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Maria antonia: Tl na contramao i : ) elf cterloee ey Maria Cecilia Loschiavo dos Santos CEE cea ne a Fernando Henrique Cardoso PULAU Ue eT tell et a ee ee uals UI reestar aac ie Oy ete eee Eur el et ey AUT Cg - Paul Singer* 0. C. Louzada Filho = Consuelo de Castro« Gérard Lebrun Maria Adélia Aparecida de Souza PROMO MET een erty edu ett) Ce UCC eaten cere i Se eRe React) Sea Oa yen Vee ait Souza » José Goldemberg Rubens Rodrigues Torres Filho « Eder Sader » Alvaro Alves de Faria Paula Eduardo Arantes « José Dirceu de MS REST) Lauro Pacheco de Toledo ran ee ew rtrd Ribeiro Cardoso a ST OLR Cee ate ea Marilena Chaui ee Coordenagio editorial Carla Milano Benclowicz Secretaria editorial Martha Assis de Almeida Chefe-de-arte Mariza Ana Corazza Produgio grdfica Paulo Sérgio Pires Colaboradores - José Antonino de Andrade (copydesk) Maria Aparecida Amaral (revisdo) J. S. Produgées (revisio) Natal B. Pepe (producdo grafica) Ilustragéo da capa: Multid§o, 1968, tinta acrilica sobre tela, de Claudio Tozzi. Dados de Catalogacio na Publicaco (CIP) Internacional (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Maria Anténia : uma rua na contramao / organizadora M285 Maria Cecilia Loschiavo dos Santos — Séo Paulo : Nobel, 1988. Varios colaboradores, ISBN 85-213-0520-6 1, Brasil — Politica ¢ governo — 1964 2. Movimentos estudantis — Brasil — Sao Paulo (SP) 3. Rua Maria Anténia (Sao Paulo, SP) — Histéria 4. S40 Paulo (SP) — Vida intelectual 5. Universidade de Sao Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas — Hist6- ria I. Santos, Maria Cecilia Loschiavo dos. CDD-378.81612 -303.4840981611 -320.98108 88-1223, 981611 * Indices para catdlogo sistematico: 1. Brasil : Politica, 1964 320.98108 2, Rua Maria Anténia : Sao Paulo : Cidade : Histéria 981.611 3. Sao Paulo : Cidade : Movimentos estudantis, 1960 3034840981611 4. Sao Paulo : Cidade : Vida intelectual 981.611 5. Sdo Paulo : Estado Faculdade de Filosofia, Letras ¢ Ciéncias Humanas : Histéria'378.81612 AS FILOSOFIAS DA MARIA ANTONIA (1956-1959) . NA MEMORIA DE UM EX-ALUNO Bento Prado Junior * Para minha colega Eneida I Que o titulo acima n&o engane o leitor, pondo-o na expecta- tiva de uma anilise do ensino e da producio de filosofia na anti- ga FFCL da USP, no final da década de 50. Para tal tarefa, é indispensavel um olhar historiador ov uma consciéncia das cir- cunstancias sociais da instituicdo e da pratica universitarias, que certamente me faltam. Trata-se, para mim, de restituir minha experiéncia ou minha memoria daqueles anos, numa narrativa muito mais impressionista do que analitica. Narrativa que talvez nao seja inttil 4 andlise histdrica se, como acredito, puder introduzir alguns matizes na memoria ge- ral daquele periodo. E assim, por exemplo, que ha dois anos, de- pois de uma mesa-redonda consagrada 4 filosofia da Maria Anté- nia (da qual participei, ao lado de Giannotti, Porchat e Paulo , Francis Wolf nao péde deixar de manifestar lexidade: e 0 que o espantava nao era, e¢ pour cause; De fato, os jovens professores da década de 60 (Giannotti, Porchat, Ruy Fausto e eu mesmo) passamos todos por Rennes, onde fomos alunos de Victor Goldschmidt — mas também de Gilles-Gaston Granger. E certo, ainda, que o privilégio da andlise * Formado pela FFCL/USP em 1959, é professor de Filosofia na Universidade Federal de Sao Carlos, SP. Entre outros, escreveu: Filosofia e Comportamento © Filosofia e a Visdo do Mundo. 