Você está na página 1de 10

1ª Edição 2015

Editores
Denise Corrêa e Daverson Guimarães

Capa
Romulo Matteoni // 2mL Design

Projeto gráfico e diagramação


Romulo Matteoni + Amanda Pierantoni

// 2mL Design

Av. Pedro Calmon 550 – Térreo


Rio de Janeiro – RJ
Telefone: 2252-0084
CAIXA POSTAL 68544 – CEP 21941-972

RIO DE JANEIRO

contato@riobooks.com.br
www.riobooks.com.br

_________________________________
Malta, Marize; Neto, Maria João; Cavalcanti, Ana; Dioní-
sio, Emerson; Couto, Maria de Fátima Morethy
Dos cafés parisienses aos botequins cariocas Rio de
Janeiro: Rio Book’s / Faperj - 1a. Edição 2015
240p. Formato 16 x 23 cm

ISBN 978-85-61556-68-6

1. Urbanismo. 2. Espaço público. 3. Calçada. 4. Cafés -


Paris (FR). 5. Bares - Rio de Janeiro (RJ). I. Título.

CDD: 711

__________________________________
Todos os direitos desta edição são reservados a:
Editora Grupo Rio Ltda.
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida
ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer
meios (eletrônicos ou mecânicos, incluindo
fotocopias e gravação) ou arquivada em qualquer
sistema de banco de dados sem permissão escrita
do titular do editor.
Os artigos e as imagens reproduzidas nos textos são
de inteira responsabilidade de seus autores.
HISTÓRIAS DA ARTE
EM EXPOSIÇÕES
EXPOSIÇÕES

Sumário

7 Apresentação 153 1965. Propostas para uma crise


Ana Maria Tavares Cavalcanti, Emerson Dionísio de Paulo Reis
Oliveira, Maria de Fátima Morethy Couto e Marize Malta
161 1967. IV Salão de Arte Moderna de Brasília:
11 A exposição como máquina interpretativa os últimos modernos
Jean-Marc Poinsot Emerson Dionísio de Oliveira

31 1829-1830. Jean Baptiste Debret e os conflitos das 171 1970. Do Corpo à Terra: exposição-limite
primeiras exposições do Brasil Artur Freitas
Elaine Dias
189 1974. A rede em exibição: Walter Zanini e o MAC USP
41 1879. Realizações e dilemas de arte brasileira do Cristina Freire
século XIX
Sonia Gomes Pereira 199 1978. A Bienal de São Paulo torna-se latino-americana
Isobel Whitelleg
55 1884. Dos velhos mestres à nova geração
Ana Maria Tavares Cavalcanti 213 1984. Como vai você, Geração 80?
De Orwell ao Parque Lage
69 1901. Exposição (de Visconti) na ENBA: Ivair Reinaldim
artes e decorativas
Marize Malta 227 1997. Bienal do Mercosul: Reescrever a História da
Arte na América Latina
85 1922. Semana de arte moderna: uma revisão crítica Bianca Knaak
Annateresa Fabris
243 2009. Sobre a mostra Olhar e Fingir:
101 1944. Do pincel à Gilete: a arte moderna em Transtemporalidades na trilha da ficção fotográfica
Belo Horizonte Fernando de Tacca
Rodrigo Vivas
252 Referências
119 1949. A fotografia moderna chega ao museu:
os Estudos Fotográficos de Thomaz Farkas 272 Sobre os autores
Helouise Costa

137 1951. Arte e internacionalização:


a I Bienal Internacional de São Paulo
Maria de Fátima Morethy Couto
LISTA DE PREÇOS

Nº 1 .................... 7:000$000

Nº 2 .................... 2:000$000
1922.
A Semana de Arte Moderna:
Nº 3 .................... 3:000$000

Nº 4 .................... 2:500$000

Nº 5 .................... 1:200$000 uma revisão crítica


Nº 6 ................... 10:000$000

Nº 7 ................... 6:000$000
Annateresa Fabris
Nº 8 ................... 800$000

Nº 9 .................. 700$000

Nº 10 ................. 300$000
Lembrando que os modernistas se debatiam “com o passado recente que não passava e
Nº 11 ................. 450$000 com o novo que já tardava”, Francisco Alambert considera que, por essa característica, a
Semana de Arte Moderna
Nº 12 ................. 300$000
é o mais importante fato histórico do Brasil moderno, do ângulo da história da cultura. Por ser
Nº 13 ................. 150$000
esse fato, ela ganha outra existência, uma existência histórica. Ela é assim inventada e desinventada,
Nº 14.................. 1:800$000 amada e odiada, reconstituída e desconstruída em todos os momentos em que a história do Brasil
Nº 15 ................. 150$000 moderno, de suas utopias e distopias, precisa ser posta na ordem do dia ou no silêncio da noite.106

Nº 16 ................. 300$000 Se a Semana “nasceu para ser mito, para ser criada e recriada, para ter caráter marcante
Nº 17 .................. 200$000 e transformador”,107 o que se impõe nesse momento é tentar destrinchar sua história a
partir de interrogações sobre sua gênese, seus desdobramentos e seus alcances, pois nesses
Nº 18 .................. 400$000
aspectos reside boa parte das críticas feitas a ela.
Nº 19 .................. 300$000
Com sua notória verve, Oswald de Andrade assim evoca a gênese do evento:
Nº 20 .................. 500$000
Antonio foi à casa de Paulo, que o levou ao quarto de José, que lhe mostrou os versos de Pedro, que
Nº 21 .................. 300$000 lhe contou que João era um gênio e que Carlos pintava. E saíram todos para descobrir Maricota.
Apenas, esses indivíduos entre outros chamavam-se Mário de Andrade, Menotti del Picchia, Di
Cavalcanti, Heitor Villa-Lobos, Anita Malfatti.108
L. DE RENNES & Cª. Rua dos Ourives, 31 – Rio
de Janeiro Com essas palavras, o escritor reporta-se à rede de amizades e de cumplicidades que esta-
va se articulando em São Paulo desde fins de 1920 (da qual não fazia parte Villa-Lobos),
mas elas não são suficientes para determinar como surgiu a ideia de realizar as três noita-
das de fevereiro de 1922. Um dos participantes do evento, Yan de Almeida Prado, afirma
que a iniciativa foi engendrada na residência de Paulo Prado, durante uma reunião que
incluía “escritores, rabiscadores, clubmen e comerciantes” como René Thiollier, Guilher-
me de Almeida e o “caricaturista Di Cavalcanti, que do Rio de Janeiro viera tentar me-
lhoria de vida na Pauliceia”. Durante a conversa, Marinette, esposa do anfitrião, sugeriu
que “a projetada reunião tivesse aspectos dos desfiles de modas femininas em Deauville”.
Essa versão, esposada por Aracy Amaral, para quem a Semana foi uma versão “agressiva”
HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES ANNATERESA FABRIS

