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@ cienciaavida ' | PENSARELUTAR RENATO JANINE RIBEIRO Pedro Fassoni Arruda discute a situacao Os representantes nos representam politica brasileira e os desafios por vir de verdade? LOGOJEXIS' (Oedneaiheeseey iter Tiloe een ii ees | PRECISAMOS 23 POESIA MODELOS¢ MENTAIS “FUNDAMENTAL Longe de Sees je ética, a’ fé pode rel te) hee da; gd humana. Reflexoes'e) Pe a i syste): Em sala de aula: Psicandlise e Filosofia para as inquietacées juvenis eI DAW ULE @ E IMPERATIVO ETICO Lada ivel postular um principio universal a ética para além das religioes? pr reenes erent Vives Teves excrete ‘ith or without reli- “Wie can behave well and bad people can do evil; but fr good people to do evil = that takes religion. "(Steven Weinberg) [1] Lato sensu, 0 fundamentalismo se caracteriza pelo dogmatismo orto- doxo com implicagoes priticas. Mais especificamente, como se sabe, 0 fun- damentalismo foi um movimento reli- {gios0 e conservador, iniciado nos Esta- dos Unidos pelos protestantes no inicio do século XX, com ralzes na interpre- tagdo literal da Biblia como fundemen- tal a atuma vida em conformidade com a doutrina crista, No entanto, o termo ganha conotagdes mais genéricas e pas- sa.a abranger também o fundamenta- lismo islimico e outras doutrinas reli- slosas de cardter dogmiético, [2.] Trago comum as vertentes do fandamentalismo é a nogio de verdade absoluta ¢ universal. Nossa matriz.in- ‘telectualista, calcada no platonismo, se fundamenta na idela, de cariter trans- cendente, como fundamento ¢ garantia do real. Em outras palavras, ha Verda- de e ela é absolutamente universal. No ‘entanto, tal formulaeio, quando lida & Juz do relativismo cultural, implica um problema fundamental: como garantir a validade universal e absoluta do dog- ma de f& quando contraposto a outras manifestagdes culturais? Trata-se de localizar 2 origem da crenca numa ex- periéncia subjetiva e, tal como propoe Kierkegaard, realizar o salto da (é. Daf que as sociedades ditas civilizadas, hherdeiras dos ideais iluministas; re- servem a religiao a esfera do privado. ‘Cumpre questionar sobre a necessida- de de um fundamento absoluto capaz de dar conta da relativizacio dos valo- res culturais. O problema intercala o da existéncia de Deus, pois, se Deus nio existe, entao tudo é permitido. Como se sabe, trata-se aqui da célebre for- ‘mulagdo de Ivan Fiodorovitch, perso- nagem de Dostoiévski em Os irmaos ‘Karamazov (1879): "expt tela ond ai cmp ado tent de cer oni creo melhor espe fo drcore deta refieso No at age Hel amin. rein rer gue 0 ‘cance desi vers et s.r sagan da ‘shepard problema odo «ganguro, dal oes ena mpouidade dun andarertao SE DEUS E A GARANTIA DO BEM, ENTAO AQUELES QUE NAO CREEM EM DEUS SERIAM INCAPAZES DE PRATICAR O BEM OU AO MENOS TENDERIAM. AO MAL? OU, AINDA, AQUELES QUE CREEM EM. DEUS SERIAM INCAPAZES DE PRATICAR O MAL? [j-]em toda a face da Terra nao existe terminantemente nada que obrigue os homens a amarem seus semelhantes, que essa lei da natu- rTeza, que reza que 0 homem ame a Inumanidade, ndo existe em absolu- to-€ que, se até hoje existiu o amor na Terra, este nao se deveu d lei natural, mas tao s6 ao fato de que (05 homens acreditavam na prépria imortalidade, [..] destruindo-se nos homens a fé em sua imortali- dade [..] nao haveré mais nada ‘amoral, tudo seré permitido... [3] A tese de Ivan Fiodorovitch, tal como a emprega Dostoiévski, postula a necessidade da existén- ia de Deus como verdade absoluta capaz de garantir um fundamento tiktimo a moral. Como nem tudo & permitido, entdo é preciso que ‘Deus exista, Essa