66 : BENTO PRADO JUNIOR estrutural dos textos cldssicos nos parccin GEEED rin. alias, que até agora me parece sensata). fais ainda, é incontestavel que essa escolha técnica estava ligada a.uma interpretagdo realista da situagdo brasileira da filosofia, bem como « Gains fete ne es eieeertteD geral a ela adequado, como ja foi mostrado por Paulo Arantes. Programa pedagégico- critico, portanto, cuja primeira formulagdo foi descoberta por Paulo Arantes num antigo ensaia programatico de Jean Maugiié, que partia do reconhecimento liicido da rarefacéo da cultura n: cional e das armadilhas gue arma contra o espitito especulativo: CQRIBFEMIED 2, alts, © que dizi, com todas as letras, Livio Teixeira em Queiques considérations sur la philosophie et étude de Thistoire de la philosophie au Brésil, em livro oferecido a Martial Guéroult, em 1964, quando sublinhava o interesse suple- mentar e inesperado (do ponto de vista francés) que 0 método estrutural assumia nos nossos alegres trépicos: “Au dela de l’importance des travaux de M. Guéroult pour Ja rénovation dés études d’histoire de Ia philosophie en Eu- rope, ils ont pour nous, au Brésil, une signification de plus: leur méthode historique est une invitation a la discipline de la pensée philosophique qui nous fait défaut si fré- quemment. On pourra acquérir cette discipline, justement par l’effort qui consiste a vérifier rigouresement dans les grands systémes philosophiques, ce qu’est ‘l’ordre des rai- sons’. Et pour corriger les prétentions nationalistes qui surgissent A présent au Brésil, il faut qu’on se souvienne, encore une fois, que ‘histoire de la philosophie est condi- tion de la philosophie elle-méme” (in Etudes sur l'Histoire de la Philosophie, en Hommage a Martial Guéroult, Lib. Fischbacher, Paris, p. 211). O treinamento escolar da andlise de texto aparecia esponta- neamente, ndo sé como instrumento de ascese, mas também como arma no combate a geléia geral ideolégica dominante no pais. E verdade ainda que, na mesma década de 60, muito se dis- cutia sobre o famoso método estrutural (Porchat, Ruy Fausto etc.). Mas, na realidade, sé restou #2 documento que possa ser considerado verdadeiramente “estrutural’”, no sentido de apro- fundar os efeitos propriamenté filoséficos da concepgao guérol- tiana-goldschmidtiana do método. Refiro-me 20 Conflite das Fi (Uesefiasside Oswalt Porebat) aula inaugural do curso de Filoso- 67 MARIA ANTONIA: UMA RUA NA CONTRAMAO fia, proferida em 1968 e publicada treze anos depois em Filosofia e Viséo Comum do Mundo. Exceto no caso desse texto de Porchat (que logo romperia, se nao com 6 método, pelo menos com a “filosofia” estrutural), o famoso estruturalismo foi muito mais uma “ideologia” do de- partamento de Filosofia do que a inspirag&o mais funda de seus varios componentes. Pelo contrério, por sob uma aparente uni- formidade metodolégica e estilistica, grande era a diversidade de temas e estilos, que justifica o plural empregado no titulo desta tentativa de rememoracéo. It Retornemos no tempo, para tentar descrever — de maneira conscientemente impressionista, repito — como aparecia a at- mosfera do curso de Filosofia, para o jovem aluno que nela in- gressava trinta anos atrds. Obviamente, essa atmosfera sé podia aparecer-lhe deformada por suas idiossincrasias, isto é, por sua relacao subjetiva, abstra- ta e contraditéria com a filosofia, determinada por sua experién- cia pré-universitaria. Relacdo com a filosofia fixada, na realidade, por varias instancias dispares. Em primeiro lugar, uma curta militancia estudantil, na Juventude Comunista {o primeiro texto “filoséfico” que li, em minha vida, foi o Principios do marxismo- leninismo, ou titulo semelhante, de Stalin) e, a seguir, na Juven- tude Socialista, onde vim a conhecer futuros colegas, como Ro- berto Schwarz, Paul Singer, Mauricio Tragtemberg, Leéncio Martins Rodrigues, entre outros. Em segundo, os estudos de fi- losofia no Colégio Bandeirantes, tendo como professor Joao Eduardo Villalobos, de quem assisti dois anos de curso