Você está na página 1de 284

Arte, mito e rito na modernidade

A dimensão mítica em Piet Mondrian e Kasimir Malevitch,


a dimensão ritual em Kurt Schwitters e Marcel Duchamp

Veronica Stigger
Para a avó Helena (em memória)
e para minha mãe
AGRADECIMENTOS

São tantas as instituições e as pessoas a que devo agradecer por terem me


ajudado a realizar esta pesquisa que temo esquecer alguma ou alguém.
Em primeiro lugar, agradeço à Profa. Dra. Lisbeth Rebollo Gonçalves, que me
acolheu neste Programa de Pós-Graduação, auxiliando-me sempre em tudo o que foi
preciso.
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), que me
concedeu bolsa de estudo, sem a qual não poderia realizar esta tese.
À Fundação Coordenação de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que me
concedeu bolsa de estudo para realizar estágio de doutoranda na Itália, onde tive acesso
a boa parte da bibliografia deste trabalho.
Ao Prof. Dr. Mario Perniola, que me recebeu em Roma.
Aos membros da banca de defesa, os professores João Augusto Frayse-Pereira,
Annateresa Fabris, Elza Ajzenberg e Cristina Freire por suas leituras e pertinentes
observações.
Às equipes das bibliotecas da Escola de Comunicações e Artes, da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do
Museu de Arqueologia e Etnologia, todas da Universidade de São Paulo, da Biblioteca e
Centro de Documentação Lourival Gomes Machado do Museu de Arte Contemporânea,
da Biblioteca da Fundação Armando Álvares Penteado, da Biblioteca Nadir Gouvêa
Kfouri da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Biblioteca do Instituto de
Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Agradeço também às equipes da
Biblioteca Giulio Carlo Argan, da Biblioteca Angelo Monteverdi, da Biblioteca di Studi
Storico-Religiosi e da Biblioteca di Filosofia, todas da Università degli Studi di Roma,
da Biblioteca Nazionale Vittorio Emanuelle, da Biblioteca di Archeologia e Storia
dell’Arte, da Biblioteca dell’Istituto dell’Enciclopedia Italiana Giovanni Treccani, todas
em Roma, e da Bibliothéque Nationale, em Paris.
Aos sempre atenciosos Marcelo Laier, Daniel e Anike, da Livraria Cultura, que
se esforçaram para conseguir os livros que me faltavam para a pesquisa.
À diretoria da Associação Brasileira de Críticos de Arte, em especial, a Carlos
Soulié do Amaral, que assumiu minha função de tesoureiro durante os meses de escrita
e finalização da tese.
Ao João Batista Neto, que foi sempre prestativo.
Aos meus pais e à minha irmã, que compreenderam que eu teria de ler e escrever
mesmo no Natal e no Ano-Novo.
Aos queridos companheiros de Itália Andrea Vicino e Gislaine Silva Marins e
Andréa Portolomeos, por terem tornado a estada em Roma tão mais prazerosa.
Aos meus queridos amigos Tarso de Melo e Marli Mendes, Eliane Rivero Jover
e Jerônimo Teixeira, Fabio Weintraub e Antonio de Pádua Fernandes, Priscila
Figueiredo, Luiz Sérgio Repa, Tércio Redondo, Cárlida Emerim Jacintho Pereira,
Dirceu Alves Junior, que, com dedicação e carinho a toda prova, me deram apoio nas
situações mais difíceis que enfrentei ao longo da realização deste trabalho.
Por fim, ao Eduardo Sterzi, pela paciência, pela dedicação, pelo incomensurável
carinho, por se dispor a discutir conceitos, por preciosas sugestões teóricas e estruturais
e por ter lido tão atentamente as últimas versões deste estudo.
SUMÁRIO
LISTA DAS ILUSTRAÇÕES 7

INTRODUÇÃO (EU E MEUS OBJETIVOS) 11

PARTE I – PERCURSO INICIAL 20

1 ARTE MODERNA ENTRE MITO E RITO 21


a. Manifestos e manifestações 21
b. Primitividade 46
c. Mito e rito 56

PARTE II – DIMENSÃO MÍTICA 71

2 PIET MONDRIAN 72
a. Rumo a um método 72
b. Repetição 82
c. Auto-referencialidade 91
d. Ordem 93
e. Texto e obra 98
f. Retorno à «figuração» 104
g. Para além da dimensão mítica 107

3 KASIMIR MALEVITCH 112


a. Rumo a um método 112
b. Repetição 122
c. Auto-referencialidade 126
d. Ordem 130
e. Texto e obra 133
f. Para além da dimensão mítica 140
g. Retorno à figuração 143

PARTE III – DIMENSÃO RITUAL 146

4 KURT SCHWITTERS 147


a. Rumo à Merzbau 147
b. Obra sem fim 154
c. Artista-oficiante 163
d. Texto e obra 168
e. Ordem 171
f. Templo 174
g. Mistério 181

5 MARCEL DUCHAMP 190


a. Rumo a La mariée mise à nu par ses célibataires, même 190
b. Obra sem fim 200
c. Texto e obra 202

5
d. Artista-oficiante 212
e. Ordem 216
f. «Templo» 217
g. Mistério 222

CONCLUSÃO 234

BIBLIOGRAFIA 242
SOBRE MITO E RITO 242
SOBRE ARTE E ESTÉTICA 246
SOBRE E DE PIET MONDRIAN 253
SOBRE E DE KASIMIR MALEVITCH 254
SOBRE E DE KURT SCHWITTERS 257
SOBRE E DE MARCEL DUCHAMP 258
OUTROS 262

6
LISTA DAS ILUSTRAÇÕES

As reproduções dos trabalhos de cada artista estudado encontram-se ao final de


cada capítulo correspondente.

PIET MONDRIAN
Fig. 1: O mar (1912)
Fig. 2: Oceano 1 (1914)
Fig. 3: Oceano 2 (1914)
Fig. 4: Oceano 3 (1914)
Fig. 5: Oceano 4 (1914)
Fig. 6: Oceano 5 (1914)
Fig. 7: Píer e oceano 1 (1914)
Fig. 8: Píer e oceano 3 (1914)
Fig. 9: Píer e oceano 4 (1914)
Fig. 10: Composição nº 3 com planos de cor (1917)
Fig. 11: Composição A (1920)
Fig. 12: Composição com largo plano vermelho, amarelo, azul, cinza e preto (1921)
Fig. 13: Composição com amarelo, vermelho, preto, azul e cinza (1920)
Fig. 14: Composição com vermelho, azul, amarelo, preto e cinza (1922)
Fig. 15: Composição com azul, amarelo, vermelho, preto e cinza (1922)
Fig. 16: Composição com vermelho, preto, amarelo, azul e cinza (1921)
Fig. 17: Composição com azul, amarelo, preto e vermelho (1922)
Fig. 18: Quadro nº IV: Losango piramidal com vermelho, azul, amarelo e preto (1924-
25)
Fig. 19: Composição em losango, com vermelho, preto, azul e amarelo (1925)
Fig. 20: Composição com três linhas e azul, cinza e amarelo (1925)
Fig. 21: Losango com duas linhas e azul (1926)
Fig. 22: Losango com quatro linhas e cinza (1926)
Fig. 23: Composição nº 1 (1930)
Fig. 24: Losango: Composição com quatro linhas amarelas (1933)

7
Fig. 25: estúdio em Amsterdã, em 1908
Fig. 26: estúdio em Paris, em 1926
Fig. 27: estúdio em Nova York, em 1943

KASIMIR MALEVITCH
Fig. 28: figurinos para Lutador do Futuro e Nero e cenário para a ópera Vitória sobre o
sol (1913)
Fig. 29: Fotografia da sala de Malevitch na exposição 0,10 (1915)
Fig. 30: Quadrado negro (1915)
Fig. 31: Quadrado vermelho (1915)
Fig. 32: Branco sobre branco (1918)
Fig. 33: Cruz hierática (1920-1921)
Fig. 34: Cruz branca (1920-1921)
Fig. 35: Cruz negra (1915)
Fig. 36: Suprematismo místico (1920-1922)
Fig. 37: Supremus nº 55 (1916)
Fig. 38: Amarelo e preto (Supremus nº 58) (1916)
Fig. 39: Plano amarelo em dissolução (1917-1918)
Fig. 40: Jovens no campo (1912-1928/29)

KURT SCHWITTERS
Fig. 41: O primeiro dia (1918-19)
Fig. 42: Casa Merz (1920)
Fig. 43: Castelo e catedral com fonte no quintal (1923)
Fig. 44: Merzsäule, primeira versão (c. 1920)
Fig. 45: Merzsäule, segunda versão (c. 1923)
Fig. 46: Detalhe da Merzbau
Fig. 47: Merzbau, vista do conjunto Janela azul
Fig. 48: Merzbau, vista do Grande grupo ou Gruta do ouro
Fig. 49: Detalhe da redoma em que se acha uma cabeça de boneco
Fig. 50: Detalhe da Merzbau com Madona
Fig. 51: Detalhe da Gruta com corno de vaca, mostrando cabeça de boneco

8
MARCEL DUCHAMP
Fig. 52: La mariée mise à nu par ses célibataires, même ou Grande vidro (1915-23)
Fig. 53: Élevage de poussière (1920)
Fig. 54: Grande vidro na exposição do Museu do Brooklin, em 1926, antes de ser
quebrado. Ao fundo, há três quadros de Mondrian
Fig. 55 e 56: Étant donnés. 1º la chute d’eau. 2º le gaz d’éclairage (1946-1966)

9
Comme les rites, les mythes sont in-terminables. Et, en voulant
imiter le mouvement spontané de la pensée mythique, notre
entreprise, elle aussi trop brève et trop longue, a dû se plier à
ses exigences et respecter son rythme. Ainsi ce livre sur les
mythes est-il, à sa façon, un mythe. A supposeer qu’il possède
une unité, celle-ci n’apparaîtra qu’en retrait ou au delà du
texte. En mettant les choses au mieux, elle s’établira dans
l’esprit du lecteur.

Claude Lévi-Strauss

10
INTRODUÇÃO
(EU E MEUS OBJETIVOS)

Dois dias depois do Natal de 1930, no auge de sua carreira, Kurt Schwitters
escreveu um texto em que expunha com clareza, mas não com muita objetividade, o
como e o porquê de produzir uma arte tão singular como a sua. Este texto se chamava
Ich und meine Ziele (Eu e meus objetivos).
Desde que tomei conhecimento de tal escrito no decorrer da pesquisa que
resultou neste livro, pensei em me apropriar de seu título para a introdução de meu
trabalho. Isso porque este título fez-me perceber que também uma introdução a um
estudo crítico ou a uma pesquisa científica no campo das ciências humanas não deveria
– ou não poderia – se restringir à enunciação de um objetivo seguida de uma descrição
fria do conteúdo de cada capítulo. Não que não se deva passar por isso, mas talvez fosse
mais interessante – e mesmo mais esclarecedor – se o pesquisador aproveitasse este
espaço, quiçá o único apropriado para isso num texto do gênero, para falar um pouco de
si e do que o levou a investigar tal tema. Afinal, uma primeira idéia, um insight, uma
intuição – sem o que não há trabalho intelectual algum – são fundamentalmente
subjetivos. Partem sempre de uma visão pessoal e única. A esse momento primordial, a
esse mythos privado de seu próprio auto-reconhecimento como estudioso de
determinado assunto, o pesquisador, creio, deve, em alguma medida, manter-se fiel,
ainda que em segredo, e mesmo quando aspira àquela relativa impessoalidade das
hipóteses e das conclusões sem as quais não há conhecimento.
É em razão dessa fidelidade que deixo de lado o pudor usualmente exigido de
uma pesquisadora e confesso que meu interesse pelos mitos remonta à minha infância,
quando ouvia encantada ora minha avó, ora minha mãe lerem para mim os Doze
trabalhos de Hércules e O minotauro, de Monteiro Lobato. De todos os personagens da
mitologia grega com os quais Emília, Narizinho e Pedrinho tiveram contato, a figura
imponente, ao mesmo tempo triste e assustadora, do Minotauro foi sempre a que mais
me impressionou. Com vinte e poucos anos, repórter da área de cultura de um jornal em
Porto Alegre, já interessada em artes visuais, experimentei o mesmo fascínio infantil ao
redescobrir este personagem nas gravuras de Picasso quando de uma visita ao museu
devotado ao artista em Paris. Foi aí que tudo começou. Deixei de vez as redações e fui

11
dedicar-me à pesquisa acadêmica. O tema, então, não poderia ser outro: a representação
da mitologia grega na obra de Picasso, com o devido realce à Minotauromaquia e a
outras representações do Minotauro.
Nesta primeira pesquisa, realizada como mestrado e ainda não-publicada,
portanto, comecei a trabalhar a confluência entre estas duas formas de produção
simbólica, a arte e o mito. Porém, naquele momento, compreendia o mito como fonte de
temas e personagens para a figuração. Interessava-me entender por que Picasso, depois
de ter posto em questão os padrões tradicionais de representação com suas experiências
cubistas, se apropriara destes temas e personagens em sua obra, reconduzindo a
mitologia novamente para dentro do universo artístico.
Neste livro, parto da mesma idéia de retomada do mito pela arte. Contudo, de
um ponto de vista bastante diferente. Percebi que era possível aprofundar e
complexificar o entendimento da relação entre arte e mito na mesma época em que se
achava Picasso. Em Picasso, de certa maneira, a recuperação do mito se dava de modo
mais convencional: o mito era apropriado como tema, levando em consideração sua
matriz narrativa. Desta maneira, retomava-se – não sem uma boa dose de ironia – o
tratamento tradicional dispensado ao mito e à mitologia depois da secularização da arte
a partir do Renascimento e antes de o Iluminismo e a autonomia da arte os banir, ao que
parecia definitivamente, do horizonte artístico. Observando obras de Mondrian, de
Malevitch, lembrando-me das manifestações vanguardistas, das ações individuais e
coletivas, dos readymades de Duchamp, da monumental Merzbau de Schwitters, senti
que havia em tudo isso algo não só de mítico, mas, desta vez, também de ritualístico (e
por isso incluí o rito nesta nova pesquisa), para além mesmo do declarado esoterismo e
espiritualismo de alguns destes artistas. Parecia-me que a estrutura de seus trabalhos
apresentava correspondências com a estruturação dos mitos e dos ritos. Se isso de fato
ocorresse (conforme eu supunha), operava-se, num plano paralelo àquele da reabilitação
da mitologia grega por Picasso, uma verdadeira renovação da relação entre arte, mito e
rito.
Antes de prosseguir, não posso deixar de dizer que tanto a pesquisa sobre
Picasso quanto esta que agora apresento partiram da convicção pessoal de que a relação
entre arte e mito, ao longo da história, tem-se mostrado tão constante e fundamental
quanto aquela outra, sintetizada no conceito de mímesis, entre arte e realidade, ou,

12
melhor dito, entre arte e cognição da realidade. É sabido que as primeiras obras de arte
surgiram associadas a um ritual mágico ou religioso.1 Uma estátua de uma deusa da
antigüidade, por exemplo, era tida em sua época como objeto de veneração, da mesma
forma como, voltando ainda mais no tempo, as rudimentares representações de animais
nas cavernas paleolíticas provavelmente serviam a um propósito mágico: acredita-se
que aqueles desenhos poderiam ajudar a se ter êxito na caça, no pastoreio ou na lavoura.
Nos processos artísticos dos povos ditos «primitivos» – termo que peca pela imprecisão,
pois pesquisas mostram ser a forma de pensamento de muitos desses povos tão
complexa quanto à do homem «civilizado»2 –, interessa a força que uma imagem (seja
ela desenhada, pintada ou esculpida) pode gerar. Os totens, por exemplo, são tidos como
o clã em si, a própria personificação do sagrado. Em Arte como antiarte, Ernesto Grassi
demonstra que, até o Medievo, a pintura era uma representação terrena do além, um
objeto sacro subordinado ao culto e à igreja. «Os mosaicos bizantinos e os vitrais
góticos», observa Grassi, «transformavam as próprias paredes numa representação
imediata do extraterreno».3 Podemos lembrar que os poetas, para Platão, não faziam
seus poemas por efeito da techné, mas por serem inspirados por um deus que os

1
No campo da arqueologia, ver os escritos de Denis Valiou, «Un sanctuaire des chasseurs
préhistoriques», Actuel, 1991, p. 123 e ss., «Lascaux et l’art magdalenien», Histoire et archeologie – Les
dossiers, 87 (oct. 1984); o estudo L’art et la religion des hommes fossiles, de Georges Henri Luquet, p.
109 e ss.; As religiões da pré-história, de André Leroi-Gourhan, pp. 125-126. No campo da antropologia,
sobre a relação da arte com o mito e o rito, ver Franz BOAS, Arte primitiva; Lucien Lévy-Bruhl, La
mythologie primitive, pp. 133 e 143-148; Claude Lévi-Strauss, «O desdobramento da representação nas
artes da Ásia e da América», Antropologia estrutural, pp. 279-304; Roy Sieber, «Masks as Agents of
Social Control», compilado por Douglas Fraser, The Many Faces of Primitive Art, p. 261; Peter Buck,
«Material representatives of Tongan and Samoan Gods», também compilado por Douglas Fraser, The
Many Faces of Primitive Art, p. 103; William Fagg, El arte del África Occidental, p. 14 e ss.; Raymond
Firth, «O contexto social da arte primitiva», Elementos de organização social, p. 186 (principalmente
sobre as restrições impostas aos artesãos); Robert Layton, A antropologia da arte, pp. 17 e 88. Sobre a
relação entre o mito e a arte de gregos e egípcios, ver Arpag Mekhitarian, La peinture égyptienne, p. 17;
Herbert Hoffmann, «Dulce et decorum est pro patria mori: the imagery of heroic immortality on
Athenian painted vases», compilado por Simon Goldhill e Robin Osborne, Art and Text in Ancient Greek
Culture, p. 31 e ss.; T. H. Carpenter, Art and Myth in Ancient Greece; David W. J. Gill. «Expressions of
Wealth: Greek Art and Society», Antiquity, 62 (1988), p. 741; David W. J. Gill e Michael Vickers,
«Reflected Glory: Pottery and Precious Metal in Classical Greece», Jahrbuch des deutschen
archäologischen Instituts, 105 (1990), p. 11 e ss. No campo da história, estética e teoria da arte, ver
sobretudo os livros de Herbert Read, Arte y sociedad, pp. 53-54, e Origens da forma nas artes plásticas,
p. 78; os estudos de Arnold Hauser, História social da arte e da literatura, p. 5 e ss., e de E. H.
Gombrich, Story of Art, p. 40; «A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica», de Walter
Benjamin; Arte e mito e Arte como anti-arte, de Ernesto Grassi.
2
Ver Claude Lévi-Strauss, «A noção de arcaísmo em etnologia», Antropologia estrutural, pp. 121-123;
Mito e significado, pp. 30-32; O pensamento selvagem, pp. 24-38.
3
Ernesto Grassi, Arte como anti-arte, p. 36.

13
possuía.4 Assim, as obras não eram tratadas como representações dos deuses, mas como
a própria intervenção ou materialização destes. Dentro desta concepção, os artistas
exerciam a função de mediadores entre mundo terrestre e mundo divino, não sendo
muito mais do que porta-vozes da divindade.
Sumariamente, pode-se dizer que, com a gradual secularização da arte, a partir
do Renascimento, a produção artística, que, anteriormente, tivera como finalidade
representar a própria divindade, passou a ser concebida como o resultado de um
trabalho subjetivo, com a intenção última de dar à realidade uma interpretação possível.5
O mito aí se transformou em fábula, num provedor de personagens e narrativas para a
arte.6 Assim, despiu-se de seu caráter religioso e transmutou-se em ficção.
Por ser também uma forma de figuração, uma vez que transforma a realidade
exterior em imagens, e uma forma de figuração, em certa medida, anterior àquela da
arte, o mito antecipa o trabalho artístico de apreensão e compreensão da realidade por
meio da representação. É conseqüente, portanto, que ele continue a se relacionar com a
arte mesmo depois de sua dessacralização, oferecendo a esta temas para a
representação.7 George Steiner observa que, no Rococó, no Iluminismo e em certos usos
do mito no século XIX, quando «se dá a supressão do numinoso, da concessão
sobrenatural», «o símbolo é reduzido à forma» e, assim, «o mito sobrevive a seu
conteúdo».8
Em concomitância com os crescentes e cada vez mais veementes movimentos de
Esclarecimento (Lumières, Aufklärung), a arte foi gradualmente se tornando mais
autônoma. Enquanto aqueles procuravam erradicar os mitos por julgarem-nos contrários
à razão e, portanto, incapazes de auxiliar na busca pelo entendimento, a arte se afastava
dos mitos como se afastava dos grandes temas. Ela voltava-se agora para o cotidiano, o

4
Ver Platão, Íon; Fedro.
5
Ver Ernesto Grassi, Arte e mito, pp. 86-90.
6
Aristóteles, em sua Poética, já se utilizava da palavra grega mythos – «a alma da tragédia» – para
designar tanto a ação a imitar quanto a ação imitativa (ver Eudoro de Sousa, «Introdução», Aristóteles,
Poética, p. 57). A primeira acepção conserva o teor de relato de feitos divinos ou fenômenos
sobrenaturais característico dos mitos. Mythos, neste sentido, é, portanto, a matéria-prima trabalhada pelo
poeta. Na segunda acepção, mythos não é mais do que um enredo, uma fábula – diga-se de passagem, a
tradução mais comum para este termo aristotélico – inspirada nos feitos divinos. Criado pelo poeta, o
mito passa a obedecer não mais às leis divinas, mas às leis da necessidade e da verossimilhança. Seu
mundo não é mais um outro mundo em oposição a este mundo, o mundo terreno, mas simplesmente um
mundo possível.
7
Walter Benjamin, como veremos no primeiro capítulo deste estudo, supõe ainda que se mantém um
vínculo também entre arte e rito, quando o culto ritual é substituído pelo culto à beleza e ao artista.
8
George Steiner, Presencias reales, p. 267.

14
trivial, o mundano. Os artistas não se interessavam mais por homens (ou deuses) e feitos
que lhes eram superiores, mas por seus iguais.
A partir de meados do século XIX, na modernidade tão bem caracterizada por
Baudelaire,9 novas realidades foram aos poucos se descortinando e colocando em
dúvida as certezas adquiridas até então. Frente a estas novas realidades, a própria
percepção do mundo exterior foi alterada. Impôs-se a noção de que a realidade não era
dada diretamente, mas que ela se escondia, que havia mais coisas por trás daquilo que se
dava à visão – e teorias nesse sentido passaram a surgir e a tomar força, tais como a do
inconsciente, de Freud, e a da alienação, de Marx. Frente a isso, uma arte que pretendia
imitar a natureza era uma arte que estava em desarmonia com seu tempo porque incapaz
de assimilar esta realidade não mais apreensível diretamente. No campo filosófico, sem
encontrar parâmetros para compreender esta realidade fugidia, foi preciso criar novas
linguagens, novos termos capazes de defini-la.
Talvez não seja de se espantar que os três grandes inventores do pensamento
moderno, Marx, Nietzsche e Freud, recorreram justamente ao mito e à mitologia – até
mesmo identificando-se com certos personagens mitológicos – na tentativa de explicar,
cada um à sua maneira, esta nova realidade. Para Marx, «Prometeu é o primeiro santo, o
primeiro mártir do calendário filosófico». Em Prometeu, Marx encontra a afirmação da
supremacia da consciência humana, «divindade suprema, divindade que não suporta
rivais».10 Freud, como bem se sabe, dispôs a figura de Édipo no centro de sua teoria
psicanalítica.11 Gostava de chamar a filha Anna, irônica mas afetuosamente, de sua
Antígona.12 Nietzsche valeu-se das figuras de Dioniso e Apolo para designar aquelas
que, para ele, eram as duas pulsões originárias da arte.13 De Turim, enviou algumas
cartas assinadas como «Dioniso» – sobretudo uma célebre a Jacob Burckhardt, datada
de 4 de janeiro de 1889.14 A mitologia greco-romana era o vocabulário figurativo básico
da Bildung, da educação na Alemanha e na Áustria.

9
Charles Baudelaire, «Le peintre de la vie moderne», Critique d’art, p. 355.
10
Karl Marx, «Diferença entre a filosofia da natureza em Demócrito e Epicuro», compilado em Marx e
Engels, Sobre literatura e arte, pp. 13-14.
11
Um estudo sobre a leitura do mito de Édipo por Freud e as implicações dessa leitura para o pensamento
europeu posterior encontra-se em Peter L. Rudnytsky, Freud e Édipo, São Paulo: Perspectiva, 2002.
12
Ver Peter Gay, Freud: uma vida para o nosso tempo, pp. 403-404.
13
Ver Friedrich Nietzsche, O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo, pp. 27 e ss.
14
Ver Roberto Calasso, La letteratura e gli dèi, p. 34.

15
Foi assim que, no final do século XIX e no começo do XX, precisamente em
meio a essa crise da tradição de pensamento iluminista e racionalista, cresceu o interesse
pelo mito. Vários autores procuraram estabelecer novas significações para velhas
narrativas míticas e novas funções para o mito. Poderíamos lembrar, além dos já citados
Nietzsche e Freud (em Marx, o mito permanece apenas em filigrana e, sobretudo,
enquanto objeto de crítica por seu suposto anacronismo15), os trabalhos de James G.
Frazer, E. B. Tylor, Lucien Lévy-Bruhl, Franz Boas, A. Radcliffe-Brown, só para
mencionarmos alguns. Na arte, uma quantidade expressiva de artistas – Gauguin,
Picasso, Matisse, Stravinsky, Cocteau, Joyce, Rilke, Ernst, Janco etc. – retomou temas
da mitologia ou se voltou para culturas primitivas em busca de modelos formais e de
inspiração. É neste contexto que se situa este estudo.
Ao longo deste livro, dedico-me a mostrar que é possível verificar uma nova
relação entre arte, mito e rito para além da apropriação do mito pela arte como motivo a
ser representado. Procuro demonstrar como certas obras ou certos conjuntos de obras se
constituem de modo análogo à do mito e à do rito, como suas estruturas e lógicas
internas se conformam à estruturação dos mitos e dos ritos, sendo possível identificar
uma relação mais funda entre estas três formas de produção simbólica. Para tal, divido
este estudo em três partes. Na primeira delas, chamada Percurso inicial, como seu título
geral indica, procedo a uma abordagem mais ampla a fim de demarcar um contexto para
o posterior exame de obras específicas. Penso oferecer, assim, uma visão mais geral da
mudança de comportamento que se verifica nas chamadas vanguardas históricas
européias, ressaltando como, nos manifestos e nas manifestações artísticas, já se pode
observar um certo caráter de fundo ritualístico e primitivo. No final desta parte, defino
mito e rito como princípios intelectivos que nos servirão de modelos interpretativos para
tentar compreender o processo subjacente a determinadas produções artísticas desta

15
«Quem é Vulcano ao lado de Roberts & Cia., Júpiter em comparação com o pára-raios e Hermes em
face do Crédit Mobilier? Toda mitologia supera, governa e modela as forças da natureza na imaginação e
pela imaginação, portanto, desaparece quando essas forças são dominadas efetivamente. O que seria da
Fama ao lado de Printing House Square?», indaga Marx na «Introdução à Crítica da Economia Política»,
em Para a crítica da economia política. Do Capital. O rendimento e suas fontes, pp. 47-48. Vale a pena
citar o comentário de Carlo Ginzburg: «Essas perguntas [...] pressupunham uma resposta negativa: as
formas expressivas do passado, a começar pelas antigualhas mitológicas, eram destinadas a ser varridas
do mapa. Sabemos que não foi assim: a mitologia greco-romana e as mercadorias capitalistas revelaram-
se perfeitamente compatíveis, por exemplo, na propaganda» («Mito: distância e mentira», Olhos de
madeira, pp. 73-74).

16
época. Noto que, a partir do que foi delineado, podemos reconhecer duas dimensões na
arte moderna, as quais proponho chamar dimensão mítica e dimensão ritual.
Na segunda e na terceira partes, examino os trabalhos de quatro artistas. Na
parte denominada Dimensão mítica, a qual se acha ainda atrelada à noção de obra,
estudo a maneira como se institui o processo de constituição das pinturas neoplásticas
de Mondrian e suprematistas de Malevitch, orientada por categorias (repetição, auto-
referencialidade, ordem, relação entre texto e obra) extraídas da definição de mito
exposta no final da primeira parte. Na terceira parte, dedicada à Dimensão ritual, na
qual se percebe o estabelecimento de uma nova relação do artista com sua obra e da
obra com o espaço circundante e com o espectador, procuro ver como se processam dois
trabalhos particulares (a Merzbau, de Schwitters, e La mariée mise à nu par ses
célibataires, même, de Duchamp), ressaltando determinados aspectos, enfeixados em
categorias (obra sem fim, artista-oficiante, ordem, templo, mistério), comuns às duas
peças e condizente com minha compreensão de rito.
Antes de terminar esta introdução, cabe salientar o motivo que me levou a
escolher quatro artistas e não um, dois ou três, e a trabalhar com estes quatro artistas
especificamente. Primeiro, porque queria demonstrar que a minha hipótese de pesquisa
não se restringia a um só movimento artístico ou a um só tipo de pintura ou de suporte.
Intentava mostrar que uma dimensão mítica e uma dimensão ritual poderiam ser
encontradas em mais de um artista. Assim, uma vez que reconhecera a existência de
duas dimensões paralelas e desejava, em cada uma delas, comparar produções de
artistas diferentes, parece-me que não poderia trabalhar com menos de quatro artistas:
no mínimo, dois para cada dimensão. Queria chamar a atenção ainda para que, num
mesmo momento, em lugares diferentes da Europa, se produziam formas de arte que, se
diversas em superfície (e mesmo nisso, como veremos, não tão diversas assim), se
apresentavam, no entanto, similares em seus processos constitutivos. Em função disso,
precisava não só de quatro artistas, mas de artistas que estivessem produzindo em
diferentes lugares. Acabaram impondo-se, quase, diria, logicamente, os nomes de
Mondrian, Malevitch, Schwitters e Duchamp. Com isso, temos coberto um território
que abrange Holanda, França, Inglaterra, Alemanha, Noruega e, fora da Europa,
também Estados Unidos. Por último, e o mais importante, acredito que Mondrian e
Malevitch, por um lado, e Schwitters e Duchamp, por outro, são aqueles que, com suas

17
experiências, levaram ao extremo as características que perfazem as dimensões mítica e
ritual deste estudo.
Além de tudo isso, notei que havia interessantes pontos de contato entre estes
artistas, contatos estes que revelavam curiosas relações entre eles. Ao que consta,
Schwitters não conheceu pessoalmente nenhum dos outros três,16 mas dedicou, em sua
Merzbau, uma gruta a Mondrian e outra a Malevitch. No número 6 de sua revista Merz,
publicou O neoplasticismo, de Mondrian, e no número duplo 8-9, reproduziu o
Quadrado negro, de Malevitch. Em 1927, Malevitch, que vinha há anos acompanhando
as publicações de Schwitters, enviou-lhe uma carta para comentar certas considerações
suas sobre arte. Cinco anos antes, escrevera aos «camaradas inovadores da Holanda»,
cujas publicações lia com regularidade. Em 1922, dois números da revista De Stijl, de
responsabilidade, entre outros, de Theo van Doesburg e Mondrian, foram dedicados a
Malevitch. Van Doesburg, que era amigo de Mondrian, promoveu com Schwitters uma
série de soirées no início da década de 1920. Nos Estados Unidos, a Société Anonyme,
organização artística presidida por Duchamp, financiada por Katherine S. Dreier e
secretariada por Man Ray, organizou exposições de Mondrian e de Schwitters, entre
muitos outros artistas modernos. Em 1926, Dreier conheceu Schwitters pessoalmente
em Hannover. O catálogo da exposição de colagens de Schwitters, em Nova York, em
1952, escrito em francês por Tristan Tzara, foi traduzido para o inglês por Duchamp.
Mondrian e Duchamp se encontravam freqüentemente na casa de Peggy Guggenheim,
quando ambos se achavam em Nova York. Há até mesmo uma foto, de 1942, em que
Mondrian e Duchamp aparecem lado a lado.17 A primeira exposição do Museu de Arte
Moderna de São Paulo deveria contar com obras escolhidas por Duchamp e Sidney
Janis. Nesta seleção, figuravam trabalhos de Schwitters, Malevitch e Mondrian, entre
outros. Mas, por falta de verbas, foram excluídos da exibição.18 Estas relações entre eles
ajudaram-me a confirmar a noção de um direcionamento mais geral, em alguma
proporção integrado, no rumo do que chamo mito e rito.

16
Embora Calvin Tomkins garanta que Duchamp acompanhara Katherine S. Dreier a Hanover, em 1926
(Duchamp: A Biography, p. 287), não se acha outro registro deste possível encontro. Jennifer Gough-
Cooper e Jacques Caumont afirmam, ao contrário, que Duchamp ficara em Paris, enquanto Dreier seguia
para Hanover, Dessau, Berlim, Dresden, Praga e Viena (Effemeridi su e intorno a Marcel Duchamp e
Rrose Sélavy).
17
Ver Calvin Tomkins, op. cit., p. 336.
18
Aracy Amaral (org.), Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. Perfil de um
acervo, pp. 18-19.

18
Antes de acabar (ou, melhor, começar), peço ao leitor que não leve os termos
«mito», «rito» e «ritual» e suas derivações «mítico» e «ritualístico» ao pé da letra.
Poderia grafá-los sempre entre aspas, mas achei que seria excessivo. Para mim, tratam-
se de aportes metodológicos, teóricos e críticos que me servem de modelo interpretativo
para tentar compreender o processo artístico de certa arte do início do século XX.

19
PARTE I
PERCURSO INICIAL

20
1 ARTE MODERNA ENTRE MITO E RITO

a. Manifestos e manifestações
É curioso, e desafiador para o intérprete atual, que a tradição pós-iluminista de
crítica da cultura, precisamente aquela que melhor compreendeu certos aspectos da
modernidade e da arte moderna, tenha deixado escapar, por uma espécie de preconceito
conceitual, uma das articulações fundamentais desta arte. Do ponto de vista desta
crítica, as chamadas vanguardas históricas européias são compreendidas como o
momento em que a arte se afasta em definitivo de suas origens rituais e míticas. O
presente estudo se contrapõe a esta concepção.
Um dos principais expoentes desta crítica, Walter Benjamin,19 em seu célebre
ensaio sobre as profundas mudanças sofridas pela arte em virtude das novas
possibilidades de reprodução técnica,20 afirma que os meios mecânicos evidenciam, pela

19
Em geral, Benjamin não considera o mito de forma positiva, principalmente por este se apresentar
como a-histórico e, assim, servir à preservação de valores conservadores. Em Das Passagen-Werk,
encontra-se aquela que talvez seja sua mais veemente crítica ao mito. Neste livro, defende a idéia de que
o mito deveria ser extirpado e substituído pela razão: «Avançar decididamente com o machado afiado da
razão, não olhando nem para a direita nem para esquerda de modo a não sucumbir ao horror que acena do
fundo da floresta primeva. Cada solo deve em algum momento ter sido feito arável pela razão, deve ter
sido limpo das macegas do engano e do mito» («On the Theory of Knowledge, Theory of Progress», The
Arcades Project, pp. 456-457). Mesmo quando trata do surrealismo, cuja aproximação com o mito e com
a mitologia se revela mais explicitamente em seus temas e em suas figurações, Benjamin, como bem
observa Franco Rella, «resiste (...) à tentação do recurso ao mito (...), que, apelando a uma origem divina
e extra-histórica, se propõe como uma verdade subtraída precisamente da constrição dos contextos
históricos e, portanto, como uma espécie de simplex sigillum veri» (Franco Rella, «Benjamin e
l’avanguardia», compilado por Lucio Belloi e Lorenzina Lotti, Walter Benjamin: tempo storia linguaggio,
p. 145). No tocante à relação entre arte e mito na modernidade, Theodor W. Adorno, outro expoente desta
tradição pós-iluminista, de um modo geral, como podemos observar em boa parte de sua Teoria estética,
procura determinar um distanciamento entre imagens estéticas e imagens cultuais, entre arte e práticas
mágicas, inserindo a arte no campo da racionalidade («A arte é alérgica à recaída na magia», op. cit., p.
69). Porém, nos Paralipômenos do mesmo livro, Adorno admite que se pode encontrar preservado um
resquício de magia na arte depois da ruptura desta com suas origens cultuais: «Se o comportamento
estético, antes de toda a objetivação, se separou das práticas mágicas, mesmo de maneira muito vaga,
desde então conserva um resquício, como se a mimese remontando ao estrato biológico e tendo perdido
toda a função tivesse sido conservada, enquanto impressa na alma, prelúdio à fórmula segundo a qual a
superstrutura se revoluciona mais lentamente do que a infra-estrutura. Nos traços do que foi ultrapassado
pela evolução geral, toda a arte está maculada de uma hipoteca suspeita como tudo o que não foi bem
seguido e é regressivo» (Teoria estética, p. 362).
20
Há duas versões conhecidas do ensaio «A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica»: a
primeira foi escrita em 1935 (publicada no Brasil pela editora Brasiliense, em Magia e técnica, arte e
política, traduzida por Sergio Paulo Rouanet), e a segunda, retomada da primeira, foi preparada em 1936
e só foi publicada postumamente em 1955 (no Brasil, foi traduzida por José Lino Grünewald, com o título
«A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução», e editada pela Abril Cultural, em Os
pensadores, e pela Civilização Brasileira, na coletânea de ensaios A idéia do cinema). Neste estudo,
depois de cotejar as duas versões, optei por citar, quando o trecho é comum às duas, a tradução da

21
primeira vez na história, a emancipação da obra de arte de sua «existência parasitária», a
qual «lhe era imposta por seu papel ritualístico».21 Benjamin vincula – e é importante
frisar este ponto – o «papel ritualístico» da arte a uma de suas noções mais citadas, a de
aura. Definida metaforicamente como «a única aparição de uma realidade longínqua,
por mais próxima que esteja»,22 a aura consiste na existência única da obra de arte,
naquilo que é dado apenas uma vez. E é esta unicidade da obra de arte aurática que lhe
confere autoridade e que a insere «nesse conjunto de afinidades que se denomina
tradição».23 Numa pertinente reavaliação deste conceito, Georges Didi-Huberman atenta
para o «poder da distância» que a enigmática definição benjaminiana de aura suscita:

O que nos diz esta fórmula célebre, senão que a distância aparece, no
acontecimento da aura, como uma distância já desdobrada? Se a lonjura nos aparece, essa
aparição não é já um modo de aproximar-se ao dar-se à nossa vista? Mas esse dom de
visibilidade, Benjamin insiste, permanecerá sob a autoridade da lonjura, que só se mostra aí
para se mostrar distante, ainda e sempre, por mais próxima que seja sua aparição. Próximo
e distante ao mesmo tempo, mas distante em sua proximidade mesma: o objeto aurático
supõe assim uma forma de varredura ou de ir e vir incessante, uma forma de heurística na
qual as distâncias – as distâncias contraditórias – se experimentariam umas às outras,
dialeticamente.24

É negado ao espectador a possibilidade de uma aproximação ao objeto aurático que não


seja meramente espacial. A aura produz sempre um afastamento. E é justamente a idéia
de aura como afastamento, como lonjura, como «fenômeno irrepetível de uma
distância», que deixa transparecer o seu caráter cultual. Numa nota de rodapé, que
consta somente da segunda versão de «A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica», Benjamin precisa a associação entre a noção de aura e a noção de culto:

Ao definir a aura como «a única aparição de uma realidade longínqua, por mais próxima
que ela esteja», nós simplesmente fizemos a transposição para as categorias do espaço e do
tempo da fórmula que designa o valor do culto da obra de arte. Longínquo opõe-se a
próximo. O que está essencialmente longe é inatingível. De fato, a qualidade principal de
uma imagem que serve para o culto é de ser inatingível.25

segunda, por ser esta mais completa e revista pelo autor, apesar de apresentar algumas diferenças em
relação à primeira.
21
Walter Benjamin, «A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução», compilado por José Lino
Grünewald, A idéia do cinema, p. 68.
22
Walter Benjamin, op. cit., p. 65.
23
Walter Benjamin, op. cit., p. 66.
24
Georges Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha, p. 148.
25
Walter Benjamin, op. cit., p. 67. No ensaio «Sobre alguns temas em Baudelaire», Benjamin repete a
mesma idéia ao evocar o conceito de aura: «O que é essencialmente distância é inacessível em sua
essência: de fato, a inacessibilidade é uma qualidade fundamental da imagem do culto» (Charles
Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo, p. 140).

22
Benjamin lembra que, em suas origens, a arte era concebida como instrumento
mágico. Em função disso, tinha seu valor determinado pelo suporte ritual: era o culto o
responsável por incorporar a obra de arte num conjunto de relações tradicionais. «Em
outras palavras», explica, «o valor de unicidade, típico da obra de arte autêntica, funda-
se sobre esse ritual que, de início, foi o suporte de seu velho valor utilitário.»26 Segundo
Benjamin, o modo de ser aurático da obra de arte nunca se desvincula totalmente de sua
função cultual. Há nela, sempre, pelo menos um resíduo de fundamento teológico.
Mesmo a partir do Renascimento, no momento em que a arte começa a se secularizar,
subsiste uma essência aurática, «tal qual um ritual secularizado», no «culto dedicado à
beleza».27 Assim, nas representações renascentistas de personagens e temas mitológicos
e religiosos, verificamos a substituição do antigo caráter mítico-religioso pelo caráter
puramente estético. À medida que as próprias obras deixam de estar atreladas a um
ritual, transfere-se para a figura do artista a adoração cultual:

Cada vez mais, o espectador se inclina a substituir a unicidade dos fenômenos dominantes
na imagem de culto pela unicidade empírica do artista e de sua atividade criadora. A
substituição nunca é integral, sem dúvida: a noção de autenticidade jamais cessa de se
remeter a algo mais do que à simples garantia de originalidade (o exemplo mais
significativo é aquele do colecionador, que se parece sempre com um adorador de fetiches e
que, mediante a própria posse da obra de arte, participa de seu poder de culto).28

Deste modo, com a secularização da arte, a preocupação com a autenticidade da obra


substitui o antigo valor de culto. Na modernidade, com a perda da idéia de obra de arte
original em decorrência das mudanças sofridas pela arte em função dos processos
reprodutivos, as noções de aura e autenticidade deixam de fazer sentido. Por
conseqüência, dentro da lógica benjaminiana, a arte perde a sua histórica e tradicional
vinculação com o ritual: deixa de ser contemplada e passa a ser recebida distraidamente.
Ao subordinar – e restringir – a noção de ritual à de aura e, com ela, a uma idéia
de distanciamento, de recepção contemplativa, Benjamin não permite perceber outra
possível forma de manifestação do ritual na arte moderna: uma forma não mais atrelada
a uma espécie de adoração cultual distanciada, mas, sim, vinculada, prioritariamente, a
uma idéia de proximidade por meio da participação e da ação. O que Benjamin deixa de
26
Walter Benjamin, «A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução», compilado por José Lino
Grünewald, op. cit., p. 67.
27
Idem.
28
Idem, p. 67n.

23
contemplar (até porque seu modo de pensar não o aceitaria) é que, nos movimentos
artísticos do início do século XX, o caráter ritualístico, assim como o mítico, da arte
volta – ou continua – a se manifestar e, como na compulsão à repetição de um afeto ou
de um trauma que havia sido conscientemente reprimido (no caso em questão, pela
crítica iluminista), retorna com uma força tão ou mais intensa do que na sua primeira
manifestação.29 Se examinarmos com atenção os vários relatos das mais diferentes
ações dos artistas do início do século passado, se observarmos as próprias obras e se
atentarmos para os manifestos, veremos que a arte desta época parece recuperar, em
alguma medida, suas origens míticas e ritualísticas, porém de uma maneira renovada:
ela não é mais simples suporte para figuração de personagens e temas mitológicos, mas
uma forma mítica em si; ela não é mais um objeto no ritual, mas o ritual em si; ela não é
mais motivo de contemplação, de adoração, mas aquilo que instaura o culto; ela não é
mais somente distância, mas também aproximação. Não é por acaso que Jean Crotti, no
«Manifesto tabu», se refere à arte que está sendo produzida na década de 1920 como
«uma Religião nova»,30 da mesma forma que Tristan Tzara declara no «Dadá manifesto
sobre o amor débil e o amor amargo»: «prefiro acreditar que dada é apenas uma
divindade de segunda ordem que deve ser simplesmente colocada ao lado das outras
formas do novo mecanismo das religiões de interregno».31 E Georges Bataille já
observara em seu livro sobre Manet:

As diversas pinturas depois de Manet são os diversos encontros possíveis nesta região nova,
onde o silêncio reina profundamente, onde a arte é o valor supremo: a arte em geral, isto
quer dizer o homem individual, autônomo, desligado de todo empenho, de todo sistema
dado (e do individualismo mesmo). A obra de arte toma aqui o lugar de tudo o que, no
passado – no passado mais distante –, foi sagrado, foi majestoso.32

29
Em «Além do princípio do prazer», Sigmund Freud demonstra que possuímos a tendência a repetir
simbolicamente (por meio de sonhos, de brincadeiras, de jogos etc.) um trauma ou afeto reprimido.
Quando isto acontece, este trauma costuma ser revivido, por meio da repetição, de forma mais violenta do
que em sua primeira vez. Explica Freud: «Nos jogos infantis, cremos compreender que a criança repete
também o sucesso desagradável, porque com ele consegue dominar a violenta impressão, experimentada
muito mais completamente do que o foi possível ao recebê-la» (Obras completas de Sigmund Freud –
Tomo III, p. 2524). Em «O estranho», Freud fala do impulso à repetição como uma manifestação por
vezes demoníaca: «a atividade psíquica inconsciente está dominada por um automatismo ou impulso de
repetição (repetição compulsiva), inerente, com toda probabilidade, à essência mesma dos instintos,
munida de poderio suficiente para sobrepor-se ao princípio do prazer; um impulso que confere a certas
manifestações da vida psíquica um caráter demoníaco, que ainda se manifesta com grande nitidez nas
tendências da criança pequena, e que domina parte do curso que segue à psicanálise do neurótico» (Obras
completas de Sigmund Freud – Tomo III, p. 2496. Grifo meu).
30
Jean Crotti, «Manifesto tabu», reproduzido por Arturo Schwarz, Almanacco dada, p. 305.
31
Tristan Tzara, «Dada manifesto sobre o amor débil e o amor amargo», coligido em Sete manifestos
dada, p. 39.
32
Georges Bataille, Manet, p. 64.

24
Proponho que, antes de passarmos à análise de como se constitui o que identifico
como, de um lado, uma dimensão mítica e, de outro, uma dimensão ritual em quatro
artistas (Piet Mondrian, Kasimir Malevitch, Kurt Schwitters e Marcel Duchamp),
notemos como é possível vislumbrar a instauração de uma certa ritualização dentro de
um quadro artístico mais amplo da época em que se encontram os artistas a serem
estudados. Acredito que a construção desta visão mais geral do que estava em curso no
ambiente artístico europeu ajudará a mostrar como os trabalhos dos artistas escolhidos
não se apresentam como casos isolados.
As famosas soirées dadaístas e futuristas (nas quais, com exceção de
Mondrian,33 os artistas cujas obras examinarei, tomaram parte) e outras manifestações
públicas das primeiras décadas do século passado explicitam uma mudança de
comportamento tanto na recepção quanto na produção da arte, mudança esta que, como
veremos, se acha implícita em determinadas obras particulares. Como bem nota Peter
Bürger em sua Teoria da vanguarda,34 os movimentos artísticos de então promovem
uma transformação nas características da arte autônoma, que são: a separação da arte em
relação à práxis vital, a produção individual e a conseqüente recepção também
individual. Quanto a esta última, os movimentos de vanguarda fazem face à recepção
solitária, à contemplação silenciosa. Suas manifestações provocam respostas do público.
Esclarece Bürger: «As reações do público irritado perante a provocação de um ato dadá,
que vão desde os apupos até à violência física, são decididamente de natureza
coletiva».35 E os artistas estavam conscientes do que faziam, como atesta Hans Richter

33
Mas, conforme relata Harry Holtzman, Mondrian e Theo van Doesburg se deliciavam assistindo a
algumas soirées, em Paris, depois das quais chegaram a assinar as cartas que trocavam como Dada-Does
e Dada-Piet (ver Harry Holtzman e Martin S. James, The New Art – The New Life: The Collected Writings
of Piet Mondrian, p. 124). Marcel Duchamp não chegou a tomar parte ativa das manifestações
parisienses, porém, em Nova York, realizou ações – como inscrever um urinol para uma exposição de arte
e afixar balões vermelhos, brancos e azuis no arco da Washington Square –de caráter similar àquelas que
descreverei nas páginas seguintes (ver Calvin Tomkins, Duchamp: A Biography, p. 193).
34
Para Bürger, na noção de vanguarda, enquadram-se o dadaísmo, o primeiro surrealismo e a vanguarda
russa posterior à Revolução de Outubro, sendo algumas características também aplicadas ao futurismo
italiano e ao expressionismo alemão. Segundo Bürger, estes movimentos possuem um ponto em comum,
embora difiram em outros aspectos: «não se limitam a rejeitar um determinado processo artístico, mas a
arte do seu tempo na sua totalidade, realizando, portanto, uma ruptura com a tradição. As suas
manifestações extremas dirigem-se especialmente contra a instituição arte, tal como se formou no seio da
sociedade burguesa» (Teoria da vanguarda, p. 67n). Quanto aos outros movimentos artísticos do início
do século XX, Bürger salienta: «No que toca ao cubismo, este não perseguiu o mesmo objetivo, mas
questionou o sistema de representação da perspectiva central vigente na pintura desde o Renascimento.
Nesta medida, pode ser integrado entre os movimentos históricos de vanguarda, embora não partilhe a sua
tendência fundamental para a superação da arte na práxis vital» (Idem).
35
Peter Bürger, Teoria da vanguarda, p. 95.

25
nesta passagem do livro em que conta a história do Dadá – o mais radical e
revolucionário movimento artístico europeu da época, porque era o único a propor a
superação da própria idéia de arte:

Campainhas, tambores, chocalhos, batidas na mesa ou em caixas vazias animavam


as exigências selvagens da nova linguagem, na nova forma, e excitavam, a partir do físico,
um público que inicialmente quedava atordoado atrás dos seus copos de cerveja. Pouco a
pouco eram sacudidos e despertados de seu estado de letargia a tal ponto que irrompiam
num verdadeiro frenesi de participação. ISTO era arte, isto era vida, e era isto o que se
QUERIA.36

Quanto à produção, em suas manifestações extremas, «a vanguarda não propõe uma


criação coletiva, mas chega a negar radicalmente a categoria de produção individual».37
É o caso dos readymades de Duchamp e das receitas de Tzara e André Breton para se
produzir um poema.38 Ao sugerir uma fórmula, o artista reconhece em qualquer
indivíduo a faculdade de escrever poemas. Ao assinar objetos produzidos em série, ele
contraria e critica a produção individual e a noção corrente desde o Romantismo do
artista como gênio criador:

A assinatura, que precisamente conserva a individualidade da obra, é o objeto do desprezo


do artista, quando lança produtos anônimos, fabricados em série, contra toda a pretensão de
criação individual. A provocação de Duchamp não só revela que o mercado da arte, ao

36
Hans Richter, Dadá: arte e antiarte, p. 17.
37
Peter Bürger, op. cit., p. 93.
38
Ensina Breton: «Instale-se confortavelmente no lugar mais favorável à concentração de sua mente e
faça com que lhe tragam material de escrita. Ponha-se no estado mais passivo ou receptivo possível.
Abstraia de seu gênio, de seu talento, e também do gênio e do talento dos outros. Diga a si mesmo que a
literatura é um dos mais tristes caminhos que levam a tudo. Escreva rápido, sem qualquer assunto
preconcebido, rápido bastante para não reter na memória o que está escrevendo e para não se reler. A
primeira frase surgirá por si mesma, a tal ponto e verdade que, a cada segundo, ocorre uma frase estranha
ao nosso pensamento consciente, que mais não quer do que se exteriorizar. É muito difícil pronunciar-se
sobre o caso da frase seguinte; ao que tudo indica, ela participa, ao mesmo tempo, de nossa atividade
consciente e da outra, se admitirmos que o fato de ter escrito a primeira implica um mínimo de percepção.
Isto, aliás, deve importar-lhe pouco: é nessas coisas que reside a maior parte do interesse suscitado pelo
jogo surrealista. É sempre verdade que a pontuação certamente se opõe à continuidade absoluta do fluxo
de que nos ocupamos, embora ela pareça tão necessária quanto a distribuição de nós numa corda em
vibração. Prossiga enquanto sentir vontade de fazê-lo. Confie no caráter inesgotável do murmúrio. Se o
silêncio ameaça estabelecer-se em virtude de um erro seu, minúsculo que seja – um erro, por exemplo, de
desatenção – interrompa, sem hesitar, uma linha demasiado clara. Logo depois da palavra cuja origem lhe
pareça suspeita escreva uma letra qualquer, a letra l, por exemplo, sempre a letra l, e traga de volta o
arbitrário impondo esta letra como inicial à palavra seguinte» («Manifesto do surrealismo (1924)»,
Manifestos do surrealismo, pp. 44-45). E Tzara, em «Para fazer um poema dadaísta»: «Pegue num jornal.
/ Pegue numa tesoura. / Escolha no jornal um artigo que tenha o tamanho que pensa dar ao seu poema. /
Recorte o artigo. / Recorte seguidamente com cuidado as palavras que formam o artigo e meta-as num
saco. / Agite com cuidado. / Seguidamente, retire os recortes um por um. / Copie conscienciosamente /
segundo a ordem pela qual foram saindo do saco. / O poema parecer-se-á consigo. / E você tornou-se um
escritor infinitamente original e duma sensibilidade encantadora, ainda que incompreendida pelo vulgo»
(Sete manifestos dada, p. 42).

26
atribuir mais valor à assinatura do que à obra, é uma instituição controversa, como ainda faz
vacilar o próprio princípio da arte na sociedade burguesa, segundo o qual o indivíduo é o
criador das obras de arte.39

Se levarmos um pouco mais adiante as considerações de Bürger, podemos


observar que os artistas dos movimentos artísticos do início do século XX se valem
ainda de um outro expediente na tentativa – frustrada, porque sempre se reconhece a
autoria dos trabalhos – de suprimir as marcas de individualidade: mesmo tendo
produzido suas obras sozinhos, eles as apresentam em grupo, forjando um sujeito
coletivo.40 Não há lugar em que este sujeito coletivo se constitua de maneira mais
evidente que na própria enunciação de seus discursos, isto é, nos manifestos das mais
diversas correntes vanguardistas: não me refiro apenas às várias assinaturas apostas a
muitos destes, mas, em especial, ao uso freqüente da primeira pessoa do plural – e aqui
aludo a um uso do nós para além de sua utilização retórica, para um uso mais literal, no
qual o nós não compreende apenas uma voz individual, mas mais de uma voz que fala
ao mesmo tempo e em conjunto. Kasimir Malevitch intitulou «Nós queremos...» o
manifesto, de 1920, que atribuiu ao Comitê de Criação de Unovis, escola artística

39
Peter Bürger, op. cit., p. 93.
40
Annabelle Melzer salienta a importância do grupo para os membros do Dadá. Ela chama a atenção para
o fato de que eles andavam sempre juntos, escreviam alguns poemas em conjunto, iam para os cafés em
grupos: «A importância do “grupo” era suprema. No “Café de la Terasse”, primeiro ponto de encontro
deles em Zurique, Tzara, Serner e Arp juntos escreveram um ciclo de poemas intitulado “A hipérbole do
cabeleireiro do crocodilo e a vara ambulante”. O ponto de encontro foi logo transferido para o “Odéon”
(em simpatia com uma greve de garçons no “Terasse”) onde duas ou três mesas não eram suficientes para
abarcar o barulhento grupo de amigos dadá. Eles terminariam reservando metade da esquina Rami-Strasse
do “Odéon”. (...) Quando Zurique adormecia sob a pálida lua em forma de foice, Hennings ia para casa
com Ball; Richter e Tzara, para os quartos adjacentes no Hotel Louisatquai. Só Janco e Arp iam para suas
respectivas casas; Janco com sua esposa francesa, seu filho e seus dois irmãos mais jovens no enclave
familiar de um apartamento burguês, e Arp, para sua reclusão com Sophie Taeuber no subúrbio de
Zurique. Mesmo à noite, o grupo mal se separava» (Dada and Surrealist Performance, pp. 65-66). Mario
Perniola reconhece que alguns dos grupos de artistas formados nas vanguardas apresentam um caráter
sectário: «Para Tzara, Picabia, Duchamp e boa parte dos dadaístas, a participação no grupo dadaísta não
implica outra coisa que a adesão a uma perspectiva comum, a intervenção solidária em ações coletivas e
eventualmente uma relação de amizade afetuosa. Ao contrário, os dadaístas berlinenses (Huelsenbeck,
Hausmann...) e Breton tendem a atribuir ao grupo um significado e um alcance muito mais solenes e
exclusivos. Para eles, as relações correntes entre os dadaístas assumem um caráter privilegiado e
eminentemente histórico, que os colocam acima das relações humanas comuns. O conceito de grupo que
daí deriva é similar à seita, a uma microssociedade de perfeitos que exclui de si mesma todo o resto da
humanidade: a sua ambição fundamental é de constituir em si mesma a realização prática e coletiva da
arte. No grupo dadaísta berlinense, já estão implícitos muitos aspectos sectários: uma tendência a
transformar as teses sustentadas numa propriedade a ser defendida possessivamente, um estado de
suspeita recíproca oculto atrás de uma ideologia comunitária, uma seriedade de propósitos estranha à
ironia do Cabaret Voltaire de Zurique, um movimento de fechamento e de suspeita aos estranhos
(demonstrado, por exemplo, na recusa em aceitar no grupo Kurt Schwitters, que conduzia em Hanover
experiências a pleno título dadaístas), um processo de institucionalização com a conseguinte luta pelo
poder entre Huelsenbeck e Hausmann» (L’alienazione artistica, pp. 216-217).

27
estatal, que ele dirigia na época. Neste manifesto, estabeleceu uma subjetividade
coletiva por meio da reafirmação, a cada frase, do pronome pessoal nós. Primeiro,
valeu-se deste pronome não apenas como uma maneira de determinar um enunciador
coletivo no discurso, mas também para, por meio da reiteração de um desejo comum,
demonstrar a força desta coletividade:

Que a destruição do velho mundo artístico seja traçada sobre a palma de suas
mãos.
NÓS QUEREMOS
NÓS QUEREMOS
NÓS QUEREMOS
NÓS QUEREMOS

Depois, utilizou o nós como uma maneira de caracterizar e identificar o grupo com os
tempos modernos:

Que a face da época atual se transforme na nossa face. Nós somos jovens, nós
somos aqueles nos quais reside a resposta à juventude eterna do mundo.
(...)
Nós somos a supremacia do novo, nós só podemos criar, somos jovens e puros,
graças a nós se desenvolverá a arte nova; não depositaremos nossa sombra sobre o novo,
seremos o fogo e transmitiremos a força ao novo.41

Um ano antes, no manifesto cujo título também indicava a pluralidade, «Nossas


tarefas», Malevitch não só lançava mão de um nós, mas também exigia «a criação de
um coletivo mundial para os negócios artísticos».42
A mesma vontade de se fundar um coletivo artístico era encontrada no artigo
«Rumo a uma construção coletiva», publicado no número 6 da revista De Stijl e
assinado por Theo van Doesburg e C. van Eesteren. Neste, a instituição de um coletivo
de artistas era compreendida como elemento essencial para aproximar vida e arte:

Devemos compreender que arte e vida não constituem mais campos distintos. E para isto
devemos eliminar a idéia de «arte» como uma ilusão avulsa da vida real. O termo «arte»
não tem mais para nós algum significado. Em seu lugar, exigimos a construção do nosso
ambiente segundo leis criativas derivadas de um princípio constante. Estas leis, análogas
àquelas econômicas, matemáticas, técnicas, higiênicas, conduzem a uma nova unidade
plástica. Para definir as relações recíprocas que se põem entre estas, é necessário
compreendê-las e determiná-las. Até hoje ninguém examinou cientificamente as leis
construtivas da criação humana. É impossível considerá-las imaginárias. Estas existem; mas
se podem definir somente através de uma obra coletiva e com base na experiência...43

41
Kasimir Malevitch, «Nous voulons...», Écrits, pp. 261 e 262 respectivamente.
42
Kasimir Malevitch, «Nos Tâches», op. cit., p. 273.
43
Theo van Doesburg e C. van Eesteren, «Rumo a uma construção coletiva», citado por Hans L. C. Jaffé,
Per un’arte nuova: De Stijl 1917-1923, p. 247.

28
Em outro lugar da Europa, F. T. Marinetti, mesmo assinando sozinho o primeiro
manifesto futurista, definiu as vontades e as características de um grupo, ao utilizar-se
do nós e do possessivo nosso(a) em nove de suas onze famosas assertivas:

1. Noi vogliamo cantare l’amor del pericolo, l’abitudine all’energia e alla temerità.
2. Il coraggio, l’audacia, la ribelione, saranno elementi essenziali della nostra poesia.
3. La letteratura esaltò, fino ad oggi, l’immobilità pensosa, l’estasi e il sonno. Noi vogliamo
esaltare il movimento aggressivo, l’insonnia febbrile, il passo di corsa, il salto mortale, lo
schiaffo ed il pugno.
4. Noi affermiamo che la magnificenza del mondo si è arricchita di una bellezza nuova: la
bellezza della velocità. Un automobile da corsa, col suo cofano adorno di grossi tubi simili
a serpenti dall’alito esplosivo... un automobile ruggente, che sembra correre sulla mitraglia,
è più bello della Vittoria di Samotracia.
5. Noi vogliamo inneggiare all’uomo che tiene il volante, la cui asta ideale attraversa la
Terra, lanciata a corsa, essa pure, sul circuito della sua orbita.
(...)
8. Noi siamo sul promontorio estremo dei secoli!... Perché dovremmo guardarci alle spalle,
se vogliamo sfondare le misteriose porte dell’Impossibile? Il Tempo e lo Spazio morirono
ieri. Noi viviamo già nell’assoluto, poiché abbiamo già creata l’eterna velocità
onnipresente.
9. Noi vogliamo glorificare la guerra – sola igiene del mondo – il militarismo, il
patriottismo, il gesto distruttore dei libertarii, le belle idee per cui si muore e il disprezzo
della donna.
10. Noi vogliamo distruggere i musei, le biblioteche, le accademie d’ogni specie, e
combattere contro il moralismo, il femminismo e contro ogni viltà opportunistica o
utilitaria.
11. Noi cantaremo le grandi folle agitate dal lavoro, dal piacere o dalla sommossa;
cantaremo il vibrante fervore notturno degli arsenali e dei cantieri incendiati da violente
lune elettriche; le stazioni ingorde, divoratrici di serpi che fumano; le officine appese alle
nuvole pei contorti fili dei loro fumi; i ponti simili a ginnasti giganti che scavalcano i fiumi,
balenanti al sole con un luccichio di coltelli; i piroscafi avventurosi che fiutano l’orizzonte,
le locomotive dall’ampio petto, che scalpitano sulle rotaie, come enormi cavalli d’acciaio
imbrigliati di tubi, e il volo scivolante degli aeroplani, la cui elica garrisce al vento come
una bandiera e sembra applaudire come una folla entusiasta.44

Schwitters, ao saudar o Dadá holandês, representado pelo seu amigo Theo van
Doesburg, no primeiro número de sua revista Merz, serviu-se do nós para falar em nome
de um grupo: «Nós despertamos o dadaísmo adormecido da massa. Nós somos profetas.
Nós levamos à multidão de ouvintes, como se fosse uma flauta, sons de beleza
dadaísta».45

44
F. T. Marinetti, «Fondazione e manifesto del futurismo», citado por Claudia Salaris, Marinetti: arte e
vita futurista, pp. 59-60. Marjorie Perloff chama a atenção para a subordinação da individualidade ao nós
nas primeiras frases deste mesmo manifesto, nas quais Marinetti narra uma excursão de carro com seus
amigos: «essas imagens não apontam para o eu; elas não refletem a luta interior nem os contornos de uma
consciência individual. Pelo contrário, a individualidade de Marinetti é subordinada ao “nós” comunal (a
primeira palavra do manifesto), dirigindo-se ao “você” da multidão, à massa que ele espera provocar,
deliciar» (O momento futurista, p. 163).
45
Kurt Schwitters, «Dadaismo in Olanda», reproduzido por Arturo Schwarz, Almanacco dada, p. 514.

29
Como em qualquer ato comunicacional, os manifestos dos artistas pressupunham
um receptor.46 Porém, estes pareciam não visar um receptor individual. O fato de se
apresentarem como uma coletividade podia ser visto como um indício da necessidade de
atingir uma outra coletividade.47 Muitas vezes, esta outra coletividade vinha marcada no
próprio discurso. Na «Declaração de 27 de janeiro de 1925», os surrealistas, reunidos
sob um nós coletivo, dialogavam primeiro com os críticos:

Eu égard à une fausse interprétation de notre tentative stupidement répandue dans


le public,
Nous tenons à déclarer ce qui suit à toute l’ânonante critique littéraire,
dramatique, philosophique, exégétique et même théologique contemporaine:
1º Nous n’avons rien à voir avec la littérature,
Mais nous sommes très capables, au besoin, de nous en servir comme tout le
monde.

Mais adiante, voltavam sua fala à sociedade:

6º Nous lançons à la Société cet avertissement solennel:


Qu’elle fasse attention à ses écarts, à chacun des faux-pas de son esprit nous ne la
raterons pas.
7º A chacun des tournants de sa pensée, la Sociéte nous retrouvera.

E, por fim, a todo o mundo ocidental:

9º Nous disons plus spécialment au monde occidental:


le SURRÉALISME existe
– Mais qu’est-ce donc que ce nouvel isme qui s’accroche maintenant à nous?
– Le SURRÉALISME n’est pas une forme poétique.
Il est un cri de l’esprit qui retourne vers lui-même et est bien décidé à broyer
désespérément ses entraves,

46
Para Émile Benveniste, o tu está pressuposto no discurso do eu: «O ato individual pelo qual se utiliza a
língua introduz em primeiro lugar o locutor como parâmetro nas condições necessárias da enunciação.
(...) Depois da enunciação, a língua é efetuada em uma instância do discurso, que emana de um locutor,
forma sonora que atinge um ouvinte e que suscita uma outra enunciação de retorno» (Problemas de
lingüística geral II, pp. 83-84).
47
A idéia de um receptor coletivo pressuposto pelo discurso do enunciador igualmente coletivo, que
sugiro existir nos manifestos acima citados, poderia ser descrita pela noção de leitor fictício, desenvolvida
por Wolfgang Iser para tentar dar conta do diálogo entre narrador e leitor que começa a se verificar nos
romances a partir do século XVIII. Segundo Iser, «o leitor fictício indica menos o leitor intencionado do
que aquela disposição do público de leitores sobre a qual o texto quer agir. Pois não se pode esquecer que
o leitor fictício incorpora na prosa narrativa apenas uma perspectiva de apresentação que é entrelaçada
com a do narrador, a dos protagonistas e a da trama. Em conseqüência, as disposições do público, tais
como evocadas pelo leitor fictício, são intercaladas no jogo interativo; tal tipo de jogo se realiza entre as
perspectivas de apresentação do texto e se desenrola durante a leitura. Se por isso o leitor fictício se refere
a determinados dados e expectativas históricas do público visado, isso ocorre geralmente com o fito de
fazer as disposições assim marcadas interagirem com as demais perspectivas de apresentação. Nesse
sentido, o leitor fictício evidencia as preferências do público; estas sofrem constantes modificações por
parte do texto e lhe servem como base – questionável – para a comunicação» (O ato da leitura, p. 84).

30
et au besoin par des marteaux matériels.48

No manifesto «Bofetada no gosto do público», de 1912, os futuristas russos,


reunidos sob um nós que se identificava aos novos tempos, se dirigiam a um você,
compreendido como um coletivo rival:

Você que lê nossa nova, primeira, inesperada.


Nós somos somente a face do nosso Tempo.
Para retermos o coração do tempo na arte das palavras.49

Como o próprio título do manifesto dos futuristas russos já indicava, o receptor coletivo
pressuposto pelos discursos não era outro que o público em geral. Comentando os
manifestos do futurismo italiano, Marjorie Perloff observa que Marinetti «usa a
indagação, a exortação, a repetição, a digressão, tropos e figuras retóricas para puxar o
público para dentro do raio do discurso».50 É deste modo que Francis Picabia constrói a
sua relação com o público em «Manifesto canibal dadá», lido por André Breton na noite
de 6 de março de 1920, em Paris.51 Neste, o diálogo com o espectador se estabelecia
desde o início, quando o orador convocava-o a praticar uma ação:

Vous étes tous accusés: levez-vous. L’orateur ne peut vous parler que si vous étes debout.
Debout comme pour la Marseillaise,
debout comme pour l’hymne russe,
debout comme pour le God save the king,
debout comme devant le drapeau.
Enfin debout devant DADA qui représente la vie et qui vous accuse de tout aimer par
snobisme, du moment que cela coùte cher.
Vous vous étes tous rassis? Tant mieux, comme cela vous allez m’écouter avec plus
d’attention.
Que faites vous ici, parqués comme des huitres sérieuses – car vous étes sérieux n’est-ce-
pas?
Sérieux, sérieux, sérieux jusqu’à la mort.52

A presença não apenas discursiva, mas também física de um receptor coletivo


era esperada pelos artistas. Freqüentemente, os manifestos eram lidos em locais

48
Déclaration du 27 Janvier 1925, publicada na revista La Révolution Surréaliste. Esta declaração foi
assinada por Louis Aragon, Antonin Artaud, Jacques Baron, Joe Bousquet, J.-A. Boiffard, André Breton,
Jean Carrive, René Crevel, Robert Desnos, Paul Éluard, Max Ernst, T. Fraenkel, Francis Gérard, Michel
Leiris, Georges Limbour, Mathias Lübec, Georges Malkine, André Masson, Max Morise, Pierre Naville,
Marcel Noll, Benjamin Péret, Raymond Quéneau, Philippe Soupault, Dédé Sunbeam, Roland Tual. Grifos
meus.
49
David Burliuk, A. Krutchonik, Vladimir Maiakovsky e V. Khlebnikov, «Bofetada no gosto do
público», citado por Valentine Marcadé, Le Renouveau de l’art pictural russe, p. 210.
50
Marjorie Perloff, O momento futurista, p. 164.
51
Conforme conta Michel Sanouillet, Dada à Paris, p. 164.
52
Francis Picabia, «Manifeste cannibale dada», publicado em Dadaphone, 7 (mar. 1920), p. 4.

31
públicos. Por isso a predileção pelas grandes soirées – e lembremos que, nestas
noitadas, os artistas se constituíam como um sujeito coletivo não só por meio do
discurso, mas também por apresentarem seus manifestos, poemas, pinturas e esculturas
como um grupo unido. Realizadas em bares, casas de espetáculo ou salas de teatro, as
soirées exigiam, pelo seu formato, a presença de uma platéia. No entanto, não bastava
que apenas existisse uma platéia: era preciso que esta platéia fosse ativa e, mais do que
isso, que respondesse como um corpo único. E a maneira de fazer com que os
espectadores respondessem como um corpo único era provocá-los, ofendê-los até que as
reações negativas não se dessem isoladamente, mas que se unificassem numa só
oposição. «Et toujours vous serez contre nous. Car étant pour nous vous serez contre
nous», desafiava Georges Ribemont-Dessaignes.53 A idéia era trazer o público para
dentro do espetáculo. Comentam os críticos italianos Gian Rizzo Morteo e Ippolito
Simons, na introdução a uma antologia de peças dadaístas:

O espetáculo representado sobre o palco assume então a função de isca, de pavio,


destinado a desencadear uma reação reversível platéia-palco; mas sobretudo ajuda a criar
uma «situação» teatral coletiva, além da situação dramática contingente (isto é, aquela que
se dá sobre o palco e aquela que se verifica na platéia).54

Em geral, era com desprezo e agressividade que os artistas se dirigiam aos


espectadores, como no manifesto Ao público, escrito e lido por Ribemont-Dessaignes na
matinê de 5 de fevereiro de 1920, durante uma manifestação, na sala do Grand-Palais.
Notemos que, neste manifesto, o sujeito coletivo, o nós dos artistas, se instituía como
um grupo numa posição superior e diametralmente oposta à audiência inferior, que era
sumariamente ofendida:

Avant de descendre parmi vous afin d’arracher vos dents gâtés, vos oreilles gourmeuses,
votre langue pleine de chancres.
Avant de briser vos os pourris –
D’ouvrir votre ventre cholérique, et d’en retirer, à l’usage des engrais pour l’agriculture,
votre foie trop gras, votre rate ignoble et vos rognons à diabète –
Avant d’arracher votre vilain sexe incontinent et glaireux –
Avant d’éteindre ainsi votre appétit de beauté, d’extases, de sucre, de philosophie, de poivre
et de concombres métaphysiques, mathématiques et poétiques –
Avant de vous désinfecter au vitriol et de vous rendre ainsi propres et de vous répoliner
avec passion –
avant tout cela –
Nous allons prendre un grand bain antiseptique –

53
Georges Ribemont-Dessaignes, «Ce qu’il ne faut pas dire sur l’art», Dada: manifestes, poemes, articles,
projets (1915-1930), p. 30.
54
Gian Renzo Morteo e Ippolito Simons, Teatro Dada, p. 13.

32
Et nous vous avertissons –
C’est nous les assassins –
De tous vos petits nouveaux-nés –
Et pour finir il y a une chanson –
Ki Ki Ki Ki Ki Ki Ki
Voici Dieu à cheval sur un rossignol –
Il est beau, il est laid –
Madame, ta gueule elle sent la laitance de souteneur.
Le matin –
Car le soir on dirait le cul d’un ange amoureux d’un lis –
C’est joli, n’est-ce pas?
Adieu, mon ami.55

Ao se colocar numa posição superior, da qual deveria descer se quisesse chegar ao


público, o artista garantia uma separação entre o seu grupo e o grupo composto pela
audiência, como se houvesse necessidade de se estabelecer uma diferença irredutível
entre o enunciador e o receptor. Estes dois grupos deveriam ser vistos como opostos,
como dois pólos impossibilitados de dialogar porque incapazes de compreender uns aos
outros, tal como mostra o final do «Manifesto do movimento DADA», publicado no
Bulletin Dada, o número 6 da revista Dada:

Vous ne comprenez pas n’est-ce que nous faisons.


Eh bien chers amis nous le comprenons encore moins.
Quel bonheur hein vous avez raison.56

As ofensas ao público tinham uma intenção imediata: fazê-lo sair de sua apatia.
Referindo-se às manifestações dadaístas, Benjamin observa que «a diversão tornou-se
um exercício de comportamento social», em contraposição à postura anti-social de
concentração frente a uma obra de arte – seja ela uma pintura, uma escultura, um

55
Georges Ribemont-Dessaignes, «Au public», Dada: manifestes, poemes, articles, projets (1915-1930),
pp. 11-12.
56
Francis Picabia, «Manifeste du mouvement DADA», Bulletin Dada, 6 (fev. 1920), p. 2. É interessante
destacar que, depois de constituído o grupo pela repetição da primeira pessoal do plural, o nós coletivo se
transforma, neste mesmo manifesto, num eu (moi): «J’aimerais coucher encore une fois avec le pape,
vous ne comprenez pas? Moi non plus comme c’est triste» (Idem). Em outros manifestos, verifica-se a
mesma transformação do nós num eu, porém somente após a repetição enfática do coletivo. Em outro
«Manifeste du mouvement Dada», este assinado por Louis Aragon e impresso na edição da revista
Littérature dedicada à publicação de vinte e três manifestos dadaístas, o nós também se torna um eu
coletivo que, da mesma forma que o reiterado uso da palavra Dadá, parece designar o movimento como
um todo: «nous espérons que la nouveauté qui sera la même chose que ce que nous ne voulons plus,
s’imposera moins pourrie, moins égoïste, moins mercantile, moins obtuse, moins immensement
grotesque. / Vivent les concubines et les concubistes. Tous les membres du Mouvement DADA sont
présidents. / MOI / Tout ce qui n’est pas moi est incompréhensible. / Que je l’aille chercher aux rivages
du Pacifique ou que je le ramasse dans les contrées de mon existence, le coquillage que j’appliquerai à
mon oreille retentira de la même voix que je prendrai pour celle de la mer et qui ne sera que le bruit de
moi-même» (Littérature, 13 (mai 1920), pp. 1-2).

33
poema, um romance –, típica da «burguesia degenerada»57; e esta observação
benjaminiana poderia ser estendida a outras manifestações artísticas do período que se
constituíam a partir da resposta do público a uma ação ou uma série de ações dos
artistas. Na primeira versão de «A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica»,
Benjamin complementa:

O comportamento social provocado pelo dadaísmo foi o escândalo. Na realidade, as


manifestações dadaístas asseguravam uma distração intensa, transformando a obra de arte
no centro de um escândalo. Essa obra de arte tinha que satisfazer uma exigência básica:
suscitar a indignação pública. De espetáculo atraente para o olhar e sedutor para o ouvido, a
obra convertia-se num tiro. Atingia, pela agressão, o espectador. E com isso esteve a ponto
de recuperar para o presente a qualidade tátil, a mais indispensável para a arte nas grandes
épocas de reconstrução histórica.58

Para Benjamin, «o intento era, antes de tudo, de chocar a opinião pública»: «De
espetáculo atraente para o olho e de sonoridade sedutora para o ouvido, a obra de arte,
mediante o dadaísmo transformou-se em choque».59 E o choque aqui deve ser
compreendido no sentido freudiano do termo: a obra ou, mais precisamente, a
manifestação artística deveria ferir o espectador ou ouvinte: ela «adquiriu poder
traumatizante».60 Bürger, reelaborando o conceito de Benjamin e desdobrando-o para
abarcar toda a arte de vanguarda, escreve que o choque «procura-se como estímulo para

57
Walter Benjamin, «A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução», compilado por José Lino
Grünewald, A idéia do cinema, p. 89.
58
Walter Benjamin, «A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica», Magia e técnica, arte e
política, p. 191. Morteo e Simons, ao estudar o teatro dadá, falam em algo parecido à «qualidade tátil»: «a
atitude dos dadaístas nos confrontos do teatro, compreendido como instrumento de ruptura e complexo de
comunicação; ruptura sobre o plano da lógica da linguagem e da lógica da inteligência, até fazer o público
perder cada noção pré-constituída de bom e de belo (...) com o propósito de obter uma participação sobre
o plano puramente sensorial. A operação consiste portanto no destruir os esquemas críticos pré-
constituídos, anulando em conseqüência cada forma de resistência lógica até ultrapassar a soleira sobre a
qual se cria uma corrente recíproca entre palco e platéia, e o espectador, de sujeito puramente passivo,
torna-se ativo» (Teatro Dada, p. 8. Grifo meu).
59
Walter Benjamin, «A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução», compilado por José Lino
Grünewald, A idéia do cinema, p. 89. No ensaio «Sobre alguns temas em Baudelaire», Benjamin, a partir
da leitura de «Além do princípio do prazer», de Freud, desenvolveu a idéia de que a própria percepção da
realidade se revela como choque, em especial daquela realidade moderna descrita por Baudelaire: «O
mover-se através do tráfego implicava uma série de choques e colisões para cada indivíduo» (Op. cit.,
Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo, p. 124). Na estrutura dos poemas de Baudelaire, «a
experiência do choque é uma das que se tornaram determinantes» (Idem, p. 112): «Ele determinou o
preço que é preciso pagar para adquirir a sensação do moderno: a desintegração da aura na vivência do
choque» (Idem, p. 145). Já neste ensaio, Benjamin menciona o que desenvolverá mais em «A obra de arte
na era de sua reprodutibilidade técnica», a saber: que, no filme, «a percepção sob a forma de choque se
impõe como princípio formal» (Idem, p. 125).
60
Walter Benjamin, «A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução», compilado por José Lino
Grünewald, A idéia do cinema, p. 89.

34
uma alteração de comportamento; é o meio indicado para acabar com a imanência
estética e iniciar uma transformação da práxis vital dos receptores».61
Quanto mais próximos os artistas estivessem de seus receptores, quanto maior
fosse a interferência no cotidiano de seu público, maior era o choque e o escândalo
causados. Era uma necessidade de interferência direta na realidade que parecia mover
atitudes como a dos futuristas Marinetti, Umberto Boccioni, Carlo Carrà, Luigi Russolo,
os quais, em 1910, não se contentaram em simplesmente publicar um violento manifesto
contra Veneza, mas o imprimiram em oitocentos mil folhetinhos, que foram lançados do
alto do campanário da Piazza di San Marco sobre as cabeças dos transeuntes
desavisados. Ao lançamento dos folhetos, seguiu-se o «Discurso Futurista aos
Venezianos», que desencadeou vaias dos passantes. Conforme R. W. Flint, «Os pintores
futuristas Boccioni, Russolo e Carrà pontuaram esse discurso com bofetadas
ressonantes. Os punhos de Armando Mazza, um poeta futurista que era também um
atleta, deixaram uma impressão inesquecível».62 Na Rússia, ainda na década de 1910, os
artistas também promoviam suas intervenções públicas. Foi registrado pela imprensa
local o dia (8 de fevereiro de 1914) em que os amigos Malevitch e Alexei Morgunov
atravessaram a ponte Kouznetsky, em Moscou, com uma grande colher de madeira,
pintada de vermelho, presa na lapela, como uma forma de provocação. Esta colher se
tornou o símbolo do movimento futurista russo: na abertura da primeira exposição
futurista, Tramway V, em Petrogrado, os onze participantes portavam uma colher
semelhante.63
Ao suscitar o choque e a indignação do público, os artistas convocavam-no a
participar de suas manifestações. Parecia ser preciso que todos juntos – artistas e
público – tomassem parte naquela espécie de ritual que os artistas, por suas ações,
colocavam em curso. Nas soirées, procurava-se excitar os mais diversos sentidos e, de
preferência, todos ao mesmo tempo. Até mesmo o olfato era aguçado, conforme a
descrição negativa do crítico Francesco Flora de uma soirée nos Estados Unidos:

61
Peter Bürger, op. cit., p. 131. Cabe salientar que, para Bürger, a reinserção da arte na práxis vital é uma
das características mais evidentes da arte vanguardista. Contudo, ressalta que a integração à práxis vital
promovida pelos vanguardistas não significa uma inserção da arte na práxis vital da sociedade burguesa; a
vanguarda quer organizar uma nova práxis vital.
62
R. W. Flint, Sellected writings, de F. T. Marinetti, citado por Marjorie Perloff, Momento futurista, p.
190.
63
Conforme conta Linda S. Boersma, 0,10: la dernière exposition futuriste, pp. 26-28.

35
o visitante entra por um corredor tomado pelos mais imprevistos odores, atravessa trechos
perigosos nos quais experimenta a volúpia do medo e aquela da subseqüente raiva: se lhe
preparava enfim um espectáculo no qual o cretinismo é tão agudo e tão sensível a ponto de
suscitar os mais comoventes vitupérios e clamores.64

Nas soirées, os poemas e manifestos não eram apenas lidos: eles eram cantados,
falados, declamados de maneira não-tradicional. Os artistas se vestiam com roupas
estranhas, usavam máscaras, maquiavam-se ou simplesmente se apresentavam de
fraque. De gênios criadores, eles se transformavam em algo como oficiantes. Nas
conferências que os futuristas russos promoviam pelo seu país, costumavam aparecer
em trajes nem um pouco convencionais. O poeta e pintor Vladimir Maiakovsky vestia
uma blusa amarela e um chapéu. O poeta Benedikt Livchits substituía a gravata clássica
por um jabô negro. O poeta, pintor e aviador Vassili Kamensky se apresentava de
camisa vermelho vivo, com um cigarro na boca e um aeroplano – seu emblema –
pintado no rosto. Krutchonik, por sua vez, enrolava uma almofada em torno do
pescoço.65 David Burliuk, Mikhail Larionov, Natalia Goncharova e Livchits saíam às
ruas com os rostos pintados como uma forma de provocação: queriam instigar o público
e fazer com que sua arte tomasse parte na vida real.66 Em Paris, para ler o diálogo
«Você me esquecerá», de André Breton e Philippe Soupault, Paul Éluard apareceu com
uma peruca de lã na cabeça e encerrado num saco de tarlatana amarela. Vestido deste
modo, fingia brigar com Breton, de calças vermelhas.67 Na soirée de 23 de junho de
1916, no Cabaret Voltaire, em Zurique, Hugo Ball vestiu-se com uma roupa feita por
ele mesmo, com papelão colorido, para ler o poema abstrato-fonético Gadji Beri Bimba,
composto por uma série de sílabas que, juntas, não faziam sentido. Cada detalhe era um
estímulo para o público reagir, de preferência, negativamente.68

64
Francesco Flora, «Dadaismo», publicado originalmente na Cronache d’attualité, de novembro-
dezembro de 1921, e reproduzido por Arturo Schwarz, Almanacco Dada, p. 310.
65
Conforme contam Valentine Marcadé, Le renouveau de l’art pictural russe, pp. 217-218; e Frédéric
Valabrègue, Kazimir Sévérinovitch Malévitch, p. 54.
66
Assim, pelo menos, se explicaram Larionov e seu amigo Ilya Zdanévitch na proclamação «Por que nós
nos pintamos»: «Nós associamos a arte à vida. Depois de um longo isolamento, chamamos a vida à alta
voz, e a vida invadiu a arte; faz tempo que a arte invadiu a vida. A pintura do rosto foi o começo desta
invasão... Não visamos mais do que a estética. Retemos melhor a caligrafia que as informações. A síntese
da decoração e da ilustração – eis a base de nossa pintura do rosto. Nós embelezamos a vida e
anunciamos, é por isso que nos pintamos. A pintura do rosto é o novo tesouro popular, como tudo aquilo
que existe nos nossos dias» (citado por Valentine Marcadé, Le renouveau de l’art pictural russe, p. 218).
67
Conforme Michel Sanouillet, Dada à Paris, pp. 176-177.
68
Ver relato de Hugo Ball acerca de sua apresentação na noite do dia 23 de junho de 1916 em Flight Out
of Time, pp. 70-71.

36
Em 10 de janeiro de 1923, Schwitters e Van Doesburg – que excursionavam pela
Holanda – movimentaram a noite no Círculo Artístico de Haia. Enquanto Van
Doesburg, vestido com dinner jacket, camisa preta e gravata branca, com o rosto
empoado de branco e um monóculo sobre o olho, fazia uma explanação sobre o
Dadaísmo, Schwitters, que não sabia uma única palavra em holandês, decidiu interferir
latindo alto do meio da platéia. Na segunda apresentação da dupla, Schwitters,
contrariando as expectativas, não latiu. Esta excursão foi lembrada pelo artista num
texto de 1931 sobre o então recém-falecido Van Doesburg:

Desta vez, conforme a sugestão de Doesburg, eu não lati. Foi isto que nos valeu a terceira
soirée em Amsterdã, no curso da qual foi preciso evacuar da sala as pessoas desmaiadas, ao
passo que uma mulher, tomada de uma crise de riso histérico, atraiu sobre si a atenção do
público durante aproximadamente um quarto de hora, enquanto um senhor fanático em
casaco de lã tratava o público de «imbecis» com entonações proféticas.69

Era uma reação irracional como esta que os artistas esperavam do público. Quanto mais
os espectadores protestassem, mais satisfeitos os artistas ficavam. «A partir deste
momento, a campanha dadaísta de Van Doesburg foi um sucesso decisivo»,70
arrematava Schwitters.
O público não deveria simplesmente entrar no local para assistir ao espetáculo,
mas submergir nele, penetrar numa nova realidade, totalmente diversa da realidade do
mundo exterior. Para tal, cada pedacinho do ambiente era aproveitado e trabalhado
pelos artistas. Na última soirée em Zurique, por exemplo, realizada em 9 de abril de
1919, no salão do Kaufleuten, Richter e Hans Arp decoraram a sala com grandes tiras
de papel sobre as quais pintaram, em preto, formas semelhantes a pepinos. Nas cimalhas
do pátio da cervejaria Winter, em Colônia, em abril de 1920, Arp, Johannes Baargeld e
Max Ernst, os organizadores da noitada, penduraram uma série de objetos, como
colagens, fotomontagens, construções pré-surrealistas. Dentre estas, destacava-se o
Fluidoskeptric, cujo nome completo era Fluidoskeptric der Rotzwitha van Gandersheim
e consistia num «aquário cheio de água tingida de vermelho, com um despertador no
fundo, um bela cabeça provida de cabeleira flutuando em cima, e a mão de um boneco
de madeira saindo para fora, do lado».71 Nesta mesma soirée, para chegar ao pátio onde
acontecia o evento, o público era obrigado a passar por cima de um vaso sanitário
69
Kurt Schwitters, «Van Doesburg», Merz: écrits, p. 174.
70
Kurt Schwitters, op. cit., idem.
71
Ver Michel Sanouillet, Dada et Surréalisme, p. 108, e Dawn Ades, O dadá e o surrealismo, p. 24.

37
largado bem no meio da passagem. Intimavam-se assim os espectadores à ação e à
participação.
Annabelle Melzer, em seu livro sobre as performances dadaístas e surrealistas,
chama a atenção para dois aspectos destas manifestações artísticas. Em primeiro lugar,
no momento em que salienta que, «ao colocar a si mesmo e à sua criação no centro do
evento artístico, o performer dadá explorava as fronteiras entre a exaltação primitiva e o
excesso maníaco»,72 Melzer aponta para dois fatores. Por um lado, para o fato de o
artista se apresentar como o núcleo central a partir do qual se institui o evento. Como já
vimos, é a partir dele que se desencadeiam as ações que têm como finalidade incitar o
público a se incorporar à manifestação. Por outro, Melzer sugere que, ao atribuir a si
mesmo o papel de núcleo central, o artista não o desempenha como um simples mestre-
de-cerimônias, mas como um possesso, remetendo suas ações a um universo
diferenciado daquele do público, um universo que, na falta de termo melhor, talvez se
possa qualificar de «primitivo» ou «bárbaro». Poderíamos lembrar aqui a passagem do
diário de Ball em que o artista relata como ele e seus companheiros reagiram quando
receberam de Marcel Janco algumas máscaras em papelão, inspiradas nas máscaras dos
antigos teatros grego e japonês:

Estávamos todos lá quando Janco chegou com suas máscaras, e todos imediatamente as
pusemos. Então alguma coisa estranha aconteceu. Não só a máscara imediatamente pediu
uma roupa; mas também demandou uma gesticulação bastante definida e apaixonada,
beirando a loucura. Embora não pudéssemos ter imaginado isto cinco minutos antes,
estávamos caminhando ao redor com os mais bizarros movimentos, com objetos
impossíveis presos na cabeça e na roupa, cada um de nós tentando superar o outro em
inventividade. A força motriz destas máscaras foi transmitida irresistivelmente a nós. (...)
As máscaras simplesmente demandavam que aqueles que as vestiam começassem a se
mover numa dança trágico-absurda.73

72
Annabelle Melzer, Dada and Surrealist Performance, p. 59.
73
Hugo Ball, Flight Out of Time, p. 64. É curioso notar como este procedimento de sair de si, de se tornar
um outro ao vestir a máscara reproduz o procedimento desempenhado pelos gregos em suas celebrações
dionisíacas. E. R. Dodds chama a atenção para a possibilidade de se transformar num outro e, com isso,
de se atingir a liberdade irrestrita que esta forma dionisíaca do que chama de «loucura» oferece aos
homens: «Como os Citas em Heródoto o colocam, “Dioniso leva as pessoas a se comportarem
insanamente” – o que poderia significar qualquer coisa desde “deixar-se ir” até ficar “possesso”. O
objetivo de seu culto era a ecstasis – a qual novamente poderia significar algo desde “tomar você de si
mesmo” até uma profunda alteração da personalidade» (The Greeks and the Irrational, p. 77). E
lembremos ainda que, para Lucien Lévy-Bruhl, colocar uma máscara é a maneira mais fácil de suprimir a
própria identidade (ver Le surnaturel et la nature dans la mentalité primitive, pp. 124 e 125). Sobre a
relação dos cultos dionisíacos com o êxtase, ver ainda Karl Kérenyi, Dioniso, pp. 176 e ss.; Walter Otto,
Dioniso, pp. 52 e ss; Junito de Souza Brandão, Mitologia grega, v. 2, pp. 130 e ss.).

