solidão, um substrato da vivência. A empatia só é possível para o solitário; por isso, a
solidão é uma condição da verdadeira ociosidade.
[m 4a, 2]

Quando todos os fios se rompem, quando no horizonte deserto não surge nenhuma vela, e quan-
do cessa toda ondulação da vivência, só resta uma coisa ao sujeito solitário, acometido pelo tae-
dium vitae: a empatia.
[m 4a, 3]

Pode-se deixar em suspenso a questão de saber se em que sentido o ócio é determinado pela
ordem de produção que o torna possível. Em vez disso, deve-se procurar elucidar o quão pro-
fundamente arraigados na ociosidade estão os traços da ordem econômica capitalista em que
ela viceja. - Por outro lado, a ociosidade na sociedade burguesa - que desconhece o ócio - é uma

é também uma crítica política, na medida em que o segundo termo (“sincronização” ou “alinhamento”) foi um
eufemismo usado pelo regime nazista para eliminar pessoas indesejáveis da vida pública e profissional. (J.L.;E/M)
8 Verso do poema de Schiller, “Das Lied von der Clocke” (A canção do sino). (J.L.)
125
condição da produção artística. E frequentemente é a própria ociosidade que marca aquela pro-
dução artística de forma drástica com os traços que evidenciam seu parentesco com o processo
de produção econômico.
[m 4a, 4]
O estudante “nunca termina de aprender”, o jogador “nunca se contenta com o que tem”, o flâneur
“sempre tem algo a mais para ver”. A ociosidade traz em si o desígnio de uma duração ilimitada, que a
distingue do simples prazer sensorial de qualquer natureza. (Seria correto dizer que o “mau infinito”,
que predomina na ociosidade, aparece em Hegel como marca da sociedade burguesa?)
[m 5, 1]
A espontaneidade comum ao estudante, ao jogador e ao flâneur talvez seja a mesma do caçador,
quer dizer, a da forma mais antiga de trabalho, que, entre todas, é certamente a mais estreitamente
ligada à ociosidade.
[m 5, 2]

As palavras de Flaubert - “poucas pessoas serão capazes de imaginar como foi preciso estar triste
para ressuscitar Cartago”9 - tornam transparente a correlação entre estudo e melancolia. (Esta,
decerto, ameaça não somente esta forma de ócio, como também toda forma de ociosidade.) Cf.
“mon âme est triste et j’ai lu tous les livres” [minha alma está triste e li todos os livros] (Mallar-
mé); “Spleen II” e “La voix” (Baudelaire); Habe nun ach [Ai de mim!] (Goethe).10
[m 5, 3]

O elemento especificamente moderno se manifesta em Baudelaire sempre como complemento


do elemento especificamente arcaico. No flâneur, cuja ociosidade o faz percorrer uma cidade
imaginária de passagens, o poeta encontra o dândi (o dândi que se movimenta pela multidão
sem dar atenção aos esbarrões a que está exposto). Entretanto, existe também no flâneur uma
criatura há muito desaparecida, que lança um olhar sonhador que atinge fundo o coração do
poeta. Trata-se do “filho da selva”, o homem a quem uma natureza generosa outrora prometeu
o ócio. O dandismo é o último lampejo do heróico em tempos de decadência. É com prazer que
Baudelaire encontra em Chateubriand uma referência a dândis índios, um testemunho do tempo
de antigo esplendor dessas tribos.
[m 5, 4]

A propósito do tipo de caçador contido no flâneur: “A massa dos locatários e dos hóspedes de
passagem começa a vagar de teto em teto neste marde casas, como o caçador e o pastor da pré-
-história; a educação intelectual do nômade também já se completou.” Oswald Spengler, Le Déclin
de l’Occident, vol. II, parte 1, Paris, 1933, p. 140.
[m 5, 5]

“O civilizado, nômade intelectual, torna-se puro microcosmo, absolutamente sem pátria e espiri-
tualmente livre, assim como o caçador e o pastor o eram corporalmente.” Spengler, op. cit., p. 125.

9 Cf. a tese VII de W. Benjamin, “Über den Begriff der Geschichte”, GS I, 696; Teses, p. 70. (w.b.)
10 Benjamin cita de memória um verso do poema “Brise Marine”, de Mallarmé: “La chair est triste, hélas! et j’ai lu
tous les livre.”; cf. J 87,5. - A citação de Goethe é o inicio do primeiro monólogo (“Noite”) de Fausto: “Ai de mim!Da
filosofia/ Medicina, jurisprudência,/ E, mísero eu! da teologia,/ O estudo fiz, com máxima insistência.” Fausto, ed. org.
por Marcus Mazzari, trad. de Jenny Klabin Segal, São Paulo, Editora 34, 2004, p. 63. (J.L.;w.b.)
127
BH é um alfabeto que foi descoberto,
extraído de uma insignificância ante-
rior. Não fosse um esforço minucioso
de investigação da parte de seus auto-
res, permaneceria mudo e sujo, pre-
servado desse prazer particular que
sentimos em arrancá-lo da ausência
de valor, do nonsense de uma paisa-
gem urbana invariavelmente coberta
de impurezas. Esse trabalho - recons-
trução de uma ordem - só foi possível
após uma espécie de caça, que exigiu
tanto um deslocamento por espaços
onde encontrar algum signo gráfico
à espera da captura de seu sentido,
como uma predisposição para um
olhar atento ao detalhe, ao mínimo e
desprezível. marcelina convida o leitor
a se tornar cúmplice de um passeio fe-
cundo, entregue à ociosidade. [L L]

* Cao Guimarães nasceu em 1965 em Belo Horizonte,


onde vive e trabalha.

** Rivane Neuenschwander nasceu em 1967 em Belo


Horizonte, onde vive e trabalha.

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