reflexio, portanto, teri por mote o problema do pres- suposto dogmitico capaz de subs- diara postura fundamentalista. [4] No registro da metaética, © problema poderia ser traduzi- do através da possibilidade de se estabelecer critérios objetivos ca- pazes de fundamentar a ética, em utras palavras: é possivel postu- lar um principio universal a ética para além das rligides? Ou, entao: torna-se impossivel postular nor- ‘mas objetivas como critérios para orientar e fundamentar a a¢io hu- * DOSTOLEVSKI. Os res Karamasoy 108 26 + Filosofia citnciaswida ‘mana? Muitas correntes defendem 1 possiblidade de se insttuir crité- ios objetivosética para além des- se substrato transcendente, mas 0 objetivo aqui ndo é apresentar essas respostas, mas antes demonstrar os perigos que a postura fundamenta- lista, em seu substrato dogmético, acarreta. De tal modo que cumpre tum recurso a formulagéo do pro- blema, tal como aparece na insti- {gante interlocugao em carta aberta entre o cardeal Carlo Maria Martini €0 intelectual Umberto Eco: Como se pode chegar a dizer, prescindindo da referéncia a um Absoluto, que certas agées nao se podem fazer nao, sob nenhum con- ceito, ¢ que outras devem fazer-se, ‘custe 0 que custar? [..] Cada vez resulta mais claro que somente 0 in- condicionado pode obrigar de ma- neira absoluta, somente 0 Absoluto pode vincular de maneira absoluta‘ [5] Para Martini, a ética, em seu fundamento, exige principios metafisicos absolutos e universal- mente vilidos. Segundo 0 cardeal, 0 cristo tem em Deus um principio claro e absoluto capaz de garantir a verdade do fundamento moral, e, a partir dessa constatacao, ele propoe «Eco o problema em bases secula- res. Como instituit uma ética para além do relativismo? Qual “fun- * CO; MARTINI Bm qué emo ue neem pep. damento dltimo da ética para um laico”? Em sua resposta, Umberto Eco recorre a tese de que existiriam nogdes universais comuns a todas, as culturas, de tal modo que no se- ria necessério recorrer a Deus para garantir o bem. [6] O diminuto “bem” de Eco parece requerer letras maitisculas garrafais no discurso do cardeal Martini, Delineia-se aqui a céle- bre redugio disjuntiva: ou Deus te € a moral é possivel ou Deus nao existe e tudo é permitido. De pronto podemos postular que tal formulagao apregoa um precon- ceito, pois advoga implicitamente que aqueles que nio creem tendem a0 mal, Ora, se Deus é a garantia do bem, entio aqueles que nao creem em Deus seriam incapazes de praticar 0 bem ou ao menos tenderiam ao mal, Ou, ainda, que aqueles que creem em Deus se- iam incapazes de praticar 0 mal. Isto é, aquele que pratica o mal, 0 faz porque “nao professa a fé em Deus’ Pois ndo conhece a Verda- de em Deus. © problema acima enunciado ganha novos contornos se, ao invés de se perguntar: ‘como instituir um fandamento absoluto sem Deus?” a questio que se im- poe é: “Deus & realmente necessé- riod ética?”™ {7.] De uma feita ofalso dilema permite pelo menos quatro formu- lagdes: Deus existe e & a garantia do sentido iiltimo da agéo moral, tal como defende Martinis Deus nao existe ¢ a moral é impossivel; Deus existe ¢ nao garante 0 sentido da asdo, tal como defendem alguns deistas, por exemplo; Deus nao existe e a moral, ainda assim, é possivel, tal como parece defender Eco, dentre outros. {8.] Noentanto a postura de Eco parece apenas pos- tergar o problema, pois, se existem nogdes universais, cessas logo sio passiveis de se constituirem como subs- trato a posturas fundamentalistas. Ora, se hé a verda~ de, tudo que nao reside na verdade é, logo, mentira. © problema, mais uma ver, parece residir na reducio