38
Em segundo lugar, Melzer observa: «Esta combinação de anti-arte, anti-história,
anti-permanência e pró-espontaneidade faz disso uma simples etapa para uma
compreensão da valorização dadá do “processo” (a maneira pela qual o trabalho é
realizado) sobre o “produto” (o trabalho em si)».74 De fato, o que se pode verificar,
desde estas manifestações artísticas até a constituição mesma dos trabalhos das
primeiras décadas do século XX (como veremos mais detidamente nas partes seguintes
deste estudo), é uma ênfase no processo. O que parece passar a interessar ao artista não
é tanto o produto, o resultado de suas ações e de seus gestos, mas as ações e os gestos
em si. Giorgio Agamben, ao tratar de poesia, percebe:

A emergência em primeiro plano do processo criativo na poesia moderna e o seu impor-se


como valor autônomo independentemente da obra produzida (Valéry: pourquoi ne
concevrait-on pas la production d’une oeuvre d’art comme une oeuvre d’art elle-même?) é,
antes de tudo, uma tentativa de reificar o não-reificável.75

Isso faz com que se desloque o foco da atenção do produto final para o processo que o
engendrou. Em função disso, pretendo mostrar como é a partir do estabelecimento de
um processo que se constituem tanto o que chamo de dimensão mítica quanto o que
chamo de dimensão ritual da arte moderna.
Mas como poderíamos compreender o funcionamento deste processo encetado
pelos artistas das décadas de 1910 e 1920? Renato Poggioli talvez nos ajude a começar
a entendê-lo. Em sua Teoria da arte da vanguarda, Poggioli associa as produções
artísticas do início do século XX a uma idéia de ação, enfeixada em sua noção de
«movimento» – que opõe à de «escola». Para ele, o movimento se constitui «por agir,
parcialmente ou principalmente, contra qualquer coisa ou contra qualquer um».76 Esta
«qualquer coisa» pode ser a academia ou a tradição, e este «qualquer um», um mestre,
cujos ensinamentos podem ser reconhecidos como errôneos, «ou, mais freqüentemente,

74
Annabelle Melzer, op. cit., p. 59.
75
Giorgio Agamben, Stanze: la parola e il fantasma nella cultura occidentale, p. 59. Em nota, comenta
ainda: «[Gottfried] Benn observa justamente, no seu ensaio sobre Problemas do lirismo (1951), que todos
os poetas modernos, de Poe a Mallarmé até Valéry e Pound, parecem conferir ao processo criativo o
mesmo interesse que esses conferem à obra mesma». E mais adiante, na mesma nota, completa: «É
interessante observar que a reificação do processo criativo nasce justamente da recusa da reificação
implícita em cada obra de arte. Assim, Dadá, que procura constantemente negar o objeto artístico e abolir
a idéia mesma de “obra”, termina com transformar em mercadoria paradoxalmente a mesma atividade
espiritual» (Idem, p. 63n).
76
Renato Poggioli, Teoria dell’arte d’avanguardia, p. 40.

39
aquele indivíduo coletivo a que se dá o nome de público».77 Da noção de movimento
como uma ação opositiva e hostil, deriva quatro atitudes vanguardistas: ativismo (ou
momento ativista), antagonismo (ou momento antagonístico), niilismo e agonismo (ou
momento agônico). A primeira se reveste de um espírito de guerrilha e se revela como
aquele posicionamento de certos indivíduos, reunidos em grupos, de agirem e de
operarem a partir de qualquer método, não excluindo o terrorismo e a ação direta. O
antagonismo, por sua vez, se traduz naquela atitude de revolta anárquica contra o
público e a tradição, estabelecida por meio da provocação e da delinqüência, ao modo
da maioria das manifestações que vimos anteriormente.
As outras duas atitudes partem do mesmo conceito, mas, segundo Poggioli, o
superam. Assim, define o niilismo como «um antagonismo transcendental». Neste,

O gosto do agir pelo agir, o dinamismo inerente à mesma idéia de movimento


podem de fato induzir a não se dar conta, no curso da ação, de alguma convenção ou
reserva, escrúpulo ou limite: mais, que na embriaguez do movimento se pode experimentar
felicidade no ato de derrubar barreiras, deitar obstáculos ao solo, destruir quanto se
encontre sobre o próprio caminho.78

Por fim, o agonismo ou momento agônico ocorre quando, na ânsia de ser sempre mais
feroz e mais violento, «o movimento e as unidades humanas que o compõem podem
chegar até o ponto de não se conseguir imaginar não só as ruínas e as perdas dos outros,
mas mesmo a própria catástrofe ou perdição».79 Nesta auto-aniquilação, Poggioli,
partindo de uma consideração de Massimo Bontempelli,80 reconhece uma certa forma
de sacrifício: um sacrifício do próprio artista à glória futura, um sacrifício que deve ser
entendido «não só como sacrifício anônimo e coletivo, mas também como auto-
imolação da personalidade criadora isolada».81 Em outras palavras, Poggioli percebe o
artista de vanguarda como aquele que concebe a própria arte e aquela da sua geração
como se fosse uma fase preparatória, um estudo ou prelúdio, a uma revolução artística
futura.82

77
Idem.
78
Idem, pp. 42, 45 e 40 respectivamente.
79
Idem, p. 40.
80
Massimo Bontempelli teria dito, conforme cita Poggioli, que o «espírito dos movimentos de vanguarda
é de auto-sacrifício e de autoconsagração àqueles que virão» (Teoria dell’arte d’avanguardia, p. 83).
81
Renato Poggioli, op. cit., p. 83.
82
Ver Renato Poggioli, op. cit., p. 88.

40
Sugiro que retenhamos esta analogia com o sacrifício – «o rito mais ordinário»83
– e que a levemos adiante. Creio ser possível iluminar certos aspectos ainda
obscurecidos no que diz respeito ao encadeamento do processo artístico, que se
estabelece a partir de uma nova relação entre artista e público e de um novo
comportamento derivado desta relação, se nos valermos da teoria do sacrifício de René
Girard como um modelo interpretativo.
Na visão de Girard, a violência é a base de todo o sacrifício. Há violência no
próprio ato sacrificial – «O sacrifício é simultaneamente um assassinato e uma ação
extremamente santa»84 – e no que motiva este ato: o sacrifício serve como uma forma
de canalização da violência, ao transferir para uma vítima sacrificial as violências e
tensões internas de uma sociedade. Assim, a função do sacrifício é apaziguar as
violências e impedir a explosão de conflitos. Associado às idéias de expulsão, purgação
e purificação, o sacrifício pressupõe o extermínio de uma vítima pela coletividade dos
membros da sociedade. Poggioli sugere que esta vítima seja o próprio artista. De minha
parte, proponho que esmiucemos isso um pouco mais essa questão.
Se aceitarmos a estratificação das tendências da vanguarda proposta por Poggioli
e tivermos como modelo interpretativo a teoria do sacrifício de Girard, poderíamos
dizer que os artistas de vanguarda, como oficiantes de um rito sacrificial, voltam a sua
violência contra duas vítimas: a tradição e o público. Como vimos, os artistas instigam o
público até que este tome parte na manifestação ao responder como um corpo único às
provocações. Portanto, num primeiro instante, poderíamos identificar dois momentos
nesta ação: primeiro, os artistas, constituídos como um sujeito coletivo («A exigência de
participação coletiva deve ser satisfeita, ainda que sob uma forma simbólica»85), se
voltam contra o público por seus atos e por suas palavras; segundo, o público, como um
corpo único, responde violentamente às provocações, acabando por se integrar à
manifestação. No entanto, creio que ainda poderíamos reconhecer um terceiro
momento: ao se integrar à manifestação, a oposição do público se anula, uma vez que
era prevista e esperada desde o início.
Ao descrever, de maneira concisa, o modo como se dão os rituais entre os
dincas, povo de pastores do sul do Sudão, Girard pode nos auxiliar a ir adiante:

83
René Girard, A violência e o sagrado, p. 376.
84
René Girard, Le sacrifice, p. 14.
85
René Girard, A violência e o sagrado, p. 130.

41
Encantações entoadas em coro tornam pouco a pouco atenta uma multidão que
inicialmente se encontrava distraída e espalhada. Os assistentes executam simulacros de
combate. Por vezes, indivíduos isolados batem em outros, mas sem hostilidade real.
Portanto, no curso dos estágios preparatórios, a violência já está presente, sem dúvida sob
uma forma ritual, mas ainda recíproca; inicialmente a imitação ritual refere-se à própria
crise sacrificial, aos antecedentes caóticos da resolução unânime. De vez em quando,
alguém se afasta do grupo para ir insultar o animal, uma vaca ou um veado, amarrado a um
tronco. O rito não tem nada de estático ou rígido; ele introduz um mecanismo coletivo que
domina gradualmente as forças de dispersão e desagregação, fazendo convergir a violência
para a vítima ritual.86

O que vemos nesta descrição de Girard é, como ele mesmo diz, «a metamorfose da
violência recíproca em violência unilateral».87 A partir desta idéia, poderíamos supor
que, nesta espécie de rito sacrificial encenado nas soirées e em outras manifestações
públicas, os artistas buscam, em primeiro lugar, uma resposta – sempre negativa – dos
espectadores. Ao responder, os espectadores transformam o que era inicialmente uma
violência contra eles numa violência recíproca. Porém, o jogo não pára aí. No momento
em que o público toma parte do espetáculo, isto é, em que ele se integra ao jogo da
vanguarda, a sua oposição deixa ter efeito recíproco. É preciso, portanto, que o público
se oponha e que sua oposição se desintegre na manifestação para que a violência se
torne novamente unilateral. (Afinal, «Todos os participantes, sem exceção, devem
participar do abate».88) A violência recíproca é apenas uma primeira etapa de um ritual
no qual a verdadeira vítima sacrificial não é o público, nem aquele sujeito coletivo –
formado pelos artistas – que finge se entregar ao sacrifício. Os artistas parecem convidar
o público a se tornar cúmplice na eliminação sacrificial daquilo que se lhes apresenta
como um incômodo, como um obstáculo para se ir adiante e erigir uma arte
absolutamente nova: a arte do passado. Em síntese, a vítima sacrificial é a própria arte,
mas mais especificamente, a arte produzida por gerações e gerações anteriores.89
Mesmo não vendo nestas manifestações – tão contrárias ao bom gosto burguês da época
– qualquer vestígio do que compreende por arte, o público é levado a desempenhar
papel ativo no ritual oficiado pelos artistas, cuja meta é a liquidação da arte.
86
Idem, p. 127.
87
Idem, p. 127.
88
Idem, p. 130.
89
Vale salientar que uma das duas teses da Teoria da vanguarda de Bürger caminha um pouco nesta
direção. A sua segunda tese diz que «o subsistema artístico atinge, com os movimentos da vanguarda
européia, o estágio da autocrítica». Isto significa que a arte passa a criticar a própria instituição, isto é, os
meios de produção, recepção e circulação da arte. Assim, a vanguarda se dirige « contra o aparelho de
submissão a que está submetida a obra de arte e contra o status da arte na sociedade burguesa descrito
pelo conceito de autonomia» (Op. cit., pp. 51-52).

42
«Exterminação. Sim, claro», afirmava Tristan Tzara.90 Ao que Ribemont-
Dessaignes fazia coro: «Nos heures publiques sont des destructions publiques» e
também «Détruire ce que vous construisez. Au besoin si vous construisez».91 E muitas
vezes, quadros e objetos artísticos eram efetivamente destruídos no decorrer de uma
soirée. Em Paris, Picabia fez um desenho num quadro negro que foi apagado no instante
seguinte por Breton. Numa noite em Colônia, Max Ernst produziu uma peça em
madeira em que afixou um machado e um convite para destruí-la. Nesta mesma soirée,
o Fluidoskeptric foi exterminado ao longo da noite. No «Manifesto realista», Naum
Gabo e Antoine Pevsner eram categóricos: «Deixamos o passado para trás como um
cadáver».92 «Noi non vogliamo più saperne del passato, noi giovanni e forti futuristi!»,
exclamava Marinetti no mesmo manifesto de 1909 em que conclamava ao extermínio
dos museus («Musei: cimiteri!», «Musei: assurdi macelli di pittori e scultori»), das
bibliotecas e das academias («cimiteri di sforzi vani, calvari di sogni crocifissi, registri
di slanci troncati!») e invocava a libertação da Itália, que vinha se tornando «un mercato
di rigattieri».93 Também Arp, em seus escritos, referia-se negativamente ao passado:
«As pirâmides, os templos, as catedrais, as pinturas dos homens de gênio, tudo isso se
transformou em belas múmias».94 Mesmo Duchamp, falando de Nova York, em
depoimento de 1915, exaltava a idéia futurista de extinção do passado:

E estou convencido de que a idéia de vocês de destruir os edifícios velhos e as velhas


recordações seja uma idéia belíssima, de acordo com aquele manifesto dos Futuristas,
incompreendido porque pego à letra, que pedia a destruição dos museus e das bibliotecas. É
preciso que os vivos sejam mais fortes que os mortos, e que aprendam a viver no próprio
tempo, esquecendo o passado.95

90
Tristan Tzara, «O senhor AA e o antifilósofo envia-nos este manifesto», Sete manifestos dada, p. 33.
91
Georges Ribemont-Dessaignes, «Ce qu’il ne faut pas dire sur l’art», Dada: manifestes, poemes,
articles, projets (1915-1930), p. 29 e 28 respectivamente.
92
Naum Gabo, «O manifesto realista», reproduzido por H. B. Chipp, Teorias da arte moderna, p. 333.
93
F. T. Marinetti, «Fondazione e manifesto del futurismo», compilado por Pontus Hulten, Futurismo &
futurismi, pp. 512.
94
Hans Arp, «Arte abstrata, arte concreta», citado por H. B. Chipp, Teorias da arte moderna, p. 395. No
curtíssimo ensaio «De plus en plus je m’éloignais de l’esthétique», Arp faz uma afirmação similar: «La
fragilité de la vie et des oeuvres humaines se convertissait chez les dadaistes en humour noir. A peine une
construction, un édifice, un monument est-il terminé que déja commence sa décrépitude, sa
désagrégation, sa décomposition, son émiettement. Les pyramides, les temples, les cathédrales, les
tableaux de maître en sont des documents convaincants» (On my Way, p. 91).
95
Marcel Duchamp, «Ribaltati i valori tradizionali da Marcel Duchamp, iconoclasta», publicado
originalmente no número 11 da revista Arts and Decorations, de setembro de 1915, reproduzido por
Arturo Schwarz, Almanacco Dada, pp. 37-38.

43
Os futuristas russos Burliuk, Krutchonik, Maiakovsky e Khlebnikov, já em
1912, atacavam seus autores clássicos:

O passado é limitado.
A Academia e Puchkin são mais incompreensíveis que os hieróglifos.
É preciso jogar Puchkin, Dostoievsky, Tolstoi e cia. de cima da borda do Navio da
Época contemporânea.96

Em 1916, em carta endereçada a Alexander Benois, Malevitch declarava a morte das


culturas tradicionais: «Mas os deuses estão mortos e não ressuscitarão! Do mesmo
modo estão mortos os elefantes que carregam nas costas as civilizações artísticas
indiana, egípcia, grega e romana». Na mesma carta, anunciava: «Minha filosofia:
destruir, a cada cinqüenta anos, velhas cidades e povoados, banir a natureza dos limites
da arte, suprimir o amor e a sinceridade da arte».97 A intenção expressa nos manifestos
era fazer tabula rasa do cenário artístico, considerando até mesmo, como neste protesto
de Ribemont-Dessaignes, a auto-aniquilação: «Dada détruira Dada».98
Porém, como liquidar esta arte do passado, esta arte do mundo burguês? Apesar
da violência verbal contra a arte do passado e os locais de preservação desta, os artistas
desta época, ao que consta, não chegaram a atear fogo aos museus ou a danificar
qualquer obra dos grandes mestres. A arte do passado era destruída simbolicamente no
presente. Malevitch, em Eclipse parcial, de 1914, apôs dois X em cima de uma pequena
reprodução da Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, embaixo da qual colou ainda um
recorte dizendo: «apartamento à venda». Cinco anos depois, Duchamp se valeu da
mesma imagem, emblemática de certa arte pictórica tradicional, e foi ainda mais
iconoclasta: deu-lhe bigode, cavanhaque e uma legenda, L. H. O. O. Q. Se lidas em voz
alta em francês, estas letras formam a frase «elle a chaud au cul»; em português, algo
como «ela tem fogo no rabo». No Tableau vivant, de Picabia, apresentado na soirée de
27 de março de 1920, na Sala Berlioz, em Paris, vemos um macaco de pelúcia afixado
sobre uma madeira, circundado pelas inscrições: «Portrait de Rembrandt – Portrait de
Cézanne – Portrait de Renoir – Natures mortes». Com esta peça, Picabia ridicularizava
toda uma tradição de pintura fundamentada na macaqueação da natureza, incluindo em
sua crítica até mesmo os artistas modernos Renoir e Cézanne.
96
David Burliuk, A. Krutchonik, Vladimir Maiakovski e V. Khlebnikov, «Bofetada no gosto do público»,
reproduzido por Valentine Marcadé, Le renouveau de l’art pictural russe, p. 210.
97
Carta reproduzida por Marc Dachy, Kasimir Malevitch, Écrits, p. 164.
98
Georges Ribemont-Dessaignes, «Ce qu’il ne faut pas dire sur l’art», op. cit., p. 28.

44
Destruir a arte do passado significava destruir uma concepção muito precisa de
arte, uma arte que ainda preservava uma afinidade, baseada sobretudo na mimese, entre
sujeito humano e mundo exterior. E destruir esta concepção de arte implicava até
mesmo, nos casos mais limites, senão na destruição, pelo menos no questionamento
daquilo que comumente se compreendia por obra de arte: uma pintura, uma escultura,
um poema. Os objets trouvés dos surrealistas, os readymades de Duchamp, as colagens
Merz de Schwitters, os poemas fonéticos de Ball são alguns dos exemplos mais radicais
desta tendência. Bürger, contudo, ressaltaria que, ao invés de querer aniquilar
simplesmente a categoria de obra de arte, a vanguarda, «mesmo nas suas manifestações
mais extremas», se refere negativamente a ela:

Os readymades de Duchamp, por exemplo, só têm sentido se os relacionarmos com a


categoria de obra. Quando Duchamp assina um objeto produzido em série e o envia a uma
exposição, a sua provocação à arte implica um determinado conceito de arte. E o fato de
que assine os readymades pressupõe uma referência clara à categoria de obra. A assinatura,
que torna a obra individual e irrepetível, é aposta precisamente sobre o produto fabricado
em série. Deste modo, questiona-se provocatoriamente o conceito de essência da arte, tal
como tem sido entendido desde o Renascimento, isto é, como criação individual de obras
singulares: o próprio ato de provocação ocupa o lugar da obra.99

Recuperando a comparação entre as manifestações artísticas e os ritos


sacrificiais, poderíamos nos indagar, por fim, se haveria algum sentido neste sacrifício
da arte do passado; e, se sim, que sentido é esse? Retomemos Poggioli. Este observa
ainda que o momento agônico (aquele que – não esqueçamos – redunda numa forma de
sacrifício) «não é um estado de ânimo passivo, dominado exclusivamente pelo sentido
de uma iminente catástrofe, mas, ao contrário, é a tentativa de transformar em milagre
aquela mesma catástrofe»: «No curso da ação, através do fracasso, se tende a um
resultado que lhe justifique e lhe transcenda».100 Dentro da lógica de Poggioli, a morte
simbólica do artista, seu auto-sacrifício, abriria a possibilidade de surgimento de uma
nova geração. Se seguirmos a linha de raciocínio desenvolvida até aqui, poderíamos
compreender o sacrifício da arte de um modo que, à primeira vista, pode soar como
paradoxal: a morte da arte, a necessidade de sua destruição, parece condizer com uma

99
Peter Bürger, op. cit., p. 103. Bürger afirma ainda que «o que é referido pela categoria de obra de arte
não só é restaurado a partir do fracasso da intenção vanguardista de reintegrar a arte na práxis vital, como
ainda se amplia. O objet trouvé, a coisa, que não resulta de um processo de produção individual, mas é o
encontro fortuito em que se materializa a intenção vanguardista de unir a arte à práxis vital, é hoje
reconhecido como obra de arte. O objet trouvé perdeu o seu caráter antiartístico, transformou-se numa
obra autônoma com lugar reservado, como as outras, nos museus» (pp. 103-104).
100
Rentato Poggioli, op. cit., p. 81.

45
necessidade maior e mais forte de preservá-la. Schlegel já dizia: «O sentido secreto do
sacrifício é o aniquilamento do finito, porque é finito».101 Em alguns povos, sacrificava-
se o rei, antes que adoecesse e perdesse seu vigor, para garantir a eternidade do reinado,
transferindo seus poderes a um sucessor.102 Nas vanguardas, mata-se a arte a fim de lhe
assegurar sobrevida numa outra forma.103 Para Malevitch, não seria possível produzir
uma arte nova sem antes se desfazer do passado: «a edificação de um sistema passa
obrigatoriamente pelo crime, a destruição do sistema precedente e a edificação do novo
sistema».104

b. Primitividade
Não deixa de haver nesta tentativa de destruição total uma força purificadora.
«Nós somos o violento furacão e nós devemos nos empenhar em destruir o antigo e
criar o novo», proclamava Malevitch.105 Hans Richter, avaliando retrospectivamente o
movimento dadá na década de 1960, observou: «Dadá não significou um movimento
artístico no sentido tradicional: foi uma tempestade que desabou sobre a arte daquela
época como uma guerra se abate sobre os povos. Esta tempestade descarregou sem
aviso prévio, numa atmosfera abafada de saciedade... e deixou atrás de si um dia
novo».106 Era uma forma simbólica de, na terra arrasada, poder estabelecer um novo
começo. Para Ribemont-Dessaignes, era preciso: «Détruire un monde pour mettre un
autre à sa place».107 Para Mondrian, a «mutação», isto é, uma verdadeira mudança no
sistema artístico, «ocorre somente quando uma outra vida se torna possível».108
É justamente para uma idéia de princípio que se volta Rosalind E. Krauss
quando avalia o que chama de «originalidade da vanguarda». Para ela, esta

101
Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos, p. 161.
102
Ver James G. Frazer, The Golden Bough: The Roots of Religion and Folklore, pp. 213-217.
103
Aqui seria novamente possível fazermos uma analogia com uma outra forma de ritual. Refiro-me ao
potlatch – e vale lembrar que George Bataille, em La part maudit, já havia estabelecido uma aproximação
deste ritual aos sacrifícios entre os astecas (ver «Les Donnés historiques I. “La société de consumation”»,
op. cit., p. 83 e ss.). Nas manifestações mais violentas do potlatch, ciclicamente os membros de um dado
clã reúnem todas as riquezas acumuladas e as destroem (ver Marcel Mauss, Ensaio sobre a dádiva).
104
Kasimir Malevitch, «Dieu n’est pas déchu», Écrits, p. 385.
105
Kasimir Malevitch, «Nous voulons...», op. cit., p. 263.
106
Hans Richter, Dadá: arte e antiarte, p. 3.
107
Georges Ribemont-Dessaignes, Déja jadis, p. 81.
108
Piet Mondrian, «Neo-Plasticism: Its Realization in Music and in Future Theater», compilado por Harry
Holtzman e Martin S. James, The New Art – The New Life: The Collected Writings of Piet Mondrian, p.
160.

46
originalidade deveria ser entendida não como uma simples revolta contra a tradição ou
uma tentativa de dissolução do passado, mas, sim, como «uma origem literal, um
começo do grau zero, um nascimento».109 Marinetti, arremessando-se com seu carro
num fosso cheio de lama e emergindo deste como de um fluido amniótico, no início de
«Fundação e manifesto do futurismo»,110 é, do ponto de vista de Krauss, «uma parábola
da autocriação absoluta», que «funciona como um modelo para o que significa
originalidade nos primeiros anos da vanguarda do século XX»:

A originalidade torna-se uma metáfora organicista referindo-se não tanto à invenção formal
quanto a fontes de vida. O eu como origem está salvo da contaminação pela tradição porque
possui um tipo de ingenuidade originária. Daí o dito de Brancusi, «Quando não somos mais
crianças, já estamos mortos». Ou novamente, o eu como origem tem o potencial para atos
contínuos de regeneração, uma perpetuação do autonascimento. Daí o pronunciamento de
Malevitch, «Somente está vivo quem rejeita as convicções de ontem». O eu como origem é
o modo como uma distinção absoluta pode ser feita entre a experiência presente do novo e
um passado tradicional e carregado. As reivindicações da vanguarda são precisamente essas
reivindicações da originalidade.111

109
Falando da vanguarda, ainda na primeira metade do século passado, Massimo Bontempelli, artista e
crítico italiano citado por Poggioli, já havia chegado a uma formulação parecida a esta desenvolvida por
Krauss, ao afirmar que: «em suma, as vanguardas tiveram a função de criar aquela condição de
primitividade, ou melhor, de primordialidade, da qual depois nasce o criador que se encontra no princípio
da nova série» (citado por Renato Poggioli, Teoria dell’arte d’avanguardia, p. 85). Franco Rella, num
pequeno artigo sobre o dadaísmo, faz uma observação semelhante a de Krauss, ao dizer que «a
desestruturação dadá colheria um motivo originário, oculto sob as formas tradicionais da arte, para
restituí-lo à sua plenitude originária» («“Tzara! Tzara! Tzara!... Thustra”», compilado por Silvia Danesi,
Il dadaismo, p. 52). Ernst H. Gombrich não se encontra distante destas concepções ao afirmar que a
preferência pelo primitivo se manifesta no culto à regressão: «O que eles [os artistas do século XX]
visavam era deixar para trás as convenções que eles adquiriram na escola de arte e regressar à
espontaneidade despreocupada da recordação de seus dias de infância, ou ainda aos estados delirantes do
insano que pode manifestar extremos de regressão» (The Preference for the Primitive, p. 263).
110
Rosalind E. Krauss refere-se a esta passagem do «Fundação e manifesto do futurismo»:
«– Usciamo dalla saggezza come da un orribile guscio, e gettiamoci, come frutti pimentati
d’orgoglio, entro la bocca immensa e torta del vento!... Diamoci in pasto all’Ignoto, non già per
disperazione, ma soltanto per colmare i profondi pozzi dell’Assurdo! –
Avevo appena pronunciate queste parole, quando girai bruscamente su me stesso, con la stessa
ebrietà folle dei cani che voglion mordersi la coda, ed ecco ad un tratto venirmi incontro due ciclisti, che
mi diedero torto, titubando davanti a me come due ragionamenti, entrambi persuasivi e nondimeno
contradittorii. Il loro stupido dilemma discuteva sul mio terreno... Che noia! Auff!... Tagliai corto, e, pel
disgusto, mi scaraventai colle ruote all’aria in un fossato...
Oh! materno fossato, quasi pieno di un’acqua fangosa! Bel fossato d’officina! Io gustai
avidamente, la tua melma fortificante, che mi ricordò la santa mammella nera della mia nutrice
sudanese... Quando mi sollevai – cencio sozzo e puzzolente – di sotto la macchina capovolta, io mi sentii
attraversare il cuore, deliziosamente, dal ferro arroventato della gioia!» (reproduzido por Pontus Hulten,
Futurismo & futurismi, pp. 289-290).
111
Rosalind E. Krauss, «The Originality of Avant-Garde», The Originality of Avant-Garde and Other
Modernist Myths, p. 157.

47
Foi desta maneira que Malevitch qualificou seu quadrado como «um recém-nascido
vivo e majestoso»,112 e André Breton, no primeiro «Manifesto do surrealismo», de
1924, identificou o homem atual com um recém-nascido:

O homem, esse sonhador definitivo, cada dia mais descontente com seu destino, passa
penosamente em revista os objetos que foi levado a utilizar, objetos que lhe vieram ter às
mãos por obra de sua indolência ou de seu esforço, quase sempre de seu esforço, visto que
ele consentiu em trabalhar ou, quando menos, não lhe repugnou tentar a sorte (aquilo que
ele chama de sorte!). Seu quinhão atual é uma grande modéstia: ele sabe que mulheres
possui, em que aventuras ridículas se meteu; pouco se lhe dá de sua riqueza ou pobreza, no
que a elas diz respeito, ele é como um recém-nascido; e pelo que toca à aprovação de sua
consciência moral, estou pronto a admitir que ele a dispensa sem qualquer problema. Se
alguma lucidez lhe resta, a única coisa que ele pode fazer é voltar-se para a própria
infância, que, embora trucidada pelo zelo de seus domesticadores, nem por isso lhe parece
menos rica em sortilégios.113

Estes artistas acreditavam que, num campo pretensamente tornado virgem – «


Nous avons encore un champ vierge»114 –, poder-se-ia principiar do zero. A morte
sacrificial da arte era o caminho para o renascimento. «A arte adormece para o
nascimento do mundo novo», declarava Tzara.115 Na visão de Malevitch, seu quadrado
«não pode ser confundido com qualquer artista nem com qualquer época»: «Eu não
escuto mais meus pais e eu não me pareço mais com eles. Eu sou assim um degrau».116
A recusa em se parecer com os pais, tomados aqui como uma metáfora para a herança
tradicional e cultural, é repetida em mais de um texto do artista. No manifesto «Nós
queremos...», ele retornou à questão já tratada anteriormente na carta a Benois:

Não queremos parecer nossos pais e, se essa semelhança subsistir entre um de nós,
arrancaremos de nossos rostos tudo o que pareça com eles; que os rostos dos jovens sejam
mil vezes mais belos e majestosos, nos recusamos a instalar nosso sentimento novo em seus
palácios, a vestir suas togas e suas túnicas; construiremos qualquer coisa de novo,
criaremos assim nossa própria face, nós não a faremos à imagem da dos nossos pais, mas à
nossa própria imagem, porque seremos ainda jovens. Não seremos os porta-vozes das artes
da Grécia, de Roma e de alhures, não seremos os enfermeiros das lojas de antigüidades.117

O que o artista almejava – pelo menos, proclamava isso em seus escritos – era alcançar
um grau zero: «Eu me metamorfoseei no zero das formas e eu me retirei do turbilhão de

112
Kasimir Malevitch, «Du cubisme et du futurisme au suprématisme: le nouveau réalisme pictural»,
Écrits, p. 198.
113
André Breton, «Manifesto surrealista», Manifestos do surrealismo, p 15. Grifos meus.
114
Georges Ribemont-Dessaignes, «Ce Qu’il ne faut pas dire sur l’art», op. cit., p. 30.
115
Tristan Tzara, «Proclamação sem pretensão», op. cit., p. 21.
116
Kasimir Malevitch em carta a Alexandre Benois, Ëcrits, p. 163.
117
Kasimir Malevitch, «Nous voulons...», op. cit., p. 262.

48
lixos da Arte acadêmica».118 Ao atingir este grau zero, poder-se-ia iniciar uma nova
fase. Em Aspectos do mito, Mircea Eliade já notava a respeito dos artistas desta época:
«a sua atitude assemelha-se à dos “primitivos”: eles contribuíram para a destruição do
Mundo – quer dizer, para a destruição do Mundo deles, do Universo artístico deles – a
fim de criarem um outro».119 Umberto Boccioni, em «Fundamento plástico da pintura e
escultura futurista», indicava que esta nova fase da arte poderia se espelhar no exemplo
dos primitivos:

Per quello che riguarda la nostra azione per un rinnovamento della coscienza plastica in
Italia, il compito che ci siamo prefisso è quello di distruggere quattro secoli di tradizione
italiana che hanno assopito ogni ricerca e ogni audacia, lasciandoci indietro sul progresso
pittorico europeo. Vogliamo immettere nel vuoto che ne risulta tutti i germi di potenza che
sono negli esempi dei primitivi, dei barbari d’ogni paese e nei rudimenti di nuovissima
sensibilità che appaiono in tutte le manifestazioni antiartistiche della nostra epoca.120

Não por acaso, os futuristas italianos se autodesignavam os primitivos deste novo


começo da arte:

Noi iniziamo una nuova epoca della pittura. Noi siamo ormai sicuri di realizzare concezioni
della più alta importanza e della più assoluta originalità. Altri ci seguiranno, che con
altrettanta audacia e altrettanto accanimento conquisteranno le cime da noi soltanto
intraviste. Ecco perchè ci siamo proclamati i primitivi di una sensibilità completamente
rinnovata.121

E foi precisamente num pretenso «primitivismo» – um tipo de «primitivismo»


que poderia derivar dos universos das crianças, dos povos ditos «selvagens» ou dos
loucos – que boa parte dos artistas dos movimentos artísticos do início do século XX se
apoiaram para atingir o grau zero.122 Não foi à toa que Tzara apresentou traduções de

118
Kasimir Malevitch, «Du cubisme et du futurisme au suprématisme: le nouveau réalisme pictural», op.
cit., p. 179.
119
Mircea Eliade, Aspects du mythe, pp. 96-97
120
Umberto Boccioni, «Fondamento plastico della pittura e scultura futuriste», Pittura e scultura
futuriste, p. 79.
121
Umberto Boccioni, Carlo Carrà, Luigi Russolo, Giacomo Balla e Gino Severini, em «Prefazione al
Catalogo delle Esposizioni di Parigi, Londra, Berlino, Bruxelles, Monaco, Amburgo, Vienna, ecc.», de
1912, reproduzido no CD-Rom I manifesti futuristi. Dois anos antes, em «La pittura futurista – manifesto
tecnico», os mesmos artistas já se autodenominavam primitivos: «Voi ci credete pazzi. Noi siamo invece i
Primitivi di una nuova sensibilità completamente trasformata» (Idem).
122
Apesar de os termos «primitivo» e «primitivismo» pecarem por sua imprecisão, adoto-os aqui,
devidamente grafados entre aspas, por não encontrar melhores termos que os substituam. Por «primitivo»,
compreendo, como já ressaltei acima, o universo tanto dos povos ditos «primitivos», como das crianças e
dos loucos. «Primitivismo», por sua vez, o entendo em concordância com William Rubin, como um
aspecto da arte moderna. Justifica Rubin: « No curso dos dois decênios anteriores, certos autores
contestaram as palavras primitivo e primitivismo, julgadas etnocêntricas e pejorativas. Mas nenhum dos
termos genéricos propostos para substituir “primitivo” recebeu aprovação, e não houve nada proposto

49
poemas negros nas revistas Dada,123 e que os dadaístas alemães afirmavam no
manifesto «Dada na Europa», publicado originalmente no número 3 da revista Der
Dada, em 1920: «DADA foi uma profissão de fé no primitivismo incondicionado».124
Até mesmo em seus gestos, como pudemos ver anteriormente, os artistas pareciam
querer forjar uma espécie de «primitividade».
É possível observar a manifestação de uma «primitividade» tanto nos meios e
nos modos de encenação das manifestações, quanto nas formas de representação – como
naqueles trabalhos que lembram os desenhos infantis ou as máscaras e as estátuas tribais
–, como também no próprio modo de constituição tanto de seus discursos – expressos
nos manifestos e nas declarações – quanto de suas obras, como veremos nos capítulos
seguintes. Nos manifestos do movimento dadaísta e do futurismo italiano, por exemplo,
vemos claramente uma tentativa de mimetizar o que os artistas consideravam
«primitivo»: o vocabulário se simplifica, a voz se torna coletiva, abundam repetições e
contradições internas. Os poemas sonoros de Ball, a sonata de sons primordiais de
Schwitters e as palavras em liberdade de Marinetti podem ser citados como exemplos
mais evidentes desta «primitivização». As palavras são feitas de sílabas escolhidas ao
acaso e que, juntas, não produzem um sentido lógico. Os quadros de Klee e de Miró, por
outro lado, nos fazem lembrar as representações feitas por crianças. Numa outra
vertente, a «primitividade» extrema leva à simplificação total da forma, resultando na
arte abstrata (e Robert Goldwater, o pioneiro nos estudos do «primitivismo» da arte
moderna, inclui até mesmo o suprematismo e o neoplasticismo entre estas formas125).
Nas manifestações artísticas e nas ações que engendram um determinado trabalho –
como estudaremos mais adiante nos casos de Schwitters e Duchamp –, também se pode
reconhecer um certo comportamento «primitivo». Melzer, comentando a caracterização

para o lugar de “primitivismo”. A palavra derivada primitivismo é certamente etnocêntrica, e é bem


lógico, porque não remete às artes tribais em si, mas ao interesse e à reação que elas suscitaram entre os
ocidentais. O primitivismo é portanto um aspecto da história da arte moderna e não da arte tribal» («Le
Primitivisme moderne: une introduction», Le Primitivisme dans l’art du 20e siècle, p. 5). Quase cinqüenta
anos antes de Rubin, Robert Goldwater já havia esclarecido que dava ao termo «primitivismo» o mesmo
tratamento que legava a «romantismo»: compreendia ambos como «uma atitude produtiva da arte»
(Primitivism in Modern Art, p. xxiv).
123
Em Dada, 1 (jul. 1917), Tzara traz a público «Chanson du Cacadou», a qual, segundo ele, era oriunda
da tribo Aranda (p. 9). Em Dada, 2 (dec. 1917), publica 2 Poèmes nègres, os quais diz pertencerem à
tribo loritja (pp. 15-17).
124
Este manifesto foi assinado por George Grosz, Heartfield, Richard Huelsenbeck, Raoul Haussmann,
Bloomfeld, Francis Picabia, Guttmann, Hans Arp, Tristan Tzara, Walter Serner, Kurt Schwitters, Max
Ernst, Kobbe, Herzfield, Archipenko, Giorgio De Chirico, Hustaedt, Noldan e Piscator.
125
Ver Robert Goldwater, Primitivism in Modern Art, pp. 164-175.

50
dos artistas em suas manifestações, observa que os figurinos evocavam «o sentimento
de uma peça de escola, de uma festa de máscaras ou de uma festa de aniversário: algo
de infantil, de amador e de precipitado eram colocados juntos».126 Para Melzer, esta
atração pelo universo infantil está conectada às manifestações artísticas em muitos
sentidos:

A algaravia e a cacofonia fonéticas de som natural que o performer dadá revelou são tão
sugestivas de um movimento rumo à infância como o nome «dadá» em si. Ball escreveu
que a finalidade do dadaísta era «exceder-se em ingenuidade e infantilidade», e ele
descreveu em termos nem um tanto incertos sua atração constante pela infância: «infância
como um novo mundo, e tudo infantil e fantástico, tudo infantil e direto, tudo infantil e
simbólico em oposição às senilidades do mundo dos adultos».127

Talvez valha a pena recordar aqui que o fascínio pelo universo «primitivo» já
era corrente na arte moderna desde o final do século XIX, quando, coincidentemente ou
não, começavam a ser fundados os museus etnológicos na Europa.128 Paul Gauguin
talvez tenha sido o primeiro artista moderno a se interessar profundamente pelo
«primitivo», chegando até mesmo a viver entre os «selvagens» do Taiti. Como se sabe,
o artista francês esforçou-se para absorver o mais que pudesse daquela cultura tão
diversa da sua. Não só levou para suas pinturas e esculturas os personagens, as formas e
as cores de uma «primitividade» encontrada na colônia francesa, como aprendeu a
língua e traduziu os mitos locais para o francês.129 No entanto, por mais que desejasse
tornar-se um «bárbaro» – termo empregado pelo próprio Gauguin em suas cartas, para
se referir aos maoris –, sempre esteve longe de lográ-lo. Como se pode observar em
seus quadros e esculturas, é ainda um olhar que – talvez mesmo não querendo – mantém
uma distância daquela espécie de «paraíso terrestre». Goldwater repara que, nos escritos
de Gauguin, nos quais se percebe um tom de revolta contra o mundo «civilizado», é
impossível para o artista descrever o seu cotidiano no Taiti sem se referir à sua vida

126
Annabelle Melzer, op. cit., p. 64.
127
Idem, p. 64.
128
Robert Goldwater dedica ao tema da criação e do desenvolvimento dos museus etnológicos na Europa
o primeiro capítulo, intitulado «Primitive Art in Europe: The Accessibility of the Material, The
Development of Ethnological Museums», de seu Primitivism in Modern Art. William Rubin, na
introdução ao volume Le Primitivisme dans l’art du 20e siècle, lembra que as exposições universais de
Paris, de 1889 e 1900, ofereciam informações didáticas sobre a cultura tribal e apresentavam
reconstituições de tribos inteiras. Afora isso, ainda se podiam ver diversas esculturas africanas e da
Oceania nas lojas francesas de curiosidades (Op. cit., p. 11).
129
Estas traduções foram publicadas com o título Ancien culte mahorie.

51
burguesa em Paris. Será sempre a partir deste ponto de vista europeu que ele
representará os «selvagens».

Não obstante, é esta civilização que determina seu padrão de julgamento e à qual todos os
outros modos de existência devem ser submetidos (...). Tal comparação contínua significa
que Gauguin era dependente de Paris para além de seu simples sustento e por mais que
tentasse assimilar o modo de vida nativo, o centro de sua atenção era ainda o mundo
artístico de Paris.130

O tratamento dado por Gauguin a este mundo «primitivo» guardava um


resquício de uma certa idealização romântica, daquela idealização calcada na concepção
do bon sauvage, de Rousseau. Como bem observa William Rubin, na introdução do
volume monumental que organizou sobre o «primitivismo» na arte moderna, esta
«atitude positiva» frente ao universo dos povos ditos «primitivos» «tende a idealizar a
vida primitiva, em construir em torno dele [de Gauguin] uma imagem de paraíso
terrestre inspirada sobretudo por uma visão idílica da Polinésia e, em particular, do
Taiti».131 Nesta idealização de um mundo primordial, Rubin detecta uma recusa do
artista à sua própria sociedade, isto é, à «civilizada» sociedade européia:

Se demarcarmos esta atitude na literatura a partir de sua origem no ensaio de Montaigne


«Des cannibales», veremos que, depois da estréia, os escritores utilizam o primitivo antes
de tudo como um pretexto para criticar sua própria sociedade, acusada de transformar o
espírito forçosamente admirável da humanidade que, segundo eles, restou intacta nos
paraísos insulares.132

É o repúdio em ser parte de uma civilização cada vez mais racionalista e em franco
desenvolvimento técnico e tecnológico que faz com que Gauguin se identifique com o
«selvagem», como no final de sua vida, nesta carta endereçada a Charles Morice:
«Décidément le sauvage est meilleur que nous. Tu t’es trompé un jour en disant que
j’avais tort de dire que je suis un sauvage. Cela est cependant vrai: je suis un
sauvage».133 Segundo Goldwater, o «primitivismo» de Gauguin mantém algo do «luxe

130
Robert Goldwater, op. cit., p. 65.
131
William Rubin, Le Primitivisme dans l’art du 20e siècle, p. 6.
132
William Rubin, op. cit., p. 6.
133
Carta datada de abril de 1903, reproduzido por Maurice Malingue, Lettres de Gauguin à sa femme et a
ses amis, pp. 318-319. Em carta de 5 de fevereiro de 1895 (quando o artista estava de passagem por
Paris), a August Strindberg, Gauguin recorda o dia em que o dramaturgo visitava seu ateliê e olhava
atentamente suas pinturas realizadas no Taiti: «J’eus comme le pressentiment d’une révolte: tout un choc
entre votre civilisation et ma barbarie. Civilisation dont vous souffrez. Barbarie qui est pour moi un
rajeunissement» (Op. cit., pp. 262-263).

52
barbare»,134 remanescente daquela visão ainda corrente no século XIX do «primitivo»
como o exótico e o natural.135
Percebe-se que algo deste idealismo romântico subsiste nas representações
primitivistas tanto do expressionismo alemão quanto do fauvismo. Há nelas ainda
esperança de que um mundo «primitivo», visto como um mundo mais próximo da
natureza, sirva como um contraponto à «civilização». Na opinião de Rubin, estes dois
movimentos seriam «mais uma síntese das idéias do fim do século XIX do que uma
ruptura radical».136 São os cubistas que empreendem uma mudança no modo de
perceber o «primitivo». Com eles, «as obras refletem a atenção dada aos aspectos
expressivos e plásticos dos objetos tribais particulares», e assim, continua Rubin, «o
primitivismo entrou na sua fase do século XX».137 Gombrich, por sua vez, diagnostica
na pintura do século XX «uma reação contra a arte meretriz de sucesso virtuoso»:
«tendemos a mobilizar nossas defesas contra o que é obviamente sedutivo».138 Seguindo
na trilha aberta por Rubin e Gombrich, poderíamos dizer que, com o cubismo e, em
especial com Picasso, o sentimento frente ao «primitivo» se altera: as formas que,
anteriormente, davam a idéia de um mundo equilibrado e pacífico, agora transmitem
estranheza e agressividade. Parece-me sintomático que, ao ver Les demoiselles
d’Avignon, André Derain, artista que incentivou o companheiro espanhol a visitar os
museus antropológicos, mas que possuía uma visão diversa desta arte, tenha dito que

134
Robert Goldwater, op. cit., p. 68.
135
Rubin concordaria com Goldwater ao afirmar que: «não é impossível de ver nas evocações visuais de
seu “paraíso insular” que nos deixou Gauguin um exemplo de vida tão desesperadamente calcado na
literatura, na verdade uma reconstituição artificial do “mito do primitivo”» («Le Primitivisme moderne:
une introduction», Le Primitivisme dans l’art du 20e siècle, p. 6). Esta visão correspondia às pesquisas
antropológicas de então. Ao fazer uma revisão dos métodos e das abordagens da antropologia, Frédéric
Rognon comenta que, por muito tempo, se conservou o que chama de «o mito primitivo»: costumava-se
investir o «selvagem» das «angústias mais profundas e das utopias mais loucas do Ocidente moderno»
(Os primitivos, nossos contemporâneos, p. 12). A antropologia, isto é, o voltar-se para o «radicalmente
outro», servia como uma medida de escape da sociedade «civilizada». Dizia Margaret Mead: «Quando
não se está satisfeito consigo próprio, torna-se psicólogo. Quando não se está satisfeito com a própria
sociedade, torna-se sociólogo; e quando não se está satisfeito nem consigo nem com a sociedade, torna-se
antropólogo» (citado por Rognon, Os primitivos, nossos contemporâneos, pp. 97-98). Rognon lembra
também que, quando foi lançado Coming of Age in Samoa, de Mead, o livro logo se transformou num
best-seller em função da visão idílica que a cultura samoana oferecia: «Os leitores americanos em busca
de exotismo nela encontravam, preto no branco, o pequeno paraíso terrestre que apenas imaginavam até
então: uma sociedade harmoniosa que não conhecia os males e os conflitos do mundo moderno;
sociedade sem pobreza nem criminalidade, em que as crianças se tornavam adultos sem passar pelo que
se convencionou chamar a “crise da adolescência”; e, sobretudo, sociedade permissiva, de promiscuidade
sexual e de amor livre» (Op. cit., p. 145).
136
William Rubin, op. cit., p. 7.
137
Idem, p. 7.
138
Ernst H. Gombrich, The Preference for the Primitive, p. 203.

53
um dia encontrariam Picasso enforcado atrás de seu quadro, «tal era o desespero que a
pintura representava».139 Não era à toa que Picasso compreendia a gênese de Les
demoiselles d’Avignon como uma forma de exorcizar a sensação de terror e repulsa
sentida no primeiro contato com a chamada «arte negra»:

Quando eu fui ao velho Trocadéro, foi repugnante. O Mercado de Pulgas. O


cheiro. Eu estava sozinho. Eu queria ir embora. Mas eu não saí. Eu fiquei. Eu fiquei. Eu
entendi que aquilo era muito importante: alguma coisa estava acontecendo comigo, certo?
As máscaras não eram como quaisquer outras peças de escultura. Não mesmo.
Elas eram coisas mágicas. Mas por que não as eram as peças egípcias ou as caldéias? Nós
não tínhamos compreendido isso. Estas eram primitivas, não mágicas. As peças negras
eram intercesseurs, mediadoras; desde lá então conheci a palavra em francês. Elas eram
contra tudo – contra o desconhecido, contra espíritos ameaçadores. Eu sempre olhei para os
fetiches. Eu entendi; eu também era contra tudo. Eu também acreditava que tudo é
desconhecido, que tudo é um inimigo! Tudo! Não os detalhes – mulheres, crianças, bebês,
tabaco, diversão –, mas tudo isso! Eu entendi para que os negros usam suas esculturas. Por
que esculpir desta forma e não de outra maneira? Afinal, eles não eram cubistas! Até
porque o cubismo não existia. Está claro que alguns indivíduos inventaram os modelos e
outros os imitaram, certo? Não é isto que nós chamamos tradição? Mas todos os fetiches
foram usados para a mesma coisa. Eles eram armas. Para ajudar as pessoas a impedir que
ficassem sob a influência de espíritos de novo, para ajudá-las a se tornarem independentes.
Eles eram ferramentas. Se damos forma aos espíritos, nos tornamos independentes.
Espíritos, o inconsciente (as pessoas ainda não estavam falando muito dele), emoção – tudo
a mesma coisa. Eu entendi por que era um pintor. Completamente sozinho naquele estranho
museu, com máscaras, bonecas feitas por peles-vermelhas, manequins empoeirados. Les
demoiselles d’Avignon deve ter vindo a mim naquele mesmo dia, mas não tanto por causa
das formas, mas porque esta foi a minha primeira pintura-exorcismo – sim,
absolutamente!140

Ressalte-se que, em sua declaração, Picasso estabelece uma relação entre a matéria
«primitiva» e o exorcismo. Não é mais a busca por uma pureza primordial ou por um
mundo idílico que guia o artista em direção a alguma forma de «primitivismo». Parece
se tratar de uma tentativa, nem um tanto pacífica ou pacificadora, de colocar os
demônios para fora, de expulsar um incômodo. Para John Richardson, Picasso exorciza,
naquele quadro, os «conceitos tradicionais de beleza ideal».141 O encontro com os
objetos «primitivos», (até então) estranhos à cultura européia, é revelador para Picasso.
Ele percebe nas máscaras e nas esculturas negras uma forma alternativa de fazer frente à
realidade e de se contrapor à arte do passado. Ele sente emanar destas peças do Museu

139
André Derain teria feito esta declaração ao marchand Daniel-Henry Kahnweiler, segundo relata este
último em Minhas galerias e meus pintores, p. 44.
140
Depoimento de Picasso reproduzido por André Malraux, Picasso’s Mask, pp. 10-11. No capítulo
«Além do exotismo: Picasso e Warburg», de Relações de força, Carlo Ginzburg observa que «foi a
própria dimensão mágica que sensibilizou Picasso no momento em que se encontrou diante das máscaras
africanas do Museu do Trocadéro» (Op. cit., p. 133).
141
John Richardson, A life of Picasso: 1907-1917: The Painter of Modern Life, p. 32.

54
do Trocadéro uma força agressiva que não se encontrava na arte dita «civilizada». Ele
vê nos objetos sempre uma oposição a algo; na verdade, uma oposição a tudo. E é com
esta oposição que Picasso se identifica, e é por meio dela que ele entende seu papel
como pintor.142 A busca por uma «primitividade» passa então a se associar a alguma
forma de reação negativa.
Talvez se possa encontrar um impulso similar em direção a um exorcismo no
fundamento daquele tipo de «primitividade» encontrada nas manifestações e nas
produções dos artistas das primeiras décadas do século XX. Vimos como, nas
manifestações, a tentativa de destruição do velho e de reconstrução do novo se exprimia
como uma oposição a tudo, uma oposição que poderia ser vista como contrária não só
àquela forma de arte que os artistas conheciam até então, mas também como uma
revolta contra a própria sociedade (contra a qual, lembremos, eles também se opunham,
metonimicamente, ao dirigirem suas provocações ao público). Em seu diário, Ball
comenta que as máscaras de Janco tornavam visível «o horror do nosso tempo, o pano
de fundo paralisante dos acontecimentos».143 O que mais o atraía nestas máscaras era o
fato de elas representarem «não caráteres e paixões humanas, mas caráteres e paixões
que são maiores que a vida».144 A partir de Picasso, o «primitivismo» parece não ser
mais símbolo de esperança num mundo primordial, mas de desespero. E é justamente
este sentimento de desespero – e recordemos que desesperar significa anular a
esperança – que parece fazer com que os artistas desta geração se movam em direção a
um «primitivo» ou primordial. A irracionalidade achada neste outro mundo poderia
servir para afrontar a irracionalidade de um mundo que se encaminhava e, depois,
entrava numa guerra mundial.145 Uma certa «primitividade» que, por vezes, como

142
William Rubin faz notar que Picasso e os cubistas não mudaram sua orientação artística em função da
descoberta das máscaras e esculturas africanas, mas a descoberta desta nova forma de arte primitiva veio
ao encontro das pesquisas que já estavam em curso: «Está fora de dúvida que a arte tribal exerceu uma
influência notável sobre Picasso e em bom número de seus confrades. Mas é também verdadeiro que esta
arte não provocou uma mudança fundamental na orientação seguida pela arte moderna. (...) A exemplo
das estampas japonesas que fascinaram Manet e Degas, os objetos primitivos contribuíram menos a
reorientar a história da pintura que a reforçar e confirmar uma evolução já em curso» (op. cit., p. 17).
143
Hugo Ball, op. cit., p. 65.
144
Idem, pp. 64-65.
145
No entanto, não podemos confundir uma tentativa de forjar uma primitividade ou ações e produções
irracionais com uma primitividade efetiva. Seria ingênuo tomar as palavras e as atitudes dos artistas à
letra: suas manifestações e seus manifestos podem revelar um caráter aspirante ao primitivo, mas jamais
de fato primitivos. Gombrich chama a atenção para isto ao afirmar que «quanto mais você prefere o
primitivo, menos você pode se tornar primitivo»: «Paul Klee (...) realmente fez valer sua intenção de
aprender com a arte das crianças, sem nunca tornar-se infantil» (Op. cit., p. 297). Se atentarmos não tanto

55
veremos mais detalhadamente adiante, se revelava na própria obra ou num conjunto de
obras, cujos processos constitutivos se conformam ao modo de estruturação dos mitos e
dos ritos, parecia servir como um modo de dar sentido ao que parecia não ter sentido. T.
S. Eliot, ao comentar o romance Ulisses, de James Joyce, já observava:

Ao usar o mito, ao manipular um contínuo paralelo entre contemporaneidade e


antigüidade, o Sr. Joyce está perseguindo um método que outros devem perseguir depois
dele. (...) É simplesmente um modo de controlar, de ordenar, de dar uma forma e uma
significação ao imenso panorama de futilidade e anarquia que é a história contemporânea.
Em vez de um método narrativo, nós podemos agora usar o método mítico.146

Acredito que seja possível verificar no processo mesmo de criação e elaboração


de certos trabalhos uma certa «primitividade». Para observarmos tais casos, proponho
que voltemos nossa atenção agora a exemplos particulares. Creio provável vislumbrar
dois processos diversos de criação e elaboração de certos trabalhos artísticos, derivados
de um mesmo ímpeto, que poderiam ser separados em duas dimensões, as quais sugiro
que designemos como dimensão mítica e dimensão ritual. À primeira, acham-se
associados os trabalhos de Mondrian e de Malevitch; à segunda, aqueles de Schwitters e
Duchamp.

c. Mito e rito
Antes de passarmos às dimensões mítica e ritual, nas partes subseqüentes deste
estudo, proponho esclarecer o que entendo por mito e rito e como pretendo trabalhá-los
neste estudo. Northrop Frye, no início de seu Mito e metáfora, já chamava a atenção
para a necessidade de uma tomada de posição imediata sobre o mito: «a palavra mito é
usada numa variedade tão atordoante de contextos que qualquer um que falar sobre isso
tem que dizer antes de tudo qual o seu contexto escolhido».147 Neste livro, lanço mão do
mito e do rito como parâmetros críticos a fim de tentar compreender o processo

para as manifestações, mas especialmente para os trabalhos dos artistas, pode-se reparar que aquilo que há
de irracional e de ilógico neles se constrói por meio de uma extrema racionalização. Ao falar das formas
de «primitivismo» do Dadá e do Surrealismo, Goldwater nota que «ao invés de ignorar a arte que eles
querem destruir, eles referem-se a ela através de surpreendentes justaposições de forma ou conteúdo e, em
conseqüência, suas criações são de uma sofisticação extrema e têm um mínimo de integridade e
simplicidade» (Op. cit., p. 219).
146
T. S. Eliot, «Myth and Literature Classicism», compilado por Richard Ellmann e Charles Feidelson Jr.,
The Modern Tradition, p. 681.
147
Northrop Frye, «The Koine of Myth: Myth as a Universally Intelligible Language», Myth and
Metaphor, p. 3.

56
constitutivo que subjaz tanto a uma série de obras (Mondrian e Malevitch) quanto a
certos trabalhos particulares (Schwitters e Duchamp). Utilizo estas noções porque, como
já comentei na Introdução, acredito que seja possível observar uma constância na
relação entre arte, mito e rito, mesmo quando esta não se acha explícita e, também,
porque creio que, a partir de uma aproximação da arte ao mito e ao rito, certos aspectos
ainda obscurecidos na elaboração e realização das obras podem ser mais facilmente
esclarecidos. Não entenderei o mito como uma matriz narrativa, mas como uma forma,
ou mais especificamente, tomando emprestada uma expressão de Wladimir Krysinski,
como um «princípio intelectivo».148 Porém, isto que se apresenta para o crítico como
princípio intelectivo parece existir antes para o artista, conscientemente ou não, como
uma espécie de secreto princípio formal (ou formalizador) dos processos constitutivos
da obra de arte. Gianni Carchia, num artigo sobre a persistência do mito na
modernidade, apreendeu muito bem esta passagem da mitologia como repertório
figurativo, isto é, como motivo a ser representado, para a noção de mito como forma:

Paralelamente ao reconhecimento do mito como profundidade do pensamento, precisaria ao


contrário reconhecer no mito, do ponto de vista da arte, não mais uma arquetipicidade a
reproduzir, uma forma de qualquer modo já dada, mas, sim, a vida mesma da forma, a sua
energia, o trajeto que a põe no ser.149

Paul Ricoeur, nesta mesma trilha, foi muito preciso ao flagrar a emergência, na
modernidade, do «mito como mito»:

precisamente por que nós vivemos e pensamos depois da separação do mito e da história, a
demitização de nossa história pode se tornar o inverso de uma compreensão do mito como
mito e a conquista, pela primeira vez na história da cultura, da dimensão mítica.150

Conforme Ricoeur, o que se perdeu do mito no processo crescente de racionalismo e


iluminismo foi o seu pseudo-saber, o seu falso logos, aquilo que vemos expresso em seu
caráter etiológico, tal qual descrito, por exemplo, por Eliade.151 Contudo, completa

148
Wladimir Krysinski, «I miti “di” avanguardia e i miti “nell’”avanguardia», compilado por F. Bartoli,
R. Dalmonte e C. Donati, Visioni e archetipi: il mito nell’arte sperimentale e di avanguardia del primo
novecento, p. 16.
149
Gianni Carchia, «Il senso delle parole», Aut Aut, 243-244 (mag.-ago. 1991), p. 8.
150
Paul Ricoeur, «La fonction symbolique des mythes», Finitude et culpabilité II: la symbolique du mal,
p. 154.
151
Segundo Eliade, os mitos servem para explicar não só os fenômenos do mundo como também o
próprio homem. Por serem histórias significativas e exemplares, além de fornecerem uma significação ao
mundo e à existência, assentam padrões de comportamento e fixam modelos para todos os ritos e para
todas as atividades humanas. Nisto reside a importância das narrativas míticas: elas mostram ao homem o

57
Ricoeur, «perder o mito como logos imediato é reencontrá-lo como mito». Assim, «pelo
subterfúgio da exegese e da compreensão filosófica, o mythos pode suscitar uma nova
peripécia do logos».152
Não tenho a intenção aqui de passar em revista as mais diferentes acepções que a
palavra mito recebeu e ainda recebe.153 Porém, acredito ser importante observar que
suas diferentes acepções, mesmo possuindo abordagens ora negativas ora positivas,
acabam por se erigir sobre uma base comum: o mito parece ser sempre compreendido
como uma forma de tentar apreender a realidade exterior, não importando se esta forma
se reveste de um caráter mentiroso, de uma verdade absoluta ou de algo extraordinário.
Portanto, essa forma mítica de que falo, ou este mito como forma, se manifesta, em
primeiro lugar, como uma tentativa, muito peculiar, de compreender e abarcar a
natureza. Conforme Claude Lévi-Strauss, o mito «dá ao homem a ilusão, extremamente
importante, de que ele pode entender o universo e de que ele entende, de fato, o
universo».154 Assim, nas palavras de Gusdorf, «o mito tem por função tornar a vida
possível».155
Carlo Ginzburg nos ajuda a ir um pouco adiante. Depois de fazer um longo
percurso que vai do entedimento de mito por Platão e Aristóteles até seu correlato fictio
na tradução latina, conclui que, no fim das contas, estes termos – mito e fictio – podem
ser interpretados para além de simples formas em que se conjugam verdade e mentira.
Para ele, «a elaboração de conceitos como mythos, fictio, signum é tão-somente um
aspecto da tentativa de manipular a realidade de maneira cada vez mais eficaz».156 Deste
modo, se aceitarmos a proposição de Ginzburg, podemos dizer que o mito se constitui
não apenas como uma tentativa de apreender a realidade, mas também de reelaborá-la,
com o intuito de dominá-la e de manipulá-la, a partir de um desejo de sistematização do
real frente a um mundo aparentemente em desordem – um anseio que me parece ser da
mesma espécie daquele que levou os artistas a recorrerem a alguma forma de
primitividade (e Besançon acredita que, quando o primitivismo se junta ao esoterismo,

que o levou a ser como é: um ente mortal, sexual, organizado em sociedade, obrigado a trabalhar para
viver e trabalhando de acordo com determinadas regras (ver Aspects du mythe, pp. 16-17; O sagrado e o
profano, p. 87; O mito do eterno retorno, pp. 103-104).
152
Paul Ricoeur, op. cit., p. 154.
153
Roberto Calasso faz um breve, mas preciso, levantamento das diferentes acepções com que a palavra
mito chegou até nós (ver «Terror das fábulas», Os 49 degraus, p. 180).
154
Claude Lévi-Strauss, Mito e significado, p. 32.
155
Georges Gusdorf, Mythe et métaphysique, p. 19.
156
Carlo Ginzburg, «Mito: distância e mentira», Olhos de madeira, p. 57.

58
resulta na abstração de Malevitch e de Kandinsky, as quais decorrem de uma
necessidade do religioso157). Explica Gusdorf:

De fato, desde as origens humanas, a harmonia foi já rompida. O ato de


nascimento da humanidade corresponde a uma ruptura com o horizonte imediato. O homem
jamais conheceu a inocência de uma vida sem fratura. Há um pecado original da existência.
O mito guardará sempre o sentido de uma visada à integridade perdida, e como de
uma intenção restitutiva.158

Assim, «o mito se afirma como uma conduta de retorno à ordem»: «Ele intervém como
um protótipo de equilíbrio do universo, como um formulário de reintegração».159 E, ao
se apresentar como um elemento sistematizador, o mito proporciona ao homem a ilusão
de estar protegido e de ter encontrado seu lugar no mundo.
No entanto, a tentativa de compreender e ordenar a realidade típica do mito não
se dá de modo similar à da ciência ou ao do pensamento teórico, os quais também
derivam de um mesmo ímpeto sistematizador. Enquanto a ciência ou o pensamento
teórico procuram «libertar os conteúdos dados ao nível sensível ou intuitivo do
isolamento em que se nos apresentam imediatamente»,160 associando-os a outros
conteúdos, comparando-os entre si e concatenando-os numa ordem definida e num
contexto abrangente, o mito ou pensamento mítico busca a totalidade sem efetuar uma
separação de uma representação global em seus elementos individuais.161 Assim, o mito
resulta, ao contrário da ciência, numa totalidade indivisa (o Quadrado negro de
Malevitch impõe-se, dentre as produções artísticas modernas sobre as quais me detenho
na segunda parte deste estudo, como o exemplo máximo dessa abordagem). Ao tentar
apreender e reelaborar a realidade, o mito funda uma outra realidade, uma realidade
alternativa àquela que chamamos de real. E estas formas alternativas de conhecimento
que pretendem ser os mitos se instituem de modo bastante particular, fundamentadas em
determinados elementos que poderíamos resumir numa tendência à auto-
referencialidade e à repetição e numa busca por uma espécie de transcendência.
Schelling talvez tenha sido o primeiro a chamar a atenção para a auto-
referencialidade dos mitos. Para ele, a característica semântica do mito se acha no
pensamento tautegórico, aquele pensamento que não reenvia a outra coisa que a ele
157
Ver Alain Besançon, A imagem proibida, p. 498.
158
Georges Gusdorf, op. cit., p. 12.
159
Idem, p. 12.
160
Ernst Cassirer, Linguagem e mito, p. 52.
161
Ver Filosofia de las formas simbólicas II: el pensamiento mítico, p. 72.

59
mesmo: «A mitologia não é alegórica: ela é tautegórica. Para ela, os deuses são seres
que existem realmente, que não são uma outra coisa, que não significam outra coisa,
mas que significam somente aquilo que eles são».162 O pensamento tautegórico não
busca fora de si uma explicação para os fenômenos porque ele contém em si mesmo seu
começo e seu fim, sua pergunta e sua resposta. Assim, «a mitologia nasce de uma vez só
tal como ela é e não com outro sentido que aquele que ela exprime».163 Numa tentativa
de diferenciar o mito de outras formas de tradição oral, como a saga, o conto, a legenda,
André Jolles chega a conclusão semelhante quando observa que o mito se dá a conhecer
a partir de si mesmo, que ele se auto-significa, por conter, simultaneamente, sua dúvida
e sua elucidação:

O homem quer compreender o universo, quer entendê-lo como um todo, mas também em
seus pormenores, como a Lua ou o Sol. O que não significa que observe o universo com
timidez e vacilação; o que não quer dizer que deseje enveredar por uma investigação
tateante e conhecê-lo a partir de si mesmo; significa, outrossim, que o homem está diante
do universo e que o interroga. (...) O homem pede ao universo e aos seus fenômenos que se
lhe tornem conhecidos; recebe então uma resposta, recebe-a como responso, isto é, em
palavras que vêm ao encontro das suas. O universo e seus fenômenos fazem-se conhecer.
Quando o universo se cria assim para o homem, por pergunta e resposta, tem lugar a Forma
a que chamamos Mito.164

Não distante desta lógica, Ernst Cassirer – cuja teoria parte, em certa medida, de um
reexame da filosofia da mitologia de Schelling – entende o mito (assim como a arte e a
própria linguagem) como um «protofenômeno do espírito», que traz em si sua verdade e
significação.165 Para ele, os mitos podem ser compreendidos como uma forma
simbólica, «não no sentido de que designam na forma de imagem, na alegoria
indicadora e explicadora, um real existente, mas, sim, no sentido de que cada uma delas
gera e partilha seu próprio mundo significativo».166 É em função disso, dessa constante
referência a si mesmo, que «o mito se converte num mistério»:

sua autêntica significação e profundidade não residem no que manifesta em suas próprias
figuras, mas no que oculta. A consciência mítica se equipara a uma escritura cifrada que só
resulta legível e compreensível para aquele que possui a sua chave, isto é, para aquele para
quem os conteúdos particulares desta consciência fundamentalmente não são senão signos
convencionais de «algo mais» que não está contido neles.167

162
F. W. Schelling, Introduction a la philosophie de la mythologie, t. I, p. 238.
163
Idem, p. 237.
164
André Jolles, «Mito», Formas simples, p. 87.
165
Ernst Cassirer, Linguagem e mito, p. 25.
166
Idem, p. 22.
167
Ernst Cassirer, Filosofia de las formas simbolicas II: el pensamiento mítico, p. 62.

60
Poggioli já sugerira se pensar a arte deste período como uma mitologia,
justamente porque estabelece «os métodos e os fins da ação».168 Do mesmo modo,
décadas depois de Poggioli, Krysinski aproximou a categoria de auto-referencialidade
do mito à natureza característica dos discursos da vanguarda – e sugiro que entendamos
as imagens plásticas também como um texto discursivo: «Os mitos de vanguarda
constituem então uma base ideológica na qual se realiza o estabelecer-se de uma
específica formação discursiva que se auto-representa como visão coerente e
unificadora do mundo».169 Em função desta auto-referencialidade e auto-
regulamentação, observa Schelling que «a significação da mitologia não pode ser outra
que aquela do processo à continuação do qual ela nasce»170 – e talvez seja possível
estender esta observação às obras que iremos analisar nos capítulos subseqüentes.
Além de se distinguir como uma totalidade indivisível e auto-referencial, a
forma mítica revela uma tendência à repetição, que pode ser abordada a partir de dois
pontos de vista. Por um lado, seguindo as proposições de Lévi-Strauss, as várias versões
de um mesmo mito costumam compor-se pela recorrência de um número restrito de
invariáveis. Em decorrência disso, a repetição assume uma função própria, que é de
tornar manifesta a estrutura do mito: «Todo mito possui, pois, uma estrutura folheada
que transparece na superfície, se é lícito dizer, no e pelo processo de repetição».171 É por
isto que Lévi-Strauss dirá que não existe, no mito, uma versão «verdadeira», «da qual
todas as outras seriam cópias ou ecos deformados».172 O que se torna realmente
significativo na análise do mito não é tentar compreender uma ou outra narrativa mítica
isolada, mas buscar desvelar a estrutura subjacente a ela. «O mito», esclarece Lévi-
Strauss, «propõe um quadro de mensagens cifradas, somente definíveis através de suas
regras de construção.»173 Assim, «todas as versões pertencem ao mito».174 Mesmo que

168
Porém a sugestão de Poggioli era ainda discreta e derivava de uma observação que dizia respeito
apenas às duas primeiras tendências opositivas e hostis que reconhecia na vanguarda – ativismo e
antagonismo. Para ele, ambas tendências podem aparecer como elementos ou fatores racionais em suas
formas ou causas últimas, «do mesmo modo que podem apresentar-se racionais, na relação entre meio e
fim, a guerra e o esporte, o duelo e o jogo». E ainda: «porque estabelecem os métodos e os fins da ação»,
podem ser compreendidas como a ideologia da vanguarda, «assim como o conceito mais geral de
movimento e a idéia mesma de vanguarda parecem representar a mitologia» (Op. cit., p. 41). Em outras
palavras, a vanguarda se avizinha da mitologia porque, como esta última, se auto-regula.
169
Wladimir Krysinski, op. cit., p. 25.
170
F. W. Schelling, op. cit., p. 236.
171
Claude Lévi-Strauss, «A estrutura dos mitos», Antropologia estrutural, p. 264.
172
Idem, p. 252
173
Claude Lévi-Strauss em entrevista a Didier Eribon, De perto e de longe: relatos e reflexões do mais
importante antropólogo de nosso século, p. 182.

61
detalhes ou partes das narrativas se percam ao longo do tempo, pode-se recuperar delas
suas características estruturais essenciais.
Por outro lado, os mitos não só se repetem (repetem seus elementos
constitutivos, digamos mais precisamente), revelando uma mesma estrutura, como
também repetem, no sentido de que reatualizam, uma verdade que, supostamente, se
perdeu, ou, numa leitura iluminista ou crítica, que talvez nunca tenha existido de fato,
sendo sugerida apenas pela própria reiteração de sua espectral presença. Gusdorf
observa que, pela sua repetição, «o mito, como estrutura ontológica, perpetua uma
realidade dada».175 Assim, garante, o mito dá à vida «a sanção da eternidade».176 É por
isso que «o mundo da repetição é o mundo da criação continuada».177 O mito, portanto,
jamais é completo. Salienta Lévi-Strauss: «O pensamento mítico, totalmente alheio à
preocupação com pontos de partida ou de chegada bem definidos, não efetua percursos
completos: sempre lhe resta algo a perfazer».178 Nisso, o mito se aproxima do rito:
«Como os ritos, os mitos são in-termináveis».179
Independentemente de saber se o rito originou-se do mito ou vice-versa – não
pretendo entrar nesta discussão ainda não resolvida pela antropologia180 –, o certo é que
rito e mito acham-se associados. Quanto a isto, observa Girard: «Não se trata mais de
ajustar o ritual ao mito e nem mesmo o mito ao ritual. Com certeza aqui há um círculo,
no qual o pensamento permanecia aprisionado e do qual sempre pensava escapar
privilegiando um ponto qualquer do percurso».181 De um modo geral, pode-se dizer que
o rito é o mito colocado em prática, enquanto o mito é da ordem do legomenon (o que é
dito), o rito é dromenon (o que é atuado). O rito seria como a gestualização do mito, a
sua mise en acte. Assim, quando falar em rito ou ritual, estarei me referindo aos gestos e
às ações que procuram produzir, como o mito, uma fratura na continuidade e, por meio
dela, uma ilusão de extensão do tempo ao infinito. Como o mito, o rito também evoca
uma realidade de outra ordem. Como observa Aldo Natale Terrin,
174
Claude Lévi-Strauss, «A estrutura dos mitos», op. cit., p. 252.
175
Georges Gusdorf, op. cit., p. 24.
176
Idem, p. 35.
177
Idem, p. 28.
178
Claude Lévi-Strauss, O cru e o cozido, p. 24.
179
Idem, p. 24.
180
Para um resumo deste debate ver Clyde Kluckhohn, «Myths and Rituals: A General Theory», Harvard
Theological Review, 35 (1942); K. K. Ruthven, O mito, pp. 49-52; Marcel Detienne, «Mito/Rito»; G. S.
Kirk, Myth: Its Meaning and Functions in Ancient and Other Cultures, pp. 12-31; René Girard, A
violência e o sagrado, pp. 117-118.
181
Idem, p. 119.

62
há, de fato, algo de insuportável no rito, enquanto ele parece querer dizer sempre algo «a
mais», algo que vai além da tradução, da decodificação, da comunicação mesma, algo que a
própria contextualidade não consegue dominar inteiramente e, por isso, parece que o rito,
para o estudioso, dá sempre e inexoravelmente a idéia de algo incompleto.182

É esta tentativa do mito e do rito de estabelecer uma permanência por meio da


repetição, associada ao mistério derivado da sua auto-referencialidade, que faz com que
a realidade criada pelos ritos e mitos pareça ser não apenas uma realidade de outra
ordem, mas uma realidade de uma ordem superior. O indivíduo goza assim da ilusão de
aceder a uma supra-realidade que «o transfigura e transfigura os limites de sua vida».183
Em suma, arremata Gusdorf, o caráter essencial da consciência mítica «será sem dúvida
que ela situa e orienta o homem rumo ao absoluto».184
No entanto, por voltar-se a si mesmo e por forjar um absoluto que deveria ser
alcançado não pela verdade filosófica, mas pela constituição de uma realidade de uma
ordem superior e, principalmente, por se revelar como uma forma incompleta, o mito
termina por se apresentar como um modo falhado de apreensão do mundo exterior. De
uma certa maneira, seu fracasso como um modo de conhecimento já estava dado na
crítica de Platão aos mitos185 – crítica esta que determinou toda uma tradição de
abordagem do mito e da mitologia. Contrapondo-se a Homero, em particular, e aos
poetas de um modo geral (não esqueçamos que eram estes os propagadores dos mitos),
Platão opunha-se a toda uma forma de conhecimento, um conhecimento que se dava por
meio de simulacros – e o mito não deixava de ser um deles –, que nasciam na imagem
(eidolon) e terminavam em outra imagem, três graus afastada da Idéia ou Forma
(eidos).186 O perigo residia, segundo Platão, na ilusão de verdade transmitida pelo canto

182
Aldo Natale Terrin, O rito: antropologia e fenomenologia da ritualidade, pp. 32-33.
183
Georges Gusdorf, op. cit., p. 23.
184
Idem, p. 36
185
Ver a este respeito, principalmente, os livros II e X da República.
186
Para Platão, há apenas uma Idéia ou Forma (eidos) para cada grupo de objetos múltiplos. É esta Idéia
ou Forma de cada uma das coisas do universo que compõe o mundo das Idéias ou das Formas, o único
mundo real ou verdadeiro. Por exemplo: há um sem-número de camas e mesas, mas para estes dois
móveis há apenas duas Formas, uma de cama, outra de mesa. A estas Formas recorrerá o fabricante que
pretende construir um destes dois artigos, e o que produzir não será verdadeiro, pois não será uma cama
ou uma mesa ideais – ou seja, a essência de uma cama ou mesa –, será uma cópia da Forma de cama ou
mesa – ou seja, sua aparência. Se o fabricante não faz o que é a cama, mas uma cama qualquer, aparente,
não faz o objeto real, mas um objeto que se assemelha à Forma deste, sem ter a sua realidade. E a Forma
de cama ou mesa já estava dada, foi elaborada por alguém (o Demiurgo) que «não é apenas capaz de fazer
todas as espécies de móveis, mas também produz tudo o que brota da terra, modela todos os seres vivos,
incluindo ele próprio, e, além disso, fabrica a terra, o céu, os deuses e tudo o que há no céu e tudo o que
há sobre a terra» (Platão, A República. Consultei a edição italiana de suas obras completas. Nesta edição,
Tutti gli scritti, o trecho citado se acha na pp. 1306-1308).

63
dos poetas – e esta forma de transmissão não deixa de ter algo de ritualístico em sua
propagação pela repetição oral. Um ouvinte ingênuo poderia não saber discernir o que
era fábula do que era autêntico. Para Platão, não havia nada digno de se chamar
conhecimento que derivasse exclusivamente dos sentidos, porque nenhum órgão da
percepção é capaz de nos dizer se tal coisa existe verdadeiramente e, portanto, ser capaz
de nos encaminhar à verdade. O conhecimento consistia no juízo da percepção e não em
impressões. Desta maneira, para nada serviam as narrativas míticas àqueles que
procuravam a compreensão, porque esta se referia a uma inteligibilidade que o mito não
portava, e que somente possuía o discurso explicativo. Com Platão, o mito se constituiu
como um modo de conhecimento distinto e inferior àquele derivado do logos. À crítica
de Platão seguiu-se uma longa tradição de oposição entre o pensamento científico (ou
teórico) e o mítico (ou mágico) em que este último encontrava-se em desvantagem.187
Lévi-Strauss, no primeiro capítulo de O pensamento selvagem, realiza a mais
consistente tentativa de proceder a uma distinção entre estes dois modos de
conhecimento sem qualquer caráter negativo, identificando no pensamento que chama
de «mágico ou mítico» um rigor e uma precisão equiparáveis a do pensamento
científico. Ele demonstra que o pensamento mítico pode fazer – e faz –, de um modo
bastante particular, generalizações, classificações e análises, como se fosse uma
«ciência ainda por nascer».188 Os resultados obtidos por meio dos recursos do
pensamento mítico – que ele chama de «ciência do concreto»189 – podem ser vistos
como antecipações à própria ciência e aos métodos e resultados que a ciência assimilará
somente num estágio mais avançado. Não obstante ter encetado suas observações
despido de preconceito e de qualquer ranço de um eurocentrismo, Lévi-Strauss não
deixa de apontar como, de um certo modo, o pensamento mítico acaba por se constituir
de maneira mais restrita – falhada – em relação ao pensamento científico.190 Embora

187
No século XX, Lucien Lévy-Bruhl talvez seja o caso mais exemplar deste modo de compreensão. Para
ele, o mundo primitivo e a sua forma de pensamento está completamente desvinculada da nossa. Em
oposição à racionalidade do mundo civilizado, o pensamento pré-lógico do primitivo se daria por meio da
afetividade e da participação (ver La mythologie primitive. Le monde mythique des Australien et des
Papous, p. xi).
188
Claude Lévi-Strauss, O pensamento selvagem, p. 26.
189
Esta expressão, citada na p. 31, é também título deste capítulo de O pensamento selvagem.
190
Em Mito e significado, Lévi-Strauss fala explicitamente do «fracasso» do mito em relação à ciência:
«nós, por meio do pensamento científico, somos capazes de alcançar o domínio sobre a Natureza – creio
que não há necessidade de desenvolver este ponto em concreto, já que isto é suficientemente evidente
para todos –, enquanto o mito fracassa em dar ao homem mais poder material sobre o meio» (Op. cit., pp.
31-32).

64
estes dois modos de conhecimento possam ser comparáveis quanto ao tipo de operações
mentais que supõem, eles se mostram desiguais quanto aos resultados teóricos e
práticos: «pois, desse ponto de vista, é verdade que a ciência se sai melhor que a
magia», considerando que, algumas vezes, a magia «também tem êxito».191
Feitas estas observações iniciais, Lévi-Strauss procede a uma comparação entre
o modo de constituição do pensamento mítico ou mágico e a prática do bricoleur, por
ambos elaborarem conjuntos estruturados a partir da utilização de matéria-prima feita de
resíduos e fragmentos de fatos, sendo que cada um desses resíduos adquire um
significado apenas em relação aos outros resíduos do conjunto. A característica do
pensamento mítico é, portanto, «a expressão auxiliada por um repertório cuja
composição é heteróclita e que, mesmo sendo extenso, permanece limitado; entretanto,
é necessário que o utilize, qualquer que seja a tarefa proposta, pois nada mais tem à
mão».192 Assim, o pensamento mítico, como o bricolage, se compõe por meio do
recolhimento de materiais já existentes, extraindo-os de seus contextos originais e
reorganizando-os dentro de uma nova realidade:

seu instrumental é fechado, e a regra de seu jogo é sempre arranjar-se com os «meios-
limites», isto é, um conjunto sempre finito de utensílios e de materiais bastante heteróclitos,
porque a composição do conjunto não está em relação com o projeto do momento nem com
nenhum projeto particular mas é o resultado contingente de todas as oportunidades que se
apresentaram para renovar e enriquecer o estoque ou para mantê-lo com os resíduos de
construções de destruições anteriores.193

Disso, conclui que «os elementos da reflexão mítica estão sempre situados a
meio-caminho entre perceptos e conceitos», em outras palavras, entre o sensível e o
inteligível: «Seria impossível extrair os primeiros da situação concreta onde
apareceram, enquanto que recorrer aos segundos exigiria que o pensamento pudesse,
pelo menos provisoriamente, colocar seus projetos entre parênteses».194 E como
elemento intermediário entre imagem e conceito, prossegue Lévi-Strauss, acha-se o
signo. Como o conceito – resultado da abstração filosófico-teórica –, o signo dispõe
também de um poder referencial: não diz respeito apenas a si mesmo; signo e conceito
podem servir para substituir alguma coisa. Contudo, salienta Lévi-Strauss, «nesse
sentido, o conceito possui uma capacidade ilimitada, enquanto que a do signo é
191
Claude Lévi-Strauss, O pensamento selvagem, p. 28.
192
Idem, p. 32.
193
Idem, p. 33.
194
Idem, p. 33.

65
limitada».195 Assim, por se organizar por meio de signos e não de conceitos, o
pensamento mítico resulta mais limitado que o científico. E isso decorre da própria
história de suas matérias-primas, uma vez que as possibilidades de combinação

são sempre limitadas pela história particular de cada peça e por aquilo que nela subsiste de
predeterminado, devido ao uso original para o qual foi concebida ou pelas adaptações que
sofreu em virtude de outros empregos. Assim como as unidades constitutivas do mito, cujas
combinações possíveis são limitadas pelo fato de serem tomadas de empréstimo à língua,
onde já possuem um sentido que restringe sua liberdade de ação, os elementos que o
bricoleur coleciona e utiliza são «pré-limitados».196

A diferença entre o bricoleur e o engenheiro estaria em que o segundo interroga o


universo (um objeto virtualmente ilimitado) e o primeiro «se volta para uma coleção de
resíduos de obras humanas, ou seja, para um subconjunto da cultura»197 (um objeto
limitado).

Poder-se-ia, portanto, dizer que tanto o cientista quanto o bricoleur estão à espreita
de mensagens, mas, para o bricoleur, trata-se de mensagens de alguma forma pré-
transmitidas e que ele coleciona (...); já o homem de ciência, engenheiro ou físico, antecipa
sempre a outra mensagem que poderia ser arrancada a um interlocutor, apesar de sua
relutância em se pronunciar a respeito de questões cujas respostas não foram dadas
anteriormente. O conceito aparece assim como o operador de uma abertura do conjunto
com o qual se trabalha, sendo a significação o operador de sua reorganização: ela não o
aumenta nem o renova, limitando-se a obter o grupo de suas transformações.198

Disso, resulta que o engenheiro situa-se além, enquanto o bricoleur permanece aquém,
porque um trabalha por meio de conceitos, o outro, de signos. E ressalta ainda Lévi-
Strauss que o conceito «se pretende integralmente transparente em relação à realidade»,
ao passo que o signo «aceita, exige mesmo, que uma certa densidade de humanidade
seja incorporada ao real».199 A característica fundamental da construção de cada um
destes dois modos de pensamento reside em que o mítico elabora estruturas organizando
os fatos e os resíduos dos fatos, ao passo que o cientista ou engenheiro percorre a via
inversa, cria fatos a partir e através de estruturas.
Se pensarmos nos artistas que estudarei nos capítulos seguintes à luz destas
diferenciações propostas por Lévi-Strauss, poderíamos dizer que Schwitters e Duchamp,
de uma certa maneira, penderiam mais para o bricoleur, uma vez que, como veremos, se

195
Idem, p. 34.
196
Idem, p. 34.
197
Idem, p. 34-35.
198
Idem, pp. 35-36.
199
Idem, p. 35.

66
valem daquilo que está à mão para a construção de suas obras;200 ao passo que
Mondrian e Malevitch tenderiam, à primeira vista, mais para aquela figura de
engenheiro evocada por Lévi-Strauss, porque criam seus quadros a partir de uma
estrutura fundamental em certa medida preexistente. No entanto, embora pareçam
proceder segundo o modelo científico, tanto suas estruturas quanto os fatos (as pinturas)
que resultam destas estruturas nada expressam de realmente científico. Primeiro,
compõem-se a partir de um número limitado de elementos: o repertório com que
Mondrian e Malevitch trabalham não é virtualmente infinito como o científico.
Segundo, seus quadros apresentam-se como totalidades indivisas, não sendo, portanto,
decomponíveis em partes.
Mas esta distinção entre ciência e mito não é estanque. No ponto intermediário
entre um pólo e outro destes dois modos de conhecimento, Lévi-Strauss situa a arte.
Encerrando sua argumentação, ele procura encontrar um lugar para a arte dentro do
sistema que construiu. Para ele, a arte se acharia a meio caminho entre o pensamento
mítico e o científico, pois, garante, «todo mundo sabe que o artista tem, ao mesmo
tempo, algo do cientista e do bricoleur: com meios artesanais, ele elabora um objeto
material que é também um objeto de conhecimento».201 Enquanto o mito busca um
conhecimento total, a ciência, para apreender dado objeto em sua totalidade, procede
por partes: divide o problema em quantas partes forem necessárias para conhecê-lo.202
Na arte, uma vez que esta opera, segundo Lévi-Strauss, sempre por modelo reduzido,203
a tendência é que o conhecimento do todo preceda ao das partes: «quanto menor o
objeto, menos temível parece sua totalidade; por ser quantitativamente diminuído, ele

200
E Lévi-Strauss não deixa de observar, mesmo que num tom negativo, que «a voga intermitente das
“colagens” (...) poderia ser, por seu lado, apenas uma transposição do bricolage para o terreno dos fins
contemplativos» (Op. cit., p. 46).
201
Claude Lévi-Strauss, op. cit., p. 38.
202
Ver Claude Lévi-Strauss, Mito e significado, pp. 31-32.
203
Lévi-Strauss defende que até trabalhos monumentais e em grande escala não deixam de ser modelos
reduzidos: «as pinturas da Capela Sixtina são um modelo reduzido, a despeito de suas dimensões
imponentes, pois o tema que ilustram é o do fim dos tempos. Ocorre o mesmo com o simbolismo cósmico
dos monumentos religiosos. Por outro lado, pode-se perguntar se o efeito estético de uma estátua eqüestre
maior que o natural provém do fato de ela elevar um homem às dimensões de um rochedo e não de
reduzir às proporções de um homem o que, no início, é percebido de longe como um rochedo. Enfim,
mesmo o “tamanho natural” supõe o modelo reduzido, pois que a transposição gráfica ou plástica implica
sempre uma renúncia a certas dimensões do objeto: em pintura, o volume; as cores, os cheiros, as
impressões táteis, até na escultura; e, nos dois casos, a dimensão temporal, pois a totalidade da obra
figurada é apreendida num instante» (O pensamento selvagem, p. 39).

67
nos parece qualitativamente simplificado».204 Retomando a distinção entre ciência e
mito a partir de suas relações com a estrutura e os fatos, Lévi-Strauss observa que
mesmo quanto a isto a arte se acha entre estes dois modos de conhecimento. A arte parte
de um meio-termo entre a estrutura e o fato, entre o esquema e a anedota. Ela não
procede por diagramas, mas «realiza a síntese das propriedades intrínsecas e das que
dependem de um contexto espacial e temporal»205 de determinado objeto a ser
representado. Deste modo, ela sai do fato e do objeto a ser representado para descobrir
uma estrutura.
Embora seus comentários sobre a arte em geral se acomodem mal à arte mais
moderna e digam respeito sobretudo a uma arte mais tradicional (o exemplo que ele
mobiliza neste ponto é o da representação de um colarinho de renda de um retrato de
mulher de Clouet), fundamentada ainda numa preocupação de representação fiel da
natureza,206 eles servem para clarificar e ampliar a sua compreensão do mito. E são
justamente estas explicações posteriores sobre o mito, em comparação com a arte, que
nos permitirão ver mais claramente o que ocorre principalmente nas pinturas de
Mondrian e Malevitch. Para Lévi-Strauss, a análise da arte como ponto intermediário
entre mito e ciência «permite compreender melhor por que os mitos nos aparecem
simultaneamente como sistemas de relações abstratas e como objetos de contemplação
estética».207 Na arte, precisa,

parte-se de um conjunto formado por um ou vários objetos e por um ou vários fatos, ao qual
a criação estética confere um caráter de totalidade, por colocar em evidência uma estrutura
comum. O mito percorre o mesmo caminho mas num outro sentido: ele usa uma estrutura
para produzir um objeto absoluto que ofereça um aspecto de um conjunto de fatos (pois que
todo mito conta uma história). A arte procede, então, a partir de um conjunto (objeto + fato)
e vai à descoberta de sua estrutura; o mito parte de uma estrutura por meio da qual
empreende a construção de um conjunto (objeto + fato).208

O que em princípio pode parecer uma contradição (aqui, Lévi-Strauss parece dizer o
contrário do que afirmara anteriormente) se explica se entendermos o mito como

204
Idem, p. 39.
205
Idem, p. 41.
206
É conhecida a aversão de Lévi-Strauss a boa parte da arte das chamadas vanguardas históricas. Sobre
isso, ver o capítulo «A un jeune peintre», Le regard éloigné. Para Lévi-Strauss, até mesmo a pintura não-
figurativa seria uma espécie de mimese: «não cria, como acredita, obras tão reais – ou mais – quanto os
objetos do mundo físico mas imitações realistas de modelos não-existentes» (O pensamento selvagem, p.
45n).
207
Claude Lévi-Strauss, O pensamento selvagem, p. 41.
208
Idem, p. 41.