do festival francês, e Márcia Camargos, que aponta o deiro” do evento: “E só mesmo uma grande figura como ele e uma cidade grande mas
caráter compósito dos desfiles de Deauville, caracterizados provinciana poderiam fazer o movimento modernista e objetivá-lo na Semana”.112
pela associação de moda, música, declamação e mostras de Esses aspectos sublinhados por Andrade são fundamentais para entender a realização
pintura,109 merece ser revista, pois existem outros indícios do evento, já que São Paulo, apesar de moderna em termos materiais, não dispunha
a apontarem para uma gênese menos mundana. de um ambiente cultural à altura do processo de modernização que a estava transfor-
Numa das “Crônicas de Malazartes”, publicada em mando profundamente. Embora agentes desse processo, a burguesia e o fenômeno da
abril de 1924, Mário de Andrade atribui a ideia a imigração se chocavam com as pretensões de renovação da nova geração. Para atingir
Emiliano Di Cavalcanti, recém-chegado do Rio de seus objetivos, esta necessita da aliança com a fração mais europeizada da aristocracia
Janeiro. De seu contato com o grupo modernista, teria rural, que se sentia ameaçada pelos novos atores sociais.
surgido a proposta de “um salão de pintura e escultu- Os desfiles de Deauville serviram realmente de modelo para o festival de fevereiro de
ra, com tardes literárias em que se recitariam versos e 1922? Ao evocar o nome de Filippo Tommaso Marinetti e ao associá-lo, de saída, a
conferências”. A primazia do pintor carioca é também Graça Aranha, sequioso de renovar o sucesso obtido com Canaã (1902), Almeida Prado
defendida por Rubens Borba de Moraes, que lembra fornece elementos para propor uma leitura do evento em chave futurista. De sua visão
a frustração do amigo com os escassos resultados da negativa do “esfuziante Marinetti”, brota um quadro malévolo do primeiro pós-guerra,
mostra Os Fantoches da Meia Noite, apresentada nas caracterizado por
dependências de O Livro, de Jacinto Silva, em no-
vembro de 1921. Para acabar com a “indiferença do processos publicitários favoráveis a autores desconhecidos, em que forçosamente predominava o
público”, Di Cavalcanti teria manifestado a ideia de simulador de talento. Manifestos revolucionários eram publicados por grupos e grupelhos, revistas
106 ALAMBERT, 2013: 167-168.
organizar “uma grande exposição moderna, um salon se fundavam para “lançar gênios”, exposições se sucediam profusamente anunciadas urbi et orbi no
107 ALAMBERT, 2013: 168.
des indépendants ou coisa que o valha”.110 A livraria de intuito de exibir obras-primas somente compreendidas por “espíritos superiores”, etc... Das emana-
108 ANDRADE, 1992: 99.
Silva é também central nas memórias do próprio pintor ções vindas de fora não escapariam nossos indígenas também sequiosos de “reclame” e das vantagens
109 PRADO, 1976: 11; AMARAL, 1976:
e de Guilherme de Almeida. De uma conversa entre os que podia proporcionar.113
123; CAMARGOS, 2002: 76.

110 Criado em 1884, por iniciativa


dois teria brotado a ideia de um “programa mais vasto,
Prosseguindo em suas considerações, o autor traça um panorama pré-Semana eivado de
de Georges Seurat, Odilon Redon, com outras exposições, outras conferências e mesmo
Paul Signac e Albert Dubois-Pillet, categorias futuristas. Interessados em “sacudir a modorra provinciana”, os personagens
recitais de música”, apresentada ao livreiro e possível
integrantes da Sociedade dos Artistas envolvidos no evento apreciavam “um movimento tido por proveitoso, nem que fosse
Independentes, o Salão dos Inde- “germe” da Semana.111
pendentes opunha-se aos critérios
produto de escândalo. (...) Assim sendo, verificava-se nos principais elementos artísticos
acadêmicos e restritivos do Salão ofi- Atribuir a Di Cavalcanti a ideia de uma semana de arte da Semana tendência sensível ao ‘reclamismo’ dispensador de notoriedade”. Não faltam
cial. Para participar dele, os artistas moderna não implica desconhecer o papel exercido por
só deveriam pagar uma taxa, pois não
farpas para os dois principais articuladores do modernismo, que “da sombra emergiam
havia júri de seleção. Principal divul- Graça Aranha em sua concretização. Ao visitar a mostra sedentos de estardalhaço, saísse de onde saísse, no intuito de ultrapassar os companheiros
gador do neoimpressionismo, sofre, no de O Livro, o escritor precipita os acontecimentos, dan- na ascensão à fama”. À “dobradinha Marioswald de Andrade” são atribuídos vários traços
começo do século XX, concorrência do
Salão de Outono que, embora liberal,
do ares factíveis ao projeto “sempre adiado. Inexequível, deploráveis: “simulação de talento, seguida de falsa sabedoria e erudição, subterfúgios,
era mais seletivo. O Salão de Outono pela fraqueza das nossas forças”, conforme depoimento conquista de inocentes úteis, intrujices de todo gênero”.114
foi fundado em 1903 por iniciativa dos
arquitetos Frantz Jourdain, Hector Gui-
de Mário de Andrade. Por seu intermédio, o grupo,
De que modo essa visão viperina pode servir de baliza para uma análise da Semana
mard e dos pintores Eugène Carrière, constituído por Di Cavalcanti, Mário de Andrade,
Félix Vallotton, Édouard Vuillard, entre de Arte Moderna? Expurgada de seu viés negativo, ela permite enfatizar uma série de
Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia e Guilherme
outros. Acolhia todas as técnicas características futuristas que estão na base do festival: escândalo planejado, capitalização
artísticas, inclusive a fotografia, a de Almeida, é apresentado a Paulo Prado, que conse-
partir de 1904.
dos insultos e das vaias, provocação de um conflito entre artistas e público, ocupação do
gue a cessão do Teatro Municipal, além de dar início a
principal espaço cultural de São Paulo, promoção de um evento coletivo e multidisci-
111 Cf. GONÇALVES, 2012: 254, 258. uma lista de doações entre os barões do café. O finan-
plinar, opção por mostrar obras ainda incipientes, mas portadoras de possibilidades de
112 Cf. GONÇALVES, 2012: 254; ANDRADE, ciamento conseguido por Prado é determinante para a
2005: 238. contrastar os códigos artísticos hegemônicos.
concretização do projeto. Mário de Andrade atribui a
113 PRADO, 1976: 12. este a possibilidade de realizar uma ideia “audaciosa” e A carta que Mário de Andrade escreve a Menotti Del Picchia pode ser considerada um
114 PRADO, 1976: 14. “dispendiosíssima”, definindo-o como o “fator verda- resumo eloquente das motivações do grupo. Tendo como mote as vaias que acom-