disjuntiva ou no maniquefsmo reducionista. [9,] Por outro lado, o problema acerca do funda- ‘mento tiltimo da ética também intercala a questo so- bre o sentido da vida, pois, tal como aparece na for- mulagio dogmitica de Martini, uma vida com Deus € uma vida com sentido. Lembremo-nos, a fim de intro- duzir essa dimensao do problema, da bastante célebre passagem de Albert Camus em O mito de Sisifo 6 hd um problema flosdfico verdadeiramente sério: € 0 suicidio.Julgar se a vida vale ou ndo vale a pena ser vivida é responder a questao fundamental da Filesofia, O resto, se 0 mundo tem trés dimensbes, seo espirito tem nove ou doze categorias, vem em seguida. So apenas Jogos: primeiro é preciso responder. [..] Se me pergunto por que julgar tal questto é mais urgente do que outra qualquer, concluo que a resposta depende das agbes a que ‘elas engajam. Jamais vi alguém morrer pelo argumento ontol6gico. Galileu, que tinha uma verdade cientifica im- portante, dela abjurou com a maior das factidades deste ‘mundo, logo que tal verdade psa sua vida em perigo, Em certo sentido, ele fez bem. Essa verdade no valia a foguei- ra. Se 6a Terra ou o Sol que gira em redor do outro, iss0 é profundamente indiferente. A bem dizer, éuma questao {fitl. Por outro lado, vejo que muitas pessoas morrem por considerarem que a vida nao merece ser vivida. Vejo ou- tros que se fazem paradoxalmente matar pelas ideias ou pelas ilusdes que Ihes dao uma razao de viver (o que se chama uma razao de viver é ao mesmo tempo uma ex- celente razio de morrer). julgo que o sentido da vida é a ‘mais premente das questées. Como respondé-las?* [10.] Essas palavras permitem melhor perceber 0 alcance da questo, Para além das categorias abstratas, dda metafisica tradicional é preciso encontrar justifica- tivas capazes de garantir um sentido & existéncia hu- mana, O problema implica outra interlocugéo com a questio radical acerca do fundamentalism, qual seja, saber se a vida vale ou nao vale a pena ser vivida sig- nifica perguntar: primeiro, [1] a vida tem um objetivo [finalidade ou télos}%; ¢, depois, [2] esse objetivo ou finalidade tem valor? Esse desdobramento exige uma melhor explicitacao. [11,] Deus surge como garantia do sentido e valor 4a ago humana, ¢, tal como se sabe, muito se matou em nome de Deus a0 longo da histéria, Em outros ter- ‘mos, muito se matou em nome da Verdade ao longo da histdria,e isso porque a Verdade (ou Deus) se apresenta PCAMUS.Le myth de ype p 17-18 SE EXISTEM NOGOES UNIVERSAIS, ESSAS LOGO SAO PASSIVEIS DE SE CONSTITUIREM COMO SUBSTRATO A POSTURAS FUNDAMENTALISTAS. ORA, SE HAA VERDADE, TUDO QUE NAO RESIDE NA VERDADE E, LOGO, MENTIRA ‘wom portalespacodosaber.com.br * Filosofia ciencaavida * 27 CAPA RELATIVISMO Cumpre uma remissao a algo que 6 expresso de forma exemplar no filme Brincando rnos campos do Senhor, de Hector Babenco: o cardter etnocéntrico da tradigéo crista de matriz europeia. O filme retrata a tentativa de uma missio evangelizadora de ensinar 20s barbaros aborigenes a Verdade sobre Deus, que é Uno fala latim; de tal modo que vemos se desvelar a tensio entre a abordagem do relativismo cultural em contraposigao a violéncia das posturas etnocéntricas (fundamentalistas). 