68
constituído a partir de um processo em dois níveis: primeiro, parte de fatos e resíduos de
fatos para chegar a uma estrutura; no momento seguinte, parte desta estrutura pré-
moldada para atingir um «objeto absoluto». Considerando-o desta forma, fica mais fácil
compreender o que se dá em Mondrian e Malevitch: como veremos na parte seguinte,
ambos criam estruturas com a finalidade de se alcançar um absoluto.
Talvez fosse mais proveitoso se se pensasse a arte, dentro do sistema de Lévi-
Strauss, como ora pendendo para o científico, ora para o mítico em função de sua
composição interna e dos resultados alcançados. Por ainda se achar preso a padrões
artísticos mais tradicionais, Lévi-Strauss deixou de perceber como a estrutura
constitutiva desta arte mais moderna e os resultados a que chega se inclinam mais para o
mítico. Mas é curioso como, ao comentar a pintura de Manet, talvez o primeiro artista
verdadeiramente moderno, utiliza termos que poderiam ser empregados numa descrição
do mito como um conhecimento imperfeito: «Manet foi um grande pintor; nele
encontramos fragmentos deslumbrantes. E, ao mesmo tempo, percebemos em suas telas
uma espécie de desassossego, como se elas não atingissem plenamente seu objetivo. De
qualquer modo, Manet marca o fim de uma época, o início de outra».209
Nas partes seguintes, como já anunciei anteriormente, proponho-me examinar os
trabalhos de Mondrian, Malevitch, Schwitters e Duchamp, prestando atenção ao
processo que os engendram. Para tal, separei os artistas e suas obras em duas dimensões
extraídas desta compreensão do mito como forma, como princípio intelectivo. Procedi
deste modo por acreditar que se podem identificar dois movimentos suscitados por um
mesmo impulso. Por um lado, observarei como se institui uma dimensão que sugiro
chamar de mítica em que se pode verificar a constituição, a partir da observação de uma
série de quadros, de um processo de repetição de uma mesma estrutura que se manifesta
como auto-referencial, ordenada e com pretensão – e frise-se que se trata de uma
pretensão – de atingir alguma espécie de transcendência. A peculiaridade desta
dimensão é tratar com obras que ainda podem ser chamadas de obras porque dizem
respeito a suportes tradicionais: o quadro ainda é reconhecido como um quadro e ainda
se pode falar de pintura. Por isso que aqui me deterei nos trabalhos de Mondrian e de
Malevitch. Por outro lado, na dimensão ritual, em que analisarei dois trabalhos
específicos, um de Schwitters (Merzbau), outro de Duchamp (La mariée mise à nu par
209
Claude Lévi-Strauss em entrevista a Didier Eribon, De perto e de longe: relatos e reflexões do mais
importante antropólogo de nosso século, p. 219.

69
ses célibataires, même), procurarei demonstrar como uma estrutura mítica se associa a
gestos e a ações e que, partindo justamente disso, extrapola a categoria de obra e se
institui como uma espécie de evento (em moldes mais próximos das manifestações que
estudamos neste capítulo). Além de perceber como estas obras se mobilizam também
por um ímpeto de organização e como se constituem em si mesmas como um processo,
veremos como o artista deixa de ser apenas um produtor e se torna também um
oficiante, um oficiante de um ritual que se organiza em torno de um único trabalho e
não em torno de um acontecimento, um espetáculo, como vimos neste capítulo. Nesta
dimensão, à diferença da dimensão mítica, a obra passa a se relacionar mais
estreitamente com seus observadores e com o espaço circundante assumindo os ares de
um templo não mais profano, embora também não sagrado.210

210
Ver Mario Perniola, Più-che-sacro, più-che-profano, p. 13 e ss. As considerações de Perniola sobre as
possibilidades de se reconhecer espaços intermediários entre as esferas sagrada e profana serão mais
desenvolvidas no capítulo relativo a Kurt Schwitters, na Parte III deste estudo, em relação ao modo de
constituição da Merzbau.

70
PARTE II
DIMENSÃO MÍTICA

71
2 PIET MONDRIAN

a. Rumo a um método
Na abertura de seu livro sobre Mondrian, Bernard-Henri Lévy sugere que
tentemos imaginá-lo deixando de pintar aos quarenta anos. «Ele poderia se calar, como
Duchamp. Ou morrer, como Van Gogh. Ele poderia ser um verdadeiro grande artista,
bem-sucedido no meio de sua vida e, por uma razão ou outra, interromper sua
aventura.» Mondrian já seria um pintor consagrado.

Ele teria vinte anos de pintura atrás de si. Exposições. Uma glória. Ele teria levantado
polêmicas. Suscitado entusiasmos. Haveria telas dele que circulariam. Outras, nos museus.
Seria um pintor importante. Em plena posse de seu ofício. Ele teria o sentimento, legítimo,
de haver conquistado seu lugar na história da pintura.211

No entanto, em nenhum dos trabalhos produzidos até sua quinta década, encontra-se
sequer um vestígio daquela estrutura pictórica que nos permite reconhecer facilmente
um Mondrian até mesmo na estampa de um vestido Yves-Saint Laurent.

Mas Piet Mondrian tem quarenta anos. Ele pintou dezenas de flores e de pequenos
cachorros. E eu observo que, na massa, nesta longa série de quadros dos quais ele se
orgulha então, não há um – friso: nem um – que, de perto ou de longe, prefigure a maneira
à qual nós sabemos que seu nome está ligado.212

Mondrian completou quarenta anos em 1912. Chegara há pouco a Paris e apenas


começava a tomar conhecimento do que estava sendo produzido de novo na cidade. Até
então, dedicara-se totalmente à pintura figurativa, representando paisagens, flores,
fachadas de igrejas e de moinhos e imagens simbolistas com alusões à doutrina
teosófica, como o famoso tríptico Evolução (1910-1911),213 no qual vemos uma mulher
em três estágios diferentes de elevação espiritual. Na capital francesa, impressionou-se
com o cubismo de Braque e Picasso e, influenciado por ambos, realizou uma série de
pinturas de árvores se valendo do contorno preto em seus quadros – detalhe que iria ser

211
Bernard-Henri Lévy, Piet Mondrian, pp. 11-12. John Milner também salienta que Mondrian, aos 28
anos, já era «um compositor de pinturas inventivo e original. Até mesmo seus estudos menores, muito
provavelmente resultado de observação direta, mostram sua preocupação com as condições contraditórias
da pintura para organizar uma imagem espacial na superfície plana da tela. Mondrian enfatizava a tensão
entre profundidade e planura» (Mondrian, p. 14).
212
Bernard-Henri Lévy, op. cit., p. 12.
213
Optei por apresentar aqui as traduções dos títulos originais e as datas dos trabalhos de Mondrian em
conformidade com o que foi estabelecido mais recentemente por Robert Welsh e Joop M. Joosten no
último e mais completo Catalogue raisonné dos trabalhos do artista.

72
a base de suas telas posteriores. Pintou também nus, naturezas-mortas e paisagens
baseadas em formas arquitetônicas, além de lançar mão de temas já trabalhados
anteriormente, como flores, dunas e cenas marítimas, transformando-os em
composições mais tendentes à abstração. Nos primeiros anos sob o influxo cubista, os
tons de suas telas repetiam aqueles dos colegas que viviam em Paris: viam-se o cinza, o
marrom, o ocre, o verde, o preto. De volta à Holanda, em 1914, onde permaneceria até o
final da Primeira Guerra Mundial, Mondrian iluminou sua paleta, predizendo o
neoplasticismo de suas futuras composições ao decidir-se pelo rosa, azul, amarelo e
vermelho. «A calorosa adesão de Mondrian ao cubismo», comenta Meyer Schapiro, «foi
surpreendente, uma vez que ele tinha então quarenta anos, com uma prática longa e
madura que pareceria desencorajar a mudança para um estilo de princípios tão
diferentes dos seus.»214 Ao assimilar a abordagem cubista, completa Schapiro,
Mondrian

se afastou para sempre do pathos expressionista e da intensidade fauve, bem como do


simbolismo e de sua retórica de posturas demonstrativas, emblemas e dualidades
espirituais, embora mantivesse por um breve período temas carregados de emoção, como a
alta fachada da igreja e a árvore esquelética intrincada e esbugalhada. Se, como foi suposto,
o dogma do exclusivo equilíbrio vertical e horizontal dos trabalhos tardios era baseado
numa convicção teosófica formada em seus anos de juventude, sua aplicação estrita teve
que esperar pela sua experiência do cubismo, uma arte que o libertou da patente imagética
simbólica, bem como de interpretações líricas da natureza, e voltou sua mente para uma
concepção da sua arte como, em essência, uma operação construtiva com formas
elementares não-miméticas.215

Com efeito, algumas das pinturas desta fase – como O mar (1912, fig. 1),
Árvores florescendo (1912) e A árvore A (1913) – fazem referência ao mundo exterior
apenas por seus títulos. Se não fossem estes, talvez demorássemos a perceber que o jogo
entre linhas angulosas e retas sob um fundo cinza sugere o movimento das ondas em O
mar. Em Árvores florescendo, a mesma relação que encontramos em O mar, entre
linhas curvas, semicírculos e retas, leva a uma quase abstração do objeto. A árvore A,
por sua vez, «esconde-se» atrás de linhas em sua maioria retas nos sentidos horizontal e
vertical e umas poucas oblíquas. Em certas telas de 1913 e 1914, que passam
significativamente a ser denominadas pelo pintor simplesmente de Quadro ou
Composição, as linhas curvas e os ângulos obtusos desaparecem, restando apenas uma

214
Meyer Schapiro, Mondrian: Order and Randomness in Abstract Painting, p. 27.
215
Idem, pp. 52-53.

73
grade de linhas horizontais e verticais, ainda quebradas, aqui e ali, por diagonais,
atingindo uma abstração completa do objeto, embora o ponto de partida do pintor ainda
pareça ser a natureza ou a vida na metrópole, como propõem Hans Janssen e Joop M.
Joosten:

Uma vez bem integrado a Paris, Mondrian se pôs a ver na metrópole a vida abstrata posta
em formas, realmente bem mais próxima do artista moderno do que a natureza, e no qual,
mais que a natureza, ele procurará o arrebatamento estético, porque na metrópole o natural
já foi trabalhado, ordenado pelo espírito humano. As relações que ritmam a distribuição das
superfícies e das linhas na arquitetura falarão a ele mais diretamente do que os caprichos da
natureza. Na metrópole, o belo se exprime de maneira mais matemática.216

No entanto, embora já fundamentadas numa relação de tensão entre linhas


horizontais e verticais, as pinturas deste período ainda não se parecem com a estrutura
gradeada dos anos posteriores, que fez de Mondrian um artista singular. Mas já são um
primeiro grande passo nesse sentido. O próprio Mondrian explicou suas futuras
intenções a partir das últimas obras que realizou nesta época, em carta de 29 de janeiro
de 1914, endereçada ao professor e crítico de arte H. P. Bremmer:

Eu construo linhas e combinações de cor numa superfície plana com a intenção de


expressar a beleza geral com a máxima consciência. Natureza (ou, aquilo que vejo) me
inspira, me põe, como a qualquer pintor, no estado emocional para que um estímulo surja a
fim de produzir algo, mas eu quero chegar tão perto quanto seja possível da verdade e
abstrair tudo dela até alcançar a essência (ainda que somente uma essência externa!) das
coisas. (...)
Acredito que é possível, através de linhas horizontais e verticais construídas com
consciência, mas com cálculo, e guiadas por uma grande intuição e reduzidas ao ritmo e à
harmonia, que essas formas básicas de beleza, suplementadas se necessário por outras
linhas vetores ou curvas, possam tornar-se uma obra de arte, tão poderosa quanto é a
verdade.217

Em 1914, portanto, Mondrian já dava mostras de uma vontade de abstrair


totalmente a natureza de suas pinturas, por meio de uma construção baseada em linhas e
combinações de cor. Se não fosse por alguns detalhes, como a referência às linhas
vetores e curvas, o trecho acima citado poderia dizer respeito a suas composições
neoplásticas, as quais, anos mais tarde, resultariam do refinamento destas recentes
descobertas formais. Para chegar ao neoplasticismo, a passagem pelo cubismo lhe foi

216
Hans Janssen e Joop M. Joosten, Mondrian de 1892 a 1914: les chemins de l’abstraction, p. 194. Os
autores comentam ainda que «na sucessão deixada por Mondrian figura um grande número de esboços
diversos, conservados num pequeno caderno de desenho, representando as fachadas ou os fundos dos
imóveis parisienses e nos quais se nota esta distribuição rítmica, matemática, de superfícies e linhas» (Op.
cit., p. 194).
217
Citado por Joop M. Joosten, Catalogue Raisonné of the Work of 1911-1944, p. 105.

74
fundamental. Hans L. Jaffé salienta que foi no cubismo que Mondrian «subitamente
encontrou uma linguagem, uma gramática, um método com o qual domar e subjugar a
natureza, enquanto ainda expressando sua grandeza».218 Na visão de Jaffé, a transição
para o cubismo não pode ser reduzida a uma simples motivação externa, mas se trata de
«um desenvolvimento lógico interno». Os fundamentos para este novo rumo que toma
sua arte já estavam previstos nos trabalhos anteriores.

O objetivo estrito do cubismo, sua lúcida e clássica simplicidade, satisfizeram a


aspiração de Mondrian. Nesse novo estilo, ele deve ter enxergado potencialidades que
tinham estado previamente latentes nele mesmo: a mestria lógica de uma simples e rigorosa
metodologia.219

Creio que Jaffé toca num ponto fundamental: aos quarenta anos, Mondrian
descobriu um novo método de trabalho, derivado – mas não copiado – dos novos
recursos formais introduzidos pelo cubismo. Talvez valha ressaltar que acredito ser um
erro considerar que Mondrian tenha sido um pintor cubista, mesmo que por um curto
período, ou que haja em sua obra uma fase cubista. O seu «cubismo» difere bastante
daquele praticado por Braque e Picasso – e mesmo por Gleizes, Metzinger e Gris.
Enquanto estes buscavam, por meio de um facetamento das formas,220 um
estilhaçamento da perspectiva central, oferecendo, em seu lugar, um equilíbrio em duas
dimensões de objetos em planos diferentes em três dimensões, a partir da sobreposição
de imagens de um mesmo objeto representado simultaneamente de frente e de perfil ou,
quando se tratava de uma figura humana, de pé e sentado, Mondrian parecia mais
interessado em explorar não os diversos pontos de vista de um mesmo motivo, mas a
própria estrutura geométrica a fim de obter uma planificação do espaço.221 Do cubismo,

218
Hans L. C. Jaffé, Piet Mondrian, p. 21.
219
Idem, p. 21.
220
J. M. Nash acredita que a chave do cubismo não é o cubo, mas a faceta, composta por uma pequena
área limitada por linhas retas ou curvas, duas bordas opostas com um tom escuro e uma área intermediária
modulando os dois extremos. Esclarece ele: «As facetas são compostas de acordo com três princípios.
Primeiro, são quase sempre pintadas como se estivessem em um ângulo ligeiro com a superfície vertical
da tela; isto é, são como as persianas de uma janela que estão normalmente abertas mas nunca em ângulo
reto. Segundo, embora as facetas se sobreponham e lancem sombras umas sobre as outras, as sombras e
as sobreposições são inconsistentes; seria impossível construir um modelo em relevo de um quadro
cubista. Terceiro, as bordas das facetas dissolvem-se, permitindo que o seu conteúdo se derrame de umas
para as outras como os cubistas aprenderam com Cézanne» (O cubismo, o futurismo e o construtivismo, p.
19).
221
Em sua monografia sobre o pintor, Filiberto Menna analisa mais detidamente as diferenças entre os
cubismos de Picasso, Braque, Gris e Mondrian. Em linhas gerais, destaca o crítico italiano: «enquanto
Picasso parece partir do objeto (ou dos seus fragmentos) para reconstruir com esses o espaço da tela,
Braque, ao contrário, move-se do espaço e, só num momento sucessivo, obtém o objeto nos modos

75
Mondrian extraiu um método, ou uma gramática, ou simplesmente uma forma ideal para
dar corpo a sua intenção de «expressar a beleza geral com a máxima consciência».
Contudo, da revelação de um método à estrutura gradeada pela qual reconhecemos um
Mondrian à distância, foi preciso passar ainda por algumas fases intermediárias.
Em 1914, paralelamente a telas abstratas de inspiração cubista, Mondrian
começou a produzir, inteiramente com linhas verticais e horizontais e em preto e
branco, desenhos em papel em que toma como motivos o píer, o oceano e as fachadas
de igrejas. O motivo representado já não era facilmente reconhecido. A ênfase recaía
sobre a forma e o ritmo da composição. Nos anos seguintes, até 1917, desenvolveu
pinturas, também em preto e branco, similares a estes desenhos, porém cada vez mais
abstratas. Se tomarmos como exemplo a série realizada em papel sobre o tema do
oceano – Oceano 1, 2, 3, 4 e 5 (fig. 2 a 6) –, as quatro primeiras de 1914 e a última de
1915, e a compararmos com o já citado quadro O mar, realizado dois anos antes,
podemos observar o refinamento do método mondriânico. Para começar, a tela preserva
o formato quadrado, ao passo que os desenhos adotam o formato oval. A pintura em
cinza do fundo dá volume e profundidade ao que é representado; as linhas pretas sobre o
fundo branco dos desenhos achatam e planificam o espaço – e saliente-se que este efeito
não ocorre por se tratar de um desenho: no óleo sobre tela Composição 10 em preto e
branco, a mesma planificação é obtida em função da estrutura das verticais e
horizontais. Em O mar, predominam ainda as linhas curvas, formando uma série de
semicírculos que atuam como o movimento da água. Nos desenhos, as linhas curvas se
reduzem ao máximo, concentrando-se na parte superior, e desaparecem totalmente as
linhas retas oblíquas. Em Oceano 3, apenas duas linhas curvas são vistas no centro
superior do desenho. Em Oceano 4, uma única linha curva se sobressai em meio a retas
horizontais e verticais. Em Oceano 5, por seu turno, não caberia mais falar de uma linha
curva, mas talvez, salvo o paradoxo, de uma linha reta levemente abaulada. Aliás, uma
seqüência muito maior de linhas verticais curtas que cruzam as horizontais, mais longas,

ditados pela pintura. (...) De tudo isto deriva que as obras cubistas de Picasso revelam mais uma força
centrífuga, uma carga explosiva e desintegradora, lá onde as obras de Braque apresentam-se como um
férreo agregado, uma solidíssima concreção. (...) Em Gris, ao invés, existe um procedimento dedutivo e
centrípeto como em Braque mas com esta diferença, que Gris parte não tanto do espaço quanto do objeto,
porém não do objeto singular, mas, sim, da sua idéia abstrata, uma sorte de arquétipo do objeto. (...) Em
Mondrian, ao invés, é possível observar, ao menos neste momento, um proceder do objeto rumo ao
espaço, do lado sensível rumo ao abstrato. O que interessa Mondrian é sobretudo o espaço, como vimos
em Braque: com esta diferença todavia, que neste último o espaço é o ponto de partida, enquanto no
holandês é o ponto de chegada» (Mondrian, pp. 92-93).

76
pode ser observada nos desenhos. Na pintura, as linhas verticais aparecem timidamente
na parte inferior do quadro. Comenta John Golding:

A realidade percebida – o píer, o mar, o céu – pode estar atrás das configurações
transmitidas pelas linhas, mas são as linhas em si e suas relações com o fundo branco no
qual elas estão impressas e incrustradas que se tornou o assunto da pintura: seu pulso, seu
ritmo tornaram-se a imagem pictórica.222

Acompanhando-se o desenvolvimento da série Píer e oceano, percebe-se como


os traços que ainda definem os motivos – o píer e o oceano – vão aos poucos
esmaecendo até se transformarem em simples linhas. Em Píer e oceano 1 (fig. 7) e Píer
e oceano 2, ambos de 1914, o píer é facilmente reconhecido, uma vez que é figurado a
partir de uma série de traçados e não somente por meio de poucas linhas horizontais e
verticais. Em Píer e oceano 3 (fig. 8), de 1914, um traço vertical mais grosso na parte
central e inferior do desenho sugere o píer. Em Píer e oceano 4 (fig. 9) e Píer e oceano
5, as linhas do píer não se diferenciam das do oceano pela grossura do traço, mas pelo
comprimento: duas linhas paralelas verticais mais longas que as outras delimitam o píer
na parte central e inferior do desenho. O que parece passar a interessar a partir desta
série não é aquilo que é representado, mas a estrutura em si. Para Kermit Swiler
Champa, seguramente «Mondrian determinava a estrutura primeiro e então considerava
o incidente»: «Ao escolher o formato oval para começar, Mondrian reivindicava uma
origem pictórica, em vez de uma incidental ou “natural”, para semear a estrutura».223
Mas Mondrian experimentaria seu método mais um pouco antes de chegar à sua
famosa estrutura gradeada. Depois dos desenhos e das pinturas em preto e branco das
séries conhecidas como Píer e oceano e Mais-e-menos, em 1917 (ano em que é
publicado o primeiro número da revista De Stijl, com o artigo de Mondrian intitulado
«O neoplástico na pintura»), ele realizou duas telas absolutamente abstratas –
Composição em cor A e Composição em cor B –, subtraindo qualquer referência que
fosse à natureza. Nestas, sobre um fundo branco, pintou uma série de pequenos
quadrados e retângulos em azul, rosa e ocre, sobre e ao lado dos quais aplicou
pequeníssimos retângulos – alguns quase linhas – em preto, que dão um certo
dinamismo à composição. No mesmo ano, produziu outras quatro telas em que dispôs
lado a lado quadrados e retângulos, de dimensões parecidas – sem sobrepor uns aos

222
John Golding, «Mondrian and the Architecture of the Future», Paths to the Absolute, p. 26.
223
Kermit Swiler Champa, Mondrian Studies, pp. 39-40.

77
outros, como fez nas composições citadas anteriormente –, sempre em três cores: azul,
rosa e amarelo (Composição com planos de cor 2 e Composição nº 3 com planos de
cor224 [fig. 10]), azul, vermelho e amarelo (Composição com planos de cor 4), e cinza,
rosa e amarelo (Composição nº 5, com cor). Nestas, o preto é eliminado. Como atesta
este trecho de uma carta datada de 5 de setembro de 1917, Mondrian estava contente
com seu trabalho e achava que tinha dado início à sua «grande busca»:

Eu estou mais satisfeito com a aquarela, que é um grande conforto agora que tenho que
diminuir o meu trabalho: a grande busca está acabada agora, pelo menos por estes tempos,
o que significa que eu posso agora trabalhar regularmente em algumas telas em meio a
todas as outras coisas.225

Três meses depois, declarava a Theo van Doesburg: «Eu estou conseguindo mais
unidade nas minhas coisas, e o equilíbrio que estou procurando».226 Sobre estas
composições com planos de cor, Champa observa que

Mondrian abandona de uma vez por todas a possibilidade de considerar uma percepção de
fora da pintura para estabelecer uma estrutura da pintura. Píer e oceano foi a última
estrutura a ser abstraída de uma percepção de fora da pintura. Doravante, somente aquelas
relações que recordam, por assim dizer, a natureza e já de uma maneira ou de outra
definitivamente transformadas em pinturas do seu trabalho passado permanecem
disponíveis para gerar e guiar o novo trabalho. Neste momento da sua pintura, Mondrian
evidentemente decidiu que a experiência da pintura, além de ser mais forte, é mais
fidedigna e, nestes termos, mais objetiva que qualquer outra. Esta decisão tanto determina
quanto posteriormente sustenta a sua prática subseqüente e exclusiva de abstração
geométrica plana.227

As pinturas de Mondrian continuam a representar relações plásticas, porém, a partir de


então, a origem dessas relações não é encontrada na realidade visível, mas dizem
respeito a si mesmas, a seus recursos pictóricos internos.

Como objetos de visão autogerados, as pinturas abstratas de Mondrian, ao invés de


esforçar-se mais para alcançar as relações mais básicas apresentadas via visão natural,
contrói o que se pretende como as essencialmente básicas, aquelas originadas e
condicionadas somente pelas condições puras extremamente simples, para a mente de
Mondrian, do meio da pintura em si. Pintura como o retângulo primevo que gera uma
sucessão sem fim na sua superfície de outras relações retangulares mais ou menos
complexas que, através de tipo e número, refletem toda sorte possível de relações puras.228

224
Para Serge Fauchereau, o neoplasticismo nasce com esta composição (Mondrian and the Neoplastic
Utopia, p. 22).
225
Carta escrita a seu amigo Van Assendelft e citada por Joop M. Joosten, Catalogue Raisonné of the
Work of 1911-1944, p. 260.
226
Citada por Joop M. Joosten, op. cit., p. 260.
227
Kermit Swiler Champa, op. cit., p. 54.
228
Idem, pp. 54-55.

78
A partir do ano seguinte, Mondrian reintroduziu as linhas pretas verticais e
horizontais e as combinou com linhas cinza. Desta vez, porém, construiu com estas
linhas uma grade regular, mas com variações assimétricas obtidas por meio da
justaposição de quadrados e retângulos coloridos de tamanhos variados. Estas obras –
tal qual Composição A (fig. 11), de 1920 – já contêm todos os elementos dos trabalhos
futuros do artista. Por um curto período, entre os anos de 1918 e 1919, paralelamente a
esta pesquisa, Mondrian realizou duas outras séries de pinturas partindo de abordagens
um tanto diversas. Por um lado, experimentou a estrutura gradeada crua, numa
interseção de linhas verticais, horizontais e diagonais, todas pretas, sobre um fundo
branco e com a tela em formato de losango. Refiro-me ao exemplar único desta
experimentação: Composição com grade 3: losango (1918). No mesmo formato de tela,
reproduziu a estrutura gradeada de linhas cinza e pretas, a partir da relação entre
quadrados e retângulos coloridos e assimétricos. Por outro lado, criou duas telas que
causam um certo estranhamento. Tratam-se de Composição com grade 8: composição-
tabuleiro com cores escuras e Composição com grade 9: composição-tabuleiro com
cores claras, ambas de 1919. Nestas, a regularidade da estrutura resulta da disposição
na tela de dezesseis linhas pretas em sentido horizontal e outras dezesseis, na vertical. O
estranhamento decorre, principalmente, da disposição aparentemente desordenada das
cores, por meio da qual se estabelece uma tensão entre a extrema ordenação (as linhas
formando pequenos retângulos iguais) e a tentativa de sabotá-la pela uso irregular da
cor.
Foi somente quando estava quase chegando aos cinqüenta anos que Mondrian
cristalizou seu método de trabalho. O retorno a Paris, depois da Primeira Guerra
Mundial, em junho de 1919, foi novamente definitivo. A partir de então, procurou
trabalhar no que considerava ter «mais do que aquele algo mais».229 No início do ano
seguinte, concluiu seu primeiro trabalho desta segunda fase em Paris e talvez também o
primeiro que indicava o amadurecimento daquele método que Mondrian perseguia
desde meados da década de 1910: Composição A. Esta se constitui de uma grade
assimétrica de linhas cinza e pretas, formando quadrados e retângulos nas cores

229
Piet Mondrian em carta a Theo van Doesburg, datada de 21 de agosto de 1919, citada por Joop M.
Joosten, op. cit., p. 116. Para Joosten, Mondrian provavelmente se referia às Composição nº II e
Composição A.

79
primárias e em branco e cinza. A esta composição, seguiu-se uma série de outras,
realizadas nos anos seguintes, as quais operam segundo uma mesma lógica interna:
estreitas linhas pretas verticais e horizontais cruzam o quadro formando quadrados e
retângulos, os quais, por sua vez, recebem as cores amarelo, vermelho, azul, preto,
branco e cinza.
Estava criado o neoplasticismo. Vale recordar que o termo holandês beelding –
que em francês, inglês, italiano e português foi traduzido respectivamente como
plastique, plastic, plastico e plástico – comporta em si os significados de «aquilo que dá
forma», de «criação» e, por extensão, de «imagem», de «plástica».230 Assim, o
neoplasticismo de Mondrian deveria ser entendido também como um neoformativismo,
uma neoestruturação. Desde então até o seu desembarque em Nova York, em 1940, a
realização de suas pinturas se fundamentou sobre um vocabulário pictórico que, na
opinião de Joop M. Joosten e Angelica Zander Rudenstine, se limitou a pouquíssimos
elementos: planos de cores primárias puras, planos de «não-cor» e linhas pretas.231
Dessa série de telas abstratas que Mondrian passou a criar a partir da década de
1920 – ou mesmo das quase abstratas (como Píer e oceano e Mais-e-menos) que vimos
anteriormente –, poderíamos ainda dizer o que Champa afirmou acerca das pinturas de
1913-1914: «Os trabalhos não são em nenhum sentido todos o mesmo, no entanto eles
são bastante conversíveis uns nos outros».232 De fato, parece reinar uma equivalência
quase integral entre as obras concebidas por Mondrian depois da descoberta do cubismo
– embora nunca sejam exatamente iguais. O que passa a interessar não é mais o motivo
representado ou os elementos em relação em cada obra singular, mas o processo que
subjaz a todas elas. Carlo Ludovico Ragghianti, em seu monumental estudo sobre
Mondrian, ainda no início da década de 1960, já chamava a atenção para o fato de que,
se quiséssemos fazer crítica, deveríamos nos deter no processo artístico. Escrevia ele:

230
Ver Nancy J. Troy, Mondrian and the Neo-Plasticism in America, p. 5; e Harry Holtzman e Martin S.
James, The New Art – The New Life: The Collected Writings of Piet Mondrian, p. 27. Holtzman e James
ressaltam que os termos plastic, do inglês, e plastique, do francês (e poderíamos acrescentar o plástico, do
português), provêm do grego plassein, que significa formar ou moldar, «mas que não encerram
inteiramente a significação criativa e estrutural de beelding».
231
Joop M. Joosten e Angelica Zander Rudenstine, «Catalogo», Piet Mondrian: 1872-1944, p. 193. A
expressão «não-cor» é empregada pelo próprio Mondrian em seus escritos para se referir ao branco e ao
preto. O primeiro artigo em que utiliza o termo é «A manifestação do neoplasticismo em música e os
Bruiters futuristas italianos», de 1921.
232
Kermit Swiler Champa, op. cit., p. 31.

80
não podemos mais nos contentar em asseverar que o quadro é feito de certos elementos
abstratos e gerais do discurso pictórico (plano, linhas, ângulos, cruzes), mas devemos
procurar explicá-lo, esclarecê-lo na sua singularidade e na qualificação de seu processo
mesmo. Constatar a presença dos elementos representativos é gramática, estudar e procurar
reconstruir exatamente o processo construtivo ou criativo é crítica.233

E o que pretendo aqui é justamente tentar revelar os meandros deste processo, uma vez
que acredito somente ser possível começar a compreender a obra de Mondrian se
formos, pelo menos, um passo além daquele tipo de análise que se detém somente na
descrição do quadro e no estabelecimento de relações internas entre as linhas e os
planos de cor. Um exame da obra de Mondrian tal qual o proposto por Anthony Hill,
por exemplo, nos mostra apenas que é possível sintetizar uma centena de pinturas numa
meia dúzia de poliedros.234 O próprio Ragghianti, que recusa uma explicação fácil por
meio de uma aproximação com a teosofia e que sugere que se atente ao processo, acaba
por apontar as relações e o ritmo geral dos quadros e por examinar a obra do artista em
função da simetria e da assimetria.235 E estes dois autores não são casos isolados, a
maioria das abordagens sérias da obra de Mondrian recai seja num exame imanente por
meio do qual se tenta matematizar a estrutura gradeada e/ou se busca descrever as
relações entre os elementos constitutivos da pintura, seja, por outro lado, numa análise
que busca explicações para suas pinturas e desenhos em fatores exteriores às obras.
Parece-me que a riqueza da arte tanto de Mondrian quanto de outros artistas do século
XX já não reside mais unicamente no objeto (quadro, escultura, instalação etc.), mas
também e talvez principalmente no processo de constituição deste. Sugiro, portanto, que
prestemos atenção ao processo. É a partir dele que começa a se intituir aquilo que
chamo de dimensão mítica.
Antes de prosseguirmos, porém, cabe esclarecer o que entendo por processo e
qual sua diferença em relação à técnica. Compreendo a técnica como a
instrumentalização que permite ao artista realizar sua obra de uma determinada forma.
Para mim, ela tem, portanto, um sentido utilitário. Ela indica, conforme Gillo Dorfles, o
«domínio do homem sobre a natureza» e se define como «um “esquema operativo” (...),

233
Carlo Ludovico Ragghianti, Mondrian e l’arte del XX secolo, p. 278.
234
Ver Anthony Hill, «Art and Mathesis: Mondrian’s Structures», Leonardo, I, 3 (1968), pp. 233-242.
235
Ver Carlo Ludovico Ragghianti, op. cit., pp. 278-279 (para a análise de Composição com linhas, de
1916), p. 290 (para Composição A e Composição B), pp. 294-295 (para as Composições-tabuleiros, as
quais analisa a partir do tema da partição regular do plano e da superfície), p. 332 e ss. (para uma série de
composições da década de 1920).

81
inventado ou encontrado para a realização de qualquer atividade».236 O processo, por
sua vez, designa aquilo que, na técnica, ainda não é técnica ou já não o é. A concepção
moderna de técnica é de que ela é um meio para a realização de um fim; o processo, por
seu turno, já participa deste fim. Minha distinção, em alguma medida, quer corresponder
àquela, vigente na Grécia antiga, entre poiesis e techné.237 Atentar para o processo é
atentar para a dinâmica volitiva que está por trás e perpassa os modos de constituição de
um trabalho específico ou de uma série de trabalhos; é, em outras palavras, prestar
atenção para a ação ou as ações primárias, em certa proporção anteriores mesmo a
qualquer gesto produtor efetivo, que subjazem à criação de uma obra. Mas é preciso
frisar: a técnica está sempre a serviço do processo e não o contrário. Paul Valéry, em
sua aula inaugural do curso de Poética no Collège de France, em dezembro de 1937,
cunha uma bela definição: «É a execução do poema que é o poema».238

b. Repetição
Sugiro que comecemos examinando alguns conjuntos de telas, todas realizadas
depois da década de 1920, quando o método de trabalho de Mondrian já havia se
cristalizado. Observemos primeiro Composição com largo plano vermelho, amarelo,
azul, cinza e preto (fig. 12), de 1921, Composição com amarelo, vermelho, preto, azul e
cinza (fig. 13), de 1920, e Composição com vermelho, preto, amarelo, azul e cinza (fig.
16), de 1921. Se fôssemos descrevê-las, de um modo geral, poderíamos dizer que elas se
compõem de linhas pretas horizontais e verticais, de mesmas dimensões, que se cruzam
formando uma grade irregular. Estas linhas delimitam planos de cor no formato de

236
Gillo Dorfles, Nuovi riti, nuovi miti, p. 25.
237
Aqui, vou na contramão da assimilação que Heidegger faz do termo techné, no seu significado
originário, ao termo poiesis «Outrora, não apenas a técnica trazia o nome de τέχνη. Outrora, chama-se
também de τέχνη o desencobrimento que levava a verdade a fulgurar em seu próprio brilho. Outrora,
chama-se também de τέχνη a pro-dução da verdade na beleza. Τέχνη designava também a ποίησις das
belas-artes» (Martin Heidegger, «A questão da técnica», Ensaios e conferências, p. 36).
238
Paul Valéry, «Primeira aula do curso de poética», Variedades, p. 194. Mais adiante, neste mesmo
texto, Valéry chama a atenção para a possível falibilidade deste processo, para o seu virtual fracasso em
não atingir o que se propunha de início: «No artista acontece realmente – é o caso mais favorável – de o
mesmo movimento interno de produção dar-lhe ao mesmo tempo e indistintamente o impulso, o objetivo
exterior imediato e os meios ou os dispositivos técnicos da ação. Geralmente estabelece-se um regime de
execução durante o qual há uma troca mais ou menos viva entre as exigências, ou conhecimentos, as
intenções, os meios, todo o mental e o instrumental, todos os elementos de ação – de uma ação cujo
excitante não está situado no mundo em que estão situados os objetivos da ação comum e,
conseqüentemente, não pode dar ensejo a uma previsão que determine a fórmula dos atos a serem
realizados para atingi-la com segurança» (Op. cit., p. 199).

82
quadrados e retângulos de tamanhos diversos. Na primeira, um grande plano quadrado
pintado de vermelho, localizado na parte superior do quadro, induz a um movimento
centrípeto da percepção: o vivo da cor atrai o olhar do espectador para o interior da tela.
Reforçam ainda mais esta impressão a disposição do pequeno quadrado negro logo
abaixo do largo quadrado vermelho e do retângulo alongado também preto e de outro,
azul escuro – todos os três situados na parte inferior do quadro –, contrastando com uma
expressiva predominância de planos retangulares verticais em branco e cinza em torno
da tela (as exceções são dois planos amarelos e um vermelho). Em Composição com
amarelo, vermelho, preto, azul e cinza, o movimento parece se dirigir para um sentido
oposto: para fora do quadro. O grande quadrado branco, posicionado quase ao centro da
tela, sugere uma irradiação centrífuga. Abaixo, um plano retangular de cor azul escuro
delimita o grande quadrado branco; à esquerda, está um retângulo preto, e à direita,
outro retângulo menor preto e um, amarelo; por fim, acima, vemos um retângulo
amarelo. Apesar de Composição com vermelho, preto, amarelo, azul e cinza ter um
formato retangular vertical, em contraste com as outras duas, que possuem formas
quadradas ou quase, a sua organização interna conforma-se à mesma lógica das outras
composições: nela, também visualizamos linhas negras de dimensões iguais que
delimitam planos de cor quadrados e retangulares, formando uma armação assimétrica.
Uma segunda série de telas poderia se constituir por Composição com vermelho,
azul, amarelo, preto e cinza (fig. 14) e Composição com azul, amarelo, preto e
vermelho (fig. 17), ambas de 1922. Nas duas, um imenso quadrado branco ocupa quase
toda a superfície do quadro, em torno do qual estão distribuídos pequenos e estreitos
planos de cor. A estrutura aqui se simplifica, organizando-se em torno do grande plano
branco. Um outro grupo poderia ainda ser composto por Quadro nº IV: Losango
piramidal com vermelho, azul, amarelo e preto (fig. 18), de 1924-1925, e Composição
em losango, com vermelho, preto, azul e amarelo (fig. 19), de 1925. Nestas, o mesmo
esquema das composições anteriormente descritas parece ter sido transposto para uma
tela em formato de losango. Nas duas composições, domina a estrutura gradeada
irregular, que, por meio de linhas pretas (desta vez, não nas mesmas dimensões),
determina planos de cor. Contudo, por ter a tela o formato de um losango, as linhas
verticais e horizontais negras não determinam planos retangulares ou quadrados (com
exceção do pequeno quadrado negro do lado esquerdo em Quadro nº IV e do quadrado

83
central em Composição em losango, com vermelho, preto, azul e amarelo), mas
triângulos e quadriláteros irregulares, como os que resultam do cruzamento das linhas
nos dois planos brancos centrais e no plano azul, à direita. Tendo em vista os outros
quadros de Mondrian, a impressão que se tem aqui é que a tela em forma de losango e a
pintura inscrita nela resultaram de um recorte de uma tela maior, cujo formato original
teria sido quadrado ou retangular. Sobre as pinturas desta época, comenta Milner:
«Mondrian não mistura suas cores ou curva suas linhas. Ele pára subitamente para
revelar a estrutura em si, o ritmo das linhas, o potencial de complexidade, a criatividade
pega no processo da ação».239 «Cada pintura», para nos valermos de mais uma
observação de Milner, «tinha com efeito sua própria narrativa, na qual as cores
primárias eram as protagonistas, com novos papéis em cada trabalho».240 No entanto,
apesar de cada pintura ser uma pintura diferente mesmo que circunscrita a uma mesma
série (conforme as delimitamos aqui), apesar de as telas apresentarem formatos
diversos, elas denunciam uma mesma armação formal e, por meio desta, um mesmo
processo de construção. Mesmo quando, nos anos posteriores, Mondrian simplificou
ainda mais sua grade, ou quando acrescentou a linha preta dupla, no início da década de
1930, ou uma série de linhas, acentuando o ritmo da composição, ainda podíamos
reconhecer uma lei similar de construção interna.
Lembremos de Composição com três linhas e azul, cinza e amarelo (fig. 20), de
1925, e de Losango com duas linhas e azul (fig. 21), de 1926. Nestas, o número de
linhas se reduz, respectivamente, a três e a duas e estas se cruzam em apenas um ponto:
na parte inferior direita em Composição com três linhas e azul, cinza e amarelo e na
parte inferior esquerda em Losango com duas linhas e azul. Os planos de cor se
transformam em triângulos: um amarelo e outro azul, na primeira delas; e um azul, na
segunda. Nesta última, ainda aparece um plano cinza, não mais dentro de um quadrado
ou de um retângulo, mas de um trapézio. Carel Blotkamp chama a atenção para o
implícito movimento diagonal que se cria a partir da interseção das duas linhas
próximas ao centro do quadro nas pinturas em forma de losango realizadas entre os anos
de 1925-1926: «as linhas são como duas lâminas de um par de tesouras que – quando
fechadas – formam uma linha que corre diagonalmente através do centro do plano do

239
John Milner, Mondrian, p. 164.
240
Idem, p. 163.

84
quadro».241 Quando se observam estas duas pinturas em forma de losango, tendo em
vista os outros trabalhos de Mondrian, tais quais os que vimos acima, fica-se com a
sensação de que as linhas se encontrarão para além dos limites do quadro e que, fora
dele, se formarão os planos retangulares e quadrados de cor. Parece que estamos diante
de um detalhe ampliado dos quadros produzidos em anos anteriores.
Nesta mesma época, Mondrian produziu Losango com quatro linhas e cinza (fig.
22), de 1926, no qual se opera uma redução ainda mais notável: nele, divisamos apenas
quatro linhas pretas, todas de dimensões diferentes, sobre um fundo totalmente branco.
Somente duas destas quatro linhas se cruzam num único ponto, na parte superior
esquerda, formando um ínfimo triângulo branco. As outras linhas pretas não se tocam,
como se fossem restos de um quadrado fracionado. Como nota Schapiro, «o todo
aparece então como uma representação podada de um objeto num espaço
tridimensional».242 Além disso, continua Schapiro, «a superfície branca da tela parece
recuar como um fundo da grade preta saliente»: «Tendemos a reforçar na percepção a
separação entre a superfície da tela e a grade, e a vermos o campo branco central,
demarcado pelas linhas pretas e pelos limites intermediários da tela, como um quadrado,
em vez de como a figura irregular que realmente é».243 E, em outro trecho, no mesmo
texto, completa:

Somos levados a imaginar um observador tão próximo do plano da grade que ele possa ver
somente um segmento incompleto de uma unidade retangular e um canto de uma segunda.
O losango que o rodeia pode ser comparado ao olho ou ao globo ocular do espectador, que
isola e enquadra um campo visual; este também consiste de elementos retilíneos, como o
objeto visto, mas com eixos contrastantes.
(...)
Mas não interessa quão intensamente resolvamos ver as barras pretas somente como marcas
pintadas separadas nesse plano limitado – completas em si mesmas, desiguais e irregulares
–, não podemos deixar de visualizar um quadrado quando as olhamos como um todo. As
linhas geométricas juntas aparecem então como partes de um objeto virtual num espaço
maior e mais profundo.244

Quatro anos depois, em Composição nº 1 (fig. 23), de 1930, cujo subtítulo


reproduz o título da tela de 1926, Losango com quatro linhas, Mondrian novamente

241
Carel Blotkamp, Mondrian: The Art of Destruction, p. 198. É interessante lembrar que Mondrian
passou a produzir esta nova série de quadros em formato de losango, a partir do ano (1925) em que
rompeu com o De Stijl por achar que, com a inserção das diagonais, Theo van Doesburg se afastara dos
princípios do grupo.
242
Meyer Schapiro, Mondrian: On the Humanity of Abstract Painting, p. 29.
243
Idem, p. 31.
244
Idem, pp. 32-33.

85
apresentou quatro linhas negras sobre uma superfície branca, dispostas de forma a
sugerir um quadrado. Desta vez, a linha horizontal da parte inferior da tela toca nas duas
linhas verticais. Porém, ressalte-se, elas não se cruzam, apenas se tocam, limitando uma
base de uma figura geométrica que poderia formar um quadrado se as linhas verticais se
encontrassem com a horizontal que se acha na parte superior do quadro. Como a pintura
de 1926, somente a imaginação do observador pode completar este quadrado além dos
limites da tela. Em Losango: Composição com quatro linhas amarelas (fig. 24), de
1933, Mondrian introduziu duas inovações: as linhas são amarelas (e não mais pretas) e
não se tocam em nenhum ponto. Novamente sobre um fundo branco, as linhas, todas de
tamanhos diversos, formam triângulos iguais nas quatro pontas do losango. O grande
centro branco parece ampliar o espaço e dá a impressão de continuidade para fora das
fronteiras do quadro. Também aqui, o espectador fica com a sensação de que as linhas
se encontrarão além da tela, concluindo a figura geométrica insinuada – neste caso, não
um quadrado, mas um retângulo.
Podemos observar, portanto, que, por mais diversos em sua aparência, os
trabalhos neoplásticos de Mondrian repetem sempre um mesmo processo de construção,
que pode ser resumido numa estrutura gradeada formada por linhas negras (somente em
alguns poucos casos, coloridas) e por planos de cor e de «não-cor». Mesmo quando a
simplificação chega a extremos, como nestas últimas composições em losango que
citamos, o mesmo processo se acha implícito tanto na sugestão de uma continuidade
desta estrutura num além-obra, quanto na impressão de a representação ser um detalhe
recortado de uma obra maior, justamente por guardar características básicas do método
mondriânico. O que vemos nos trabalhos de Mondrian realizados a partir da década de
1920 (e, em alguma proporção, até mesmo em certas séries daqueles quadros
produzidos em anos anteriores, a partir da influência do cubismo) é a reprodução
incansável de um mesmo processo. Como na música – e não é por acaso que Mondrian
se interessava por música245 –, a partir de um número limitado de elementos (linhas

245
E principalmente por jazz, no qual a técnica de variação é elemento fundamental. Na primeira cena do
seu famoso triálogo, «Realidade natural e realidade abstrata», X, personagem que representa um pintor
naturalista, comenta acerca das pinturas de Z, um pintor real-abstrato, alter ego de Mondrian: «Tenho
chamado as suas composições “sinfonias”; Eu posso ver música nelas...» (The New Art – The New Life:
The Collected Writings of Piet Mondrian, p. 83). Filiberto Menna, comentando a Composição com
amarelo, vermelho e azul (1921), faz uma aproximação entre esta e a música: «Nesta obra, de fato, a
modulação dos cinzas, escandida pelas pausas das linhas negras, recorda o desenvolvimento de um tema
musical: um tema elegíaco, modulado a partir da luz, que transpassa pacatamente de uma para outra cor e

86
pretas e planos em cores primárias), o pintor construiu uma série de variações em
composições cujos títulos reforçam ainda mais este caráter repetitivo. É justamente o
processo de constituição, em Mondrian, de composições realizadas a partir destas
variações e os aspectos decorrentes de sua formação rígida e abstrata que perfazem o
que proponho chamar de dimensão mítica.
No fim da década de 1970, Rosalind E. Krauss já propusera uma aproximação
entre o mito e a estrutura que denominou grade246 – termo que descreve perfeitamente a
forma que assumem as composições de Mondrian, às quais, entre outras, Krauss se
refere. Esta estrutura começou a surgir em princípios do século XX, primeiro na França
e, depois, na Holanda e na Rússia, e terminou por se tornar «emblemática da ambição
modernista».247 Na grade, Krauss identifica dois planos coordenados. Por um lado, por
não ser resultado de imitação, mas de um «decreto estético» que culmina em relações
puras, a grade chama a atenção para o seu lado físico, para aquilo que Krauss denomina
de «materialismo»,248 isto é, a tela, o pigmento, o grafite etc. Por outro, salienta, não era
desta maneira que os artistas a compreendiam e utilizavam. Do ponto de vista de
pintores como Mondrian e Malevitch, a grade «é uma escada para o Universal, e eles
não estão interessados no que acontece embaixo, no Concreto».249 A peculiaridade da
grade está exatamente em permitir a coexistência dos pólos físico (a matéria pictórica
pura) e metafísico (o espírito), mascarando e revelando ao mesmo tempo esta
coexistência. Assim, a grade oferece uma tentativa de solução para o que Krauss
considera o drama do artista moderno: dado o corte absoluto entre o sagrado e o secular,
ele deveria necessariamente optar entre um ou outro; hoje, no século XX, «achamos
indescritivelmente embaraçoso mencionar arte e espírito na mesma frase».250 A grade
não se decide por um ou outro, mas os concilia em sua malha.

as funde numa única tonalidade dominante, obtida sobre registros baixos da escala cromática» (Mondrian,
p. 102). Não posso deixar de lembrar que, para Lévi-Strauss, música e mito respondem a um mesmo
princípio lógico: em linhas muito gerais, ambos funcionam como «máquinas de suprimir o tempo» a
partir da repetição e da variação de certos temas produzindo reações em seus ouvintes (para mais
detalhes, ver Le cru et le cruit, pp. 22-26; L’homme nu, pp. 575-596; e Mito e signfiicado, pp. 67-77).
246
Optei por traduzir o termo inglês grid por grade, por considerá-lo mais condizente com a estrutura que
Krauss descreveu no ensaio «Grids» (The Originality of Avant-Garde and Other Modernist Myths, pp. 9-
22).
247
Rosalind E. Krauss, «Grids», op. cit., p. 9.
248
Idem, p. 10.
249
Idem, p. 10.
250
Idem, p. 10.

87
Por mascarar e revelar ao mesmo tempo, a grade se apresenta para Krauss como
um mito. Como todos os mitos, a grade lida com paradoxos e contradições (ser uma
estrutura voltada para o estritamente pictórico, isto é, para o material, e,
simultaneamente, para um além-matéria, para o absoluto), «não dissolvendo o paradoxo
ou resolvendo a contradição, mas encobrindo-os de modo que eles pareçam (mas só
pareçam) ter desaparecido».251 «O poder mítico da grade», explica Krauss, «está em que
ela nos faz capazes de pensar que estamos lidando com materialismo (ou, algumas
vezes, ciência, ou lógica) enquanto, ao mesmo tempo, nos provê uma permissão para a
crença (ou ilusão, ou ficção).»252
Cabe salientar aqui que a noção de mito adotada por Krauss depende do método
de análise estruturalista dos mitos proposto por Claude Lévi-Strauss.253 Conforme este
método, as sucessões de acontecimentos da narrativa mítica são reordenadas de modo a
formar uma organização espacial que permita a leitura da esquerda para a direita e,
simultaneamente, de cima para baixo, como numa partitura de orquestra. O que
interessa a Krauss é o motivo de os estruturalistas procederem desta forma. Eles se
valem desta organização espacial a fim de demonstrar, com suas colunas verticais e
horizontais, as artimanhas realizadas pelo mito na tentativa de encobrir as contradições
de sua narrativa. Por meio deste tipo de análise, fica evidente que a função do mito é
permitir que as contradições sejam mantidas pelo discurso. Tanto no mito, como na
grade, as contradições não se dissolvem, elas se reprimem.
Creio que podemos tomar estas considerações de Krauss como um ponto de
partida. De fato, parece-me que o modo de constituição das pinturas do artista termina
por comportar e por mesclar dois aspectos: um que se volta para a fisicalidade da
matéria, para aquilo que é estritamente pictórico, e outro (que abordarei quando falar
acerca da relação entre texto e obra em Mondrian), para um horizonte espiritual. A meu
ver, a dimensão mítica das pinturas de Mondrian começa por esta relação e pode ser
examinada em alguns outros detalhes complementares. Outros elementos colaboram
para que o processo de construção da arte madura de Mondrian possa ser analisado
analogamente ao processo de estruturação dos mitos. Lembrando rapidamente o que
expus no final da primeira parte deste estudo, a forma mítica decorre do ímpeto de

251
Idem, p. 12.
252
Idem, p. 12.
253
Ver Claude Lévi-Strauss, «A estrutura dos mitos», Antropologia estrutural, p. 237 e ss.

88
tentar apreender o mundo exterior, sistematizando-o. No afã de reordená-lo a fim de lhe
dar um sentido, esta forma termina por criar uma realidade à parte, que quer se
apresentar como superior à realidade do mundo externo. Esta realidade à parte tenta
recuperar um momento auroral, originário, anterior àquele presente,254 em outras
palavras, ela quer repetir uma verdade perdida. Assim, aparta-se do mundo exterior e,
ao proceder deste modo, acaba construindo um mundo absolutamente seu, com regras e
lógica próprias, que termina, em função disso, se fechando em si mesmo e contendo no
próprio seio suas dúvidas e suas explicações, seu princípio e seu fim.
Em Mondrian, o recurso a uma estrutura como a grade passa por aquele anseio
de começar do zero, de buscar um primordial, conforme vimos na Parte I deste estudo.
Como bem ressalta Krauss, a grade, por sua própria constituição, refuta a projeção da
fala em seu domínio por ser este puramente visual e impermeável ao desenvolvimento
no tempo (como requer a linguagem)255 e impede a intrusão de elementos provindos do
mundo exterior por ser «antinatural, antimimética, anti-real».256 Assim, induz ao
silêncio, um silêncio que aos artistas pareceu como um grau zero. No entanto, como
pudemos ver nas pinturas neoplásticas de Mondrian citadas anteriormente, esta
estrutura, que promete uma primordialidade, se revela rígida e fechada e, por isso, não
muito propícia a variações, o que determina a sua repetição incessante. Desta forma, a
realidade à parte que Mondrian parece querer construir com suas pinturas começa,
termina e sempre se atualiza no processo de repetição de um número limitado de
elementos invariáveis. A repetição se apresenta, portanto, como outro aspecto do que
chamo de dimensão mítica.
Como já notamos na primeira parte deste estudo, para Lévi-Strauss, a repetição
assume uma função própria, que é de tornar manifesta a estrutura do mito. Todas as
versões de um mito, já vimos, pertencem ao mito: o Édipo de Freud é tão relevante
quanto o de Sófocles para a análise estrutural deste mito. Parafraseando Lévi-Strauss,
poderíamos dizer que, em Mondrian, todos os quadros pertencem ao processo. Se
observarmos novamente as telas examinadas, notaremos que elas jamais são iguais. E
suas variações oscilam desde o mais diferente (Composição com amarelo, vermelho,
preto, azul e cinza em relação a Losango com duas linhas e azul) ao quase igual.

254
Ver Mircea Eliade, Aspects du mythe, p. 16 e ss.
255
Ver Rosalind E. Krauss, «The Originality of Avant-Garde», op. cit., p. 158.
256
Rosalind E. Krauss, «Grids», op. cit., p. 9.

89
Composição com vermelho, azul, amarelo, preto e cinza e Composição com azul,
amarelo, vermelho, preto e cinza (fig. 15) apresentam uma organização quase idêntica
dos elementos básicos (planos de cor e linhas pretas), porém com pequeníssimas
diferenças. A maior diferença, mas talvez não a mais evidente, está na margem direita.
Em Composição com vermelho, azul, amarelo, preto e cinza, ela se divide em dois
planos alongados: branco na parte superior e azul na parte inferior. Na outra
composição, trata-se de um só plano amarelo espichadíssimo. As outras diferenças estão
nas cores dos planos. Enquanto numa o retângulo da parte superior da tela é vermelho;
na outra, é azul. Enquanto naquela os dois planos inferiores se dividem em amarelo e
preto; na outra, eles são vermelho e preto. De resto, a organização interna das linhas e
dos planos das duas pinturas se repete.
Lembrando outra expressão de Lévi-Strauss, desta feita não relativa aos mitos,
mas ao totemismo, que, segundo ele, coloca em questão problemas análogos, «não são
as semelhanças, mas sim as diferenças, que se assemelham».257 Apesar de parecer estar
bastante interessado na dinâmica deste processo constante de repetição de uma mesma
estrutura, Mondrian ainda busca fixar versões do seu «mito», cada uma (levemente)
diferente da outra. Assim, o resultado da repetição nunca é o mesmo. Neste sentido, a
sua ação de repetir se coaduna com a noção de repetição que Gilles Deleuze forma a
partir da reelaboração da idéia de eterno retorno de Friedrich Nietzsche. Para Deleuze, o
eterno retorno não pode significar o retorno do idêntico, em que todas as identidades
prévias são abolidas e dissolvidas. Retornar é «a única identidade», mas «a identidade
como potência segunda, a identidade da diferença». E a repetição que dimana desta
identidade produzida pela diferença «consiste em pensar o mesmo a partir do
diferente».258 É algo semelhante que o processo de Mondrian põe a nu. Cada repetição
parece ser uma tentativa de retorno ao primordial, mas uma tentativa que não se dá do
mesmo modo. Cada uma de suas telas se revela como diferente sem deixar de partilhar
de uma estruturação comum, até porque o que passa a realmente importar – não sei se
conscientemente para Mondrian, mas deveria sê-lo para a sua crítica – não é tanto o
resultado, mas o processo que engendra este resultado.

257
Claude Lévi-Strauss, Totemismo hoje, p. 83.
258
Gilles Deleuze, Repetição e diferença, p. 83.

90
c. Auto-referencialidade
Não é só o processo de repetição incessante que faz com que certas obras se
enquadrem no que chamo de dimensão mítica. Se o processo por si só bastasse para
determinar tal dimensão, teria necessariamente de considerar, por exemplo, as célebres
reiterações da Catedral de Rouen, da Estação Saint-Lazare ou do monte de feno,
realizadas por Monet, a partir do final do século XIX. No entanto, estas não respondem
a um mesmo impulso – a preocupação de Monet era registrar diferentes luzes incidindo
sobre um mesmo objeto –, nem partilham de outras características compositivas que
permitem compará-las à estrutura do mito. No caso das séries de Monet, além de estas
não terem a pretensão de se constituírem como mundos à parte, seria mais adequado
falar de uma repetição de uma mesma figura, mas não de uma estrutura. Mesmo porque
o que se acha representado em Monet são objetos identificáveis, ao passo que, em
Mondrian, o que vemos nas telas são apenas linhas e planos de cor e de «não-cor». Em
outras palavras, as telas de Mondrian, por meio da repetição de uma estrutura moldada a
partir de elementos primários concernentes apenas à própria pintura, recusam-se em
fazer qualquer referência à natureza – e natureza entendida aqui, valendo-se das
palavras do próprio pintor, como «aquilo que vejo».259 Assim, um outro aspecto dessa
dimensão mítica da pintura de Mondrian é a sua tendência à auto-referencialidade.
A pintura de Mondrian se exime de aludir ao mundo exterior. «A arte tem que
libertar a sua expressão plástica do indeterminado (o natural), de modo a atingir a pura
expressão plástica do determinado». Assim, a pintura pode se tornar «puramente
plástica», e para se alcançar isso, «deve-se usar meios plásticos», o que «também
justifica o uso de planos retangulares coloridos», justifica Mondrian.260 Em função
disso, dessa abstenção de se referir à natureza, a pintura produz um curto-circuito no
entendimento do observador. Segundo Maurício Puls, «o quadro abstrato constitui um
enigma para o contemplador»: «o que limita a compreensão da obra abstrata é a
incapacidade em identificar o tema do quadro, o sujeito da expressão semiótica».261
Numa obra figurativa, o sentido mais elementar do que está sendo representado pode ser
apreendido se comparado com a realidade à qual diz respeito. Pode-se não compreender

259
Ver nota 7 deste capítulo.
260
Piet Mondrian, «The New Plastic in Painting», compilado por Harry Holtzman e Martin S. James, The
New Art – The New Life: The Collected Writings of Piet Mondrian, p. 74, e «Dialogue on the New
Plastic», op. cit., p. 78.
261
Maurício Puls, O significado da pintura abstrata, p. xvii.

91
a significação – que está além de uma correspondência entre significante e significado –
de determinado quadro figurativo, mas é possível reconhecer uma maçã como uma
maçã e uma mulher como uma mulher e, por vezes, até mesmo imaginar (ou recuperar,
no caso de pinturas de temas históricos ou míticos) uma narrativa a partir do que é visto.
Todavia, quando a obra não faz referência a algo externo, mas à própria arte, à própria
pintura ou, no caso específico de Mondrian, à sua própria estrutura, mesmo o sentido
mais elementar é escamoteado. Traduzindo em termos semiológicos, poderíamos dizer
que o significante, compreendido aqui como os elementos materiais da pintura, se
sobrepõe ao significado. Nas palavras de Lévi-Strauss, a pintura abstrata renuncia ao
primeiro nível de articulação do real, ou seja, àquele nível em que o artista extrai da
natureza as formas e as cores para a sua pintura.262 Nos trabalhos de Mondrian, há
linhas e planos de cor. Identificamos apenas figuras geométricas e podemos falar da
relação entre estes elementos constitutivos. Porém, não encontramos na natureza um
aporte que nos ajude a interpretá-los. Num ensaio da década de 1950, Giulio Carlo
Argan já asseverava:

Um quadro de Mondrian não representa nada: não é mais que uma superfície
acuradamente subdividida, por meio de freqüentes linhas verticais e horizontais, num certo
número de quadrados e retângulos de grandezas diversas, preenchidos de tintas aplanadas;
algumas vezes, as cores são apenas duas, aquela da linha e aquela do fundo.263

Destituída de referentes externos, a pintura passa a se referir a si própria. Como


a figura do oroboro, serpente que morde o próprio rabo, os quadros de Mondrian se
fecham em si mesmos. Como um mito, a obra constrói um mundo particular, com uma
linguagem própria, em que suas referências se acham em seu próprio interior. Enquanto
o mito se auto-referencia por constituir-se como uma realidade segunda que se distancia
da realidade do mundo exterior, o mesmo se processa nas estruturas gradeadas de
Mondrian: elas trazem em si sua própria significação, não dependendo de referentes

262
Segundo Lévi-Strauss, no primeiro nível de articulação, a pintura «encontra na natureza a sua matéria:
as cores são dadas antes de serem utilizadas e o vocabulário atesta seu caráter derivado até na designação
das nuanças mais sutis: azul-marinho, azul-pavão ou azul-petróleo; verde-água, verde-esmeralda;
amarelo-palha, amarelo-ovo; vermelho-cereja, etc. Ou seja, só há cores na pintura porque já existem seres
e objetos coloridos, e é apenas por abstração que as cores podem ser descoladas desses substratos naturais
e tratadas como termos de um sistema separado». O segundo nível de articulação, por sua vez, «consiste
na escolha e disposição das unidades e em sua interpretação em conformidade com os imperativos de uma
técnica, de um estilo e de uma maneira: isto é, transpondo-as segundo as regras de um código,
características de um artista ou de uma sociedade» (O cru e o cozido, p. 39).
263
Giulio Carlo Argan, «Mondrian», Salvezza e caduta nell’arte moderna, p. 122.

92
externos. O processo mondriânico diz respeito somente a si mesmo. Por dizer respeito
somente a si mesmo e se apresentar como refratário ao significado, a obra madura de
Mondrian termina por se articular como uma escritura cifrada, como se fosse uma
linguagem apenas permitida para iniciados. O que significa esta estrutura? Qual a
função das linhas negras e dos planos de cor? O que tudo isso quer dizer? Bernard-
Henri Lévy proporia ainda uma outra pergunta: «como, quando uma pintura não diz
nada, evitar que ela seja vazia, insignificante, fútil?».264 Puls afirma que «o objeto da
pintura abstrata é o mesmo de toda a pintura: a relação do homem com seu mundo».265
Mas qual seria a relação que Mondrian estabelece entre a sua pintura e o mundo? Ou
melhor, como Mondrian estabelece a relação entre a sua pintura e o mundo? E talvez
ainda caiba mais uma indagação: e como podemos identificar esta relação entre sua
pintura e o mundo, uma vez que sua pintura nega a representação do mundo tal qual este
se nos dá a ver?

d. Ordem
Vimos, na Parte I, que o mito, em seu ímpeto de fazer frente à realidade
exterior, se afirma, para relembrarmos alguns termos de Gusdorf, como «uma conduta
de retorno à ordem», como «um protótipo de equilíbrio do universo», como «um
formulário de reintegração» do homem à sua harmonia original perdida.266 O mito
derivaria, portanto, de um sentimento de angústia do homem em face ao mundo que o
rodeia. Em Abstraktion und Einfühlung, de 1908 (anterior, portanto, àquele que é
considerado o primeiro quadro abstrato267), Wilhelm Worringer sugere que a tendência
à abstração na arte decorre de um sentimento que podemos perceber como análogo, de
um sentimento de «uma enorme ansiedade espiritual»268 frente ao real. Situada no pólo
oposto à tendência que Worringer chama de Einfühlung (termo alemão intraduzível para
o português, cujo significado se aproxima de «empatia»), a qual se realiza na condição
de felicidade total entre o homem e os fenômenos naturais, a abstração – que se verifica

264
Bernard-Henri Lévy, op. cit., p. 109.
265
Maurício Puls, op. cit., p. xvii.
266
Georges Gusdorf, Mythe et métaphysique, p. 12.
267
Considera-se que o primeiro quadro seja uma aquarela de Wassily Kandinsky, datada de 1910 e hoje
no acervo do Museu Nacional de Arte Moderna Centro Georges Pompidou, em Paris.
268
Wilhelm Worringer, Abstraction et Einfülung, p. 52.

93
nas origens da arte, em alguma produção dos povos ditos «primitivos» e em certa arte
do Oriente – «é a conseqüência de uma profunda perturbação interior do homem,
causada pelos fenômenos do mundo exterior».269
Em Mondrian, talvez seja possível constatar um sentimento similar. Recordemos
que o artista começou a depurar seu trabalho, a partir da descoberta do cubismo, e a se
encaminhar cada vez mais em direção à abstração durante os anos que precederam e,
depois, naqueles em que se deu a Primeira Guerra Mundial, e que a chegada a um estilo
maduro ocorreu entre as duas grandes guerras. Mondrian notara, e seus escritos dão
provas disso, de que não era mais possível produzir arte nos moldes tradicionais nos
dias conturbados em que vivia. Segundo Herbert Read, Mondrian «se apercebeu de que
o conceito tradicional de artista (...) não era mais válido numa época de fissão
nuclear».270 A arte figurativa não lhe parecia mais capaz de fazer frente à realidade
exterior, a essa realidade fragmentada e aparentemente inapreensível. Assim, conforme
observa Alain Bonfand, Mondrian «submete os motivos do mundo (aquilo que no
mundo é movimento) à sua grade, à dialética vertical/horizontal».271 A sua idéia não era
repetir a realidade,272 mas produzir uma nova, uma realidade capaz de afrontar a terrível
realidade exterior. «Ultimamente», defende o alter ego do artista, o pintor real-abstrato
Z, no seu triálogo «Realidade natural e realidade abstrata», «o artista não precisa mais
de um ponto de partida particular na natureza a fim de obter uma imagem da beleza»:
«Em pintura, é sempre o ritmo da cor e da linha que nos faz experimentar a
realidade».273 No artigo de 1920, intitulado «Neoplasticismo: o princípio geral da
equivalência plástica», afirmava ainda que a característica essencial da pintura
neoplástica é ser «uma composição de planos de cor retangulares que expressam a mais

269
Wilhelm Worringer, op. cit., p. 52.
270
Herbert Read, Icon and Idea, p. 133.
271
Alain Bonfand, Arte abstrata, p. 31.
272
Cabe ressaltar que Mondrian utiliza o termo repetição num sentido bem diverso de como o
compreendo neste livro. Para ele, a noção de repetição combina as noções de cópia (da natureza) e de
replicação desta cópia. Reproduzir a partir da natureza, segundo ele, pode levar a ver a vida e a arte como
uma constante recorrência da mesma coisa, como uma contínua repetição – e isto impede o
desenvolvimento (ver «The New Plastic in Painting», compilado por Harry Holtzman e Martin S. James,
op. cit., p. 47, e «Natural Reality and Abstract Reality: A Trialogue (While Strolling from the Country to
the City», op. cit., p. 114). Malevitch, o artista que estudaremos no capítulo seguinte, utiliza repetição
num sentido similar ao usado por Mondrian em seu «Do cubismo e do futurismo ao suprematismo: o
novo realismo pictórico» (ver Kasimir Malevitch, Écrits, p. 180)
273
Piet Mondrian, «Natural Reality and Abstract Reality: A Trialogue (While Strolling from the Country
to the City», compilado por Harry Holtzman e Martin S. James, op. cit., pp. 108 e 87 respectivamente.

94
profunda realidade».274 Com a pintura neoplástica, acreditava, o homem poderia criar
uma nova beleza e não mais descrever aquela que via na natureza.275 «Na nossa
sociedade desequilibrada, com seu ambiente antiquado, tudo nos leva a procurar por
aquele equilíbrio puro que engendra a joie de vivre», escrevia Mondrian.276 E como
encontrar essa alegria de viver? Worringer dizia que a possibilidade de bondade que o
homem procuraria na arte,

não consistiria em mergulhar nas coisas exteriores para encontrar a sua fruição, mas ao
contrário em arrancar a coisa singular do mundo exterior de sua arbitrariedade e de sua
contingência aparente, em lhe fazer eterna ao aproximá-la de formas abstratas e, assim, em
obter um ponto de paragem no seio da fuga das aparências. Sua tendência mais forte está,
por assim dizer, em arrancar o objeto do mundo exterior do contexto da natureza, do jogo
de alternância sem fim do ser, de o purificar de tudo o que existe em si de dependência no
que tange à vida, quer dizer, contingência, de lhe fazer necessário e imutável, de o
aproximar de seu valor absoluto.277

O comentário de Worringer poderia perfeitamente dizer respeito a Mondrian.


Para o artista, a melhor maneira de suplantar a angústia face à realidade e de buscar a
harmonia e o equilíbrio perdidos era se afastando progressivamente da representação da
natureza: «Não há outra possibilidade para uma verdadeira renascença em pintura do
que por meio da abstração da cor e da forma natural».278 Mondrian acreditava que a
abstração poderia ser a verdadeira face da realidade, e que não só a arte, mas a própria
vida estava cada vez mais se encaminhando rumo a esta abstração. Para Bernard-Henri
Lévy, «não a negação, mas a extenuação do mundo» foi o que conduziu o artista à
abstração.279 Foi da seguinte forma que Mondrian iniciou o primeiro de seus artigos
sobre arte, escrito em 1917 e publicado na revista De Stijl:

A vida do homem moderno culto está gradualmente se desviando do natural: a


vida está se tornando mais e mais abstrata.
Conforme o natural (o exterior) se torna mais e mais «automático», vemos o
interesse vital fixado mais e mais no interior. A vida do homem verdadeiramente moderno
não está dirigida nem para o material pelo material, nem para o predominantemente
emocional: antes, toma a forma da vida autônoma do espírito humano tornando-se
consciente.

274
Piet Mondrian, «Neo-Plasticism: The General Principle of Plastic Equivalence», idem, p. 137.
275
Ver Piet Mondrian, «Neo-Plasticism: The General Principle of Plastic Equivalence», idem, p. 147.
276
Piet Mondrian, «Purely Abstract Art», idem, p. 200.
277
Wilhelm Worringer, op. cit., p. 53.
278
Piet Mondrian, «The Evolution of Humanity Is the Evolution of Art», idem, p. 194.
279
Bernard-Henri Lévy, op. cit., p. 56.

95
O homem moderno – ainda que uma união de corpo, alma e mente – manifesta
uma consciência mudada: todas as expressões da vida assumem uma aparência diferente,
uma aparência mais determinada e abstrata.280

A estrutura gradeada de Mondrian poderia, pois, ser entendida como um


instrumento de ordenação do real. Lembremos que, concomitante ao desenvolvimento
de seu neoplasticismo, logo após a Primeira Guerra Mundial, estava em voga, na
Europa, um forte movimento de retorno à ordem. Como uma espécie de reação à
barbárie e à desumanidade da guerra, muitos artistas – como Picasso – retomaram, em
suas obras, formas de representação mais «clássicas». E, não por acaso, assistiu-se
simultaneamente a um renascimento de temas e personagens da mitologia greco-romana
nos mais diversos gêneros artísticos – e poderíamos citar como exemplos, além de
Picasso, Jean Cocteau, André Gide, James Joyce, Paul Valéry, Giorgio de Chirico, Igor
Stranvinsky, entre outros. No entanto, a meu ver, o ímpeto de Mondrian – e de outros
artistas, como Malevitch, tal qual veremos no capítulo seguinte – em busca de uma
ordem não poderia, ou não deveria, ser compreendido dentro desta tendência. E
Mondrian manifestou tanto em cartas quanto no último texto que publicou na revista De
Stijl a sua repulsa a este movimento de retorno à ordem, o qual via como um «retorno ao
naturalismo»:

Qualquer um familiarizado com o vigoroso movimento de renovação em pintura e escultura


em Paris antes da guerra ficará duplamente ofendido – se tiver alguma simpatia em relação
ao novo – com a atual estagnação e retraimento. A ação de romper com o velho e preparar o
novo tem diminuído, exceto entre alguns remanescentes.281

Parece-me que havia na época duas vertentes paralelas, operando ao mesmo


tempo, movidas por impulsos diversamente orientados de ordenação, o que resultaria
em abordagens completamente diferentes do mito – e, de uma certa forma, Richard
Ellmann e Charles Feidelson Jr., na seção dedicada ao mito do volumoso The Modern
280
Piet Mondrian, «The New Plastic in Painting», op cit., p. 28.
281
Piet Mondrian, «Blown by the Wind», idem, p. 180. Para Van Doesburg, em carta não-datada, mas
escrita provavelmente entre junho e julho de 1922, Mondrian relatou uma visita que fez à galeria de
Léonce Rosenberg, marchand que vinha adquirindo e expondo os trabalhos do artista por aquela época,
quando tomou conhecimento da preferência pelo naturalismo por parte dos compradores: «Hoje pus meu
bom terno e fui ver Rosenberg... ele estava bastante amigável. Ele me contou que os compradores agora
tendem a querer naturalismo, mas ele espera que a situação melhore dentro de um ano». Nesta mesma
carta, Mondrian chegava a desculpar Rosenberg: «Ele parece ainda favorecer o abstrato para si mesmo, e
estar envolvido com naturalismo por razões de sobrevivência». Em outra carta, também não-datada, mas
que se cogita que tenha sido escrita em agosto de 1922, comenta ainda: «[Rosenberg] agora prevê vender
somente “clássicos”. Bom, ninguém pode culpar um negociador por isto» (cartas citadas por Harry
Holtzman e Martin S. James, op. cit., p. 180).

96
Tradition, uma compilação de textos essenciais sobre temas da modernidade,
vislumbram isso ao observar que esse «moderno retorno às formas míticas» leva a cabo
«um esforço de se reconstituir o desvalorizado ambiente natural que a ciência física tem
tendido a desacreditar», ao mesmo tempo que se consagra como uma «retomada de
posse da herança cultural».282 Por um lado, artistas como Picasso promoveram um
retorno à ordem, ou seja, eles a retomaram como arché, como algo do passado, como
uma forma já consagrada. Por outro, Mondrian – bem como Malevitch – buscava uma
ordem nova, buscava-a como outopos (utopia), como um não-lugar, no sentido de um
lugar ainda não inventado, de um lugar por existir. O primeiro movimento, portanto,
acenava para o passado; ao passo que o segundo, apontava para o futuro ou, mais
precisamente, para o presente liberto do passado. Os dois eram como a popa e a proa de
uma mesma embarcação. O primeiro, por seu mover-se em marcha-ré, recuperava o
mito ao modo antigo: recuperava-o como figuração, como motivo a ser representado.283
Já o segundo, em seu avançar sempre à frente, se concordarmos que podemos encontrar
nele uma apropriação do mito, esta não se dava nos moldes tradicionais: o mito aqui
ressurgia, tal qual propomos na primeira parte deste estudo, como princípio formal ou –
para usarmos um termo desgastado mas que vimos aplicando em referência à grade de
Mondrian – como estrutura.284 E o mito não poderia se manifestar aqui do modo como
se manifestou lá, como uma narrativa, uma vez que a base da dimensão mítica de
Mondrian está na repetição de uma estrutura abstrata, distinta e distante da natureza e
de qualquer forma de representação mimética. Nesta dimensão mítica que busco
descrever aqui como uma das formas de constituição de uma vertente da arte moderna a
partir do século XX, o mito não retorna como narrativa, isto é, como fonte de histórias e
personagens, como o tinha sido até então, mas pode ser identificado como um princípio
ordenador na própria constituição da obra de arte, em seu próprio processo artístico. Se
o artista estava totalmente consciente ou não do resultado a que chegava seu trabalho, o

282
Richard Ellmann e Charles Feidelson Jr., «Myth», The Modern Tradition, p. 617.
283
E quanto a esta retomada do mito como figuração, vista especialmente nos trabalhos de Picasso das
décadas de 20 e 30 do século passado, já a examinei longamente na dissertação de mestrado, ainda
inédita, intitulada Mitomorfose: a mitologia greco-romana na obra de Picasso.
284
Em conversa com Eduardo Sterzi, este me chamou a atenção para uma relação análoga na moderna
poesia brasileira, entre a chamada geração de 45 e seu contemporâneo João Cabral de Melo Neto. Em
ambos, percebe-se uma busca de uma ordem: na primeira, esta se dá como um retorno a formas
tradicionais da vesificação; a segunda, a de Cabral, como a criação de uma nova ordem a partir do verso
livre modernista. Não por acaso, Cabral sempre teve em Mondrian um de seus mestres.

97
fato é que o modo de ordenação de que Mondrian lança mão em suas pinturas
conforma-se ao modo de estruturação próprio do mito.

e. Texto e obra
Mondrian, como boa parte dos artistas de seu tempo, tinha uma concepção
própria de arte, quase uma filosofia. De uma certa forma, seus textos, a maior parte
deles artigos publicados em revistas de arte de sua época, fazem parte de sua obra;
podem ser vistos como uma prática paralela a suas conquistas no campo pictórico. De
um modo geral, os textos de Mondrian também servem para justificar – em seu sentido
mais fundo, de tornar justo, de legitimar – seus trabalhos. É em seus escritos que
Mondrian explicita a pretensão de, por meio da estrutura gradeada, que se manifesta
como uma realidade própria, auto-referencial e à parte da realidade exterior, atingir um
plano superior, aquele plano que Krauss denominara metafísico. Em seus textos,
encontra-se clara a aspiração em fazer da arte, mais especificamente, da sua arte uma
forma de religião.
Desde pequeno, Mondrian esteve, de um modo ou de outro, associado a alguma
religiosidade. Seu pai, diretor de uma escola cristã, era um calvinista devotado. Juntos,
desenvolveram uma série de litografias devocionais para a igreja. Quando contava 20
anos, em 1892, Mondrian foi estudar na Academia de Arte de Amsterdã, onde se juntou
a uma congregação protestante radical, a Gereformeed Kerk (Igreja reformista), para a
qual ele continuou a produzir ilustrações religiosas. Em 1909, filiou-se à Sociedade
Teosófica da Holanda, rompendo definitivamente com seu passado protestante. Por
volta deste ano, o teósofo Rudolf Steiner ministrava palestras em diversos lugares da
Holanda, incluindo Amsterdã. Em algumas das pinturas que Mondrian realizou nesta
época, principalmente numa série de representações de mulheres em tons pastel,
encontram-se realmente símbolos que remetem às doutrinas teosóficas, como triângulos,
flores, a própria posição da figura no quadro etc. No entanto, partir desta constatação
para uma leitura de seus quadros dependente exclusivamente da explicação por meio da
teosofia pode ser redutora. Creio que seja um erro acreditar, a priori, que a ligação do
artista com a religião tenha determinado uma obra de caráter necessariamente religioso,

98
principalmente no que concerne às suas pinturas neoplásticas. Ragghianti já chamava a
atenção:

Aquilo que (...) mais se prejudica, diremos pela ingenuidade estética, é como não
se perceba que vincular a obra de Mondrian a uma especialíssima condição de mente, ou
melhor, de fé, condicioná-la ao domínio de uma chave esotérica, reduz ou anula a declarada
universalidade, digamos melhor, humanidade de significado, mesmo se este significado
devesse equivaler a um problema, em vez de a uma contemplação ou a um ímpeto lírico.285

Não é preciso ser tão radical quanto o crítico italiano e recusar qualquer
investigação nesse sentido, mesmo porque o próprio nome que o artista atribuiu a sua
nova arte – neoplasticismo (beldeeing, em holandês) – é, muito provavelmente,
derivado dos escritos do teósofo e matemático Dr. M. H. J. Schoenmaekers, com quem
Mondrian passou a se relacionar em 1915. Porém, antes de aceitar uma interpretação
fácil das verticais e das horizontais da grade mondriânica amparadas na teosofia, talvez
fosse proveitoso considerar o que o próprio Mondrian pensava a respeito. Golding
lembra de uma carta que o artista teria escrito a Israel Querido em 1909, em que
recusava uma vinculação da sua obra ao oculto: «meu trabalho permanece inteiramente
fora do reino do oculto, embora eu tente alcançar o conhecimento oculto para mim
mesmo a fim de obter um maior entendimento das coisas».286 Em outra carta, desta vez
a Van Doesburg, em 1918, expressava seu desgosto com o conceito de arte
desenvolvido por Schoenmakers em palestra proferida naquele ano: «É como se a arte
não fosse mais a dos sentimentos individuais – como se a emoção não tivesse nada a ver
com isso, mesmo se não tivesse um pensamento artístico envolvido».287
Em seus escritos, Mondrian se referiu explicitamente à teosofia somente em dois
momentos, sendo que, em ambos, distinguiu entre arte e teosofia. Na primeira
ocorrência, em seu artigo de 1917, «O neoplástico na pintura», a partir de uma citação
de Kandinsky, em nota de rodapé, pôs teosofia e arte em planos diferentes, porém
análogos: a teosofia «é uma outra expressão do mesmo movimento espiritual» que se vê
em pintura.288 Em «A realização do neoplasticismo no futuro distante e na arquitetura
hoje», de 1922, negava que a religião, em geral, e a teosofia e a antroposofia, em
particular, pudessem atingir a harmonia que tanto perseguia em sua arte:
285
Carlo Ludovico Ragghianti, op. cit., p. 271.
286
Piet Mondrian citado em Harry Holtzman e Martin S. James, op. cit., p. 14.
287
Trecho de carta reproduzido por Joop M. Joosten, op. cit., p. 113.
288
Piet Mondrian, «The New Plastic in Painting», compilado por Harry Holtzman e Martin S. James, op.
cit., p. 44n. Grifo meu.

99
O conteúdo básico da religião era transformar o natural, na prática, no entanto, a religião
sempre procurou harmonizar o homem com a natureza, isto é, com a natureza não-
transformada. Da mesma maneira, em geral, a teosofia e a antroposofia – embora elas já
conhecessem o símbolo básico da equivalência – nunca poderiam atingir a experiência da
relação equivalente, atingir a harmonia real e completamente humana.289

E, finalmente, em 1923, Mondrian deixa ainda mais explícito seu afastamento de


qualquer doutrina que seja, ao escrever, no pequeno texto «Nenhum axioma mas o
princípio plástico», uma de suas últimas contribuições à revista De Stijl: «Nós não
queremos mais construir sobre doutrinas ou mesmo sobre a lógica».290 Yve-Alain Bois
observa que «ao ler os escritos torrenciais de Blavatsky [Helena Blavatsky, uma das
fundadoras da moderna teosofia], se poderia até mesmo sustentar que o neoplasticismo
seja sintomático de uma profunda resistência, da parte de Mondrian, à teosofia e ao
simbolismo». E arremata: «Até a famosa oposição entre masculino-vertical e feminino-
horizontal, que se diz extraída por Mondrian da sua conversão à teosofia, vem
mencionada só um par de vezes em Blavatsky, quando discute o símbolo da cruz, um
símbolo de que o pintor zombará».291 Possivelmente Alberto Busignani seja quem
exprima em melhores termos a relação entre a teosofia e o neoplasticismo. Diz ele: «a
enunciação neoplástica é a teosofia pessoal de Mondrian, o seu esclarecimento dos
problemas da alma e do mundo».292 Talvez seja, portanto, mais proveitoso prestar
atenção ao que Mondrian realmente diz em seus escritos e tentar estabelecer a relação
destes com as pinturas do que tentar encontrar neles vestígios de uma adaptação de
crenças e doutrinas preexistentes.
De seus primeiros a seus últimos artigos, Mondrian defendia uma mesma
concepção de arte. Para ele, esta devia ser uma ponte para o universal, para o absoluto,
para a verdade. «Em arte, temos direta expressão plástica do universal (a plástica
equilibrada das relações), não-corporal em suas manifestações e, portanto, livre do
temporal que obscurece o eterno», escreve em «O neoplástico na pintura».293 No mesmo
texto, afirmava também que «a nova era se diferenciará da antiga pela sua percepção

289
Piet Mondrian, «The Realization of Neo-Plasticism in the Distant Future and in Architecture Today
(Architecture Understood as our Total Nonnatural Environment)», idem, p. 169.
290
Piet Mondrian, «No Axiom but the Plastic Principle», idem, p. 178.
291
Yve-Alain Bois, «Iconoclasta», no catálogo Piet Mondrian 1872-1944, p. 330. Grifo meu.
292
Alberto Busignani, Mondrian, p. 23.
293
Piet Mondrian, «The New Plastic in Painting», compilado por Harry Holtzman e Martin S. James, op.
cit., p. 49.

100
consciente, que se realizará espontaneamente por toda parte como o universal». Assim,
concluía, «se a arte manifesta claramente o universal, então ela se estabelecerá como
arte universal».294 Em «Diálogo sobre o neoplástico», de 1919, reiterava: «O universal
é o que toda arte procura expressar».295 No panfleto «Neoplasticismo», asseverava que a
arte tinha que ser «a expressão direta do universal em nós».296 Em «Arte puramente
abstrata», 1926: «A tarefa hoje, então, é criar uma expressão direta da beleza – clara e,
na medida do possível, “universal”».297 E este universal só poderia ser atingido por
meio da pureza das formas, de uma arte equilibrada, harmônica e abstraída da natureza.
«Em todas as artes, é através da composição (como oposta ao ritmo) que alguma medida
do universal é plasticamente manifestada e o individual é também mais ou menos
abolido.»298 Ou ainda: «O verdadeiro artista moderno percebe conscientemente a
abstração da emoção da beleza; ele reconhece conscientemente a emoção estética como
cósmica, universal. Esse reconhecimento consciente resulta numa plástica abstrata –
limita-o ao puramente universal».299 É por meio do universal que se conseguia chegar a
um absoluto em arte:

Embora o universal expresse a si próprio através da natureza como o absoluto, o absoluto


na natureza é plasticamente expresso somente através da cor natural escondida ou velada
pela forma. Embora o universal seja plasticamente expresso como o absoluto – na linha
pela reta, na cor pela planeza e pureza e na relação pelo equilíbrio –, ele é revelado na
natureza só como uma tendência rumo ao absoluto – uma tendência rumo à reta, ao plano,
ao puro, ao equilibrado: através da tensão da forma (linha), planeza, intensidade, pureza da
cor natural e da harmonia natural.300

Com um certo acento hegeliano – e Mondrian tomou conhecimento das teorias


de Hegel por meio de Rudolf Steiner, de G. J. O. J. Bolland (que cita nominalmente em
seu primeiro artigo) e do seu contato com os membros do De Stijl –,301 o artista
compreendia a arte «como uma das manifestações da verdade» por meio da busca pelo
universal: «A verdade, que é manifestada subjetivamente na arte, é universal».302 No

294
Idem, p. 61.
295
Piet Mondrian, «Dialogue on the New Plastic», compilado por Harry Holtzman e Martin S. James, op.
cit., p. 78.
296
Piet Mondrian, «Neo-Plasticism: The General Principle of Plastic Equivalence», idem, p. 134.
297
Piet Mondrian, «Purely Abstract Art», idem, p. 199.
298
Piet Mondrian, «The New Plastic in Painting», idem, p. 39.
299
Idem, p. 28.
300
Idem, pp. 31-32.
301
Ver Yve-Alain Bois, «Iconoclasta», op. cit., p. 340, e John Golding, op. cit., p. 37.
302
Piet Mondrian, «The New Plastic in Painting», compilado por Harry Holtzman e Martin S. James, op.
cit., pp. 44 e 51 respectivamente.

101
triálogo, Z é categórico: «Ver plasticamente é perceber conscientemente, ou mais
precisamente, ver profundamente. É distinguir, é ver a verdade».303 Em termos bastante
hegelianos, afirmava: «O neoplástico não quer mais o plástico trágico mas a plástica
expressão da beleza – da beleza como verdade».304 No entanto, para Hegel, as noções
de verdade, de absoluto e de belo achavam-se associadas a uma idéia de Deus ou de
divino. Recordemos que, segundo ele, na religião cristã, Deus foi revelado como
verdade e como espírito. E a arte é o terceiro estágio – os outros dois são a religião e a
filosofia – para se atingir o espírito absoluto; isto é, em termos muitos gerais, o espírito
que, consciente de sua condição finita e limitada, intenta e consegue superá-la,
atingindo, desta forma, a infinitude, o que o eleva a um patamar superior, onde se situa a
verdade e a universalidade – uma noção muito próxima à de Deus. Portanto, conforme a
concepção hegeliana da arte, esta proporcionaria sempre uma transcendência e estaria
relacionada a uma teologia.
Em Mondrian, a situação se complica um tanto. Para este, a arte substituiu a
religião e humanizou Deus: «hoje, a imagem de Deus não mais se situa fora do
homem»,305 mas neste – e esta é uma das poucas menções que o artista faz a Deus em
seus escritos. Num pequeno texto, extraído de um caderno de notas do artista por Harry
Holtzman e escrito em inglês, provavelmente entre 1938 e 1940, Mondrian primeiro
questionava: «Nestes tempos de predominante materialismo, homens de boa vontade e
pensamento puro estão perguntando a si mesmos se a humanidade não precisa de uma
nova religião». Depois, pontificava:

A nova religião sem igrejas é a velha religião livre de toda opressão.