86 87
HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES ANNATERESA FABRIS

panharam a apresentação dos poetas na noite de 15 de cantarolice toda do “Guarani” e do “Schiavo”, inexpressiva, postiça, nefanda. E quando nos falam
fevereiro, o escritor faz referência à armadilha em que no absorvente gênio de Campinas, temos um sorriso de alçapão, assim como quem diz: – É verda-
caíram os “araras”, cujo resultado não foi o vitupério e de. Antes não tivesse escrito nada... Um talento!116
sim a “celebridade”. Andrade é bem incisivo e irônico
em suas considerações: O ataque não se resume à figura do músico, já que o propósito do artigo é mais amplo:
pôr em xeque a “ópera convencional, com tenores cheios de rouge e de tombos finais,
Somos todos pseudofuturistas, uns casos teratológicos. Somos com sopranos roliças e estranguladas de hipocrisia lírica”. Outro alvo é uma figura-sím-
burríssimos. Idiotas. Ignorantíssimos. Compreendes que com todas bolo da nacionalidade, Peri, reduzido a uma caricatura carnavalesca. Os termos usados
essas qualidades só havia um meio de alcançar celebridade: lançar não poderiam ser mais insultuosos: o protagonista de O guarani é apresentado “a berrar
uma arte verdadeiramente incompreensível, fabricar o carnaval da forças indômitas em cenários terríveis”, trajando um “maillot cor de cuia” e usando “vis-
“Semana de Arte Moderna” e... deixar que os araras falassem.115 toso espanador na cabeça”.117
O escândalo planejado não reside apenas na confron- O acerto da estratégia de Andrade pode ser comprovado por dois elementos:
tação com os “araras”. Ele antecede as três noitadas do • o debate travado por Menotti Del Picchia (Correio Paulistano) e Oscar Guanabarino
Teatro Municipal, tendo em Oswald de Andrade seu (Jornal do Comércio) entre 23 de fevereiro e 18 de março, motivado, nos dizeres do
agente principal. O escritor, que já se destacara por segundo, pelo “desrespeitoso artigo” que denegria a figura de Gomes118;
devolver ao academismo a acusação de falta de força e de
personalidade feita contra a nova geração, publica, em • a polêmica criada pela Folha da Noite, a princípio simpática à nova estética, no arti-
12 de fevereiro, um artigo altamente provocador, cujo go dedicado à noitada de 13 de fevereiro. O jornal lança uma acusação de homos-
alvo é Carlos Gomes. Abrindo mão dos chistes sintéticos sexualismo sobre Oswald de Andrade, tomando como pretexto o contraponto entre
aplicados a Rodolpho Bernardelli (“o pior marmorista do o “olhar de fera americana” de Gomes e os “olhos dos homens que compreendem e
mundo”), Oscar Pereira da Silva (“o homem das litogra- amam os homens”, prerrogativa de Villa-Lobos. A partir dessa frase, “que revela ten-
fias”), Rosalina Coelho Lisboa (“uma parnasiana de carro dências que não podem figurar na Arte, mas estariam muito bem e à vontade dentro
estandarte no carnaval dos versos medidos”) e ao próprio de um certo capítulo de psicopatologia”, o jornal justifica a própria “prevenção” con-
Gomes (representante da “decadência melódica italiana, tra o evento, poupando apenas as figuras de Graça Aranha e Ronald de Carvalho.119
seção cançoneta heroica”), o escritor lança-se numa longa Não contente de ter produzido um fato escandaloso para ampliar o alcance da Semana
diatribe contra este, por ter percebido que os argumentos de Arte Moderna, Oswald de Andrade parece ter usado outra estratégia futurista, se for
esgrimidos por Mário de Andrade, Menotti Del Picchia verdade a contratação de estudantes de Direito incumbidos de conferir um tom belicoso
e por ele próprio não haviam surtido o efeito desejado. à noitada dedicada à poesia. O primeiro alvo dos ataques é logo ele, que é acolhido por
O escândalo, planejado desde o primeiro parágrafo do “uivos, gritos, pateadas no assoalho, risadas, dichotes chistosos ou impertinentes”, na
artigo, é guiado pela vontade de estabelecer um contraste evocação de Menotti Del Picchia. Uma vaia ainda maior é reservada a Mário de An-
entre duas concepções de arte: a “passadista”, representada drade, o qual, vinte anos mais tarde, lembra que permaneceu no palco “porque estava
pelo compositor campineiro, e a “futurista”, emblemada delirando. O entusiasmo dos outros me embebedava, não o meu. Por mim, teria cedido.
em Heitor Villa-Lobos. O que está em jogo no texto de Digo que teria cedido, mas apenas nessa apresentação espetacular que foi a Semana de
115 HÉLIOS, 23 fev. 1922. Andrade é a desconstrução de um valor consagrado, ao Arte Moderna. Com ela ou sem ela, minha vida intelectual seria o que tem sido”.120 O
116 Cf. FABRIS, 1994: 149-150; qual é oposta a visão superlativa de um Villa-Lobos “filho jornal O Estado de S. Paulo, que compara a atmosfera do segundo festival com “a famosa
ANDRADE, 12 fev. 1922.
comovido de seu século”, cuja música revela “uma sensi- noite de estreia de Tórtola Valencia”, levanta a hipótese da presença de “uma claque de
117 ANDRADE, 12 fev. 1922. bilidade cantante através de todas as desordens, de todos novo gênero”, cujas “frases e atitudes menos respeitosas atingiram algumas vezes artistas
118 Para dados ulteriores sobre a os choques, de todos os saltos frios, de todas as invasões respeitáveis pelo seu talento e o seu passado”.121
polêmica, ver: FABRIS, 1994: 175-179.
abismais”. Na contramão dessa atitude simpática à nova
119 “No mundo da arte: Semana de
Mesmo que mediada por Paulo Prado, a ocupação do eclético Teatro Municipal, símbolo
música, a abertura do artigo é marcada pelo sarcasmo e
Arte Moderna”, 14 fev. 1922. da pujança cultural da cidade desde 1911, é mais uma estratégia futurista, se for lembra-
por uma vontade explícita de dessacralização:
120 Cf. GONÇALVES, 2012: 297; ANDRADE, do que o movimento italiano buscava uma relação tensa e cheia de contrastes com os es-
2005: 236. Carlos Gomes é horrível. Todos nós o sentimos desde pequeni- pectadores. Utilizar o espaço do teatro era congenial aos objetivos do grupo de Marinetti,
121 VER NA PÁGINA 99 nos. Mas como se trata de uma glória da família, engolimos a já que as noitadas futuristas tinham uma evidente estrutura teatral, alicerçada no contato/