28 + Filosofia ciénciaavide ‘emsua dimensio positiva, portanto, pas sivel de se prestar como substrato as pos- turas fundamentalistas dogméticas, Em um sentido oposto, as filosofias da exis- téncia, em seu cardter negativo, impdem uum novo problema a ética, pois colocam ‘© homem, sem desculpas, como tinico responsavel pelo sentido da existéncia € ado humanas. (12.] Cumpre um recurso a outro momento retirado da criagdo ficcional: Jorge Amado, em Tereza Batista cansa- da de guerra, como se sabe, traz 0 pet- sonagem capitio Justiniano Duarte da Rosa® que encontra (ctia) o sentido da sua existéncia a0 colecionar “cabagos de donzelas’, em outras palavras, 0 per- sonagem reduz 0 sentido da sua vida a desvirginar jovens vulneraveis por vive- rem em condigoes de extrema pobreza. A pergunta que se impée &: se essa pode ser a finalidade de uma vida capaz de lhe atribuir um sentido, esse sentido teria valor? £ eticamente aceitivel tal projeto existencial? E se tal postura nao € aceité- vel, como garantir que nao se possa atri- buir tal objetivo vida? Ora, 0 problema assim colocado parece guinar essa re- flexio a um posicionamento no sentido extremo oposto: se tudo é permitido, en- to todos as escolhas se equivalem, logo: ‘como fugir ao relativismo? [13.] Por consequéncia, desnudam-se dois problemas fundamentais da filoso- fia implicados nessa reflexdo: (1) 0 que € uma vida com sentido’; € [2] 0 que € ‘uma a¢éo boa? Pois, tal como jé alertava Aristételes em Etica a Nicémaco: “Nao * cae descr ngues denis com gut forge Amdo talus enone do penonage, gue 9 ge de romance € Cama nplesnete de capio ete. Aber do oe de faa (Dear de Ro) parc Ie one eo epee am jt Nar dr rent as fot iro a capa sa js logo apt ep « pesos rine, que con jens done ano, dro capo sa “Com apo fringe seater que scare ps Parapet ater meds ee” (AMIADO. Tats cas de aera. 12, pif roo) Examen de de tin napa tron da ea em onan com 2 ‘stenomin ei pe eto ini nos entregamos @ essas indagagées para saber o que éa virtude, mas para aprender a tornar-nos virtuosos e bons, pois que de ‘outra maneira este estudo seria comple- tamente instil” Portanto, nao basta saber (© que é a justiga em sua dimenséo abs trata, & preciso inserir 0 plano conceitual no seio da realidade viva; é impreterivel- mente necessario que a Filosofia esteja @ servico da existéncia. Postula-se, de tal ‘modo, uma prética tedrica. [141] Vejamos, com um pouco mais de ‘cuidado, as implicagbes dessa probleméti- ‘2 no registro da agdo humana historica- ‘mente situada. Qual pode ser a consequ- éncia desse problema para uma vida com seu sentido garantido a priori, pois tem seu fundamento em um Ser transcenden- te, Absoluto e capaz de assegurar de per se 0 sentido da vida. Tomemos uma vez, mais um exemplo emprestado da nossa tradigdo literéria, ao menos no Ocidente. E pertinente um recurso & célebre passa- gem biblica em que Abrafo é convocado por Deus a oferecer em sacrificio seu flho primogenito, ofilho da promessa. E aconteceu depois dessas coisas, que provou Deusa Abrado,e disse-Ihe: Abrado! eee disse: Eis-me aqui. E disse: Toma agora o teu filho, 0 teu tinico filo, Isaque, a quem amas, ¢ vai-te & terra de Mori eoferece-o ali em holocausto sobre uma das montanhas, que ex te direi* [15,] Para além das implicagdes teo- ligicas, a passagem atesta a que ponto 0 dogma de fé & capaz de orientar as ages humanas, A crenca num sistema de senti- do, neste caso a crenga em Deus, faz.com ‘que um paise disponha a matar 0 préprio filho em nome de Deus? ARISTOTELES. Ain Nia. Lino ap 2, 110382728 * Gina 22:12 * Aglare cour apasgem chadaastearmente de O mito 1 Seif de Caras "Vep oon a em predate ‘maar pls caso ps ae ue es So arn de hee (que se cham uma uo de er € ap eo mpd Une exeente al de mre) TAL COMO JA POSTULAVA EPICURO HA MUITO TEMPO: SE O MAL EXISTE E DEUS PERMITE E PORQUE ELE NAO PODE SER BOM... POR OUTRO LADO, ARGUMENTA LEIBNIZ, NOSSA RAZAO FINITA NAO £ CAPAZ DE COMPREENDER AS RAZOES INFINITAS DE DEUS [16] Bastante célebres também sio as