A nova arte é a velha arte livre de toda opressão.
Edifícios modernos que evocam o sentido de beleza substituem as igrejas.
Neste sentido, arte se torna religião.
A nova religião é a fé na vida.306

De uma certa forma, a nova plasticidade quer se estabelecer como uma nova
forma de religião. Para Michel Seuphor, «a religião encontra um refúgio na arte, a qual
se livra de sua aparência e se torna plástica pura ou pura imagem do absoluto, será ela

303
Piet Mondrian, «Natural Reality and Abstract Reality: A Trialogue (While Strolling from the Country
to the City», compilado por Harry Holtzman e Martin S. James, op. cit., p. 97.
304
Piet Mondrian, «Neo-Plasticism: The General Principle of Plastic Equivalence», idem, pp. 146-147.
305
Piet Mondrian, «The New Plastic in Paiting», idem, p. 61.
306
Piet Mondrian, «A New Religion», idem, p. 318.

102
mesma idêntica a toda religião».307 Contudo, o neoplasticismo se manifesta como uma
teologia sem theos, uma religião sem Deus. Por isso, falamos de uma dimensão mítica e
não de uma dimensão religiosa ou sagrada. O mito não precisa de deuses, ele existe com
ou sem eles, e não depende necessariamente de uma forma de religião. Mas, por outro
lado, o neoplasticismo quer-se diferenciar do que é ordinário, em outro termo, do que é
profano. Marc Le Bot, num pequeno artigo em que trata do ressurgimento da imagem
religiosa na arte contemporânea, dentro do entendimento mais amplo do pensamento
sagrado como sendo um traço da modernidade (como aquilo que há de secreto e
enigmático no real), observa que arte e religião pensam o mesmo pensamento e chega à
conclusão de que «a arte é um pensamento irreligioso do sagrado».308 Sua afirmação
não poderia ser mais verdadeira se pensarmos no neoplasticismo de Mondrian. Em
Mondrian, os termos «absoluto», «universal», «verdade» expressam uma vontade de
atingir uma transcendência, de fazer com que sua arte ultrapasse o plano físico e se
diferencie do profano. No entanto, se há uma transcendência em Mondrian, esta é vazia.
E aqui tomamos emprestada uma expressão de Hugo Friedrich, cujo comentário sobre a
poesia de Baudelaire poderia ser estendido a Mondrian: «A meta da ascensão não só
está distante, como vazia, uma idealidade sem conteúdo. Esta é um simples pólo de
tensão, hiperbolicamente ambicionado, mas jamais atingido».309 Para Décio Pignatari, a
resposta de Mondrian à transcendência proposta por Hegel é um mergulho:

Mondrian é o mais hegeliano de todos os artistas, mas não o é segundo uma determinação
passiva, de sua causa e efeito. Ao contrário, radicalizando as idéias de Hegel, acaba por
negá-lo em suas obras plásticas. Frente às afirmações de Hegel, de que «a arte tem em si os
seus limites e deve, por isso, ceder lugar a formas de consciência mais elevadas», e de que
«todos os povos que atingem um avançado estádio de civilização chegam, em geral, a um
momento em que a arte alcança uma coisa que a ultrapassa», Mondrian vai aceitar o desafio
da ciência, da filosofia e da religião, incorporando as propostas destas às suas propostas
artísticas, para concluir que a superação e a negação da arte não desaguam nas formas
superiores prescritas por Hegel, mas em mergulho, nas próprias raízes da arte e do
pensamento icônico, para, através de uma não-arte, apontar para uma nova arte.310

307
Michel Seuphor, Piet Mondrian: sa vie, son oeuvre, p. 58.
308
Marc Le Bot, «L’art et le sacré», Colóquio-Artes, 100 (mar. 1994), p. 38.
309
Hugo Friedrich, Estrutura da lírica moderna, p. 48.
310
Décio Pignatari, Semiótica da arte e da arquitetura, pp. 53-54

103
f. Retorno à «figuração»
Acredito que tenha ficado claro que, em Mondrian, a busca de uma
transcendência – que não existe de fato porque vazia – está associada a um
distanciamento da realidade e a uma imersão no estritamente pictórico, o que dá forma à
auto-referencialidade da pintura (e o que perfaz a dimensão mítica). Sem amparo na
realidade ou na transcendência, resta à pintura voltar-se para si própria. Hugo Friedrich
chama de «dialética da modernidade» o movimento em que, a partir do instante em que
a realidade é vivenciada «na sua insuficiência frente à transcendência – mesmo se vazia
–, a paixão pela transcendência torna-se uma destruição cega da realidade. Esta
realidade destruída constitui agora o sinal caótico da insuficiência do real em geral,
como também da inacessibilidade do “desconhecido”».311 Em Mondrian, como vimos,
esta «destruição cega da realidade» se traduz na abstração das formas.
Contudo, essa arte totalmente abstraída da natureza talvez lhe tenha parecido
demasiado falha, demasiado imperfeita ou insuficiente para fazer frente à realidade. Na
precisa observação de Pignatari, «essa negação da arte enquanto realismo face à
natureza, de uma arte entendida como realismo do espírito, será por sua vez negada,
numa síntese que Mondrian vai tentar realizar “à beira do abismo”, precisamente nas
telas finais de sua vida, a última das quais inacabada».312 De fato, em seus últimos anos,
Mondrian voltou-se para uma forma muito singular de mimese ou «figuração». A
primeira transformação nesse sentido se verifica nos títulos: os quadros deixam de se
chamar abstratamente só Composição ou Quadro ou Losango para se referirem
deliberadamente a lugares – com exceção de seu inacabado Victory Boogie-Woogie,
uma tela em forma de losango que concebeu pensando não num lugar, mas num evento:
a vitória dos aliados, a que não assistiu, na Segunda Guerra Mundial.313 Composição:
Place de La Concorde (1938-1943) e Trafalgar Square (1939-1943) talvez sejam os
primeiros trabalhos de Mondrian, depois da criação de seu neoplasticismo, que trazem
no título uma referência a algo de concreto. Ao lado desta inovação, o pintor apresentou
outras: além de pequenos blocos de cor sem contorno negro, dispôs pequenas linhas em

311
Hugo Friedrich, op. cit., p. 76.
312
Décio Pignatari, op. cit., p. 55.
313
Ver Hans L. C. Jaffé, Piet Mondrian, p. 126. Comenta Jaffé: «A Victory Boogie-Woogie de Mondrian
me parece ser não o reflexo de algo oticamente percebido, mas a pintura de um sentimento pela vida, de
um estilo de vida: a alegre expectativa, a esperança certa da vitória contra a tirania, o mau governo e a
glorificação pessoal – uma vitória que Mondrian vinha esperando desde 1917».

104
azul, vermelho e amarelo ao lado das tradicionais pretas. Para Pignatari, as pinturas
desta nova série se voltam para uma natureza particular, uma natureza criada pelo
próprio homem: a cidade:

Mondrian pintou as pinturas murais das cavernas da Primeira Revolução Industrial, de


natureza mecânica («Paleolítico»), anunciando, ao mesmo tempo, as pinturas murais das
cavernas da Segunda Revolução Industrial, de natureza eletro-eletrônica («Neolítico»),
nisto que, negando a natureza «natural», não criada pelo homem, veio a negar a negação de
sua obra mais marcadamente neoplasticista, para criar, da Composição Londres (1940-42)
em diante, o ícone-diagrama de uma natureza artificial, criada pelo homem e que se chama
«cidade». Um estranho, surpreendente e extraordinário «abstracionismo figurativo», que
assinala o fim daquilo que pode ser entendido por «pintura». Trata-se, em verdade, de um
figurativismo estrutural – o signo modelar das cidades possíveis. Mondrian foi o primeiro a
caligrafar – ou a «datilografar» – em escrita geométrica, a visão aérea e planetária da
cidade, coisa que muito se viu depois dele, geométrica e «informalmente».314

Blotkamp poderia concordar com Pignatari quanto à relação entre a cidade e o


neoplasticismo, porém discordaria que estas novas telas possuam um laivo que seja de
figurativismo, ao afirmar que:

é claro que este uso renovado de títulos referenciais em suas pinturas de Nova York não
sinaliza um afastamento da abstração. É mais como se isso tivesse sido projetado como uma
expressão do vínculo entre o neoplasticismo e a cultura da metrópole, em particular de
Nova York. Como tal, esses trabalhos são um tributo à cidade que lhe garantiu a liberdade
de desenvolver e expandir sua arte e sua teoria.315

Já em seu primeiro escrito, de 1917, Mondrian dizia que «a vida social e cultural
encontra a sua mais completa expressão exterior na metrópole». Em nota de rodapé a
esta afirmação, o pintor ainda redundava, o que poderia ser uma glosa a Pignatari: «O
verdadeiro artista moderno vê a metrópole como uma vida abstrata tomando forma: é
mais próxima dele do que a natureza e será mais fácil despertar emoção estética nele.
Porque na metrópole a natureza é já enrijecida, ordenada pelo espírito humano».316
No entanto, embora pareça que esta tendência tenha mostrado suas primeiras
manifestações ainda em Londres (apesar de a data dupla destas telas indicar uma
finalização posterior, quando, talvez, Mondrian tenha lhes dado os títulos), não é
qualquer cidade que poderia, para usar um termo da antiga teoria da arte, inspirar estas
telas. Se estas pinturas realmente celebram a associação do neoplasticismo com a

314
Décio Pignatari, op. cit., pp. 80-81.
315
Carel Blotkamp, op. cit., p. 226.
316
Piet Mondrian, «The New Plastic in Painting», compilado por Harry Holtzman e Martin S. James, op.
cit., p. 59.

105
cidade, Blotkamp fez muito bem em salientar que esta cidade seria, em particular, Nova
York. Não poderia ser outra. Do alto do Empire State, que já existia na época, Mondrian
poderia ter visto a «reprodução» na planta da cidade da mesma lógica subjacente a um
quadro seu: o cruzamento incessante de verticais e horizontais. Não é por acaso que,
depois de sua mudança para esta cidade, em 1940, aos 68 anos, a tendência em direção a
uma «abstração figurativa» – para nos valermos da expressão de Pignatari – se acirrou.
Hans Locher não tem dúvidas: «A intensidade do amarelo, do vermelho e do azul e a
fragmentação dos campos e das linhas indubitavelmente reflete aspectos da vida
dinâmica de Nova York».317 As luzes da cidade talvez tenham induzido Mondrian a
abandonar, progressivamente, a sua já tradicional linha preta. Primeiro, o artista
acrescentou linhas coloridas na sua grade de linhas negras, como em New York (1941),
no qual três longas linhas vermelhas (duas horizontais e uma vertical) cruzam cinco
longas linhas negras (três horizontais e duas verticais). No mesmo ano, no inacabado
New York City 1, Mondrian compôs uma grade inteiramente constituída de linhas
coloridas vermelhas, azuis e amarelas. O mesmo procedimento repetiu em New York
City (1942). Era o fim do preto em suas composições. Yve-Alain Bois atenta para outro
aspecto que indica um movimento em direção à «abstração figurativa»: segundo ele, o
neoplasticismo de Mondrian nasceu de duas negações, da profundidade (oposição entre
figura e fundo) e da replicação do dado natural, e, em New York City, ele retorna a estes
dois recursos formais.318 Muito antes de Yve-Alain Bois, Clement Greenberg já dizia
que a planeza era uma ilusão e que os traços feitos na tela «por um artista como
Mondrian é ainda uma espécie de ilusão que sugere uma espécie de terceira
dimensão».319
Em 1943, Mondrian trabalhou em seus últimos quadros: Broadway Boogie-
Woogie e Victory Boogie-Woogie. Em ambos, acentuou ainda mais a sensação de uma
profundidade de campo. Comenta Nancy J. Troy:

Embora Mondrian tenha incluído retângulos mais largos de cor em Broadway


Boogie-Woogie, a natureza desses planos é diferente da de qualquer uma que ele tenha
realizado previamente, mesmo nos quadros feitos com fitas como New York – New York
City. Em Broadway Boogie-Woogie, os blocos de cor não são limitados por linhas e muitos

317
Hans Locher, Piet Mondrian, p. 79.
318
Yve-Alain Bois, «“New York City 1”, 1942, de Piet Mondrian», Cahiers du Musée National d’Art
Moderne, 15 (1985), p. 61.
319
Clement Greenberg, «Modernist Painting», The Collected Essays and Criticism: Modernism with a
Vengeance, 1957-1969, p. 90.

106
deles contêm um plano de cor contrastante dentro de seus limites. Isso introduz um efeito
espacial alternativo de ida e vinda que contribui mais ainda para os ritmos sincopados pelos
quais a pintura foi nomeada.320

Em Broadway Boogie-Woogie, as linhas são amarelas e interrompidas por pequenos


blocos de cor. Outros blocos maiores de cor acham-se entremeados na grade formada
pelo conjunto de linhas amarelas, sendo que boa parte destes blocos maiores coloridos
são sobrepostos por outros blocos menores e igualmente em cor – disso resulta um
ritmo sincopado que parece mimetizar o ritmo da dança citada no título. No inacabado
Victory Boogie-Woogie, em formato de losango, o pintor repetiu a inserção de blocos
menores contidos em blocos maiores de cor entre as linhas. Entretanto, as linhas aqui,
ao contrário de suas telas anteriores, são formadas por pequenos blocos coloridos
dispostos um ao lado do outro.
O que talvez tenha impulsionado a produção destas últimas «abstrações
figurativas» de Mondrian foi, por um lado, uma súbita vontade de representar a cidade,
aquela natureza já trabalhada pelo homem, em função de esta se revelar a seus olhos de
modo tão similar a tudo o que vinha produzindo. Por outro, por talvez notar que a
abstração pura poderia ter se mostrado falha na tentativa de fazer frente à realidade, uma
vez que, em seu distanciamento da realidade e, portanto, fechada em si mesma, acabou
por só fazer referência a si própria.

g. Para além da dimensão mítica


Creio que vale destacar, neste final de capítulo, que, no momento mesmo em que
amadureceu suas pesquisas formais e definiu o que chamaria de neoplasticismo, entre os
anos de 1919 e 1920, Mondrian começou a transformar também o seu estúdio num
ambiente que parecia diretamente extraído de um quadro neoplástico – prática que
manteria até o final de sua vida, em todos os estúdios por onde passou. Pelas fotografias
que foram tiradas de seus diferentes apartamentos, podemos ver afixados nas paredes
cartões de papel nas cores primárias e também móveis e cadeiras pintados em vermelho,
azul, branco e amarelo. Em carta a Theo van Doesburg, de dezembro de 1919,

320
Nancy J. Troy, op. cit., p. 15.

107
Mondrian explicou como havia expandido a sua experimentação pictórica para seu
estúdio (fig. 26):

Eu não podia pintar na parede, então tive que me limitar a pendurar alguns cartões pintados.
Mas vi claramente agora que é absolutamente possível neoplasticismo na sala,
simplesmente isto. É claro, tive de pintar também a mobília. Não me arrependi de meus
esforços; teve um bom efeito no meu trabalho.321

Nesta mesma carta, Mondrian também comentava que, a partir de suas experiências no
próprio estúdio da rua Coulmiers, em Paris,322 já sabia como encerraria o seu «triálogo»,
texto que vinha publicando em partes na revista De Stijl. As conversas finais deste texto
se passam no estúdio do personagem Z (como já vimos, alter ego do artista), que
explica a Y, um leigo, por que escolheu organizar o espaço daquela forma:

Y. (...) Você disse que a própria estrutura do espaço contribui para a sua cromoplástica?
Z. Até certo ponto, sim. O sótão, a lareira que se projeta e o pequeno armário já provêm
uma divisão do espaço interior e de seus planos. Estes planos estão articulados
arquiteturalmente pela ampla clarabóia no teto, pela janela do estúdio na parede da frente,
dividida em ogivas, e estas novamente divididas em pequenas facetas, pela porta e pelo
sótão na parede dos fundos, pela lareira e pela janela, de um lado, e pelo armário na outra
parede. Sobre esta divisão estrutural estava baseada a articulação das paredes, a disposição
da mobília e da aparelhagem doméstica, e assim por diante.
Y. Sim, eu vejo como todas estas coisas ajudam a articular o ambiente, e também o fazem
as cortinas marfim que estão agora abertas.
Z. As cortinas formam um plano retangular que divide a parede ao redor da janela. Para
continuar a divisão, eu acrescentei aqueles planos vermelhos, cinza e brancos na parede.
Mesmo a estante branca com a caixa cinza e o jarro cilíndrico branco também contribuem
para isto.323

Harry Holtzman, herdeiro do artista e autor da última foto do estúdio de Nova


York, tirada logo após a morte de Mondrian, descreve este derradeiro estúdio do artista,
no qual ele morou de setembro de 1943 até sua morte, em fevereiro de 1944 (fig. 27):

A única pintura exposta no estúdio era Victory Boogie-Woogie, no seu cavalete (...).
Os Trabalhos de Parede 1943-44 eram compostos com cartões retangulares vermelhos,
amarelos, azuis, cinza e brancos, afixados nas paredes brancas com pequenos pregos. A
escrivaninha para seu quarto de dormir e de estudo era construída de segmentos de caixotes
pintados, o banco, de uma caixa de maçã. O tamborete e as prateleiras para suas pinturas,
livros e papéis eram feitos de dois caixotes de laranja amarrados com tiras horizontais. A
mesa de trabalho para sua cozinha, um espaço que ele não viveu o bastante para
desenvolvê-lo plasticamente, era construída a partir de telas, e os pés eram parte de uma

321
Carta datada de 4 de dezembro de 1919, citada por Joop M. Joosten, op. cit., p. 116.
322
Os estúdios de Mondrian que ficaram mais famosos foram o do número 26 da Rue du Départ, em
Paris, no qual ele morou em sua primeira e em sua segunda estada na capital francesa, e seu último, em
Nova York, no número 15 da 59th Street.
323
Piet Mondrian, «Natural Reality and Abstract Reality: A Trialogue (While Strolling from the Country
to the City)», compilado por Harry Holtzman e Martin S. James, op. cit., pp. 111-112.

108
cadeira espreguiçadeira, e parte de uma caixa empacotada. Estes objets trouvés, estes
elementos «readymade», se conformavam utilmente à sua concepção plástica.324

Em pouco tempo, onde os montasse, os estúdios de Mondrian se tornavam


famosos e, embora não os considerasse obras à parte, o artista deixava que os
fotografassem e os visitassem. Golding conta que estranhos, em sua maioria
estrangeiros, batiam à porta de Mondrian e pediam para dar uma olhada.325 Em 1920,
um jornalista, um correspondente não-identificado do jornal Het Vaderland, lembra a
sensação que experimentou, quando foi entrevistar o pintor, de contraste entre a
harmonia no interior do estúdio de Mondrian em contraposição à desarmonia do mundo
exterior: «No interior, o aspecto opressivo da modernidade foi domesticado, a ordem
substituiu o caos, enquanto a simplicidade das formas e das cores, e de suas relações,
engendra uma atmosfera de paz apolínea».326 Holtzman garante que estes ambientes
foram «influências vitais» para gerações de artistas e arquitetos. Diz ele que Alexander
Calder falava do efeito que uma visita ao estúdio de Mondrian, em Paris, teve para a
criação de seus móbiles e que Willem de Kooning, que viu apenas o último estúdio de
Nova York, comentou que estar lá era «como andar dentro de uma pintura de
Mondrian».327 O mesmo Holtzman, depois da morte do artista, abriu as portas do
estúdio deste para visitação pública, durante seis meses. Além disso, preservou os
cartões coloridos, os quais expôs em 1983 no Museu de Arte Moderna de Nova York, e
realizou uma série de fotos documentais e um filme em 16mm.
Esta transformação do estúdio, isto é, do lugar onde o artista morava e
trabalhava, numa extensão de sua obra pictórica – apesar de não considerá-la uma obra
em si – parece-nos indicar uma passagem para algo além dos limites do quadro, para
além disto que venho denominando dimensão mítica. Notamos neste gesto de Mondrian
uma preocupação com o espaço e uma tentativa de produzir uma interferência real da
arte na própria vida – e muitos escritos de Mondrian, como os de seus companheiros do
De Stijl, deixam explícita esta intenção. Creio que podemos observar nesta preocupação
com o ambiente, com a espacialização, uma centelha daquilo que proponho chamar
dimensão ritual – talvez não seja por acaso que mais de um crítico e biógrafo de

324
Harry Holtzman, «Piet Mondrian: The Man and his Work», The New Art – The New Life: The
Collected Writings of Piet Mondrian, p. 5.
325
John Golding, op. cit., p. 31.
326
Citado por Herbert Henkels, Piet Mondrian: de la figuration à l’abstraction, p. 80.
327
Harry Holtzman, op. cit., p. 4.

109
Mondrian tenha se referido ao estúdio deste como um «santuário»328 – e que veremos
mais detida e nitidamente na parte seguinte, quando examinarei a Merzbau, de
Schwitters, e o La Mariée mise à nu par ses célibataires, même, de Duchamp. E aqui
poderia aproveitar para fazer uma distinção entre a dimensão mítica e a dimensão ritual.
A primeira, como podemos depreender do que estudamos até este ponto, se circunscreve
aos limites estritos da obra, isto é, a seus limites espaciais. Ela pode ser verificada onde
ainda se preservam os suportes tradicionais; no caso de Mondrian e Malevitch, o
quadro. Na dimensão ritual, por sua vez, estabelece-se uma relação entre o objeto (já é
difícil aqui falar em «obra») e o espaço em torno; há uma interação entre estes. No
entanto, cabe ressaltar que estas duas categorias não se contrapõem uma à outra: penso
na dimensão ritual como complementar em relação à dimensão mítica: aquela engloba
esta e lhe acrescenta alguns elementos a mais, que decorrem de uma nova relação que o
artista estabelece com a sua obra e que esta, por sua vez, estabelece com o espaço
circundante.
Voltando a Mondrian, outro indício de uma possível passagem da dimensão
mítica para a dimensão ritual poderia ser detectado na própria disposição de suas
pinturas nas exposições, uma preocupação que se verifica também em Malevitch. Uma
fotografia tirada por Van Doesburg na exposição do Círculo Holandês de Pintura, de
1917, mostra como Mondrian escolheu exibir três de suas telas do período em forma de
um tríptico. No centro, achava-se a maior delas: Composição com linhas. De cada um
de seus lados, pôs as telas irmãs, Composição em cor A e Composição em cor B. Assim,
as pinturas deixavam de existir por si só e passavam a se relacionar umas com as outras.
Blotkamp intuía esta necessidade de expansão ao observar que

As pinturas de Mondrian dos últimos anos da década de 20 têm uma presença mais forte do
que as anteriores. As imagens algo introvertidas tornaram-se objetos que, sem demandar
imperiosamente uma atenção a sua presença material, não obstante formam uma força
radiante com o ambiente, sua radiância se dirige para além, para o observador, mas também
para todos os lados da parede em que está pendurada. Não tem sido fácil para os colegas ter
seus trabalhos colocados próximos aos dele nas paredes freqüentemente cheias de uma sala
de exibição. Uma pintura de Mondrian demandava espaço, e criava aquele espaço à sua
volta, não importando o que estava pendurado a seu lado.329

328
Ver Jean Leymarie, na apresentação do catálogo Mondrian, de 1969, p. 11. No mesmo catálogo, p. 18,
Michel Seuphor também se refere ao estúdio da Rue du Départ como «atelier sanctuaire». E Bernard-
Henri Lévy, Piet Mondrian, p. 131.
329
Carel Blotkamp, op. cit., pp. 206-207.

110
Lembremos ainda, para concluir, que algumas pinturas de Mondrian, como Losango
com duas linhas e azul e Losango com quatro linhas, sugerem um encontro dos
elementos que as constituem fora dos limites do quadro. Diz muito certeiramente Alain
Besançon: «Se a pintura de Mondrian, expandindo-se além dos limites do cavalete,
invadiu nossas ruas e nossas cidades, é porque, com seus meios deliberadamente
“minimalistas”, ele atingiu, como bem imaginava, alguma estrutura essencial de nosso
estado presente».330

330
Alain Besançon, A imagem proibida, p. 606.

111
F ig . 1: OGFEDCBA
m ar F ig . 2 : O c e a n o 1

F ig . 3 : O c e a n o 2 F ig . 4: O ceano 3

F ig . 5 : O c e a n o 4 F ig . 6 : O c e a n o 5

F ig . 7 : P íe r e oceano 1

F ig . 9 : P ie r e oceano 4

112
F ig . 1 0 : GFEDCBA
C o m p o s iç ã o n° 3 F ig . 11: C o m p o s i ç ã o A

c o m p la n o s de cor

F ig . 1 2 : C o m p o s iç ã o com la r g o F ig . 1 3 : C o m p o s iç ã o com
p la n o v e r m e lh o , a m a r e lo , a z u l, a m a r e lo , v e r m e lh o , p r e to ,
c in z a e p r e to a z u l e c in z a

F ig . 1 4 : C o m p o s iç ã o com v e r m e lh o , F ig . 1 5 : C o m p o s iç ã o com a z u l,
a z u l, a m a r e lo , p r e to e c in z a a m a r e lo , v e r m e lh o , p r e to e c in z a

F ig . 1 6 : C o m p o s iç ã o com F ig . 1 7 : C o m p o s iç ã o com a z u l,

v e r m e lh o , p r e to , a m a r e lo , a m a r e lo , p r e to e v e r m e lh o

a z u l e c in z a

113
J>
'7
F i g o 1 8 : GFEDCBA
Q u a d ro n " IV L osango F ig o 1 9 : C o m p o s iç ã o e m lo s a n g o ,
p ir a m id a l com v e r m e lh o , a z u l, com v e r m e lh o , p r e to , a z u l e a m a r e lo
a m a r e lo e p r e to

/
/

F ig o 2 0 : C o m p o s iç ã o com tr ê s lin h a s F ig o 21: L osango


/ com duas
e a z u l, c in z a e a m a r e lo lin h a s e azul

I
F ig o 2 2 : L o s a n g o com q u a tr o F ig o 2 3 : C o m p o s iç ã o n" 1
lin h a s e c in z a

F ig o 2 4 : L o s a n g o : C o m p o s iç ã o
com q u a tr o lin h a s a m a r e la s

114
F ig . 2 5 : e s tú d io em A m s te rd ã , em 1908

F ig . 2 6 : e s tú d io e m P a ris , em 1926

I
I I •
I

F ig . 2 7 : e s tú d io em N ova Y o rk , e m 1943

115
3 KASIMIR MALEVITCH

a. Rumo a um método
Como Mondrian, Kasimir Malevitch encontrou no cubismo de Braque e de
Picasso a revelação de uma nova forma. Como Mondrian, a sua interpretação das
conquistas empreendidas pelo cubismo foi bastante pessoal. No entanto, ao contrário de
Mondrian, Malevitch não teve oportunidade de viajar a Paris.331 Sua única viagem ao
exterior foi realizada somente em 1927 à Polônia e à Alemanha, onde permaneceu por
cerca de dois meses. Seu conhecimento da arte que estava sendo produzida na Europa e,
em especial, na França, se deveu a visitas às exposições que eram organizadas na Rússia
e às coleções particulares. A partir de 1908, pôde ver os fauvistas franceses e o Grande
nu, de Braque (primeira obra cubista a ser exibida na Rússia), nas mostras promovidas
pela revista O Tosão de Ouro. A primeira destas exposições, realizada entre abril e maio
de 1908, incluiu desde trabalhos de conterrâneos russos – como Natalia Goncharova e
seu companheiro Mikhail Larionov – até artistas franceses – como Bonnard, Braque,
Cézanne, Derain, Gauguin, Gleizes, Le Fauconnier, Matisse, Metzinger, Redon, Signac
e Vuillard. Por esta época, também era possível se informar sobre o que estava sendo
produzido no Ocidente a partir de reproduções e artigos em revistas sobre arte moderna
publicadas na Rússia. Afora isso, talvez o contato mais importante com a produção
francesa tenha se dado nas freqüentes idas às coleções particulares, em especial, a de
três ricos marchands moscovitas: Sergei Chtchukin e os irmãos Ivan e Mikhail
Morosov. Foram eles que puseram os artistas russos a par do impressionismo, ao
adquirir no Salão dos Independentes e no Salão de Outono, ambos de Paris, por volta de
1904, obras de Degas, Manet, Monet, Fantin-Latour, Pissaro, Renoir e também de Van
Gogh, Rousseau e Derain. Conforme os salões e as mais vanguardistas galerias
francesas revelavam novos estilos e nomes, os três marchands atualizavam suas
coleções. Assim, com o passar dos anos, foram montando um acervo excepcional com o
que havia de mais revolucionário na Europa. Só para se ter uma idéia, Chtchukin tinha
em suas paredes duas das mais conhecidas telas de Matisse, A música e A dança. Por

331
Embora Giovanni Caradente fale de uma «provável viagem» de Malevitch a Paris, em 1912 («Casimir
Malevic e il “suprematismo”», Arte antica e moderna, 6 (1959), p. 173), e John Golding diga que acredita
que o artista tenha estado em Paris («Malevich and the Ascent into Ether», Path to the Absolute, p. 233n),
não há nada que comprove tal viagem.

116
volta de 1908 e 1909, ao lado de Matisse, podiam-se apreciar trabalhos de Cézanne,
Picasso, Braque, Gauguin, entre outros. Graças a esses colecionadores, os museus de
Moscou e São Petersburgo possuem hoje um arsenal de obras de inegável riqueza.332 E
o mais fabuloso é que tanto Chtchukin quanto Morosov se compraziam em abrir as
portas de suas casas para que os jovens artistas russos pudessem estudar os quadros.
Depois de tomar conhecimento do que estava sendo produzido na Europa,
Malevitch mudou substancialmente sua pintura: o artista assimilou o que viu e começou
a produzir telas de inspiração pós-impressionista, primitivista e cézanniana. Porém,
como bem observa Dora Vallier, «este homem não tinha nascido para imitar os
outros»,333 e, nos anos seguintes, a partir de experiências motivadas pelo cubismo,
Malevitch começaria a perseguir um estilo próprio, ao qual chegaria em pouquíssimo
tempo – ao contrário de Mondrian, que demorou anos aprimorando e testando formas.
Em 1912, no mesmo ano em que Mondrian conheceu e começou a se interessar pelas
pesquisas formais de Braque e Picasso, percebem-se traços de influência cubista nas
representações de camponeses de Malevitch. Nestas, a anterior experimentação com
cores fortes – a qual sugere que o pintor tivesse estudado Gauguin, os nabis e os fauves
–, que marcava quadros como No Boulevard (1911), é substituída por uma mistura de
tons «metálicos», com detalhes em amarelo, laranja e verde, sustentados por estruturas
tubulares ao modo de Léger, como em Lenhador e Camponesa com baldes, ambas de
1912.334 Nestas, notamos o uso particular que Malevitch fez das experiências cubistas.
Tal qual Mondrian, Malevitch não se interessou em explorar a representação de objetos
e figuras humanas a partir de diferentes pontos de vista, como o fez Picasso. Mas, e
desta vez seguindo um caminho totalmente oposto ao de Mondrian, o qual, como
estudamos no capítulo anterior, viu no cubismo a possibilidade de explorar o aspecto
planiforme da superfície da tela, Malevitch extraiu das mesmas fontes um resultado
contrário: em seus quadros deste ano, ressaltou o caráter escultórico das construções
cubistas. Golding faz notar que, enquanto Mondrian «respondeu à transparência e à
qualidade cristalina do cubismo analítico de Picasso, Malevitch respondeu às suas
propriedades físicas, escultóricas; a imagem de Malevitch parece ter sido moldada a

332
Ver Linda S. Boersma, 0,10: La dernière exposition futuriste, p. 14.
333
Dora Vallier, A arte abstrata, pp. 111-112.
334
Optei por apresentar aqui as traduções dos títulos originais e as datas dos trabalhos de Malevitch em
conformidade com o que foi estabelecido recentemente por Andrei Nakov em Kazimir Malewicz:
catalogue raisonné.

117
partir de folhas de metal, curvadas e torcidas por um punho forte».335 A este caráter
escultórico, entre o final de 1912 e, principalmente, em 1913, Malevitch acrescentou o
movimento, em resposta a sua recente descoberta dos trabalhos dos futuristas italianos
Umberto Boccioni e Gino Severini,336 em obras que denominou de cubo-futuristas,
como O afiador (1912-1913).
No entanto, foi em 1913, inspirado formalmente pelo cubismo sintético337 e
teoricamente pelas idéias dos futuristas russos (os quais não devem ser confundidos com
os futuristas italianos), que Malevitch ensaiou os primeiros passos a caminho da
abstração. Foi naquele ano que o artista se aliou ao grupo de pintores e poetas de David
Burliuk, Krutchonik e Khlebnikov. Estes dois últimos haviam publicado, um ano antes,
com Maiakovsky, o manifesto «Bofetada no gosto público». Através dos poetas,
Malevitch compartilhou das experiências relativas ao zaum, poesia que propunha uma
noção do artista como profeta e a prática de uma língua transmental e arbitrária,
despojada por completo de significados. Disto, derivou o que ficou conhecido como
alogismo. Estas experiências formais foram transpostas por Malevitch do universo da
linguagem verbal para o da linguagem visual, uma transposição, em boa parte, auxiliada
pelas inovações formais introduzidas pelo cubismo sintético. Segundo uma composição
alógica, à construção cubo-futurista da pintura se somam objetos com os quais se
estabelecem relações absurdas – como no surrealismo –, numa versão radical da
colagem cubista. Para Golding, a originalidade que Malevitch fez derivar do cubismo
não se deveu a um proficiente aprendizado, mas justamente a seu oposto, a uma «total
falta de compreensão das intenções e da gramática do cubismo sintético», e foi ainda
esta má compreensão que «o habilitou a produzir resultados tão surpreendentes e
originais».338 Retrato aperfeiçoado de Ivan Vassilevitch Kliun talvez seja o primeiro
quadro organizado segundo o denominado «realismo transmental».339 Vaca e violino

335
John Golding, «Malevich and the Ascent into Ether», Paths to the Absolute, p. 56.
336
Ver Charlotte Douglas, Malevich, p. 72.
337
Em 1913, Sergei Chtchukin comprou 35 telas de Picasso, entre as quais figuravam Violino,
instrumento musical e Violino e janela (ver Charlotte Douglas, op. cit., p. 10, e W. Sherwin Simmons,
«Kasimir Malevich’s “Black Square”: The Transformed Self – Part One: Cubism and the Illusionistic
Portrait», Arts Magazine, LIII, 2 (oct. 1978), p. 116.
338
John Golding, op. cit., p. 58.
339
Ver Jean-Claude Marcadé, «K. S. Malévitch, du “Quadrilatère noir” (1913) au “Blanc sur blanc”
(1917). De l’éclipse des objets à la libération de l’espace», Cahier I: Recueil d’essais sur l’oeuvre et la
pensée de K. S.Malévitch, p. 112.

118
(1913-1914)340 e Um inglês em Moscou (1914) são melhores exemplos de composições
alógicas ou transmentais. Na primeira, a imagem de uma vaca é sobreposta à imagem de
um violino, a qual, por sua vez, sobrepõe-se a um espaço decomposto em diferentes
planos de cores, criando uma relação arbitrária entre seus elementos. No verso deste
quadro, lê-se a seguinte inscrição: «justaposição alógica de duas formas, vaca e violino,
enquanto momento de luta com a lógica do natural, do sentido e dos preconceitos
pequeno-burgueses».341 Numa litografia sobre o mesmo tema, finalizada em 1919, mas
cujo motivo retrocede aos anos de 1913-1914, Malevitch explicitou mais a sua luta pela
libertação de preconceitos e de velhas formas no texto que acompanha a imagem: «A
lógica tem sempre erigido barreiras contra os novos movimentos subconscientes. Para
se libertar dos preconceitos, foi criado o movimento do alogismo. O desenho acima
representa um momento de luta: a justaposição de duas formas – uma vaca e um violino
numa construção cubista».342 Um inglês em Moscou segue um modo de disposição
formal de elementos muito parecido ao de Vaca e violino. Naquele, várias figuras se
sobrepõem umas às outras: vemos uma espada, que cruza o quadro de lado a lado, na
horizontal, dividindo-o em duas metades, sobre uma vela, que, por seu turno, está sobre
um peixe, que tapa parte do rosto de um homem. Identificam-se ainda uma grande
colher vermelha na parte superior do quadro, uma igreja, uma escada, uma seta, uma
tesoura e uma série de palavras. Em cima da tesoura, está escrito skakovoe obshchestvo
(sociedade galopante), o que parece fazer eco à crítica à pequeno-burguesia inscrita no
verso de Vaca e violino. No alto, lê-se zatmenie (eclipse) e, abaixo, chastichnoe
(parcial). Para Charlotte Douglas, estas duas palavras fazem referência ao rosto
parcialmente coberto pelo peixe.343 Veremos mais adiante como estas mesmas palavras
podem estar em relação com trabalhos posteriores de Malevitch, incluindo o Quadrado
negro.
Cabe salientar que, nos quadros citados, Malevitch não lançou mão da colagem
propriamente dita, ou seja, ele não chegou a proceder como Picasso apondo à tela
pedaços de tecido ou de papel, mas poderíamos dizer que a disposição (ou talvez fosse

340
Andrei Nakov observa que provavelmente a obra tenha sido concebida em 1913, durante ou
imediatamente depois de seu trabalho para os cenários e os figurinos da ópera Vitória sobre o sol, porém,
por razões materiais, deve-se situar sua realização em 1914 (Kazimir Malewicz: catalogue raisonné, p.
154).
341
Kasimir Malevitch citado por Andrei Nakov, op. cit., p. 154.
342
Idem, p. 154.
343
Charlotte Douglas, op. cit., p. 82.

119
melhor falar em sobreposição?) das figuras e dos planos de cor do quadro se vale do
resultado formal alcançado pela colagem, porém utilizando-se sempre da tinta como
matéria-prima. É interessante ainda observar como alguns críticos encontraram
semelhanças formais entre estas obras cubo-futuristas e transmentais de Malevitch e as
que seriam produzidas anos depois pelos artistas do dadaísmo. Camila Gray sugere que
se poderia supor que Um inglês em Moscou, composição que resulta de uma aglutinação
de elementos sem qualquer identificação lógica entre eles, fosse uma «peça prematura
do Dadá».344 Susan Compton não titubeia em afirmar que estes trabalhos do artista
antecipam tanto o dadá quanto o surrealismo.345 Segundo Dora Vallier, «o caráter mais
notável destas obras é o fato de prefigurarem, em certos níveis, o movimento Dadá, e de
anunciarem os quadros Merz de Schwitters».346
O grande passo rumo a um método e a uma gramática totalmente próprios seria
dado neste mesmo ano de 1913 quando Malevitch preparou os figurinos e os cenários
para a ópera Vitória sobre o sol, uma associação entre ele, Matiushin, que fez a música,
Khlebnikov, que escreveu o libreto, e Krutchonik, que se encarregou do prólogo. Os
quatro haviam participado em julho daquele ano de um congresso de «poetas do
futuro», na Finlândia, e de lá saíram com um projeto para esta ópera e um manifesto, o
qual, entre outras coisas, conclamava à destruição da «clara, limpa, honesta e ressonante
língua russa», do «antiquado movimento de pensamento baseado nas leis da
causalidade» e da «elegância, frivolidade e beleza de artistas e escritores baratos, que
constantemente publicam cada vez mais novos trabalhos em palavras, livros, telas e
papel».347 Encenada em 3 e 5 (16 e 18)348 de dezembro, no Teatro Luna Park, em São
Petersburgo, a ópera dividia-se em dois atos ou movimentos. No primeiro deles,
subdividido em quatro cenas, os homens do futuro saíam à cata e capturavam o Sol,
símbolo das velhas tradições artísticas e culturais. No segundo ato, a ação se passava
numa localidade do futuro, depois do aprisionamento do inimigo Sol numa casa de
concreto, sinalizando o fim do passado. Charlotte Douglas comenta o libreto da ópera:

344
Camila Gray, The Russian Experiment in Avant-Garde, p. 155.
345
Susan Compton, «Malevich’s Suprematism: The Higher Intuition», Burlington, CXVIII, 8 (1976), p.
582.
346
Dora Vallier, op. cit., p. 112.
347
Citado por Joop M. Joosten, Kazimir Malevich: 1878-1935, p. 9.
348
Antes de 1914, a Rússia adotava calendário diferente do calendário ocidental. Em função disso,
quando for o caso, apresentarei duas datas neste capítulo: a que aparece entre parênteses corresponde ao
calendário usado no Ocidente.

120
Os personagens são personificações de qualidades em uma dimensão, do tipo daquelas
encontradas em peças morais. Seus monólogos são, em geral, completamente indiferentes
uns aos outros, sendo dirigidos primariamente à audiência, em vez de produzir ações
motivadas. A captura do Sol acontece fora do palco; a audiência testemunha apenas uma
série de vinhetas que transmitem violência ambiente e a fria irracionalidade do evento.349

Se a intenção desses artistas, ou melhor desses «homens do futuro», tal qual se


auto-intitulavam era, como sinaliza Andrei Nakov, um dos organizadores dos escritos
de Malevitch e responsável pelo seu Catalogue raisonné, romper com «a velha ordem
cultural» e descrever o que deveria ser posto em seu lugar, «uma nova concepção de
arte e vida»,350 os figurinos e os cenários projetados por Malevitch não poderiam estar
mais de acordo. Com estes, o artista parecia se encaminhar, pela primeira vez, para uma
abstração total. Os desenhos das roupas dos dezessete personagens da ópera partiam
nitidamente das figuras de camponeses de seus quadros cubo-futuristas, porém já
indicavam uma nova percepção do espaço e do volume e apontavam para uma
concepção renovada da realidade. O personagem sem rosto que aparecia estampado na
capa da antologia de poesia Árvore (Troe), realizada entre julho e agosto daquele ano,
podia ser visto como uma figura intermediária entre os camponeses cubo-futuristas e os
desenhos dos figurinos de Vitória sobre o sol: o pouco que ainda definia uma figura
humana – as curvas do corpo, as feições do rosto, as mãos e os pés – nas figuras-
«tubos» cubo-futuristas cedia lugar a constituições puramente geométricas na capa da
antologia. O mesmo ocorria nos desenhos dos costumes: todos se construíam a partir de
formas geométricas definidas. Se elas foram levadas a efeito tal qual planejadas por
Malevitch, não há como se ter certeza, uma vez que só existem duas fotos das
apresentações. Contudo, garante Douglas, «podemos supor, a partir de comentários
contemporâneos e do fato de o próprio Malevitch ter pintado o cenário, que eles [os
figurinos] eram do mesmo desenho geral dos seus esboços preparatórios».351 A roupa
projetada para o Inimigo e aquela para o Lutador do Futuro (fig. 28), por exemplo, eram
feitas basicamente a partir da combinação de triângulos de diferentes tamanhos. O traje
de Nero (fig. 28), por sua vez, combinava triângulos e uma semi-esfera. O Atleta era
composto por um misto de diferentes figuras geométricas: retângulos, quadrados,

349
Charlotte Douglas, op. cit., p. 18.
350
Andrei Nakov, «Malevich’s Transrational Trip to the “10th Land”», Kasimir Malevich, p. 17.
351
Charlotte Douglas, Swans of Other Worlds: Kazimir Malevich and the Origins of Abstraction in
Russia, p. 43.

121
trapézios, triângulos, entre outros. A impressão que estes figurinos causavam no palco
foi descrita, na época, por Livchits: «os corpos eram fragmentados pelos fachos de luz,
eles perdiam alternativamente braços, pernas, cabeças, porque, para Malevitch, eles
eram apenas corpos geométricos produzindo não apenas a decomposição em elementos,
mas também a completa desintegração do espaço pictórico».352
Contudo, a mais completa desintegração do espaço pictórico produzida por
Malevitch em seus trabalhos para esta ópera não estava em qualquer um dos figurinos,
mas nos projetos e na realização dos cenários, mais especificamente, do cenário da
primeira cena do segundo ato (fig. 28). Neste, toda a elaboração visual dos cenários
anteriores e posteriores à derrota do sol, feitos a partir da sobreposição de formas
geométricas associadas a partes de objetos reconhecíveis (como um fragmento de um
instrumento musical e a representação parcial de um sol), a letras, números, símbolos
lingüísticos, compostos de uma mescla de cubo-futurismo e realismo transmental,
reduzia-se a um simples quadrado dividido em dois triângulos, um negro e um branco.
O mesmo cenário foi repetido nas segunda e terceira cenas do segundo ato. Na quinta
cena, via-se ao fundo um puro quadrado negro pendurado em diagonal no palco.353
Douglas acredita que não se trata de um quadrado dividido em dois triângulos. Para ela,

A linha divisória entre o preto e o branco está na verdade curvada ligeiramente para baixo
de modo que ela intersecta o pequeno quadrado em sua margem mais baixa, cerca de um
décimo do comprimento ao longo da extensão total do quadrado. Assim, o quadrado interno
pode estar destinado a mostrar uma pequena porção de um sol enorme. Desde que o sol é o
motivo dominante da ópera, sua presença brumosa na primeira cena de cada ato, seu grande
volume maciço parecendo maior ainda pela sua inabilidade de conter tudo de si no nosso
campo de visão, é plausível. A visão parcial do sol nos dá uma posição relativa a ele
diferente da nossa real: uma proximidade ambígua que sugere tanto que o sol foi confinado
perto de nós na Terra, quanto que nós nos afastamos em direção ao espaço.354

Para Jean-Claude Marcadé, esta primeira aparição eclipsada do Quadrado negro


assinala «o eclipse dos objetos», porém um eclipse parcial, uma vez que este se
apresentava dividido em dois triângulos.355 Assim, como Mondrian, Malevitch se dirigia
à abstração, ao encontro de uma gramática e um método próprios, por meio do

352
Benedikt Livchits citado por Susan Compton, op. cit., p. 580.
353
Ver Evgenii Kovtun, «Kazimir Malevich: His Creative Path», Malevich, p. 155, e Joseph Kiblisky,
«Concerning the Question of the Black Square in the Opera Victory Over the Sun», Kazimir Malevich in
State Russian Museum, pp. 37-38. O Catalogue raisonné organizado por Andrei Nakov traz os desenhos
para todos os cenários do primeiro ato e apenas para a primeira e a sexta cenas do segundo ato.
354
Charlotte Douglas, Swans of Other Worlds..., p. 45.
355
Jean-Claude Marcadé, Malévitch, p. 17.

122
progressivo eclipse dos objetos, ou seja, seu caminho rumo a uma abstração, como
parece sugerir o cenário da ópera, partiu da gradual redução das formas na
representação da realidade exterior. Talvez pudéssemos pensar o eclipse do sol como
uma tentativa de eclipsar, de cobrir simbolicamente os valores do passado. O próprio
Marcadé lembra que, no ano subseqüente, em 1914, Malevitch realizaria uma
composição alógica chamada Eclipse parcial, na qual a única imagem figurativa é uma
reprodução da Mona Lisa, riscada por dois X coloridos – e lembremos que o célebre
quadro de Leonardo da Vinci havia sido roubado em 21 de agosto de 1911 e que este
roubo suscitou uma onda de elogios rasgados não só ao quadro em si, mas a todo um
modo de representação simbolizado por ele.356 Abaixo da pequena reprodução, lê-se:
«apartamento à venda». Tal qual Duchamp no readymade L.H.O.O.Q, como salientei na
primeira parte deste estudo, Malevitch, neste quadro, se apropriava de uma das imagens
emblemáticas da tradição pictórica ocidental e a ridicularizava ao oferecê-la como um
espaço à venda. O eclipse parcial provavelmente se refere, aqui, à arte do passado. A
mesma referência podia ser encontrada, de maneira mais ou menos cifrada, no citado
cenário de Vitória sobre o sol e em Um inglês em Moscou. Como já vimos, somente
aniquilando o passado parecia ser possível produzir uma arte verdadeiramente nova.
Esta surgiria nos anos seguintes com as composições suprematistas e, principalmente,
com o Quadrado negro, o qual poderíamos chamar, seguindo esta linha de pensamento,
de eclipse total da arte do Ocidente.
Com o cenário e os figurinos geométricos de Vitória sobre o sol, Malevitch
havia formado o embrião de seus futuros trabalhos suprematistas. Porém, por mais
estranho que possa parecer, quando realizou esses projetos em 1913, ele não havia se
dado conta da grande mudança que estes desenhos representavam, como atesta esse
comentário que fez em carta dirigida a Matiushin em 27 de maio de 1915:

Krutchonik me contou que você editará Vitória sobre o sol e que você gostaria de incluir
meus desenhos para o cenário. Eu lhe serei bastante grato se você incluir somente o meu

356
Na época, André Salmon escreveu um artigo no Paris Journal dizendo: «O fato é que, aos olhos do
público, mesmo dos não-educados, a Mona Lisa ocupa uma posição privilegiada que não é para ser
estimada pelos seus valores apenas. Para muitos, a Mona Lisa é o Louvre. A Mona Lisa é sempre referida
como o verdadeiro modelo de beleza; é a Mona Lisa que os garotos de segundo grau vão ver aos
domingos; é ela, também aos domingos, que é o objetivo dos jovens intelectuais das províncias, que
fazem o serviço militar em Paris; finalmente, o povo comum escolhe a Mona Lisa para dar uma espécie
de bênção a suas festas de casamento» (citado por W. Sherwin Simmons, «Kasimir Malevich’s “Black
Square”: The Transformed Self – Part One: Cubism end the Illusionistic Portrait», Arts Magazine, LIII, 2
(oct. 1978), p. 122).

123
desenho do pano de fundo no ato em que se dá a vitória. Achei na minha casa um projeto e
achei-o agora bem a propósito para ser publicado no livro. (...) Este desenho terá uma
grande importância em pintura. Este, que foi feito inconscientemente, dá atualmente frutos
extraordinários.357

Na época em que enviou esta carta a Matiushin, Malevitch estava trabalhando


em segredo numa grande série de telas que viriam a ser chamadas suprematistas e que
seriam expostas em dezembro de 1915, na mostra 0,10, subtitulada A última exposição
futurista. Cada um dos dois numerais do título enigmático parecia ter um significado
preciso – a crítica da época se enfureceu por não conseguir compreendê-lo e apenas foi
capaz de dizer que o nome estava «aritmeticamente incorreto».358 Possivelmente, o 0
(zero) inicial declarava uma vontade de começar do princípio, de deitar por terra toda a
tradição. Se esta hipótese é cabível, o título se devia a Malevitch, pois foi ele quem
escreveu a brochura, uma primeira versão do ensaio «Do cubismo ao suprematismo: o
novo realismo pictórico», que circulou durante a exposição e anunciava: «Eu me
transformei no zero das formas e fui além do 0-1».359 Afora isso, para reforçar esta
interpretação, podemos lembrar que o artista havia pensado em lançar uma revista em
1915, que se chamaria Zero. O próprio Malevitch explica: «Dado que nós temos a
intenção de reduzir tudo a zero, nós decidimos chamá-la Zero. E nós mesmos, depois,
passaremos para além do zero».360 E a hipótese mais aceita entre os estudiosos de
Malevitch é de que o 10 referia-se ao número original de participantes da exposição –
no final, foram quatorze os artistas que expuseram na mostra.361
A realização das telas para a exposição representou um tremendo salto na
carreira de Malevitch, ainda mais se considerarmos que durante todo o ano de 1914
ainda pintou seguindo os padrões formais de seus quadros anteriores a Vitória sobre o
sol e que, dois meses antes de escrever a carta a Matiushin, havia enviado para a mostra
Tramway V – Primeira exposição futurista somente obras cubo-futuristas e

357
Carta reproduzida por Jean-Claude Marcadé, Malévitch 1878-1978: Actes du Colloque international
tenu au Centre Pompidou, Musée national d’Art moderne, les 4 et 5 mai 1978, p. 181. Grifo meu.
358
Ver Evgenii Kovtun, op. cit., p. 157.
359
Kasimir Malevitch citado por Evgenii Kovtun, op. cit., p. 157.
360
Kasimir Malevitch, em carta de 29 de maio de 1915, a Mikhail Vassilevitch Matiushin, reproduzida
em Malevitch 1878-1978: Actes du Colloque international tenu au Centre George Pompidou, Musée
national d’Art moderne, p. 181.
361
Ivan Kliun, em carta a Malevitch, de junho de 1915, ao comentar os preparativos para a 0,10, fala do
número de participantes: «Nós temos que pintar muito agora. (...) e se todos nós 10 pintarmos vinte e
cinco quadros cada um, então, mesmo assim, dificilmente será ainda suficiente». Citado por Evgenii
Kovton, «Kazimir Malevich», Art Journal, XLI, 3 (1981), p. 235. Grifo meu.

124
transmentais. Velhos camaradas seus, como Puni e Kliun, se entusiasmaram com sua
nova pintura, cujos fundamentos foram expostos por Malevitch em «Do cubismo ao
suprematismo: o novo realismo pictórico». Eles viram no Quadrado negro o fim
definitivo da arte do passado: «O corpo da Arte da Pintura, a arte da natureza com
acréscimo de maquiagem, foi colocada em seu caixão e marcada com o Quadrado
negro. O ataúde está agora em exibição no novo cemitério das artes, o Museu da
Cultura Pictórica», proferiu Ivan Kliun na época.362 O público reagiu com estupor frente
a trinta e nove quadros – entre eles, o Quadrado negro, classificado no catálogo como
Quadrângulo – que se afastavam por completo de qualquer forma de figuração. E
também com revolta, como mostra este trecho do artigo do crítico de arte e pintor
Alexander Benois, publicado no jornal Retch, em janeiro de 1916:

O sr. Malevitch (e ele não está sozinho nisto, mas é um representante do seu tempo, de sua
«legião») alegra-se que tenha transformado a si mesmo no «nada» das formas (...). O sr.
Malevitch promete nos trazer o fim e a destruição, e então ele se apossa de orgulho e aspira
a uma espécie de honra divina...
(...)
Isto, então, é o «domínio sobre as formas da natureza» em direção a que, com a completa
força da lógica, encaminha não apenas a obra dos Futuristas com suas confusas desordens e
suas rupturas com as «coisas», com seus experimentos engenhosos, insensíveis e racionais,
mas também tudo da «nova cultura», com seus modos de destruição, e com seus ainda mais
terríveis modos de «restauração» mecânica, com seu «americanismo» e com seu reino do
«rústico», não no futuro, mas no aqui e agora. Um quadrado negro dentro dos limites de um
branco é não só uma piada ou um desafio, não é um episódio casual de pequena
importância numa casa no Campo de Marte; é um ato de auto-afirmação pelo princípio cujo
nome é «impertinência da desolação» que adquire orgulho através da arrogância e de um
sentido de auto-importância e pela difamação de tudo o que é amável e dócil, o que pode
levar qualquer um à morte e à destruição...363

Com alguns anos de vantagem em relação a Mondrian, Malevitch havia


encetado um processo. Quando este o pôs um pouco de lado, por volta de 1920, aquele
estava apenas começando.

362
Ivan Kliun citado por Larissa A. Zhadova, Malevich: Suprematism and Revolution in Russian Art
1910-1930, p. 43.
363
Alexander Benois, «The Last Futurist Exhibition», reproduzido por Matthew Drutt, Kazimir Malevich:
Suprematism, pp. 253-254.

125
b. Repetição
O que chamo de dimensão mítica se instaura de forma similar – mas não
totalmente igual – em Mondrian e em Malevitch. Em ambos, o achado de uma
gramática própria (em Mondrian, o neoplasticismo; em Malevitch, o suprematismo)
coincide com o desencadeamento de um processo fundamentado na repetição de uma
mesma estrutura, constituída pela variação de poucos elementos recorrentes. Em ambos,
estes elementos recorrentes são combinados entre si de modo a formar uma composição
que rejeita a representação da natureza. Mondrian encontrou a melhor expressão de suas
intenções na grade, armação construída a partir da relação entre o cruzamento de
verticais e horizontais e os planos de cor delimitados por estas. Malevitch optou por
organizar figuras geométricas pretas, brancas ou coloridas sobre a superfície plana e
alva da tela. Enquanto Mondrian exacerbou o aspecto planiforme da pintura, Malevitch
explorou a tensão entre dinamismo e estaticidade.
Embora se use o termo grade para definir as estruturas dos quadros
suprematistas de Malevitch,364 não o considero o mais adequado. Uma grade, segundo
David Summers, no recente Real Spaces, em que propõe uma revisão da história da arte
ocidental a partir da noção de espaço, se define basicamente como «um sistema de
linhas perpendiculares».365 E, em Malevitch, não encontramos um sistema do tipo. Sua
abstração toma como base a figura geométrica pura, preta ou colorida, em contraposição
ao fundo branco, sem ser formada por meio de linhas. Observemos algumas de suas
primeiras pinturas suprematistas.
Pela fotografia incansavelmente reproduzida da sala dedicada a Malevitch na
0,10 (fig. 29), podemos ter uma idéia das primeiras produções do artista sob o epíteto
suprematista. Nela, vemos vinte e uma das trinta e nove telas enviadas para a exposição,
todas elas compostas a partir de figuras geométricas. (Sobre a posição do Quadrado
negro, falarei mais para o fim deste capítulo.) Sete delas apresentavam uma figura
geométrica simples: três quadrados, um retângulo, uma cruz e dois trapézios. Ao lado
destas, achavam-se outros quadros que poderíamos dividir em dois grupos. Um primeiro
grupo seria composto por aqueles que mostravam poucas figuras em relação, como as
duas pequenas telas perdidas Terceiro estado do quadrado, em que Malevitch dispôs

364
Rosalind E. Krauss fala de grade a respeito tanto de Mondrian quanto de Malevitch (ver «Grids», The
Originality of Avant-Garde and Other Modernist Myths, p. 10).
365
David Summers, Real Spaces, p. 411.

126
dois retângulos iguais lado a lado, e Composição suprematista, arranjada a partir de dois
quadrados colocados um ao lado do outro na parte superior do quadro, sobre um
retângulo alongado que, por sua vez, se encontrava sobre um círculo. Como a fotografia
é em preto e branco, não se pode ter certeza quanto à cor destas figuras geométricas,
mas parecem ser pretas. Este grupo, e também aquele formado por telas com somente
uma figura geométrica, poderiam ser subdivididos ainda em telas que preservavam a
estaticidade da superfície plana em duas dimensões (algumas delas subtituladas por
Malevitch Massas de cor em estado de quietude) e telas que sugeriam um dinamismo.
No primeiro subgrupo, a partir da visão da foto, incluiríamos as duas pinturas acima
citadas e mais as três que representavam um quadrado centralizado sobre o fundo
branco, a da cruz e a do retângulo alongado. Para o outro subgrupo, poderíamos separar
tanto aquelas duas que exibiam apenas um trapézio – Plano não-objetivo em projeção
dinâmica e Plano não-objetivo em projeção –, quanto Composição suprematista com
volume não-objetiva, Composição 2 c e Realismo pictórico de um menino com um saco
às costas. Nestas, o que induz à idéia de movimento é a disposição enviesada da única
(Plano não-objetivo em projeção dinâmica e Plano não-objetivo em projeção), de uma
(Realismo pictórico de um menino com um saco às costas) ou de todas as figuras
geométricas representadas (Composição suprematista com volume não-objetiva e
Composição 2 c). Um segundo grupo seria constituído de telas que traziam várias
figuras geométricas combinadas e que, por seu excesso de elementos e pela disposição
usualmente oblíqua destes no espaço, davam sempre uma sensação de movimento.
Neste grupo, encontram-se as telas que aparecem na fotografia e ainda não foram
mencionadas aqui.
Somente por esta fotografia de uma parte dos quadros que enviou para a 0,10, já
é possível perceber como Malevitch, tal qual Mondrian, depois de encontrar um
método, partindo de poucos elementos-chave, repetiu ao infinito uma mesma lógica de
organização da superfície pictórica. A própria quantidade exagerada de telas (trinta e
nove) que produziu em tão pouco tempo (provavelmente durante o ano de 1915) já dá
mostras do caráter repetitivo de um processo em desenvolvimento. Suas variações se
processavam a partir de figuras geométricas sozinhas ou em relação, sendo que nunca se
cansou de reproduzir algumas destas figuras. O próprio quadrado foi realizado também
em vermelho (fig. 31) e, depois, em branco (fig. 32). Do Quadrado negro (fig. 30),

127
Malevitch fez onze versões ao longo da vida, todas seguindo o mesmo formato daquele
exposto na 0,10: quatro em óleo sobre tela (1915, 1924, 1929 e 1930 ou 1932), uma em
guache e tinta da China (1920), três litografias (duas em 1919 e uma em 1920) e três em
lápis sobre papel (1915, 1920 e 1927). E nestas onze versões não estão elencados
aqueles quadrados sobre fundo branco que se acham descentralizados, aparecendo ou no
canto ou mais para a parte superior do quadro. Produziu também várias composições
com a cruz, o círculo, o retângulo. Aliás, todas as suas figuras podem ser compreendidas
como derivações do quadrado, figura que Malevitch tomava como «o embrião de todos
os potenciais (...), o pai do cubo e da esfera» e dizia que, «em pintura, as suas
dissociações produzem uma cultura maravilhosa».366
Nos anos subseqüentes, continuou a produzir quadros que podem ser
compreendidos também como variações destes primeiros trabalhos suprematistas. O
próprio artista dividiu o suprematismo em três fases distintas, cada uma delas associada
a uma cor de quadrado: período negro, período colorido e período branco. «Na
comunidade, estes quadrados receberam uma outra significação: o quadrado negro é o
signo da economia, o vermelho, o sinal da revolução». E o que diz do branco enfatiza o
aspecto processual de sua obra: «e o branco simboliza a ação pura».367 Em todos os
períodos, trabalhou com fundo branco, reservando as cores e o preto para as figuras.
Elaborou quadros prioritariamente derivados do quadrado, do retângulo e do círculo em
composições estáticas e dinâmicas. Uma destas derivações é a cruz: sobreposição de
dois retângulos ou, como queria Malevitch, de «dois planos suprematistas em relação».
A Cruz suprematista pode ser vista em versão hierática (1920-1921, fig. 33), negra
(1915, fig. 35), branca (1920-1921, fig. 34) e mística (1920-1922, fig. 36). Pelo exame
das variações em desenho e em tela que realizou a partir do quadrado e da cruz, já se
teria uma ampla amostra de como o artista passou a se interessar pela repetição e
recombinação de certos elementos mínimos, criando um sistema e se dedicando a
reproduzir incansavelmente este sistema.
Depois da exposição de 1915, continuou a elaborar obras com uma única figura
geométrica e também variações a partir de duas ou de uma série de figuras geométricas
em relação. Começou a produzir figuras singulares, derivadas de figuras geométricas

366
Kasimir Malevitch citado por Jean-Claude Marcadé, «K. S. Malévitch, du “Quadrilatère noir” (1913)
au “Blanc sur blanc” (1917). De l’éclipse des objets à la libération de l’espace», op. cit., p. 114.
367
Kasimir Malevitch, «Introduction à l’album lithographique: Suprématime – 34 dessins», Écrits, p. 237.

128
tradicionais: distorceu o plano e fez dele uma estranha figura esférica, alongou o círculo
e o transformou numa gota. Em Supremus nº 55 (fig. 37), de 1916, sobrepôs uma série
de retângulos coloridos, a maior parte deles dispostos na diagonal, a um círculo rosa.
Como detalhe, sobre o maior dos retângulos, acrescentou uma figura negra em forma de
gota. Embora apresente esta estranha figura, a disposição geral do quadro segue o
mesmo princípio das composições dinâmicas expostas na 0,10. No mesmo ano,
produziu outras telas seguindo esta mesma lógica: sobre uma figura geométrica maior
em cor mais clara (por vezes cinza, por vezes rosa), estabeleceu relações entre figuras
geométricas de tamanhos menores – geralmente retângulos – do que o da figura central,
que forjam certo dinamismo. É este o caso, por exemplo, de Amarelo e preto (Supremus
nº 58) (fig. 38): sobre uma «esfera estendida» (é assim que Malevitch qualifica a figura
central deste quadro), relacionou uma série de retângulos, alguns quase linhas, a maioria
deles nas cores amarelo, preto e branco e alguns poucos, em verde e azul. No ano da
Revolução Russa, durante sua fase colorida, começou a se interessar pelas
possibilidades que ofereciam os tons mesclados e as variações de textura. Plano
amarelo em dissolução (1917-1918, fig. 39) resulta de um experimento deste gênero:
consiste numa composição em que o amarelo da figura geométrica central – um trapézio
– degrada-se em tons mais claros até se misturar ao fundo branco, dando a impressão de
existir um plano perpendicular que se funde na tela. Este mesmo esmaecimento pode ser
notado em alguns exemplares da série em branco sobre fundo branco, como Planos
brancos em dissolução (1918) e Construção em dissolução (1918).
Enquanto em Mondrian a redução ao que acreditava serem as formas
verdadeiras se realizava por meio da construção de uma grade de relações entre linhas
verticais e horizontais e destas com o fundo branco e com planos de cor, em Malevitch
esta redução parecia ser ainda mais enfática. O mínimo de elementos com que Mondrian
trabalhou foram duas linhas negras contra um fundo branco. Com alguns de seus
quadros, Malevitch conseguiu ser ainda mais econômico: apôs apenas um elemento –
um quadrado ou uma cruz ou um círculo ou um trapézio – contra o fundo branco. Na
série de brancos sobre brancos, como a sua própria designação indica, reduziu todos os
elementos pictóricos a uma só cor. Em quadros como Quadrado branco, Planos
brancos em dissolução e Construção em dissolução, todos de 1918, parece que a figura
geométrica se esconde atrás de uma espessa nuvem branca, que teria o efeito de mesclar

129
esta figura ao fundo, fazendo com que ambos de confundam. Com estas telas, Malevitch
chegou mais próximo do que proclamava como o «zero das formas». Por suas extremas
concisões, estas se apresentam como totalidades absolutas, cada uma manifesta-se como
um todo incapacitado de ser dividido em partes.
Nas telas suprematistas de Malevitch, como precisamente salienta Troels
Andersen: «não é a pintura nua e crua que assume significação dominante, mas um
sistema que transforma a tela num evento pictórico».368 De fato, as pinturas de
Malevitch podem ser compreendidas não só dentro de um sistema, mas a partir deste.
Como em Mondrian, o que também passa a interessar aqui não é apenas cada uma das
telas isoladas (cada uma das versões do mito em si, para nos valermos da mesma
analogia usada em relação ao neoplasticismo de Mondrian), mas igualmente o processo
que as engendra a partir da repetição de certos elementos fundamentais (no caso de
Malevitch, de figuras geométricas). Parece-me sintomático deste movimento processual
o fato de que o próprio artista tenha se referido a seu conjunto de pinturas como «o
aparelho suprematista» e que tenha observado que o suprematismo «contém a idéia da
nova máquina, quer dizer, do novo motor do organismo que funciona sem vapor, nem
essência, nem rodas».369 E notemos como, ao comparar suas telas com aparelhos,
máquinas e motores, o artista ressalta nestes justamente aquilo que os põem em
movimento, isto é, o que faz das máquinas mecanismos de produção incessante de um
mesmo produto – um funcionamento que poderia servir de metáfora a seu processo
criativo. Para Vassily Rakitine, segundo o qual «o suprematismo começa sem cessar a
construção de um sistema sempre mais novo», «Malevitch inventou, pode-se dizer, uma
espécie de motor criador eterno».370

c. Auto-referencialidade
Apesar de algumas das primeiras telas suprematistas de Malevitch portarem
títulos que diziam respeito à realidade exterior, elas – como as pinturas neoplásticas de
Mondrian – não veiculavam um conteúdo visualmente identificável. Das trinta e nove
pinturas apresentadas na 0,10, sete delas traziam títulos com referência a algo de

368
Troels Andersen, Malevich, p. 31.
369
Kasimir Malevitch, op. cit., pp. 234 e 237 respectivamente.
370
Vassily Rakitine, «L’art populaire et l’art de Malévitch», Cahier Malévitch nº 1, p. 20.

130
concreto: Realismo pictórico de um jogador de futebol, Realismo pictórico de um
menino com um saco às costas, Realismo pictórico de uma camponesa em duas
dimensões, Automóvel e mulher, Mulher, Avião e Auto-retrato em duas dimensões. Em
nenhuma destas composições, feitas inteiramente a partir de figuras geométricas em
relação, pode-se reconhecer um vestígio que seja de um avião, de um automóvel, de
uma mulher, de um jogador de futebol, de um menino. A camponesa em duas
dimensões a que o título faz referência trata-se do quadro que ficou conhecido
posteriormente como Quadrado vermelho.371
Particularmente, não creio que podemos entender os nomes destas pinturas como
constitutivos de uma espécie de «abstracionismo figurativo», tal qual parece ocorrer nos
trabalhos dos últimos anos de Mondrian. Em Malevitch, talvez estes títulos funcionem
para assinalar a passagem definitiva de obras que ainda guardavam uma relação mínima
que fosse com a realidade exterior – refiro-me aos quadros alógicos e transmentais em
que se verifica uma subversão, mas não uma anulação da natureza – para uma nova
produção, ou seja, de um realismo ainda inserido numa tradição de mimese, no sentido
aristotélico da palavra, para um realismo outro, um realismo à parte do mundo real, um
«novo realismo pictórico», para usarmos os termos do próprio Malevitch. Talvez
pudéssemos compreendê-los ainda como uma espécie de denúncia – ainda mais se
levarmos em consideração que um deles era um «auto-retrato»: ao criarem uma falsa
relação entre o que se representa na tela (figuras geométricas) e a realidade exterior
(pessoas, aviões, automóveis etc.), parecem demonstrar como podem ser arbitrárias e
vazias as relações entre o que se representa e o que é representado, em outras palavras,
como não deixa de existir um certo grau de arbitrariedade até mesmo na relação entre
uma pintura realizada conforme a natureza e a própria natureza que esta pintura
pretende expressar. Assim, estes títulos não fariam referência real à realidade exterior,
mas acabariam revertendo-a para a pintura mesma, para o que esta, com suas figuras
abstratas, coloca em jogo.
Mesmo quando os títulos fingem designar algo de «real», o suprematismo de
Malevitch, como o neoplasticismo de Mondrian, também se volta para si mesmo. Como
nas abstrações do holandês, a auto-referencialidade (essa outra propriedade da dimensão

371
Em relação especificamente a esta pintura, Evgenii Kovtun atribui o título «figurativo» a uma tentativa
de preservar uma conexão com as imagens de camponeses, trabalhadas pelo artista entre os anos de 1908
a 1912 (ver «Kazimir Malevich», Art Journal, XLI, 3 (1981), p. 240).

131
mítica) das pinturas de Malevitch decorre prioritariamente da evasão da natureza: sem
referentes externos, a pintura não tem outra saída do que aludir a si mesma. Dizia
Malevitch: «Para a nova cultura artística, as coisas se esvaeceram como fumaça, e a arte
anda rumo a um fim em si mesma, a criação, rumo à dominação das formas da
natureza».372 Tanto em Mondrian quanto em Malevitch, a fuga da natureza se faz
necessária por duas razões: somente por meio dela eles imaginam ser ainda possível
atingir um absoluto, alguma forma de transcendência, e só com a purificação das
formas, com a redução da pintura a seus elementos constitutivos, lhes parece cabível
conceber uma arte realmente nova. «Na arte, é preciso a verdade e não a sinceridade»,
proclamava Malevitch, em termos muito parecidos com os de Mondrian. «A
representação sobre a tela de coisas reais é a arte da reprodução hábil e nada mais que
isso». Num outro excerto do mesmo texto, afirmava ainda que as novas formas «não
serão a repetição das coisas vivas na vida, elas serão a coisa viva. Uma superfície plana
colorida é uma forma viva e real».373 Recordemos que ambos viviam aquele momento,
descrito na primeira parte deste estudo e do qual Malevitch, como vimos, participou
ativamente, em que os artistas de diversos movimentos encetados no início da década de
1920 promoveram o que acreditavam ser uma destruição ou um rompimento definitivo
com a arte do passado.
Para Mondrian e Malevitch, romper com a arte do passado significava negar
uma longa tradição de representação que poderíamos denominar antropomórfica e
antropocêntrica, isto é, uma representação em que, por um lado, o motivo se realizava
por meio da figura humana (cenas históricas, mitológicas, religiosas ou cotidianas) ou
em que o homem era o próprio motivo da pintura (retratos em geral) e, por outro, uma
representação em que o olhar do homem sobre a natureza determinava o que devia ser
figurado (paisagens, naturezas-mortas). Nas pinturas de Malevitch e de Mondrian, a
figura do homem, em qualquer dos sentidos que mencionei, foi abolida. Nenhum
vestígio de natureza devia ser preservado. É por esta razão que ambos fizeram ressalvas
às conquistas do futurismo e procuraram ultrapassá-las. Asseverou Malevitch:

os esforços dos futuristas em produzir uma plástica puramente pictórica fracassaram. Eles
não puderam se libertar da objetividade, o que lhes teria facilitado a tarefa. Depois de terem

372
Kasimir Malevitch, «Du cubisme et du futurisme au suprématisme: le nouveau réalisme pictural»,
Écrits, p. 180.
373
Idem, pp. 184 e 193 respectivamente.

132
mais ou menos expulsado a razão do campo do quadro, esta velha calosidade que é a prática
de todo o ver natural, eles erigiram o quadro da vida nova, o quadro das coisas e nada
mais.374

Mondrian foi mais radical, e sua ressalva incluiu uma crítica também ao cubismo e ao
dadaísmo, movimentos que antes, no mesmo artigo, elogiou por seus aspectos
destruidores: «Nós nunca podemos apreciar suficientemente a obra e a realização dos
movimentos cubista, futurista ou dadá; já que eles continuam a usar a morfoplástica,
mesmo se refinada ou estilizada, eles nunca alcançarão a nova mentalidade ou
demolirão completamente o velho».375 Malevitch justificaria: «Quando a consciência
tiver perdido o hábito de ver num quadro a representação de recantos da natureza, de
madonas e de vênus impudentes, nós veremos a obra puramente pictórica».376
O Quadrado negro talvez tenha se tornado a figura mais exemplar da busca do
artista russo pelo puramente pictórico. O próprio Malevitch, em 1927, declarou: «O
quadrado negro sobre um fundo branco foi a primeira forma usada para comunicar a
ausência de um objeto».377 Para Jean-Claude Marcadé, este quadro «revela uma nova
face, não humanista e não naturalista, ele faz do pictórico o seu meio de realização».378
O próprio Malevitch se referia a ele como a criação pura da arte:

O quadrado não é uma forma subconsciente. É a criação da razão intuitiva.


A face da arte nova!
O quadrado é um recém-nascido vivo e majestoso.
O primeiro passo da criação pura na arte.379

O verdadeiro pintor, o pintor suprematista, devia, em síntese, buscar o não-objetivo,


aquilo que dispensava o objeto, e se dirigir às formas verdadeiras, rumo à «criação
absoluta»: «As formas suprematistas, ou o novo realismo pictórico, provam que as
formas encontradas pela razão intuitiva foram constituídas a partir do nada».380

374
Idem, p.189.
375
Piet Mondrian, «Neo-Plasticism: The General Principle of Plastic Equivalence», compilado por Harry
Holtzman e Martin S. James, The New Art – The New Life: The Collected Writings of Piet Mondrian, p.
144.
376
Kasimir Malevitch, «Du cubisme et du futurisme au suprématisme: le nouveau réalisme pictural»,
Écrits, p.179.
377
Kasimir Malevitch citado por Larissa A. Zhadova, op. cit., p. 50.
378
Jean-Claude Marcadé, Malévitch, p. 135.
379
Kasimir Malevitch, op. cit., p.198.
380
Idem, p.194.

133
Porém, por serem constituídas a partir do nada, estas formas corriam o risco de
nada significarem – o que Argan dizia de Mondrian poderia muito bem ser aplicado a
Malevitch.381 Observa Zhadova:

Alguém pode olhar para uma pintura suprematista por um longo tempo, porque ela não
transmite um conteúdo plástico infinitamente desdobrado. Ela é destituída de emoção.
Alguém pode compreendê-la ou não, aceitá-la ou rejeitá-la, sentir seu impacto ou não, mas
não há nada nela que o envolva, e nenhuma profundidade para explorar.382

E, no entanto, ressalta ela, a pintura suprematista pode, por outro lado, nos levar a
refletir: «ela incita a imaginação, estimula o pensamento e até mesmo provoca a
ação».383 Mas um pensamento e uma ação que, como o quadro suprematista, se voltam
para a interrogação da pintura em si. Uma pintura desta ordem, com seu movimento de
auto-referencialidade, apresenta-se, portanto, como um enigma para o espectador; como
uma Esfinge, ela o indaga e espera dele uma resposta. E é também a aura de mistério
que deriva desta situação que colabora para constituir o que denomino dimensão mítica
e que dota estas pinturas se não de significação, pelo menos de função: forjar uma
transcendência.

d. Ordem
No capítulo anterior, mostramos como o sentimento de angústia diante do
mundo pode estar no fundamento da abstração de Mondrian e de sua busca por uma
ordem; um sentimento análogo pode ser encontrado também em Malevitch. Em
Malévitch et la Philosophie, uma substanciosa abordagem heideggeriana dos escritos de
Malevitch, Emmanuel Martineau lembra a seguinte passagem dos textos do artista,
extraída do Bauhausbuch:

Quando, em 1913, em meu esforço desesperado em libertar a arte do peso inútil da


objetividade, eu me refugiei na forma do quadrado e expus um ícone que representava
apenas um quadrado negro sobre um fundo branco, a crítica suspirou e, com ela, a
sociedade: «Tudo o que amamos pereceu: estamos num deserto... Diante de nós, um
quadrado negro sobre um fundo branco!».
(...) Mais «réplicas da realidade» – períodos de representações ideais –, nada mais que um
deserto.
Mas o deserto está repleto do espírito da sensibilidade não-objetiva, que penetra tudo.

381
Ver nota 53 do capítulo Piet Mondrian deste estudo.
382
Larrisa A. Zhadova, op. cit., p. 59.
383
Idem, p. 59.

134
Em mim também, uma espécie de reserva levada até a angústia me preenche, quando se
trata de deixar o «mundo da vontade e da representação» onde eu vivi e me criei, e a
fatuidade em que acreditei.384

Com base neste extrato, Martineau conclui que a ansiedade – na tradução alemã do
texto, a palavra é Angst – é a «tonalidade fundamental da experiência que comanda a
passagem à Abstração artística».385 Malevitch foi claro no que disse: foi uma sensação
de angústia que o fez abandonar o «mundo da representação» e substituí-lo por outro,
por um mundo alheio àquele que lhe foi dado conhecer. No lugar do mundo real, aquele
que chama de «objetivo», dever-se-ia erigir um «mundo não-objetivo», onde imperaria
um novo tipo de realismo: «o novo realismo pictórico».386 Suas novas formas
suprematistas nasciam como criaturas vivas, «realidades em si próprias mais do que
imagens da realidade».387 Para Zhadova: «As telas suprematistas de Malevitch poderiam
mais acuradamente ser descritas como “modelos vivos” da nova concepção e sentido de
espaço, como “projeções na arte” do novo entendimento do homem acerca do seu
ambiente e do mundo em que vive».388
Seguindo por esta trilha, talvez pudéssemos compreender a sua caminhada em
direção a este novo realismo como uma tentativa de fornecer uma significação para um
mundo não mais facilmente apreensível – recordemos que Malevitch inventou e
desenvolveu o suprematismo antes da Revolução Russa e durante a constituição de um
Estado comunista num país que ainda vivia sob bases feudais. Para Malevitch: «Os
instrumentos da nossa inteligência ficam estilhaçados sempre que os utilizamos para
apreender os objetos do mundo material; o que na inteligência há de mais elevado, mais
profundo, mais vasto, mais aberto, é precisamente esse estilhaçamento».389 Assim, nas
justas palavras de Vassily Rakitine, «na arte do suprematismo, a experiência do mundo
que o artista possui enquanto pessoa aparece mediatizada, como parte de um certo
sistema».390
Já é quase lugar-comum referir-se aos trabalhos suprematistas de Malevitch
como constitutivos «de uma natureza cosmológica», querendo, com isto, dizer que «eles
384
Kasimir Malevitch citado por Emmanuel Martineau, Malévitch et la philosophie, p. 200.
385
Emmanuel Martineau, op. cit., p. 199.
386
Este é o subtítulo do já citado «Do cubismo e do futurismo ao suprematismo» e a expressão com a qual
Malevitch se refere ao modo de pintura que busca atingir.
387
Charlotte Douglas, Swans of Other Worlds..., p. 59.
388
Larissa A. Zhadova, op. cit., p. 50.
389
Kasimir Malevitch citado por Dora Vallier, op. cit., p. 107.
390
Vassily Rakitine, op. cit., p. 20.

135
têm a ver com viagens interplanetárias extraterrestres num mundo futuro onde conceitos
aceitos de espaço e tempo não têm mais lugar».391 Tenho dúvida se é possível ver
qualquer espécie de «naturalismo» em suas composições abstratas ou estabelecer uma
relação entre as figuras geométricas dispostas no espaço plano da superfície da tela com
figuras soltas no espaço celeste. É certo que Malevitch nutria uma fascinação por
viagens espaciais e por aeronaves em vôo – fascinação plenamente compreensível, uma
vez que eram estas as grandes invenções da época e a menina-dos-olhos dos futuristas –
e que ainda comparou sua produção suprematista aos sputniks e afirmou que se podia
examinar e estudar as formas suprematistas «como não importa que planeta ou sistema
planetário».392 No entanto, parece-me serem estas apenas analogias. Ao sugerir que se
proceda a uma análise de sua obra suprematista de modo similar ao exame do sistema
planetário, parece-me que Malevitch diz mais sobre o seu suprematismo se instituir
como um sistema do que sobre se constituir como uma representação de planetas,
estrelas, cometas etc. Talvez alguns críticos tenham feito uma leitura muito ligeira dos
textos de Malevitch e tenham também se deixado influenciar por demais pelos títulos de
obras que se referem a aviões e a vôos. O próprio Malevitch é bastante transparente
quando afirma:

Nós somos
o plano
o sistema
a organização.393

A meu ver, se há uma natureza cosmológica na obra de Malevitch, esta está mais
próxima do sentido etimológico da palavra «cosmos»: originária do grego kósmos,
significa «ordem», «disciplina», «organização». Para Kovtun, Malevitch tinha «uma
visão do mundo como uma criação falhada e imperfeita que deveria ser refeita».394
Deste ponto de vista, o suprematismo parece originar-se de uma tentativa de corrigir a
criação divina. Malevitch «via toda a sua obra, especialmente suas pinturas produzidas
durante os períodos suprematistas e pós-suprematistas, como uma “emenda” à Criação
Bíblica», garante Kovtun. E, em outro texto, o crítico afirma ainda: «o artista começou a
391
A citação é de John Golding, op. cit., p. 67. Ver ainda Troels Andersen, Malevich, p. 30, e Evgenii
Kovtun, «Kazimir Malevich: His Creative Path», Malevich, p. 159.
392
Ver Kasimir Malevitch, «Introduction à l’album lithographique – Suprématisme – 34 dessins», Écrits,
p. 235.
393
Kasimir Malevitch, «Nous voulons...», op. cit., p. 261.
394
Evgenii Kovtun, The Avant-Garde in Russia, p. 110.

136
criar novos mundos, como um demiurgo».395 Em «O mundo enquanto não-
objetividade», Malevitch proclamava que a finalidade da pintura, como de todas as
ciências, deveria ser elucidar «a tenebrosa realidade do mundo».396 E elucidar a
realidade do mundo se traduzia na restauração de uma nova ordem, uma ordem que
proviria, como em Mondrian, não de uma recuperação de formas e imagens passadas,
mas de formas absolutamente novas. Por isso, «o suprematismo é a construção de uma
nova realidade», tendo como objetivo final «transformar o mundo na imagem do
suprematismo». Em carta aos artistas holandeses, de 12 de fevereiro de 1922, Malevitch
falava de sua intenção: «Nós queremos construir o mundo de acordo com um sistema
não-objetivo, afastando-nos mais e mais do objeto, como o cosmos da criação da
natureza».397

e. Texto e obra
Como Mondrian, Malevitch também tentou embasar sua nova arte num
fundamento teórico-«teológico». Como o colega holandês, acreditava que a nova
realidade que criava, este novo mundo não-objetivo, deveria se revelar como um mundo
verdadeiro e absoluto, ou seja, de ordem superior ao mundo externo. Como nos escritos
de Mondrian, também nos de Malevitch, a arte era apresentada – ou tinha a pretensão de
se apresentar – como uma religião de outra ordem.
Não se sabe ao certo se Malevitch acreditava ou não em alguma religião. Em sua
autobiografia, escrita em 1933, dois anos antes de sua morte, não falava de suas próprias
crenças, mas contava que seus pais não eram particularmente religiosos e que «sempre
tinham um pretexto para evitar a igreja». Relatava ainda que, nas paredes de sua casa,
havia ícones, porém «mais pela tradição e pelas convenções sociais do que por
sentimentos religiosos».398 Se Malevitch continuou a cultivar estas «convenções
sociais», é uma incógnita. Porém, podemos imaginar que não devia ser fácil para um
jovem artista, engajado nas causas revolucionárias (em 1905, pegou em armas na

395
Evgenii Kovtun, «The Beginning of Suprematism», compilado por Evgeniya Petrova, Malevich: Artist
and Theoretician, p. 105.
396
Kasimir Malevitch, «Le Monde en tant qu’inobjectivité», reproduzido em Dossier Kazimir Malevic,
Cahiers du Musée National d’Art Moderne, 3 (jan.-mar., 1980), p. 136.
397
Carta citada por Troels Andersen, Essays on Art: 1915-1933, p. 186.
398
Kasimir Malevitch, «From 1/42: Autobiographical Notes, 1923-1925», reproduzido no catálogo
Kazimir Malevich: 1878-1935, p. 169.

137
Batalha das Barricadas; durante a Primeira Guerra Mundial, produziu cartazes de
propaganda para o governo; e, em 1916, aliou-se ao Exército e foi para o front lutar pela
Revolução Russa), seguir uma religião num meio que defendia e lutaria pela adoção do
materialismo comunista. No entanto, os escritos de Malevitch exalam um certo tom
religioso.
A própria denominação que dá a suas obras já indica se não uma feição
religiosa, pelo menos uma vontade de se atingir uma transcendência. Suprematismo vem
do latim Supremus, que, freqüentemente associado à idéia de Deus, significa «aquilo
que está acima de tudo». Andrei Nakov, na introdução a uma das traduções francesas
dos escritos de Malevitch, comenta que a palavra suprematismo não existia em russo
antes de o artista a utilizar em 1915. Mas se achavam os termos supremat e supremacja,
bem como o adjetivo supremacyjny, no Dicionário da língua polonesa, publicado em
1919. Disso, conclui Nakov:

A sua conotação filosófico-religiosa e a sua utilização prática pela Igreja católica dentro da
sua jurisprudência estão muito próximas, sobre este plano, da lógica funcional do emprego
«hierárquico» que fará Malevitch, isto é o que nos permite concluir, sem grande risco de
erros, que a palavra «suprematismo» é, da parte de Malevitch, um empréstimo do
polonês.399

Como Mondrian o faria anos depois, Malevitch, com seus artigos e manifestos,
publicados a partir de 1915, se esforçou em tentar legar à sua nova produção não apenas
uma justificativa mas uma transcendência – e seria por isto que os textos assumiriam
uma postura «teológica». É sintomático que tanto Mondrian quanto Malevitch comecem
a escrever sobre o caráter de seus próprios trabalhos no momento em que descobrem um
novo método de criação e que esse novo método de criação resulte em obras auto-
referenciais. Parece-me que seus escritos decorrem de um desejo de se forjar uma
inalcançabilidade, de tencionar atingir um algo mais que, por si mesmas, tanto a pintura
suprematista quanto a neoplástica talvez não tivessem condições de lograr.
Como para Mondrian, a arte para Malevitch era uma espécie de filosofia.
Escreveu ele, em 1919, em «Suprematismo», publicado no catálogo da décima
exposição do Estado, realizada em Moscou: «É preciso construir no tempo e no espaço
um sistema que não dependa de qualquer beleza, de qualquer emoção, de qualquer

399
Andrei Nakov, na introdução aos Écrits, de Kasimir Malevitch, p. 174. A outra tradução dos escritos
de Malevitch foi organizada por Jean-Claude Marcadé e publicada em quatro volumes.

138
estado de espírito estético e que seja, de preferência, o sistema filosófico da cor onde se
acham realizados os novos progressos de nossas representações, enquanto
conhecimento». E completou: «Em seu primeiro estado, o suprematismo possui um
movimento puramente filosófico e instrutivo que passa pela cor; em seu segundo estado,
ele é a forma que pode ser aplicada, constituindo então o novo estilo de ornamento
suprematista».400 Em «Criação não-objetiva e suprematismo», reiterou: «Num de seus
estágios, o suprematismo possui, através da cor, um movimento filosófico, e num
segundo, como uma forma que pode ser aplicada, formou um novo estilo de decoração
suprematista».401 Como Mondrian, Malevitch perseguiu a arte pura, aquela, segundo
eles, capaz de conduzir, em termos hegelianos, o espírito ao absoluto. Para Alain
Besançon, «a escolha iconoclasta explica-se claramente pela idéia do divino»: «Deus
supera toda a representação» e só pode ser alcançado por meio da não-figuração.402
No vocabulário do sistema malevitchiano, o absoluto hegeliano ou o universal
mondriânico converteu-se no zero (ou no infinito): «A ciência e a arte não têm
fronteiras, porque o objeto do conhecimento é infinito e inominável, e o infinito e o
inominável se igualam a zero».403 No início deste mesmo texto, uma pequena
declaração publicada em 1923, chamada «O espelho suprematista (manifesto do
conhecimento absoluto)», o artista listou uma série de «fenômenos» e os igualou todos a
zero: em ordem, apareciam Deus, a alma, o espírito, a vida, a religião, a tecnologia, a
arte, a ciência, o intelecto, a Weltanschaung, o trabalho, o movimento, o espaço e o
tempo. Na continuação, declarava:

2. Se tudo foi criado nos caminhos do Senhor, e «esses caminhos são


impenetráveis», o Senhor e esses caminhos se igualam a zero.
3. Se o mundo foi criado pela ciência, pelo saber e pelo trabalho, e sua criação é
infinita, ele se iguala a zero.
4. Se a religião conhece Deus, ela conheceu o zero.
5. Se a ciência conhece a natureza, ela conheceu o zero.
6. Se a arte conhece a harmonia, o ritmo e a beleza, ela conheceu o zero.
7. Se qualquer um conhece o absoluto, conheceu o zero.404

400
Kasimir Malevitch, «Suprématisme», Écrits, p. 226. Grifos meus.
401
Kasimir Malevitch, «Non-Objective Creation and Suprematism», Essays on Art, p. 121. Grifo meu.
402
Alain Besançon, A imagem proibida, p. 598.
403
Kasimir Malevitch, «Le Miroir suprématiste (Manifeste de la connaissance absolue)», Écrits, p. 245.
Grifo meu.
404
Idem, p. 246.