88 89
HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES ANNATERESA FABRIS

choque entre artistas e público. Comícios poéticos e po- precursores”. A estes, contrapõe a figura de Manuel Bandeira, cujo Carnaval (1919) “fora
líticos, as noitadas eram abertas por um pronunciamento descoberto por um acaso de livraria”, afirmando que os nomes dos demais poetas eram
violento contra o passado. A este seguiam-se declamações ignorados em São Paulo “porque os interesses imperialistas da Corte não eram nos man-
poéticas, a execução de trechos musicais, declarações dar ‘humilhados ou luminosos’, mas a grande camelote acadêmica, sorriso da sociedade,
programáticas, num clima cada vez mais violento, para o útil de provinciano gostar”.123
qual era fundamental a participação da plateia. Ocupar o A essa declaração, que demonstra a inexistência de um projeto programático, podem ser
espaço do teatro tinha um significado simbólico para os acrescentadas outras considerações que corroboram a sensação de um quê de improviso e
futuristas: suas manifestações ruidosas e violentas punham de conciliação de interesses contrastantes na definição da estrutura do evento. De acordo
em xeque a estagnação da dramaturgia burguesa justa- com Borba de Moraes, Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Di Cavalcanti foram
mente no local preferido pela burguesia para celebrar seus incumbidos da elaboração do programa, mas é possível pensar que Paulo Prado e Graça
ritos culturais. Além disso, as noitadas comportavam uma Aranha tenham participado igualmente da definição dos nomes dos convidados. Não
espetacularização da apresentação artística em virtude do deixam de surgir divergências. Borba de Moraes, para quem o evento deveria incluir
surgimento de um novo tipo de mediador cultural, que “exclusivamente modernistas e não uma porção de gente sem importância”, discorda
não se confundia com as figuras do “ator”, do “conferen- veementemente da presença de Guiomar Novaes, que transformaria o festival num “sarau
cista”, do “autor” ou do “diretor”. Tratava- se, antes, como literomusical de cidade do interior”.124
escreve Lia Lapini122, de “uma estranha espécie de malaba-
ristas ou de bufarinheiros, ou de eufóricos goliardos”, que Uma análise, embora rápida, dos participantes do festival ajudará a traçar um panorama
viravam pelo avesso os antigos papéis dos que se exibiam da arte moderna apresentada nas três noitadas de fevereiro de 1922. Em termos literários,
no recinto teatral. nota-se o predomínio de um pós-simbolismo bastante híbrido, que abarcava o decaden-
tismo (Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida), a assimilação
O fato de só o segundo festival ter um aspecto clara- de sugestões crepusculares (Manuel Bandeira) e penumbristas (Ribeiro Couto)125, o neos-
mente violento não retira do evento a possibilidade de simbolismo (Ronald de Carvalho) e experiências com o verso livre (Mário de Andrade).
uma leitura em chave futurista, já que este apresenta uma
estrutura próxima daquela das noitadas. Outro aspecto A mostra de artes visuais é dominada pela presença das duas figuras-símbolo do moder-
deve ser ressaltado no caso brasileiro: a aliança entre os nismo paulista: Anita Malfatti e Victor Brecheret. A participação da pintora com parte
modernistas e a elite tradicional visava criar um contraste das obras apresentadas na exposição de 1917 reveste-se de um significado preciso: o reco-
com a burguesia, a qual, embora fosse um dos agentes nhecimento, por parte do grupo, de seu papel pioneiro na instauração da arte moderna
do processo de modernização de São Paulo, se mostrava no Brasil. Se a seleção confirma esse papel, nota-se, ao mesmo tempo, a preocupação da
retrógrada no plano cultural. artista com uma arte de caráter nacional, patente nos títulos de duas obras (Baianas e
Moemas). Além disso, um quadro como Flores Amarelas evidencia a alteração de rumos
A seleção dos nomes para participar do evento tem sido de sua poética a partir de 1918, a qual será confirmada com a viagem a Paris em 1923.
um dos pontos mais polêmicos na bibliografia dedicada Brecheret, por sua vez, apresenta doze esculturas, caracterizadas por um naturalismo não
ao modernismo. Na conferência-balanço de 1942, Mário isento de sugestões luminosas e pela busca de uma estilização linear, devedora das lições
de Andrade bosqueja um perfil cultural dos semanistas. de Arturo Dazzi, Ivan Mestrovic, Medardo Rosso e Auguste Rodin.
Educados “na plástica ‘histórica’, sabendo quando muito
da existência dos impressionistas principais, ignorando Tendências variadas podem ser notadas nos demais artistas que participam da
Cézanne”, os futuros modernistas têm “a revelação” do mostra. Em Di Cavalcanti predominam o penumbrismo (Retrato, c. 1920), certo
expressionismo e do cubismo diante dos quadros expostos romantismo na maior parte dos desenhos e pastéis e “experiências cubistizantes”,
por Anita Malfatti em 1917. O escritor não deixa de re- como ele próprio afirma, em Café Turco (1921).126 John Graz, recém-chegado da
122 LAPINI, 1977: 38.
bater as tentativas de transplante para o Rio de Janeiro das Suíça, expõe quadros realizados em Genebra, nos quais ora demonstra uma deriva-
123 ANDRADE, 2005: 236, 238.
raízes do movimento em virtude das manifestações im- ção da expressão sintética e geometrizante de Ferdinand Hodler, ora a busca de uma
124 Apud: GONÇALVES, 2012: 269-270.
pressionistas e pós-simbolistas que lá vicejavam, criticando construção tectônica de inspiração cézanniana. A participação de Vicente do Rego
125 BOSI, 1970: 376-377. “esse evolucionismo a todo transe, que lembra nomes de Monteiro é marcada pela heterogeneidade: no saguão do Teatro Municipal apresenta
126 AMARAL, 1976: 178. um Nestor Vítor ou Adelino Magalhães, como elos ou obras impressionistas, pós-impressionistas, art nouveau, expressionistas e cubistas,
além de evidenciar o interesse por um grafismo oriental e a busca de elementos au-