variagées imagindrias pro- postas por Kierkegaard acerca des- sa passagem do livro de Génesis em Temor ¢ tremor. Mas 0 que in- teressa aqui, no que tange & inter- retagdo do filésofo dinamarques, €a possibilidade do dogma de fé relativizar o valor da agio huma- nna. Mais do que garantir o senti- do iltimo do imperative categérico {que se desdobra no “nao matarés’ a perspectiva proposta se apresen- ta como possibilidade de se relati- vizar a ética. f justamente porque se cré, sem reserva, mesmo que parega absurdo, e em virtude da fé de que tudo é possivel em Deus," ‘que alguém se dispde a sacrificar 0 proprio filho. Diz Kierkegaard Agora é meu propésito extrair da sua hist6ria, sob forma proble- matica, a dialética que comporta ara ver que inaudito paradoxo é «a fé, paradoxo capaz de fazer de um crime um ato santo e agradé- vel a Deus, paradoxo que devolve a Abrado o seu fh, paradoxo que ndo pode reducir-se a nenhum ra- ciocinio, porque a fé precisamente comeca onde acaba a razao." [17.] Emudecido, o leitor vé Deus exigir de um servo seu, em * KIERKEGAARD. Tomar tremor. 136 especial um servo obediente e de- dicado, que softa a dor da perda daquilo que mais ama, seu préprio filho, Evidente que o carster dra- miético que © recurso a0 género narrativo oferece convida o leitor a se perguntar por que Deus agi- ria de tal forma, Sabemos também que 0 drama pretende colocar 0 leitor diante da experiéncia viva que apenas a narrativa literéria & ‘capaz. De tal modo que vemos a fé ‘no carter absoluto se configurar como um elemento capaz de rela- tivizar a ética; na direcio oposta a Dostoiévski, longe de ser a garan- tia da ética,afé se converte na pos- sibilidade de relativizar 0 sentido da agéo humana, [18] Em nome de Deus, um pai se dispoe @ matar 0 proprio filho. A atitude primeira de qual- quer ser racional diante de- tal roposta seria duvidar da propria wow portalespacodosaber.com.br + Filosofia cienciatvida * 29 CAPA percepgio: o que vejo néo seria um cenviado de Deus, mas, antes, uma alucinacao ou um delirio; ou entio, se perguntaria 0 pai: “Sendo Deus infinitamente bom, néo seria este um deménio tentando se passar por um anjo?” Nao é por acaso que Kierkegaard afirma na passagem supracitada que “a fé comeca pre- cisamente onde acaba a razao”; de tal modo que desvela-se como algo completamente irracional (contra- dit6rio!) assassinar 0 préprio filho a pedido de Deus. [19] Tal posicionamento se oferece como uma oportunidade para nos remetermos ao problema, assim chamado por Leibniz, da teodiceia. Saber se Deus é ou nao é justo é 0 problema fundamental da Filosofia, nesse registro ao menos. Ketepard dats 0st como parade tomamor a Wbedsge de canto cme E notério também que 0 mesmo Dostoiévski, que diz que se Deus nao existirentao tudo é permitido, afirma que enquanto houver uma ligrima nos olhos de uma crianga € porque Deus nao existe. Atuali- zando: enquanto houver hospitais para tratar criangas com cincer é porque Deus nao existe. Pois, tal como jé postulava Epicuro ha mui- to tempo: se 0 mal existe e Deus permite é porque ele ndo pode ser bom... Por outro lado, argumenta Leibniz, nossa razio finita nao capaz de compreender as razses infinitas de Deus, [20.] Neste ponto parece opor- tuno lembrar o contundente para- doxo proposto por Epicuro: Deus ou quer impedir os males ‘endo pode, ou pode e nao quer, ou do quer nem pode, ou quer e pode. Se quer endo pode, & impotente: 0 NA INTERPRETACAO EXISTENCIALISTA, AO MENOS TAL COMO A DEFENDE SARTRE, A ESCOLHA MORAL SE ASSEMELHA A CRIACAO DE UMA OBRA DE ARTE: NAO HA NADA QUE GARANTA SEU VALOR A PRIORI que é impossivel