139
Num outro artigo, aproximou novamente o zero ao infinito e defendeu que estes eram os
únicos fatos existentes: «A análise provará que as coisas não existem mas que, ao
mesmo tempo, existem seus infinitos, o “nada” e, por sua vez, “alguma coisa”».405
Segundo ele, a realidade se manifestava como o infinito: «aquilo a que damos o nome
de realidade é o infinito que não conhece nem peso, nem medida, nem tempo, nem
espaço, nem absoluto, nem relativo, que jamais foi traçado numa forma».406
A arte verdadeiramente revolucionária era concebida por Malevitch como uma
espécie de religião, mas uma religião, como em Mondrian, de todo particular, que
produzia, para nos valermos de uma expressão precisa de Vallier, um «sagrado às
avessas».407 Em «Do cubismo e do futurismo ao suprematismo: o novo realismo
pictórico», Malevitch referia-se à criação artística como uma criação divina:

Eis porque as formas da razão utilitária são superiores a qualquer representação


oferecida nos quadros.
Superiores porque vivas, porque saídas da matéria que as deu um novo aspecto para uma
vida nova.
Aqui está a Divindade que ordena aos cristais que passem a uma outra forma de
existência.
Aqui está o milagre...
Deve-se também ver milagre na criação artística.408

E, em «O mundo enquanto não-objetividade», estabeleceu uma relação muito clara


entre o sopro da criação e Deus: «O homem espiritualiza a coisa pelo processo da
criação – só é viva a coisa na qual o homem insuflou a vida (não seria isto Deus?)».409
Ao contrário de Mondrian, que quase não menciona Deus nominalmente,
Malevitch recorria seguidamente à esta figura. Num de seus primeiros manuscritos,
encontrado por W. Sherwin Simmons no Museu Stedelijk, de Amsterdã, para onde foi
boa parte das obras que Malevitch levou consigo em sua viagem à Alemanha,410
observava:

405
Kasimir Malevitch, «Dieu n’est pas déchu», Écrits, p. 380.
406
Idem, p. 381.
407
Dora Vallier, op. cit., p. 123.
408
Kasimir Malevitch, «Du cubisme et du futurisme au suprématisme: le nouveau réalisme pictural»,
Écrits, p. 192.
409
Kasimir Malevitch, «Le Monde en tant qu’inobjectivité», reproduzido em Dossier Kazimir Malevic,
Cahiers du Musée National d’Art Moderne, 3 (jan.-mar. 1980), p. 139.
410
Quando viajou à Alemanha, em 1927, levou consigo mais de cem pinturas, desenhos e diagramas. Ao
ser chamado de volta, não titubeou em deixar suas obras com dois de seus amigos: Gustav von Riesen e
Hugo Häring. Para o primeiro, confiou um pacote com a seguinte advertência: se não fosse possível voltar
à Alemanha no ano seguinte, ou se fosse morto, ou ainda se não tivessem mais notícias dele nos próximos
25 anos, Riesen poderia dispor de seus trabalhos do modo que bem entendesse. Em 1934, o pacote foi

140
Eu procuro por Deus, eu procuro por mim em mim mesmo.
Deus é onividente, onisciente e onipotente.
Uma futura perfeição da intuição como o mundo ecumênico da supra-razão.
Eu procuro por Deus, eu procuro pela minha face, eu já delineei seu perfil e me
esforcei para encarnar em mim mesmo.
E minha razão me serve como um meio rumo àquilo que é delineado pela
intuição.411

É justamente por meio da razão, de uma arte primordialmente racional que o artista
acredita poder atingir Deus, como bem salienta Besançon: «O universo, considerado
como perfeição, é Deus (...). Mas o universo, ou melhor, Deus, não pensa. Somente o
homem pensa e é pelo pensamento que vai identificar-se com o universo, a saber:
Deus».412
Depois de ter declarado que «os deuses estão mortos e não ressuscitarão
413
mais», Malevitch reavivou uma nova figura de Deus, um Deus único e próprio, que
assumia a imagem da perfeição. Para ele, «Deus, como imagem, não foi destronado».414
E, para a Sua eterna presença, buscou uma metáfora no poussah, figura que lembra um
macaquinho, comum no Extremo Oriente, a qual, se empurrada, volta à sua posição
normal, nunca sendo derrubada, como os nossos joões-balões. Ao passo que Mondrian
dizia que Deus não deveria ser procurado fora, nas coisas, mas no homem, Malevitch
investia os próprios homens, os artistas em especial, de poderes divinos e capacidades
criadoras, humanizando, assim, a divindade.
Em «Da poesia», artigo escrito em 1918, apresentava os poetas, estes «cantores
do extraterrestre», como «deuses», mas ressalte-se que deuses entre aspas: «Esses são os
homens que dirigem seu olhar para um mundo diferente, os “deuses” que atribuem a si a

escondido num porão por razões de segurança. No final da Segunda Guerra Mundial, a casa recebeu
alguns impactos, e o porão ficou soterrado pelos destroços. Oito anos depois, em 1953, iniciaram-se os
trabalhos de recuperação, e descobriu-se o pacote intacto. Nele, estavam manuscritos, livros de anotações,
desenhos e fotos do artista. As obras que foram entregues a Häring – pinturas cubo-futuristas e
suprematistas – também tiveram que ser escondidas num porão durante o nazismo. Passaram por diversos
donos, algumas foram vendidas, outras emprestadas para exposições, umas perdidas para sempre. Por
fim, voltaram para o poder de Häring. Em 1943, a escola onde trabalhava incendiou, e Häring fugiu com
os quadros de Malevitch para Berlim. Em 1957, estas obras, finalmente, encontraram um lugar para ficar:
o Museu Stedelijk, de Amsterdã, onde estão até hoje.
411
Kasimir Malevitch citado por W. Sherwin Simmons, Kasimir Malevich’s Black Square and the
Genesis of Suprematism, 1907-1915, p. 230.
412
Alain Besançon, op. cit., p. 595.
413
Kasimir Malevitch em carta a Alexander Benois, reproduzida em Écrits, p. 162.
414
Kasimir Malevitch, «Le poussah», compilado por Jean-Claude Marcadé, De Cézanne au
Suprématisme: Tous les traites parus de 1915 à 1922, p. 99.

141
posse de um universo maior e mais sobre-humano que a natureza e a terra». E
comparava a criação destes a uma «grande liturgia»:

Pode-se estar no bonde, na rua, na praça, no rio ou na montanha; lá ele assistirá à


dança de seu Deus, à sua própria dança. Ele não poderá lembrar-se deste lugar se não
houver nem tinta nem papel, porque a razão e a memória lhe farão falta no momento
desejado.
Nele começará a grande liturgia.
E também o espírito, o espírito religioso.415

No mesmo texto, comparava a nova arte a uma igreja, cuja imagem «muda a cada
segundo»: «A Igreja é o movimento; o ritmo e o tempo são os seus fundamentos». Não
se trata de uma igreja tradicional, mas de um outra forma de igreja: «A nova Igreja,
viva, corrente, substituirá a Igreja atual, transformada em depósito para as bagagens dos
caminhos da escravidão». Esta igreja se enformava pelas palavras do poeta: «Quando
brilha a chama no interior do poeta, ele se endireita, eleva os braços, flexiona o corpo e
a conduz à forma que, aos olhos do espectador, se torna a Igreja viva, nova, real».416
No famoso «Deus não foi destronado», seu mais explícito «tratado teológico»,
Malevitch retornou ao tema da igreja, desta vez associado não só à arte, mas também à
fábrica, estabelecendo três caminhos em direção a Deus.

O homem dividiu sua vida em três caminhos, os caminhos espiritual, religioso e científico,
ou a fábrica e as artes. Que estes significam? Significam a perfeição. É sobre eles que o
homem progride, ele progride como um princípio sagrado rumo à sua representatividade
final, isto é, rumo ao absoluto. Este são os três caminhos sobre os quais marcha o homem
que vai em direção a Deus. Em matéria de arte, Deus é conhecido como a beleza, pela única
razão que Deus está na beleza. A religião e a fábrica pedem à arte para as embrulhar no
manto da beleza, como se elas não acreditassem na própria perfeição. É com igual
majestade que se dirige para a arte, a religião e a fábrica. Mas, a despeito de suas relações
recíprocas, cada caminho não estima menos desempenhar o primeiro papel, ser o único
caminho a conduzir a Deus, à doutrina autônoma e ao conhecimento de Deus.417

Neste tratado, dizia ainda que a «humanidade se encaminha rumo ao pensamento


absoluto pelas suas produções».418 Se o homem conseguisse atingir este absoluto, ele
poderia afirmar com orgulho: «eu conquistei todas as perfeições, “eu sou Deus”».419
Entre a religião e a fábica, Malevitch estabelecia uma diferenciação: «A religião

415
Kasimir Malevitch, «De la poésie», Écrits, pp. 289 e 290 respectivamente.
416
Idem, pp. 291-292
417
Kasimir Malevitch, «Dieu n’est pas déchu. L’art, l’Église, la fabrique», Écrits, p. 403.
418
Idem, p. 384.
419
Idem, p. 399.

142
promove a leitura dos livros da Santa Escritura que descrevem a perfeição dos santos,
enquanto que a fábrica promove a leitura das obras científicas consagradas às
perfeições. A primeira explica pelas Santas Escrituras como atingir a perfeição religiosa
e se tornar um santo; a escola da fábrica ensina como se tornar um sábio».420 E precisou
ainda esta relação: «Pela sua religião, a Igreja visa conduzir a consciência do homem a
Deus, considerado como a perfeição. O materialismo se esforça para atingir a perfeição
na máquina, (...) uns acreditando se alimentar com Deus, os outros, com a máquina».421
E a arte, segundo Malevitch, era essencial e mostrava ao homem a beleza e «talvez algo
de mais elevado, de mais perfeito que a beleza».422 A arte possuía em si «a harmonia de
Deus».423 No fim de seu artigo, observava ainda que a fábrica pretendia refazer o mundo
e modificar não só a consciência do homem, como também seu corpo, tornando-o um
modelo perfeito:424 «Assim, a fábrica e a usina propõem conduzir o homem ao novo
reino mecânico encerrando seu corpo, bem como sua alma, numa nova vestimenta ou
transformando-o em instrumento; o homem poderá ser representado neste reino do
mesmo modo que a forma da alma é hoje representável no homem».425
No entanto, no momento em que coloca no mesmo nível a fábrica, a arte e a
igreja e, principalmente, em que compara o seu sistema artístico a uma máquina,426 a
sua «teologia» se desfaz. Por meio destas comparações, Malevitch demonstra a falta de
bases religiosas verdadeiras no fundamento de sua nova arte. Seu Deus se constitui mais
como uma figura retórica, como uma metáfora da perfeição e da inatingibilidade, como,
resumindo, uma esperança de se atingir um algo mais, uma forma de superioridade.
Porém, como salienta Besançon: «A versão religiosa pode assumir a estatura de uma
espécie de teologia mística da morte de Deus».427 Se havia em seu suprematismo uma
espécie de religião ou de teologia, esta se instituía como um tipo de parábola da
transcendência. Ao modo de Mondrian, Malevitch parecia querer, com seu sistema de
ares teológicos e com o engendramento de uma arte de dimensões míticas, alcançar

420
Idem, p. 391.
421
Idem, p. 398.
422
Idem, p. 404.
423
Idem, p. 404.
424
Idem, p. 405.
425
Idem, p. 408.
426
Ver nota 39 deste mesmo capítulo.
427
Alain Besançon, op. cit., p. 584.

143
alguma forma de transcendência. Contudo, tanto aqui como em Mondrian, esta
transcendência se revela vazia.

f. Para além da dimensão mítica


Num de seus artigos em que faz uma interessante aproximação entre a arte
popular russa e o suprematismo de Malevitch, Rakitine assevera que o artista «leva à
perfeição o princípio de ação hipnótica da forma» e que, nesse sentido, o ritmo da
construção suprematista é ritual: «Ele inspira um ritmo novo, uma sensação. A
superfície plana não é somente portadora da cor. Ela aparece em seu conjunto como um
potencial de possibilidades artísticas e extra-artísticas diversas».428 De fato, se
considerarmos que um ritual supõe sempre mais do que aquilo que está sendo
representado,429 poderíamos concordar com Rakitine e observar que os trabalhos de
Malevitch, como os de Mondrian, apontam – mas apenas apontam – para uma dimensão
situada além desta que chamo mítica. Em alguns poucos casos, suas composições
parecem querer estabelecer um contato mais estreito com o espaço circundante; em
outras palavras, elas indicam uma disposição em se tornarem mais do que meras
pinturas. Larissa Zhadova já indicara que poderia haver uma relação entre o quadro
suprematista e a parede na qual este se achava:

A composição de uma pintura suprematista é governada pela união do ambiente


espacial representado na sua superfície e em torno dela, e não pela distribuição harmônica
de seus elementos em relação ao formato e pelas dimensões da pintura. Esta é uma nova
concepção de composição espacial, por meio da qual cada representação suprematista se
torna um componente orgânico de seu ambiente como um todo. A pintura suprematista, por
exemplo, vai muito bem sem moldura, simplesmente pendurada numa parede branca que
serve como uma espécie de extensão espacial do fundo branco, não-colorido, da pintura em
si.430

Em Malevitch, esta tendência rumo a um extra-artístico aparece mais claramente


na própria disposição do Quadrado negro nas paredes da exposição 0,10. Para a mostra,
o artista escolheu pendurar seu quadro no alto do ângulo formado por duas paredes. Ao
proceder desta forma, atribuiu à sua pintura propriedades extra-pictóricas; ele fez dela

428
Vassily Rakitine, «Le “réaliste” et le “non objectif”. Quelques observations sur “l’art paysan” de
Malévitch», Malévitch 1878-1978: Actes du Colloque international tenu au Centre Pompidou, Musée
national d’Art moderne, les 4 et 5 mai 1978, p. 49. Grifo meu.
429
Em termos antropológicos, o ritual representa em geral uma comunicação entre o mundo terreno e
extra-terreno (ver Edmund Leach, Cultura e comunicação, p. 116).
430
Larissa A. Zhadova, op. cit., p. 51.

144
um objeto, chamando a atenção não só para o que era representado na tela, mas também
para a posição que o quadro recebeu no espaço e para a relação que estabeleceu com
este. E não se trata de uma relação qualquer esta que o artista criou entre o quadro e o
espaço. Malevitch dispôs o Quadrado negro exatamente no mesmo lugar reservado ao
ícone Belo Canto (Krasny Ongol) nas casas ortodoxas russas, ícone que figurava
geralmente a imagem de Jesus Cristo ou da Virgem Maria. A provocação de Malevitch
não passou despercebida na época, como podemos constatar neste trecho daquela ácida
crítica de Benois à exposição:

no alto, no ângulo logo abaixo do teto, no espaço santificado, lá está uma «obra» sem
número, indubitavelmente do mesmo sr. Malevitch, representando um quadrado negro
delimitado em branco. Não há dúvida de que este é o «ícone» que os srs. Futuristas estão
propondo no lugar das Madonas e das Vênus desavergonhadas.431

A evidente correspondência que Malevitch traçava entre os ícones e o Quadrado


negro e, por tabela, entre a tradicional arte popular russa e a sua nova arte – lembremos
que esta era a primeira vez que expunha obras totalmente abstratas – parece não deixar
dúvidas entre os críticos que esta reforça a concepção de Malevitch da arte como uma
forma de teologia. O próprio Malevitch, em carta de 20 de março de 1920, escreveu que
«talvez o quadrado negro seja a imagem de Deus como a essência da Sua perfeição num
novo encaminhamento para o fresco começo dos dias de hoje».432 E não podemos deixar
de assinalar que o artista acreditava que «o canto simboliza que não há outro caminho à
perfeição exceto pelo caminho do canto».433
Deborah Haynes e Jean-Claude Marcadé atentam para as inúmeras vezes que o
artista se referiu a seu quadrado como uma face ou um rosto.434 Como os tradicionais
ícones russos representavam sempre o rosto de Cristo e da Virgem Maria, estas
comparações de Malevitch indicariam, segundo eles, uma prova do caráter

431
Alexander Benois, «The Last Futurist Exhibition», reproduzido por Matthew Drutt, Kazimir Malevich:
Suprematism, pp. 253-254
432
Carta a Mikhail Gershenzon, citada por Yevgenia Petrova, «Malevich’s Suprematism and Religion»,
compilado por Matthew Drutt, op. cit., p. 91.
433
Kasimir Malevitch citado por W. Sherwin Simmons, Kasimir Malevich’s Black Square and the
Genesis of Suprematism, 1907-1915, p. 233.
434
Só para citarmos dois exemplos, Malevitch, na carta a Alexander Benois, falou no «rosto do meu
quadrado» e, em «Do cubismo e do suprematismo ao novo realismo pictórico», referiu-se a seu quadro
como «a face da arte nova» (ver Kasimir Malevitch, Écrits, pp. 163 e 198 respectivamente). Sobre os
comentários de Deborah Haynes e de Jean-Claude Marcadé, ver Bakhtin and the Visual Arts, pp. 148 e ss.
e «K. S. Malévitch, du “Quadrilatère noir” (1913) au “Blanc sur blanc” (1917). De l’éclipse des objets à
la libération de l’espace», op. cit., pp. 114-115.

145
profundamente «icônico»435 do quadro em questão. Conforme Marcadé, o Quadrado
negro é, para Malevitch, «a essência do divino», porém, «não como símbolo, mas como
ser pictórico absoluto».436 Haynes vai ainda mais longe e julga que o Quadrado negro
«comunica um obscuro conteúdo teológico», que diz respeito a uma nova espécie de
religiosidade.437 Tomando as referências a Deus nos escritos de Malevitch como
evidências, Haynes observa que estas «poderiam ser tomadas como mais uma afirmação
de seu entendimento do Quadrado negro como um símbolo para o divino».438 Ela
reverte a resposta que Malevitch dá a Benois – «De minha época, não tenho mais que
um ícone nu, sem moldura (como meu bolso) e me é difícil combatê-lo» –439 e a
interpreta como mais uma demonstração de um certo caráter religioso: «É seu ícone nu,
sem moldura» que oferece a experiência de, e talvez a tendência para, confrontar o
vazio, isto é, Deus».440
Yevgenia Petrova talvez concordasse com Haynes ao fazer notar que Malevitch
estava criando um novo tipo de ícone: «Ao colocar um quadrado, círculos ou cruzes
contra um fundo branco ou cinza, Malevitch estava retornando aos cânones da antiga
arte russa, reinterpretando-os em sua própria maneira original». E complementa: «Nos
ícones russos, o fundo branco tradicionalmente simbolizava pureza, santidade e
eternidade, enquanto o preto representa o abismo, o inferno e a escuridão».441 Dmitrii
Sarabianov não se encontra muito distante desta mesma concepção. Afirma ele: «O
Quadrado negro não só desafiou o público que perdeu o interesse em inovações
artísticas, mas também testificou uma distinta forma de “busca por Deus”, o símbolo de
uma nova religião».442 E Meyer Schapiro recorda que Walt Whitman descreveu Deus
como um quadrado no poema «Chanting the square deific» e que Tolstói se utilizou
desta mesma figura geométrica, em Memórias de um louco, como uma imagem da
angústia religiosa.443 Disso, conclui: «Eu não devo concluir que o círculo ou o quadrado

435
Expressão de Jean-Claude Marcadé, «K. S. Malévitch, du “Quadrilatère noir” (1913) au “Blanc sur
blanc” (1917). De l’éclipse des objets à la libération de l’espace», op. cit., p. 115.
436
Jean-Claude Marcadé, «Préface», Kazimir S. Malévitch, De Cézanne au Suprématisme: Tous les
traites parus de 1915 à 1922, p. 10.
437
Deborah Haynes, Bakhtin and the Visual Arts, pp. 131-132.
438
Idem, p. 152.
439
Carta a Alexander Benois, reproduzida por Andrei Nakov, Kasimir Malevitch, Écrits, p. 164.
440
Deborah Haynes, op. cit., p. 153.
441
Yevgenia Petrova, op. cit., p. 91.
442
Dmitrii Sarabianov, «Kazimir Malevich and His Art, 1900-1930», compilad por Matthew Drutt,
Kazimir Malevich: Suprematism, p. 70.
443
Meyer Schapiro, On the Humanity of Abstract Painting, p. 13.

146
na tela é, em algum sentido oculto, um símbolo religioso, mas ao invés: a capacidade
destas formas geométricas servirem como metáforas do divino surgem de sua qualidade
viva, freqüentemente momentânea, para o olho sensitivo».444
De minha parte, tendo a compreender o gesto de Malevitch mais como uma
provocação do que como uma tentativa de simbolizar o divino. Parece-me haver aí uma
outra demonstração da sua «teologia» entre aspas. Creio que se pode, sim, imaginar este
gesto como mais uma tentativa de legar à sua obra uma realidade para além daquela que
ela apresenta. Ao dispor sua pintura no mesmo local em que se dispunham os ícones,
Malevitch está, certamente, estabelecendo uma relação entre seu quadrado secular e as
imagens sagradas. Tenho dúvidas se a intenção última seria representar o divino, até
porque, não esqueçamos, o artista estava, nesta época, se evadindo de qualquer
representação. Mas talvez seja possível acreditar que a disposição de sua pintura no
espaço consagrado seja uma maneira de fornecer a ela uma forma de transcendência, no
entanto, mais uma vez, uma transcendência que se revela vazia. Como nota Luciano
Ponzio, o Quadrado negro é «o ícone que salva da idolatria, que não se transforma por
sua vez em ídolo».445

g. Retorno à figuração
No capítulo anterior, vimos que Mondrian, no final de sua vida, não chegou a
abandonar a abstração, mas passou a produzir o que Pignatari qualificou de
«abstracionismo figurativo». Malevitch, por seu turno, voltou efetivamente à
representação figurativa. Depois de passar, na década de 1920, por uma experiência que
resultou em seus planits e arquitetons (plantas e maquetes, respectivamente, que não
chegam a ser projetos arquitetônicos, mas são propostas experimentais de elaboração
em três dimensões da linguagem suprematista), o artista voltou a se dedicar a pinturas
figurativas. Em alguns casos, Malevitch recuperou telas antigas (geralmente aquelas que
representavam camponeses em formas tubulares), produzidas antes de seus quadros
suprematistas, e retrabalhou-as. Por esta razão, muitas delas portam duas datas de
realização: uma da década de 1910 e outra da década de 1920 ou 1930. Este é o caso,
por exemplo, de Camponesa de rosto negro (1911/12-1928/29) e Jovens no campo
(1912-1928/29, fig. 40). Outras apresentam figuras estáticas sem rosto contra uma
444
Idem, p. 14.
445
Luciano Ponzio, Icona e raffigurazione: Bachtin, Malevic, Chagall, p. 55.

147
paisagem desolada, lembrando bastante as figuras-manequins e as ruas desertas e
ensolaradas, produzidas na década de 1910 por Giorgio De Chirico. Nestas figuras sem
face de Malevitch, Alain Bonfand vê uma continuação do Quadrado negro:

Somos (...) obrigados a ler esse quadrângulo preto como um rosto sem rosto, ainda mais se
considerarmos a continuação da obra de Malevitch, quando ele retorna à figuração, que (...)
é povoada de rostos – Cristo camponês e, principalmente, Cabeça sem rosto, 1918-1932, no
qual, emoldurada como um retrato, uma cabeça marcada por uma barba está sem rosto, sem
olhos, sem nariz, sem boca.446

Outras ainda, em menor número, exibem apenas um homem – normalmente o seu rosto
somente –, em frente ou ao lado de uma cruz, instituindo uma nova espécie de
espiritualidade.
Poderíamos imaginar – seguindo a linha de pensamento que desenvolvi quando
tratei da «figuração» de Mondrian – que esse retorno ao figurativismo talvez proviesse
de uma sensação de insuficiência da abstração tanto para fazer frente ao mundo exterior
quanto para incorporar uma certa espiritualidade em si. É possível que o artista tivesse
sentido como poderia ser falha, para dar conta da realidade exterior e para construir uma
nova realidade, uma arte que termina por se voltar para si mesma. Por outro lado, não
podemos perder de vista que seu retorno ao figurativismo pode estar relacionado a
questões sociais e políticas. Nos primeiros anos de 1920, Lênin, cujas noções estéticas
eram bastante limitadas, percebeu que era preciso criar uma arte que agitasse as massas.
Queria apresentar ao povo imagens reais de acontecimentos, e não imagens abstratas.
Mesmo ocupando cargos públicos e tendo sido um fiel colaborador da revolução
socialista, Malevitch passou a ser perseguido pelo Estado. O suprematismo era, antes de
tudo, considerado idealista e espiritual, e o partido não se interessava por abstrações,
mas por coisas palpáveis, materiais: eles queriam propagandear o governo e esta
propaganda não poderia ser realizada em bases abstratas. Embora não fosse de todo
contra as vanguadas, Anatoli Lunatcharski, o comissário do povo para o ensino das
artes, proclamou no início dos anos 20:

Não tenho nenhum tipo de dúvidas de que, ao proletariado e aos camponeses, se lhes
oferece muito mais com a plenitude de vida de umas obras de uma arte rica e cheia de
idéias, a qual pertence às melhores épocas do passado, do que com uma arte que nos indica
desde um princípio não ter conteúdo, a qual é puramente formal, e finalmente chega a ter
uma impessoalidade de conteúdo completamente vazio.447

446
Alain Bonfand, A arte abstrata, pp. 26-27.
447
Anatoli Lunatcharski citado por Heiner Stachelhaus, Kasimir Malewich: un conflicto trágico, p. 45.

148
Foi nesta época que surgiu a Associação dos Artistas da Rússia Revolucionária,
uma organização de artistas que defendia o monopólio de um estilo realista derivado do
século XIX como a única arte genuinamente proletária. Assim, quando Lênin morreu,
em 1924, estava aberto o caminho para Stálin implantar o chamado «realismo
socialista», o último passo no retrocesso estético promovido pelo governo soviético. O
realismo socialista consistia numa doutrina obrigatória que tinha por objetivo reger, por
mais paradoxal que parecesse, a criatividade de cada um dos artistas. O partido deveria
tornar-se, definitivamente, a única fonte de inspiração para os artistas.
Malevitch estava entre os mais visados, e a escola em que trabalhava como
professor e coordenador de um dos laboratórios de arte foi colocada sob suspeita.
Apesar de tudo, o artista não deixou de expor, nem de exercer cargos públicos. No
princípio, a perseguição que sofreu foi muito mais psicológica do que efetiva. Malevitch
não precisou se esconder ou fugir, mas teve de suportar inúmeras críticas a suas obras, a
seus escritos e a seus projetos de estudo. Num texto de 1924, Malevitch dizia aceitar
que o considerassem e a seus colegas «estúpidos», mas repudiava, veementemente, que
lhes impusessem formas antigas, porque, afinal, para os artistas verdadeiramente
revolucionários, estava encerrada a fase das representações tradicionais. «Queremos
criar novas relações com o conteúdo atual, relações que não se movam no nível da
antigüidade, senão no presente, na atualidade», afirmou.448 Em final de 1926, ele perdeu
seu cargo, e sua escola foi fechada.
Talvez o retorno de Malevitch ao figurativismo tenha se originado como uma
resposta a este estado de coisas. E, se o foi, cabe ressaltar como ele não se dobrou
totalmente às determinações do Estado. Sua arte não deixou nunca de ser contestadora.
Lembremos sempre que suas criaturas apresentavam-se desfiguradas, sem identidade
pessoal, portanto, e o mais importante, cegas e mudas. No final de sua vida, em 1933,
quando já estava acamado com câncer (ele morreu em 1935), terminou por retratar a si
mesmo, a sua mulher e a seus amigos em estilo renascentista, assinando estes quadros,
ironicamente, com um discreto quadrado negro, na margem direita inferior da tela. Ele,
enfim, se metamorfoseara no zero das formas.

448
Kasimir Malevitch citado por Heiner Stachelhaus, op. cit., pp. 96-97.

149
vfl13", .•

rONMLKJIHGFEDCBA
l\l.- n u ·

F ig . 2 8 : fig u rin o s p a ra L u ta d o r d o F u tu ro e N e ro e c e n á rio d a ó p e r a VUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA


V itó r ia s o b r e o s o l

-~ ~ ~ ~ ~

F ig . 2 9 : F o to g ra fia d a s a la d e M a le v itc h n a e x p o s iç ã o 0 ,1 0
S e m p re d a e sq u e rd a p a r a a d i r e i t a , d e c i m a p a r a b a i x o : R e a lis m o p ic tó r ic o d e u m jo g a d o r
d e fu te b o l, C o m p o s iç ã o s u p r e m a tis ta c o m v o lu m e n ã o - o b je tiv a (p e rd id a ), T e r c e ir o e s ta d o
do quadrado, Q uadrado negro, P la n o n ã o - o b je tiv o e m p r o je ç ã o d in â m ic a (p e rd id a ),
A u to m ó v e l e m u lh e r (p e rd id a ), A u to - r e tr a to em duas d im e n s õ e s , M assas p ic tó r ic a s em
d u a s d im e n s õ e s e m e s ta d o d e q u ie tu d e (p e rd id a ), D o is p la n o s s u p r e m a tis ta s e m r e la ç ã o
o r to g o n a l (d ito C r u z n e g r a ) , C o m p o s iç ã o 2 c : m a s s a s p ic tó r ic a s e m m o v im e n to (p e rd id a ),
C o m p o s iç ã o s u p r e m a tis ta : m a s s a s p ic tó r ic a s e m m o v im e n to , M u lh e r , P la n o e m e x te n s ã o ,
Q uadrado v e r m e lh o , C o m p o s iç ã o s u p r e m a tis ta : m assas p ic tó r ic a s em m o v im e n to
(p e rd id a ), C o m p o s iç ã o s u p r e m a tis ta : m assas de cor em duas d im e n s õ e s em e s ta d o de
q u ie tu d e (p e rd id a ), C o m p o s iç ã o s u p r e m a tis ta : m a s s a s p ic tó r ic a s e m q u a tr o d im e n s õ e s ,
R e a lis m o p ic tó r ic o de um m e n in o com um saco às c o s ta s , P la n o n ã o - o b je tiv o em
p r o je ç ã o (p e rd id a ), A v iã o em vôo e C o m p o s iç ã o s u p r e m a tis ta : m assas p ic tó r ic a s em
m o v im e n to

150
F i g . 3 0 : VUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
Q uadrado negro F ig . 31: Q uadrado v e r m e lh o

Figura 3 2 : B ranco sobre branco

F i g . 3 3 : C r u z h ie r á tic a F ig . 3 4 : C ru z b ra n c a F ig . 3 5 : C ru z n e g ra

F i g . 3 6 : S u p r e m a tis m o m ís tic o

151
F i g o 3 7 : VUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
Suprem us n° 55 F i g o 3 8 : A m a r e lo e p r e to
(S u p re m u s n° 58)

F i g o 3 9 : P la n o a m a r e lo F ig o 4 0 : J o v e n s n o c a m p o
e m d is s o lu ç ã o

152
PARTE III
DIMENSÃO RITUAL

153
4 KURT SCHWITTERS

a. Rumo à Merzbau
Mondrian pintava quadros. Malevitch pintava quadros e, mais tarde, realizava
maquetes arquiteturais. A produção de ambos, portanto, condiz com uma concepção
tradicional de obra de arte. Aliás é ainda possível referir-se a seus trabalhos, sem
problemas, como «obras de arte». Em ambos os casos, suas obras obedecem à definição
dada do que é pintar por Kurt Schwitters: «Pintar consiste em preencher de cor uma
forma delimitada. (...) Tudo o que se encontra no interior desta forma, faz parte do
quadro, o que está no exterior, não».449 O Kurt Schwitters desta definição é o mesmo
que, com suas construções Merz, em especial com a Merzbau, extrapolou os limites
estritos da obra e colocou em xeque o seu próprio conceito. Com ele e com Marcel
Duchamp, os dois artistas que proponho examinar nesta terceira parte deste estudo, as
experimentações não se restringiram à forma, mesmo tendo eles partido da mesma fonte
de Mondrian e Malevitch – o cubismo de Braque e Picasso –, e passado igualmente por
uma fase de pesquisa formal. Com Schwitters e Duchamp, operou-se uma mudança
significativa em relação a Mondrian e Malevitch. Enquanto os primeiros apenas
esboçavam uma vontade de estabelecer uma relação entre a obra e o espaço à sua volta,
Schwitters e Duchamp a efetivavam, provocando uma participação mais ativa do
espectador. Por isso, sugeri chamar àquela dimensão mítica e a esta, dimensão ritual. E,
no entanto, como bem expressou o poeta Augusto de Campos, Mondrian e Malevitch,
de um lado, e Duchamp (Schwitters não é lembrado, mas poderia sê-lo), de outro,
constituem «verso e reverso da mesma moeda».450
Comecemos, pois, com Schwitters. Dos quatro artistas que nos propomos
estudar aqui, Schwitters foi o que mais tardou a assimilar as inovações empreendidas
pelos movimentos artísticos do início do século XX. Enquanto, em 1914, Mondrian já
principiava a elaborar um método próprio a partir de experimentações formais derivadas
do cubismo, e Malevitch já dera um passo ainda mais largo e trabalhava em segredo
numa série de pinturas totalmente abstratas que viriam a ser chamadas de suprematistas,

449
Kurt Schwitters, «Peinture (peinture pure)», compilado por Marc Dachy, Merz: écrits, p. 235.
450
Augusto de Campos, «Duchamp: o lance de dadá», Anticrítico, p. 195.

154
Schwitters apenas passava de um estilo acadêmico para outro impressionista.451
Somente em 1917, se tornou visível em suas pinturas a influência de um movimento
desenvolvido no século XX, o expressionismo. Todavia, embora laivos de um caráter
expressionista pudesse ser percebido nos trabalhos posteriores a 1917, não seria por
meio deste que ele encontraria um caminho próprio, mas, sim, através do cubismo.
Dizia Schwitters no final de sua vida: «Desde meu nascimento, em 20 de junho de 1887,
Picasso influenciou a minha maneira de criar. Quando atingi a idade de caminhar e de
falar, eu permanecia sob a influência de Picasso (...)».452 Como Mondrian e Malevitch,
também Schwitters fez uma leitura – e um uso – bastante pessoal das conquistas do
cubismo. A partir de 1918, viam-se, entre sua produção, desenhos e telas em que se
fundiam as cores fortes do expressionismo aliadas a um modo cubista de facetamento da
representação, que já levava a uma abstração completa da figura.
No entanto, das experimentações cubistas, o que mais contribuiu para a evolução
de seus trabalhos e, conseqüentemente, o auxiliou a encontrar um método particular não
foi a possibilidade de representar um objeto ou uma pessoa a partir de uma série de
pontos de vistas superpostos, mas o expediente ao qual Braque e Picasso recorreram
numa segunda fase do cubismo, a colagem. Vale recordar que também Malevitch já
mostrara mais interesse pelos quadros produzidos por Braque e Picasso no período que
se convencionou chamar de cubismo sintético, quando os dois artistas começaram a
agregar papéis, pedaços de madeira e tecidos a seus trabalhos, do que pelo anterior, o
dito cubismo analítico. No entanto, recapitulando, Malevitch extraiu da colagem não um
método de representação mas uma possibilidade formal: a superposição de papel, tecido
e outros fragmentos na superfície da tela deu-lhe a idéia de trabalhar com figuras
sobrepostas a planos de cor, como em Vaca e violino e Eclipse parcial. Todavia, em
Malevitch, tudo era pintura e não resultava, portanto, da colagem propriamente dita de
elementos reais no quadro. Schwitters, por seu turno, tomou emprestado o que havia de
mais revolucionário na colagem cubista, a incorporação ao quadro de dados da
realidade, e imediatamente, sem despender muito tempo em experimentações

451
O próprio Schwitters dividiu sua evolução artística segundo períodos: 1909-1914: pintura acadêmica.
1914-1917: Impressionismo. 1917: Expressionismo. 1917-1918: Abstração. 1918-1919: Merz. 1919-
1936: De MERZ a MERZ (citado por François Bazzoli, Kurt Schwitters: «l’art m’amuse beaucoup» –
biographie 1887-1948, pp. 33 e 40).
452
Kurt Schwitters, «Mon art et ma vie», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 269. Este texto foi
escrito em 1944, quatro anos antes da morte do artista.

155
preliminares como Mondrian ou mesmo Malevitch, pôs-se a produzir uma arte de
características próprias. Ao contrário de Picasso e de Braque, que trabalharam com
retalhos de tecidos, papéis e madeira, Schwitters saiu às ruas à cata dos mais diferentes
tipos de objetos: bilhetes de trem, botões, latas, invólucros, pedaços de brinquedos,
pentes etc. No inverno de 1918 e 1919, começou a realizar colagens e assemblagens.
Nas colagens, sobrepôs pedaços de papéis e tecidos, unidos por zonas de tintas
coloridas. Nas assemblagens, operou com pedaços de madeira, fragmentos de redes,
barbantes, tampas de latas, pregos e tintas, formando figuras geométricas harmonizadas
em composições abstratas. Por esta época, o artista se apresentava assim: «Meu nome é
Schwitters, Kurt Schwitters. (...) Eu sou pintor, eu prego meus quadros».453
Em 1918, encantado com as manifestações e as realizações do grupo de
dadaístas de Berlim, formado por Richard Huelsenbeck, Raoul Hausmann, George
Grosz, Hannah Höch, Johannes Baader, procurou associar-se a eles, mas foi rejeitado
por Huelsenbeck, que o considerava idealista demais, «o Caspar David Friedrich da
revolução dadaísta» e não via com bons olhos as ligações de Schwitters com a galeria e
a revista Der Sturm, de Herwarth Walden, as quais Huelsenbeck tachava de
reacionárias.454 Em vista desta recusa, Schwitters tornou-se um artista independente que
ora se auto-intitulava dadaísta, ora repelia terminantemente esta designação:

Esclarecerei aqui um mal-entendido que pode nascer de meu afeto por alguns Kern-
dadaístas. Poder-se-ia pensar que eu qualifico a mim mesmo dadaísta, visto que na capa da
minha compilação de poemas Anna Blume, edição Paul Steegemann, figura a palavra
«dadá».
Sobre a mesma capa, estão desenhados um moinho de vento, uma cabeça, uma
locomotiva andando de recuo e um homem suspenso no ar. Isto não significa nada no
mundo de Anna Blume, onde as pessoas caminham sobre a cabeça, onde os moinhos de
vento giram e onde as locomotivas vão de recuo, dadá também existe. Para evitar todo
engano, escrevi sobre a capa de minha Catedral: «Antidada». Isto não significa que sou
contra o dadaísmo.455

No início da década de 1920, promoveu, com os amigos Theo van Doesburg, Raoul
Hausmann e Hannah Höch, algumas manifestações de caráter dadaísta na Alemanha, na
Holanda e no que é hoje a República Tcheca. Porém, seu caminho deveria ser mesmo

453
Conforme lembra Raoul Haussmann de seu primeiro encontro com Schwitters no Café des Westens,
em Berlim, em 1918. Raoul Hausmann, Courrier dada, p 107.
454
Ver François Bazzoli, op. cit., p. 36.
455
Kurt Schwitters, «Merz», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 58.

156
trilhado sozinho. Ao criar, em 1918, um modo todo seu de trabalhar com a colagem,
Schwitters inventava uma nova maneira de fazer arte. Restava apenas dar-lhe um nome.
O batismo ocorreu logo em seguida, em 1919. Na exposição de suas mais
recentes produções, na galeria Der Sturm, de Berlim, em julho daquele ano, decidiu
chamá-las Merz, palavra sem significado na língua alemã, que aparecera – por puro
acaso, como atesta o filho do artista, Ernst Schwitters456 – numa de suas primeiras
assemblagens (as quais se tornavam mais freqüentes que as simples colagens), O
quadro Merz.457 Segundo Schwitters, Merz – que é escrita ora com todas as letras em
maiúscula, ora com todas em minúscula, ora só com a primeira em maiúscula –

é a segunda sílaba de Kommerz [comércio em alemão]. Ela surgiu num quadro onde eu
havia colado, entre as formas abstratas, um fragmento recortado de um anúncio do
KOMMERZ UND PRIVATBANK [Banco Privado e de Comércio]. Situando-se em
relação às outras partes do quadro, a palavra MERZ se tornou parte integrante dele e lá
deveria ficar.458

Em outro texto, entretanto, garantia que Merz se originava de auszmerzen, «retirar»,


«extirpar», em alemão.459 Para complicar ainda mais, afirmou num terceiro artigo: «A
palavra Merz não tinha qualquer significado quando a inventei. Agora ela tem o
significado que lhe dei. O significado do conceito Merz muda à medida que muda o
conhecimento daqueles que continuam a trabalhar com ele».460 Porém, poderíamos
pensá-lo como uma derivação da raiz indo-européia *mer-, cujo primeiro significado é
«atrair por meio de força mágica». Esta mesma raiz é encontrada nos vocábulos
«comércio», «Mercúrio» (deus do comércio), «meretriz», «merecer», entre outros,
muitos deles associados à troca comercial.
Na edição de julho de 1919 da revista Der Sturm, o próprio Schwitters explicava
sua mais nova criação no pequeno artigo intitulado «A pintura Merz», um de seus
principais textos sobre sua arte:

Os quadros de pintura Merz são obras de arte abstrata. A palavra Merz significa, em sua
essência, a assemblagem de todos os materiais imagináveis e, por princípio, a igual

456
Ver Ernst Schwitters, «Non si sa mai», no catálogo Schwitters, p. 6.
457
Optei por apresentar aqui as traduções dos títulos originais e as datas dos trabalhos de Schwitters em
conformidade com o que foi estabelecido no recente Kurt Schwitters – Catalogue raisonné, editado por
Karin Orchard e Isabel Schulz.
458
Kurt Schwitters, «Kurt Schwitters Katalog», publicado no número 20 da revista Merz, em 1927, pp.
99-100.
459
Ver Kurt Schwitters, «Tran 35 – Dada est une hypothèse», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 94.
460
Kurt Schwitters, «Merz», reproduzido por H. B. Chipp, Teorias da arte moderna, p. 389.

157
valorização de cada um desses materiais sobre o plano técnico. A pintura Merz se serve não
somente da cor e da tela, do pincel e da paleta, mas de todos os materiais que o olho pode
ver e de todos os instrumentos que podem ser úteis. Deste ponto de vista, importa pouco
que, em sua origem, os materiais utilizados fossem ou não fossem concebidos para outros
fins.

Pelo princípio Merz, Schwitters utilizava os materiais que recolhia como matérias-
primas para seus quadros:

A roda de um carrinho de criança, uma tela metálica, o barbante ou o algodão são


elementos de valor igual à cor. (...) Na pintura Merz, a tampa de uma caixa, uma carta de
jogo, um recorte de jornal são transformados em superfície, um barbante, uma pincelada ou
um traço de lápis transformam-se em linha, a tela metálica se transforma em retoque, um
papel de embalagem, em gelo; o algodão, em doçura. A pintura Merz visa a uma expressão
imediata ao reduzir a distância entre intuição e visualização da obra de arte.461

Agindo desta maneira, esclarecia Schwitters, em outro texto fundamental para se


compreender seu pensamento e sua produção, intitulado «Merz», escrito em 1920 e
publicado no ano seguinte no número 1 da revista Der Ararat: «Conciliando tipos
diferentes de material, levo uma vantagem sobre a pintura feita exclusivamente com
tinta a óleo, pois posso opor não apenas cor contra cor, linha contra linha, forma contra
forma etc., mas também material contra material: por exemplo, madeira e estopa».462
Schwitters ainda: «No final de 1918, eu me dei conta de que todos os valores existiam
apenas em relação uns com os outros e que a restrição a um só material era parcial e
tacanha. Desta percepção, eu formei Merz».463
Em relação aos trabalhos de Mondrian e de Malevitch, as composições Merz
eram revolucionárias no tocante à utilização da matéria-prima. Enquanto Mondrian e
Malevitch ainda se valiam de meios tradicionais, a tinta e o pincel, Schwitters servia-se
de material inusual para a realização de um quadro. Todavia, como nas pinturas
daqueles dois artistas, as colagens e assemblagens Merz ainda se moldavam sob a busca
de um equilíbrio formal, isto é, sua preocupação ainda girava em torno da forma. E este
equilíbrio, como em Mondrian e Malevitch, deveria ser obtido por meio do ritmo
oriundo das relações entre os elementos dispostos na composição:

Um quadro MERZ parte do material, de todo material possível em pintura, e o utiliza como
pintura. O quadro MERZ combina este material segundo o ritmo do esquema
composicional e não se perturba com o fato de que certos materiais pelos quais começa

461
Kurt Schwitters, «La peinture Merz», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 45.
462
Kurt Schwitters, «Merz», reproduzido por H. B. Chipp, op. cit., pp. 388-389.
463
Kurt Schwitters citado por John Elderfield, Kurt Schwitters, p. 49.

158
foram concebidos para outros fins. Um bilhete de ônibus foi impresso para controlar os
viajantes. O quadro MERZ o utiliza somente como cor. Ele não é para ser lido no quadro. O
3, por exemplo, é só uma linha feita de dois arcos. Se necessário, esta será recoberta em
parte por pintura ou por qualquer outra coisa; o que decide a composição é o ritmo.464

Depois de 1919, Schwitters passou a aplicar o termo Merz não só em referência


a seus quadros, mas a tudo mais que ele produzia – poesia, escultura, modelos
arquiteturais, textos dramáticos, peças musicais etc. –, e, com isso, sua concepção de
arte começou gradativamente a mudar. Criou até mesmo uma revista com este nome,
que circulou de 1923 a 1932. Em pouco tempo, Merz tornou-se uma espécie de marca
registrada do artista. Ele chegou a assinar algumas de suas publicações como «Kurt
Merz Schwitters». Em sua monografia sobre a maior obra de Schwitters, a Merzbau,
Elizabeth Burns Gamard ressalta que o princípio Merz «não é um movimento no sentido
tradicional (ele era tanto o genitor quanto o único membro), mas uma metodologia, ou,
para expor de forma mais clara, um modo de viver».465
Embora em suas primeiras colagens e assemblagens haja alguns indícios que
apontem para uma dimensão ritual (principalmente, uma certa ritualização no
recolhimento de detritos, como veremos mais adiante), estas ainda se restringem ao
suporte quadro e condizem com a descrição que fizemos da dimensão mítica na parte
anterior deste estudo, por meio da observação de um processo que se repete, resultando
numa obra abstrata, ordenada, auto-referencial, com vistas a um absoluto. A passagem
de uma dimensão mítica para uma dimensão ritual começou a se esboçar quando, ainda
em 1919, Schwitters voltou-se para a concepção de uma obra de arte total,
provavelmente evocando a noção wagneriana – bastante conhecida dos artistas alemães
da época – de uma obra de arte total (Gesamtkunstwerk) que se realizaria na ópera, e
também, talvez principalmente, a proposta de uma Bühnenkomposition, uma
composição cênica imaginada por Wassily Kandinsky nos escritos do Der Blaue Reiter
(Cavaleiro azul). Em «Da composição cênica», escrito no final de 1911, Kandinsky
sugeria a criação de uma composição teatral em que os elementos a ela subordinados
(ação, música, movimento) tivessem uma ligação intrínseca, que proviessem de uma
mesma fonte, mais precisamente, «do interior» do artista, e que não fossem como os
dramas, as óperas e os balés existentes até então – os quais criticava duramente –, que

464
Kurt Schwitters, «Art abstrait», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 267.
465
Elizabeth Burns Gamard, Kurt Schwitters’ Merzbau: The Cathedral of Erotic Misery, p. 11.

159
decorriam de uma relação exterior, portanto forçada, entre seus elementos.466 Para
Schwitters, em 1919, todos os gêneros artísticos deveriam ser concatenados no que
chamava de Merzbühne, a cena Merz, a qual compreendia como uma obra de arte total
abstrata, ao modo de um quadro Merz:

A Merzbühne serve para a representação da obra de teatro Merz. A obra de teatro


Merz é uma obra de arte abstrata. O drama e a ópera procedem, em regra geral, de uma
forma escrita, que se basta a si mesma, sem colocá-la em cena, e, enquanto texto escrito, é
uma obra acabada. O cenário, a música e a representação servem apenas para ilustrar este
texto que já é em si ilustração da ação. Ao contrário do drama ou da ópera, todas as partes
da obra de teatro Merz estão inseparavelmente ligadas. Ela não pode ser escrita, nem lida,
nem escutada, só pode ser experimentada no teatro. (...) A Merzbühne só conhece a fusão
de todos os elementos numa obra total.467

A Merzbühne nunca foi levada a efeito pelo artista. Sua obra de arte total não
proviria do teatro, mas de outro gênero artístico, de uma certa forma também ligado ao
teatro (ao cenário, mais precisamente): a arquitetura, a qual estudou entre os anos de
1918 e 1919 na Escola Politécnica de Hannover. Algumas pequenas peças em três
dimensões produzidas por Schwitters no início da década de 1920 – boa parte das quais
se perderam, sobrando delas apenas algumas fotografias – podem ser vistas como um
meio termo entre cenário teatral e projeto arquitetural, que desembocam na grande obra
do artista, a Merzbau (construção Merz), no exame da qual pretendo me centrar. Em A
forca do prazer (Die Lustgalgen), de 1919, em cima do que parece ser uma caixa de
madeira achatada, o artista erigiu uma coluna em torno da qual se encontram outros
pedaços de madeira que fazem as vezes de muretas. No alto da coluna, vê-se uma roda,
à qual se acha preso um fio, provavelmente a forca a que se refere o título. Ao lado da
mureta, Schwitters dispôs alguns pedaços de tecidos que formam um pequeno monte.
Gamard garante que, na base da coluna, há uma minúscula reprodução de uma pintura
mostrando uma visão oblíqua de Cristo na Cruz.468 Casa Merz (Haus Merz) (fig. 42), de
1920, representa, sem sombra de dúvida, uma igreja. Sua torre é feita de blocos de
madeira de criança encimados por um potinho de tinta. Um botão atua como um relógio.
A nave da «igreja» encontra-se preenchida por engrenagens. Castelo e catedral com
poço no quintal (Schloss und Kathedrale mit Hofbrunnen) (fig. 43), de 1923, também se

466
Wassily Kandinsky, «Da composição cênica», Olhar sobre o passado, pp. 137 e ss.
467
Kurt Schwitters, «Le théâtre Merz», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 41. Cabe recordar que os
artistas russos Matiushin, Khlebnikov e Malevitch, com a montagem e a excecução da ópera Vitória sobre
o sol, chegaram muito próximo da concepção de uma obra de arte total tal qual sugerida por Schwitters.
468
Ver Elizabeth Burns Gamard, op. cit., p. 72.

160
apóia sobre uma caixa de madeira achatada e apresenta duas «construções». Numa, um
pedaço de madeira mais alongado sugere uma torre, fazendo-nos imaginar ser esta
«construção» a citada catedral. Outro pedaço de madeira atua como o castelo, e o que
parece ser uma rolha está para o poço. Todas as três lembram pequenos cenários,
fragmentos do dia-a-dia de uma cidadezinha desconhecida. Seus temas e a tímida
relação que começam a estabelecer com o espaço em volta são o germe da grande obra
que Schwitters principiou em 1923, a primeira de suas quatro Merzbau (figs. 46 a 51), a
verdadeira realização de seu sonho de uma Merzgesamtkunstwerke.

b. Obra sem fim


Nos dois capítulos anteriores, vimos que, em Mondrian e Malevitch, o que
convencionamos chamar de dimensão mítica se constituía a partir de um processo
fundamentado na repetição de uma mesma estrutura composta de um número reduzido
de elementos variáveis (fundo branco, planos de cor, linhas, figuras geométricas). Desta
repetição de uma mesma estrutura, resultava uma série de obras parecidas entre si, mas
nunca iguais. Nesta parte deste estudo, no que propomos denominar dimensão ritual, o
processo permanece aberto não por meio da repetição de uma mesma estrutura, mas
pela infinitude própria a um determinado trabalho. A dimensão ritual, portanto, se
verifica em torno da constituição de uma peça. É por esta razão que vou me deter, aqui,
numa obra particular, e não num conjunto delas, como fiz quando tratei dos processos
nos quadros de Mondrian e Malevitch. Tanto a Merzbau, de Schwitters, quanto La
mariée mise à nu par ses célibataires, même, de Duchamp, são obras inconclusas: a
primeira, como veremos a seguir, pela própria impossibilidade de concluí-la; a segunda,
por exaustão. Em ambas, o processo se constitui pelo não-encerramento, porque, ao
escolher não terminá-la, o artista deixa-a em aberto, em constante fluxo e, em
conseqüência, dota-a de – senão uma verdadeira, pelo menos uma virtual – capacidade
permanente de mutação. Na Merzbau, esta capacidade de mutação é real. Em La
mariée..., ela acha-se apenas em latência, como mostrarei no capítulo seguinte.
Vejamos, agora, o caso Schwitters.
Nas colagens e assemblagens Merz, o fim estava previsto pelo próprio artista:
«O quadro está terminado quando você não puder tirar ou juntar qualquer coisa sem

161
desarranjar o ritmo presente».469 A Merzbau, por outro lado, era, para Schwitters,
«inacabada, e por princípio».470 Este é um dos motivos que faz com que as primeiras se
circunscrevam a uma dimensão ainda mítica, como já fiz notar anteriormente, e a última
possa ser tratada dentro de uma dimensão ritual. Porém, antes de prosseguirmos,
convém esclarecer o que, afinal, é a Merzbau. Em alemão, bau significa «construção»,
«edifício», «prédio». Merzbau pode ser compreendida, portanto, dentro de uma lógica
arquitetônica, como «construção Merz» – mas aqui optei por preservar sua denominação
alemã. No entanto, esta não pode ser reduzida a uma peça arquitetônica ou de
decoração. «Para que não haja mal-entendido, eu lhe direi francamente que meu mundo
de trabalho não tem nada a ver com a decoração, e que eu não realizo, de modo algum,
um interior onde as pessoas possam morar, porque os novos arquitetos chegam a isso
muito melhor que eu. Eu construí uma escultura abstrata (cubista) em que se pode ir e
vir».471 Na própria definição que Schwitters dá de sua realização:

A Merzbau é a construção de um espaço interior de formas plásticas e de cores.


Nas grutas envidraçadas, as composições merz formam um volume cúbico e reúnem formas
cúbicas brancas para formar uma arquitetura interior. Cada parte interior serve de elemento
à parte seguinte. Não há detalhes que formam em si uma unidade, uma composição parcial.
Um grande número de formas diferentes servem de intermediárias entre o cubo e as formas
indefinidas.472

Erigida no próprio estúdio de Schwitters, a Merzbau se constituía, grosso modo, como


uma grande construção feita a partir do acúmulo dos mais diversos fragmentos de
detritos e partes de objetos encontrados nas ruas. Enquanto não se cessasse de agregar
elementos a ela, ela não parava de crescer e, conseqüentemente, nunca era dada por
encerrada.
Schwitters realizou quatro construções Merz ao longo de sua vida, cada uma
num dos lugares onde morou ou, pelo menos, onde passou algum tempo: em Hannover
(1923-1937), em Lysaker (1937-1938), em Hjertoy (1934-1939) e em Ambleside (1947-
1948). Destas, a de Hannover foi destruída pelos bombardeios em 1943, e a de Lysaker
foi totalmente incendiada, sem intenção, em 1951, por crianças que brincavam nas

469
Kurt Schwitters, «Art abstrait», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 267.
470
Kurt Schwitters, «Moi et mes objectifs», compilado no catálogo do Centre Georges Pompidou, Kurt
Schwitters, p. 250.
471
Kurt Schwitters em carta a Alfred H. Barr, então diretor do Museu de Arte Moderna de Nova York,
datada de 1933, citada por Dietmar Elger, «L’oeuvre d’une vie: les Merzbau», compilado no catálogo do
Centre Georges Pompidou, Kurt Schwitters, p. 140.
472
Kurt Schwitters, «Le grand Groupe et la Caverne d’or», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 181.

162
proximidades. A de Hjertoy só foi descoberta em 1993, e restaram apenas fragmentos
de uma construção Merz em suas paredes.473 A última delas, a de Ambleside, como
apenas começava a ser feita, pouca coisa havia sido agregada a ela e este pouco foi
transferido, em 1965, a pedido do Departamento de Belas Artes da Universidade de
Newcastle, para a Galeria Hatton desta universidade. Por que chegaram a nossos dias
basicamente apenas fotografias de época e relatos – nem sempre confiáveis – de quem
visitou as construções, torna-se difícil tentar remontar e compreender estes trabalhos de
Schwitters.474 Como a mais trabalhada delas foi a de Hannover e sobre a qual maior
número de documentos e relatos foi compilado e guardado, centrar-me-ei nela. A outra
Merzbau que poderia ter atingido uma mesma amplitude era a de Lysaker, mas, como
foi realizada em pleno início da guerra, pouco foi visitada e não sobrou dela nenhuma
fotografia. Voltemos, portanto, nossa atenção à Merzbau de Hannover, cidade natal de
Schwitters.
Tudo começou no início da década de 1920 com uma coluna, a Merzsäule (fig.
44), construída na casa onde Schwitters morava com a família no número 5 da
Waldhausenstrasse. Tratava-se de uma coluna toda forrada de recortes de jornais e
revistas. Em seu topo, o artista depôs o busto de sua esposa Helma, produzido em 1917.
Por volta de 1923, ano que pode ser considerado como o início da Merzbau,475 em
virtude de problemas financeiros, Schwitters foi obrigado a vagar duas peças de sua
casa – uma delas era o quarto em que estava a coluna – para alugá-la a uma outra
família. Assim, sua coluna foi reconstruída em outro aposento do mesmo prédio, dando
início à segunda versão da Merzsäule (fig. 45). Só que, desta vez, o busto de Helma foi
substituído por um molde em gesso de uma cabeça de menino, além de ter uma série de
colagens acrescentadas a seu exterior, boa parte delas oriundas de recortes de revistas de
vanguarda com artigos do próprio artista. Afora isso, ainda acrescentou à sua nova
coluna uma colagem, de 1918-1919, intitulada O primeiro dia (fig. 41), na qual
aparecem, em torno de uma reprodução de uma coluna clássica, uma série de
fragmentos, representando anjos. Supondo-se que, na época da construção desta coluna,

473
Ver Dietmar Elger, op. cit., p. 143.
474
No início da década de 1980, foi reconstruída, a partir de fotografias, uma das salas, a Sala da Janela
Azul (Das Blaue Fenster), da Merzbau de Hannover, no Museu Sprengel da mesma cidade.
475
No texto «Eu e meus objetivos», de 1930, Schwitters diz que vinha trabalhando na Merzbau há sete
anos, o que remonta seu início a 1923. Ver Kurt Schwitters, «Moi et mes objectifs», compilado no
catálogo do Centre Georges Pompidou, Kurt Schwitters, p. 250.

163
Schwitters já imaginava que faria dela o princípio e o centro de uma grande construção
que tomaria vários andares e aposentos de sua casa, talvez pudéssemos interpretar o
título desta colagem ao mesmo tempo como denotativo – o dia em que foi realizada a
coluna foi o primeiro dia da Merzbau – e como conotativo – o primeiro dia a que se
refere o título como o primeiro dia da Criação, e, assim, estabelecendo-se uma
equiparação entre a Criação divina e a criação do artista. Logo esta segunda coluna foi
cercada por outras esculturas Merz, como a já citada A forca do prazer e ainda A santa
aflição (Die heilige Bekümmernis) e O culto da bomba (Die Kultpump), de 1919.476 A
primeira se compõe de um torso de um manequim sem cabeça, em torno do pescoço do
qual Schwitters dependurou uma placa e uma caixa toda forrada de colagens. Esta caixa
aparece aberta, como a de vendedores ambulantes, portando num dos lados uma
manivela e em cima dela, uma vela. No lugar de um dos braços do manequim, está uma
bola de Natal; e no lugar da cabeça, uma lâmpada. A bomba do culto, por sua vez,
lembra mais o formato de A forca do prazer, sendo, no entanto, mais abstrata. Como
esta última, aquela também se acha sobre uma caixa de madeira, sobre a qual Schwitters
organizou algumas bugigangas numa composição em que relaciona objetos dispostos
vertical e horizontalmente, tendo como elemento central um disco pintado. Esta
composição parece-se muito com suas colagens e assemblagens desta época.
Voltando à evolução da Merzbau, no princípio, recorda Ernst Schwitters, estas
esculturas dispunham de um largo espaço em torno delas, sendo acessíveis por qualquer
um dos lados.

Porém não por muito tempo, porque seu número aumentou continuamente, multiplicando-
se ao infinito e, ao mesmo tempo, surgiam de arcas profundas a forma de relevo das
MERZbilder [pinturas Merz] e das Grutas, como uma espécie de estrutura de cenário. Tudo
isto necessitava lugar e, assim, o espaço no estúdio de Kurt Schwitters se tornou mais
limitado, a distância entre a obra particular sempre mais exígua. Ao mesmo tempo, criaram-
se também relações entre as obras particulares, e era só questão de tempo para chegar à
inevitável conseqüência. Um dia, duas obras, até então livres no espaço, cresceram juntas, e
este marcou o início!477

Aos poucos, como em suas colagens, Schwitters ia somando mais e mais resíduos do
lixo urbano à sua construção. Seu princípio era a aglutinação: ele construía sem jamais
destruir as partes anteriores. Com o tempo, fabricou grandes armações em gesso e
madeira, a maior parte delas pintadas de branco, que ligavam as inúmeras colagens,
476
Ver Ernst Schwitters, «Non se sa mai», op. cit., p. 9.
477
Idem, p. 9.

164
produzindo um estranho e absolutamente irreal ambiente interior. Käte T. Steinitz,
artista, amiga e colaboradora de Schwitters, que freqüentava regularmente a casa dele,
recorda como surgiu a coluna e como esta foi progressivamente se ampliando:

Um dia, uma coisa, que parecia uma cruz, apareceu no estúdio, entre um cilindro ou um
barril de madeira e uma mesa alta de cepo com a casca crescendo desordenadamente. Esta
se desenvolveu a partir de um monte caótico de vários materiais: madeira, papelão, ferro,
sucata, móveis quebrados e moldura de quadros. Rapidamente, no entanto, o objeto perdeu
toda sua relação com qualquer coisa feita pelo homem ou pela natureza. Kurt chamou-a de
«coluna».478

Em 1927, já não se podia mais utilizar como estúdio a sala de 4,4m x 5,4m, com
4m de pé direito, em que havia montado sua segunda coluna: estava tudo tomado por
sua nova construção. Restava partir para outros espaços. Foi em março daquele ano que
o pintor Rudolf Jahns visitou a casa de Schwitters por ocasião do encontro dos
Abstratos de Hannover e descreveu a gigantesca construção nestes termos:

Mesmo o caminho que levava a ela, ao longo de um estreito corredor, revelava algumas
coisas interessantes. Eu me lembro de um busto, de cerca de 50 cm de altura: as costas
escondidas pela metade por uma tábua, a frente coberta com uma tela de arame. Duas
estranhas criaturas com corpos brancos, grandes e sujos estavam deitadas no feno. Cada
uma delas tinha só uma perna preta, grossa, torta, em forma de S. O peito estava preenchido
com uma misteriosa meia-luz, o que significava que se sentia mais do se via estas criaturas.
Elas eram dois largos isoladores de porcelana, como aqueles que se vêem nos postes
telegráficos ao lado dos trilhos do trem. Suas aparências foram inteiramente transformadas.
Em seguida, nós entramos na coluna em si através de um estreito corredor, que estava
mais para uma gruta: uma construção em gesso pendia do revestimento da porta (...).
Schwitters me pediu para entrar na gruta sozinho. Então eu entrei na construção que, com
todas suas voltas, parecia, ao mesmo tempo, uma concha de caracol e uma gruta. O
caminho pelo qual se chegava ao meio era muito estreito porque novas estruturas e
assemblagens, bem como as grutas e os relevos Merz existentes, pendiam de todos os lados
da parte do ambiente ainda não ocupada. Lá no fundo, à esquerda da entrada, pendia uma
garrafa contendo a urina de Schwitters, na qual flores sempre-vivas estavam flutuando.
Havia então grutas de vários tipos e formas, cujas entradas não estavam sempre no mesmo
nível.479

Segundo Schwitters, a Merzbau ou Coluna (Die Säule) ou Catedral da miséria erótica


(Kathedrale des erotischen Eledens) ou ainda simplesmente K d e E, «porque vivemos
na época das abreviações», «crescia ao acaso segundo o princípio de uma grande
cidade, em qualquer parte uma nova casa será construída, e o escritório de urbanismo
deve velar para que esta nova casa não venha a estragar a imagem da cidade em seu

478
Käte T. Steinitz, Kurt Schwitters: A Portrait from Life, p. 90.
479
Rudolf Jahns citado por John Elderfield, Kurt Schwitters, p. 153.

165
conjunto».480 Aos poucos, iam se formando espaços interiores dentro de sua «cidade».
Schwitters observa:

O aumento da armadura produz vales, cavidades, grutas que traçam em seguida


suas próprias vidas no interior do conjunto. O cruzamento das linhas com as superfícies
produz formas torcidas helicoidais. Um sistema de cubos na forma geométrica mais estrita
acompanha o conjunto, passa por cima das formas tortas e desfaz-se até a completa
decomposição.481

Muitos amigos do artista descreveram esta intrigante construção artística. A


maior parte deles com um misto de assombro e entusiasmo. Käte T. Steinitz recorda:

A estrutura em forma de coluna era oca. Mais tarde, quando ela começou a crescer como
uma torre, algumas divisões irregulares ou plataformas dividiram-na em setores. As paredes
internas foram perfuradas com entradas para as cavernas – mais ou menos escuras,
dependendo se a eletricidade estava ou não funcionando. As entradas da caverna estavam
em níveis diferentes e nunca diretamente uma acima da outra. Se alguém queria visitar
todas as cavernas, tinha que percorrer todo o caminho em torno da coluna.
(...)
As cavernas foram emparedadas e não se podia mais entrar nelas. Elas foram igualmente
fechadas com figuras de madeira coloridas e retangulares, ou elas simplesmente
desapareceram nas profundezas da coluna, que gradualmente se tornou uma catedral.
Algumas partes da Catedral da miséria erótica estavam neste estágio de transição quando
eu as vi e fotografei pela última vez. Um pequeno porquinho-da-índia estava sentado numa
das partes projetadas para fora.482

Hans Arp, por sua vez, em texto dedicado a Schwitters no ano da morte deste, em 1948,
não deixou de comentar a espantosa realização do amigo:

Sua casa em Hannover foi perfurada de fio a pavio por passagens como galerias de
mina, por fendas artificialmente criadas através dos andares, por túneis em caracol
religando o porão ao teto. A influência do estilo do Rei Sol não era evidentemente
preponderante na casa. Por um esforço intenso e mantido durante os anos, ele teve êxito em
«merzar» completamente seu imóvel. Por suas cavernas, antros, abismos, fendas despontam
as monumentais colunas «Merz», colunas artisticamente revestidas por meio de tábuas,
ferros velhos enferrujados, espelhos, rodas, retratos de família, molas, jornais, tijolos,
cimento, cromos, gesso, cola, muita cola, muita cola.483

E Hans Richter também se lembra da primeira vez em que viu a Merzbau, ainda na
década de 1925:

480
Kurt Schwitters, «Moi et mes objectifs», compilado no catálogo do Centre Georges Pompidou, Kurt
Schwitters, p. 250. Interessante notar que Mondrian e Schwitters parecem exemplificar as duas atitudes
modernas perante a metrópole: o ímpeto de ordená-la por meio do planejamento urbano geometrizante e,
por outro lado, o fascínio com sua desordem constitutiva.
481
Kurt Schwitters, op. cit., p. 250.
482
Käte T. Steinitz, Kurt Schwitters: A Portrait from Life, pp. 90-91.
483
Hans Arp, «Kurt Schwitters», compilado por Marc Dachy, Merz: écrits, p. 331.

166
Esta sua obra principal era uma criação pura, que não se destinava à venda. Ela não
podia ser transportada, e tampouco era passível de ser definida na sua configuração.
Construída no (e nos) aposento(s) de sua residência, esta coluna passava permanentemente
por transformações protéicas, nas quais, a cada vez, uma nova camada cobria, englobava e
tornava invisível a forma anterior.
No fim do corredor e no segundo andar da casa que Schwitters havia herdado, havia uma
porta que levava a um aposento de tamanho médio. No centro deste aposento, encontrava-
se uma escultura de gesso abstrata. Nesta época, por volta de 1925, ela ocupava
aproximadamente um quarto do espaço, e chegava quase até o teto. Ela se assemelhava a
esculturas mais antigas de Domela ou Vantongerloo, se é que qualquer coisa que Schwitters
produzisse podia se assemelhar a qualquer outra produção. Mas aqui não se tratava apenas
de uma escultura, e sim de um documento vivo de Schwitters e seus amigos, que se
modificava a cada dia. Ele explicou-me a obra, e eu vi que a escultura, como um todo, era
um complexo feito de cavernas. Uma estrutura de formas côncavas e convexas, que abriam
cavidades na escultura e a dilatavam, formando saliências.484

Nestas cavidades que tomavam a forma de grutas e cavernas, Schwitters não


dispunha apenas objetos achados na rua, mas também pequenas coisas que surrupiava
dos amigos, como um sutiã de Sophie Taüber-Arp, uma mecha de cabelo de Richter,
uma chave de Steinitz: «Eu não trabalhei ativamente na coluna, mas lembro que Kurt
dispôs nela uma chave minha perdida, a qual estava procurando desesperadamente. Ele
a colocou próxima a uma prescrição médica escrita pelo Dr. Steinitz e à caixa de pílulas
que Schwitters comprou mas nunca tomou».485 Havia grutas e cavernas para seus
amigos e para personalidades da história e da mitologia alemãs, bem como havia
aquelas separadas por temas, como amor, assassinato etc. Até mesmo uma casinha para
seus porquinhos-da-índia, uma paixão de Schwitters, num belo estilo Le Corbusier,
construído com a ajuda de Mies van der Rohe, podia ser encontrada entre aquela
enxurrada de coisas. Elderfield calcula, a partir de descrições de visitantes e do próprio
Schwitters, que existissem cerca de quarenta grutas. Conta Richter:

Lá havia, de fato, uma caverna de Mondrian, e cavernas de Arp, Gabo, Doesburg, Lissitzky,
Malevitch, Mies van der Rohe, Richter. Uma caverna era para o seu filho, outra para a sua
esposa. Cada caverna continha detalhes muito pessoais da vida de todas essas pessoas. Ele
cortou uma mecha do meu cabelo, e colocou-a na minha caverna. Um lápis grosso,
recolhido da mesa de desenho de Mies van der Rohe, encontrava-se no espaço a ele
reservado. De outras pessoas, havia um pedaço de cordão de sapato, um cigarro fumado
pela metade, uma unha cortada, um pedaço de gravata (Doesburg), uma pena quebrada.
Mas também havia coisas muito estranhas, e mais do que estranhas, como por exemplo
partes de uma dentadura com alguns dentes, e até mesmo um pequeno frasco de urina, com
o nome do doador. Tudo isto estava colocado em buracos separados, reservados para cada
pessoa. Alguns de nós ocupavam várias cavernas, o que dependia da disposição de espírito
de Schwitters a cada momento... e a coluna crescia.486

484
Hans Richter, Dadá: arte e antiarte, p. 208.
485
Käte T. Steinitz, Kurt Schwitters: A Portrait from Life, pp. 90-91.
486
Hans Richter, op. cit., pp. 208-209.

167
Poucos foram os amigos – Raoul Hausmann e Hannah Höch entre eles –
convidados a trabalhar em grutas específicas. As outras foram todas produzidas pelo
próprio Schwitters. Num texto escrito em 1930 (mas só publicado no número 2 da
revista Merz, em 1932), em que esclarecia suas intenções em relação à arte em geral e à
Merzbau, em particular, o artista falava um pouco acerca de algumas grutas:

Cada gruta tem objetos particulares que a caracteriza. Há lá a caverna dos Nibelungos com
seu tesouro que brilha, o Kyffhäuser487 com sua mesa em pedra, a gruta de Göthe [sic] com
um osso de Göthe como relíquia e seus numerosos lápis quase usados até a ponta, a liga
rompida das cidades Brunswick-Lunebourg com as casas de Weimar por Feininger, uma
propaganda de Persil e o projeto da cidade de Karlsruhe desenhado por mim, a gruta do
assassinato com estupro com o cadáver odiosamente mutilado de uma lastimável
adolescente, colorido com tomate e de inumeráveis oferendas, o fosso de Ruhr com seu
carvão fóssil e seu carvão autêntico, a exposição artística com quadros e esculturas de
Michelangelo e de mim, onde o único visitante é um cachorro com seu adestrador, a gaiola
do cachorro e seu cachorro vermelho, o órgão que é preciso que seja virado ao contrário
para que toque Stille Nacht, heilige Nacht e Ihr Kinderlein kommet, o mutilado de guerra
pensionado a 10% com sua filha, a qual perdeu a cabeça, mas que agora se acha bem, a
Monna Hausmann, que se compõe de uma cópia da Mona Lisa com um rosto sobrecolado
por Raoul Hausmann, que lhe subtraiu completamente seu sorriso estereotipado, o bordel
com uma mulher de três pernas, arrumada por Hannah Hoech, e a grande gruta do amor. A
gruta do amor sozinha preenche ¼ da superfície interior da coluna (...). Eu forneci aqui
apenas uma modesta parte do conteúdo literário da coluna. Algumas grutas desapareceram
depois de um longo tempo sob a nova superfície, como, por exemplo, o canto de Lutero.488

Enquanto havia pessoas que se maravilhavam positivamente com esta obra de


Schwitters, como Arp, que a via como uma obra tão grandiosa quanto qualquer peça do
Louvre – «Este monumento sem igual no velho e no novo mundo não dá, entretanto,
nunca a impressão de um passatempo de um sujeito cheio de caprichos e tolo. Bem ao
contrário, a beleza do ritmo desta obra a aparenta às obras-primas do Louvre»489 –,
outros duvidavam da sanidade mental do artista. Sophie Lissitzky-Küppers conta que
ela e El Lissitzky ficaram estupefatos frente à Merzbau. Para ela, «o limite entre
originalidade e loucura das criações, sejam plástica ou literária, de Schwitters não era
mais claramente discernível».490 E Alexander Dorner, que foi crítico de arte e presidente
da Kestner-Gesellschaft e do Niedersächsischas Landesmuseum, e considerava as
composições Merz «experimentos positivos e pioneiros», disse que, na Merzbau, a

487
Nome do monte em que se acredita esteja enterrado o rei germânico Frederick I, o Barba Ruiva, cujo
reinado durou de 1152-1190.
488
Kurt Schwitters, «Moi et mes objectifs», compilado no catálogo do Centre Georges Pompidou, Kurt
Schwitters, pp. 250-251.
489
Hans Arp, «Kurt Schwitters», compilado por Marc Dachy, Merz: écrits, p. 331.
490
Sophie Lissitzky-Küppers, El Lisitskij, p. 26.

168
«livre expressão do ser social incontrolável ultrapassou aqui o vão entre sanidade e
loucura». Segundo ele, a Merzbau era «um tipo de mancha fecal – uma recaída doente e
doentia na irresponsabilidade social do garoto que brinca com lixo e imundície».491
Quando o governo nazista qualificou sua arte, como toda a melhor arte moderna
produzida na época, de degenerada e passou a queimar trabalhos seus na rua, Schwitters
abandonou a Alemanha e a sua Merzbau e se instalou, com seu filho e sua nora, em
Lysaker, uma pequena cidade na Noruega. Naquele ano, em 1937, sua construção
ocupava três andares e quatro peças da casa de Hannover.492
Nenhuma das Merzbau que edificou posteriormente teve a amplitude de sua
primeira. Em Lysaker, montou-a no jardim de sua casa durante três anos, ocupando um
ambiente de 4,5m x 5m por 5m de altura. Como as visitas eram raras, pouco pôde
acrescentar às também raras grutas e cavidades.493 Numa casinha de 14 metros
quadrados em Hjertoy, pequena ilha norueguesa onde ia regularmente nas férias a partir
de 1934, Schwitters acumulou uma série de materiais e chegou a pregar e colar alguns
pedaços de revistas, jornais e reproduções de obras de arte nas paredes e na porta do
único ambiente. Segundo Dietmar Elger, um dos críticos que estudou mais a fundo as
Merzbau, o artista apenas se referiu a esta construção de maneira alusiva e nunca a
chamou de Merzbau.494 No entanto, quando descoberta, verificou-se que tinha
características semelhantes às outras. Elger descreve o que continha em seu interior:

As divisões e as portas foram quase inteiramente recobertas de papéis e de


fragmentos de colagens de proveniências variadas. As fotografias atuais da peça, muito
estragadas pelo vento, permitem identificar algumas fontes. O material mais utilizado
provém de jornais (Dagbladet), dos quais Schwitters utilizava ora páginas inteiras, ora
títulos ou palavras cortadas. Depois, páginas isoladas de livros alemães ou noruegueses,
fotografias, envelopes, páginas da coleção de contos Die Scheuche, publicada em 1925 com
Theo van Doesburg e Käte Steinitz, mais ainda fragmentos de cartas manuscritas ou
poemas.495

Com a chegada das tropas alemães à Noruega, em 1940, Schwitters, seu filho e sua nora
foram obrigados a fugir mais uma vez. Desta feita, dirigiram-se para a Inglaterra. Lá, foi
capturado e preso durante dezessete meses, sob a ridícula alegação de espionagem para

491
Alexander Dorner citado por John Elderfield, Kurt Schwitters, p. 162.
492
Ver François Bazzoli, Kurt Schwitters: «l’art m’amuse beaucoup» – biographie 1887-1948, p. 102.
493
Ver Dietmar Elger, op. cit., p. 143.
494
Elger cita duas cartas em que Schwitters faria referência a seu trabalho em Hjertoy: uma endereçada a
Nelly van Doesburg, de 22 de maio de 1939, e outra a Henriette, Ernst e Esther Schwitters, de 16 de
junho de 1939 (ver op. cit., p. 151).
495
Dietmar Elger, op. cit., p. 144.

169
o governo alemão. Depois de liberto, já em 1943, se instalou em Ambleside, onde
permaneceu até sua morte. Neste período final, suas crises de epilepsia se agravaram,
um ataque do coração paralisou temporariamente metade de seu corpo e um outro
ataque subseqüente o cegou por alguns meses. Afora isso, Schwitters ainda quebrou o
fêmur. No verão de 1947, recebeu uma bolsa do Museu de Arte Moderna de Nova York
para restaurar uma das Merzbau. Schwitters propôs fazer uma nova. Assim, mesmo
condenado à cama – «Durmo vinte horas por dia e trabalho quatro. Eu estou todo o
tempo sofrendo»496 –, iniciou a quarta e última de suas construções Merz, que
denominou Merzbarn (celeiro Merz), por ser esta situada no celeiro emprestado pelo
amigo Harry Pierce. Menos de seis meses depois de principiado seu trabalho derradeiro,
Schwitters morreu, em 8 de janeiro de 1948, um dia depois de obter a cidadania inglesa.
Qualquer uma das quatro Merzbau era realmente, por princípio, inacabável.
Enquanto houvesse espaço, suas Merzbau continuariam se expandindo, não cessando
nunca o processo de sua realização. E este é apenas um dos fatores de inovação deste
trabalho. Além disso, a Merzbau criou um novo tipo de relação do artista com sua obra,
da obra com o público e do artista com o público. À volta desta construção artística,
estabeleceu-se uma nova espécie de ritual, comandado pelo artista e vivenciado por
quem nela penetrou. São os elementos que identifico numa série de ações que estão no
centro do processo criativo da Merzbau e que determinam essas novas relações – ações
estas que podem ser vistas como análogas àquelas verificadas nos ritos de um modo
geral – que proponho reunir sob a designação de dimensão ritual. Para François Bazzoli,
«livre da encenação [mise en scène] e do espetáculo, ela [a Merzbau] se torna um dedo
de luva: não é mais a História, é a história humana que está na obra, um viés entre a
etnologia urbana e a mitologia cotidiana».497

c. Artista-oficiante
Comecemos pelo novo papel desempenhado pelo artista na Merzbau.
Em 1918, ao se apresentar a Raoul Hausmann como um pintor que pregava seus
quadros, Schwitters já indicava uma mudança que, naquela época, apenas começava a
se esboçar em sua relação como artista-produtor com sua obra. Com a realização não só
496
Kurt Schwitters em carta a Käte T. Steinitz, reproduzida por François Bazzoli, op. cit., p. 126
497
François Bazzoli, op. cit., p. 22.

170
das colagens e das assemblagens como também de todo o universo Merz – poesia,
tipografia, escultura, arquitetura, desenho gráfico etc. –, Schwitters concebia um novo
modo de proceder na criação e execução de um trabalho. Gillo Dorfles, muito
pertinentemente, em 1959, já chamava a atenção para a diferença existente entre as
composições Merz e aquelas precedentes, que se serviam de técnicas análogas, como as
produzidas por Arp, Sonia Delaunay e pelos cubistas:

Não é só o caso de aproximar lascas de madeira, velhas cédulas de banco, recortes


de jornais, pedaços de barbante, de fio de ferro, de penas, e não é só da desusada poesia que
cada objeto do passado conserva que se constitui o fascínio destes trabalhos; seu significado
profundo é aquele de uma arte que soube renunciar à preciosidade da matéria, do empaste,
do pincel, para construir com o mais humilde material, salvo da poeira da estrada, do cesto
de lixo, das derrotas de uma guerra perdida.498

De fato, a mudança em sua relação com a obra se iniciou com a abdicação do


uso da matéria-prima tradicional da arte – e nisto começou a se diferenciar de artistas
como Mondrian e Malevitch – e teve seguimento na substituição do pincel e da tinta
pela cola, pelo prego, por fragmentos de objetos encontrados. De pintor, Schwitters,
com suas composições Merz, transformou-se, num primeiro momento, no que John
Elderfield chamou de «coletor de anomalias».499 Sua eterna procura por materiais,
preferencialmente por pedaços e estilhaços de coisas do que por objetos inteiros, tornou-
se uma obsessão e uma compulsão.500 Schwitters ficou conhecido por viajar com uma
pasta cheia de recortes e detritos recolhidos e de trabalhos em andamento.501 Ernst
Schwitters conta que, enquanto andava e conversava com os amigos, seu pai volta e
meia se abaixava para pegar um bilhete de trem ou qualquer outra tira de papel que vira
no chão.502 Steinitz relata que «ele sempre descia da sua bicicleta para pegar alguns
pedaços de papel colorido que alguém havia jogado fora. Ele pegava pequenas pedras e
vidros quebrados e também coisas sem atrativos, como se elas fossem jóias».503 Richter
recorda ainda de uma anedota engraçada a respeito desta mania de Schwitters:

498
Gillo Dorfles, Kurt Schwitters, pp. 3-4.
499
John Elderfield, Kurt Schwitters, p. 57.
500
François Bazzoli faz um «inventário não-exaustivo», de quatro páginas, dos materiais utilizados por
Schwitters em suas composições Merz, incluindo a Merzbau, de 1917 a 1947 (Op. cit., pp. 129-133).
501
Ver Richard Humphreys, «Kurt Schwitters: An Introduction», no catálogo Kurt Schwitters, de 1985, p.
19.
502
Ernst Schwitters, «Non si sa mai», op. cit., p. 7.
503
Käte T. Steinitz, op. cit., p. 68.

171
Um dia, nós íamos de trem a meu ateliê de Grünewald, onde ele passava freqüentemente a
noite quando estava em Berlim, eu vi Schwitters se ocupar, com as mãos atrás das costas,
diante da porta que conduzia ao interior do vagão. Eu lhe perguntei o que ele fazia, mas ele
fez um sinal irritado. Subitamente, nós não tínhamos nem chegado a nosso destino, ele
saltou do trem. Era inútil tentar deter este homem de duzentas libras; eu saltei igualmente.
Em princípio, ele não respondia a meus protestos irritados, depois, à guisa de explicação,
ele me mostrou orgulhosamente a placa esmaltada «Proibido fumar» de vinte e cinco
centímetros que ele desatarraxara da porta com uma pequena chave de parafuso que
guardava sempre consigo. Para tais eventualidades, ele trazia sempre consigo um apetrecho
artístico de ladrão. Ele utilizou a placa esmaltada num quadro Merz que ficava na parede de
seu ateliê até minha partida da Alemanha.504

Na Parte I deste estudo, mencionara que a atitude de Schwitters aproximava-se


da prática do bricoleur, conforme descrita por Lévi-Strauss.505 Só para lembrarmos,
conforme Lévi-Strauss,

o bricoleur está apto a executar um grande número de tarefas diversificadas porém, ao


contrário do engenheiro, não subordina nenhuma delas à obtenção de matérias-primas e de
utensílios concebidos e procurados na medida de seu projeto: seu universo instrumental é
fechado, e a regra de seu jogo é sempre arranjar-se com os «meios-limites», isto é, um
conjunto sempre finito de utensílios e de materiais bastante heteróclitos, porque a
composição do conjunto não está em relação com o projeto do momento nem com nenhum
projeto particular mas é o resultado contingente de todas as oportunidades que se
apresentaram para renovar e enriquecer o estoque ou para mantê-lo com os resíduos de
construções e destruições anteriores.506

O trabalho do bricoleur, portanto, não depende de um projeto, ele se define pela sua
instrumentalidade, ou seja, é governado pelo princípio de que certo objeto pode servir
para determinado fim. Cada elemento é, assim, designado por sua utilidade dentro de
um contexto definido. As palavras do próprio Schwitters, em relação à edificação de sua
Merzbau, poderiam soar como as um bricoleur: «Eu encontro, então, um objeto
qualquer, eu sei que ele se conciliará com a K d e E, tomo-o, colo-o, colo-o novamente,
pinto-o no ritmo do efeito do conjunto, e um dia parece que é preciso criar numa nova
direção que passa totalmente ou em parte sobre o corpo do objeto».507
No entanto, acredito que não podemos reduzir a busca obsessiva de Schwitters
por frações de coisas a uma mera atividade de bricolagem. No meio do caminho entre a
rua e a Merzbau, o artista realizou uma série de pequenas ações, as quais poderiam ser

504
Hans Richter, «Kurt Schwitters», reproduzido por Marc Dachy, op. cit., p. 338.
505
John Elderfield já assinalara a semelhança entre estas duas práticas. Para ele, embora Lévi-Strauss não
tenha citado Schwitters na famosa passagem do primeiro capítulo de O pensamento selvagem, para
Elderfield, «Schwitters parece ser a mais apropriada personificação do bricoleur» (Op. cit., p. 394n).
506
Claude Lévi-Strauss, O pensamento selvagem, pp. 32-33.
507
Kurt Schwitters, «Moi et mes objectifs», compilado no catálogo do Centre Georges Pompidou, Kurt
Schwitters, p. 250.

172
reunidas sob uma mesma palavra, a noção de Entformung, desenvolvida pelo próprio
Schwitters para designar todo o trabalho de preparação dos fragmentos encontrados,
desde a retirada da rua até a inclusão na construção. Formung, em alemão, tem o sentido
de «formação», «moldagem», portanto, trata-se da ação de dar forma a alguma coisa. O
prefixo ent-, por sua vez, corresponderia aos de- e des- do português. Assim,
poderíamos traduzir Entformung como uma deformação, como uma ação que visa a dar
uma nova forma a algo que já tinha uma forma prévia. O próprio Schwitters explica seu
processo: «O artista cria escolhendo, repartindo e reformando os materiais. A
deformação [Entformung] dos materiais pode ser produzida graças às suas repartições
sobre a superfície do quadro. Essa é posteriormente reforçada pelo desmembramento,
pela dobradura, pela cobertura ou pela nova pintura».508 Em outro texto, precisa:

O que o material significa antes de seu uso numa obra de arte é uma questão de indiferença
já que ele é propriamente valorizado e recebe significado na obra de arte. (...) [as coisas]
perdem suas características individuais, seus próprios venenos [Eigengift], por serem
valorizadas umas em relação às outras, por serem desmaterializadas [entmaterialisiert], elas
se tornam material para o quadro.509

Como parte da Entformung dos materiais, muito do que Schwitters apanhava


fora de casa, em suas viagens e em seus passeios, era primeiro submetido a uma limpeza
profunda, antes de ser reformulado, organizado e disposto na Merzbau. Tanto Elderfield
quanto Gamard deduzem desta prática do artista uma espécie de ritual de purificação,
uma «limpeza estética», como se «os materiais e fragmentos que Schwitters utilizava
precisassem ser purgados do que ele chamava de seus Eigengift: «Os objetos tirados do
mundo tinham que ser purificados para se tornar parte da obra de arte, incluí-los e
contê-los dentro da obra de arte era um ato de purificação».510
Porém Elderfield e Gamard esquecem-se que nem tudo o que Schwitters
colocava em sua Merzbau passava por uma «purificação» – e refiro-me tanto aos
objetos – ou partes deles – que roubava dos amigos quanto aos recortes das próprias
publicações. Parece-me que se pode identificar aí dois movimentos paralelos: por um
lado, o artista pegava o material na rua, levava-o para casa, limpava-o e retrabalhava-o
cuidadosamente; por outro, tomava pequenas recordações suas, dos amigos e dos

508
Kurt Schwitters, «La peinture Merz», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 45.
509
Kurt Schwitters, «Die Bedeuntung des Merzgedankens in der Welt», citado por Elizabeth Burns
Gamard, op. cit., p. 27.
510
John Elderfield, op. cit., p. 237.

173
familiares e simplesmente as agregava à Merzbau. Quanto ao primeiro movimento,
concordo que podemos compreender a lavagem dos materiais como uma espécie de
«ritual de purificação». Nesta necessidade não só de limpeza, mas de deformação do
fragmento original encontrado, parece-me haver um intento de separar aquilo que faz
parte do mundo ao nosso redor daquilo que pode fazer parte do mundo de Schwitters, o
mundo que ele construiu, a sua Merzbau, talvez uma metáfora do mundo da arte (e
lembremos que, para ele, Merz era sinônimo de arte). Residiria, portanto, no
fundamento dessa ação, uma tentativa de estabelecer um limite preciso e uma
diferenciação clara entre o mundo exterior e o mundo de Schwitters. Dizia o próprio
artista: «um fragmento de natureza não se torna necessariamente uma obra de arte».511 E
o artista buscava estabelecer esta diferenciação justamente por meio de uma
contaminação que, em princípio, seria vetada: ele introduzia o «veneno», as coisas do
mundo exterior, no seio de seu mundo, como uma vacina que inocula o vírus a fim de
imunizar o indivíduo. Mas não sem antes ter o cuidado de retirar destas coisas qualquer
resíduo do mundo exterior, esvaziando-as de realidade.512
Por outro lado, certos materiais eram dispensados da «purificação». Talvez não
seja por acaso que estes fossem provenientes do próprio Schwitters, de sua família ou de
seus amigos. Se a hipótese descrita acima for aceita, estes materiais não precisariam
passar por uma lavagem porque eles, originalmente, já faziam parte do mundo de
Schwitters: ou eram objetos de pessoas que lhe eram próximas ou fragmentos de
revistas, jornais e livros seus. Eles não necessitavam, portanto, de uma «purificação»
das máculas deixadas pelo mundo exterior. Bastava retrabalhá-los.
Schwitters, assim, aliava à função do artista-produtor (aquele que produz seu
trabalho com suas próprias mãos) aquela do artista-oficiante. Achava-se sob sua tutela a
decisão única e suprema de, como um xamã secular, escolher o que, do lixo, deveria se
tornar arte e o que deveria permanecer lixo. É esta figura do artista-oficiante que se acha
no centro das ações que constituem a dimensão ritual em torno da Merzbau.