degfilo- sofia grega (onde nao faltavam as andlises de texto que iria reen- contrar mais tarde na Maria Anténia, e que me marcavam com o selo da Casa, antes de meu acesso a ela). Em terceiro, a con- vivéncia continua com a boémia intelectual e artistica (onde pre- dominava a gente do teatro) centrada na Biblioteca Municipal, onde facilmente se incendiavam as “imaginagoes tedricas” e eram mimetizadas todas as vanguardas, do pensamento, da arte e da politica. E, the last but not thé ieast, a atmosfera familiar, mar- cada pela figura do pai, professor por vocagao antes de sé-lo por necessidade, leitor constante de Pascal, poeta, latinista, aluno de 68 BENTO PRADO JUNIOR Quine quando de sua estada no Brasil, que gostava de dar aulas de matematica e andlise literaria a seus filhos. Com elementos assim dispares, o secundarista constitufa uma mitologia privada — uma espécie de patchwork ideolégico, que superpunha os eixos da poesia, da politica e da filosofia. Nesse esdrixulo pantedo, davam-se as maos Carlos Drummond de An- drade, Rilke, Sartre, Camus, Trotsky e os anarquistas (sic) espa- nhéis remanescentes em Sdo Paulo, ¢ que famos visitar em suas comemoragées da Guerra da Espanha. Tratava-se, na realidade, de uma ideologia que poderia ser caracterizada como esquerdis- mo literdrio-transcendental, que sé tolerava flertar com 0 marxis- mo 4 distancia, e ostentava horror tanto pelo stalinismo quanto pelo naturalismo ou pelo cientificismo da dialética da natureza, interpretados como duas manifestagdes patolégicas de um mes- mo equivoco metafisico fundamental. Horror que se exprimia bem na mania que tinhamos de ler, em voz alta para maior di- vertimento, verbetes do Diciondrio de Filosofia da Academia de Ciéncias da URSS, como 0 consagrado ao carater burgués e idea- lista da fisica de Einstein, assim como no entusiasmo com que afirmavamos a superioridade literéria de Proust e de Kafka sobre © romance soviético do realismo socialista (nem tudo era delirio no esquerdismo da época, j4 que, entéo, a maioria da esquerda tinha opinides estéticas e epistemolégicas muito diferentes). TI E claro que, com essa préhistéria, a primeira impresséo do recém-ingresso na faculdade sera a dolorosa limitagao da impa- ciéncia da imaginacdo ideolégica. Um modelo muito diferente opunha-se ao da inteligéncia baémia — um professor, mais, exi- gente que os demais, por exemplo, propunha oito horas como tempo minimo a ser consagrado diariamente A leitura. De qual- quer maneira, a cabega autodidata tinha de submeter-se a disci- plina da Academia, que se exprimia num discurso (comum a toda a Maria Anténia) balizado por categorias como a do “chutador”, “picareta”, contrapostas as categorias da modéstia, da pertinacia (bibliografias exaustivas e “fichamentos” monumentais) e outros tantos valores ascéticos. Havia, ia verdade, uma atmosfera difusa e geral de “tecnicismo”, no sentido do elogio de um estilo seco e analitico e da desqualificagdo de qualquer forma de ensaismo, 69 MARIA ANTONIA: UMA RUA NA CONTRAMAO _ _ — do qual o curso de filosofia escapava parcialmente, como vere- mos, gragas ao jeito pessoal de Jodo Cruz Costa e a diversidade estilistica de seu reduzido corpo docente (uma espécie de neotec- nicismo faria carreira, mais tarde, no departamento, com os “jo- vens turcos”, como Cruz Costa denominava a nova geragéo de professores). No ambiente proprio do curso de Filosofia (sempre um pouco diferente), esse ascetismo tedrico —- ou essa briga com a espe- culacao desinformada e irresponsdvel — era colorido pelo estilo de Cruz Costa. Nada “estruturalista” (pelo contrario, atento ao horizonte social da reflexfo filoséfica), ele endossava plenamente © programa acima aludido: antes de mergulhar nos arcanos do Ser, cabe familiarizar-nos