90 91
HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES ANNATERESA FABRIS

tóctones.127 A Sombra (1922), de Zina Aita, é conside- métricas, e por Georg Przyrembel, cuja Taperinha traz a marca de “um neocolonial
rada por Aracy Amaral uma das obras “mais avançadas bastante afrancesado”.132
das presentes na Semana”.128 Composto de manchas A música, finalmente, injeta uma nota paradoxal no evento, se for levada em considera-
coloridas justapostas, que funcionam como notas cro- ção a seleção de peças de Villa-Lobos. Foram privilegiadas obras de cunho pós-român-
máticas e arabescos, o quadro ressente-se, no entanto, ticos e/ou impressionista, em detrimento de composições realmente inovadoras como
de certo apego ao realismo, visível no tratamento das o poema sinfônico atonal Amazonas (1917) e o Trio para oboé, clarinete e fagote (1921),
figuras dos trabalhadores. peça polirrítmica e destituída de melodia.133
De outras obras apresentadas em fevereiro de 1922 não Essa rápida passagem pelos protagonistas da Semana evidencia a ausência de vários
existem registros que permitam avaliar sua contribuição artistas modernos que poderiam ter participado dela. Num artigo publicado em março
a uma definição de arte moderna. Não se sabe quase de 1922, Júlio Freire coloca o evento sob o signo do esquecimento proposital, repor-
nada sobre Alberto Martins Ribeiro, que fazia “desenhos tando a atitude do grupo a uma característica da vida cultural da cidade, dividida em
de cabeça, de imaginação”, conforme depoimento de rodas literárias:
Di Cavalcanti, e que morreu jovem, provavelmente na
Não faz muito tempo o exclusivismo de um dos grupos fez com que os seus membros resolvessem
Itália.129 A Natureza Dadaísta, de Ferrignac (Ignácio da
efetuar em público uma grande sessão de... esquecimento.
Costa Ferreira), perdeu-se, mas é improvável que se tra-
tasse de um trabalho niilista. Não obstante Sérgio Milliet
Não pensem os leitores que a intenção era impor ao público os nomes dos que nela tomaram vaiada
o situasse na “extrema esquerda do movimento paulis-
a parte: não! Melhor que ninguém eles sabem que para se impor é preciso que o público conheça
ta”,130 a obra deveria ser uma boutade, já que as estiliza-
127 ZANINI, 1997: 62, 107, 112. a obra dos candidatos. Não. A intenção era positivamente fazer esquecer os outros que ali não
ções de suas caricaturas nada tinham de dadaísta. Além
estavam funcionando!134
128 AMARAL, 1976: 180. Num artigo
disso, o radicalismo do movimento europeu não era bem
publicado na revista belga Lumière,
em abril de 1922, Sérgio Milliet visto, naquele momento, pelos modernistas, os quais à Por que os nomes de pintores como Eliseu Visconti, Giovanni Battista Castagneto, Bel-
define Aita “mais bizarra que original, sua tabula rasa opunham a busca de novos instrumentos miro de Almeida e Artur Timóteo da Costa, de caricaturistas como Voltolino, J. Carlos,
amando sobretudo a cor e moderna
sobretudo nisso, pois ela conservou capazes de celebrar a civilização industrial que estava se Nair de Teffé e Belmonte, de arquitetos como Victor Dubugras e Antonio Virzí, de
um certo realismo no desenho que configurando em São Paulo. Também foram perdidos os poetas como Mário Pederneiras e Olegário Mariano, por exemplo, não foram cogitados
não é de bom quilate”. Cf. MILLIET,
2008: 131.
dois desenhos apresentados por J. F. de Almeida Prado para o evento? Não existem dados suficientes para compreender esse rol de exclusões, a
(Yan de Almeida Prado), que afirma ter participado da não ser no caso de Alphonsus de Guimaraens: o poeta, definido por Oswald de Andrade
129 GONÇALVES, 2012: 43.
exposição “à guisa de divertimento”. Com a colabora- “um lutador da arte nova”, cuja reação contra o atraso nacional seria “rigorosamente con-
130 MILLIET, 2008: 132.
ção do ilustrador Antônio Paim Vieira, teria realizado tinuada” pelos jovens paulistas,135 havia falecido em 1921. Pode-se, porém, aventar uma
131 AMARAL, 1976: 187-188. Ruth
Sprung Tarasantchi (1988: 103) apre-
colagens com papéis vermelhos e amarelos, rabiscando hipótese: elas foram possivelmente ditadas pelo desconhecimento do campo artístico
senta outra versão da participação sobre eles traços pretos e brancos. As colagens ganharam nacional, pela pouca familiaridade dos semanistas com a arte moderna e por uma visão
de Paim Vieira. Não convidado por ser
títulos bizarros – Le faune rassasié, Une anglaise m’a dit negativa do impressionismo.136 As “ausências” não justificam, no entanto, a acrimônia de
um “desenhista comercial”, o artista
teria participado da mostra graças à e Galippolinaire – para serem coerentes com a poesia Paulo Herkenhoff em relação a Mário de Andrade e Anita Malfatti. O escritor é acusado
colaboração de Almeida Prado. Este “absurda” praticada pelos modernistas.131 de “malandragem” por resumir o Rio de Janeiro ao tradicionalismo, “desvalorizar o
teria apresentado como próprios dois
desenhos realizados pelo amigo, um Também estiveram presentes os escultores Wilhelm ambiente que não conhecia, fingir não conhecer um histórico de atitudes críticas de resis-
dos quais representava um casal
Haarberg, conhecido de Mário de Andrade, que deve tência à Academia (...), não dar relevo ao conservadorismo de São Paulo, negar a grande
dançando maxixe.
ter apresentado peças de teor arcaizante e portadoras de diversidade do ambiente moderno carioca, mas adotar uma posição de neutralidade com
132 AMARAL, 1976: 156.
algumas afinidades com o expressionismo, e Hildegar- respeito aos acadêmicos de São Paulo”. Mário de Andrade teria projetado sobre a então
133 KIEFER, 1981: 44, 52, 56, 93.
do Leão Velloso, cujo nome não consta do catálogo e capital do país o que conhecia da própria cidade, “meio promíscuo entre desejo moder-
134 FREIRE, 2008: 303-304. nista e conservadorismo”, dominado pelas figuras de três acadêmicos: Benedito Calixto,
cuja trajetória posterior não permite aproximá-lo de
135 Apud: MARQUES, 2011: 37-38.
uma atitude modernista. A arquitetura é representada Oscar Pereira da Silva e Pedro Alexandrino.137
136 VER NA PÁGINA 99 por Antonio García Moya, autor de projetos ecléticos Quanto à pintora, pode-se ser aceito o argumento de que seu expressionismo não é “qua-
137 HERKENHOFF, 2002: 26-27. e imaginativos, em que predominavam estruturas geo- litativamente superior” ao impressionismo de Castagneto e Visconti, é, no entanto, difícil