511
Kurt Schwitters, «i (un manifeste)», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 71.
512
Poderíamos evocar aqui a diferenciação que Émile Durkheim estabelece entre os domínios sagrado e
profano, como traços distintivos do mundo religioso. Durkheim observa que todo conjunto de rito tem por
objeto realizar a separação entre o sagrado e o profano e ressalta que o homem só pode entrar em contato
íntimo com as coisas sagradas quando se despoja das profanas (ver As formas elementares da vida
religiosa, pp. 318-321). Edmund Leach, por outro lado, descreve como, nos ritos de passagem, livra-se o
neófito de suas «impurezas» antes de fazê-lo penetrar no mundo dos iniciados (ver Comunicação e
cultura, pp. 111-112).

174
d. Texto e obra
Antes de prosseguirmos, creio que podemos nos deter um instante na relação
que se pode estabelecer entre os textos produzidos pelo artista e a sua obra. Tal qual
Mondrian e Malevitch, Schwitters também começou a escrever artigos e manifestos
sobre sua nova concepção de arte no momento mesmo em que chegou a ela. Nestes
textos, os primeiros dos quais datados de 1919, o artista, como Mondrian e Malevitch,
partia da renúncia de uma noção de arte como imitação da natureza e propunha, em seu
lugar, uma arte que fosse fundamentada em elementos estritamente pictóricos e que, em
conseqüência disso, resultasse abstrata. Em «Merz», depois de uma longa introdução em
que descrevia como se processava na pintura acadêmica a reprodução fiel da natureza e
reconhecia o seu débito com estes estudos,513 comentava:

Toda a intenção de reproduzir as formas da natureza traz consigo um prejuízo à qualidade


da elaboração conseqüente de uma expressão. Eu renunciei à reprodução de elementos
naturais e utilizei apenas elementos pictóricos. Estes são minhas abstrações. Eu conciliava
os elementos do quadro entre si, como na época da Academia, não mais com a finalidade de
reproduzir a natureza, e sim de a exprimir.514

Mais de dez anos depois, em 1933, reafirmou a necessidade de um distanciamento da


natureza para a construção de uma arte nova, num tom que lembrava muito os escritos
de Mondrian e Malevitch:

Eu faço uma grande diferença entre a lógica artística e a lógica científica, entre construir
uma forma nova ou observar uma forma na natureza. Construindo uma forma nova, cria-se
uma obra abstrata e artística. Observando uma forma na natureza, não se faz obra de arte,
estuda-se somente a natureza.515

Para Schwitters, «arte significa criar e não imitar a natureza».516 Arte deveria ser
«somente formação, criação»517 – e formação entendida aqui como aquilo que dá forma.
«A arte não é nunca outra coisa além de estrutura, evidência criadora.» Assim, completa

513
Schwitters jamais deixou de pintar paisagens e retratos, principalmente durante o tempo do exílio na
Noruega e na Inglaterra, quando seu sustento dependia destas pinturas figurativas.
514
Kurt Schwitters, «Merz», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 56.
515
Kurt Schwitters, «Le grand groupe et la Caverne d’or», compilado por Marc Dachy, op. cit., pp. 181-
182.
516
Kurt Schwitters, «Kurt Schwitters, Hannover, Waldhausenstr. 5», compilado por Marc Dachy, op. cit.,
p. 166.
517
Kurt Schwitters, «A mon sujet par moi-même», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 166.

175
Schwitters, «Ela não difere em nada do crescimento de uma planta ou de um cristal, da
vida das estrelas ou da construção de uma máquina».518
Mondrian e Malevitch preconizavam uma nova arte que se transformaria numa
realidade em si; Schwitters imaginava uma arte que viria ela própria se tornar natureza:
«A arte não é jamais uma imitação da natureza, ela é a própria natureza».519 O que
Mondrian e Malevitch entendiam por uma nova realidade não deixa de ter uma função
em comum com o que Schwitters propunha como uma nova natureza: ambas se
manifestavam como fuga da representação do mundo exterior. Para Schwitters, «a arte é
uma coisa que, no seu contexto, se forma naturalmente como uma árvore, um animal ou
um cristal».520 Enquanto uma tela que se resume a uma tentativa de reprodução da
natureza é essencialmente – e somente – imitação, «a nova arte naturalista se forma
como a natureza mesma e ela lhe é, portanto, mais próxima que qualquer imitação
jamais o será».521 E a definição do que queria dizer com natureza foi estampada, em
caixa alta, na capa do número duplo 8-9 da revista Merz, subtitulada Nasci, a qual
editou com El Lissitzky: «Natureza, do latim NASCI, isto é, tornar-se ou vir a ser, tudo
o que através de sua própria força se desenvolve, se forma ou se move».522
A arte, para Schwitters, se torna, como bem observa Elderfield, análoga a um
organismo natural,523 e Elger compara o crescimento da construção do artista ao de um
organismo vivo.524 Por trás desta concepção da arte como uma natura naturans, uma
natureza que se forma natureza, podemos vislumbrar o anseio de reconduzir a arte a um
estágio liberto de qualquer espécie de artificialidade, fazendo-a, com isso, retroceder a
um estado pré-artístico, verdadeiramente primitivo. A arte passa a ser concebida como
um Urbegriff: «A arte é um conceito primordial, sublime como a divindade,
inexplicável como a vida, indefinível e sem propósito».525

518
Kurt Schwitters, «[L’art d’aujourd’hui est une chose bizarre]», compilado por Marc Dachy, op. cit., p.
171.
519
Kurt Schwitters, «Le rythme dans l’oeuvre d’art», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 147. Grifo
meu.
520
Idem, p. 147. Grifo meu.
521
Kurt Schwitters, «Art et temps», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 143. Grifo meu.
522
Kurt Schwitters e El Lissitzky, na capa da revista Merz, número 8-9, reproduzida no catálogo do
Centre Georges Pompidou, Kurt Schwitters, p. 138.
523
John Elderfield, op. cit., p. 116.
524
Dietmar Elger, op. cit., p. 141.
525
Kurt Schwitters, «Merz», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 56. Publicado originalmente no
número 1 da revista Der Ararat, 1921.

176
Nos escritos de Schwitters, é possível ouvir um eco daquele ímpeto romântico
de retorno à natureza e evasão da vida cotidiana associados, por um lado, a uma tênue
espiritualidade de caráter expressionista e, por outro, a uma busca pela forma pura
provavelmente derivada de seu contato com os artistas e as obras construtivistas,
suprematistas e daquelas produzidas pelo grupo De Stijl («fui influenciado por Moholy,
Mondrian e Malevitch, porque nós vivemos na época dos M, cf. Merz»526). Assim
expressava-se Schwitters em «Eu e meus objetivos», de 1930, de seus textos, aquele que
melhor ajuda a compreender sua produção e seu entendimento de arte:

... não há nada mais precioso para o homem que a imersão na estrita legitimidade da arte.
Não interprete como uma blasfêmia o fato de que a noção de divindade, que, durante
milênios, fez o homem feliz além de todos os limites nacionais e sociais, soe como parente
próxima daquela da arte. A imersão na arte é comparável ao culto divino que liberta o
homem das inquietações cotidianas.527

E no «Manifesto da arte proletária»: «A arte é uma função espiritual do homem e visa


libertá-lo do caos da vida (do trágico)», em que se percebe claramente a influência das
idéias de Theo van Doesburg, com quem assina este texto.528
No entanto, embora possa se perceber uma certa tendência a uma
espiritualização nos escritos de Schwitters, não é possível extrair destes uma tentativa
de forjar qualquer forma de teologia ou mesmo de filosofia, como verificamos
anteriormente nos textos de Mondrian e Malevitch. A busca de Schwitters se volta ao
que há de primordial ou de primitivo na natureza. Excetuando o tom revelatório final,
poderiam ser do artista as palavras com que El Lissitzky categoriza a nova arte no
número 8-9 da revista Merz: «Nossa obra não é nem filosofia, nem um sistema de
conhecimento da natureza; é um membro da natureza e, por isso, não pode ela mesma
ser outra que um objeto da revelação».529 Enquanto, como vimos na parte dedicada à
dimensão mítica, os textos de Mondrian e Malevitch se relacionavam com as obras
como uma forma de lhes prover uma transcendência, em Schwitters, os escritos trazem
em si um desejo implícito de retorno, de recuperação do que foi perdido. Entretanto,
talvez não se trate aqui de uma procura por um paraíso perdido. Se prestarmos atenção

526
Kurt Schwitters, «Mon Merz et mon monstre Merz», compilado no catálogo do Centre Georges
Pompidou, Kurt Schwitters, p. 211.
527
Kurt Schwitters, «Moi et mes objectifs», compilado no catálogo do Centre Georges Pompidou, op. cit.,
p. 250.
528
Kurt Schwitters, «Manifeste Art Prolétarian», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 108.
529
El Lissitzky, Nasci, reproduzido por Sophie Küpers-Lissitzky, op. cit., p. 342.

177
aos materiais recolhidos pelo artista, notaremos que seu interesse recai sobre dejetos que
indiciam a vida urbana – como bilhetes de metrô, anúncios de periódicos, pedaços de
brinquedos, avisos de não fumar, fragmentos de jornais, tampas de latas etc. –, ou, em
outras palavras, que indiciam um mundo completamente controlado pelo homem e não
um mundo da natureza. Assim, talvez possamos compreender sua busca por um
momento anterior não necessariamente – ou somente – como uma busca por um
momento original e próximo ao que há de mais natural, como o fez Gauguin no Taiti,
mas como uma tentativa de recuperação também de uma civilidade perdida. Não
podemos esquecer que ele começou a produzir a Merzbau no período do entre-guerras,
quando a Alemanha enfrentava sua maior crise econômica e quando se criavam as
condições mínimas para o surgimento do nazismo.

e. Ordem
Parece-me que tanto este ímpeto rumo a um primordial quanto a compulsão ao
recolhimento interior e ao anseio por agregar materiais se traduzem numa busca pela
ordem. O próprio Schwitters compreendia sua Merzbau como um modo de organização
particular, oriunda da atividade criativa: «Pode-se dizer que a K d e E é a organização
criativa de todas as coisas numa forma pura, coisas que, à parte alguma exceção,
tiveram, no curso dos últimos sete anos da minha vida, importância ou não; mas nas
quais se insinuou uma certa forma literária».530 Desde suas primeiras colagens e
assemblagens Merz, podemos sentir uma vontade latente de reordenação do mundo a
partir de seus próprios fragmentos: é como se o artista tentasse recuperar ou restabeceler
um estado anterior de equilíbrio que fosse capaz de fazer frente ao caos de uma
Alemanha arrasada pela guerra. «Tudo estava em ruínas e era preciso construir o novo a
partir dos escombros», afirmava o artista num pequeno texto autobiográfico de 1930.531
«Eu construía, e a construção me interessava mais que os escombros.»532 Em outro
manifesto ainda: «O dever de Merz no mundo é: equilibrar os opostos e repartir os
pontos de gravidade».533

530
Kurt Schwitters, «Moi et mes objectifs», op. cit., p. 250. Grifo meu.
531
Kurt Schwitters, «Kurt Schwitters. Hannover, Waldhausenstr. 5», compilado por Marc Dachy, op. cit.,
p. 169.
532
Idem, p. 169.
533
Kurt Schwtitters, «Dadaismo in Olanda», reproduzido por Arturo Schwarz, Almanacco dada, p. 517.

178
A busca de Schwitters pela ordem se assentava num princípio equivalente à
mesma busca encetada por Mondrian e Malevitch. Embora possamos identificar, em
Schwitters, um desejo implícito de retorno, se não a um primordial, pelo menos a um
estado anterior de equilíbrio e harmonia, este desejo não se realiza por meio de uma
recuperação de imagens do passado (como no movimento de retorno à ordem que
apontamos em Picasso, Matisse e outros), mas, tal qual em Mondrian e Malevitch, como
uma procura por formas novas, que, paradoxalmente, termina por se realizar por meio
de um princípio formal comparável àquele sobre o qual se estruturam os mitos e os
ritos, formas tão antigas que, de um certo ponto de vista, deram origem à arte. Também
como em Mondrian e Malevitch, em Schwitters o encaminhamento em direção à ordem
se regia por uma declarada preocupação com a forma e o ritmo geral da composição:
«aquilo que mais importa num quadro é o ritmo das linhas, das superfícies, das sombras,
das luzes e das cores, em síntese o ritmo do conjunto dos componentes e dos materiais
de uma obra de arte»;534 «todo meio e todo material podem encontrar seu valor e seu
equilíbrio na obra de arte, mas o meio e o material não são o essencial, o que conta é a
arte que nasce da valorização do ritmo».535 E parece que ouvimos aí ecos de Malevitch
– «O quadro suprematista e as formas que dele procedem podem ser associadas às
marcas primitivas (símbolos) do homem aborígene, as quais representavam, em suas
combinações, não ornamento mas um sentimento de ritmo»536 – e Mondrian – «Em
pintura, é sempre o ritmo da cor e da linha que nos faz experimentar a realidade».537 No
entanto, enquanto estes dois últimos artistas procuravam reordenar o caos do mundo a
partir de um distanciamento em relação a este e pela criação de uma outra realidade
construída apenas com materiais e recursos estritamente pictóricos, Schwitters foi
buscar no próprio mundo exterior a sua matéria-prima. A sua ação, neste sentido, é
muito mais direta: ele coletava os cacos e os pedaços de uma civilização destroçada,
retrabalhava-os a fim de lhes retirar as impurezas do estado em que foram encontrados e
tentava re-significá-los no mundo ordenado de Merz. Schwitters talvez concordasse

534
Kurt Schwitters, «Le rythme dans l’oeuvre d’art», compilado no catálogo do Centre Georges
Pompidou, op. cit., p. 147.
535
Kurt Schwitters, «Moi et mes objectifs», compilado no catálogo do Centre Georges Pompidou, op. cit.,
p. 250.
536
Kasimir Malevitch citado por Robert Goldwater, Primitivism in Modern Art, p. 168.
537
Piet Mondrian, «Natural Reality and Abstract Reality: A Trialogue (While Strolling from the Country
to the City)», compilado por Harry Holtzman e Martin S. James, The New Art – The New Life: The
Collected Writings of Piet Mondrian, p. 87.

179
com os amigos Richter e Arp que, em texto publicado na revista G, em 1923,
afirmavam: «Não temos necessidade de beleza, que se liga ao nosso ser
(verdadeiramente orientado) como um rabisco, mas de uma ordem interior de nossa
realidade».538
Enquanto, em suas colagens e assemblagens Merz, a busca por ordem se
circunscrevia aos limites de um quadro, na Merzbau este mesmo ímpeto de reordenação
se concretizou no espaço, não como uma mera escultura, mas como uma grande
composição arredia à redução a um único gênero artístico, que, como vimos, se espraiou
para além dos confins do estúdio do artista. Não só era permitido como era necessário
caminhar e circular entre as grutas e as cavidades da Merzbau para poder apreciá-la em
toda a sua extensão. Aliás, operava-se aí uma mudança significativa na apreciação
estética, na relação entre obra e público: com a Merzbau, a obra deixava definitivamente
de ser contemplada e passava a ser experimentada, exigindo a participação ativa do
público e proporcionando a este uma experiência estética mais próxima às raízes da
palavra grega aisthésis, que designava «sensibilidade», «sensação». Schwitters
construiu sua Merzbau como um pequeno cosmos – palavra compreendida aqui em seu
duplo sentido de «ordem», «organização», por um lado, e «mundo», «universo», por
outro. Neste seu pequeno mundo – e recordemos que ele comparou seu crescimento ao
de uma cidade –, Schwitters era o centro e o grande criador: lembremos que a coluna
em que estava afixada uma colagem com referência ao primeiro dia da Criação marcou
o início de seu trabalho. Sobre o seu mundo, detinha o poder e o controle absoluto, uma
vez que era ele – e somente ele – quem escolhia o que e quem penetrava na Merzbau.
Desta forma, sua grande construção se tornou um «espaço controlado»,539 uma espécie
de «porto seguro»,540 onde o artista «podia se fechar e se retirar do mundo».541 Ao criar
um espaço controlado e, em função disso, proporcionar uma evasão do cotidiano,
Schwitters, de uma determinada forma, estava, ao mesmo tempo, oferecendo uma certa
proteção a quem na Merzbau entrasse. É eloqüente acerca desta vontade de proteção o
fato de que Schwitters dispôs uma cama no interior de uma das menores e menos

538
Hans Richter e Hans Arp, «[Nuova figurazione e arte spirituale]», reproduzido por Arturo Schwarz,
op. cit., p. 482.
539
Dorothea Dietrich, The Collages of Kurt Schwitters, p. 204.
540
Elizabeth Burns Gamard, op. cit., p. 6.
541
Dietmar Elger, op. cit., p. 150.

180
iluminadas salas de sua própria obra – este era o espaço, o seu casulo, no qual o artista
freqüentemente se recolhia para descansar.

f. Templo
Creio que chegou a hora de avaliarmos isoladamente o primeiro dos termos que
compõem o nome de uma das partes da Merzbau de Hannover e com o qual Schwitters
se referia também à sua construção como um todo: Catedral da miséria erótica. A
palavra catedral parece lançar luz sobre o caráter que Schwitters intentava atribuir à sua
construção. Em função dela, podemos supor que o mundo controlado de Schwitters não
se constituía como um simples mundo à parte, mas assumia os ares de um templo muito
particular. E não esqueçamos de que algumas de suas assemblagens em três dimensões
faziam referência a um universo religioso: O culto da bomba e A santa aflição.
Esta não era a primeira vez que o artista se valia da imagem da catedral em seus
trabalhos. O ano de 1920 marcou o início de uma recorrência, na obra de Schwitters,
desta forma específica de arquitetura (e de templo). Neste ano, publicou, pela editora de
Paul Steemann, um pequeno livro contendo oito litografias sob o título A catedral (Die
Kathedrale), na mesma coleção (O cavalo prateado) em que havia editado, no ano
anterior, seu primeiro volume de poemas (Anna Blume). Originalmente, o pequeno livro
chegava ao leitor fechado com uma tarja de papel em que se lia: «Lacrado por razões
sanitárias. Advertência: Antidadá. Retorne se o selo estiver rompido».542 Nas oito
litografias, não aparecia nenhuma catedral. De representação arquitetônica, via-se
apenas um provável edifício de apartamentos na capa e na sétima página, onde também
se encontrava um moinho de vento. Círculos, rodas e engrenagens, por outro lado, eram
as figuras que reapareceriam em cada uma das litografias, fosse escancaradamente,
como na segunda, ou discretamente, como na terceira.
O mesmo esquema de rodas e engrenagens repetia-se em Casa Merz, também
realizada em 1920 e considerada por Schwitters a sua «primeira arquitetura Merz».543
Esta forjava, a partir da justaposição de fragmentos de brinquedos e outros objetos, as
formas exteriores de uma igreja cuja nave apresentava-se como o mecanismo interior de

542
Segundo observação de Karin Orchard e Isabel Schulz em Kurt Schwitters: Catalogue raisonné –
1905-1922, p. 369.
543
Ver Kurt Schwitters, «Merz», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 59.

181
uma máquina. Foi o crítico Christof Spengeemann, num texto escrito ainda em 1920,
que a comparou a uma catedral, e sua comparação foi citada pelo próprio Schwitters em
seu artigo «Merz»:

Eu vejo a casa Merz como uma catedral. A catedral: não uma arquitetura religiosa,
não, mas a obra arquitetural enquanto expressão de uma verdadeira visão espiritual daquilo
que nos eleva rumo ao infinito: a arte absoluta. Esta catedral é inutilizável. Seu espaço
interior é tão repleto de rodas que ninguém pode conseguir lugar... Eis a arquitetura
absoluta na qual o único sentido é artístico.544

Spengeemann parece ter visto realizado na Casa Merz de Schwitters os ideais da


arquitetura expressionista correntes na época: a busca de uma nova espiritualidade que
tomaria forma na «catedral do futuro», a única possibilidade de união de todas as artes.
Era assim que se expressava Walter Gropius na carta endereçada aos estudantes da
Bauhaus, por ocasião da exposição anual dos trabalhos estudantis, em julho de 1919: «a
idéia religiosa surgirá novamente e finalmente deve encontrar sua expressão cristalina
na grande obra de arte total [Gesamtkunstwerk]. E esta grande obra de arte total, esta
catedral do futuro [Kathedrale der Zukunft], brilhará então com sua abundância de luz,
refletindo nos menores objetos da vida cotidiana».545 Como ilustração, o primeiro
manifesto da Bauhaus trazia em sua primeira página uma xilogravura de Lionel
Feininger – para quem Schwitters dedicou uma das grutas de sua Merzbau –, intitulada
A catedral do socialismo.
Não se sabe ao certo se Schwitters conhecia o texto de Gropius ou tinha visto a
ilustração do manifesto, mas não há porque duvidar de que ele tivesse conhecimento das
concepções do grupo de arquitetos expressionistas de sua época, apesar de nunca ter se
filiado a qualquer um deles. Em 1922, dois anos depois de sua Casa Merz e das
litografias de A catedral, Schwitters publicou uma reprodução de um novo trabalho seu,
novamente tendo a catedral como tema, Castelo e catedral com poço no quintal, na
revista Frühlicht, dirigida pelo arquiteto Bruno Taut, o qual, com Gropius, Adolf Behne
e outros, fundara, em 1918, o grupo Arbeitsrat für Kunst (Conselho de Trabalho pela
Arte), cuja meta era difundir uma nova arquitetura. Esta nova arquitetura tinha como
inspiração a imagem da catedral gótica, não tanto pelas suas formas, mas mais pela

544
Christof Spengeemann citado por Kurt Schwitters, «Merz», op. cit., p. 59.
545
Walter Gropius, «Address to the Students of the Staatliche Bauhaus, Held on the Occasion of the
Yearly Exhibition of Student Work in July 1919», reproduzido por Hans Maria Wingler, The Bauhaus:
Weimar, Dessau, Berlim, Chicago, p. 36.

182
concepção subjacente à sua ordenação geométrica: a idéia medieval da catedral
construída como uma replicação do cosmos (da criação divina) e que, por sua perfeição,
encaminharia os homens à verdade e à revelação. Explica Otto von Simson,
provavelmente a maior autoridade quando o assunto é catedral gótica: «Se o arquiteto
projetava seu santuário de acordo com as leis da proporção harmônica, ele não apenas
imitava a ordem do mundo visível, mas transmitia uma sugestão, na medida em que isto
era possível ao homem, da perfeição do mundo por vir».546 Esta noção da catedral como
um mundo completo, paralelo à natureza e edificado à imagem e semelhança do mundo
exterior foi recuperada pelos arquitetos expressionistas.547 Nas palavras de Gropius, o
objetivo da Bauhaus era pôr em prática uma arquitetura moderna, mas que, «como a
natureza humana, abrangesse a vida em sua totalidade».548
Cada uma à sua maneira, as catedrais de Schwitters pareciam achar-se em
consonância com esse ímpeto de ordenar e reproduzir o sistema do mundo no sistema
reduzido da catedral. Na série de litografias e na Casa Merz, as rodas dentadas e as
engrenagens sugeriam um mundo (uma catedral) que se organizava e funcionava como
uma máquina. Para seu amigo Van Doesburg, a máquina substituía o mito na
modernidade como um análogo da criatividade humana;549 e para Schwitters e
Lissitzky, ela deveria ser vista apenas como um instrumento primário, «nada mais que
um pincel, e mesmo um dos mais primitivos, com o qual se pinta a tela do quadro do
mundo».550 No entanto, poderíamos ainda arriscar uma outra comparação se
pensássemos que a máquina, de uma certa forma, replica o modo de operação dos rituais
de atualização do mito: seu bom funcionamento implica na repetição incessante de um
mesmo movimento, que produz, a cada ação, sempre o mesmo resultado. Deste ponto

546
Otto von Simson, The Gothic Cathedral: The Origins of Gothic Architecture & The Medieval Concept
of Order, p. 37.
547
Giulio Carlo Argan comenta que, para fazer frente a uma sociedade que «perdeu o sentido do sagrado
e, com ele, o de criar», os arquitetos expressionistas voltaram-se para a construção das «catedrais laicas
da sociedade ideal». Este movimento se desenrolou, segundo Argan, em duas fases: «na fase “utópica”, se
pensa ainda numa comunidade similar à comunidade artesanal do Medievo evocada por Morris, isto é, a
um conjunto harmônico de trabalhadores empenhados em exprimir uma espiritualidade ou religiosidade
coletiva na construção-símbolo, a catedral; enquanto, na fase “racionalista”, se pensa numa verdadeira e
própria “sociedade” empenhada numa produção sistematizada e, portanto, consciente, não tanto da
própria estrutura funcional, mas dos problemas concretos suscitados pelos novos modos de produção»
(Progetto e destino, pp. 221 e 225 respectivamente).
548
Walter Gropius, Bauhaus: Novarquitetura, p. 30.
549
Ver John Elderfield, op. cit., p. 135.
550
Kurt Schwitters e El Lissitzky, editoral de Nasci, publicado no número 8-9 da revista Merz,
reproduzido por Sophie Lissitzky-Küppers, op. cit., p. 341.

183
de vista, a máquina talvez possa ser compreendida tanto como uma metáfora de um
processo sempre em aberto – e Schwitters concebia a arte como um fluxo constante551 –
quanto como um mecanismo que promove uma mudança de estado. É precisamente
nesta mudança de estado que se baseia a máquina produtora de «rodadistas»,552
imaginada por Schwitters em 1921, um ano depois de Casa Merz e das oito litografias:

De que se compõe a máquina: engrenagens e cadáver. A máquina de fazer


rodadistas foi feita para você. Ela compõe-se de uma excepcional combinação de
engrenagens, eixos e cilindros, com cadáveres, ácido nítrico e MERZ e foi construída de tal
forma que você entra nela em pleno gozo de suas faculdades mentais e sai completamente
sem juízo. Tal efeito traz grandes vantagens para você. Invista o seu dinheiro em uma cura
rodadista e você jamais se arrependerá; aliás, a sua capacidade de se arrepender será
completamente inexistente após a cura. Não importa se você é rico ou pobre, a máquina de
fazer rodadistas o libertará – inclusive – da necessidade do dinheiro em si. Se você é
capitalista, passará primeiro por um funil, depois por vários cilindros, até mergulhar num
banho de ácido. Depois, você entrará em contato físico com alguns defuntos. Vinagre
gotejará cubismo dadá. Então você verá o grande Rodadá. (Não o presidente do globo
terrestre, como muitos pensam.) Rodadá irradia astúcia e é revestido de cerca de 100.000
agulhas pontiagudas. Depois de ser chacoalhado para lá e para cá, alguém lerá para você
meus novos poemas, até você cair inconsciente. Aí você será socado e rodadado, para
depois, de repente, ser expelido para fora da máquina, transformado em um antiburguês
com um novo penteado. Antes da cura, você tinha pavor até do buraco de uma agulha,
depois da cura, nada mais o apavora. Você é um rodadista e reza diante da máquina com
todo o fervor – Amém.553

Ressalte-se como, no final de sua descrição, Schwitters atribuiu ironicamente à sua


máquina propriedades de templo, de um lugar diferenciado onde é possível se operar
uma conversão e frente a qual o recém-convertido rodadista faz suas preces. Talvez seja
interessante notar ainda que, num texto de 1923, o artista falava de um quarto mecânico
para os porquinhos-da-índia que estaria construindo em sua casa como uma experiência,
quiçá a primeira menção à sua construção de Hannover:

posso já revelar que, em grande segredo, venho conduzindo experimentos com porquinhos-
da-índia que habitam quadros Merz construídos pela necessidade. Por ora, venho estudando
as pegadas dos porquinhos-da-índia. Mas se acham em estaleiros também quadros Merz
que balançam mecanicamente ao movimento dos porquinhos-da-índia. Alguns contatos
acionam mecanicamente uma iluminação diversificada, em função do movimento dos

551
No editorial de Nasci, ao comparar a arte à ciência, Schwitters e El Lissitzky escreveram: «Cada forma
é o instantâneo cristalizado de um processo, por isso, a obra é uma etapa do devir e não fim cristalizado»
(reproduzido por Sophie Lissitzky-Küppers, op. cit., p. 342).
552
Tomei a liberdade de fazer uma pequena alteração na tradução de Fabiana Macchi para a palavra
alemã raddadisten. Macchi havia convertido para o português como radadista. Contudo, tendo em vista
que o radical alemão do termo inventado por Schwitters, rad-, significa «roda» em português, e que as
representações em que sugere o funcionamento de uma máquina, como o interior da Casa Merz, são
realizadas a partir da forma da roda, optei por utilizar rodadista em vez de radadista.
553
Kurt Schwitters, «Máquina de fazer radadistas», traduzido por Fabiana Macchi, Sibila, III, 4 (2003), p.
97.

184
bichos. Mas o quarto mecânico é o único espaço coerente que é plasmado artisticamente e,
ao mesmo tempo, é habitável.554

Contudo, foi com sua Merzbau que o artista realizou em três dimensões a ereção
do que convencionou chamar de Catedral da miséria erótica. Embora ele tenha dito que
«a expressão K d e E é somente uma designação» e que «ela não concerne em nada ao
conteúdo»,555 seu nome parece-me iluminador. Até mesmo em suas formas, a Merzbau
remetia à catedral. Se observarmos os poucos registros fotográficos que nos chegaram
desta construção em Hannover, principalmente, se nos detivermos naqueles que
reproduzem o conjunto da Janela azul (fig. 47) e o do Grande grupo (fig.48),
verificamos como as formas da armação em gesso e madeira lembram, por vezes, os
arcos e as intersecções internas do teto de uma catedral gótica. O próprio Schwitters via
em sua construção traços de arquitetura gótica: «a impressão do conjunto lembra um
pouco um quadro cubista ou uma arquitetura gótica».556 Além disso, é sintomático que a
Merzbau tenha começado com uma coluna. Antes da cristianização, os germanos
tinham o costume de erguer pilares sagrados no centro de seus templos.557 No item
anterior, vimos que, na Merzbau, Schwitters buscava erguer um mundo à parte,
ordenado segundo leis intrínsecas e particulares. E, ainda antes disso, vimos também
que, ao limpar e retrabalhar os fragmentos recolhidos da rua, o artista parecia dedicar-se
a uma espécie de «ritual de purificação», movido pela necessidade de separar aquilo que
era do mundo exterior daquilo que poderia ser integrado ao mundo Merz. A noção de
catedral engloba estes dois aspectos: como um templo, determina uma ruptura na
homogeneidade do espaço profano, consagrando um território antes profano ao
organizá-lo como um mundo cosmológico, e reiterando, assim, «a obra exemplar dos
deuses»; ao se constituir deste modo, garante uma diferenciação entre o espaço profano
da vida ordinária e o espaço sagrado da vida religiosa.558 Na Merzbau, é possível
observar uma atitude similar. No entanto, quanto a esta, não me sinto à vontade

554
Kurt Schwitters, «Dadaismo in Olanda», reproduzido por Arturo Schwarz, op. cit., p. 518.
555
Kurt Schwitters, «Moi et mes objectifs», compilado no catálogo do Centre Georges Pompidou, op. cit.,
p. 250.
556
Kurt Schwitters citado por Harald Szeemann, «“L’immortalité n’est pas l’affaire de tout le monde”.
Propos sur l’oeuvre d’art totale de Kurt Schwitters», compilado no catálogo do Centre Georges
Pompidou, op. cit., p. 373.
557
Mircea Eliade fornece ainda exemplos de outras culturas que erguem seus lugares sagrados em torno
de um axis mundi, que pode tomar a forma de um poste, de uma coluna, de um pilar etc. (ver O sagrado e
o profano, pp. 36-37).
558
Mircea Eliade, op. cit., p. 35. Sobre este assunto, ver ainda, no mesmo livro, pp. 30 e ss.

185
utilizando termos de significados tão precisos como sagrado e profano, ainda mais num
tempo em que mesmo o sagrado já foi, por meio, sobretudo, da investigação
antropológica, irremediavelmente profanado do ponto de vista do conhecimento. Prefiro
pensar a catedral em relação à Merzbau como um modelo exemplar. Parece haver aí
uma tentativa, sim, de «sacralizar» – e frisem-se as aspas – um espaço ordinário, de
introduzir na própria casa do artista um território diferenciado. De fato, este território da
Merzbau, que não é propriamente sagrado, mas também não quer ser puramente secular,
mimetiza os principais aspectos de um espaço sacro. Além de ser uma interrupção no
espaço profano da casa do artista e de ser realizada a partir de fragmentos de objetos
cuidadosamente «purificados», a Merzbau se constituía a partir de uma série de
interdições que reforçavam um sentimento de «sagrado» a seu redor.559 Em primeiro
lugar, ela não podia ser transportada: como um templo, aqueles que queriam vê-la
deveriam ir até ela. Em segundo, não era qualquer pessoa que podia visitá-la: os
«iniciados» deveriam ser convidados pelo artista. Em terceiro, mesmo entre as pessoas
que a visitavam, nem todas tinham acesso a todos os ambientes da Merzbau: «As grutas
mais secretas provavelmente nunca foram vistas exceto por [Herwarth] Walden,
[Sigfried] Giedion e [Hans] Arp».560 Em quarto, muitas das quinquilharias recolhidas
por Schwitters – e principalmente os objetos tomados dos amigos – eram guardadas em
redomas de vidro, como se fossem relíquias. Em quinto, seus espaços dividiam-se em
grutas e, na arte cristã, as grutas eram consideradas lugares sagrados.561 Todos estes
detalhes contribuíam para se criar uma certa aura em torno da construção como um todo
e para fixar um espaço (e um tempo) que permitisse a fuga do mundo real. Lembremos
mais uma vez o que dizia Schwitters: «A imersão na arte é comparável ao culto divino

559
Sobre interdições como constitutivas do sagrado, ver Émile Durkheim, op. cit., pp. 24 e 318-324;
Roger Caillois, L’homme et le sacré, pp. 79-125. Sobre o tabu associado ao sagrado, ver A. R. Radcliffe-
Brown, Estrutura e função nas sociedades primitivas, pp. 195-222.
560
Käte T. Steinitz, op. cit., p. 90. Em alguns povos primitivos, costuma-se esconder os objetos sagrados
para que as pessoas comuns não tenham acesso e contato com eles. Conta Roger Caillois: «Na Austrália,
o lugar onde são depositados os objetos sagrados ou churingas não é conhecido de todos: os profanos,
que são os não-iniciados nos mistérios do culto, no qual estes objetos constituem os instrumentos
essenciais, ficam na ignorância da colocação exata do esconderijo. Eles só a situam muito
aproximativamente e, se eles se acham a seu lado, se obrigam a um grande desvio para evitar que o acaso
os faça descobri-los» (L’homme et le sacré, p. 26).
561
Ver Dorothea Dietrich, op. cit., p. 188.

186
que liberta o homem das inquietações cotidianas».562 Hanne Bergius observa que, com a
Merzbau,

Schwitters filtra as «relações» entre o tempo e a vida, o jogo e a imaginação, realizando o


vínculo entre a experiência subjetiva e a experiência coletiva – relações que as ciências, a
política e a religião não foram mais capazes de fazer. Assim, o conceito Merz retoma a
significação outrora atribuída aos cultos e aos mitos, na qual o presente, a recordação e a
esperança se fundem sob a forma da revelação.563

Por propiciar, ao penetrar nela, um desligamento total da realidade, a Merzbau era capaz
de fingir – no sentido de fingere, ligado a fictio – uma transcendência. Foi desta forma
que se sentiu o pintor Rudolf Jahns quando entrou na construção:

Se você andava por tudo, finalmente chegaria ao meio, onde eu encontrei um lugar para
sentar, e me sentei.
Experimentei então um sentimento estranho, arrebatador. Esse ambiente tinha uma
vida própria muito especial. O som dos meus passos sumiram e havia um silêncio absoluto.
Só havia a forma da gruta rodeando-me, e quando eu era capaz de encontrar palavras para
descrever isso elas aludiam ao absoluto em arte.564

O absoluto que Mondrian e Malevitch buscavam atingir por meio das formas
puras, na construção de Schwitters é forjado pelo recolhimento. Mas apenas forjado. O
espaço construído por Schwitters, ao propiciar uma interrupção na vida e no tempo
ordinários, cria a ilusão, para quem nele penetre, de que ali é possível restabelecer uma
ligação – e não esqueçamos que religião vem do latim religare, que significa «ligar
novamente» – com algo diferenciado do profano, mas que não se constitiui
necessariamente como algo superior a este, até porque não se trata de um espaço
sagrado em seu senso estrito. Também aqui parece haver uma promessa frustrada de
transcendência.

562
Kurt Schwitters, «Moi et mes objectifs», compilado no catálogo do Centre Georges Pompidou, op. cit.,
p. 250.
563
Hannes Belgius, «Kurt Schwitters “Créer du nouveau à partir de débris”», compilado no catálogo do
Centre Georges Pompidou, Kurt Schwitters, p. 39.
564
Rudolf Jahns citado por John Elderfield, op. cit., p. 153.

187
g. Mistério
Em «Eu e meus objetivos», Schwitters justifica-se por estar se estendendo tão
longamente na descrição de sua Merzbau: «devido a sua ambigüidade, ela é bastante
difícil de se compreender».565 Para ele, somente três pessoas seriam capazes de entender
a sua construção por completo: Herwarth Walden, Sigfried Giedion e Hans Arp –
aqueles três que, conforme Käte T. Steinitz, seriam os únicos autorizados a penetrar em
todo e qualquer recanto da construção. Walden não só estava familiarizado com a arte
de seu tempo como incentivava o que havia de mais revolucionário: responsável pela
galeria Der Sturm, em Berlim, foi o primeiro a expor as composições Merz de
Schwitters. Giedion, além de ser historiador da arquitetura e estar afinado com as novas
correntes na área, estudava a arte «primitiva» em profundidade: na década de 1950,
publicou um imenso volume, resultado de inúmeros anos de pesquisa exaustiva,
abordando as mais diferentes formas de arte pré-histórica e dos povos ditos
«primitivos».566 Arp, por fim, não só estava interessado como contribuía ativamente
para erigir uma arte nova e, nisso, partilhava de preocupações similares às de
Schwitters; queria recuperar o que julgava ser primordial: «Nós buscávamos uma arte
elementar que deveria, pensávamos, salvar os homens da loucura furiosa destes
tempos».567
Não foi à toa que destaquei os conhecimentos específicos das únicas três pessoas
– segundo Schwitters – habilitadas a compreender totalmente a Merzbau. Estes me
parecem ser elucidadores da bagagem cultural necessária para tentar situar esta
construção artística em meio ao terreno acidentado da arte moderna e para tentar
apreender aquilo que a obra coloca em jogo. A percepção aguçada de Walden e de Arp
para o que havia de mais radical na arte de seu tempo permitia-os entender que a
Merzbau não só propunha uma renovação nos modos de se produzir e conceber uma
obra de arte, colocando em questão até mesmo a noção de «obra de arte», como também
atenuava as fronteiras entre os gêneros artísticos numa tentativa de se erigir uma
Gesamtkunstwerk: não se podia dizer que a Merzbau fosse uma peça de arquitetura ou

565
Kurt Schwitters, «Moi et mes objectifs», op. cit., p. 250.
566
O livro de Sigfried Giedion se chama The Eternal Present – The Beginnings of Art e se origina de um
curso ministrado na National Gallery of Art, de Washington, em 1957. Sobre arquitetura, seu volume
mais célebre é Raum, Zeit und Architektur, editado no Brasil pela Martins Fontes, com o título Espaço,
tempo e arquitetura: o desenvolvimento de uma nova tradição (São Paulo, 2005).
567
Hans Arp, «Dadaland», On my Way, p. 86.

188
de escultura ou de decoração, ela era tudo isso e, por tal razão, estaria além de tudo isso.
De outra parte, os conhecimentos de Giedion acerca não só da nova concepção de
arquitetura, mas principalmente acerca da arte dita «primitiva» capacitavam-no a
reconhecer na própria concepção da Merzbau – erguida a partir da «purificação» das
recusas do dia-a-dia e do armazenamento de recordações tomadas dos amigos – uma
tentativa de resgatar uma pureza ou uma primordialidade análoga às práticas
ritualísticas. Quanto às outras pessoas, garantia Schwitters, estas «não me
compreenderão inteiramente». Porém, «não se pode exigir uma compreensão total
quando se trata de coisas assim extraordinárias como estas. A K d e E é mesmo uma
violeta típica que floresce na sombra».568
Neste último item, proponho, portanto, tentarmos decifrar os mistérios da
construção de Schwitters. E ressalvo que não escolhi a palavra mistério por acaso.
Poderia ter me valido de termos como enigma ou segredo. No entanto, tanto um quanto
o outro já foram amplamente utilizados para ajudar a elucidar aspectos obscuros da arte
e da literatura569 e, por isso, me obrigaria a uma revisão bibliográfica e conceitual que
provavelmente me desviaria de meu argumento. A palavra mistério, por seu turno, além
de abarcar os sentidos de enigma e segredo, acha-se originalmente associada a uma
idéia de ritual. Walter Burkert, especialista em religião e cultos gregos, observa que a
raiz verbal my(s)- designava, no grego micênico, a «iniciação de um funcionário». As
palavras derivadas desta raiz, como o substantivo mystes e o verbo myeo, permaneciam
no mesmo campo semântico, significando, respectivamente, «iniciado» e «iniciar». A
568
Kurt Schwitters, «Moi et mes objectifs», op. cit., p. 251.
569
Entre outros, valem-se do termo enigma Theodor W. Adorno e Mario Perniola. Este último, em
Enigmas: O momento egípcio na sociedade e na arte, defende que encontramos na sociedade
contemporânea um tipo de experiência a que dá o nome de enigma: «não nasce do retorno do que foi
recalcado, nem do choque do futuro, mas sim do enigma da sua coincidência, do impor-se de uma
condição em que o antigo e o futurível não só se assemelham, mas até se confundem. O “efeito egípcio”
consiste nisso e tem, portanto, um sentido diferente do genérico interesse pela antiga cultura egípcia» (p.
10). Ao enigma, opõe o segredo, sendo que este último se acha fundamentado numa relação de poder,
enquanto o outro, não (ver pp. 13 e ss.). Adorno, em sua Teoria estética, optou por utilizar a palavra
enigma, em vez de mistério, para determinar o caráter da arte. Para Adorno, o enigmático da arte é o seu
«estar-separado», isto é, o fato de a arte não se achar mais associada a algo de mágico ou cultual e, por
conseqüência, de se encontrar desvinculada de uma promessa de transcendência: «Se a transcendência
nelas estivesse presente, seriam mistérios, não enigmas; são-no porque enquanto separadas desmentem o
que, no entanto, querem ser» (p. 147). De seu ponto de vista, portanto, o sentido da palavra mistério está
vinculado justamente àquilo que ele pretende dissociar da sua noção de arte moderna: a magia, o culto, a
religião. De minha parte, como acredito ainda ser possível reconhecer traços de uma dimensão mítica e de
uma dimensão ritual na arte moderna, optei justamente por mistério, como explico acima. Quanto ao
segredo e ao secreto, encontramos, entre tantos, os estudos de Pierre Boutang (Ontologie du secret. Paris:
Presses Universitaires de France, 1973), de Paolo Fabbri (Tactica de los signos. Barcelona: Gedisa, 1995)
e toda uma revista dedicada ao tema, a Sigila.

189
tradução latina para mysteria, myein, myesis como initia, initiare, initiatio, salienta
Burkert, introduziu a palavra e o conceito de iniciação em nossa linguagem.570 Já o
sufixo –teria, de mysteria, resultou da sobreposição da família terminológica de telein,
«realizar», «celebrar», «iniciar», e telete, «festa», «ritual», «iniciação».571 Assim,
compreendemos mistério aqui como algo enigmático e secreto que tem em sua base um
quê de ritualístico. Observa Maria Amélia Bulhões, em texto que instiga à investigação
mais funda das relações entre arte e sagrado, que

o mistério atua como atração, fascínio que orienta um movimento em sua direção,
excluindo toda imobilidade ou indiferença. O mistério funciona como aura, criando uma
imensa espera, para corresponder a esta expectativa a arte não precisa sua natureza, ela
sugere uma abertura para um plano superior, indefinido, a ser completado pela imaginação
do público. Reatualiza assim o mito da magia (enquanto relato fabuloso) que tem origem
remota em uma época que a arte fazia parte integrante das práticas religiosas.572

E não esqueçamos que Cassirer compreendia o mito como uma «escritura cifrada»,
convertida em mistério, cuja «autêntica significação» se acha justamente no oculto.
Na Merzbau – e reitero mais uma vez que estamos nos detendo na construção de
Hannover –, o mistério se formava por meio de uma série de fatores, muitos dos quais já
estudamos até este ponto: pelas suas interdições e suas grutas secretas, por ter sido
erigida na própria casa do artista, por ser um trabalho em eterno andamento, por não
poder ser transportada, por incorporar fragmentos descartados do cotidiano e
lembranças dos amigos. Até mesmo o fato de ter sido destruída na década de 1940
reforça ainda mais seu ar de mistério, uma vez que, sem acesso direto à construção
original de Schwitters, torna-se mais difícil tentar decifrá-la, restando-nos apenas fazer
conjecturas. E, no entanto, parece-me que o abandono da Merzbau inacabada e a sua
própria destruição condizem com a sua natureza.
Mas poderíamos nos perguntar se não há algo mais por detrás desses mistérios.
Traduzindo em outros termos, talvez fosse preciso olhar a Merzbau mais de perto e
buscar examinar como seus elementos se articulam para formar o que chamo de
dimensão ritual. Para tal, talvez seja o momento de nos voltarmos para os termos finais
da outra designação da Merzbau, a Catedral da miséria erótica. Poderíamos nos indagar
a que tipo de miséria e a que tipo de erotismo Schwitters estaria se referindo aí.
570
Walter Burkert, Antigos cultos de mistério, pp. 20-21.
571
Idem, p. 21.
572
Maria Amélia Bulhões, «Arte contemporânea, o pensamento irreligioso do sagrado», compilado em As
questões do sagrado na arte contemporânea da América Latina, pp. 45-46.

190
Costuma-se caracterizar esta construção como um «depósito autobiográfico», «um
diário na maior das escalas», «um teatro doméstico»,573 em que se revelam temas como
erotismo, amizade, misticismo, história e política alemãs. E ela parecia verdadeiramente
se instituir como uma autobiografia: cada peça recolhida da rua ou cada lembrança
subtraída dos amigos tinha uma história própria que, depois de ser processada pela
Entformung, tornava-se elemento da história pessoal de Schwitters – ou talvez fosse
mais preciso falar de mitologia pessoal. Assim, se aceitarmos essas proposições e destas
partirmos, podemos, para começar, situar a miséria erótica dentro do âmbito privado.
Lembremos que tudo principiou com uma coluna no topo da qual se encontrava uma
cabeça em gesso de menino, coberta por um pano. Como já vimos anteriormente, esta
cabeça substituía o busto de sua mulher, Helma, na remontagem desta coluna numa
nova peça da casa. Sabe-se que esta cabeça em gesso não era uma escultura qualquer,
mas a máscara mortuária do primeiro filho de Schwitters, Gerd, nascido em 1916 e
morto antes do aparecimento do segundo e, depois, único filho do artista, Ernst, em
1918.574 Com este detalhe, podemos supor que seu «teatro doméstico» ou seu «diário»
se iniciava por um acontecimento muito particular e triste: a morte de seu primogênito.
Talvez resida aí a sua miséria: Elends, em alemão, significa «miséria», não no sentido
de «pobreza», mas de «desgraça», «insatisfação», «infelicidade». Vale ressaltar ainda
que o busto de Helma, datado de 1917 (talvez a data da morte do menino), chamava-se
Sofrimento.575
Não podemos esquecer que era a partir desta coluna que se começava o passeio
em torno da Merzbau: ela funcionava, portanto, como um axis mundi, isto é, como o
centro de sua catedral. Em função disso, poderíamos imaginar que não era pouca a
importância dada a esta máscara mortuária; ela era, muito pelo contrário, o princípio e,
quiçá, o motivo da construção – e talvez seja significativo o fato de que Schwitters só
começou realmente a erguer a Merzbau depois da troca dos bustos. Esta coluna com a
cabeça do menino no alto se constituía como uma espécie de altar. Além dos recortes de
573
As duas primeiras expressões são de John Elderfield, op. cit., pp. 146 e 165 respectivamente. A última
é de Elizabeth Burns Gamard, op. cit., p. 177. É interessante como Lévi-Strauss ressalta que o trabalho do
bricoleur sempre possui algo de pessoal: «a poesia do bricolage lhe advém, também e sobretudo, do fato
de que não se limita a cumprir ou executar, ele não “fala” apenas com as coisas, como já demonstramos,
mas também através das coisas: narrando, através das escolhas que faz entre possíveis limitados, o caráter
e a vida de seu autor. Sem jamais completar seu projeto, o bricoleur sempre coloca nele alguma coisa de
si» (O pensamento selvagem, pp. 36-37).
574
Ver Elizabeth Burns Gamard, op. cit., p. 88.
575
Não se tem certeza quanto à data da morte do primeiro filho de Schwitters.

191
revistas de vanguarda das quais Schwitters participou, fazendo as vezes de forro para o
branco do pedestal, viam-se pequenos objetos dispostos entre a base da coluna e a
coluna em si. Havia botões, um pedaço de pele, um ursinho de brinquedo, um
pequeníssimo boneco, uma imagem de um menino subindo num coqueiro, um pedaço
quebrado de um molde em gesso de uma cabeça de mulher, um candelabro usado como
vaso de flores. Na parte de baixo, afixado aos fragmentos de revista, como já fizemos
notar, reconhece-se a colagem O primeiro dia, a qual apresentava uma série de
fragmentos de reproduções de anjos, dispostas em torno de um recorte mostrando uma
coluna clássica, ao lado da qual jazia uma figura de mulher com asas, reiterando assim o
tema da coluna como fundação de sua catedral. O conjunto central de anjos foi
identificado como sendo parte do quadro Madona na sala rosa (c. 1448), de Stephen
Lochner. Sabendo serem alguns dos anjos da colagem em destaque na primeira coluna
da Merzbau extraídos de uma reprodução da madona com seu filho, será que
poderíamos compreender estes anjos como uma representação da anunciação da
chegada de um novo menino? Se sim, poderíamos tomar esta coluna como um altar ao
filho morto e uma tímida celebração ao recém-nascido. «Como Merz, nasci em 1918 e
cresci com Merz», orgulha-se Ernst Schwitters.576 E a referência velada à madona e
direta ao filho morto não aparecem isoladamente. A imagem da madona podia ser vista
em dois outros cantos da Merzbau: como uma Madona abstrata (fig. 50), localizada em
frente à janela azul, conforme mostra a fotografia de 1930; e como uma madona e seu
filho na coluna que deu origem ao nome alternativo da construção, a Catedral da
miséria erótica. Quanto à máscara mortuária de seu primogênito, outras duas imagens
pareciam dizer respeito ao tema. Em pelo menos dois outros pontos, repetia-se uma
figura similar àquela. Na extensão de uma gruta conhecida como Gruta com corno de
vaca, havia uma outra coluna, aparentemente sem colagens em sua extensão, encimada
por um boneco de menino, cujas feições – com olhos fechados e boca ligeiramente
aberta – lembravam as da máscara mortuária. Pela fotografia tirada desta coluna em
1925, vemos que este boneco assumia, na contraluz, um ar fantasmagórico (fig. 51).
Numa das maiores grutas da construção de Schwitters, a grande Gruta do ouro, viam-se
duas caixas de vidro repletas do que parecem ser brinquedos destroçados. Numa destas
caixas, bem em seu centro, achava-se outra cabeça de boneco (fig. 49).

576
Ernst Schwitters, «Non si sa mai», op. cit., p. 14.

192
Na visão de Gamard, «para Schwitters, o refrear e o avançar na elaboração da
Merzbau constituíam um ritual sagrado».577 Se se apõem as devidas aspas na palavra
«sagrado», posso estar de acordo com ela. Schwitters parecia intentar erguer um templo
não-sagrado, secular, porque lá não se reverenciava qualquer divindade, mas também
não-profano, porque na sua catedral havia uma tentativa de diferenciar claramente o que
a ela podia pertencer do que pertencia ao mundo externo. Mario Perniola, num pequeno
ensaio intitulado Mais-que-sagrado, mais-que-profano, esmiuça o intervalo entre a
esfera do sagrado e aquela do profano. O âmbito intermediário que ele denomina mais-
que-profano pode servir para descrever o caráter da Merzbau: o mais-que-profano é a
dimensão em que «o profano parece exatamente sagrado».578 Escreve Perniola:

O mais-que-profano não pode emergir que de uma radicalização daquilo que a


teoria clássica de Durkheim e de Otto considera como profano. Para o primeiro, o profano é
o individual, a vida ordinária ocupada prevalentemente do trabalho e das ocupações de
todos os dias associados com a necessidade da vida. Para o segundo, o profano é aquilo que
é rotineiro, ordinário, usual, repetitivo. O mais-que-profano, portanto, é a experiência
radicalizada da repetição.579

Assim, o mais-que-profano é a aparição da diferença no «humano, mais que humano»,


mas sem o redimir. A repetição a que dá margem pode vir a se consolidar no ritual: «a
idéia estóica de um eterno retorno em virtude do qual tudo se repetirá do mesmo modo
no qual veio por infinitas vezes constitui a mais radical e categórica afirmação de um
sentir mundano mais-que-profano, que se estende ao inteiro universo».580 Partindo
disso, podemos entender o ritual como a repetição simbólica de algo que se perdeu.
Quer-se com o ritual trazer para o momento presente aquilo que é passado. A cada
missa da igreja católica, por exemplo, revive-se a última ceia de Cristo e encenam-se a
morte e a ressurreição; e, ao fazê-lo, reatualiza-se um momento bíblico. Durante a
execução do ritual, o passado eterniza-se e se prolonga no presente.
Voltando à Merzbau, creio ser possível visualizar uma espécie muito peculiar de
uma organização ritualística em torno da coluna com a máscara mortuária. Parece-me
que o «teatro doméstico» de Schwitters começava pela encenação de um luto ao filho
morto. Talvez não seja por acaso que a Merzbau lembre a Maurizio Fagiolo dell’Arco o

577
Elizabeth Burns Gamard, op. cit., p. 104.
578
Mario Perniola, Più-che-sacro, più-che-profano, p. 20.
579
Idem, pp. 20-21.
580
Idem, p. 46.

193
monumento sepulcral, «quase uma catedral», construído por Max Taut em 1920581 e que
Harald Szeemann se refira à construção de Schwitters como um mausoléu.582 O luto se
organizaria aqui como uma tentativa de recuperar o que se perdeu, o filho, e de elaborar
esta perda para, só então, ser possível superá-la. Todavia, como a Merzbau se constituía
como um processo em permanente fluxo, ela mantinha em suspensão o trabalho do luto,
impedindo de concluí-lo e, portanto, jamais permitindo que este fosse superado.
No entanto, se nos contentarmos com esta leitura não daremos conta do erótico
que qualifica a miséria. Haveria uma ligação entre a elaboração do luto do filho e o
erotismo? Freud observa que o luto, tal qual a melancolia, promove paulatinamente «o
desligamento da libido».583 Decorre, pois, disso, um impedimento da realização do
desejo erótico. Schwitters, ao descrever, em «Eu e meus objetivos», a Gruta do amor,
diz:

uma larga escada exterior leva a ela; embaixo, a mulher do banheiro da vida num longo e
estreito corredor, onde se acha igualmente uma propaganda de Camel. Duas crianças nos
saúdam e tomam parte na vida; de uma mãe e do filho, resta, depois da deterioração, apenas
uma parte. Objetos brilhantes e fissurados criam o ambiente. No centro, um casal de
amantes se abraça: ele perdeu a cabeça, ela, os dois braços; ele tem entre suas pernas um
imenso invólucro vazio. Acima do casal de amantes, a grande cabeça torcida da criança de
olhos sifilíticos se erige contra uma grande precipitação. Em revanche, ela se reconcilia
com a pequena garrafa redonda com a minha urina, na qual as sempre-vivas se
decompõem.584

Neste trecho, que, por não se dispor de fotografias que forneçam uma imagem
detalhada do conjunto, não se pode saber se corresponde ou não a uma descrição precisa
da gruta em questão – tudo pode ser ficção, mas como, mesmo se for ficção, esta foi
inventada pelo próprio criador da Merzbau; assim, pode nos servir para elucidá-la –,
Schwitters menciona, primeiramente, a existência de duas crianças para, no momento
seguinte, dizer que, da mãe e da criança, restaram somente uma parte, como se o grupo
formado pela mãe e seus dois rebentos tivesse se estilhaçado. Talvez possamos
depreender daí mais uma referência ao filho morto e ao terrível sentimento de perda que
sobreveio ao infortúnio. O casal que ele descreve restou mutilado: ele não pode vê-la,
ela não pode abraçá-lo. Não é mais possível amar. Para Dietrich, a Merzbau se revela

581
Maurizio Fagiolo dell’Arco, «“Merz” o dell’arte totale», L’Arte, 80 (1968), p. 25.
582
Harald Szeemann, op. cit., p. 373.
583
Sigmund Freud, «Duelo y melancolia», Obras completas, vol. 2, p. 2098.
584
Kurt Schwitters, «Moi et mes objectifs», op. cit., p. 251.

194
como «um monumento ao desejo interrompido».585 A morte do filho talvez seja o
estopim de uma impossibilidade de realização do amor carnal e, ao mesmo tempo, o
detonador de uma necessidade de se recorrer ao erotismo como uma forma de driblar a
finitude do indivíduo, a morte, e garantir a sua continuidade. Para Georges Bataille, o
que está sempre em questão no erotismo «é substituir o isolamento do ser, a sua
descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda».586 Entretanto, esta
busca por uma continuidade não se efetiva de modo tranqüilo: «O que está em jogo no
erotismo é sempre uma dissolução das formas constituídas».587 O domínio do erotismo
é, portanto, o domínio da violência.
Na Merzbau, o erotismo se concretizava sempre próximo à morte e à destruição
dos corpos, em especial dos corpos femininos. Mais uma vez Bataille: «É
essencialmente a parte passiva, feminina, que é dissolvida enquanto ser constituído. Mas
para um parceiro masculino a dissolução da parte passiva só tem um sentido: ela prepara
uma fusão onde se misturam dois seres que ao final chegam juntos ao mesmo ponto de
dissolução».588 E esta dissolução dos corpos assumia na Merzbau as feições de um circo
de horrores, com sua pletora de aleijões. O casal da Gruta do amor estava mutilado. Os
corpos brancos que Rudolf Jahns descrevia tinham apenas uma perna deformada
(«grossa, torta, em forma de S»589). Na Gruta do bordel, a suposta mulher representada
(não há registros fotográficos desta) também se constituía como uma aberração, com
suas três pernas. Até mesmo a Mona Lisa realizada por Hausmann teve o rosto
deformado. Recordemos que havia ainda uma gruta dedicada ao assassinato por estupro
(provavelmente uma referência a uma série de crimes do gênero ocorridos em Hannover
em 1924), em que estranhas figuras de plástico estavam besuntadas com batom
(segundo Käte T. Steinitz) ou molho de tomate (conforme Schwitters).
Porém, como se coaduna o erotismo com o luto ao filho morto? Por um lado, a
morte do filho não deixa de representar o fim da continuidade do ser: ao transmitir parte
de sua carga genética ao filho, o indivíduo transmite, por tabela, uma parte de si, que
continuará viva para além de sua morte (se a ordem natural das coisas – os pais
morrerem depois dos filhos – não for alterada). Por outro, o erotismo proporciona a (ou

585
Dorothea Dietrich, op. cit., p. 205.
586
Georges Bataille, O erotismo, p. 15.
587
Idem, p. 18.
588
Idem, O erotismo, p. 17.
589
Ver nota 31.

195
pelo menos a ilusão de) continuidade: «o sentido fundamental da reprodução não
constitui menos a chave do erotismo».590 O que parece se estabelecer na Merzbau é uma
certa ritualização, por meio da qual se busca uma forma de permanência: uma suspensão
no tempo presente de uma perda passada – por isso a necessidade de manter a obra em
constante fluxo. É dentro desta lógica que poderíamos compreender também as outras
grutas, que versam sobre a história, a política e a mitologia alemãs. Poderíamos
entender o recolhimento, a limpeza e o armazenamento de detritos urbanos neste templo
mais-que-profano como uma tentativa de legar a estas pequenas coisas – que
representavam, de uma certa forma, uma civilização doente (lembremos sempre da
situação alemã na época) – uma continuidade para além de sua descontinuidade
intrínseca. Assim, no momento em que retirava os pedaços de uma civilização do seio
do mundo exterior e os inseria no mundo diferenciado e atemporal da Merzbau,
Schwitters estava promovendo uma espécie de salvação destes fragmentos; congelava-
os num eterno presente. O mesmo mecanismo parecia orientar a constituição das grutas
dos amigos: as recordações que tomava destes – como a parte que representa o todo –
adquiriam, ao serem depositadas em espaços reservados de sua catedral, certa forma de
eternidade. Por fim, os sítios dedicados a Goethe, a Frederick I, aos Nibelungos, à
Adoração dos Heróis, ao Aposentado de Guerra, com suas pequenas «relíquias», seriam
formas de tentar preservar uma identidade cultural alemã, mas sem cair no perigoso
nacionalismo que se insurgia.
A Merzbau se constituía, enfim, como uma tentativa de fornecer uma
permanência a ela mesma. Destituída de Deus e sem esperança de se atingir uma
transcendência, a arte aqui se ritualiza como uma maneira desesperada de buscar
manter-se. No entanto, esta tentativa termina fracassada: a transcendência que
proporciona também é, como em Mondrian e Malevitch, uma transcendência vazia. E
não percamos de vista que a Merzbau se destrói no final. Para além do luto, talvez
possamos pensá-la ainda como uma renovação bastante particular do potlatch, no qual o
oficiante deste, Schwitters, passou a vida a acumular num lugar preservado a maior
quantidade de «riquezas» que conseguiu angariar ao longo dos anos; riquezas estas que,
ao fim, acabaram destruídas.

590
Georges Bataille, op. cit., p. 12.

196
:~1~;j~~~~~:~~~~
: ; ~ ~ ~ c~~ '~ IHGFEDCBA
"; .- - ...~' ~ ..,-' - - ~ .~ - - ~~

F ig . 41: O primeiro dia F ig . 4 2 : Casa Merz Castelo e catedral


F ig . 4 3 :
com fonte no quintal

F ig . 4 4 : Merzsãule, p rim e ira v e rsã o F ig . 4 5 : Merzsâule, segunda v e rsã o

197
F ig . 4 6 : D e ta lh e da Merzbau

F ig . 4 7 : Merzbau, v is ta d o c o n ju n to Janela azul

198
~
I

Merzbau,
F ig . 4 8 : v is ta d o Grande grupo F ig . 4 9 : D e ta lh e d a re d o m a
ou Gruta do ouro e m q u e se a c h a u rn a c a b e ç a de
boneco

F ig . 5 0 : D e ta lh e da Merzbau F ig . 5 1 : D e ta lh e da Gruta
com Madona com corno de vaca, m o s tra n d o
cabeça de boneco

199
5 MARCEL DUCHAMP

a. Rumo a La mariée mise à nu par ses célibataires, même591


De todos os artistas que estudamos aqui, Marcel Duchamp foi seguramente o
que, com maior clareza, delimitou o fim de um modo de se pensar e produzir arte na
modernidade e o início de um outro modo, que por vezes foi qualificado de antiarte.
Esta proeminência, contudo, é melhor percebida se observarmos sua radicalidade em
contraste com (mas ao mesmo tempo integrada a) aquela de Mondrian, Malevitch e
Schwitters. Para Décio Pignatari, Duchamp e Mondrian, por caminhos diversos,
acabaram por atingir um mesmo fim: «Pela via da destruição e do transbordamento dos
códigos, Duchamp chegava ao mesmo ponto visado por Mondrian, que ia pela via da
construção. Nos anos 60, a via Duchamp conduziria à pop art, enquanto a via Mondrian
levaria à op art, uma paronomásia construtiva que, provavelmente, teria agradado a
ambos».592 Segundo Andrei Nakov, a destruição consciente de uma convenção
representativa, expressa em telas como o Quadrado negro de Malevitch, só pode ser
comparada com o mesmo afã destrutivo encontrado na obra de Duchamp.593 Na
introdução ao livro de Käte T. Steinitz sobre Schwitters, John Coplans e Walter Hopps –
este último um estudioso também da obra de Duchamp – observam que estes dois
artistas promoveram uma ruptura e expulsaram de vez do terreno da arte os materiais
costumeiros e esperados: «Duchamp é o exemplo preeminente do revolucionário
didático entre os artistas. Duchamp fez de cada um de seus trabalhos, passo a passo,
uma lição especial. Nunca se repetindo, fez da inconsistência uma lei infringível. Antes
de tudo, ele é um instigador de idéias essenciais na arte e é a fonte de muito o que veio
depois».594
Como Mondrian, Malevitch e Schwitters, Duchamp foi propulsionado pelo
cubismo. Talvez, em seu caso, não pudesse ter sido diferente. Primeiro, era francês de
nascença, morava em seu país e, por isso, estava geograficamente mais próximo, em

591
Como creio ser o título parte integrante deste trabalho de Duchamp, como explicarei no item Texto e
obra deste mesmo capítulo, e, por conter em si um trocadilho (o advérbio francês même, «mesmo» em
português, soa como a frase m’aime, «me ama»), optei por mantê-lo em sua língua original. Uma possível
tradução seria: A noiva posta a nu por seus celibatários, mesmo.
592
Décio Pignatari, Semiótica da arte e da arquitetura, p. 51.
593
Andrei Nakov, «Prologue», em Kasimir Malevitch, Écrits, p. 63.
594
John Coplans e Walter Hopps, «Introduction», em Käte T. Steinitz, Kurt Schwitters: A Portrait from
Life, p. xiii.

200
relação aos outros três artistas aqui estudados, às inovações artísticas que se operavam
em Paris. Segundo, seus dois irmãos mais velhos, Jacques Villon e Raymond Duchamp-
Villon, não demoraram a se tornar, respectivamente, pintor e escultor cubistas. Foi por
meio deles e de seus amigos que Duchamp se familiarizou com as concepções do
movimento. Entre 1910 e 1911, o artista freqüentava as reuniões de domingo
promovidas por Jacques Villon em seu ateliê em Puteaux e as de terça-feira, na casa de
Gleizes. Desses encontros, participavam, entre outros, La Fresnaye, Metzinger, Léger,
Apollinaire, Henri-Martin Barzun, Ribemont-Dessaignes. Por estes anos, costumava
passar ocasionalmente pela galeria Kahnweiler, conhecida por seu acervo cubista, e
chegou a visitar o estúdio de Braque em Montmartre. Para completar o quadro da época,
em 1911, o Salão dos Independentes, do qual participava desde 1909, lançou
definitivamente o cubismo como um movimento.
Duchamp não ficou insensível às novas motivações estilísticas, mas também não
recebeu o cubismo como uma profecia: para o artista, este funcionou como uma espécie
de degrau de onde lhe foi possível enxergar mais longe. Seu cubismo – se é que
podemos tachá-lo desta forma – foi discreto e durou muito pouco, apenas alguns meses
do ano de 1911. Talvez a tela deste período que mais evidencie um caráter cubista seja
Retrato de jogadores de xadrez, na qual Duchamp superpôs as imagens facetadas de
dois jogadores de xadrez às próprias peças do jogo. «Depois de Retrato de jogadores de
xadrez, cada nova pintura de Duchamp é um passo numa progressão única. Ele não se
repete e não presta muita atenção para o que seus contemporâneos estão fazendo. É
neste ponto que Duchamp, emergindo da sombra de seus irmãos, torna-se uma figura
significante na arte moderna», analisa Calvin Tomkins.595 Com Sonata (1911), realizada
alguns meses antes de Retrato de jogadores de xadrez, Duchamp marcou uma mudança
estilística em sua carreira. Nele, figuram suas três irmãs numa apresentação musical:
Yvonne toca piano, Magdeleine, violino, e Suzanne encontra-se sentada em frente a
elas, enquanto a mãe ouve a música em pé, ao fundo. As tonalidades pálidas e suaves da
tela lembram as de seu irmão Jacques Villon. Pintada no mesmo ano que Sonata,
Dulcinéia esboça uma nascente preocupação de Duchamp em representar o movimento.
Neste quadro, vemos uma mesma mulher em cinco situações e posições diversas. O

595
Calvin Tomkins, Duchamp: A Biography, p. 75.

201
objetivo desse experimento, segundo o próprio artista, era «desteorizar o cubismo, para
dar a ele uma interpretação mais livre».596
Entre novembro de 1911 e janeiro de 1912, Duchamp, com quatro quadros,
apontava para duas direções. Por um lado, Moinho de café, feito sob a encomenda de
seu irmão Raymond Duchamp-Villon, que queria um quadro para pendurar na cozinha
de sua nova casa, antecipava as representações de pequenas máquinas, que apareceriam
em trabalhos de 1914 e na parte inferior do La mariée mise à nu par ses célibataires,
même. Por outro, Jovem triste num trem e os dois Nu descendo uma escada – nº 1 e nº 2
encaminhavam o cubismo para o seu colapso ao inserir o movimento como um
elemento central. Com Jovem triste num trem, pintado em dezembro de 1911, Duchamp
queria provocar a ilusão de dois movimentos distintos: o do trem e o do jovem que se
desloca pelos corredores. Esclarece o artista:

Depois há a deformação do homem que eu chamei de «paralelismo elementar». Era uma


decomposição formal, quer dizer, em lâminas lineares que se seguem como paralelas e
deformam o objeto. O objeto é completamente distendido, como se fosse elástico. As linhas
seguem paralelamente, enquanto mudam sutilmente para formar o movimento ou a forma
em questão.597

Porém, o que vemos parece ser tão somente o deslocamento do jovem, depreendido da
massa de traços que perfazem uma zona mais clara, ocupando o centro de um fundo
escuro.
O mesmo procedimento era empregado nos dois Nu descendo uma escada, um
de dezembro de 1911 e o outro de 1912 (ainda houve um terceiro, realizado em 1916).
Para Tomkins, «nenhuma pintura na história jamais foi tão ofuscada pelo seu título». E
acrescenta:

Por duzentos anos, o nu funcionou não somente como um assunto na arte, mas também
como uma forma de arte, e como tal sempre seguiu convenções estabelecidas. Nus, se
masculinos, posavam heroicamente, representavam proezas de força, mortos em combate e
simbolizavam autoridade divina ou secular; se femininos, reclinavam-se, banhavam-se,
dividiam líquidos em vasos e (como cariátides) sustentavam tetos. Eles não se moviam, e
certamente não desciam degraus de escadas.598

596
Marcel Duchamp em entrevista a Pierre Cabanne, Marcel Duchamp: Engenheiro do tempo perdido, p.
45.
597
Idem, p. 47.
598
Calvin Tomkins, op. cit., pp. 79 e 80 respectivamente.

202
Com o Nu..., Duchamp introduziu a ironia em sua arte. «Fazer um nu diferente do
clássico, deitado, em pé, e colocá-lo em movimento. Havia ali alguma coisa de
engraçado, que não era tão engraçado quando eu o fiz.»599 E era com ironia que passava
a responder às perguntas que lhe dirigiam, conforme atesta Nixola Greeley-Smith, que o
entrevistou em 1916:

O autor me disse, na semana passada, que o Nu descendo uma escada não é uma mulher, e
tampouco um homem. «É uma mulher?», repetiu, jovem mas já muito cansado da vida, o
artista francês com um olhar de tédio indescritível que lhe invejei porque raramente tenho
coragem de manifestar o tédio que experimento. «Não. É um homem? Não. Para dizer a
verdade não havia pensado nisso. E por que deveria? As minhas pinturas não representam
objetos mas abstrações».600

A partir dos dois Nu descendo uma escada, de Jovem triste num trem e de
Moinho de café, Duchamp começava a demonstrar uma preocupação voltada para além
da forma, para a idéia subjacente à pintura, ou, nas suas próprias palavras, para as
«abstrações» expressas em seus quadros. O Nu descendo uma escada, conforme o
próprio Duchamp, «é uma abstração do movimento».601 O artista criava aí uma imagem
estática do movimento: «o movimento é uma abstração, uma dedução articulada no
interior da pintura, sem que se saiba se uma personagem real desce ou não uma escada
igualmente real. No fundo, o movimento é o olho do espectador que o incorpora ao
quadro».602
Por inserir o movimento em seu quadro num momento em que já havia sido
publicado o primeiro manifesto futurista, pode-se imaginar que Duchamp tenha sentido
a influência deste grupo de artistas. No entanto, Duchamp negou, reiteradas vezes, que
tivesse conhecimento do que os jovens pintores produziam na Itália. Conforme
comentou anos mais tarde:

Os futuristas montaram a sua exposição na Galeria Bernheim Jeune em janeiro de 1912. Eu


estava pintando o Nu neste mesmo tempo. O esboço a óleo para ele, entretanto, já havia
sido feito em 1911. É verdade que eu conhecia Severini. Mas eu estava trabalhando por
mim mesmo naquela época – ou melhor, com os meus irmãos.603

599
Marcel Duchamp em entrevista a Pierre Cabanne, op. cit., p. 50.
600
Marcel Duchamp em entrevista a Nixola Greeley-Smith, «Cubista rappresenta l’amore in rame e
vetro», originalmente publicado no The Evening World, 4 abr. 1916, reproduzido por Arturo Schwarz,
Almanacco Dada, p. 56.
601
Idem, p. 56.
602
Pierre Cabanne, op. cit., p. 50.
603
Marcel Duchamp, «The Great Trouble with Art in this Country», reproduzido por Michel Sanouillet e
Elmer Petersen, The Writings of Marcel Duchamp, p. 124. Sobre este assunto, ver ainda Pierre Cabanne,

203
Segundo Robert Lebel, o primeiro a escrever uma alentada monografia sobre o artista, o
Nu... não se parece com o futurismo nem em sua forma:

Morfologicamente, todavia, o Nu não se aparenta ao futurismo com o qual Duchamp jamais


teve contato. Ele se separa daqueles sem equívoco pela introdução de um elemento irônico
e, substituindo o elã vitalista que caracteriza os italianos pela linha depreciativa da escada
que deve descer o Nu cujo título somente, sabe-se, é, para um futurista, inadmissível.604

Se quer-se traçar uma ascendência para o Nu..., talvez fosse mais sensato
recorrer às cronofotografias, tão em voga naquele período e com as quais Duchamp não
só estava familiarizado como assumia a sua influência.605 O movimento de descida do
nu, forjado a partir da representação de um mesmo corpo (quase uma máquina) em
sucessivos momentos, lembra bastante os experimentos de Marey e Muybridge. É até
mesmo curioso notar como Duchamp reproduziu no Nu..., em pintura portanto, uma
mesma seqüência de pontos que se observa neste tipo de fotografia: o modelo
costumava segurar tochas para que ficassem registrados, a partir da luz, os movimentos
de seus braços.606
Outra fonte de inspiração confessa era o poeta Jules Laforgue, de quem alguns
poemas foram ilustrados por Duchamp. Uma destas ilustrações, um desenho para
Encore à ce astre, mostra uma figura nua subindo uma escada. Já neste desenho, as
formas do nu deixavam de ser humanas e se tornavam algo muito próximo a uma
máquina: seus membros e seu torso pareciam revestidos por uma armadura.
Pela sua ousadia, o Nu... foi recusado no Salão dos Independentes: sua aparência
chocou Gleizes e Metzinger, que pediram aos irmãos de Duchamp que conversassem
com este para que retirasse o quadro. Indignado, Duchamp desligou-se da sociedade.
Sua tela acabou exposta pela primeira vez na Galeria Dalmau, em Barcelona, entre
obras cubistas. Depois, esteve presente na exposição da Seção de Ouro, da qual Villon
era o promotor. Mas foi do outro lado do Atlântico, em Nova York, que seu quadro
causou o maior escândalo, quando exposto no Armory Show em 1913. Filas de
espectadores se aglomeraram em frente ao que talvez considerassem um ataque ao bom
gosto. O American Art News ofereceu dez dólares à melhor explicação para a pintura, e

op. cit., p. 46: «Neste momento não me ocupava dessas coisas. E mais, a Itália estava longe. A palavra
“futurismo”, aliás, me atraía muito pouco».
604
Robert Lebel, Sur Marcel Duchamp, pp. 8-9.
605
Ver Pierre Cabanne, op. cit., p. 56; e Marcel Duchamp, «The Great Trouble with Art in this Country»,
op. cit., p. 124.
606
Ver John Golding, Marcel Duchamp: The Bride Stripped Bare by her Bachelors, Even, p. 23.

204
o Evening Sun publicou uma charge intitulada «Rude Descending a Staircase»
(trocadilho com as palavras nude, «nu», e rude, «rude, grosseiro»). Em função de toda
publicidade – mesmo negativa –, Duchamp se tornou famoso nos Estados Unidos, o que
facilitou a sua chegada a este país dois anos depois, em 1915.
Depois do Nu..., o artista decidiu que queria livrar-se «de todas as influências
sob as quais estava»: «Eu fiz o que pude com o cubismo, mas agora era hora de mudar.
Era sempre a idéia de mudar, de não me repetir. Eu poderia ter feito dez outros nus
naquela época se quisesse. Mas o fato é que eu não queria».607 Ainda em 1912, depois
do Nu..., Duchamp realizou três outras pinturas: O rei e a rainha cercados por nus
velozes, de maio, A passagem da virgem para a noiva e Noiva. Estas duas últimas foram
feitas entre julho e agosto, quando Duchamp estava morando em Munique. Todas elas
levam ao extremo as experimentações formais do Nu; desta vez, não só abstraindo quase
que por completo as figuras, como também transformando os personagens em
máquinas.
Com estas três telas quase abstratas e mais duas versões diferentes e bastante
realistas para um Moedor de chocolate, uma de 1913 e a outra de 1914, Duchamp
despedia-se da pintura de cavalete e preparava-se para começar um grande projeto que o
manteria ocupado por oito anos: La mariée mise à nu par ses célibataires, même ou
Grande vidro (fig. 52). Como veremos a seguir, as figuras representadas no grupo de
telas quase abstratas – principalmente A passagem da virgem para a noiva e Noiva –
apareceriam na metade superior do vidro, enquanto a imagem do moedor de chocolate
dominaria a metade inferior. A partir de então, Duchamp dedicava-se inteiramente a
estudos preliminares para o Grande vidro, em desenho sobre papel e mesmo em vidro,
no qual representava isoladamente elementos que deveriam pertencer posteriormente ao
conjunto.
Foi nesta época que desistiu da arte:

Apenas o Grande vidro me interessava e não era o caso, evidentemente, de expor os


primeiros ensaios. Queria me desligar de toda obrigação material e comecei uma carreira de
bibliotecário, que era uma espécie de desculpa social para não ser mais obrigado a me

607
Marcel Duchamp em entrevista a James Johnson Sweeney, reproduzida por Michel Sanouillet e Elmer
Petersen, op. cit., p. 130.

205
manifestar. Deste ponto de vista, era uma decisão bem clara. Não queria fazer pintura, nem
vendê-la, além disso, havia um trabalho diante de mim que levaria muitos anos.608

A firme determinação de não querer mais fazer pintura para vender conduziu Duchamp
a dois caminhos que, à primeira vista, podem parecer diversos. Por um lado, como o
artista mesmo declarou, começou a elaborar e erigir o Grande vidro, que consumiu seu
tempo entre os anos de 1915 – quando trocou Paris por Nova York – e 1923, quando
deixou seu trabalho propositalmente inacabado e foi se tornar jogador oficial de xadrez.
Por outro, no dia do ano de 1913 em que virou uma roda de bicicleta em cima de um
banquinho de madeira, em sua casa em Paris, simplesmente para observar o seu
movimento, encontrou ainda uma outra forma de expressão: passou a se apropriar de
objetos manufaturados, retirando-os de seus contextos originais e colocando-os,
primeiro em sua casa, em contextos completamente diferentes, criando, com este
procedimento, um abismo entre o significante e o significado do objeto, como bem
observa Lévi-Strauss em entrevista a Georges Charbonnier:

O escorredor na adega é com efeito um significante de um certo significado; dito de outra


forma, é um aparelho que serve para escorrer as garrafas. Se colocá-lo sobre uma lareira na
sala, é claro que você dissocia, que faz explodir, a relação significado e significante...
(...)
Você operou então, se me permite uma fórmula pretensiosa, um novo reajuste da relação
entre significante e significado, um reajuste que estava no domínio do possível mas que não
estava abertamente realizado na situação primitiva do objeto. Você faz então, em certo
sentido, obra de conhecimento, descobre nesse objeto propriedades latentes, mas que não
eram perceptíveis no contexto inicial; é o que faz o poeta cada vez que emprega uma
palavra ou dá a uma frase uma conotação que foge do habitual.609

Com esta manobra de deslocamento do contexto original, o readymade acaba por


assumir um significado autônomo, de tal maneira que os observadores são convidados a
esquecer seu significado original – ou seja, seu uso e sua finalidade – e a considerarem-
no como uma realidade em si.
À Roda de bicicleta, seguiram-se Porta-garrafas (1914), comprado no Bazar do
Hotel de Ville, em Paris; Farmácia (1914), no qual pintou dois pontos sobre uma
reprodução gráfica de uma paisagem; Na eminência de um braço quebrado (1915), pá
adquirida numa loja em Nova York; Pente (1916), um velho artigo para cachorros;
608
Marcel Duchamp em conversa com Gianfranco Baruchello, artista italiano que teve a oportunidade de
conviver com Duchamp na década de 1960. Ver Gianfranco Baruchello, Why Duchamp: An Essay on
Aesthetic Impact, pp. 68-69.
609
Claude Lévi-Strauss em entrevista a Georges Charbonnier, Arte, linguagem, etnologia: entrevistas
com Claude Lévi-Strauss, pp. 82-83.

206
Porta-chapéus (1917), entre outros. Em 1916, dois de seus readymades foram expostos
publicamente, pela primeira vez, na Galeria Bourgeois, figurando no catálogo como
«esculturas». Um ano depois, em 1917, Duchamp desafiou o júri, do qual fazia parte, ao
enviar para a exposição anual da Sociedade dos Artistas Independentes um mictório de
porcelana, com a assinatura R. Mutt e o título Fonte. Esta exposição tinha como
princípio aceitar qualquer obra de arte desde que seu autor se dispusesse a pagar a taxa
de inscrição de seis dólares. Sua Fonte foi rejeitada, e o artista publicou anonimamente
uma nota em defesa do suposto R. Mutt – Mott Works era o nome de uma empresa de
artigos sanitários – na revista The Blind Man, que editava na época com Man Ray. Com
seu gesto, Duchamp punha em discussão toda a forma de representação artística que
havia rejeitado anos antes. Observa Jindrich Chalupecký:

Ao apresentar a Fonte, Duchamp não procurava ser aceito pelo «mundo da arte». Sua Fonte
era, ao contrário, uma manifestação aberta de desacordo com este «mundo da arte»,
desacordo que punha mesmo em causa esta parte do «mundo da arte» que, na época, estava
a mais afastada das convenções estabelecidas. Fonte não tinha lugar em qualquer
exposição, mesmo naquela dos Independentes radicais; não a expuseram. Mas o envio de
Duchamp tinha apenas uma só e única significação: se distanciar do «mundo da arte».610

Embora estes dois rumos que toma a atividade artística de Duchamp tenham sido
vistos como paradoxais,611 parece-me que ambos respondem a um mesmo impulso:
afrontar os padrões tradicionais da arte, o que se traduz, em termos duchampianos,
numa repulsa ao que denomina «pintura retiniana». Em 1946, declarou:

Eu queria fugir do aspecto físico da pintura. Eu estava muito mais interessado em recriar
idéias na pintura. (...) Eu estava interessado em fazer com que a pintura servisse a meu
propósito, e em fugir da fisicalidade da pintura. Para mim, Courbet havia introduzido a
ênfase física no século XIX. Eu estava interessado em idéias – não meramente em produtos
visuais. Eu queria colocar a pintura, mais uma vez, a serviço da mente.
(...)
De fato, até os últimos cem anos, toda pintura era literária ou religiosa: toda ela estava a
serviço da mente. Esta característica foi perdida pouco a pouco durante o último século.612

Sua meta era retomar, portanto, de uma forma nova, a antiga concepção de Da Vinci da
pintura como cosa mentale. Talvez seu primeiro trabalho exemplar nesse sentido –
quiçá o mais conceitual deles – tenha sido 3 Stoppages étalon (1913-1914): um misto de

610
Jindrich Chalupecký, «Art et transcendance», compilado por Jean Clair, Marcel Duchamp: tradition
de la rupture ou rupture de la tradition?, p. 12.
611
Ver John Golding, op. cit., p. 55.
612
Marcel Duchamp, «The Great Trouble with Art in this Country», op. cit., p. 125.

207
readymade e produção artesanal.613 Nesta peça, Duchamp tomou três telas retangulares
e pintou-as totalmente de azul. Depois, deixou cair um fio em cima de cada uma destas
telas, conforme havia indicado numa nota manuscrita, posteriormente publicada:

– Si un fil droit horizontal d’un mètre de longueur tombe d’un mètre de hauteur sur un plan
horizontal en se déformant à son gré et donne une figure nouvelle de l’unité de longueur.
– 3 exemplaires obtenus dans des conditions à peu près semblable: dans leur considération
chacun à chacun sont une reconstitution approchée de l’unité de longueur.
Les 3 stoppages étalon sont le mètre diminué.614

É interessante ressaltar como, para explicar o que tinha em mente, Duchamp


recorre a um paralelo com a pintura religiosa, compreendendo esta como um tipo de
pintura cujo princípio seria análogo à espécie de arte que estava colocando em curso. A
diferença era óbvia: enquanto a pintura religiosa procurava expressar o divino, a arte
mental que Duchamp proclamava não tinha esta finalidade.

eu creio que há uma diferença entre a pintura que se dirige somente, em primeiro lugar, à
retina e à impressão retiniana para chegar a um julgamento sobre esta pintura, e uma
pintura que vai mais longe que a retina, que se serve do tubo de tinta como meio de ir mais
longe, este seria o caso dos religiosos da Renascença. O tubo de tinta não lhes interessava, o
que lhes interessava era exprimir suas idéias da divindade de um modo ou de outro, sob a
forma de uma Virgem ou de outra. Então, sem refazer a mesma coisa, há esta idéia, minha
em todo caso, de que a pintura pura por ela mesma, não é interessante, em si, como
propósito. A pintura é um meio que justifica o fim. O fim é outro. Para mim, o fim é uma
combinação ou, ao menos, uma expressão que só a matéria cinzenta pode chegar a dar.
Você me dirá que a matéria cinzenta não quer dizer nada, é um pouco uma escolha de
termos difíceis, mas é para fazer compreender minha idéia que eu não me detenho na
pintura simplesmente física.615

Justifica ainda Duchamp: «quando eu fiz este Vidro, minha intenção era não fazer uma
pintura para olhar, mas uma pintura onde eu me servia do tubo de tinta para exprimir

613
O próprio Duchamp considerava esta obra como pioneira nesta direção nova que perseguia: «Em si
mesma [3 Stoppages étalon] não era uma obra de arte importante, mas para mim abriu o caminho – o
caminho para escapar daqueles métodos tradicionais de expressão por muito tempo associados com arte.
Eu não o percebi no momento exato que tinha topado com ela. Quando você dá uma batidinha em alguma
coisa, nem sempre reconhece o som. (...) Para mim, 3 Stoppages étalon foi o primeiro gesto me liberando
do passado» (relatado a Katherine Kuh e reproduzido por Arturo Schwarz, The Complete Works of
Marcel Duchamp, pp. 128-129).
614
Marcel Duchamp, «La boîte de 1914», Duchamp du signe, p. 36. O início desta nota foi repetido ipsis
litteris em «La mariée mise à nu par ses célibataires, même», op. cit., p. 50. Possível tradução: – Se um
fio reto horizontal de um metro de comprimento cai de um metro de altura sobre um plano horizontal
deformando-se a seu bel-prazer e forma uma figura nova da unidade de comprimento. / – 3 exemplares
obtidos em condições mais ou menos semelhantes: em consideração um ao outro são uma reconstituição
aproximada da unidade de comprimento. / Os 3 stoppages padrão são o metro diminuído.
615
Marcel Duchamp em entrevista a Alain Jouffroy, Marcel Duchamp: rencontre, pp. 30-31.

208
uma idéia».616 Assim, Duchamp decretava o fim da noção de contemplação de uma obra
de arte. O readymade

não deve ser olhado, no fundo. Ele está lá, simplesmente. Percebe-se pelos olhos que ele
existe. Mas não o contemplamos como se contempla um quadro. A idéia de contemplação
desaparece completamente. Simplesmente nota-se que é um porta-garrafas, ou que era um
porta-garrafas que mudou de destinação.617

Desta forma,

não é a questão visual do ready-made que conta, é o fato mesmo de que ele existe. Ele pode
existir na sua memória. Você não precisaria olhá-lo para entrar no domínio do ready-made.
(...) Não há mais questão de visualidade: o ready-made não é mais visível, por assim dizer.
Ele é completamente matéria cinzenta.618

No momento em que seus trabalhos passam a se constituir como pura «matéria


cinzenta», eles terminam por exigir uma igual carga de «matéria cinzenta» do
espectador. Não se trata mais de contemplação mas de algo próximo à decifração. É
desta maneira que Duchamp convoca o observador a participar de seus trabalhos.
Vimos, na primeira parte deste livro, como as manifestações artísticas dos mais diversos
movimentos do início do século XX não só contavam com a participação do público
como o obrigavam a tomar parte ativa em suas atividades por meio da provocação. Em
Duchamp, como, de uma certa forma, também em Mondrian e Malevitch – afinal, como
espero ter demonstrado, a pintura de ambos não se esgota numa apreciação retiniana –
,619 o espectador se vê igualmente constrangido a participar e a reagir. No entanto, esta
participação e esta reação, em Duchamp, não se dão apenas fisicamente, como exigem o
Grande vidro e sua obra tardia Étant donnés, mas principalmente por meio de uma ação
pura do pensamento. Na Merzbau de Schwitters, por outro lado, a participação é
prioritariamente física. Na verdade, torna-se até mesmo estranho falar em espectador
quando o que se constitui ali está mais próximo de um visitante, convidado a penetrar e
experimentar uma estranha construção que não pode ser reduzida a uma peça de
arquitetura.

616
Idem, p. 28.
617
Marcel Duchamp em entrevista a Philippe Collin, realizada em 21 de junho de 1967, em Paris,
reproduzida em Marcel Duchamp parle des ready-made, p. 14.
618
Idem, p. 18.
619
Alain Jouffroy lembra que, numa entrevista concedida em 1954, o próprio Duchamp teria isentado
Mondrian e Seurat de sua crítica aos pintores fauves, cubistas e abstratos com preocupações puramente
sensoriais (Op.cit., pp. 29-30).