em Deus. Se pode € ndo quer, & invejoso: 0 que, do ‘mesmo modo, & contririo a Deus. Se nem quer nem pode, é invejoso € impotente: portanto, nem sequer é Deus. Se pode € quer, 0 que é a tinica coisa compativel com Deus. Donde provém entao a existéncia dos males? Por que razio é que nio os impede?” [21.] Uma vida com sentido € aquela na qual a agao ¢ boa porque tem valor; € garantia do valor re- side na escolha. Parafraseando Es- pinosa, “nao € porque uma coisa é boa que se a escolhe (deseja), mas € porque se a escolhe (deseja) quea coisa é boa’ Hd uma dimensio his- térica e coletiva implicada em tal tese. Na interpretagio existencia- lista, a0 menos tal como a defende Sartre em O Existencialismo & um Humanismo." a escolha moral se assemelha a criagdo de uma obra de arte: nao ha nada que garanta seu valor a priori, ao escolhe se escolhe, se constitui ‘um contexto historico que nao es- colheu, mas que o engendra. Em termos mais evidentes, a histéria faz. homem que faza historia, para utilizar uma formulagao de matriz ‘maraista; ou seja, hd uma dimensio herdada, a qual o homem nio esco- The, mas que é humana; e hd uma Gimensio que € consequéncia das escolhas humanas. Por isso que € ® EPICURO. Analog de tenon 63 “SARTRE Ofna um Farnan p NO QUADRO DE FENOMENOS RELIGIOSOS DE EXTREMA INTOLERANCIA COM A ALTERIDADE, TAL COMO OCORRE NA CONTEMPORANEIDADE - BASTA CITAR AS PERSEGUIGOES AS RELIGIOES DE MATRIZ AFRO-BRASILEIRA, TAO COMUNS EM NOSSOS DIAS fundamental reiterar que os gran- des genocidios ocorridos durante a histéria da humanidade, sejam eles em nome de Deus ou no, tm 1 face humana, sio consequéncias das escolhas humanas, mesmo que historicamente condicionadas. Nao ‘escolho nascer em um contexto de guerra, mas me escolho neste con- texto e 0 construo também. Sé por covardia ou ingenuidade se atribui- ria a Deus a responsabilidade por tais atos. 23] Ora, tal como visto an- teriormente, se por um lado o problema implica na falicia da redugéo disjuntiva, pois entre a cexisténcia e a inexisténcia de Deus como garantia iiltima do sentido da vida, temos ao menos outras duas possibilidades. Por outro lado, se nao ha a verdade, entio tudo € relativo. Atestamos que 0 problema néo se resolve com tanta facilidade tal como parecem crer ‘0s que creem,'® assim & preciso considerar outras tantas concep- bes referentes ao problema que sequer tocam na perspectiva reli- giosa. Desse modo, se queremos erigir uma sociedade capaz de abranger a diversidade, € preciso evitar os preconceitos decorrentes de tal concepgio reducionista, [24]. Por fim, cabe reiterar: nfo se trata de travar um combate as perspectivasreligiosas, mas simples- "Equem ator? ‘mente de alertar para os perigos que essas formulagdes adquirem a0 ga- ‘nharem contornos Fundamentalistas 6 por consequéncia, intolerantes. No quadro de fenémenos religio- 0s de extrema intolerincia com a alteridade, tal como ocorre na con- temporaneidade — basta citar as per- seguigdes is religiées de matriz afro- -brasileira, tio comuns em nossos dias -, torna-se imperativo tal alerta, ‘mesmo que desejemos que um dia cle se torne ocioso.. fi REFERENCIAS -AMADO, Je Tereza Batista cansada de guerra So Pu: Martins Fees, 1972, [ARISTOTELES. ica a Nicbmaco, Cecio (0s Pemdores. Tad. de Leone! andro e (Gerd obi dvs ges de WD. Rs Si Paulo: Nova Cura, 1973, BABENCO, Hector Brincando nos campos 60 Senhor timo. CCAMUS, Aor. Le mythe de ysphe: esas fbsurde Pas: Cala, 2010 ‘CICERO, Avi. Ate de han ararazo Flha de. Fal, So Paul, 21 debi de 2007, p12 DOSTOIENSK, Foe Os inmtos aramazoy. 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