com a obra dos filésofos. Mas, a esse principio estratégico geral, somava-se, essencial, algo como um ceticismo ou como uma sensibilidade extrema para as diversas formas da “ilusao filosdéfica”, principalmente aquelas de teor “espiritual”, que servem de amparo a mente conservadora. His- toriador das idéias no Brasil, teve a guid-lo em sua obra uma espécie de faro infalivel para localizar o ridiculo das aspirag6es dogmiatico-metafisicas na producdo filoséfica nacional. Mas esse estilo essencialmente irénico ou critico de Cruz Costa (que nao se manifestava sé no andamento ondulante de sua escrita primorosa de ensaista, como na sua arte de causeur incompardvel — talvez um pouco & maneira cética de Montaigne), nao transparecia imediatamente para seus alunos de 1956, em grande parte por cegueira destes, um pouco pela natureza do en- sino académico, a que o ensaista sé pode adaptar-se com uma certa dificuldade. De fato, o que era mais evidente para nés era uma espécie de escolha de autores dignos de estudo, e que nao privilegiava nossa imediata contemporaneidade ou as obsessdes de nossa imaginacao. Brunschwicg — o mestre de Cruz Costa em sua passagem pela Franga — dizia pouco a nossos coracéés lite- rario-politico-metafisicos. Lalande, de méme, Some-se a isso a desconfianga que Cruz Costa jamais deixou de nutrir em relagado & tradicéo da fenomenologia (fundada, ¢ bem verdade, no fato inegdvel de que a linguagem da fenomenologia havia sido apro- priada ideologicamente, no Brasil, pelo pensamento de direita). Ou ainda, a estrita francofilia de nosso professor, que afirmava, cum grano salis (é claro), que, com excegaio de Antonio Candido, n&o conhecia ninguém que tivesse aprendido bem a lingua ale- ma, sem perder algo de seu Gemeinsinn. Tratava-se de uma ma 70 BENTO PRADO JUNIOR vontade teérica dificilmente compreensivel para aqueles que se hhaviam aproximado da fenomenologia alema através de sua ver- sdo francesa ‘de esquerda. Dai o jovem primeiranista declarar-se heideggeriano de esquerda a um discipulo marxista de Cruz Cos- ta; era, é claro, provocagao, j4 que para Rodolfo Azzi (0 disci- pulo em questio), até mesmo o autor de Histéria e Consciéncia de Classe era suspeito de pouco materialismo e de racionalismo duvidoso. Nao era facil, assim, com nosso viés de origem, localizar desde 0 inicio o interesse e o estilo da obra de Cruz Costa. A inimizade pelo positivismo ajudava muito a incompreensao (sé recentemente vim a descobrir e ler, com prazer, por exemplo, os textos de um Carnap). O cuidado histdrico de Cruz Costa pelo positivismo no Brasil era facilmente confundido com profissdo de fé, num incrivel mal-entendido das alunos. Muitos anos depois (1968), convidado por uma revista italia- na a escrever sobre a filosofia brasileira, atravessei a Contribui- ¢Go a Histéria das Idéias no Brasil, de meu professor, bem como o também volumoso Ideologia e Consciéncia Nacional, de Alvaro Vieira Pinto. Mesmo entéo, minha leitura de Cruz Costa nao es- tava livre de todo viés. Nao era mais uma vaga metafisica da subjetividade (a transparéncia absoluta do pour-soi etc.) que se interpunha como “obstaculo epistemolégico”, mas uma nova ideo- logia, sempre gauchista, mas agora estruturalista. Algumas razdes conspiravam na sedimentacgdo desse novo obstaculo, O radicalis- mo politico de 68 (depois do Maio francés, e do Junho da Maria Anténia) nao podia ver com simpatia total o que aparecia como “nacionalismo”, tanto no caso de Cruz Costa, como no de Vieira Pinto (embora o primeiro, por sua natureza historiografica, fosse mais compreensivel do que o segundo, de indole francamente especulativa). Mas era sobretudo uma concepcao “contingista” da histéria das idéias que se chocava com o espirito do tempo, fascinado