209
Não deixa de ser curioso que a extrema racionalidade que se acha no
fundamento desta arte – tanto de Duchamp quanto de Schwitters – se manifeste como
ilógica, casual e, por vezes, irracional, sendo esta manifestação resultado de uma série
de ações associadas cuja estrutura se assemelha àquela dos rituais primitivos – e, lembro
mais uma vez, é a isto que denomino dimensão ritual. Em Duchamp, esta dimensão se
encontra de forma reduzida nas ações de escolha de um objeto e deslocamento deste de
seu contexto original, no caso dos readymades, e de forma complexa na elaboração e
exibição do Grande vidro. Em função disso, sugiro que nos detenhamos no exame mais
fundo de La mariée mise à nu par ses célibataires, même, porém sem eliminarmos a
possibilidade de relacionar sua lógica de construção – que é o que realmente nos
importa aqui – à dos readymades. Partamos, então, ao vidro.

b. Obra sem fim


La mariée mise à nu par ses célibataires, même faz jus a seu codinome, Grande
vidro: compõe-se de duas placas de vidro duplo sobrepostas totalizando 2m75cm de
altura por 1m73cm de largura. Em seu verso, nas costas do Moedor de chocolate,
Duchamp escreveu:

La mariée mise à nu par ses célibataires, même


Marcel Duchamp
1915-1923
– inachevé
– cassé 1931
– reparé 1936620

Ao contrário da Merzbau de Schwitters, que era por princípio inacabável, o Grande


vidro foi propositalmente abandonado sem ter sido terminado, como outro grande
quadro do século XX, Les demoiselles d’Avignon, de Picasso. Duchamp alegou tédio
como motivo da sua desistência: «Você sabe como é continuar qualquer coisa depois de
oito anos. É a monotonia... Você tem que ser muito forte».621 Porém, para além do tédio,
o impulso que o levou a renunciar à finalização daquela que foi, sem dúvida, a sua
maior obra – comparável apenas a Étant donnés. 1º la chute d’eau. 2º le gaz
d’éclairage, exibida postumamente – talvez provenha de uma resistência em legar a seu
620
Ver Arturo Schwarz, op. cit., p. 701.
621
Marcel Duchamp em entrevista a Pierre Cabanne, op. cit., p. 116.

210
trabalho uma forma fixa. Nisto estamos de acordo com John Golding: «é como se ele
também se sentisse relutante em congelá-lo num fim e sentisse que algo do mistério e da
vitalidade da peça desapareceria (para ele, pelo menos) se realizasse o seu plano ao pé
da letra».622 E o próprio Duchamp induziu a uma leitura como esta quando comentou
com Walter Hopps: «algumas vezes, na coisa inacabada, há mais, há ainda mais calor,
que você não muda ou que você não encerra ou aperfeiçoa no produto final».623 Ao
permanecer inacabado, o vidro continua virtualmente em fluxo, não encerrando jamais o
seu processo. É como se o seu não-encerramento permitisse que a obra se mantivesse
sempre viva, sempre ativa, em caráter de eterna suspensão do tempo. Já dizia Maurizio
Calvesi, num exaustivo volume sobre o Grande vidro, que este trabalho se projeta para
fora de si, «se projeta e se prolonga no tempo, na vida e na obra de Marcel
Duchamp».624
Pintadas a óleo e em folhas de cobre e de prata, as figuras que este trabalho
apresenta não são imediatamente reconhecíveis. Boa parte de sua identificação se deve,
principalmente, ao conjunto de notas e desenhos preliminares, publicado em 1934 (e
sobre o qual falarei em seguida), com o mesmo título do vidro: La mariée mise à nu par
ses célibataires, même. Quem, contudo, teve a oportunidade de ver a peça na exposição
internacional de 1926 no Museu do Brooklin, quando não se dispunham das notas,
deparou com um grupo de figuras estranhas, sobre as quais poderia ter aventado
algumas hipóteses. Um visitante da exposição do Brooklin reconheceria, na parte de
cima, uma nuvem sobre a qual foram afixadas três placas. No lado esquerdo, veria uma
representação de um ser em forma de um animal-máquina, que parecia estar suspenso
num canto da nuvem. Pelo título e, se estivesse familiarizado com a obra de Duchamp,
pela semelhança de traços entre o vidro e quadros anteriores, como A passagem da
virgem à noiva e A noiva, poderia supor que o animal-máquina fazia as vezes da noiva,
uma noiva que parecia não ter braços, mas patas. Das suas pernas-patas, o visitante
notaria que pendia algo comprido e pontudo – um véu? – em direção à parte inferior do
vidro e que a noiva não estava voltada para baixo, onde ficavam os celibatários, mas
para cima. Ainda na parte superior, no canto direito, poderia divisar nove pontos.
Perceberia que a parte inferior é a que contém um maior número de elementos.

622
John Golding, op. cit., p. 79.
623
Marcel Duchamp citado por Calvin Tomkins, The Bride and the Bachelors, p. 38.
624
Maurizio Calvesi, Duchamp invisibile: la costruzione del simbolo, p. 262.

211
Deduziria que aquelas nove figuras incomuns fossem os celibatários a que se referia o
título do trabalho. Notaria que estes se acham atrás de uma estrutura no meio da qual se
encontra um moinho d’água. No centro desta parte inferior do vidro, levemente maior
que a superior, nosso visitante imaginário, se acompanhasse o trabalho de Duchamp,
reconheceria o moedor de chocolate, representado em duas telas entre 1913 e 1914.
Observaria ainda que este está ligado, por uma haste vertical, a duas outras hastes
horizontais dispostas em cruz, cujas extremidades encontram-se presas aos lados da
estrutura. Em torno destas hastes, veria sete cones dispostos em semi-círculo. Do
primeiro deles, se os considerarmos organizados no sentido horário, saem fios que se
ligam ao que deveria ser a cabeça dos celibatários, como se estes estivessem pendurados
num varal. Por fim, o visitante possivelmente ficaria ainda mais intrigado com os
estranhos desenhos na extrema direita, tão parecidos com as figuras que se vêem em
tratados de ótica.
Se permanecesse mais um tempo frente ao misterioso trabalho de Duchamp,
nosso visitante poderia ainda verificar que, apesar de estático, o vidro sugere um
movimento interno por meio dos mecanismos apresentados – o moinho d’água e o
moedor de chocolate – e pela disposição dos cones, que dão a impressão de estarem se
movendo da esquerda para a direita. E, quando o visitante tivesse, oito anos depois,
acesso às notas manuscritas, contendo mais detalhes sobre esta peça, que não é uma
escultura, mas também não é mais somente uma pintura, constataria que La mariée...
realmente foi pensada como um mecanismo – o que reforça ainda mais a impressão de
que está sempre em processo.

c. Texto e obra
Realmente, uma identificação completa dos elementos contidos no Grande vidro
depende da leitura das notas que compõem La mariée mise à nu par ses célibataires,
même, também chamada de Caixa verde. É nesta que as figuras adquirem nomes e
funções. Entretanto, elas não se constituem como um simples manual de instrução. Seu
conteúdo, por vezes, complica mais do que explica a estrutura em vidro, como, aliás, na
maior parte das relações que Duchamp estabelece entre imagem e palavra em suas
obras.

212
Vimos que os textos de Mondrian e Malevitch explicitavam uma aspiração a se
atingir o absoluto por meio das formas puras e que os de Schwitters expressavam um
anseio de retornar a um estado primordial ou natural. Tanto aqueles quanto estes
assumiam a forma de artigos ou manifestos, cuja finalidade não era outra que expor as
intenções subjacentes a suas respectivas obras e as pretensões a se alcançar com elas.
Em síntese, estes textos funcionavam como um aporte teórico-explicativo dos trabalhos.
Em Duchamp, o texto e a obra não se relacionam da mesma maneira. E, de todos os
quatro artistas aqui estudados, foi ele quem estreitou mais os vínculos entre a imagem e
a palavra. Nem mesmo Schwitters, que era também poeta e escritor, construiu uma
relação tão intrínseca – e tão dependente – entre o visual e o verbal. Quando incluía
recortes de palavras ou frases extraídas dos jornais em suas obras, estas não fingiam ser
uma legenda – como veremos ser o caso de alguns trabalhos de Duchamp –, mas
pareciam estar a serviço da forma, da estrutura geral da composição, como se fossem
mais uma ilustração. Em Duchamp, a relação se complexifica.
Não por acaso a inspiração para o Nu descendo uma escada originou-se de um
poema e a real virada na sua carreira, a passagem do «cubismo» ao Grande vidro e aos
readymades, se deu por influência não de um artista plástico, mas de um escritor: «Eu
achava que, como pintor, era muito melhor ser influenciado por um escritor do que por
outro pintor».625 Em mais de uma entrevista e depoimento, Duchamp afirmou que devia
a mudança na sua concepção artística à apresentação de Impression d’Afrique, peça de
Raymond Roussel, que assistiu em 1912, na companhia de Apollinaire.626
Provavelmente inspirado no processo de escrita de Roussel – a quem passou a admirar
pela sua «imaginação delirante»627 –, baseado no trocadilho oriundo da homofonia entre
palavras de significados distintos, Duchamp aprendeu a conciliar o inconciliável a partir
de um único traço em comum, como se pode ver tanto em suas brincadeiras verbais –
por exemplo, a inscrição aposta a uma reprodução de uma Mona Lisa, sobre a qual
acrescentou ainda bigode e barbicha, L.H.O.O.Q, em francês «elle a chaud au cul»; em
português, algo como «ela tem fogo no rabo» –, quanto visuais – os pesados cubos de

625
Marcel Duchamp, «The Great Trouble with Art in this Country», op. cit., p. 126.
626
Declarou Duchamp, em 1946, em entrevista a James Johnson Sweeney: «Foi fundamentalmente
Roussel o responsável pelo meu vidro, La mariée mise à nu par ses celibataires, même. Do seu
Impression d’Afrique, eu tomei a abordagem geral. Esta sua peça, que eu vi com Apollinaire, me ajudou
muito, por um lado, a minha expressão» («The Great Trouble with Art in this Country», op. cit., p. 126).
627
Marcel Duchamp, «The Great Trouble with Art in this Country», op. cit., p. 126

213
mármore fingindo serem leves torrões de açúcar no curioso Why Not Sneeze Rose
Sélavy? (1921). Além de Roussel, Duchamp constantemente citava outros escritores
pelos quais declarava simpatia: «Minha biblioteca ideal conteria todos os escritos de
Roussel – [Jean-Pierre] Brisset, talvez Lautréamont e Mallarmé».628 Na opinião de
Golding, o artista «sentia uma maior afinidade com a literatura do que com a
pintura».629 E talvez por isso seu Grande vidro tenha suscitado comparações com obras
literárias: Octavio Paz, num dos melhores ensaios sobre o artista, relaciona o vidro a Un
coup des dès, o mais longo e revolucionário poema de Mallarmé; e Tomkins o aproxima
a Finnegans Wake, o último e mais original livro de James Joyce.630 Para Golding
ainda,

seria justo dizer que a suprema contribuição de Duchamp para a arte do primeiro quartel do
século XX jaz no fato de que, numa maior proporção que seus colegas, ele manteve vivo o
diálogo bastante frutuoso entre a literatura e as artes visuais que havia animado tanto a
pintura do século XIX francês e a que a maioria de seus colegas fechara tacitamente a porta
quando eles reconheceram a supremacia de Cézanne, o mais puramente visual dos maiores
pós-impressionistas e o artista mais formalmente desafiador de todo o século XIX.631

O próprio Duchamp assumia que a relação entre a palavra e a imagem era


«muito importante» para ele. Um título ou uma frase acrescentada a um readymade, por
exemplo, era como um elemento a mais justaposto ao trabalho, como uma «cor verbal»:
«o que se faz é acrescentar uma dimensão dada pelas palavras que são como uma paleta
com as cores. Coloca-se uma cor a mais, as cores verbais».632 Muitos dos readymades

628
Idem, p. 126. Marc Décimo publicou um interessante volume em que lista os prováveis livros da
biblioteca de Duchamp. Segundo a relação de Décimo, entre obras de arte, catálogos de exposição,
encontrar-se-ia na biblioteca do artista um grande número de obras de literatura, de Dante a Mallarmé, de
Dostoievsky a Nabokov, de Shakespeare a Jarry (ver La bibliothèque de Marcel Duchamp, peut-être, pp.
83-155).
629
John Golding, op. cit., p. 27.
630
Octavio Paz: «O antecedente direto de Duchamp não está na pintura, mas na poesia: Mallarmé. A obra
gêmea do Grande vidro é Un coup de dés. (...) A parecença entre ambos artistas não provém de que os
dois mostram preocupações intelectuais em suas obras, senão em seu radicalismo: um é o poeta e o outro
o pintor da Idéia. Os dois enfrentam a mesma dificuldade: no mundo moderno, não há idéia senão crítica.
Mas nenhum dos dois se refugia no ceticismo ou na negação. Para o poeta, o acaso absorve o absurdo; é
um disparo ao absoluto e que, em suas mudanças e combinações, manifesta ou projeta o absoluto mesmo.
É esse número em perpétuo movimento que roda desde o princípio até o fim do poema e que se resolve
em quiçá uma constelação, inacabável cômpito total em formação. O papel que desempenha o acaso no
universo de Mallarmé, o assume o humor, a meta-ironia, no de Duchamp. O tema do quadro e do poema é
a crítica, a Idéia que sem cessar destrói a si mesma e sem cessar se renova» (Aparencia desnuda,
compilado no volume 6 das obras completas, Los privilegios de la vista I: Arte moderno universal, p.
181). Calvin Tomkins: «O Grande vidro coloca-se em relação à pintura como Finnegans Wake o faz para
a literatura, isolados e inimitáveis» (The Bride and the Bachelors, p. 28).
631
John Golding, op. cit., pp. 27-28.
632
Marcel Duchamp em entrevista a Philippe Collin, op. cit., p. 19.

214
de Duchamp vinham seguidos de um texto, em forma de título, inscrição, frase. Assim,
o postal com a reprodução da Mona Lisa barbuda portava o já citado dito
«L.H.O.O.Q.». O Pente (1916) trazia escrita em letras brancas, na sua lateral, a frase
desconexa «3 ou 4 gouttes de hauteur n’ont rien a faire avec la sauvagerie», em tradução
literal «3 ou 4 gotas de altura não têm nada a ver com selvageria». Em Apolinère
enameled (1916-1917), tomando uma peça de propaganda como base, Duchamp alterou
o nome da marca «Sapolin paints», retirando uma letra aqui e acrescentando outra acolá,
e transformou-a em «Apolinère enameled», fazendo uma homenagem a seu amigo
Apollinaire. No canto direito, ainda modificou, cobrindo letras com tinta preta e
retificando outras, o nome do produtor da marca e sua procedência: «Gerstendorfer
Bros. New York, U.S.A» virou «any act red by her ten or epergne. New York. U.S.A».
Em Barulho secreto (Bruit secret, 1916), duas enigmáticas inscrições tornavam o
readymade ainda mais misterioso. Na parte de cima, lê-se:

P.G .ECIDES DÉBARRASSÉ.


LE. D.SERT. F.URNIS ENT
AS HOW.V.R COR.ESPONDS
Convenablement choisie dans la même colonne

E, virando a peça de ponta-cabeça, encontra-se:

.IR CAR.É LONGSEA→


F.NE, .HEA., .O.SQUE→
TE.U S.ARP BAR.AIN→
Remplacer chaque point par un lettre633

Em carta a Arturo Schwarz, Duchamp afirmou que estas letras não queriam dizer nada,
que eram apenas «um exercício de ortografia comparativa (inglês-francês)», e precisou
ainda: «Os pontos devem ser substituídos por uma das duas letras das outras duas
linhas, mas na mesma vertical que o ponto. Francês e inglês estão misturados e não
fazem “sentido”. As três flechas indicam a continuidade da linha da parte de baixo até a
parte de cima, ainda sem sentido». Destas orientações, Schwarz constituiu a seguinte
frase: Fire Carré Longsea; Peg decides débarrasse; Fine, Cheap, Lorsque; Les deserts
fournissent; Tenu sharp bargain; As however corresponds. Até o Porta-garrafas tinha,
originalmente, uma frase escrita em sua base. «E como a perdi na noite dos tempos, não
recordo a frase que havia escrito. Assim, as novas [porta-garrafas] não a tem mais»,
633
Reproduzido por Arturo Schwarz, op. cit., pp. 370 e 644 respectivamente.

215
comentou o artista com Philippe Collin, em entrevista realizada em 1967, um ano antes
de sua morte.634
Certa feita, comentando o uso destas frases em seus readymades, Duchamp pôs
a nu a sua intenção: «Esta frase, em vez de descrever o objeto como um título, tinha
como intenção conduzir a mente do espectador em direção a outras regiões mais
verbais».635 O artista parecia estar adotando e ampliando aqui a regra ditada por
Umberto Eco décadas depois: «Um título deve confundir as idéias, nunca discipliná-
las».636 Em geral, o título, a frase ou a inscrição que acrescentava em seus trabalhos – e
podemos considerar até mesmo o título do Grande vidro: La mariée mise à nu par ses
célibataires, même – fornecem uma falsa explicação ou, com sua pseudo-explicação,
dificultam ainda mais o entendimento da obra. Neste sentido, a relação entre texto e
obra em Duchamp se institui de maneira muito semelhante àquela verificada nos antigos
emblemas, nos quais um fragmento de prosa ou verso (que os emblemistas chamavam
de «alma») aparecia sempre escoltando uma imagem (o «corpo»). Conforme Giorgio
Agamben, nos emblemas, «o “corpo” e a “alma” estão entre si numa relação que é, ao
mesmo tempo, de explicação e ocultamento (um “obscurecer [adombrare] explicando”
e um “explicar obscurecendo [adombrando]”, nas palavras de um tratado seiscentista),
sem que nenhuma das duas intenções prevaleça uma sobre a outra».637
As notas ao Grande vidro talvez sejam o melhor e o maior exemplo desse jogo
de esconde-revela. Somente por meio delas é possível identificar e nomear cada um dos
elementos vistos no vidro, mas, ao mesmo tempo, a indicação de seu funcionamento e
algumas anotações esparsas contribuem – e muito – para seu mistério.
Duchamp produziu três conjuntos de notas manuscritas que diziam respeito
direta ou indiretamente a seu vidro. Para ele, as notas não só assumiam o mesmo valor
que o vidro em si, como os dois deveriam ser indissociáveis:

o vidro, no fim das contas, não foi feito para ser olhado (com os olhos «estéticos»); ele
devia ser acompanhado de um texto de «literatura» tão amorfo quanto possível, que não
tomasse forma; e os dois elementos, vidro para os olhos, texto para os ouvidos e o

634
Marcel Duchamp em entrevista a Philippe Collin, op. cit., p. 19.
635
Marcel Duchamp, «Apropos of “Readymades”», reproduzido por Michel Sanouillet e Elmer Petersen,
op. cit., p. 141.
636
Umberto Eco, Pós-escrito a O nome da rosa, p. 9.
637
Giorgio Agamben, Stanze: la parole e il fantasma nella cultura occidentale, pp. 177-178.

216
entendimento, deviam se completar e sobretudo impedir que um ou outro tomasse uma
forma estético-plástica ou literária.638

Numa de suas notas reunidas e publicadas postumamente por Paul Matisse, em 1980,
Duchamp imaginava a forma que poderia adquirir este texto:

la Mariée mise à nu...


faire un livre rond c.à.d. sans commencement ni fin (soit que les feuilles soient détachées et
mises en ordre par le dernier mot de la page répété à la page suivante (pas de pages
numérotées) – soit que les dos soit fait de cercles autour desquels les pages tournent639

O primeiro de seus conjuntos de notas, conhecido como Caixa de 1914, é o mais


raro de todos: foram realizados apenas cinco exemplares. O conhecimento de seu
conteúdo só chegou a um público mais amplo em 1959, quando suas notas foram
integradas por Michel Sanouillet à compilação dos escritos de Duchamp, Duchamp du
sel. A Caixa de 1914, originalmente uma caixa de placas fotográficas, trazia fac-símiles
fotográficos de quatorze notas em pedaços de papéis e duas imagens: um projeto para o
3 Stoppages étalon e um desenho sobre um papel de partitura musical de um homem de
bicicleta subindo uma linha. Nestas notas, indicava:

Faire une armoire à glace.


Faire une armoire à glace pour le tain.

Faire un tableau de fréquence :640

Sua segunda caixa, conhecida como Caixa verde, foi veiculada vinte anos depois
da primeira e, desta vez, com uma tiragem bem maior: 320 exemplares, 20 dos quais em
edição de luxo. Tratava-se de uma caixa recoberta com papel aveludado verde contendo
93 documentos soltos entre fotografias, desenhos e notas manuscritas, realizadas entre
1911 e 1915 em Munique, Paris e Nova York.641 Na tampa, portava a inscrição La

638
Marcel Duchamp em carta a Jean Suquet, datada de 25 de dezembro de 1949, reproduzida por Jean
Suquet, Miroir de la mariée, p. 247.
639
Marcel Duchamp, Notes, p. 41. Como considero suas notas como parte integrante de sua obra, optei
por preservá-las em sua língua original no corpo do texto, apresentando sua tradução na nota de rodapé.
Eis uma possível tradução: a Noiva posta a nu... / fazer um livro redondo i.e. sem começo nem fim (ou
que as folhas sejam destacadas e postas em ordem pela última palavra da página repetida na página
seguinte (nada de páginas numeradas) – ou que o verso seja feito de círculos em torno dos quais as
páginas girem.
640
A partir da reprodução fac-similar das notas da Caixa de 1914, feita por Arturo Schwarz, op. cit., p.
333. Possível tradução: Fazer um armário de vidro. / Fazer este armário de vidro prateado. / Fazer um
quadro de freqüência:.
641
Craig E. Adcock coloca em dúvida o período de 1911 a 1915 como aquele em que teriam sido escritas
as notas para o Grande vidro. Para ele, 1915 é «claramente muito cedo» para Duchamp ter terminado de
produzir anotações para seu trabalho. «1923 como uma data de fechamento é certamente mais “lógica”

217
mariée mise à nu par ses célibataires, même, grafada com furos. Embora se
apresentasse como uma espécie de «catálogo explicativo do Grande vidro»,642 as notas
desta caixa, muitas vezes, servem para confundir: em primeiro lugar, elas fazem
referência também a elementos que não estão no vidro; segundo, versam abertamente
sobre outros assuntos, como os readymades (o que nos faz supor que estes tivessem
relação com o vidro); terceiro, algumas delas não deixam claro a que aludem, se ao
vidro, se a outro trabalho ou se se trata apenas de considerações gerais. Octavio Paz é
preciso quando afirma: «O mistério da Noiva não procede tanto da carência de notícias
como de sua abundância».643 E Sanouillet, no fim da introdução às notas da Caixa
verde, recomenda: «Aconselhamos o leitor que tome esta bebida intelectual com
moderação. Uma frase por dia, manhã e tarde, nos parece constituir a dose conveniente.
Senão, a embriaguez ou o desgosto se manifestarão desde a primeira hora».644
Ambíguas e muitas vezes cifradas, as notas da caixa nem sempre são esclarecedoras,
como aquela longa nota, talvez a mais interessante delas por sua narratividade, que se
originou de uma viagem de carro que o artista realizou, em 1912, com Picabia, sua
mulher Gabrielle Buffet-Picabia e Apollinaire, da cidade de Jura de volta à Paris.
Reproduzo um trecho:

La machine à 5 coeurs, l’enfant pur, de nickel et de platine, doivent dominer la


route Jura-Paris.
D’un côté, le chef des 5 nus sera en avant des 4 autres nus vers cette route Jura-
Paris. De l’autre côté, l’enfant-phare sera l’instrument vainqueur de cette route Jura-Paris.
Cet enfant-phare pourra, graphiquement, être une comète, qui aurait sa queue en
avant, cette queue étant appendice de l’enfant-phare, appendice qui absorbe en l’émiettant
(poussière d’or, graphiquement) cette route Jura-Paris.
La route Jura-Paris, devant être infinie seulement humainement, ne perdra rien de
son caractère d’infinité en trouvant un terme d’un côté dans le chef des 5 nus, de l’autre
dans l’enfant-phare.
Le terme «indéfini» me semble plus juste qu’infini. Elle aura un commencement
dans le chef des 5 nus, et n’aura pas de fin dans l’enfant-phare.645

mas ainda duvidosa», comenta. Embora não haja evidências de que Duchamp tenha escrito mais notas
depois de 1923, Craig não descarta a possibilidade de o artista tê-lo feito (Marcel Duchamp's Notes from
the Large Glass: an n-dimensional analysis, pp. 2-3)
642
Termo empregado por Michel Sanouillet para designar as notas da Caixa verde, Duchamp du signe, p.
40. O próprio Duchamp, nas notas publicadas postumamente, precisava: «Evitar todo o lirismo formal,
que todo o texto seja um catálogo» (Notes, p. 45).
643
Octavio Paz, op. cit., p. 151.
644
Michel Sanouillet, Duchamp du signe, p. 40.
645
Marcel Duchamp, «La mariée mise à nu par ses célibataires, même», Duchamp du signe, pp. 41-42.
Possível tradução: A máquina a cinco corações, o infante puro, de níquel e de platina, devem dominar a
rota Jura-Paris./ De um lado, o chefe dos 5 nus estará de frente aos 4 outros nus rumo esta rota Jura-Paris.
Do outro lado, o infante-farol [enfant-phare] será o instrumento vencedor desta rota Jura-Paris. / Este
infante-farol poderá, graficamente, ser um cometa, que terá sua cauda na frente, esta cauda sendo

218
Mas a maior parte das notas assume o papel de uma espécie de modo de usar, de um
manual de explicação dos elementos e do funcionamento do Grande vidro. É a partir
deste grupo de anotações que aquele visitante que imaginamos no item anterior poderia
confirmar algumas de suas observações.
Na parte superior do vidro, a figura principal é, de fato, a Noiva, também
referida como Vespa, Motor-Desejo, Fêmea Pendurada, Máquina Agrícola e
Instrumento Aratório. Na sua frente, a nuvem acinzentada atende por Via-Láctea.
Dentro desta, localizam-se os Letreiros de Cima, e, na extrema direita, acha-se a Zona
de Pontos, isto é, os disparos dos celibatários. Na parte inferior, à esquerda, trata-se
mesmo dos celibatários, também chamados Aparelho Solteiro, Nove Moldes Machos,
Cemitério de Librés e Uniformes e Máquina de Eros. Pelas notas, somos informados de
que eles representam nove famílias ou tribos masculinas e estão vestidos de acordo:
padre, mensageiro de grande armazém, gendarme, couraceiro, policial, coveiro, lacaio,
garçom, chefe de estação. Duchamp explica ainda que seus celibatários são apenas
moldes, «trajes vazios inflados pelo fluido ou gás do desejo que a Noiva emite». Abaixo
deles, a estrutura é identificada como a Carreta. O Moinho d’Água, em seu interior, é
seu propulsor. Os sete cones recebem o nome de Coadores e se acham unidos aos
Moldes Machos por um sistema de Tubos Capilares. Acima dos Cones, as duas hastes
que se cruzam são as Tesouras. No centro da metade inferior, jaz o Moinho de
Chocolate. Na extrema direita, aquelas figuras geométricas que lembram as de ótica são
as Testemunhas Oculistas – e não oculares. Percebe-se que, pela simples observação
destes personagens representados no Grande vidro, seria impossível chegar a esta
descrição minuciosa.
De posse das notas da Caixa verde, confirma-se também a suposição de que o
vidro sugere um movimento interno. Na verdade, podemos concluir que, mais do que
sugerir um movimento, ele foi pensado como um mecanismo. Repare-se como
Duchamp se vale de metáforas mecânicas para designar seus personagens principais: a

apêndice do infante-farol, apêndice que absorve esmigalhando (poeira de ouro, graficamente) esta rota
Jura-Paris. / A rota Jura-Paris, devendo ser infinita somente humanamente, não perderá nada de seu
caráter de infinitude ao encontrar um termo de um lado no chefe dos 5 nus, do outro no infante-farol. / O
termo «indefinido» me soa mais justo que infinito. Ela terá um começo no chefe dos 5 nus, e não terá fim
no infante-farol. Quanto à expressão enfant-phare, esta é intraduzível para o português: «enfant-phare»,
em francês, além de significar literalmente a «criança-farol» ou «infante-farol», como preferi, soa como
«une fanfare», «uma fanfarra» em português

219
Noiva é também chamada de Motor-desejo («La Mariée à sa base est un moteur»646),
Máquina Agrícola e Instrumento Aratório; e os celibatários, de Aparelho solteiro. Afora
isso, nos escritos, abundam indicações sobre o modo de funcionamento de sua máquina,
que deveria operar do seguinte modo:
A Noiva, «um reservatório de essência do amor (ou potência tímida)»,647
transmite seus fluidos, em forma de descargas elétricas, aos Letreiros de Cima, os quais
as reenviam aos celibatários. Estes, postos em ação pelas descargas elétricas, as
recebem, inflam seus uniformes e começam a produzir, por sua vez, um gás que deve
ser devolvido à Noiva, como resposta. Este gás, antes de chegar a seu destino, é cortado
pelos Tubos Capilares e mandado para os sete Coadores. Transformadas em líquido por
estes últimos, as emissões dos celibatários chegam finalmente às Tesouras que as
espalham, fazendo com que algumas caiam e permaneçam no domínio dos celibatários e
outras explodam e disparem para o alto, formando a Zona de Pontos. As Testemunhas
Oculistas, também chamadas de Escultura de Gotas, formam os salpicos: «chaque
goutte servant de point et renvoyée miroirquement dans la partie haute du verre en
rencontre avec les 9 tirés».648 Enquanto todo este processo se dá, a Carreta, acionada
pelo Moinho d’Água, recita suas litanias.
O que vemos na estaticidade do Grande vidro, portanto, é a representação de um
momento congelado no tempo deste ritual mecânico-amoroso. Já sugeri, no capítulo
dedicado a Schwitters, que o funcionamento da máquina poderia ser comparado ao
funcionamento dos rituais. Aqui o vidro como um todo se apresenta como uma
máquina, um mecanismo virtual a partir do qual se organiza uma espécie de
ritualização, no sentido de uma reatualização constante e repetitiva de uma mesma ação.
O outro conjunto de notas, intitulado À l’infinitif e conhecido também como
Caixa branca, se reveste de uma certa cientificidade que apenas ajuda a embaralhar
ainda mais a compreensão da peça. De seus 76 textinhos, 36 tratam de geometria, com
pequena ou nenhuma referência específica ao Grande vidro. Como esta caixa só foi
publicado em 1966, mais de quarenta anos depois de ter abandonado o vidro inacabado,
provavelmente não era a estas notas que Duchamp fazia referência quando propunha

646
Idem, p. 62.
647
Idem, p. 65.
648
Idem, p. 93. Possível tradução: cada gota serve de ponto e reenvio espelhadamente da parte alta do
vidro ao reencontrar com os 9 tiros.

220
que se expusessem textos e obra lado a lado. Possivelmente, pensava na Caixa verde,
mais próxima cronologicamente do Grande vidro.
Poderíamos ainda propor uma última comparação. Considerando que Duchamp
expressou sua vontade de ver texto e obra expostos juntos e indissociavelmente, as notas
e o Grande vidro parecem se relacionar de maneira análoga àquela se pode verificar
entre o mito e o rito – e lembremos que o artista não gostaria que seu texto e sua obra
tomassem «uma forma estético-plástica ou literária».649 Parece-me que as notas –
principalmente as da Caixa verde pela sua proximidade cronológica com o vidro –
estariam para La mariée... como um mito estaria para o rito que o atualiza, ou talvez
ainda, mais precisamente, como aqueles discursos pronunciados pelo oficiante do ritual
durante a cerimônia. E as notas, segundo a vontade de Duchamp, deveriam ser lidas
defronte ao vidro, quiçá como entoações, como as verdadeiras litanias desta máquina
celibatária. Até mesmo uma linguagem secreta, tal qual a falada em alguns rituais
específicos, parece ser forjada numa das notas da Caixa verde:

Prendre un dictionnaire Larousse et copier tous les mots dits «abstraits», c’est-à-dire
qui n’aient pas de référence concrète.
Composer un signe schématique désignant chacun de ces mots (ce signe peut être
composé avec les stoppages étalon).
Ces signes doivent être considérés comme les lettres du nouvel alphabet.
Un groupment de plusieurs signes déterminera
(Utiliser les couleurs – pour différencier ce qui correspondrait dans cette [littérature]
à substantif, verbe, adverbe, déclinaisons, conjugaisons, etc.)
Nécessité de la continuité idéale c’est-à-dire : chaque groupement sera relié aux
autres groupements par une signification rigoureuse (sorte de grammaire, n’exigeant plus
une construction pédagogique de la phrase, mais, laissant de côté les différences des
langages, et les «tournures» propres à chaque langage, pèse et mesure des abstractions de
substantifs, de négations, de rapports de sujet à verbe etc., au moyen des signes-étalons,
(représentant ces nouvelles relations : conjugaisons, déclinaisons, pluriel et singulier,
adjectivation, inexprimables par les formes alphabétiques concrètes des langues vivantes
présentes et à venir).
Cet alphabet ne convient qu’à l’écriture de ce tableau très probablement.650

649
Marcel Duchamp em carta a Jean Suquet, op. cit., p. 247.
650
Marcel Duchamp, «La mariée mise à nu par ses célibataires, même», op. cit., p. 48. Possível tradução:
Pegar um dicionário Larousse e copiar todas as palavras ditas «abstratas», isto é, que não tenham
referência concreta. / Compor um signo esquemático designando cada uma destas palavras (este signo
pode ser composto com os stoppages étalon. / Estes signos devem ser considerados como as letras de um
novo alfabeto. / Um agrupamento de muitos signos determinará / (Utilizar as cores – para diferenciar
aquilo que corresponderá nesta [literatura] a substantivo, verbo, advérbio, declinações, conjugações etc.) /
Necessidade da continuidade ideal isto é: cada agrupamento será religado aos outros agrupamentos por
uma significação rigorosa (espécie de gramática, não exigindo mais uma construção pedagógica da frase,
mas, deixando de lado as diferenças das linguagens, e o «jeito» próprio a cada linguagem, pese e meça as
abstrações de substantivos, de negações, de relações de sujeito e verbo etc., por meio de signos-padrão,
(representando estas novas relações: conjugações, declinações, plural e singular, adjetivação,
inexprimíveis pelas formas alfabéticas concretas das línguas vivas presentes e por vir). / Este alfabeto só
convém à escritura deste quadro muito provavelmente.

221
Em resumo, Duchamp forja uma relação de dependência entre o vidro e suas
notas, como se cada uma destas partes restasse incompleta se dissociada da outra. Cria-
se, assim, um jogo de espelhos em que um faz referência ao outro e vice-versa,
produzindo – e reforçando – também aqui uma certa auto-referencialidade.
d. Artista-oficiante
Como nas composições Merz e na Merzbau de Schwitters, o que está no centro
das realizações de Duchamp posteriores ao Nu descendo a escada é, sempre, uma ação.
Em Schwitters, tratava-se de um conjunto associado de ações: escolher um fragmento
de objeto, recolhê-lo, por vezes limpá-lo e, finalmente, integrá-lo a uma construção
artística. Em Duchamp, a ação consistia, antes de tudo, numa escolha. «Não existe a
arte», ele acreditava; «é uma escolha [c’est un choix], essencialmente».651 E não
estamos falando aqui da opção por esta ou por aquela cor, por este ou por aquele
suporte. A escolha de Duchamp se orientava por regras pré-determinadas por ele mesmo
– não é à toa que ele denominou um conjunto de notas como «Leis, princípios,
fenômenos».652 Como Schwitters, também Duchamp se apresentava em e com sua ação
como o núcleo ordenador de sua obra. Era a partir de suas ações que as outras ações
(como o funcionamento virtual do vidro) poderiam se concretizar.
Mais do que planos e estudos preliminares, as notas da Caixa verde talvez
também possam ser compreendidas como um rol de regras e princípios, um tipo de
mandamentos, a serem observados no desenrolar da longa execução de La mariée...
Notas como

INSCRIPTION DU HAUT
Obtenue avec les pistons de courant d’air. (Indiquer la manière de «préparer» ces
pistons).
Ensuite les «placer» pendant un certain temps, (2 à 3 mois) et les laisser donner leur
empreinte en tant que 3 filets à travers lesquels passent les commandements du pendu
femelle.

POUSSIÈRE

651
Marcel Duchamp em entrevista a Philippe Collin, op. cit., p. 10.
652
Ver Marcel Duchamp, «La mariée mise à nu par ses célibataires, même», op. cit., p. 46.

222
Élever de la poussière sur des verres. Poussière de 4 mois, 6 mois qu’on enferme ensuite
hermétiquement = Transparence653

nos fazem lembrar as restrições impostas em certas comunidades «primitivas» quando


da realização de peças que deveriam servir a determinados rituais.654 Não esqueçamos
que o domínio do sagrado se constitui a partir de uma série de interditos e que é o ritual
que prescreve a maneira como se deve agir em relação a um objeto.655 Com isto, não
quero dizer que Duchamp buscava (e acreditava) investir-se de uma condição de
celebrante consagrado e sacralizar literalmente seu vidro, apenas desejo apontar uma
analogia possível entre as ações dos povos ditos «primitivos» em seus rituais e aquela
do artista, analogia que, independentemente de o artista estar ciente ou não dela, talvez
indique a persistência de uma comunicação mais funda entre estas duas produções
simbólicas fundamentais, a arte e o rito, mesmo na modernidade. Neste sentido, a ação
de Duchamp equiparava-se a de Schwitters: ambos faziam irromper o profano no seio
do próprio profano, como se este fosse algo de «sagrado». Não é por acaso que
Chalupecky comenta: «Os ready-mades de Duchamp vêm se enfileirar ao lado dos
fetiches primitivos, seu Grande vidro ou Étant donnés juntam-se aos monumentos das
civilizações antigas. Nós sentimos que eles tocam a mesma coisa».656 E Octavio Paz
recorda que Roger Caillois conta que os artistas chineses do século XIX tinham o
costume de escolher uma pedra, recolhê-la, dar-lhe um título e assiná-la. Assim,
promoviam a pedra à condição de obra de arte. Nesta aproximação da ação de Duchamp
à dos chineses e japoneses, Paz observa ainda:

O chinês afirma sua identidade com a natureza; Duchamp, sua diferença irredutível. O ato
do primeiro é uma elevação, um elogio; o do segundo, uma crítica. Para chineses, gregos,
maias ou egípcios, a natureza era uma totalidade vivente, um ser criador. Por isso a arte,
segundo Aristóteles, é imitação: o poeta imita o gesto criador da natureza. O chinês leva até
sua última conseqüência esta idéia: escolhe uma pedra e a assina. Inscreve seu nome numa

653
Idem, pp. 55 e 77-78 respectivamente. Possíveis traduções: INSCRIÇÃO DO ALTO / Obtida com os
pistões de corrente de ar. (Indicar a maneira de «preparar» estes pistões). / Em seguida os «colocar»
durante um certo tempo, (2 a 3 meses) e os deixar dar sua impressão em 3 filetes através dos quais passam
os comandos da fêmea pendurada (...). E: POEIRA / Elevar-se da poeira sobre o vidro. Poeira de 4 meses,
6 meses, que se fecha em seguida hermeticamente = Transparência.
654
Entre os maoris, por exemplo, os artefatos artísticos eram confeccionados como se fizessem parte de
um ritual. Quando estava a trabalhar em alguma escultura que iria servir ao culto, nenhum entalhador
maori poderia fazê-lo em presença de comida cozida (Ver Raymond Firth, «O contexto social da arte
primitiva», Elementos de organização social, p. 186). Nos cultos ogboni, era obrigatório que o fundidor
fosse um dos homens mais velhos. Dizia-se que sua tarefa lhe conferia um poder espiritual mas, ao
mesmo tempo, o tornava menos fértil (ver Robert Layton, A antropologia da arte, p. 95).
655
Ver Émile Durkheim, As formas elementares da vida religiosa, p. 19 e ss.
656
Jindrich Chalupecky, op. cit., p. 29.

223
criação e sua assinatura é um reconhecimento; Duchamp escolhe um objeto manufaturado:
inscreve seu nome numa negação e seu gesto é um desafio.657

Em La mariée..., as escolhas não se restringem às restrições estabelecidas nas


notas, como a que prevê a deposição de poeira sobre o vidro durante alguns meses, ato
que foi registrado por Man Ray (fig. 53). Elas passam também pela própria
determinação do vidro como suporte – detalhe bastante importante, como veremos em
seguida. Além disso, deve-se ressaltar que foi o próprio Duchamp que determinou o
lugar que deveria ocupar o Grande vidro na sala de exposições do Museu de Arte da
Filadélfia, de onde este nunca mais saiu, em função de um interdito ditado pela
fragilidade do material. Ao demarcar um lugar fixo para sua peça, Duchamp delimitou
um território de atuação e, com isso, estabeleceu um locus que só poderia ser ocupado
pelo seu vidro, determinando uma interrupção no espaço do museu, mais ou menos
como Schwitters procedeu em sua casa, com a Merzbau.
Todavia, era nas ações que constituíam os readymades que a questão da escolha
aparecia de maneira mais evidente. Tal como em Schwitters, dependia da eleição do
artista, esta espécie de «xamã», a elevação de um objeto qualquer à categoria de arte,
como já bem expressava André Breton, em 1934, em sua definição de readymade:
«objetos manufaturados promovidos à dignidade de objetos de arte pela escolha do
artista».658 Ao contrário de Schwitters, que se interessava por fragmentos e os recolhia
da rua, Duchamp importava-se com o todo do objeto, não apanhando na rua, mas,
muitas vezes, simplesmente comprando-o em algum estabelecimento comercial. No ano
em que entregou o mictório sob o título A fonte na exposição anual da Sociedade dos
Artistas Independentes de Nova York, Duchamp publicou uma nota anônima, na revista
que editou com Man Ray naquele ano, The Blind Man, em defesa do suposto autor do
trabalho, R. Mutt, no fim da qual explicitava o modus operandi de seus readymades:
«Se o sr. Mutt fez ou não a fonte com suas próprias mãos não tem importância. Ele a
ESCOLHEU [He CHOSE it]. Ele pegou um artigo ordinário da vida, o dispôs de tal
modo que sua significação utilitária desapareceu sob os novos título e ponto de vista –

657
Octavio Paz, op. cit., p. 144. O trecho de Roger Caillois a que Paz se refere é o seguinte: «Na China,
em meados do século XIX, acontece que o artista escolhe uma placa de mármore cujas nódoas e veias
agradam-lhe: ele delimita-a e emoldura-a, intitula-a e imprime seu selo. Desta maneira, ele toma posse e
transforma-a em obra de arte, sobre a qual assume daí em diante a responsabilidade» (L’écriture des
pierres, p. 47).
658
André Breton, «Marcel Duchamp: Phare de la Mariée», Surréalisme et peinture, p. 120.

224
criou um novo pensamento para aquele objeto».659 E esta escolha, como as escolhas
subjacentes ao Grande vidro, também se fundamentavam em certas interdições. A
primeira delas dizia respeito ao gosto: um readymade jamais podia agradar àquele que o
seleciona, e Duchamp reiterou esta restrição inúmeras vezes:

Um ponto que eu gostaria muito de estabelecer é que a escolha destes


«readymades» nunca foi ditada por deleite estético.
Esta escolha foi baseada numa reação de indiferença visual, ao mesmo tempo, com uma
total ausência de bom ou mal gosto... de fato, uma completa anestesia.660

Porém, entendia, não sem um certo pesar, que as pessoas pudessem terminar por
apreciar seus readymades num sentido estético: «Mas, enfim, compreendo muito bem
que as pessoas procurem freqüentemente um lado agradável, e elas o encontram por
hábito. Se você olhar uma coisa vinte vezes, você começa a se habituar, a amá-la ou
detestá-la, mesmo. Assim não resta jamais um tout à fait indiferente».661 E precisamente
por temer acabar também ele gostando de seus objetos, por deixar de ser-lhes
indiferente, Duchamp disse tê-los posto de lado passado algum tempo: «depois de muito
tempo, não os fiz, você sabe, não os fiz mais porque justamente há o perigo de fazê-los
muitos, porque não importa, você sabe, o quão hediondo seja, o quão indiferente seja, se
tornará bonito e agradável depois de quarenta anos».662
Uma outra forma de interdição estava expressa numa das notas da Caixa verde,
intitulada justamente Precisar os «readymades», em que estipulava:

En projetant pour un moment à venir (tel jour, telle date, telle minute), «d’inscrire
un readymade». – Le readymade pourra ensuite être cherché (avec tous délais).
L’important alors est donc cet horlogisme, cet instantané, comme un discours
prononcé à l’occasion de n’importe quoi mais à telle heure. C’est une sorte de rendez-vous.
– Inscrire naturellement cette date, heure, minute, sur le readymade comme
renseignements.663

659
Marcel Duchamp, «The Richard Mutt Case», publicado originalmente na revista The Blind Man,
editada pelo próprio Duchamp em parceria com Man Ray, reproduzido por Walter Hopps, Ulf Linde e
Arturo Schwarz, Marcel Duchamp: ready-mades, etc. (1913-1964), p. 62.
660
Marcel Duchamp, «Apropos of “Readymades”», compilado por Michel Sanouillet e Elmer Peterson,
op. cit., p. 141. Este texto origina-se de uma conferência proferida por Duchamp no Museu de Arte
Moderna de Nova York, em 19 de outubro de 1961. Em outras entrevistas, Duchamp retomou o tema e
repisou sua determinação (ver Pierre Cabanne, op. cit., p. 80 e Philippe Collin, op. cit., p. 11).
661
Marcel Duchamp em entrevista a Philippe Collin, op. cit., pp. 13-14.
662
Idem, p. 12.
663
Marcel Duchamp, «La mariée mise à nu par ses célibataires, même», op. cit., p. 49. Possível tradução:
Projetando para um momento a vir (tal dia, tal data, tal minuto), «de inscrever um readymade». – O
readymade poderá em seguida ser procurado (com toda demora). / O importante então é pois este
relogismo, esta instantaneidade, como um discurso pronunciado na ocasião de não importa o quê mas a

225
Por fim, no final de outra nota subseqüente, determinava: «Limiter le nombre de
readymades par année».664
Com estes procedimentos, Duchamp, como Schwitters, deixava de ser
meramente um artista para se transformar também num oficiante de um ritual bastante
particular.

e. Ordem
Tenho dúvida se pode-se falar de ordem na obra de Duchamp, como o fizemos
até aqui com os três outros artistas estudados. No entanto, não quero me esquivar
simplesmente do assunto, mas tentar pensar se isto seria possível. Em Mondrian e
Malevitch, a busca por uma ordem começava por uma negação da representação
mimética e se convertia numa preocupação em encontrar uma forma pura, por meio do
equilíbrio e da harmonia de elementos básicos extraídos do universo próprio da pintura:
linhas, planos de cor e figuras geométricas. A composição decorrente da relação entre
estes elementos estabeleceria uma nova realidade (alternativa à realidade exterior), uma
realidade, segundo eles, mais verdadeira e capaz de conduzir a um absoluto. Em
Schwitters, ainda se percebia uma certa preocupação formal. Sua busca pela ordem se
traduzia, em suas colagens e assemblagens Merz, numa tentativa de alcançar o
equilíbrio das formas por meio do ritmo geral da composição, mas não por meio de
elementos provindos da pintura, porém com fragmentos de objetos extraídos do «mundo
real». Na Merzbau, a ordem se manifestava como um verdadeiro cosmos. Em todos
estes três artistas, esta busca pela ordem se achava proclamada em seus escritos.
Duchamp, por sua vez, não parecia ser movido por um impulso ordenador – pelo
menos, nunca declarou isso –, e não podemos dizer que sua maior preocupação recaía
sobre a forma quando falamos de Grande vidro ou readymades.
No entanto, creio que podemos isolar certos aspectos que nos permitem entrever
um movimento se não no sentido de uma ordenação, pelo menos rumo a uma tímida
construção de um mundo controlado. Ao passo que, em Mondrian e Malevitch, a

tal hora. É uma espécie de encontro. / – Inscrever naturalmente esta data, hora, minuto sobre o readymade
como esclarecimentos.
664
Idem, p. 50. Tradução: Limitar o número de readymades por ano.

226
intenção era produzir uma nova realidade, separada da nossa, e, em Schwitters, o
cosmos da Merzbau se realizava como um mundo à parte, totalmente separado do
mundo exterior, embora contivesse em si parte deste último, em Duchamp, se é possível
falar na construção de um mundo seu, este não se separava em nenhum momento do
mundo exterior, mas, pelo contrário, se achava em permanente contato com a realidade,
intervindo e se mesclando nela. La mariée..., como veremos a seguir, justamente por ser
de vidro, isto é, por ser transparente, incorpora em si os elementos que a circundam
(inclusive o espectador), estabelecendo assim uma relação constante e de promiscuidade
com o mundo a sua volta. Pode-se ver claramente aí a influência da vitrine de loja que
parece ter fascinado tanto Duchamp:

La question des devantures∴


Subir l’interrogatoire des devantures∴
L’exigence de la devanture∴
La devanture preuve de l’existence du monde extérieur∴
Quando on subit l’interrogatoire des devantures, on prononce aussi sa propre
Condamnation. En effet le choix est allé et retour. De la demande des devantures, de
l’inévitable réponse aux devantures, se conclut l’arrêt du choix. Pas d’entêtement, pas
l’absurde, à cacher le coït à travers une glace avec un ou plusieurs objets de la devanture.
La peine consiste à couper la glace et à s’en mordre les pouces dès que la possession est
consommée.665

Mas vejamos mais detalhadamente como o seu vidro se relaciona com o espaço.

f. «Templo»
Se, ao tratar da Merzbau de Schwitters, tivemos o cuidado de enfatizar que,
quando nos valíamos do termo templo, este não deveria ser levado ao pé-da-letra e
compreendido em seu senso estrito, mas como um templo entre o não-sagrado e o não-
profano, com Duchamp teremos que redobrar este cuidado e duplicar as aspas em torno
daquela palavra. Enquanto em Schwitters a aproximação da Merzbau à noção de templo
justificava-se pela designação alternativa que o próprio artista dera para sua construção

665
Marcel Duchamp, «À l’infinitif», Duchamp du signe, pp. 105-106. Possível tradução: A questão das
vitrines∴/ Submeter-se à interrogação das vitrines∴ / A exigência da vitrine∴ / A vitrine prova a
existência do mundo exterior∴ / Quando alguém se submete ao interrogatório das vitrines, pronuncia
também sua própria Condenação. Com efeito, a escolha vai e volta. Da demanda das vitrines, da
inevitável resposta às vitrines, se conclui o fim da escolha. Nada de encasquetamento, nada do absurdo, a
esconder o coito através de um vidro com um ou mais objetos da vitrine. A pena consiste em cortar o
vidro e em se arrepender assim que a posse é consumada.

227
(Catedral da miséria erótica), em Duchamp uma mesma comparação não se acha tão
evidente. Porém, também não é de todo descartável. É interessante notar como os
trabalhos em vidro de Duchamp suscitam em Baruchello justamente a imagem da
catedral: «Mais do que com qualquer coisa, parecia-se com os vitrais de uma igreja,
uma catedral». Mais curioso ainda é que, na seqüência, Baruchello se espanta com o
fato de estes trabalhos não lhe parecerem algo de novo, no sentido de recente, mas por
lhe darem a impressão de pertencer a tempos remotos: «Olha-se para estas coisas e não
se sente nada de moderno. Se se quiser admitir a verdade disso, estas coisas são antigas,
algo da ordem das relíquias, coisas que deveriam ser de interesse para um arqueólogo.
Todas elas parecem tão incrivelmente velhas».666 E Jean Clair poderia ter-lhe feito coro:
«O Grande vidro é um vitral dos tempos modernos».667
Talvez não seja por acaso que Baruchello relacione as catedrais aos trabalhos de
Duchamp precisamente por meio do vidro. A escolha deste material como suporte para
La mariée... é um dos elementos-chave para a compreensão do modo como se organiza
o que chamamos de dimensão ritual neste trabalho de Duchamp. Por sua própria
composição, o vidro, além de proporcionar uma grande vantagem técnica – evita a
oxidação se a tinta for aplicada entre duas placas deste material668 –, fornece o que é
vetado à opacidade da tela: a transparência. Em entrevista a Pierre Cabanne, Duchamp
contou que utilizava como paleta um pedaço de vidro espesso e que este permitia ver as
cores do outro lado, o que sempre lhe agradou. «O vidro me interessava muito como
suporte, por causa de sua transparência. Já era o bastante.»669
A transparência possibilitava-lhe desenvolver plenamente dois aspectos de seu
trabalho. Por um lado, por eliminar a preocupação em criar um fundo, «podia se
concentrar na figura».670 Golding já havia chamado a atenção para a pouca importância
que Duchamp sempre deu ao plano de fundo de suas pinturas.

Durante os anos em que Duchamp trabalhou com os materiais tradicionais de pintor,


revelou-se um pintor de imagens, e de imagens cuja relação com seu fundo e o espaço à sua

666
Gianfranco Baruchello, op. cit., pp. 95-96.
667
Jean Clair, Marcel Duchamp ou le grand fictif, p. 56.
668
Marcel Duchamp em entrevista a Pierre Cabanne, explica: «A pintura ficava sempre suja, amarelada
ou velha, ao cabo de muito pouco tempo, por causa da oxidação; agora, minhas cores se encontravam
completamente protegidas, pois o vidro era um meio de mantê-las, ao mesmo tempo puras e livres de
alterações por um bom tempo» (Op. cit., p. 69).
669
Marcel Duchamp em entrevista a Pierre Cabanne, op. cit., p. 64.
670
Marcel Duchamp em entrevista a Francis Roberts, «“I Propose to Strain the Laws of Physics”». Art
News, LXVII, 8 (dec. 1968), p. 46.

228
volta era ocasionalmente irrelevante e sempre de importância secundária, um fator que
desde o início separou suas preocupações daquelas dos cubistas, que estavam interessados
na concepção de objetos incrustados num continuum espacial ou fluxo que era tão
pictoricamente significante quanto os objetos em si.671

De fato, se observarmos novamente o Nu descendo uma escada e, principalmente,


Jovem triste num trem, notaremos como o fundo deixa de ser um elemento que dialoga
com o que está sendo representado. Em Jovem triste num trem, Duchamp escureceu
completamente o plano de fundo, destacando, assim, as cores e os traços que sugerem
os diversos momentos do jovem triste. No Nu..., a escada se dissolve na massa mais
escura do fundo. Apenas uma parte desta pode ser vislumbrada no alto do canto direito.
Desta forma, a atenção do espectador se volta para a figura central em movimento. Se
retrocedermos ainda mais, verificaremos que um recurso similar é aplicado em
Dulcinéia e mesmo em Sonata. Tanto numa quanto noutra, o fundo se constitui não
como a parte mais escura da tela, mas como um borrão claro, que não se integra às
figuras representadas. Para Duchamp, «A questão de pintar num fundo é degradante
para um pintor. A coisa que você quer expressar não está no fundo».672
Com o vidro, o fundo não é fixo, ele se compõe da interferência exterior: passa a
ser tudo o que possa ser visto em torno e através dele (fig. 54). Segundo o crítico
italiano Janu, «Duchamp queria entrar numa dimensão toda nova, na transparência do
espaço, que lhe consentisse assim atravessar toda a superfície, de andar na “outra” parte
da sua obra, como Alice que entra no domínio do espelho encantado».673 Até mesmo o
espectador acaba por se incorporar ao trabalho toda vez que pára em frente a ela e o
observa. E Duchamp parecia querer fazer deliberadamente do espectador e do ambiente
em torno outros elementos de seu vidro. Em 1921, ele levou a parte inferior do La
mariée... para aplicar uma fina película de prata, transformando o vidro num espelho.674
Além de se tornar o fundo do vidro, o espectador também via a si mesmo e o ambiente à
sua volta refletidos no aparelho celibatário, fazendo deste fundo «um ready-made
continuamente em mudança».675

671
John Golding, op. cit., p. 68.
672
Marcel Duchamp em entrevista a Francis Roberts, op. cit., p. 46.
673
Janu, Il grande vetro in Marcel Duchamp, anche, p. 5.
674
Ver Jean Suquet, Miroir de la mariée, p. 147.
675
Robert Lebel, Marcel Duchamp, p. 147.

229
Por outro lado, «o vidro, sendo transparente, podia dar o máximo de eficácia à
rigidez da perspectiva».676 Duchamp parecia estar levando ao pé da letra o entendimento
de Albrecht Dürer da perspectiva como um «olhar através».677 E uma das grandes
preocupações de Duchamp era justamente reabilitar a perspectiva clássica – talvez não
seja coincidência o fato de seu irmão mais velho, Jacques Villon, estar lendo o Tratado
da pintura, de Leonardo da Vinci, por volta do ano de 1912, quando Duchamp
começava a produzir as notas e os desenhos preparatórios para o Grande vidro.678 Numa
das notas da Caixa branca, Duchamp assinalava:

Employer le verre transparent et la glace pour la perspective.679

E, em outro conjunto de notas, reunido precisamente sob o título Perspectiva, anotava:

Perspective.
Voir Catalogue de Bibliothèque Ste Geneviève toute la rubrique

Perspective:
Niceron (le Père J., Fr.) Thaumaturgus opticus
[sur specimen papier Imperial – 90 lbs – Lisse]

Perspective linéaire

Vue plane
D indique la distance
de (point de vue)680

Não se pode determinar com certeza se Duchamp realmente lera ou não os tratados de
Niceron e de outros teóricos tradicionais da perspectiva. Mas é seguro que ele tinha
acesso fácil a estes volumes, uma vez que trabalhava na Biblioteca de Sainte Geneviève,
onde se encontrava o corpus mais completo sobre o assunto. E mesmo que tivesse
estudado cuidadosamente todos estes tratados,681 o que nos interessa sobremaneira aqui

676
Marcel Duchamp em entrevista a Pierre Cabanne, op. cit., p. 72.
677
Segundo citação de Erwin Panofsky, La perspectiva como forma simbolica, p. 7.
678
Quanto ao que o próprio Duchamp comenta sobre a reabilitação da perspectiva, ver Pierre Cabanne,
op. cit., pp. 64-65. Quanto à informação de que Jacques Villon estava lendo o tratado de Leonardo, ver
Linda Dalrymple Henderson, The Fourth Dimension and Non-Euclidean Geometry in Modern Art, p. 145.
679
Marcel Duchamp, «À l’infinitif», op. cit., p. 125. Possível tradução: Empregar o vidro transparente e o
espelho para a perspectiva.
680
Idem, p. 122. Possível tradução: Perspectiva. / Ver Catálogo da Biblioteca Sta Genevieve toda a
rubrica / Perspectiva: / Niceron (o Padre J., Fr.) Thaumaturgus opticus / [sobre espécime papel Imperial –
90 lbs – Liso] / Perspectiva linear / Vista plana / D indica a distância / de (ponto de vista).
681
Jean Clair buscou uma série de correspondências que poderiam ser encontradas na relação entre o uso
da perspectiva por Duchamp no vidro e as ilustrações de diversos tratados de perspectiva («Marcel

230
não é o que possa ter extraído de cada um deles, mas o modo como trabalhou a
perspectiva em seu Grande vidro. E, ao olhar este trabalho, percebe-se que todas as
figuras da parte inferior, correspondente ao domínio dos celibatários, acham-se
representadas de acordo com as leis da perspectiva clássica, segundo a qual se projeta
um objeto em três dimensões na superfície bidimensional da tela por meio da criação de
uma ilusão de profundidade de campo, obtida a partir de um ponto de vista e de um
ponto de fuga simétricos.
Poderíamos nos perguntar por que um artista que, ao decidir se afastar da pintura
que chamava de «retiniana», e enveredar por caminhos bastante alternativos, recorre a
um expediente tão tradicional como a perspectiva, ou melhor, retoma este recurso posto
em questão desde certa arte produzida no final do século XIX? Qual a vantagem que a
reabilitação da perspectiva poderia lhe trazer? Em primeiro lugar, não podemos
esquecer que Duchamp recuperou a perspectiva somente em associação estreita com o
suporte em vidro. Numa tela, o efeito produzido por uma representação em perspectiva
não é o mesmo do que esta mesma representação vista num vidro. Na tela, por maior
que seja o efeito de tromp l’oeil, ou seja, por maior que seja a ilusão de um espaço em
profundidade, as figuras representadas se circunscrevem aos limites desta tela, somente
relacionando-se entre si e com o plano de fundo. No vidro, como não existe plano de
fundo definido em função da transparência do suporte, a ilusão de tridimensionalidade
se acentua, fazendo com que as figuras representadas pareçam estar integradas ao
espaço circundante. Jean Clair, que estudou profundamente a perspectiva no Grande
vidro, recorda que um dos pontos de partida do trabalho foi a fascinação que petrificou
Duchamp defronte ao espetáculo de um moedor de chocolate em funcionamento visto
através de uma vitrine, num nível abaixo àquele da rua. Tomando este dado como base,
Clair observa que, no vidro, «o ponto de fuga e o ponto de distância, imperiosamente
fixados, restituem a fascinação do garoto olhando, imóvel, a maquinaria erótica que se
desenrola atrás de uma vidraça».682
Em contraposição, não se pode dizer que o domínio da Noiva esteja
representado conforme a perspectiva clássica. Na parte superior, as figuras não forjam
uma profundidade de campo. Anotava Duchamp:

Duchamp et la tradition des perspecteurs», Marcel Duchamp – Abécédaires: approches critiques, pp.
124-159).
682
Jean Clair, op. cit., p. 150.

231
Le Pendu femelle est la forme en perspective ordinaire d’un Pendu femelle dont on pourrait
peut-être essayer de retrouver la vraie forme –683

Por sua planeza, os elementos da parte superior do vidro parecem pairar sobre a «base
arquitetônica»684 composta pelos celibatários, como se aqueles estivessem presos
somente pelas extremidades superiores, sendo possível imaginá-los balançando no ar –
não por acaso Duchamp denomina a Noiva de Pendu femelle. Talvez nesta relação entre
o domínio de baixo em perspectiva e o domínio do alto em suspensão, resida o que
Duchamp referia como uma quarta dimensão, que ocupou tanto e por tanto tempo os
críticos do artista:

Como achava que se podia fazer sombra projetada de uma coisa de três dimensões,
um objeto qualquer – como a projeção do Sol sobre a Terra faz duas dimensões – por
analogia simplesmente intelectual a quarta dimensão poderia projetar um objeto de três
dimensões, em outras palavras, que todo objeto de três dimensões, que vemos com
indiferença, é uma projeção de uma coisa de quatro dimensões que não conhecemos.685

Assim, o domínio dos celibatários talvez pudesse ser compreendido como a projeção em
três dimensões (três dimensões forjadas pela utilização do vidro e da perspectiva) de um
objeto em quatro dimensões. «Como se, no sistema representativo de Duchamp, a
quarta dimensão ocupasse o lugar que ocupa, no sistema de representação clássica, por
exemplo, no Las Meninas, o Rei.»686 A relação entre esta quarta dimensão e a
tridimensionalidade do Grande vidro seria provavelmente o que Duchamp definia como
«a aparição de uma aparência».687
Por meio do vidro, portanto, Duchamp era capaz de estabelecer, ao mesmo
tempo, uma nova relação de seu trabalho com o espaço em torno e de seu trabalho com
o espectador. Ele consegue, por meio do recurso ao vidro como suporte, integrar tanto
um quanto o outro à sua obra. Num jogo de reversões infinitas, Duchamp faz,
simultaneamente, com que o espectador penetre no mundo do seu vidro e com que as
figuras representadas se tornem parte do mundo do espectador, envolvendo ambas as
esferas – obra e público – num mesmo espaço.

683
Ver Marcel Duchamp, «La mariée mise à nu par ses célibataires, même», op. cit., p. 69. Possível
tradução: A fêmea Pendurada é a forma em perspectiva ordinária de uma fêmea Pendurada em que se
pode talvez tentar reencontrar a verdadeira forma –.
684
Ver idem, p. 58.
685
Marcel Duchamp em entrevista a Pierre Cabanne, op. cit., p. 67
686
Jean Clair, Marcel Duchamp ou le grand fictif, pp. 62-63.
687
Marcel Duchamp, «La mariée mise à nu par ses célibataires, même», op. cit., p. 45.

232
g. Mistério
Para Octavio Paz, La mariée mise à nu par ses célibataires, même é uma das
obras mais herméticas do século XX.688 Segundo Elizabeth Burns Gamard, na
introdução a sua monografia sobre Schwitters, esta rivaliza apenas com a Merzbau em
virtude de seu caráter enigmático.689 E são muitos os fatores que contribuem para
acentuar o mistério que este trabalho funda: a escolha pelo vidro, sua divisão em duas
partes, sua própria iconografia e, principalmente, as notas que deveriam lhe
acompanhar, tão ou mais cifradas que aquilo que o Grande vidro dá a ver. Em função de
seu acintoso hermetismo, por muito tempo proliferaram interpretações de caráter
altamente mitificantes. Segundo Clair, «Entre todas as obras de arte feitas no século
XX, não há, de fato, uma que tenha suscitado a imaginação dos críticos, tanto quanto
posto à prova suas erudições e engenhosidades, quanto a obra de Marcel Duchamp
intitulada La Mariée mise à nu par ses célibataires, même».690
Em 1959, em sua inaugural monografia sobre o artista, Lebel iniciou uma
extensa tradição de leitura do Grande vidro a partir de uma aproximação ao esoterismo
– aproximação esta que acabou se tornando um lugar-comum na tradição crítica de
Duchamp –, ao observar que, uma vez que nas notas da Caixa verde se encontra
«matéria para o labor obscuro de mais de uma vida», somente «os saltos bruscos de
intuição podem levar a uma decriptação plausível, visto que aquela nos faz considerar
por seu turno a hipótese do esoterismo».691 Lebel diz que é necessário estudar o papel
dos metais nas operações do Grande vidro e sobretudo o emprego sistemático dos jogos
de palavras e trocadilhos, «segundo o princípio mesmo da cabala fonética». Para ele,
havia neste trabalho de Duchamp um arsenal inexaurível de referências tanto à alquimia
quanto à cabala e ao tarô. E Lebel foi perguntar ao artista sobre a possibilidade de
associação entre o vidro e estas fontes esotéricas. Ao que Duchamp retrucou: «Se eu fiz
alquimia, é da única maneira que é admissível nos nossos dias, isto é, sem saber».692
Não contente, Lebel se convenceu – e convenceu muitos críticos depois dele – que esta

688
Octavio Paz, op. cit., p. 148.
689
Elizabeth Burns Gamard, Kurt Schwitters’ Merzbau: The Cathedral of Erotic Misery, p. 3.
690
Jean Clair, op. cit., p. 15.
691
Robert Lebel, Sur Marcel Duchamp, p. 73.
692
Marcel Duchamp citado por Robert Lebel, op. cit., p. 73.

233
resposta «não exclui em nada que Duchamp tenha descoberto a alquimia».693 E encerra
seu texto reafirmando que «a elaboração e execução do Grande vidro podem evocar ao
mesmo tempo uma ascese ou a Grande Obra dos alquimistas ou certos exercícios em
aparência ociosos do Budismo Zen».694
Quase dez anos depois, por volta de 1968, Arturo Schwarz e Ulf Linde estavam
chegando a conclusões muito semelhantes entre si sem um ter conhecimento da
pesquisa do outro. Na Suécia, Linde, o tradutor das notas da Caixa verde para o sueco e
o autor de uma das réplicas do Grande vidro,695 descobrira, totalmente por acaso, alguns
anos antes, uma ilustração do tratado Alchimie, de Eugène Canseliet, que imediatamente
lhe fez lembrar o desenho preparatório Première recherche pour: La mariée mise à nu
par les célibataires, de 1912. A partir deste dado, se pôs a procurar toda uma
documentação para encontrar outros indícios que lhe permitissem estabelecer que o
vidro de Duchamp era, em essência, uma alegoria alquímica.696 Em Milão, Schwarz,
organizador do catalogue raisonné do artista e responsável pela confecção, em 1964, de
réplicas de readymades assinados por Duchamp, detalhou mais esta relação. Tendo
como ponto de partida a tela juvenil de Duchamp intitulada Jovem e garota na
primavera – quadro, para ele, exemplar da ligação de Duchamp com a alquimia –, criou
uma série de associações das figuras do vidro e das referências das notas com elementos
pertencentes ao universo alquímico. Com base nestas relações, chegou à conclusão de
que o Grande vidro se resumia à descrição mítica de uma irrealizável relação entre
irmãos, manifestando, portanto, o esquema de um dos mais difusos tabus no mundo: a
proibição do incesto.697
Jack Burnham não só deu continuidade às comparações com a alquimia como
ainda, temerariamente, associou esta ao tarô e à cabala, comparando Duchamp a um

693
Robert Lebel, op. cit., p. 73.
694
Idem, p. 75.
695
A outra réplica do Grande vidro existente foi realizada por Richard Hamilton, na Inglaterra, por
ocasião da mostra retrospectiva The Almost Complete Works of Marcel Duchamp, realizada em 1966.
696
Ulf Linde expôs suas idéias a respeito da relação do Grande vidro e da alquimia primeiramente num
artigo compilado por Pontus Hulten no catálogo da exposição The Machine as Seen at the End of the
Mechanical Age. Um resumo do que apresentou neste texto e do que estabeleceu ao longo dos anos pode
ser encontrado no ensaio «L’Ésoterique», reproduzido por Jean Clair, Marcel Duchamp – Abécédaires:
approches critiques, pp. 60-85.
697
Ver Arturo Schwarz, The Complete Works of Marcel Duchamp, pp. 97 e ss. Versões sintéticas do que
apresenta neste volume podem ser encontradas também nos catálogos das exposições: La delicata
scacchiera. Marcel Duchamp: 1902/1968, Marcel Duchamp, Marcel Duchamp, la Sposa ... e i
Readymade, Marcel Duchamp: 66 Creative Years: From the First Paintingo to the Last Drawing.

234
gnóstico. Ao contrário de Lebel, Linde e Schwarz, suas análises, muitas vezes, parecem
se embasar em puros delírios, como neste trecho:

A mensagem do Vidro está encerrada inteiramente no valor das cifras do título. A


soma das letras até a primeira quebra, La mariée mise à nu par, é dezoito. Enquanto que a
seção seguinte, ses célibataires, même, atinge dezenove. Dezoito reflete os dezoito Arcanos
do Tarô, a Lua que governa o período de ruína completa. Dado que a Lua é feminina e
controla a pulsão das forças d’ÁGUA, Duchamp liga este Arcano à Noiva. Dezenove, por
outro lado, significa todos os primeiros começos da regeneração através do Sol masculino.
Se os celibatários são a causa de todos os aborrecimentos, eles ajudarão também a triunfar.
O même, que se adiciona ao fim do título e que é, em aparência, supérfluo, poderá significar
idêntico, igual, eles mesmos, ou talvez, como Ulf Linde o sugere, ser um trocadilho
transformando même em m’aime. (...) Même contém também quatro letras por combinação
de duas, de um modo que não se pode deixar de pensar na repetição masculino-feminino
que se encontra nas letras hebraicas do Tetragrammaton. Como princípio de cognição,
même «completa» os Celibatários, elevando o seu número de quinze, a Chave do Demônio,
a dezenove e à redenção.698

De todos os críticos citados, Maurizio Calvesi foi o que levou mais a fundo a
pesquisa neste sentido. Lançando mão de um imenso arsenal iconográfico e
bibliográfico, mostrou como cada um dos detalhes do Grande vidro e de suas notas
podia estar vinculado aos elementos próprios da alquimia e como até mesmo o modo de
funcionamento da máquina celibatária, conforme sugerido por Duchamp em seus
manuscritos, correspondia aos processos alquímicos. Para além disso, propôs ainda uma
interpretação do vidro dentro da histórica iconologia da ascensão da Virgem aos céus, a
partir de uma releitura do título da obra, La marieé mise à nu par ses célibataires,
même. Para começar, Calvesi faz notar que nu em francês soa como nue, nuvem.

Mas toda a frase se presta a uma dupla leitura homófona, cabalisticamente ulterior e
alquimisticamente equivalente. La mariée mise à nu, a noiva desnudada, contém em si a
expressão: La Marie est mise à nue, isto é, a Maria é posta à nuvem, ou na nuvem. A Maria
posta na nuvem não pode ser outra que a Virgem elevada ao céu e, de fato, na tradição
hermética, o opus alquímico é investido algumas vezes da figura alegórica da Assunção.
Esta é a chave secreta do Grande vidro.699

698
Jack Burnham, «La signification du Grand Verre», VH 101, 6 (1972), p. 71.
699
Maurizio Calvesi, op. cit., p. 84. Jean Clair desmonta as principais evidências levantadas por Calvesi
para uma aproximação do vidro à alquimia. Segundo Clair, estas evidências seriam: «1) A similitude,
apontada por Ulf Linde, entre um desenho preparatório do vidro e a ilustração de um tratado de
Solidonius, publicado pelo misterioso Canseliet em 1964. 2) O tema do Rei e da Rainha, que aparece nos
quadros de 1912, realça a simbologia alquímica Enxofre/Mercúrio. 3) Em 1921, Duchamp se fez
fotografar com um corte de cabelo em forma de estrela de cinco pontas, como um iniciado. 4) Duchamp
pratica os trocadilhos que remontam à cabala fonética». Frente a estes argumentos, se posiciona: «4:
Compatriota d’Alphonse Allais, freqüentador do Salão dos Humoristas, colaborador do Rire, leitor de
Roussel e de Brisset, Duchamp não tinha necessidade de ser iniciado na “linguagem dos pássaros” para
provar o gosto da língua. 3: A estrela, se vista de perto, é de fato um cometa cuja cauda vai em direção à
frente, ao rosto do artista: é uma alusão explícita a uma nota de 1912: “Cet enfant-phare pourra,
graphiquement, être une comète, qui aurait sa queue en avant...”. 2: Compreende-se mal que Duchamp, se

235
Por fim, para citarmos mais um exemplo, Jean Suquet, mesmo tentando realizar
um estudo sério e detalhado de descrição e compreensão do Grande vidro – e Suquet
dispõe de vários títulos sobre o assunto –, por vezes recai no misticismo. Em algumas
passagens do que talvez seja seu principal volume sobre esta obra, recorre à astrologia
para buscar iluminar certos aspectos obscuros tanto da biografia de Duchamp quanto de
elementos de La mariée..., como na passagem:

Quando nasce Marcel Duchamp, Vênus está «em elevação», próxima ao Meio-do-Céu. Ela
está, ao mesmo tempo, «em queda» no signo da Virgem. Entre o esplendor e a decadência,
oscila esta Vênus em Virgem. Rainha mascarada, ela se esgueira na madrugada nas casas
de má fama onde todas as noites ela limpava as piores manchas. Qualquer homem, sob pena
de morte, não pôs a nu o rosto da besta ao prazer. Meio-dia culminante, Vênus voltou a ser
pura como o dia. Ao sextil de Vênus, a Lua, no nascimento de Marcel Duchamp, conheceu
igualmente uma hora ambígua...700

Para Duchamp, todas estas interpretações poderiam ter-lhe parecido esforços


inúteis. Quando indagado por seu amigo George Heard Hamilton sobre o enigma de seu
Grande vidro, respondeu simplesmente: «Não há solução porque não há problema».701
Golding sugere um desdobramento desta resposta: «e não há problema porque as
adivinhas que estão embutidas no Grande vidro são de algum modo planejadas de tal
maneira que elas nunca poderão ser respondidas».702 Ou, pelo menos, poderíamos
acrescentar, não por meio de uma interpretação calcada em simbolismo. Nota
Chalupecký: «Se nós lemos as interpretações simbólicas da obra de Duchamp,
poderíamos ficar surpresos de como estas interpretações parecem absolutamente
arbitrárias – qualquer coisa, no fim das contas, significa qualquer coisa». E acrescenta:
«Uma interpretação racional de símbolos é impossível. O discurso simbólico tem um
lugar precisamente onde o discurso racional deixa de ser possível. Uma obra de arte não

atento ao definir os tons os quais usar, não respeitou o simbolismo das cores que se associa, em alquimia,
ao Rei e à Rainha. A mesma objeção vale para o Vidro: se o domínio superior, aquele da Noiva, é
consagrado ao Mercúrio, por que ele não é verdadeiramente branco? 1: Há todas as chances de ser uma
pura coincidência formal. Reconhecemos portanto que se trata de um só indício pouco convincente e que
seu inventor, ao contrário daqueles que o seguem, sempre se manteve muito prudente nas suas
interpretações. Se, para os outros, isso é a prova de que ele se propôs a fazê-la, que a misteriosa viagem
de Duchamp a Munique, em 1912, foi para ele ocasião de visitar um museu de alquimia e de descobrir
todo um sistema simbólico do qual ele teria necessidade para realizar o projeto do vidro, este indício
poderia ser seriamente reconsiderado» («La fortune critique de Marcel Duchamp», Revue de l’art, 34
(1976), p. 97).
700
Jean Suquet, op. cit., p. 95. Suquet dedicou um pequeno livro inteiramente à relação entre a astrologia
e Duchamp, que se chama Regarder l’heure: sur le ciel de Marcel Duchamp.
701
Marcel Duchamp citado por Calvin Tomkins, The Bride and the Bachelors, p. 57.
702
John Golding, op. cit., p. 13.

236
pode ser decifrada como um rebus».703 Talvez o Grande vidro não devesse ser
interpretado, pelo menos não nestes termos. Para Jean-François Lyotard:

Interpretar é fútil. Igualmente querer circunscrever o verdadeiro efeito do Grande


vidro, e, portanto, seu verdadeiro conteúdo; o Vidro é feito precisamente para não ter um
efeito verdadeiro, nem mesmo qualquer efeito verdadeiro, se não uma lógica mono ou
polivalente, mas de efeitos incontrolados; ou o verdadeiro só é o controlável, como o falso,
então Duchamp visa um espaço para lá dos valores de verdade: impotência [impouvoir] e
potência [puissance].704

Segundo ele ainda, no caso de Duchamp, seria preciso «não procurar compreender e
mostrar o que se compreendeu, mas antes o contrário, procurar não compreender e não
mostrar o que se compreendeu».705
Parece-me que o fato de o enigma posto pelo vidro em conjunção com suas
notas ser, por natureza, irresolúvel contribui, de uma certa forma, para o não-
encerramento do trabalho. Assim, o Grande vidro permanece para sempre indagando o
espectador. Seria como se, decifrado, perdesse parte do que o mantém aberto. O seu
mistério talvez seja a sua alma. Poderia traçar um paralelo entre o mistério desta
dimensão ritual com aquele aspecto da dimensão mítica que chamei de auto-
referencialidade. Só para lembrar, em Mondrian e Malevitch, o afastamento da
representação segundo a natureza e o ingresso, com isso, numa abstração das formas
levava à auto-referencialidade de suas pinturas, isto é, elas não faziam mais referência
ao mundo externo, mas a si próprias. Por agirem desta forma, acabavam parecendo
códigos cifrados. Na Merzbau, de Schwitters, e em La mariée..., de Duchamp, o que
denomino mistério funciona de um modo similar, mas não igual. Estas peças artísticas,
por se apresentarem como um mistério sem solução, terminam por chamar a atenção
para si mesmas, não tanto para as formas que trazem representadas, mas para suas
próprias constituições. No entanto, apesar de podermos vislumbrar uma certa auto-
referencialidade também nesta dimensão ritual, optei por chamá-la não deste modo, mas
de mistério justamente para marcar a grande diferença entre as duas dimensões. O que
denomino de auto-referencialidade diz, neste estudo, respeito àquelas obras que podem
ser qualificadas de obras, porque se circunscrevem aos limites de um quadro; escolhi
mistério como seu par análogo nesta outra dimensão por conter em si, como já salientei

703
Jindrich Chalupecký, «Nothing but an Artist», Studio International, CLXXXIX, 973 (1975), p. 34.
704
Jean-François Lyotard, Les TRANSformateurs DUchamp, p. 61.
705
Idem, p. 20.

237
no capítulo anterior, não só as idéias de segredo e de enigma, como aquelas de ritual e
de iniciação. Mostramos ainda, na parte anterior, como alguns aspectos da produção de
Mondrian e de Malevitch apontavam para um além da dimensão mítica, deixando
entrever, mas somente entrever, um ímpeto de ir além daquilo que estavam produzindo,
como se percebessem que suas obras não estariam aptas a fazer frente à realidade, como
se pressentissem que deveriam ir além do quadro e das tintas mas ainda sem saber muito
bem como. O Grande vidro e a Merzbau vão definitivamente além. Calvesi já
observava:

O processo criativo não «se esgota» no Grande vidro, mas continua através e além: o
Grande vidro é de fato como uma seção sua. Não contam somente aquela forma, aquele
signo, mas o seu significado e o pretexto para outros significados, não contam e não
significam somente aquela forma, aquele signo, mas o gesto, o processo, o raciocínio que
lhe produziu; não conta a forma sozinha, mas o seu ritual, e é em nível de ritual significante
(quase de fato de magia) que a forma e o comportamento resultam signos complementares
ou intercambiáveis.706

De fato, o Grande vidro, como a Merzbau, parece instaurar em torno de si um


ritual. Octavio Paz já chamava a atenção para a indicação de uma ação de caráter
ritualístico contida na expressão central do título em francês: «Em primeiro lugar, mise
à nu não quer dizer exatamente desnudada ou desvestida; é uma expressão muito mais
enérgica que nosso particípio: posta a nu, exposta. Impossível não associá-la com um
ato público ou um rito: o teatro (mise en scène), a execução capital (mise à mort)».707
(Não esqueçamos que o teatro se originou do ritual.) E este trabalho de Duchamp
organiza seu ritual justamente em torno desta ação de pôr a nu. É ela – e algumas notas
da Caixa verde708 – que nos leva a constatar que aqui, do mesmo modo que na Merzbau,
seu ponto de partida é também o erotismo – a única coisa que Duchamp declarou levar a
sério.709 O desnudamento, para Bataille, constitui-se como a ação decisiva no erotismo.
A nudez, segundo ele, «é um estado de comunicação que revela a busca de uma

706
Maurizio Calvesi, op. cit., p. 257. Jean Clair busca compreender o vidro como um ritual iniciático.
Porém, considera como ritual a narrativa do mecanismo de funcionamento da máquina, distinguindo nesta
três momentos de uma iniciação: a preparação do neófito (os celibatários), a sua perda de consciência no
encaminhamento rumo à Noiva e a sua ressurreição final, quando se acopla à Noiva (ver Marcel
Duchamp ou le grand fictif: essai de mythanalyse du grand verre, pp. 137-139).
707
Octavio Paz, op. cit., p. 149.
708
Numa nota desta caixa, observa que o erotismo «doit être un des grands rouages de la machine-
célibataire» (deve ser uma das grandes engrenagens da máquina-celibatária) («La mariée mise à nu par
ses célibataires, même», op. cit., p. 59).
709
Duchamp disse em entrevista a Alain Jouffroy: «a única coisa séria que poderia considerar ou que já
tentei considerar é o erotismo» (op. cit., p. 40)

238
continuidade possível do ser para além do voltar-se sobre si mesmo. Os corpos se abrem
para a continuidade através desses canais secretos que nos dão o sentimento da
obscenidade».710
No entanto, no vidro, como na Merzbau, o que é evidenciado é a impossibilidade
de realização do amor carnal, impossibilidade esta que começa pela própria divisão da
peça em duas metades: o domínio da Noiva não se encontra – nem se encontrará nunca
– com o dos celibatários. É justamente em função desta separação infranqueável entre as
duas metades que, segundo Paz, podemos ver no vidro uma encenação dos mitos
relativos à virgem e à sociedade fechada dos homens – interessante notar que, década
antes, Sidney e Harriet Janis já haviam feito uma aproximação entre a Noiva e a
Virgem711 e que, numa nota, Duchamp descreve a noiva como «une sorte d’apothéose
de la virginité».712 Paz chama a atenção para o caráter circular e ilusório da operação do
vidro descrita nas notas: «tudo nasce da Virgem e tudo retorna a ela».713 Assim, a Noiva
está condenada a sempre ser virgem. Portanto: «A maquinária erótica que [a Noiva] põe
em marcha é inteiramente imaginária, tanto porque seus machos não têm realidade
própria como porque a única realidade que ela conhece e que a conhece é reflexa: a
projeção de seu próprio Motor-Desejo».714 Como resultado, os celibatários são
obrigados a buscarem o prazer sozinhos: «Le célibataire broie son chocolat lui-
même».715 Desta forma, os disparos talvez possam ser vistos como respingos de
esperma – é interessante lembrar que, em 1946, Duchamp presenteou Maria Martins
com Paysage fautif, assemblagem feita com o esperma do artista (e talvez se pudesse
compreender o próprio Grande vidro como um rito privado: como já observou Krauss, o
nome do artista se acha contido no título, La MARiée mise à nu par ses CELibataires,

710
Georges Bataille, O erotismo, p. 17.
711
Harriet e Sidney Janis, «Marcel Duchamp: Anti-Artist», compilado por Robert Motherwell, The Dada
Painters and Poets: An Anthology, p. 312. Décadas depois, David Hopkins retoma esta relação em Marcel
Duchamp and Max Ernst: The Bride Shared, pp. 66-71.
712
Marcel Duchamp, «La mariée mise à nu par ses célibataires, même», op. cit., p. 58.
713
Octavio Paz, op. cit., p. 173. Paz, no final de seu ensaio sobre Duchamp, dirá que o Grande vidro, por
fim: «É um mito crítico e uma crítica da crítica que assume a forma do mito cômico. No primeiro
momento, traduz os elementos míticos em termos mecânicos e assim os nega; no segundo, translada os
elementos mecânicos a um contexto mítico e os nega por sua vez. Nega o mito com a crítica e a crítica
com o mito. Esta dupla negação produz uma afirmação nunca definitiva, em perpétuo equilíbrio sobre o
vazio» (p. 177).
714
Octavio Paz, op. cit., p. 173.
715
Marcel Duchamp, «La mariée mise à nu par ses célibataires, même», op. cit., p. 46. Possível tradução:
O celibatário mói ele mesmo seu chocolate.

239
même, sendo que cada uma das duas sílabas diz respeito a um dos domínios do
vidro716). Não é à toa que uma das litanias da Carreta chama-se Onanismo.
Parece haver em La mariée..., como o observamos na Merzbau, uma tentativa,
por meio do erotismo e da instauração de uma dimensão ritual em torno deste, de
recuperar uma perda (a perda da possibilidade de se amar, talvez) e de buscar alguma
forma de permanência. Sintomático desta última é o subtítulo que Duchamp atribuiu a
seu vidro: retard en verre, retardo ou atraso em vidro. Não posso deixar de mencionar
que, para Aldo Natale Terrin, a realidade mais importante do rito consiste em «deter o
tempo», «em fazê-lo fluir lentamente; onde a lentidão é diretamente proporcional à
“indisponibilidade” do tempo ritual. O tempo do rito é um tempo “lento” porque não é
“dependente de”, não tem o sentido de utilidade, não se empenha num resultado».717
Segundo Terrin, «Não se pode suspender o tempo, mas se pode “retardá-lo”».718
Retardar o tempo (atitude também implícita no fato de ser a obra inacabada), alongá-lo
e distendê-lo a fim de obter uma continuidade, parece ser o ponto central do vidro e
desta espécie ritualização que ele coloca em jogo.
Um processo similar de instituição de uma certa ritualização também poderia ser
observado em torno da última obra de Duchamp, a qual estabelece um diálogo bastante
interessante com La mariée... Refiro-me a Étant donnés. 1º la chute d’eau. 2º le gaz
d’éclairage (fig. 55 e 56). Realizada em segredo entre os anos de 1946 e 1966, só foi
revelada, segundo o desejo do artista, depois de sua morte, em 1968. Étant Donnés
estava montado numa pequena sala de um edifício comercial no número 80 da East 11th
Street, em Nova York. Seguindo as instruções de Duchamp, depois de sua morte, Étant
donnés foi desmontado e remontado no Museu de Arte de Filadélfia, num lugar
preparado especialmente para recebê-lo. Em 7 de julho de 1969, a montagem na
Filadélfia estava completa. Desde então, Étant donnés encontra-se numa sala pequena
deste museu, junto a outros trabalhos seus, todos eles pertencentes à coleção de Walter e
Louise Arensberg. Nesta sala, não há quadros, só uma porta espanhola de madeira com
contorno de tijolo. Chegando-se perto, percebe-se que há dois furos. Se se espiar por
estes furos, ver-se-á a imagem de uma mulher nua deitada numa relva, segurando uma

716
Ver Rosalind E. Krauss, «Notes on the Index: Part I», The Originality of Avant-Garde and Other
Modernist Myths, p. 202. Krauss sugere ser esta peça um auto-retrato do artista.
717
Aldo Natale Terrin, O rito: antropologia e fenomenologia da ritualidade, p. 260.
718
Idem, p. 258.

240
lâmpada de gás. O nu é uma construção em relevo, cujo modelo alega-se ser a escultora
surrealista brasileira Maria Martins, que conhecera Duchamp na década de 1940, em
Nova York. A paisagem é o resultado da manipulação sobre uma foto da queda d’água
em Chexbres, na Suíça. A lâmpada é de verdade.
A relação do Étant donnés com La mariée... não se restringe ao título – que foi
retirado de uma das primeiras notas da Caixa verde.719 Podemos compreender o Étant
donnés como uma espécie de continuação ou comentário ao La mariée... Também esta
última obra versa sobre o erotismo e também se instaura em torno dela uma espécie de
ritual. No Étant donnés, a Noiva aparece finalmente despida. Seus cabelos, loiros, estão
jogados por sobre o rosto. E ela mostra desavergonhadamente, para quem espia pelos
buracos da porta, a sua vulva. Sua posição, aliás, lembra muito a do torso de mulher que
vemos em A origem do mundo, de Courbet (quem, para Duchamp, é culpado pela
tradição de pintura retiniana720). Observa Lyotard: «o tempo do Grande vidro é aquele
de um desnudamento que não foi ainda realizado, o tempo do Étant donnés... é aquele
de um desnudamento que já foi realizado. O Vidro é o “atraso” do nu, Étant donnés seu
avanço. É muito cedo para ver a mulher se pondo a nu no Vidro, e é muito tarde para a
cena do Étant donnés...».721 Octavio Paz chama a atenção para uma relação que se pode
traçar entre as duas obras a partir do jogo de correspondências e reflexos que ambas
estabelecem. Nas duas, o simples ato de olhar uma obra se converte no ver-através-de.
Num caso, há a porta; no outro, o próprio vidro, que dificulta a visão do que está
representado. Porém, nas duas obras, olhamo-nos a olhar. Tanto num caso como no
outro, assim como há muito tempo em Las meninas, de Velázquez, a circularidade das
duas obras abarca também o espectador. Afirma Paz:

O espectador, como as Testemunhas Oculistas, é um voyeur; como elas, é uma


testemunha ocular, tanto no sentido judicial de achar-se presente no acontecimento quanto
no religioso de que dá fé de uma paixão ou martírio. (...) as Testemunhas Oculistas são
parte do Grande vidro e o observador da Conjugação [Étant donnés], pelo fato mesmo de
espreitar, participa no rito duplo do voyeurismo e da contemplação estética. Melhor
dizendo, sem ele, não se realizaria o rito.722

719
O título do Étant donnés é retirado da primeira frase da nota da Caixa verde, que se intitula Préface
(ver «La mariée mise à nu par ses célibataires, même», op. cit., p. 43).
720
Diz Duchamp: «Eu estava interessado em fazer com que a pintura servisse a meu propósito, e em me
afastar da fisicalidade da pintura. Para mim, Courbet introduziu a ênfase física no século XIX» («The
Great Trouble with Art in This Country», op. cit., p. 125)
721
Jean-François Lyotard, op. cit., p. 39.
722
Octavio Paz. «Water Writes Aways in Plural», compilado no volume 6 das obras completas, Los
privilegios de la vista I: Arte moderno universal, p. 201.