92 93
HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES ANNATERESA FABRIS

negar seu papel de desbravadora. Herkenhoff, porém, Essas observações não pretendem obliterar o fato de que, em 1917, a artista estava
enfrenta essa tarefa a partir de duas perguntas capciosas: expondo ao lado de obras realizadas nos Estados Unidos alguns quadros pintados no
“Sacrificada onde? E por quem?”. Sem dar-se conta, o au- Brasil, portadores de uma visão nacionalista: Tropical, Caboclinha, Capanga, Paisagem
tor acaba respondendo às próprias perguntas, ao escrever de Santo Amaro, A Palmeira e Rancho de Sapé. Tomando Tropical como objeto de
que, em 1922, Malfatti havia dado para trás, “abatida com análise, Tadeu Chiarelli levanta um conjunto de questões que merecem ser retidas: o
as críticas severas de Monteiro Lobato, que lhe custaram a título original da obra era Negra Baiana, revelando uma visão de cunho naturalista,
pulsão expressionista”. “Expressionista ocasional”, faltaria que se perde com a nova denominação, de caráter alegórico; ao optar por esse tema, a
à artista “a densidade do sujeito expressionista. Teve uma pintora manifestava preocupações extrínsecas à obra, denotando o desejo de participar
ansiedade do novo, mas nenhuma Angst”.138 do debate sobre o nacionalismo na arte brasileira, que estava sendo travado naquele
momento; há uma dessintonia entre o detalhamento das frutas e o realismo sintético
Em 1996, eu também havia me perguntado se Malfatti
da figura, que se distancia do tratamento dado a uma obra como A Boba (1915-1916),
foi, de fato, expressionista. Ou se, no seu caso, o expressionismo construída a partir de valores cromáticos. Essas constatações levam o autor a afirmar
138 HERKENHOFF, 2002: 18, 27-28, 30. não passou de um conjunto de formas sabiamente apreendido, sem que a “negra baiana” de Tropical (1917) “se situa num lugar muito próprio, entre o
139 FABRIS, 1999: 179. que a artista penetrasse em sua essência interior, que poderia ser naturalismo mais minucioso das frutas do primeiro plano (...) e as nervosas sínteses de
140 FABRIS, 1999: 171-174. resumida nas palavras de Roger Cardinal: “confiança irrestrita na suas figuras pintadas em Nova York”.142
141 FABRIS, 1999: 174. expressão direta dos sentimentos que se originam da própria vida
Bem mais ponderada é a atitude de Monica Pimenta Velloso, que propõe um reexame
do criador, sem a mediação e a interferência da racionalidade.139
142 CHIARELLI, 2009: 136-138. É
de 1922 como marco, por detectar na data “um momento de confluência de ideias que
possível que a artista não tivesse
consciência dessa mudança de Essa interrogação não excluía, contudo, o reconhecimento já vinham sendo esboçadas pela dinâmica social”. Coerente com esse pressuposto, a
orientação antes da viagem a Paris, autora afirma que a modernidade começa a ser gestada na sociedade brasileira na virada
como comprova uma carta de 1924,
de seu papel pioneiro em 1917, que denominei “aparição”
endereçada a Mário de Andrade: “Vou naquele momento. O termo não me parece exagerado, já do século XIX para o XX, na qualidade de um processo “que vai acarretando mudanças
dar uma notícia ‘bouleversante’ –
que a mostra de dezembro de 1917 enseja um choque de- significativas de percepção do tempo e do espaço, fazendo coexistirem múltiplos valores
Estou clássica! Como futurista morri e
fui enterrrada”. Para justificar o novo clarado entre duas concepções de arte moderna: a de Mal- culturais”. Antes de 1922, o moderno está presente nas “expressões fragmentárias,
rumo, a pintora escuda-se no clima fatti, que expõe, ao lado de suas obras, alguns trabalhos ambíguas e efêmeras” das crônicas de João do Rio, Lima Barreto e Marques Rebelo; na
de volta à ordem, dominante na capi-
tal francesa desde 1918: “Não posso de artistas estrangeiros (Floyd O’Neale, Sara Friedman e “mudança dos padrões de percepção e sensibilidade”, trazida pelas inovações tecnológicas
forçar-me para agradar a ninguém. A. S. Baylinson), para demonstrar a inserção das próprias e pelos meios de comunicação; na linguagem visual dos humoristas, que colocam em
Nisto sou, fico e serei sempre livre.
pesquisas num contexto internacional; a de Monteiro pauta questões relativas à modernidade e à nacionalidade.143
Aliás todos ou quase todos os grandes
artistas daqui estão enfrentando este Lobato, o qual, percebendo que tais expressões punham Uma observação da autora sobre o comportamento dos intelectuais cariocas que davam
tremendo problema. Matisse, Derain,
Picasso. Todos passam atualmente
em risco o princípio da fidelidade ao real, apaga toda dis- ênfase à rua “enquanto canal de sociabilidade, e mesmo de aprendizagem” ajuda a traçar
esta reação. Andava apreensiva com tinção entre o próprio credo naturalista e o academismo, uma linha demarcatória entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Afirmando que esses autores
isto, mas estive hoje com diversos
para constituir uma frente única. O embate parecerá tão refutam “a ideia de um movimento literário organizado”, Velloso encontra uma justifica-
artistas que me afiançaram ser esta
fase atual em Paris. Voltamos à mãe mais importante, se for lembrado que a artista enfrenta tiva para tal atitude numa vontade de não associar a literatura “à vida oficial e burocráti-
Natureza”. Cf. GONÇALVES, 2012: 116. sozinha a “instituição arte”, emblemada em Lobato, pois, ca”. Elaborar um projeto poderia remeter à institucionalização, “o que significava perda
143 VELLOSO, 1996: 31-33. naquele momento, não existia em São Paulo uma crítica de originalidade e sobretudo comprometimento”.144
144 VELLOSO, 1996: 29. Um fenômeno moderna para avalizar e defender sua proposta.140
semelhante pode ser detectado em O que distingue o modernismo de São Paulo das outras manifestações modernas
Belo Horizonte antes de 1924: inexistia Diante desse quadro de referências, em que Malfatti presentes no país é justamente a existência de um grupo. Insatisfeito com a situação
na cidade um “grupo arregimentado”. desempenha o papel de precursora de uma atitude de
Como escreve Ivan Marques (2011:
cultural vigente no Brasil das primeiras décadas do século XX, o grupo modernista toma
16-17), havia descompromisso e pouca vanguarda – toma a dianteira, aventura-se no território a si a tarefa de uma atuação coletiva, de uma intervenção articulada a partir de alguns
ambição em relação ao projeto moder- inimigo, abala os alicerces da “instituição arte”, lança dos principais órgãos da imprensa citadina – Correio Paulistano e Jornal do Comércio –,
no, “como se tudo tivesse acontecido
sem cálculo nem consciência, apenas
as sementes para uma ação estruturada, que começa a elaborando e divulgando a própria ideia de modernidade, estritamente vinculada às pe-
como ‘expansão natural da mocidade’ configurar-se em 1920, com a constituição do grupo culiaridades de São Paulo. Reunindo-se na garçonnière de Oswald de Andrade, na casa de
– um arroubo romântico de quem
viveu a aventura de ter ‘vinte anos nos
modernista141 –, a argumentação de Herkenhoff esboroa- Mário de Andrade, nos salões de Olívia Guedes Penteado e João Freitas Valle, os jovens
anos 20’”. -se, ganhando foros de uma atitude provinciana. intelectuais paulistas configuram “um compromisso estético coletivo ao redor de um projeto

94 95
HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES ANNATERESA FABRIS

claro de intervenções, trabalhos e transformações práticas 1920, começam a travar um combate sistemático contra as instituições artísticas e seus
no tecido cultural da cidade”.145 códigos cristalizados. Inspiram-se, para tanto, no movimento futurista italiano, do qual
De acordo com Frederico Coelho, a vocação moderna de esposam a proposta ativista, mas não a plataforma estético-artística, demasiado radical
São Paulo “demonstra que, mais do que para o desenca- para um ambiente cultural como o paulista. Desejoso de conferir destaque ao espaço
deamento das artes modernas, a Semana foi um episódio urbano transformado pela modernização e aos novos atores sociais e de conquistar o
central para o desencadeamento da própria modernidade público para a causa da arte moderna, o grupo usa a imprensa como tribuna de uma
na história brasileira”. A associação de um período de pregação diuturna148.
inovações em escala mundial “com uma jovem cidade sem Apesar de falhas, equívocos e indefinições, o grupo modernista atua de maneira vanguar-
referências próprias (sem memória) e com a predisposição dista também na Semana de Arte Moderna, ao apresentar obras, não raro embrionárias,
dos jovens dessa jovem cidade, (...) abertos aos influxos modernas nas intenções, mas não na forma, a não ser no caso de alguns trabalhos de
das palavras de ordem industriais, como ‘desempenho’, Anita Malfatti. O que choca público e crítica por ocasião dos festivais de 13, 15 e 17 de
‘ação’, ‘jogo’, ‘velocidade’ e ‘batalha’, para participar a todo fevereiro de 1922 não são tanto as obras em si, mas a maneira de divulgá-las. A desfaçatez
custo do Novo com ímpeto de ruptura do tempo e do com a qual os jovens artistas expõem as próprias produções é percebida como um gesto
espaço em que conviviam” ajuda a rastrear “a fundação de desafio por parte de uma crítica e de um público ainda apegados a uma concepção
do mito da Semana não na sua posteridade, mas ainda no acadêmica e naturalista das manifestações artísticas. Nesse contexto, pouco importa
próprio momento de sua realização”.146 que as obras apresentadas “sejam imaturas ou aproximadamente modernas”. O que é
de fato importante é a coragem de “desafiar um gosto consolidado, anunciar o porvir a
Essa afirmação encontra respaldo na conferência “O
partir de um presente inquieto e interrogador”, de “denunciar a presença do passado na
movimento modernista”, em que Mário de Andrade situa
produção de uma cidade materialmente moderna, propor os núcleos possíveis de uma
o período “heroico” do modernismo entre 1917 e 1922. A
poética urbana, apontar para a necessidade de um código novo no qual a modernização
questão do grupo é central nas considerações do escritor:
e o modernismo se encontrassem para forjar a modernidade”. Os semanistas, de resto,
Durante essa meia dúzia de anos fomos realmente puros e livres, têm plena consciência dos “frutos verdes” que propuseram ao público paulista, dos “erros
desinteressados, vivendo numa união iluminada e sentimental proclamados em voz alta”, da pregação de “ideias inadmissíveis”, como se lê no editorial
das mais sublimes. Isolados do mundo ambiente, caçoados, do primeiro número de Klaxon (maio de 1922).149
evitados, achincalhados, malditos, ninguém não pode imaginar
É nesse gesto consciente de desafio que reside o caráter exemplar da Semana de Arte
o delírio ingênuo de grandeza e convencimento pessoal com que
Moderna. É bem verdade que seus protagonistas legaram para as gerações futuras uma
reagimos. O estado de exaltação em que vivíamos era incontro-
história partidária do evento, obrigando-as a discutir o significado do moderno a partir
lável. Qualquer página de qualquer um de nós jogava os outros
de uma construção claramente enraizada no mito. Cabe, portanto, a cada geração a
a comoções prodigiosas, mas aquilo era genial! (...) Mesmo
tarefa de investigá-la a partir de novas perspectivas, mas não de negá-la in toto, pois
cercados de repulsa cotidiana, a saúde mental de quase todos
ela é uma presença fantasmática, que ganha força toda vez que se discute o significa-
nós, nos impedia qualquer cultivo da dor. Nisso talvez as teorias
do do “ser moderno” no Brasil. Uma posição lúcida a esse respeito pode ser localizada
futuristas tivessem uma influência única e benéfica sobre nós.
em Ivan Marques, para quem os pesquisadores que se debruçaram sobre a história dos
Ninguém pensava em sacrifício, ninguém bancava o incom-
grupos estaduais “nem sempre conseguiram se livrar dos desvios causados pela mistura
preendido, nenhum se imaginava precursor nem mártir: éramos
de bairrismo com revanchismo. Promover reinterpretações, combater diagnósticos de
uma arrancada de heróis convencidos. E muito saudáveis.147
ausência, lutar contra a ‘exclusão’ – eis a preocupação fundamental dos estudos sobre
145 COELHO, 2012: 39. os modernismos de província”. O trabalho de pesquisa em fontes primárias teria como
Dentro dos limites de uma modernização nascente e de
146 COELHO, 2012: 39. uma sociedade em vias de transformação, o grupo mo- resultado a “mera constatação de que existiram ‘igrejós regionais’ (a expressão é de Mário)
147 ANDRADE, 2005: 240-241 derrnista adota uma atitude de vanguarda, embora suas com desejos de atualização e características próprias, sem a investigação das razões de tal
148 Cf. FABRIS, 1994: 21. obras não sejam vanguardistas e suas ideias a respeito singularidade e tampouco das limitações desses grupos modernistas, mais vultosas que
149 FABRIS, 1994: 23; A Redação, maio da arte moderna sejam bastante confusas, quando não seu vanguardismo”.150
1922: 1. permeadas de categorias acadêmicas. Atuando como Se bem que referido aos “modernismos de província”, o diagnóstico de Marques pode ser
150 MARQUES, 2011: 23. um grupo de pressão, os modernistas, desde fins de aplicado à postura de Herkenhoff, interessado tão somente em desqualificar o moder-