241
O Étant donnés se revela como um lugar «sagrado». Nisso, se aproxima mais da
Merzbau que do próprio vidro. Como na obra de Schwitters, o Étant donnés não pode
ser transportado: seu lugar é o lugar em que foi construído. Assim, instaura um lugar
específico para si, como aquelas imagens de virgens que não podem ser transportadas
para fora de seus nichos – o que dá margem para aumentar seu mistério e o que faz
recobri-lo de um certo ar «sagrado». Afora isso, ainda poderíamos ressaltar que esta
obra tem um detalhe a mais que deve ser levado em conta: não se pode chegar a ela, não
se pode fotografá-la, não se pode transportá-la. Ela é repleta de interdições. Apesar de
ser uma obra acabada, ela se mantém em suspenso, em eterno processo: afinal, ao forçar
os espectadores a uma aproximação difícil e sempre relativamente distanciada pelo
bloqueio oferecido pela porta, é como se ela se renovasse a cada espiadela. Comenta
Chalupecký: «Por isto esta obra logra escapar inteiramente do contexto da arte; mesmo
no meio da arte moderna, que tem tantos aspectos e facetas, ela permanece inteiramente
única e sozinha. Ela se desviou tanto da nossa civilização que se desviou também
daquilo que esta civilização chama arte, ou mesmo antiarte».723
Por meio da suspensão do tempo e desta produção de um espaço diferenciado,
apartado do espaço exterior, tanto o Grande vidro como o Étant donnés acabam por se
investir de certo caráter aurático. Mesmo nestas obras construídas a partir da mais alta
racionalidade, por um dos artistas mais irônicos e céticos do século XX, ainda se pode
vislumbrar, como nos trabalhos de Mondrian, de Malevitch e de Schwitters, uma
tentativa de fingir (estamos, portanto, no campo da fictio, não da fides) um algo mais, ao
qual, na falta de termo melhor, poderíamos denominar transcendência. O próprio
Duchamp, certa feita, afirmou que o artista devia «manter as grandes tradições
espirituais com as quais a religião parece ter perdido o contato». «O artista moderno»,
completou, «não é mais um artista. É uma espécie de missionário. A arte substituiu a
religião e os homens dirigem a ela a mesma atitude respeitosa que dirigiam à
religião».724 Em entrevista à rádio BBC, em 1959, Duchamp não deixou dúvidas ao
explicar o termo mise à nu do título do vidro: «Você sabe, Cristo estava desnudo, e esta
era uma maneira travessa de introduzir erotismo e religião».725 Não por acaso Jean Clair

723
Jindrich Chalupecký, «Nothing but an Artist», op. cit., p. 45.
724
Marcel Duchamp citado por Jindrich Chalupecký, «Art et transcendance», op. cit., pp. 21-22.
725
Marcel Duchamp citado por Dawn Ades, Neil Cox e David Hopkins, Marcel Duchamp, p. 119.

242
observa: «Sidney Janis tinha, de um certo modo, razão: o Grande vidro possui uma
conotação religiosa, não por sua iconografia, mas por sua estrutura material e pela
ideologia idealista que este suporta. A transparência do Grande vidro é a sombra
carregada de uma realidade superior».726 No entanto, frise-se, esta realidade superior
parece ser a da arte e, mais amplamente, a da cultura – «as grandes tradições
espirituais» a que alude Duchamp. Torna-se assim, a arte, no Grande vidro, no Étant
donnés, mas também na Merzbau, culto de si mesma, celebração infinita de sua própria
diferença – sombra, para usarmos a palavra exata de Jean Clair.

726
Jean Clair, Marcel Duchamp ou le grand fictif, p. 56.

243
F ig . 5 2 : La mariée mise à nu par ses célibataires, même ou Grande vidro

244
F ig . 5 3 : Élevage de poussiêre

F ig . 5 4 : La mariée mise à nu par ses célibataires,


même n a e x p o s iç ã o do M useu d o B ro o k lin , em
1 9 2 6 , a n te s d e s e r q u e b ra d a .
A o fu n d o , h á trê s q u a d ro s d e M o n d ria n s

245
!lS b

F ig . 5"ff,ant donnés. 1° ia chute d'eau. 2° ie gaz d'éclairage

246
CONCLUSÃO

O termo «conclusão» sempre me pareceu por demais categórico. Soa-me como


se expressasse o encerramento definitivo do assunto tratado. E, quanto a isto, estou de
pleno acordo com Jorge Luis Borges: «El concepto de texto definitivo no corresponde
sino a la religión o al cansancio».727 Creio – e cá estou eu de novo expondo minhas
convicções pessoais – que todo texto, pelo menos enquanto seu autor está vivo, é
passível de contínua reelaboração (não por acaso me interessei por processos). Não é,
pois, minha intenção, nestas palavras finais, embora as apresente sob o título Conclusão,
marcar um fechamento absoluto para minha pesquisa. O que ainda tenho para dizer são
antes algumas observações ou desdobramentos inevitavelmente, em alguma proporção,
provisórios – finais somente na medida em que, em todo discurso escrito, um ponto
final é necessário, para que o texto cumpra seu destino, o encontro com o leitor.
Ao longo deste livro, espero ter conseguido demonstrar que se pode perceber
uma nova articulação na relação entre arte, mito e rito na modernidade, uma articulação
que está além da simples apropriação pela arte de motivos míticos. A nova relação que
observamos em certos trabalhos – e mesmo nas manifestações artísticas – parece
remontar à relação primordial da arte com o culto, quando aquela achava-se a serviço
deste – em função disso, evitei utilizar-me impensadamente do termo «vanguarda» (que
indica um estar à frente e implica uma idéia de progresso); acredito que este, embora
consagrado, não é condizente com o processo que descrevi. No entanto, não se trata
mais de cultos e de ritos stricto sensu. Na modernidade secularizada, o mito se
dessacraliza e deixa de ser pano de fundo sagrado para subsistir como forma, como, por
assim dizer, o princípio formal secreto dos processos constitutivos de determinadas
produções artísticas. O mesmo ocorre com o rito. Se se pode reconhecer um novo culto
em torno da arte – e vimos como, de uma forma ou de outra, os quatro artistas que
estudamos chegaram a proposições análogas acerca de a arte ser um substituto para a
religião –, este não diz respeito a qualquer culto existente ou mesmo, conforme
elucidara Benjamin a respeito da arte secularizada produzida a partir da Renascença, a
um culto à beleza ou ao artista, mas a um culto singular, destituído de crença num
sentido tradicional e estabelecido pela própria arte.

727
Jorge Luis Borges, Obras completas, v. 1, p. 239.

247
Na Parte I, parte na qual tencionei apresentar um panorama geral das mudanças
empreendidas pelos movimentos encetados no início do século XX, vimos como, a
partir de uma nova relação que se estabelecia entre artista e público, se poderia
identificar um certo caráter ritualístico, mais especificamente sacrificial, nos manifestos
e nas manifestações artísticas da época, implícito nos gestos e nas ações dos artistas e na
vontade de destruição da arte, de fazer tabula rasa do cenário artístico para começar de
novo a partir do zero. Quis fazer notar que, para se atingir este grau zero, os artistas
freqüentemente recorreram a alguma espécie de «primitividade», seja se
autodenominando «primitivos», seja recuperando temas «primitivos» ou, o que me
interessava sobremaneira, procurando uma forma constitutiva de caráter primitivista
para suas obras, seus objetos, seus manifestos, suas declarações. Por um lado, esta
«primitividade» encaminhava a pintura para um extremo de simplificação formal,
chegando à abstração. Por outro, se manifestava no próprio comportamento dos artistas
nas soirées e também nas ações empreendidas por eles no processo de elaboração de um
determinado trabalho.
Foi neste contexto que sugeri que, se nos voltássemos para casos particulares,
poderíamos identificar – a partir da observação de certos tópicos comuns (repetição,
auto-referencialidade, ordem e nexo entre texto e obra, num caso; obra sem fim, artista-
oficiante, ordem, templo e mistério, noutro) – duas formas de retorno ao mito e ao rito,
configurando duas dimensões distintas: uma dimensão mítica e uma dimensão ritual.
Em ambas as dimensões, distingue-se um anseio em se instaurar uma realidade à parte
do mundo exterior, realidade esta que promete, de modo diferente em cada uma das
dimensões, uma transcendência que, de fato, não é mais possível na arte secularizada.
Na dimensão mítica, encontram-se Mondrian e Malevitch. Na ritual, Schwitters e
Duchamp. A primeira é mais concentrada. A segunda, mais expansiva. Na primeira,
talvez precisamente devido a essa concentração, ainda estamos dentro da categoria de
obra, até porque se pode verificar nas produções enfeixadas por esta dimensão uma
preocupação especificamente artística com a forma. Na segunda, dada sua
expansividade inerente, a categoria de obra se estilhaça: a ênfase na forma desloca-se
para o gesto. Na primeira, nos textos escritos pelos artistas, percebe-se um fundamento
«teológico» cuja meta é atingir alguma forma de absoluto. Na segunda, não há uma
intenção declarada pelos artistas de se alcançar um absoluto, mas podemos perceber

248
uma tentativa de determinar um espaço diferenciado do espaço profano, uma irrupção
no espaço e no tempo ordinários; e ressalte-se que é um espaço único e insubstituível: a
Merzbau pertence somente ao estúdio do artista, como o Étant donnés, a uma pequena
sala do Museu da Filadélfia, e o Grande vidro está impedido de ser transportado devido
a sua fragilidade. Com isto, estes trabalhos parecem restituir ao campo da arte o mistério
que circunda determinadas imagens cultuais, vistas somente em algumas ocasiões e
lugares determinados ou impedidas de serem apreciadas por todos. Deste modo, parece
se restaurar, nos trabalhos dos quatro artistas estudados, consciente ou
inconscientemente, um certo (e novo) caráter aurático. Mas não seria contraditório, a
propósito destes trabalhos, falar em aura secularizada, segundo as observações de Didi-
Huberman:

É preciso secularizar a aura, é preciso assim refutar a anexação


abusiva da aparição ao mundo religioso da epifania. A Erscheinung
benjaminiana (...) faz da aparição um conceito de imanência visual e
fantasmática dos fenômenos ou dos objetos, não um signo enviado desde sua
fictícia região de transcendência.728

Na dimensão mítica, com Mondrian e Malevitch, chama-se ainda a atenção para


a linguagem da pintura. Quer-ser forjar uma nova arte, um novo começo, por meio de
uma nova forma. A diferença em relação à arte anterior é que esta forma se constrói não
mais a partir de referentes externos, mas a partir de elementos que são próprios à
pintura. É em função disso que a arte criada por Mondrian e Malevitch resulta abstrata
e, como tal, incapaz de fazer referência a outra coisa que a ela mesma e, deste modo, as
obras instituem-se como realidades diferenciadas, realidades que, sustentadas por um
discurso «teologizante» de base, pretendem ser mais elevadas que a realidade do mundo
exterior. Suas pinturas, organizadas por meio da combinação de um número restrito de
elementos, terminam por se apresentar como totalidades indivisas e altamente
concentradas. Quadros como Quadrado negro e Composição nº 1, por sua excessiva
redução de elementos, produzem um efeito paralisante no espectador. «Somos
submetidos ao olhar invisível da obra», já destacava Alain Bonfand em relação a
Malevitch.729 Seu olhar é como o da Medusa: nos petrifica. Aqui, a remissão a

728
Georges Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha, pp. 157-158.
729
Alain Bonfand, A arte abstrata, p. 26.

249
Benjamin é esclarecedora: «Perceber a aura de uma coisa significa investi-la do poder
de revidar o olhar».730
Schwitters, por sua vez, parte de uma preocupação não tanto com a linguagem
própria da pintura, mas com a forma em sentido mais amplo. O que ainda orienta suas
colagens e assemblagens Merz, que deixam de ser simplesmente pinturas, é a busca do
equilíbrio formal a partir da combinação de seus elementos internos. Por isto, por
reconhecer em suas produções uma certa preocupação formal (e, portanto, mantendo
ainda uma ligação, mesmo que tênue, com Mondrian e Malevitch), optei por começar
com este artista a parte deste estudo dedicada à dimensão ritual. Contudo, mesmo aí, em
seus primeiros trabalhos Merz, em que se identifica esta preocupação formal, já começa
a se estabelecer um distanciamento em relação às práticas de Mondrian e Malevitch.
Primeiro, seus textos não pretendem e não resultam numa filosofia ou «teologia».
Revelam apenas suas intenções para com sua arte. Segundo, Schwitters não se restringe
mais à matéria-prima estritamente pictórica. Ele passa a incorporar em seus quadros,
junto à massa de tinta, fragmentos de objetos recolhidos da rua. Terceiro, ele transforma
as ações consecutivas de recolher, limpar e agregar os objetos às suas construções Merz
em ações não só inerentes como determinantes de suas produções. Desta forma, o gesto
do artista acaba também se tornando parte integrante do trabalho. (Em Mondrian e
Malevitch, o processo de repetição incessante de uma mesma estrutura poderia ser visto
como uma ação, de certa forma, pré-ritualística. Na repetição do mesmo princípio, da
mesma forma, pode-se vislumbrar um movimento pré-gestual, contudo, este não chega a
se manifestar como tal em cada pintura singular.)
Na Merzbau, Schwitters vai ainda mais longe, e a preocupação formal acaba
soterrada por outros elementos mais significativos. Em torno desta construção, se
instaura uma série de novas relações: do artista com seu trabalho, do trabalho com o
espaço circundante e do trabalho com o espectador. Quanto à primeira relação, o artista
desempenha o papel de centro articulador de sua peça: é ele quem vai organizar este
outro mundo tão particular, à parte do mundo exterior; cabe a ele decidir que material
integrar à sua construção e quais destes materiais deve passar por «purificação»; assim
como é ele que determina quem pode ou não visitar sua construção. Quanto à segunda, a
Merzbau estabelece necessariamente uma relação com o espaço à sua volta – e esta me
730
Walter Benjamin, «Sobre alguns temas de Baudelaire», Charles Baudelaire, um lírico no auge do
capitalismo, p. 140.

250
parece ser a diferença mais evidente entre a dimensão mítica e a ritual. Ou melhor, a
Merzbau não existe sem se relacionar com o espaço: este é um quesito determinante.
Ela toma o ambiente e cria uma relação de simbiose com este, por isto não pode ser
transportada. E lembremos que não se trata de um ambiente qualquer: é a própria casa
do artista que abriga em si uma estranha construção que mais parece um organismo
vivo. Quanto à terceira relação, entre o trabalho e o espectador, gostaria, antes de tudo,
de ressaltar mais uma vez como é estranho falar em espectador ou observador ou até
mesmo público quando se está em questão um trabalho como a Merzbau. Talvez fosse
mais adequado dizer visitante. Nesta, exigia-se a participação ativa do visitante, não em
forma de resposta a uma provocação precedente como vimos, na Parte I, nas
manifestações artísticas, mas efetiva: devia-se penetrar, caminhar, passear, em suma,
experimentar a Merzbau com todos os sentidos.
Com Duchamp, em muito pouco tempo, a preocupação formal cede posto à
preocupação conceitual. Como em Schwitters, o gesto aqui acaba por suplantar a forma
e, assim, o artista e suas ações – o centro e o princípio da dimensão ritual – terminam
por se apresentar como núcleos ordenadores de suas produções. Também aqui o
trabalho se orienta a partir das escolhas e das determinações do artista, escolhas e
determinações que, como vimos, estão além da opção por esta ou aquela cor. Ao optar
pelo suporte em vidro para La mariée mise à nu par ses célibataires, même, Duchamp
definia a intervenção da sua peça no espaço e a interação do espectador com seu
trabalho, criando assim uma necessária relação com o ambiente e uma nova relação com
o público (mas de modo um tanto diverso do verificado na Merzbau): tanto um quanto
outro são convocados a fazer parte da peça. Por fim, ainda em relação a Duchamp,
salientei o caráter absolutamente diferenciado de seus textos, se comparados com os de
Mondrian, Malevitch e mesmo Schwitters. Suas notas manuscritas, reunidas em três
caixas diferentes, não fazem qualquer referência a um absoluto, a um universal ou a um
primordial. Mesmo porque não é este o assunto de Duchamp: ele não se diz interessado
em forjar uma transcendência exterior. Suas notas referem-se exclusivamente a suas
produções. Ao invés de desempenharem o papel de uma «teologia», como em Mondrian
e Malevitch, elas assumem as feições do mito de base com o qual se relaciona o rito em
torno do vidro. Seus escritos não visam a um plano externo à obra, como em Mondrian
e Malevitch, mas se voltam para seu trabalho mesmo: seu movimento não é para o

251
exterior, para o que está fora da sua produção, mas para dentro, acentuando ainda mais o
caráter auto-referencial e misterioso.
Enfim, de tudo o que estudamos, podemos fazer algumas observações finais.
Não podemos dizer que a dimensão mítica se opõe à ritual. Elas apenas manifestam de
modos diversos o mesmo impulso: afastar-se da arte do passado, negando-a e
rejeitando-a efusivamente, para, no momento seguinte, buscar construir uma arte (ou
não-arte) nova. Nas pinturas de Mondrian e Malevitch, a resposta a este impulso adquire
uma forma mítica: o processo de repetição de uma mesma lógica interna revela uma
estrutura abstrata, auto-referencial e que pretende se apresentar como uma realidade à
parte com vista a se atingir uma transcendência. Nos trabalhos de Schwitters e
Duchamp, o mesmo impulso adota uma forma ritual, de mito posto em ato: tudo decorre
de uma ação ou de um conjunto de ações do artista e termina com sua produção se
constituindo como um mundo fechado em si mesmo, também à parte do mundo
exterior.
Ao manifestarem de modos diversos o mesmo impulso fundamental, as duas
dimensões acabam por apontar para dois caminhos também distintos: enquanto a
dimensão mítica parece se associar a uma arte mais tradicional, acenando para o
passado; a dimensão ritual lança as bases para a arte da segunda metade do século XX,
apontando para o futuro. No entanto, para tal, para propor uma arte nova, Mondrian e
Malevitch ainda se valem de suportes tradicionais: é por meio da pintura e dos
elementos próprios a ela que eles querem colocar a tradição em xeque. Schwitters e
Duchamp vão além. Com a Merzbau, o Grande vidro, o Étant donnés e os readymades,
começam por discutir os métodos e os suportes tradicionais da arte, fazendo com que a
noção de obra tal como se conhecia até então caia por terra. Mondrian e Malevitch, de
uma certa forma, compartilham ainda uma língua compreendida pela tradição.
Schwitters e Duchamp criam um dialeto relativamente à parte, um patois altamente
desestabilizador das práticas lingüísticas convencionais.
Olhando retrospectivamente o século passado e levando em consideração a arte
que se produziu depois dos movimentos das décadas de 1910 e 1920, parece-me que
Mondrian e Malevitch, embora tenham questionado os modos de representação, põem
fim a um longo ciclo, enquanto Schwitters e Duchamp inauguram um novo. Assim, essa
dimensão mítica, concentrada na obra, vai ficando para trás, enquanto uma dimensão de

252
feições rituais aparece mais fortemente marcada em muitas das produções artísticas
posteriores à Segunda Guerra Mundial. Talvez se pudesse estudar se é possível
reconhecer traços remanescentes da dimensão mítica nos trabalhos de Ad Reinhardt,
Mark Rothko e Barnet Newmann, por exemplo, os quais ainda se prendem ao
estritamente pictórico e almejam atingir uma transcendência.
Por outro lado, com Jackson Pollock, embora confesso admirador de Mondrian,
o trabalho começa pelo gesto e pela ação do artista, indicando um desdobramento ritual.
Sua ação, como em Schwitters e Duchamp, se incorpora à obra. Já observava Robert
Morris na década de 1960: «Dos expressionistas abstratos, só Pollock foi capaz de
recuperar o processo e tomá-lo como parte da forma final do trabalho».731 E o próprio
Pollock falava de sua preferência por modos não-tradicionais de trabalho:

Minha pintura não sai do cavalete. Eu dificilmente estendo minha


tela antes de pintar. Prefiro colocar a tela não-estendida na parede ou no chão
duros. Necessito da resistência de uma superfície dura. No chão, sinto-me
mais à vontade. Sinto-me mais perto, mais parte da pintura, uma vez que
deste modo eu posso caminhar em volta dela, trabalhar a partir dos quatro
lados e literalmente estar na pintura. É como os índios pintores de areia do
oeste.732

Nos mecanismos autodestrutivos de Jean Tinguely, nas ações – quase


cerimônias – de Yves Klein e nas performances de Joseph Beuys, para citarmos três
outros exemplos, a dimensão ritual parece não só se manter mas se acentuar ainda mais.
Nestes, a produção artística se transforma num evento, oficiado (e, em alguns casos,
vivido) pelo artista e presenciado por um número determinado de espectadores.
Estabelece-se uma relação mais explícita não só com o espaço circundante (há também
aqui um espaço específico e delimitado, mesmo que dentro do museu733), mas também
com o tempo: o tempo em que se destrói um mecanismo de Tinguely, o tempo em que
as modelos nuas se tingem de azul e imprimem seus corpos pintados sobre uma
superfície branca em Anthropométries et symphonie de Klein, o tempo em que Beuys se
manteve junto a um coiote em I Like America and America Likes Me. E este recorte no
tempo é, como o evento, único. O mistério aqui se constitui a partir da própria
efemeridade da ação.

731
Robert Morris citado por Rosalind E. Krauss, The Optical Unconscious, p. 293.
732
Jackson Pollock citado por Edward Lucie-Smith, Movements in Art Since 1945, p. 21.
733
Nos happenings da década de 1960 e seguinte, o artista ainda construía, mesmo que numa parte do
museu, um ambiente especial e único para seu evento artístico.

253
Porém, tenho dúvida se, na arte mais recente, ainda podemos de fato identificar
um caráter ritual. Parece-me que as ações que esta arte engendra estão por demais
voltadas para o mercado. No momento em que o artista projeta sua obra, sob
encomenda, para qualquer espaço, permitindo que seja transportada, montada e
remontada onde for preciso, perde, por mais que esta obra guarde características
ritualísticas, um tanto do que poderia haver nela de «culto». Em Schwitters, Tinguely,
Klein, Beuys, os trabalhos são por natureza invendíveis. Se de fato, são, de uma forma
ou de outra, vendidos, isto é um dado contingente, que não participa do ser da obra, nem
nele interfere. Duchamp, depois de ter decidido abandonar a arte como meio de
sustento, não realizava suas peças e seus readymades com a intenção de comercializá-
los. Rauschenberg, por exemplo, adquiriu por sua conta um porta-garrafas e levou a
Duchamp para que este o assinasse.734 Neles, portanto, ainda se preserva uma
preocupação espiritual ou intelectual com a arte, e não, prioritariamente, com o
mercado. Se suas «obras» estão hoje em museus, esta é uma grande ironia – e é a isto
que Bürger se refere como o «fracasso da intenção vanguardista».735 Ao ser perguntado
se não haveria uma contradição em ter seus readymades exibidos nos museus e nas
exposições e consumidos como objetos de arte, Duchamp respondeu: «Há uma
contradição absoluta, mas é isto que é prazeroso, não é?».736 Ironia e cinismo são
atitudes às vezes muito parecidas perante uma vida percebida como «danificada»;737
mas o cinismo é hostil à arte, enquanto a ironia – ao menos na modernidade – parece ser
a condição imprescindível para sua aparição.

734
Ver Calvin Tomkins, Duchamp: A Biography, p. 158.
735
Peter Bürger assevera que, «uma vez que o urinol assinado é aceite nos museus, a provocação deixa de
ter sentido e transforma-se no seu contrário. Quando um artista dos dias de hoje assina e exibe uma
chaminé de fogão, já não está a denunciar o mercado da arte: está a submeter-se a ele; não destrói, mas
antes confirma, o conceito da criação individual. Haverá que procurar a razão disto no fracasso da
intenção vanguardista de superar a arte. Quando o protesto da vanguarda histórica contra a instituição arte
chega a considerar-se como arte, a atitude de protesto da neo-vanguarda tem que ser falsa» (Teoria da
vanguarda, pp. 94-95).
736
Marcel Duchamp em entrevista a Philippe Collin, Marcel Duchamp parle des ready-made, p. 16.
737
Penso em Adorno, no subtítulo de seu Minima moralia, «Reflexões a partir da vida danificada»
(Reflexionen aus dem beschädigten Leben).

254
BIBLIOGRAFIA
SOBRE MITO E RITO

ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Sousa. Porto Alegre: Globo, 1966.

BAILLY, Anatole. Dictionnaire grec-français. Paris: Hachette, 1950.

BARTHES, Roland. Mitologias. Trad. Rita Buongermino e Pedro de Souza. Rio de


Janeiro e São Paulo: Difel, 1978.

BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Antonio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM,
1987.

BOISACQ, Émile. Dictionnaire etymologique de la langue grecque. Heildelberg: C.


Winters, 1950.

BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico-etimológico. Petrópolis: Vozes, 1997.


2v.

______. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1998. 3 v.

BRUNEL, Pierre (org.). Dicionário de mitos literários. Trad. Carlos Sussekind, Jorge
Laclette, Maria Thereza Rezende Costa e Vera Whately. Rio de Janeiro: José Olympio;
Brasília: UnB, 1997.

BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia. Trad. David Jardim Júnior. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2000.

BURKERT, Walter. Antigos cultos de mistério. Trad. Denise Bottman. São Paulo:
EDUSP, 1991.

______. Mito e mitologia. Trad. Maria Helena da Roca Pereira. Lisboa: Edições 70,
1991.

CAILLOIS, Roger. L’homme et le sacré. Paris: Gallimard, 1988.

______. El mito y el hombre. Trad. Jorge Ferreiro. México: Fondo de Cultura


Económica, 1993.

CALASSO, Roberto. La letteratura e gli dèi. Milano: Adelphi, 2001.

______. «Terror das fábulas». In: ______. Os 49 degraus. Trad. Nilson Moulin. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997. pp. 180-189.

CANTONI, Remo. «Mito e valori». Nuovi Argomenti (Mito e civiltà moderna), 37 (mar.
–apr. 1959), pp. 93-112.

255
CAPRETTINI, Guido Ferraro; FILORANO, Giovanni. «Mythos/logos». Trad. Maria
Bragança. In: Enciclopédia Einaudi. v. 12 (Mythos/Logos – Sagrado/Profano). Lisboa:
Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1987. pp. 75-104.

CARCHIA, Gianni. «Il senso delle parole». Aut Aut, 243-244 (mag.-ago. 1991). pp. 3-9.

CASSIRER, Ernst. Filosofía de las formas simbólicas II: el pensamiento mítico. Trad.
Armando Morones. México: Fondo de Cultura Económica, 1998.

______. Linguagem e mito. Trad. J. Guinsburg e Miriam Schnaiderman. São Paulo:


Perspectiva, 1974.

CHARBONNIER, Georges. Arte, linguagem, etnologia: entrevistas com Claude Lëvi-


Strauss. Trad. Nícia Adan Bonatti. Campinas: Papirus, 1989.

CUNIBERTO, Flavio. «Mitologia della ragione o supplemento d’anima. Sugli sviluppi


recenti della “Mythos-Debatte”». Aut Aut, 243-244 (mag.-ago. 1991), pp. 75-88.

DE BIASI, Rocco. «Riti d’oggi». Aut Aut, 303 (mag.-giu. 2001), pp. 3-11.

DE MARTINO, Ernesto. «Mito, scienze religiose e civiltà moderna». Nuovi Argomenti


(Mito e civiltà moderna), 37 (mar.-apr. 1959), pp. 4-48.

DETIENNE, Marcel. «Mito/Rito». Trad. Irene Maria Ferreira. In: Enciclopédisa


Einaudi. v. 12 (Mythos/Logos – Sagrado/Profano). Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da
Moeda, 1987. pp. 58-74.

DODDS, E. R. The Greeks and the Irrational. Berkeley, Los Angeles and London:
University of California Press, 1984.

DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. Trad. Paulo Neves. São
Paulo: Martins Fontes, 2000.

ELIADE, Mircea. Aspects du mythe. Paris: Gallimard, 1996.

______. Images et symboles. Paris: Gallimard, 1999.

______. Initiation, rites, sociétés secrètes. Paris: Gallimard, 2001.

______. Le mythe de l’éternel retour: archétypes et répétition. Paris: Gallimard, 1989.

______. Mythes, rêves et mystères. Paris: Gallimard, 1996.

______. O sagrado e o profano. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes,
1996.

256
ELIOT, T. S. «Myth and Literary Criticism». In: ELLMANN, Richard; FEIDELSON
Jr., Charles (ed.). The Modern Tradition. New York: Oxford University Press, 1977. pp.
679-681.

ELLMANN, Richard; FEIDELSON Jr., Charles. «Myth». In: _______ (ed.). The
Modern Tradition. New York: Oxford University Press, 1977. pp. 617-681.

ERIBON, Didier; LÉVI-STRAUSS, Claude. De perto e de longe: relatos e reflexões do


mais importante antropólogo de nosso século. Trad. Léa Mello e Julieta Leite. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

FALCÓN MARTINEZ, Constantin; FERNÁNDEZ-GALIANO, Emilio; LÓPEZ


MELERO, Raquel. Dicionário de mitologia clássica. Madrid: Alianza Editorial, 1999. 2
v.

FELE, Giolo; GIGLIOLI, Pier Paolo. «Il rituale come forma specifica di azione e di
pratica sociale». Aut Aut, 303 (mag.-giu. 2001), pp. 13-35.

FRAZER, James G. The Golden Bough: The Roots of Religion and Folklore. New
York: Avenel Books, 1981.

FRYE, Northrop. «The Koine of Myth: Myth as a Universally Intelligible Language».


In: ______. Myth and Metaphor: Selected Essays 1974-1988. Charlottesville and
London: University Press of Virginia, 1996. pp. 3-17.

GABETTA, Gianfranco. «Filosofia dell’immemoriale e lavoro del mito». Aut Aut, 243-
244 (mag.-ago. 1991), pp. 29-41.

GENOVESE, Rino. «Soggetto e mito. Per una rilettura della “Dialetica


dell’iluminismo”». Aut Aut, 243-244 (mag.-ago. 1991), pp. 43-55.

GINZBURG, Carlo. «Mito: distância e mentira». Trad. Eduardo Brandão. In: ______.
Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras,
2001. pp. 42-81.

GIRARD, René. Des choses cachées depuis la fondation du monde: recherches avec
J.M. Oughourlian et Guy Lefort. Paris: Bernard Grasset, 1978.

______. Le sacrifice. Paris: Bibliothèque Nationale de France, 2003.

______. Um longo argumento do princípio ao fim: Diálogos com João Cezar de Castro
Rocha e Pierpaolo Antonello. Trad. Bluma Waddington Vilar. Rio de Janeiro:
Topbooks, s/d.

______. A violência e o sagrado. Trad. Martha Conceição Gambini. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1998.

257
GIVONE, Sergio. «Poesia, favola, verità». Aut Aut, 243-244 (mag.-ago. 1991), pp. 11-
27.

GRASSI, Ernesto. Arte como antiarte. Trad. Antonieta Scarabelo. São Paulo: Duas
Cidades, 1975.

______. Arte e mito. Trad. Manuela Pinto dos Santos. Lisboa: Livros do Brasil, s/d.

GREISCH, Jean. «Versions du mythe». In: AA. VV. Le mythe et le symbole: de la


connaissance figurative de Dieu. Paris: Beauchesne, 1977.

GUSDORF, Georges. Mythe et métaphysique: introduction a la philosophie. Paris:


Flammarion, 1953.

HANSEN, William; SCHREMPP, Gregory (ed.). Myth: A New Symposium.


Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 2002.

HUBNER, Kurt. La verità del mito. Trad. Paola Capriolo. Milano: Feltrinelli, 1990.

JENSEN, Ad. E. Mito y culto entre pueblos primitivos. Trad. Carlos Gerhart. México:
Fondo de Cultura Económica, 1998.

JESI, Furio. Il mito. Milano: Istituto Editoriale Internazionale, 1973.

JOLLES, Andre. O mito. In: _____. Formas simples. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo:
Cultrix, 1976. pp. 83-108.

KÉRENYI, Karl. Dioniso: Imagem arquetípica da vida indestrutível. Trad. Odep


Trindade Serra. São Paulo: Odysseus, 2002.

KIRK, G. S. Myth: Its Meaning and Functions in Ancient and Other Cultures. Berkeley:
Cambridge University Press, Cambridge London Melbourne; Los Angeles: University
of California Press, 1986.

KLUCKHOHN, Clyde. «Myths and Rituals: A General Theory». Harvard Theological


Review, 35 (1942), pp. 45-79.

LEACH, Edmund. Cultura e comunicação: a lógica da conexão dos símbolos:


introdução ao uso da análise estruturalista em antropologia social. Trad. Elisabete
Nunes. Lisboa: Edições 70, 1992.

______. As idéias de Lévi-Strauss. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1973.

LEROI-GOURHAN, André. As religiões da pré-história. Trad. Maria Inês de Franca


Sousa Ferro. Lisboa: Edições 70, 1998.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Trad. Chaim Samuel Katz. Rio de


Janeiro: Biblioteca Tempo Universitário, 1967.

258
______. Antropologia estrutural dois. Trad. Chaim Samuel Katz et al. Rio de Janeiro:
Biblioteca Tempo Universitário, 1993.

______. O cru e o cozido. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac & Naify,
2004.

______. L’homme nu. Paris: Plon, 1971.

______. Mito e significado. Trad. António Marques Bessa. Lisboa: Edições 70, 1981.

______. O pensamento selvagem. Trad. Tânia Pellegrini. Campinas: Papirus, 1989.

______. Le regard éloigné. Paris: Plon, 1983.

_______. Totemismo hoje. Trad. Malcolm Bruce Corrie. Petrópolis: Vozes, 1975.

LÉVY-BRUHL, Lucien. La mythologie primitive: le monde mythique des australiens et


des papous. Paris: Presses Universitaires de France, 1963.

______. Le surnaturel et la nature de la mentalité primitive. Paris: Presses


Universitaires de France, 1963.

MASSENZIO, Marcello. «Aspetti del rapporto mythos-logos nella cultura greca. II». In:
GENTILI, Bruno; PAIONE, Giuseppe (a cura di). Il mito greco. Atti del convegno
internazionale. Urbino 7-12 maggio 1973. Roma: Edizioni dell’Ateneo & Bizzarri,
1977. pp. 63-65.

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Trad. António Filipe Marques. Lisboa:
Edições 70, 2001.

______. Ensaios de sociologia. Trad. Luiz João Gaio e J. Guinsburg. São Paulo:
Perspectiva, 1999.

______. Esboço de uma teoria geral da magia. Trad. José Francisco Espadeiro Martins.
Lisboa: Edições 70, 2000.

______. Sociologia e antropologia. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify,
2003.

MERQUIOR, José Guilherme. A estética de Lévi-Strauss. Rio de Janeiro: Tempo


Brasileiro, 1975.

OTTO, Walter. Dioniso. Trad. Albina Ferretti Calenda. Genova: Il Melangolo, 1997.

______. Il mito. Trad. Giampiero Moretti. Genova: Il Melangolo, 2000.

259
PERNIOLA, Mario. Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo. Trad. Maria do
Rosário Toschi. São Paulo: Studio Nobel, 2000.

______. Più-che-sacro, più-che-profano. Milano: Mimesis, 1992.

______. Transiti: come si va dallo stesso allo stesso. Bologna: Cappelli, 1985.

PETHES, Nicolas; RUCHATZ, Jens (ed. e org.). Dizionario della memoria e del
ricordo. Milano: Bruno Mondadori, 2002.

PETTAZONI, Raffaele. «Forma e verità del mito». Nuovi Argomenti (Mito e civiltà
moderna), 37 (mar.-apr. 1959), pp. 49-53.

PLATONE. Tuttli gli scritti. A cura di Giovanni Reale. Trad. Giovanni Reale, Maria
Luisa Gatti, Claudio Mazzarelli, Maurizio Migliori. Milano: Bompiani, 2001.

RADCLIFFE-BROWN, A. R. Estrutura e função nas sociedades primitivas. Trad.


Maria João Freire. Lisboa: Edições 70, 1989.

RAPPAPORT, Roy A. Ritual and Religion in the Making of Humanity. Cambridge:


Cambridge University Press, 1999.

RICOEUR, Paul. «La fonction symbolique des mythes». In: ______. Finitude et
culpabilité II: la symbolique du mal. Paris: Aubier, 1960.

ROGNON, Frédéric. Os primitivos, nossos contemporâneos. Trad. Cláudio Cesar


Santoro. Campinas: Papirus, 1991.

RUDHARDT, J. «La fonction du mythe dans la pensée religieuse de la Grèce». In:


GENTILI, Bruno; PAIONE, Giuseppe (a cura di). Il mito greco. Atti del convegno
internazionale. Urbino 7-12 maggio 1973. Roma: Edizioni dell’Ateneo & Bizzarri,
1977. pp. 307-320.

RUTHVEN, K. K. O mito. Trad. Esther Eva Horivitz de BeerMann. São Paulo:


Perspectiva, 1997.

SABBATUCCI, Dario. «Aspetti del rapporto mythos-logos nella cultura greca. I».
GENTILI, Bruno; PAIONE, Giuseppe (a cura di). Il mito greco. Atti del convegno
internazionale. Urbino 7-12 maggio 1973. Roma: Edizioni dell’Ateneo & Bizzarri,
1977. pp. 57-62.

SCHELLING, F. W. Introduction a la philosophie de la mythologie. Trad. S.


Jankélévitch. Paris: Aubier, 1945. t. I.

SEBEOK, Thomas A. (ed.). Myth: A Symposium. Bloomington and London: Indiana


University Press, 1965.

260
SMITH, Pierre. «Ethnologie et analyse des mythes grecs». In: GENTILI, Bruno;
PAIONE, Giuseppe (a cura di). Il mito greco. Atti del convegno internazionale. Urbino
7-12 maggio 1973. Roma: Edizioni dell’Ateneo & Bizzarri, 1977. pp. 307-320.

TERRIN, Aldo Natale. O rito: antropologia e fenomenologia da ritualidade. Trad. José


Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 2004.

TURNER, Victor. O processo ritual. Trad. Nancy Campi de Castro. Petrópolis: Vozes,
1974.

VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. Trad. Haiganuch Sarian.


São Paulo: Paz e Terra, 2002.

______. Mito e sociedade na Grécia antiga. Trad. Myriam Campello. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1999.

WEINRICH, Harald. «Le strutture narrative del mito». In: ______. Metafora e
menzogna: la serenità dell’arte. Bologna: Il Mulino, 1976, pp. 209-226.

SOBRE ARTE E ESTÉTICA

ADAM, Leonhard. Arte primitiva. Buenos Aires; Lautaro, 1946.

ADES, Dawn. Dadá e surrealismo. Trad. Lélia Coelho Frota. Barcelona: Editorial
Labor do Brasil, 1976.

ADORNO, Theodor W. Teoria estética. Trad. Artur Morão. São Paulo: Martins Fontes,
1982.

AJZENBERG, Elza (org.). Arte e ciência: mito e razão. São Paulo: Centro Mario
Schenberg de Documentação, Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São
Paulo, 2001.

ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: do Iluminismo aos movimentos contemporâneos.


Trad. Denise Bottmann e Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

______. Progetto e destino. Milano: Il Saggiatore, 1965.

______. Salvezza e caduta nell’arte moderna: studi e note II. Milano: Il Saggiatore,
1977.

______. Studi e note. Roma: Bocca, 1955.

ARP, Jean. On my Way: Poetry and Essays 1912-1947. New York: Wittenborn, Schultz,
1948.

261
BALL, Hugo. Flight Out of Time: A Dada Diary. Trad. Ann Raimes. New York: The
Viking Press, 1974.

BARR, Alfred H. (ed.). Fantastic Art, Dada, Surrealism. New York: The Museum of
Modern Art, 1968.

BATAILLE, Georges. Manet. Genève, Paris, New York: Skira, 1955.

BAUDELAIRE, Charles. «Le peintre de la vie moderne». In: ______. Critiqued’art.


Paris: Gallimard, 1992. pp. 343-384.

BÉHAR, Henri; CARASSEU, Michel. Dada: Histoire d’une subversion. Paris: Fayard,
1990.

BENJAMIN, Walter. The Arcades Project. Trad. Howard Eiland and Kevin
McLaughlin. Cambridge, Mass., and London: The Belknap Press of Harvard University
Press, 1999.

______. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Trad. José Carlos


Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1998.

______. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo:
Brasiliense, 1998.

______. «A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução». Trad. José Lino
Grünewald. In: GRÜNEWALD, José Lino (org.). A idéia do cinema. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1969. pp. 55-95.

______. Origem do drama barroco alemão. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo:
Brasiliense, 1984.

BENSANÇON, Alain A imagem proibida. Trad. Carlos Süssekind. Rio de Janeiro:


Bertrand Brasil, 1997.

BIRNHOLZ, Alan C. «The Russian Avant-Garde and the Russian Tradition». Art
Journal, XXXII, 2 (winter 1972-1973), pp. 146-149.

BOAS, Franz. Arte primitiva. Trad. Paula Seixas. Lisboa: Fenda, 1996.

BOCCIONI, Umberto. Pittura e scultura futuriste. Milano: SE, 1997.

BONFAND, Alain. Arte abstrata. Trad. Denise P. Lotito. Campinas: Papirus, s/d.

BRETON, André. Manifestes du surréalisme. Paris: Franc Loisirs, 1990.

______. Manifestos do surrealismo. Trad. Sérgio Pachá. Rio de Janeiro: Nau, 2001.

262
BUCK, Peter. «Material Representatives of Tongan and Samoan Gods». In: FRASER,
Douglas. The Many Faces of Primitive Art. Englewood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall, 1966.
pp. 102-120

______. «Additional Wooden Images from Tonga». In: FRASER, Douglas. The Many
Faces of Primitive Art. Englewood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall, 1966. pp. 121-128

BULHÕES, Maria Amélia; KERN, Maria Lúcia Bastos (org.). As questões do sagrado
na arte contemporânea da América Latina. Porto Alegre: Editora da Universidade,
1997.

BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. Trad. Ernesto Sampaio. Lisboa: Vega, 1993.

CALVESI, Maurizio. Avanguardia di massa. Milano: Feltrinelli, 1978.

CARPENTER, T. H. Art and Myth in Ancient Greece. London: Thames and Hudson,
1996.

CHIPP, Herschel B. Teorias da arte moderna. Trad. Waltensir Dutra et al. São Paulo:
Martins Fontes, 1989.

COOK, R. M. «“Artful Crafts”: a commentary». The Journal of Hellenic Studies, CVII


(1987), pp. 169-178.

Dada Zurich Paris: 1916-1922. Cabaret Voltaire. Der Zeltweg. Dada. Le Coeur a
Barbe. Paris: Éditions Jean-Michel Place, 1981.

DANESI, Silvia (org.). Il dadaismo. Milano: Fratelli Fabbri Editori, 1977.

DE MARIA, Luciano. «Futurismo, Dada, Surrealismo». In: Futurismo futurismi. Paris:


Alfabeta/La Quinzaine littéraire. pp. 16-20.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Trad. Paulo Neves. São
Paulo: 34, 1998.

ELDERFIELD, John (ed.). Visions of Modern Art: Painting and Sculpture from the
Museum of Modern Art. New York: The Museum of Modern Art, 2003.

FAGG, William. El arte del África Occidental. Trad. Antonio Ribera. Buenos Aires:
Editorial Hermes, 1967.

FERREIRA, José Mendes (org.). Antologia do futurismo italiano. Trad. José Mendes
Ferreira. Lisboa: Vega, 1979.

FINIZIO, Luigi Paolo. L’astrattismo costruttivo: Suprematismo e Costruttivismo. Bari:


Laterza, 1990.

263
FIRTH, Raymond. «O contexto social da arte primitiva». In: ______. Elementos de
organização social. Trad. Dora Flaksman e Sergio Flaksman. Rio de Janeiro: Zahar,
1974.

FORGE, Anthony (ed.). Primitive Art and Society. London and New York: Oxford
University Press, 1973.

FOSTER, Stephen C. (ed.). Crisis and the Arts: The History of Dada. Dada Zurich: A
Clown’s Game from Nothing. New York: G.K. Hall; London: Prentice Hall
International, 1996.

FRASCINA, Francis; HARRISON, Charles; PERRY, Gill. Primitivismo, cubismo,


abstração: começo do século XX. Trad. Otacílio Nunes. São Paulo: Cosac & Naify,
1998.

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. Trad. Marise M. Curioni. São Paulo:
Duas Cidades, 1991.

GALE, Matthew. Dada & surrealism. London: Phaidon, 1997.

GASCHÉ, Rodolphe. «Digressões objetivas: sobre alguns temas kantianos em “A obra


de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”». In: BENJAMIN, Andrew; OSBORNE,
Peter (orgs.). A filosofia de Walter Benjamin: destruição e experiência. Trad. Maria
Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. pp. 193-214.

GIEDION, Sigfried. El presente eterno: los comienzos del arte – Una aportación al
tema de la constancia y el cambio. Trad. María Luisa Balsiero. Madrid: Alianza
Editorial, 1981.

GILL, David W. J. «Expressions of Wealth: Greek Art and Society». Antiquity, 62


(1988), pp. 735-743.

GILL, David W. J.; VICKERS, Michael. «Reflected Glory: Pottery and Precious Metal
in Classical Greece». Jahrbuch des deutschen archäologischen Instituts, Berlim, 105
(1990), p. 1-30.

GINZBURG, Carlo. «Além do exotismo: Picasso e Warburg». In: ______. Relações de


força: história, retórica, prova. Trad. Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002. pp. 118-136.

GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. Trad. Renato Cohen. São Paulo:


Perspectiva, 1987.

GOLDING, John. Paths to the Absolut: Mondrian, Malevich, Kandinsky, Pollock,


Newman, Rothko, and Still. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2000.

GOLDWATER, Robert. Primitivism in Modern Art. Cambridge, Mass. and London:


The Belknap Press of Harvard University Press, 1986.

264
GOMBRICH, E. H. The Preference for the Primitive. London: Phaidon, 2002.

GORDON, Mel (ed.). Dada performance. New York: PAJ Publications, 1987.

GRASSI, Ernesto. Arte e mito. Trad. Manuela Pinto dos Santos. Lisboa: Enciclopédia
LBL, s/d.

______. Arte como antiarte. Trad. Antonieta Scarabelo. São Paulo: Duas Cidades, 1975.

GREENOUGH, Sarah et al. Modern Art and America: Alfred Stieglitz and his New
York Galleries. Washington: National Gallery of Art; Boston, New York and London:
Bulfinch Press, 2000.

GROPIUS, Walter. Bauhaus: Novarquitetura. Trad. J. Guinsburg e Ingrid Dormien.


São Paulo: Perspectiva, 2001.

GUINSBURG, J. (org.). O expressionismo. São Paulo: Perspectiva, 2002.

HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. Trad. Álvaro Cabral. São
Paulo: Martins Fontes, 1995.

HAUSMANN, Raoul. Courrier Dada. Paris: Allia, 1992.

HENDERSON, Linda Dalrymple. The Fourth Dimension and Non-Euclidean Geometry


in Modern Art. New Jersey: Princeton University Press, 1983.

HOFFMANN, Herbert. «Dulce et decorum est pro patria mori: the imagery of heroic
immortality on Athenian painted vases». In: GOLDHILL, Simon; OSBORNE, Robin
(ed.). Art and Text in Ancient Greek Culture. Cambridge: Cambridge University Press,
1994.

HULTEN, Pontus. Futurismo & Futurismi. Milano: Bompiani, 1986.

JAFFÉ, Hans L. C. Per un’ arte nuova – De Stijl 1917-31. Trad. Carla Pirovano.
Milano: Il Saggiatore, 1964.

KAHNWEILER, Daniel-Henry. Minhas galerias e meus pintores: depoimento à Francis


Crémieux. Trad. Eliane Tejera Lisbôa. Porto Alegre: L&PM, 1990.

KANDINSKY, Wassily. «Da composição cênica». Trad. Antonio de Pádua Danesi. In:
______. Olhar sobre o passado. São Paulo: Martins Fontes, 1991. pp. 137-143.

KIRBY, Michael. «Avant-garde Theatre». In: ______. A Formalist Theatre.


Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1990.

KRAUSS, Rosalind E. The Optical Unconscious. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1994.

265
______. The Originality of Avant-Garde and Other Modernist Myths. Cambridge,
Mass.: MIT Press, 1997.

KRYSINSKI, Wladimir. «I miti “di” avanguardia e i miti “nell”’avanguardia». In:


BARTOLI, F.; DALMONTE, R.; DONATI, C. (a cura di). Visioni e archetipi: il mito
nell’arte sperimentale e di avanguardia del primo novecento. Trento: Dipartimento di
Scienze Filologiche e Storiche, Università degli Studi di Trento, 1996.

LANGMEAD, Donald. The Artists of De Stijl: A Guide to the Literature. Westport,


Connecticut, and London: Greenwood Press, 2000.

LAYTON, Robert. Antropologia da arte. Trad. Abílio Queirós. Lisboa: Edições 70,
2001.

LEBEL, Robert; SANOUILLET, Michel; WALDBERG, Patrick. Dada, surréalisme.


Paris: Rive Gauche Produtions, 1981.

LE BOT, Marc. «L’art et le sacré». Colóquio-Artes, 100 (mar. 1994), pp. 36-38.

LISITSKIJ-KÜPPERS, Sophie. El Lisitskij: pittore, architetto, tipogrfo, fotografo –


ricordi, lettere, scritti. Trad. Piero Leone (Ricordi e lettere) e Alberto Scarponi (Testi di
e su Lisitskij). Roma: Riuniti, 1967.

Littérature. Nos. 1 à 20, mars 1919 à août 1921. Paris: Éditions Jean-Michel Place,
1978.

LOUDEN, Lynn M. «Apollo and Dionysus in Contemporary Art». Arts Magazine,


XLV, 3 (1971), pp. 20-23.

LUCIE-SMITH, Edward. Movements in Art Since 1945. London: Thames & Hudson,
2000.

LUQUET, G.-H. L’Art et la religion des hommes fossiles. Paris: Masson et Cie.
Éditeurs, 1926

MALINGUE, Maurice. Lettres de Gauguin à sa femme et a ses amis. Paris: Bernard


Grasset, 1946.

MALRAUX, André. Picasso’s Mask. Trad. June e Jacques Guicharnaud. New York: Da
Capo Press, 1994.

MARCADÉ, Valentine. L’Art pictural russe: le renouveau de l’art pictural russe 1863-
1914. Laussane: L’Age d’Homme, 1980.

MARX-ENGELS. Sobre literatura e arte. Trad. Albano Lima. Lisboa: Estampa, 1974.

MEKHITARIAN, Arpag. La peinture égyptienne. Genève: Skira, 1954.

266
MELZER, Annabelle Henkin. Dada and surrealist performance. Baltimore and
London: Johns Hopkins University Press, 1994.

MICHELI, Mario de. As vanguardas artísticas. Trad. Pier Luigi Cabra. São Paulo:
Martins Fontes, 1991.

MORTEO, Gian Renzo; SIMONS, Ippolito (org.). Teatro dada. Torino: Einaudi, 1969.

MOTERWELL, Robert (ed.). The Dada Painters and Poets: An Anthology. London
and Cambridge, Mass.: The Belknap Press of Harvard University Press, 1981.

NASH, J. M. O cubismo, o futurismo e o construtivismo. Trad. Manuel de Seabra.


Barcelona: Editorial Labor, 1976.

NAUMANN, Francis M. New York Dada 1915-23. New York: Harry N. Abrams, 1994.

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad. J.


Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

Nord-Sud: Revue Littéraire. Collection complète. Paris: Éditions Jean-Michel Place,


1980.

PERLOFF, Marjorie. O momento futurista: avant-garde, avant-guerre e a linguagem da


ruptura. Trad. Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: EDUSP, 1993.

PERNIOLA, Mario. «La critica radicale dell’arte e la realizzazione del significado». In:
______. L’alienazione artistica. Milano: Mursia, 1971. pp. 191-266.

______. Enigmas: o momento egípcio na sociedade e na arte. Trad. Catia Benedetti.


Venda Nova: Bertrand, 1994.

POGGIOLI, Renato. Teoria dell’arte d’avanguardia. Bologna: Il Mulino, 1962.

POUPARD-LIEUSSOU, Y.; SANOUILLET, Michel (org.). Documents dada. Paris:


Weber, 1974.

PULS, Maurício. O significado da pintura abstrata. São Paulo: Perspectiva, 1998.

READ, Herbert. Arte y sociedad. Trad. Agustin J. Alvarez. Buenos Aires: Guillermo
Kraft, 1951.

______. História da pintura moderna. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Círculo do
Livro, 1980.

______. Icon and Idea: The Function of Art in the Development of Human
Consciousness. London: Faber and Faber, 1955.

267
______. As origens da forma na arte. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1967.

_____. O sentido da arte. Trad. E. Jacy Monteiro. São Paulo: Ibrasa, 1968.

RELLA, Franco. «Benjamin e l’avanguardia». In: BELLOI, Lucio; LOTTI, Lorenzina


(a cura di). Walter Benjamin: tempo storia linguaggio. Roma: Riuniti, 1983. pp. 133-
147.

La Révolution Surréaliste. Collection complète. Paris: Éditions Jean-Michel Place,


1975.

RHODES, Colin. Primitivism and Modern Art. London: Thames and Hudson, 1997.

RIBEMONT-DESSAIGNES, Georges. Dada: manifestes, poemes, articles, projets


(1915-1930). Paris: Editions Champ Libre, 1974.

RICHARDSON, John. A Life of Picasso 1907-1917: The Painter of Modern Life.


London: Pimlico, 1996.

RICHTER, Hans. Dadá: arte e antiarte. Trad. Marion Fleischer. São Paulo: Martins
Fontes, 1993.

ROSSI, Annabella. «Appunti su arte contemporanea e arte preistorica». Nuovi


Argomenti (Mito e civiltà moderna), 37 (mar.-apr. 1959), pp. 134-146.

RUBIN, William (ed.). Le Primitivisme dans l’art du 20e siècle. Trad. Jeanne Bouniort
et al. Paris: Flammarion, 1987.

SALARIS, Claudia Marinetti: arte e vita futurista. Roma: Riuniti, 1997.

SANOUILLET, Michel. Dada à Paris. Nice: Centre du XXº Siècle, 1980.

SCHAEFFER, Jean-Marie. L’art de l’âge moderne: l’esthétique et la philosophie de


l’art du XVIIIº siècle à nos jours. Paris: Gallimard, 1992.

SCHLEGEL, Friedrich. Conversa sobre a poesia e outros fragmentos. Trad. Victor-


Pierre Stirnimann. São Paulo: Iluminuras, 1994.

______. O dialeto dos fragmentos. Trad. Marcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1997.

SCHWARZ, Arturo (a cura de). Almanacco Dada. Milano: Feltrinelli, 1976.

Sic. Paris: Éditions Jean-Michel Place, 1980.

SIEBER, Roy. «Masks as Agents of Social Control». In: FRASER, Douglas. The Many
Faces of Primitive Art. Englewood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall, 1966. pp. 257-263.

268
SIMSON, Otto von. The Gothic Cathedral: The Origins of Gothic Architecture & the
Medieval Concept of Order. London: Routledge & Kogan Paul, 1956.

STANGOS, Nikos. Conceitos da arte moderna. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1991.

STEFANELLI, Stefania (a cura di). I manifesti futuristi: arte e lessico. Livorno: Sillabe,
2001.

STEINER, George. Presencias reales. Trad. Juan Gabriel López Guix. Barcelona:
Destino, 1991.

STIGGER, Veronica. «Arte e mito em Picasso». In: AJZENBERG, Elza (org.). Arte e
ciência: mito e razão. São Paulo: Centro Mario Schenberg de Documentação, Escola de
Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, 2001. pp. 382-391.

______. Mitomorfose: a mitologia greco-romana na obra de Pablo Picasso. Dissertação


de mestrado. São Leopoldo: Unisinos, 2000.

SUMMERS, David. Real Spaces: World Art Hitory and the Rise of Western
Modernism. London: Phaidon, 2003.

TEDESCHI, Francesco (ed.). Dadaismo. Milano: Arnoldo Mondadori Arte, 1991.

TZARA, Tristan. Sete manifestos Dadá. Trad. José Miranda Justo. Lisboa: Hiena, 1987.

UCKO, Peter; ROSENFELD, Andrée. Palaeolithic Cave Art. London: World Universiy
Library, 1967.

VALÉRY, Paul. «Primeira aula do curso de Poética». In: ______. Variedades. Trad.
Maiza Martins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 1991. pp. 187-200.

VALIOU, Denis. «Lascaux». Encyclopaedia Universalis. Paris: Encyclopaedia


Universalis France, 1985. v. 10. pp. 998-1002.

______. «Lascaux et l’art magdalenien». Histoire et Archeologie – Les Dossiers, 87


(oct. 1984), pp. 61-62.

______. «Un sanctuaire des chasseurs préhistoriques». Actuel, 1991, pp. 117-124.

VALLIER, Dora. A arte abstrata. Trad. João Marcos Lima. Lisboa: Edições 70, 1986.

VICKERS, Michael J. «Artful Crafts: The Influence of Metalwork on Athenian Painted


Pottery». The Journal of Hellenic Studies, London, CV (1985), pp. 108-128.

WINGLER, Hans Maria. The Bauhaus: Weimar, Dessau, Berlin, Chicago. Trad.
Wolfgang Jabs e Basil Gilbert. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1969.

269
WORRINGER, Wilhelm. Abstraction et Einfühlung. Trad. Emmanuel Martineau. Paris:
Klincksieck, 2003.

SOBRE E DE PIET MONDRIAN

ALFORD, John. «Last lines of Mondrian». College Art Journal, VIII, 1 (autumn 1948),
pp. 14-16.

APOLLONIO, Umbro. Mondrian e l’astrattismo. Milano: Fratello Fabbri Editori, 1970.

______. Piet Mondrian. Milano: Fratelli Fabbri Editori, 1978.

BAX, Marty. Complete Mondrian. Burlington: Lund Humphries, 2001.

BLOTKAMP, Carel. Mondrian: The Art of Destruction. London: Reaktion Books,


1994.

BOIS, Yve-Alain. «New York City I, 1942, de Piet Mondrian». Cahiers du Musée
National d’Art Moderne, 15 (1985), pp. 60-85.

______. «Piet Mondrian, New York City». Painting as Model. Cambridge, Mass., and
London: The MIT Press, 1993. pp. 157-183.

BOIS, Yve-Alain et al. Piet Mondrian: 1872-1944. Trad. Claudia V. Letizia e Vincenzo
Vergiani. Milano: Leonardo Arte, 1994.

BUSIGNANI, Alberto. Mondrian. Firenze: Sadea/Sansoni, 1968.

CARADENTE, Giovanni (a cura di). Piet Mondrian. Roma: Editalia, 1956.

CHAMPA, Kermit Swiler. Mondrian Studies. Chicago and London: University of


Chicago Press, 1985.

COOPER, Harry; SPRONK, Ron. Mondrian: the transatlantic paintings. New Haven:
Yale University Press; Cambridge, Mass.: Harvard University Art Museums, 2001.

DEICHER, Susanne. Piet Mondrian 1872-1944: Structures on Space. London: Taschen,


1995.

DORFLES, Gillo. «Mondrian: morte e rinascita nella pittura moderna». Letteratura, IV,
23 (set.-ott. 1956), pp. 33-36.

FAUCHEREAU, Serge. Mondrian and the Neo-plasticist utopia. New York: Rizzoli,
1994.

270
GIOSEFFI, Decio. «La falsa preistoria di Piet Mondrian e le origini del
neoplasticismo». Università degli studi di Trieste – Facoltà di Lettere e Filosofia, 8
(1957), pp. 3-29.

HILL, Anthony. «Art and Mathesis: Mondrian’s Structures». Leonardo, I, 3 (jul. 1968),
pp. 233-242.

HOLTZMAN, Harry; JAMES, Martin S. The New Art – The New Life: The Collected
Writings of Piet Mondrian. Trad. Harry Holtzman e Martin S. James. Boston: G. K.
Hall & Co., 1993.

JAFFÉ, Hans L. C. Piet Mondrian. New York: Harry N. Abrams, 1985.

JANSSEN, Hans; JOOSTEN, Joop M. (org.). Mondrian de 1892 à 1914: Les chemins
de l’abstraction. Paris: Réunion des Musées Nationaux, 2002.

JOOSTEN, Joop M.; WELSH, Robert P. Piet Mondrian: Catalogue raisonné. Milano:
Skira, 1998. 2v.

_____. Two Mondrian Sketchbooks 1912-1914. Amsterdam: Meulenhoff International,


1969.

LÉVY, Bernard-Henri. Piet Mondrian. Paris: La Différence, 1992.

LOCHER, Hans. Piet Mondrian: Colour, Structure and Symbolism. Trad. Michael
Latcham. Bern, Berlin: Verlag Gachnang & Springer, 1994.

MENNA, Filiberto. Mondrian: cultura e poesia. Roma: Riuniti, 1999.

MEURIS, Jacques. Mondrian. Paris: Nouvelles éditions françaises, Casterman, 1991.

MILNER, John. Mondrian. London: Phaidon, 1994.

Mondrian. Orangerie des Tuileries 18 Janvier – 31 Mars 1969. Paris: Réunion des
Musées Nationaux, 1969.

MORISANI, Ottavio. L’astrattismo di Piet Mondrian. Venezia: Neri Pozzi


Editore,1956.

MORPURGO-TAGLIABUE, Guido. «Un problema di metodo critico: P. Mondrian e


l’interpretazione di C. L. Ragghianti». Belfagor, XVIII, 6 (30 nov. 1963), pp. 698-708.

ORAZI, Vittorio (org.). Mondrian: Abasso l’armonia tradizionale. Milano: All’Insegna


del Pesce d’Oro, 1967.

Piet Mondrian: de la figuration à l’abstraction (oeuvres du Haags Gemeentemuseum de


La Haye). 23 mars – 16 mai 1985. Saint Paul: Fondation Maeght, 1985.

271
PIGNATARI, Décio. Semiótica da arte e da arquitetura. São Paulo: Cultrix, 1973.

RAGGHIANTI, Carlo Ludovico. Mondrian e l’arte del XX secolo. Milano: Edizioni di


Comunità, 1962.

ROSENBLUM, Robert. «Mondrian and Romanticism». Art News, LXIV, 10 (1966), pp.
33-36 e 69-70.

SCHAPIRO, Meyer. Mondrian: On the Humanity of Abstract Painting. New York:


George Braziller, 1982.

SEUPHOR, Michel. Piet Mondrian: sa vie, son oeuvre. Paris: Flammarion, 1970.

TOMASSONI, Italo. Piet Mondrian. Firenze: Sadea/Sansoni, 1968.

TROY, Nancy J. Mondrian and the Neo-plasticism in America. New Haven,


Connecticut: Yale University Art Gallery, 1979.

Verso l’astrattismo – Mondrian e la Scuola dell’Aia. Firenze: Centro Di, 1981.

WELSH, Robert. «Mondrian». Revue de l’art, 5 (1969), pp. 98-100.

WELSH, Robert (org.). Piet Mondrian: 1872-1944. Toronto: The Art Gallery of
Toronto, 1966.

YOUNG, Mahonri Sharp. «Mondrian revalued: the history of one picture». Apollo, 50
(apr. 1966), pp. 289-296.

SOBRE E DE KASIMIR MALEVITCH

ANDERSEN, Troels. Malevich. Amsterdam: Stedelijk Museum Amsterdam, 1970.

BENZONI, Marina; FEDOSOVA, Elena; GRUSVICKAJA, Elena (a cura di).


Polifonia: Da Malevic a Tat’jana Bruni 1910-1930. Bozzetti teatrali dell’avanguardia
russa. Milano: Electa, 1998.

BOERSMA, Linda S. 0.10: La dernière exposition futuriste. Trad. Anne Michel. Paris:
Hazan, 1997.

BOWLT, John E. Russian Art of the Avant Garde. London: Thames and Hudson, 1988.

CARADENTE, Giovanni (a cura di). Casimir Malevic. Roma: Editalia, 1959.

______. «Casimir Malevic e il “suprematismo”». Arte antica e moderna, 6 (1959), pp.


172-192.

272
CLARK, T. J. «God Is Not Cast Down». In: ______. Farewell to an Idea: Episodes
from a History of Modernism. New Haven and London: Yale University Press. pp. 225-
297.

COMPTON, Susan P. «Malevich’s Suprematism: The Higher Intuition». Burlington,


CXVIII, 8 (1976), pp. 577-585.

CORTENOVA, Giorgio; PETROVA, Evgenija (a cura di). Kazimir Malevich e le sacre


icone russe. Milano: Electa, 2000.

CRONE, Rainer; MOOS, David. Kazimir Malevich: the climax of disclosure. Chicago:
University of Chicago Press, 1991.

DEMOSFENOVA, Galina. Malevic: artista e teorico. Verona: Olograf, 1991.

Dossier Kazimir Malevic. Cahiers du Musée National d’Art Moderne, 3 (jan.-mar.


1980), pp. 124-158.

DOUGLAS, Charlotte. Kazimir Malevich. New York: Harry N. Abrams, 1994.

______.«Malevich and Western European Art Theory». In: PETROVA, Evgeniya (ed.).
Malevich: Artist and Theoretician. Paris: Flammarion, 1990. pp. 56-60.

______. Swans of Other Worlds: Kazimir Malevich and the Origins of Abstraction in
Russia. Ann Arbor, Mich.: UMI Research Press, 1980.

DRUTT, Matthew (org.). Kazimir Malevich: Suprematism. New York: Guggenheim


Museum, 2003.

FAUCHEREAU, Serge. Kazimir Malévitch. Paris: Cercle d'Art, 1995.

GARCÍA-BERMEJO, José María Faerna. Malevich 1878-1935. Madrid: Polígrafa,


1995.

GOLDING, John. «Malevitch and the Ascent into Ether». In: ______. Paths to the
Absolut: Mondrian, Malevich, Kandinsky, Pollock, Newman, Rothko, and Still.
Princeton, NJ: Princeton University Press, 2000.

GRAY, Camila. The Russian Experiment in Art 1863-1922. New York: Thames and
Hudson, 1986.

HAYNES, Deborah J. Bakhtin and the Visual Arts. Cambridge, Mass.: Cambridge
University, 1995.

______. The Vocation of the Artist. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.

HILBERSHEIMER, L. «Kasimir Malevich and the Non-Objective World». Art Journal,


XX, 2 (winter 1960-1961), pp. 82-83.

273
KARSHAN, Donald. Malevich: The Graphic Work: 1913-1930 – A Print Catalogue
Raisonné. Israel: The Israel Museum, 1975.

Kasimir Malevitch: dessins. Bruxelles: Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique,


1975.

Kazimir Malevich: 1878-1935. Los Angeles: The Armand Hammer Museum of Art and
Cultural Center, 1991.

Kazimir Malevich in State Russian Museum. St. Petersburg: State Russian Museum,
Palace Editions, 2000.

KOVTUN, Evgeny. «The Beginning of Suprematism». Trad. Sharon McKee. In:


PETROVA, Evgeniya (ed.). Malevich: Artist and Theoretician. Paris: Flammarion,
1990. pp. 104-106.

______. «Kazimir Malevich». Trad. Charlotte Douglas. Art Journal, XLI, 3 (1981), pp.
234-241.

______. «Kazimir Malevich: His Creative Path». In: Malevich. Amsterdam: Stedelijk
Museum, 1988, pp. 153-173.

KRUCENYCH, Aleksej. La vittoria sul sole. Trad. Michaela Böhmig. Cosenza: La


Mongolfiera, 2003.

Malevich: Coleccion del Museo Estatal Ruso. San Petersburgo. Barcelona: Fundación
Juan March e Ajuntament de Barcelona, 1993.

Malévitch: architectones, peintures, dessins. Paris: Centre Georges Pompidou, Musée


National d’Art Moderne, 1980.

MALEVICH, Kazimir S. Essays on Art: 1915-1933. Trad. Xenia Glowacki-Prus e


Arnold McMillin. London: Rapp & Whiting, 1969. v. 1.

MALÉVITCH, Kazimir S. De Cézanne au Suprématisme: Tous les traites parus de


1915 à 1922. Trad. Jean-Claude e Valentine Marcadé, com a colaboração de Véronique
Schiltz. Lausanne: L’Age d’Homme, 1974.

______. Écrits. Trad. Andrée Robel. Paris: Ivrea, 1996.

______. Le Miroir suprématiste: Tous les articles parus en russe de 1913 à 1928, avec
des documents sur le suprématisme. Trad. Jean-Claude e Valentine Marcadé. Lausanne:
L’Age d’Homme, 1977.

MARCADÉ, Jean-Claude. Malévitch. Paris: Casterman, Nouvelle Éditions Française,


1990.

274
______ (org.). Malévitch: Actes du Colloque international tenu au Centre Pompidou,
Musée national d’Art Moderne. Laussane: L’Age d’Homme, 1979.

______ (org.). Malévitch: Cahier I: Recueil d’essais sur l’oeuvre et la pensée de K. S.


Malévitch. Laussane: L’Age d’Homme, 1993.

MARTINEAU, Emmanuel. Malévitch et la philosophie. Lausanne: L’Age d’homme,


1977.

NAKOV, A. B. (org.). Kasimir Malevich. London: The Tate Gallery, 1976.

______. Kazimir Malewicz: Catalogue raisonné. Paris: Adam Biro, 2002.

______. «Prologue». In: MALÉVITCH, Kazimir. Écrits. Trad. Andrée Robel. Paris:
Ivrea, 1996.

PONZIO, Luciano. Icona e raffigurazione: Bachtin, Malevic, Chagall. Bari: Adriatica


Editrice, 2000.

SIMMONS, W. Sherwin. Kasimir Malevich’s Black Square and the Genesis of


Suprematism, 1907-1915. The Johns Hopkins University, PhD., 1979.

______. «Kasimir Malevich’s “Black Square”: The Transformed Self – Part One:
Cubism and the Illusionistic Portrait». Arts Magazine, LIII, 2 (oct. 1978), pp. 116-125.

______. «Kasimir Malevich’s “Black Square”: The Transformed Self – Part Two: The
New Laws of Transrationalism». Arts Magazine, LIII, 2 (oct. 1978), pp. 130-141.

______. «Kasimir Malevich’s “Black Square”: The Transformed Self – Part Three: The
Icon Unmasked». Arts Magazine, LIII, 4 (dec. 1978), pp. 126-134.

SPROCCATI, Sandro. «Malevic: il corpo della pittura». Rivista di estetica, XXII, 10


(1982), pp. 64-88.

STACHELHAUS, Heiner. Kasimir Malewich: un conflicto trágico. Trad. Cristina


Buchheister. Barcelona: Parsifal, 1991.

VALABRÉGUE, Frédéric. Kazimir Séverinovitch Malévitch. Marseille: Images en


Manoeuvres Editions, 1994.

VOLPI ORLANDINI, Marisa. «Note sull’avanguardia russa e Kasimir Malevic».


Annali delle Facoltà di Lettere, Filosofia e Magisterio dell’Università di Cagliari,
1970. Estratto vol. XXXIII

ZHADOVA, Larissa A. Malevich: Suprematism and Revolution in Russian Art 1910-


1930. London: Thames and Hudson, 1982.

275
SOBRE E DE KURT SCHWITTERS

AA. VV. Kurt Schwitters. Paris: Centre Georges Pompidou, 1994.

BAILLY, Jean-Christophe. Kurt Schwitters. Paris: Hazan, 1993.

BAZZOLI, François. Kurt Schwitters: «l'art m'amuse beaucoup»: biographie 1887-


1948. Marseille: Images en Manoeuvres, 1991.

CAMPOS, Haroldo de. «Kurt Scwitters ou o Júbilo do objeto». In: ______. A arte no
horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1977.

DIETRICH, Dorothea. The collages of Kurt Schwitters: tradition and innovation.


Cambridge and New York: Cambridge University Press, 1993.

DORFLES, Gillo. Kurt Schwitters. 21 april a 8 maggio 1959. Milano: Galleria del
Naviglio, 1959.

ELDERFIELD, John. Kurt Schwitters. London: Thames and Hudson, 1985.

FAGIOLO DELL’ARCO, Maurizio. «“Merz” o dell’arte totale». L’Arte, I nuova


ediziione, LXXX della fondazione (1968), pp. 3-4 e 5-30.

GAMARD, Elizabeth Burns. Kurt Schwitters Merzbau: The Cathedral of Erotic Misery.
New York: Princeton Architectural Press, 1998.

HAUSMANN, Raoul. «Antidada et Merz». In: ______. Courrier Dada. Paris: Allia,
1992, pp. 105-125.

Kurt Schwitters. Milano: Galleria Blu, 1996.

Kurt Schwitters. Amsterdam: Stedelijk Museum, 1956.

Kurt Schwitters. London: The Tate Gallery, 1985.

Kurt Schwitters y el espíritu de la utopía: colección Ernst Schwitters. Museu de Arte


Abstracto Español. Cuenca: Fundación Juan March, 1999.

LACH, Friedhelm (einleitung von). Kurt Schwitters Merzjefte: Als faksimile-nachdruck.


Bern und Frankfurt: Verlag Herbert Lang+Cie AG, 1975.

MACCHI, Fabiana. «Kurt Schwitters: o dadaísta que era Merz». Sibila. Revista de
poesia e cultura, 3, IV (2003), pp. 78-87.

MARCHÁN, Simón. «La actualidad de Kurt Schwitters». Goya, 121 (jul.-ago. 1974),
pp. 22-31.

Merz = Schwitters. New York: Marlbourough Gallery, 1973.

276
MEYER-BÜSER, Susanne; ORCHARD, Karin (ed.). Merz: In the Beginning Was
Merz – From Kurt Schwitters to the Present Day. Trad. Fiona Elliott. Ostfildem-Ruit:
Hatje Cantz Publishers, 2000.

O’DOHERTY, Brian. «O olhar e o espectador». In: ______. No interior do cubo


branco: a ideologia do espaço na arte. São Paulo: Martins Fontes, 2002. pp. 31-68.

ORCHARD, Karin; SCHULZ, Isabel (ed.). Kurt Schwitters: Catalogue raisonné.


Ostfildem-Ruit: Hatje Cantz, 2000. 2v.

SCHWITTERS, Ernst. «Non si sa mai». In: Schwitters. Mostra retrospettiva. Aprile-


Maggio 1964. Milano: Toninelli Arte Moderna, 1964.

SCHWITTERS, Kurt. Merz: écrits. Paris: Ivrea, 1990.

STEINITZ, Kate. «Kurt Schwitters». Los Angeles County Museum Bulletin, XIV, 2
(1962), pp. 5-14.

______. Kurt Schwitters: A Portrait from Life. Berkeley and Los Angeles: University of
California Press, 1968.

STIGGER, Veronica. «Kurt Schwitters». Cacto, 4 (primavera 2004), pp. 130-135.

THEMERSON, Stephan. Kurt Schwitters in England: 1940-1948. London:


Gaberbocchus, 1958.

SOBRE E DE MARCEL DUCHAMP

ADCOCK, Craig E. Marcel Duchamp’s notes from the Large Glass: an n-dimensional
analysis. Ann Arbor, Mich.: UMI Research Press, 1983.

ADES, Dawn; COX, Neil; HOPKINS, David. Marcel Duchamp. London: Thames and
Hudson, 1999.

BARILLI, Renato. «Il “punto zero” di Duchamp». NAC – Notiziario Arte


Contemporanea, 5 (nuova serie, mag. 1971), pp. 8-9.

BARUCHELLO, Gianfranco. Why Duchamp: an essay on aesthetic impact. New York:


McPherson & Company, 1985.

BILL, Max. «Max Bill on Duchamp». Studio International, CLXXXIX, 973 (jan.-feb.
1975), pp. 26-27.

BLOCH, Susi. «Marcel Duchamp’s Green Box». Art Journal, XXXIV, 1 (1978), pp.
25-29.

277
BOATTO, Alberto. Ghenos, Eros, Thanatos. Bologna: Galleria de’ Foscherari, 1974.

BONITO OLIVA, Achille. «La delicata scacchiera». In: ______ (a cura de). La delicata
scacchiera. Marcel Duchamp: 1902/1968. Napoli, Palazzo Reale, giugno/luglio 1973.
Firenze: Centro di Iniziativa Culturale, Rassegna del Mezzogiorno, 1973. pp. 27-32.

______. M. D./ A. B. O. Milano: Costa & Nolan, 1997.

BRETON, André. «Marcel Duchamp: Phare de la Mariée». In: ______. Le surréalisme


et la peinture. Paris: Gallimard, 2002. pp. 115-135.

BURNHAM, Jack. «Marcel Duchamp: MAGISTER LUDI». In: ______. The Structure
of Art. New York: George Braziller, 1971, pp. 158-170.

______. «La signification du Grand Verre». Trad. Brigitte Devismes. VH 101, 6 (1972),
pp. 62-110.

BUSKIRK, Martha; NIXON, Mignon (ed.). The Duchamp Effect: Essays, Interviews,
Round Table. Cambridge, Mass. and London: The MIT Press, 1999.

CABANNE, Pierre. Les 3 Duchamp: Jacques Villon, Raymond Duchamp-Villon,


Marcel Duchamp. Neuchâtel: Editions Ides et Calendes, 1975.

CABANNE, Pierre. Duchamp & Cie. Paris: Terrail, 1996.

______. Marcel Duchamp: engenheiro do tempo perdido. Trad. Paulo José Amaral. São
Paulo: Perspectiva, 1997.

CALVESI, Maurizio. Duchamp invisibile: la costruzione del simbolo. Roma: Officina


Edizioni, 1975.

CAMPOS, Augusto de. «Duchamp: o lance de dadá». In: ______. O anticrítico. São
Paulo: Companhia das Letras, 1986. pp. 193-210.

CAPPUCCIO, Elio (a cura di). Duchamp dopo Duchamp. Siracusa: Tema Celeste,
1993.

CARADENTE, Giovanni. Duchamp in chiaro. Milano: Rizzoli, 1993.

CARROUGES, Michel. Les machines célibataires. Paris: Chêne, 1976.

CAUMONT, Jacques; GOUGH-COOPER, Jennifer. Effemeridi su e intorno a Marcel


Duchamp e Rrose Sélavy: 1887-1968. Trad. Paula Billingsley. Milano: Bompiani, 1993.

CHALUPECKÝ, Jindrich. «Marcel Duchamp: a Re-evaluation». Artibus et historiae,


11 (1985), pp. 125-136.

278
______. «Nothing but an Artist». Studio International, CLXXXIX, 973 (jan.-feb. 1975),
pp. 30-47.

CLAIR, Jean (org.). Marcel Duchamp – Abécédaires: approches critiques. Paris: Centre
National d’Art et de Culture Georges Pompidou, Musée National d’Art Moderne, 1977.

______. Catalogue raisonné. Paris: Centre National d’Art et de Culture Georges


Pompidou, Musée National d’Art Moderne, 1977.

______. «La fortune critique de Marcel Duchamp». Revue de l’art, 34 (1976), pp. 92-
100.

______. Marcel Duchamp ou le grand fictif: essai de mythanalyse du grand verre. Paris:
Galilée, 1975.

CLAIR, Jean (dir.). Marcel Duchamp: tradition de la rupture ou rupture de la tradition?


Colloque (1977-07-25 / 1977-08-01). Paris: Union Générale d’Éditions, 1979.

COLLIN, Philippe. Marcel Duchamp parle des ready-made. Paris: L’Échoppe, 1998.

COSTESCU, Eleonora. «Marcel Duchamp si spiritu de revoltà». Arta, XV, 12 (1968),


pp. 28-29.

DÉCIMO, Marc. La bibliothéque de Marcel Duchamp, peut-être. Dijon-Quetigny: Les


Presses du Réel, 2002.

DE DUVE, Thierry. «READY-MADE: Le temps du ready-made». In: CLAIR, Jean


(org.). Marcel Duchamp – Abécédaires: approches critiques. Paris: Centre National
d’Art et de Culture Georges Pompidou, Musée National d’Art Moderne, 1977. pp. 166-
184.

______. Resonances du readymade: Duchamp entre avant-garde et tradition. Nîmes:


Jacqueline Chambon, 1989.

D’HARNONCOURT, Anne; McSHINE, Kynaston (ed.). Marcel Duchamp. New York:


Museum of Modern Art, 1973.

DUARTE, Cláudia. Marcel Duchamp: Olhando o Grande Vidro como interface. Rio de
Janeiro: Rios Ambiciosos, 2000.

Les Duchamps: Jacques Villon (1875-1963), Raymond Duchamp-Villon (1876-1918),


Marcel Duchamp (1887), Suzanne Duchamp (1889-1963). Rouen: Musée des Beaux-
Arts de Rouen, 1967.

DUCHAMP, Marcel. Duchamp du signe. Paris: Flammarion, 1994.

______. Manual of Instructions for Étant donnés: 1º la chute d’eau 2º le gaz d’éclairage.
Philadelphia: Philadelphia Museum of Art, 1987.

279
______. Notes. Paris: Flammarion, 1999.

FRATINI, Francesca R. «Marcel Duchamp: dagli inizi ai ready-mades». L’Arte, 5


(1969), pp. 55-79.

GIBSON, Michael. Duchamp, Dada. Paris: Nouvelles Editions Françaises, Casterman,


1991.

GOLDFARB MARQUIS, Alice. Marcel Duchamp: The Bachelor Stripped Bare.


Boston: MFA, 2002.

GOLDING, John. Marcel Duchamp: The Bride Stripped Bare by her Bachelors, Even.
New York: The Viking Press, 1972.

GRAZIOLI, Elio (a cura di). Marcel Duchamp. Milano: Marcos y Marcos, 1993.

HAMILTON, Richard (org.). The Bride Stripped Bare by her Bachelors, Even: a
typographic version by Richard Hamilton of Marcel Duchamp’s Green Box. Trad.
George Heard Hamilton. New York: George Wittenborn, 1960.

HENDERSON, Linda Dalrymple. Duchamp in Context: Science and Technology in the


Large Glass and Related Works. Princeton and New Jersey: Princenton University
Press, 1998.

HILL, Anthony. «The Spectacle of Duchamp». Studio International, CLXXXIX, 973


(jan.-feb. 1975), pp. 20-22.

HOPKINS, David. Marcel Duchamp and Max Ernst: The Bride Shared. Oxford:
Clarendon Press, 1998.

HOPPS, Walter; LINDE, Ulf; SCHWARZ, Arturo. Marcel Duchamp: ready-mades,


etc. (1913-1964). Milano: Galleria Schwarz, 1964.

HULTEN, Pontus (org.). Marcel Duchamp. Milano: Bompiani, 1993.

JANIS, Harriet; JANIS, Sidney. «Marcel Duchamp: Anti-Artist». In: MOTHERWELL,


Robert (ed.). The Dada Painters and Poets: An Anthology. London and Cambridge,
Mass.: The Belknap Press of Harvard University Press, 1981.

JANU (intr.). Il grande vetro in Marcel Duchamp, anche. Torino: Galleria Marin, 1975.

JOSELIT, David. Infinite Regress: Marcel Duchamp 1910-1941. Cambridge, Mass. and
London: The MIT Press, 1998.

JOUFFROY, Alain. Marcel Duchamp: rencontre. Paris: Centre George Pompidou,


Dumerchez, 1997.

280
JUDOVITZ, Dalia. Unpacking Duchamp: Art in Transit. Berkley, Los Angeles and
London: University of California Press, 1998.

KUENZLI, Rudolf E., NAUMANN, Francis M. (ed.). Marcel Duchamp: Artist of the
Century. Cambridge, Mass. and London: The MIT Press, 1991.

LAMARCHE-VADEL, Bernard. M.A.J.Y -Magie (Duchamp, Warhol, Beuys, Klein).


Paris: Aux Éditions de La Différence, Galerie Beaubourg, 1988.

LEBEL, Robert. Marcel Duchamp. Paris: Pierre Belfond, 1985.

______. Sur Marcel Duchamp. Paris: Trianon, 1959.

LE LIONNAIS, François. «Marcel Duchamp as a chess player and or two related


matters». Studio International, CLXXXIX, 973 (jan.-feb. 1975), pp. 23-25.

LÉVÊQUE, J-J. «Le règne de Duchamp s’achève». Galerie Jardin des Arts, 165 (jan.
1977), pp. 27-30.

LYOTARD, Jean-François. «Inventaire du dernier nu». In: CLAIR, Jean (org.). Marcel
Duchamp - Abécédaires: approches critiques. Paris: Centre National d’Art et de Culture
Georges Pompidou, Musée National d’Art Moderne, 1977, pp. 87-109.

LYOTARD, Jean-François. Les TRANSformateurs DUchamp. Paris: Galilée, 1977.

Marcel Duchamp. Museum Jean Tinguely Basel. Ostfildem-Ruit: Hatje Cantz


Publishers, 2000.

Marcel Duchamp. 20 marzo – 20 aprile 1972. Torino: Galleria Il Fauno, 1972.

Marcel Duchamp. 19 marzo 9 maggio 1971. Ferrara: Galleria Civica d’Arte Moderna,
1971.

Marcel Duchamp in the Israel Museum. March-may 1972. Jerusalem: The Israel
Museum, 1972.

MIGLIORINI, Ermanno. Lo scolabottiglie di Duchamp. Firenze: Il Fiorino, 1970.

MOLDERINGS, Herbert. «Relativism and a Historical Sense: Duchamp in Muniche


(and Basle...)». In: Marcel Duchamp. Museum Jean Tinguely Basel. Ostfildem-Ruit:
Hatje Cantz Publishers, 2000. pp. 15-23.

NAUMANN, Francis M. Marcel Duchamp: the art of making art in the age of
mechanical reproduction. New York: Harry N. Abrams, 1999.

PAZ, Octavio. Aparencia desnuda. In: ______. Los privilegios de la vista I: arte
moderno universal. México: Fondo de Cultura Económica, 1997.

281
PETERSON, Elmer; SANOUILLET, Michel (ed.). The Writings of Marcel Duchamp.
Trad. Arturo Schwarz («Possible» e «Cast Shadows»), George Heard Hamilton (The
Green Box), Cleve Gray’s (The White Box), David Ball, Ron Padgett, Roger Shattuck,
Trevor Winkfield, Elmer Peterson. New York: Da Capo Press, 1989.

RAMÍREZ, Juan Antonio. Duchamp: el amor y la muerte, incluso. Madrid: Ediciones


Siruela, 1993.

ROBERTS, Francis. «“I Propose to Strain the Laws of Physics”». Art News, LXVII, 8
(dec. 1968), pp. 46-47 e 62-64.

ROWELL, M. «Kupka, Duchamp and Marey». Studio International, CLXXXIX, 973


(jan.-feb. 1975), pp. 48-52.

SCHWARZ, Arturo. «L’alchimista messo a nudo nello scapolo, anche». In: BONITO
OLIVA, Achille (a cura di). La delicata scacchiera. Marcel Duchamp: 1902/1968.
Napoli, Palazzo Reale, giugno/luglio 1973. Firenze: Centro di Iniziativa Culturale,
Rassegna del Mezzogiorno, 1973, pp. 33-50.

______. «Attorno al “Grande Vetro”». Quinta Parete, 4 (1972), pp. 37-44.

______ (org.). The Complete Works of Marcel Duchamp. New York: Delano Greenidge
Editions, 2001.

______. Duchamp. Milano: Fratelli Fabbri Editori, 1978.

______. The Large Glass: And Related Works. Milan: Schwarz Gallery, 1967.

______. Marcel Duchamp. New York: Harry N. Abrams, 1975.

______. «Marcel Duchamp alias Rrose Selavy alias Marchand du Sel alias Belle
Haleine». Data, III, 9 (1973), pp. 30-37.

______ (a cura di). Marcel Duchamp: 66 Creative Years: From the First Painting to the
Last Drawing. 12 dicembre 1972 – 28 febbraio 1973. Milano: Galleria Schwarz, 1972.

STEEFEL, Lawrence. «The Art of Marcel Duchamp». Art Journal, XII, 2 (1962-63),
pp. 72-80.

SUQUET, Jean. Miroir de la mariée. Paris: Flammarion, 1974.

______. Regarder l’heure: sur le ciel de Marcel Duchamp. Paris: L’Échoppe, 1992.

SZEEMANN, Harald (a cura di). Le macchine celibi. Milano: Electa, 1989.

TOMKINS, Calvin. The Bride and the Bachelors: Five Masters of the Avant Garde.
New York: Penguin Books, 1968.

282
______. Duchamp: A Biography. New York: H. Holt, 1996.

VENÂNCIO, Paulo Filho. Marcel Duchamp. São Paulo: Brasiliense, 1986.

VERGINE, Lea. «L’antiarte di Marcel Duchamp». Mostra di Marcel Duchamp. 8


novembre – 4 dicembre 1969. Napoli: Il Centro, 1969.

YOUNG, Mahonri Sharp. «The Old Magician». Apollo, XCVIII (1973), pp. 508-509.

OUTROS

AGAMBEN, Giorgio. Stanze: la parola e il fantasma nella cultura occidentale. Torino:


Einaudi, 1993.

BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral II. Trad. Eduardo Guimarães et


al. Campinas: Pontes Editores, 1989.

BORGES, Jorge Luis. «Las versiones homéricas». In: ______. Obras completas.
Barcelona: Emecé, 1989. v. 1. pp. 239-243.

CAILLOIS, Roger. L’Écriture des pierres. Genéve, Paris: Skira, Flammarion, 1970.

DELEUZE, Giles. Repetição e diferença. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. São
Paulo: Graal, 1988.

ECO, Umberto. Pós-escrito a O nome da rosa. Trad. Letizia Zini Antunes e Álvaro
Lorencini. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

FREUD, Sigmund. «Mas allá del principio del placer». In: ______. Obras completas de
Sigmund Freud – Tomo III. Trad. Luis López-Ballesteros y de Torres. Madrid:
Biblioteca Nueva, 1996, pp. 2507-2541.

______. «Lo sinistro». In: ______. Obras completas de Sigmund Freud – Tomo III.
Trad. Luis López-Ballesteros y de Torres. Madrid: Biblioteca Nueva, 1996, pp. 2483-
2505.

GAY, Peter. Freud: uma vida para o nosso tempo. Trad. Denise Bottmann. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.

HEIDEGGER, Martin. «A questão da técnica». Trad. Emmanuel Carneiro Leão. In:


_____. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2001. pp. 11-38.

ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Trad. Johannes
Kretschmer. vol. 2. São Paulo: 34, 1999.

LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.-B. Vocabulário da Psicanálise. Trad. Pedro Tamen.


São Paulo: Martins Fontes, 1999.

283
MARX, Karl. Para a crítica da economia política. Do Capital. O rendimento e suas
fontes. Trad. Edgard Malagodi. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

RUDNYTSKY, Peter L. Freud e Édipo. Trad. Maria Clara Cescatto. São Paulo:
Perspectiva, 2002.

284

Você também pode gostar