96 97
HISTÓRIAS DA ARTE EM EXPOSIÇÕES ANNATERESA FABRIS

nismo paulista e, sobretudo, a Semana de Arte Moderna, Notas


com um rol de constatações, mas não com uma argu-
mentação sólida e convincente. Não basta afirmar que, 121 “Arte e artistas: Semana de Arte 136 A questão das “lacunas” do por um outro, como uma “escritora
Moderna”, 16 fev. 1922. A bailarina evento assume contornos sui generis impossibilitada de inscrição na
no Brasil, “ainda se finge que o ‘Modernismo’ de 1922 foi
Carmen Tórtola Valencia, que se em A ausência lilás da Semana de Semana de Arte Moderna”. Ao mesmo
uma atitude diferente com relação ao próprio país e do distinguia por combinar elementos Arte Moderna: o olhar pós-moderno. tempo admite que a jovem “não se
processo de atualização da linguagem no século XIX”, ou fantasiosos do Oriente com aspectos Tomando como parâmetro a produção reconhece como escritora e não
do folclore espanhol modernista e por de Daisy, “que se apresenta sob a estabelece relações deliberadas com
que a Semana de Arte Moderna “se configura como sin- conferir grande sensualidade ao cor- forma de fragmentadoras manifes- o sistema literário, tal como então
toma do limite”, já que seus promotores não conheciam po, apresenta-se no Teatro Municipal tações de escrita que jamais foram estava estruturado”. Apesar do vasto
de São Paulo em 21 e 26 de maio de sistematizadas em obra e jamais arcabouço teórico utilizado no livro,
direito as linguagens modernas,151 para fazer uma crítica 1921. Os cartazes que divulgam as mantiveram deliberada relação com Almeida não consegue propor uma
efetiva dos alcances da proposta do grupo paulista. Esta duas apresentações paulistas devem as instituições do sistema literário”, visão diferente da Semana de Arte
ter criado uma grande expectativa, Tereza Virgínia de Almeida afirma que Moderna e, muito menos, demonstrar
era, sem dúvida, embrionária e, até mesmo, contraditória, já que ela é definida “a dançarina ela se configura “como a ausência como Daisy seria “um incidente da
mas conseguiu criar um choque no público e na crítica, da raça e da emoção”, “a dançarina da Semana de Arte Moderna somente trajetória modernista que pode ser
dos pés dourados”, “a dançarina da na medida em que o próprio evento lido como falta, espaço vazio” das
abrindo caminho para a emergência de novos grupos e
alegria e da morte” e a “emocionante possa vir a ser pensado como algo três noitadas de fevereiro de 1922,
para a discussão do significado da modernidade na segun- artista da cor e do ritmo”. De acordo cuja importância pode vir a ser relativizando, a partir da garçonnière,
da década do século XX, quando a Europa se via às voltas com a resenha da noite de estreia relativizada a ponto de ser apagado “a forma como se concebe o ‘modern-
publicada pelo Correio Paulistano, a da historiografia”. Esse ponto de vista ismo brasileiro’”. Cf. ALMEIDA, 1998:
com o fenômeno da volta à ordem. um começo morno, que não decepcio- singular, que pretende “desnaturalizar 42, 53-54, 57-58, 66, 99, 116, 118.
nou nem entusiasmou o público, se- o consenso estabelecido em torno
São essas questões que deveriam ser levadas em conta para guiu-se o bailado A cigana com os pés do evento”, a fim de lançar sobre ele
compreender como uma situação periférica engendrou descalços, que provocou as primeiras um olhar pós-moderno, assenta-se
manifestações das galerias, enquanto na constatação de que o nome de
a Semana de Arte Moderna, a qual adquiriu um caráter a claque batia palmas. No fim da Daisy – a qual usava os pseudônimos
paradigmático não apenas por determinação de seus apresentação da primeira parte, que Cíclone, Miss Cíclone, Tufão e Gracia
decepcionou o público, ouviram-se Lohe – não consta das análises do
participantes. A busca de prioridades, legítima por si, não “algumas galhofas irreverentes e a diário coletivo O perfeito cozinheiro
exclui interrogações sobre os motivos da não existência de arte de Tórtola Valencia começou a das almas deste mundo (1918), re-
ser posta seriamente em dúvida”. Na digido por Oswald de Andrade e pelos
um fenômeno semelhante no Rio de Janeiro, por exem-
segunda parte, que teve momentos frequentadores de sua garçonnière,
plo. Por que não houve uma Semana de Arte Moderna na “lamentáveis”, a bailarina “perdeu situada na rua Líbero Badaró. Daisy, no
capital federal, apesar da presença de indubitáveis núcleos de vez a compostura”, julgando con- entanto, participa ativamente da obra
quistar a simpatia do público culto, coletiva com suas “letras grandes e
modernos? Afinal, lá existiam alvos bem mais ponderá- na apresentação da Valsa Danúbio agudas”, grafadas em tinta roxa, “que
veis – Academia Brasileira de Letras e Escola Nacional de Azul. Na terceira parte, dedicada às se destacam entre as irregulares
danças orientais, Tórtola Valencia caligrafias dos rapazes”. Personagem
Belas-Artes, entre outros – do que em São Paulo. Mesmo “esforçou-se, quis mostrar-se à altura principal de O perfeito cozinheiro das
falando de maneira hipotética, Angela de Castro Gomes do renome de que vinha precedida, almas deste mundo, ela é também
mas foi em vão. Essa parte, mais do autora de um diário pessoal, entre 17
fornece uma resposta a essa interrogação, ao fazer refe- que as outras, decorreu entre galhofas de agosto e 24 de dezembro de 1918,
rência às disputas travadas nesse campo, que deveriam ser e aplausos irônicos”. A avaliação do em que comprova o próprio “amor à
cronista não poderia ser mais irônica, escrita, cultivada diariamente com o
tomadas como “um sólido indicador da competição entre
pois ele conclui que a dançarina cuidado da escolha das palavras que
projetos de modernidade com acentos estéticos e políticos espanhola tinha um “riquíssimo se repetem nas cartas que escreve à
distintos e não, como algumas vezes pode ocorrer, como guarda-roupa”. Considerando que garçonnière”. Ao destacar a presença
Tórtola Valencia era uma represen- de uma escrita fragmentária em O
um sinal de fúteis e estéreis bairrismos”152. Os bairrismos, tante da dança moderna, tendo como perfeito cozinheiro das almas deste
151 HERKENHOFF, 2002: 17.
infelizmente, ainda existem, pois a questão moderna entre fontes de inspiração Isadora Duncan, mundo e no diário íntimo da jovem,
Vaslav Nijinski, Anna Pavlova, Maud Almeida sugere um paralelo com a es-
152 GOMES, 1999: 25. nós parece mais uma tentativa de negar que algo aconte- Allan e a Bela Otero, não é improvável trutura de Memórias sentimentais de
153 Poderia ser lembrado o caso de ceu num determinado lugar do que o reconhecimento da que o público paulistano tenha ficado João Miramar (1923). Lançando mão de
Florianópolis, em que o modernismo chocado com sua apresentação, daí um trecho da autobiografia de Oswald
nas artes visuais data da década de
existência de múltiplas acepções e de múltiplas temporali- as manifestações de desagrado e de Andrade, em que este lamenta a
1950. Cf. LEHMKUHL, 2006: 59-88. dades153 para o termo “modernismo”. as palmas “de pura cortesia”. Cf. perda das “‘memórias’ inteiramente
“Teatros: Municipal”, 22 maio 1921. fantásticas ” de sua primeira esposa,
conferindo-lhe um papel pioneiro no
conto policial, a autora apresenta
Daisy como uma escritora escrita

98 99

Você também pode gostar