pelas idéias de corte, ruptura e revolugéo (embora Feyerabend ainda no estivesse na moda, com o curto-circuito — demasiadamente curto — que opera entre anarquismo ¢ epis- temologia). Assim como a continuidade imaginaria da historia das idéias esconde as revolucées epistémicas, a continuidade, também imaginaria, do corpo social ou da nag&o parece disfargar (ou negar) a diferencga social e 4 virtualidade sempre presente, a poténcia da Revolucao. Se em 1956 o existencialismo francés con- temporaneo dificultava a minha compreensio de meu professor 71 MARIA ANTONIA: UMA RUA NA CONTRAMAO e conterraneo, doze anos depois, o estruturalismo (de mesma origem e sempre contemporaneo) desempenharia 0 mesmo papel. O curioso é notar, como bem observou Paulo Arantes em seu - ensaio sobre os herdeiros de Cruz Costa na década de 60 (Revista de Filosofia Politica, n° 2), 0 quanto esse vaivém ideolégico — marcado pela flutuagao do acontecimento politico e pelo mime- tismo das idéias prestigiosas do momento — nao sé dificultava a leitura de Cruz Costa (ou a compreensao de seu “golpe de vista” realista sobre a ideologia brasileira), como confirmava de manei- ra exemplar 0 esquema cruzcostiano do funcionamento das idéias filosdficas no Brasil. Mais curioso ainda é sublinhar que s6 mui- to recentemente, creio ter podido chegar & compreensdo do es- crito de Cruz Costa, gracas a um ensaio de um colega de geracdo: aquele consagrado por Roberto Schwarz as famosas “idéias fora do lugar”. Sera que sé aprendemos de geracées anteriores pela mediacéo daqueles que tém nossa idade? Em artigo recente (“Culture Nationale par Soustraction”, in Les Temps Modernes, n.° 491, junho 1987), o mesmo Roberto descreve essa descontinui- dade da tradicgio como caracteristica da vida cultural da provin- cia ou da periferia. Com o que, retornamos a Cruz Costa ou a seu “golpe de vista”, que sempre nos escapou. Iv Livio Teixeira era, para nés, ao longo de todo o curso, a Historia da Filosofia. Nao a Histéria das Idéias, como a praticada por Joao Cruz Costa, mas a andlise dos grandes sistemas filosé- ficos, por um antigo assistente de Martial Guéroult. Antes do inicio da querela departamental sobre o estruturalismo (que, como a Batalha de Itararé, jamais ocorreu), Livio Teixeira, man- tinha sem alarde, no Brasil, essa boa tradig&o da historiografia francesa. Aluno de Livio Teixeira durante trés anos consecutivos (respectivamente consagrados a Platdo, Spinoza e Hegel), pude beneficiar-me depois (1961-62), na Franga, do ensino magistral de Victor Goldschmidt, sem maior “choque cultural” ou sensagao de descontinuidade. A melhor maneira, ao meu alcance, de evocar o seu perfil, e © impacto que exerceu sobre seus alunos, ser4 talvez reproduzir duas paginas de um texto que escrevi para a revista Discurso (n.’ 6), por ocasiao do falecimento de Livio Teixeira. £ o primeiro 72 BENTO PRADO JUNIOR traco do estilo de meu mestre (que eu sublinhava, pensando nos que nao o conheceram), era a maneira rara com que conseguia unir simplicidade e rigor — nos antipodas do tom elevado e sibi- lino t&o comum no discurso filoséfico. Acrescentava, logo a se- guir, procurando extrair o que me parecia ser uma idéia da filo- sofia, indissociavel de sua pratica de historiador, e detectdvel nao apenas no método escolhido, mas sobretudo nos temas privile- giados ”: “O que aparece como austeridade da linguagem, logo de- nuncia algo mais profundo, que envolve a propria idéia de filoso- fia. A recusa do jargao, de toda e qualquer cumplicidade com as modas intelectuais dominantes (por que nao dizé-lo?, com a ideo- logia), tal é o nervo da obra. E esta recusa, esta concep¢ao essen- cialmente critica da filosofia, que explica o privilégio atribuido a histéria dos sistemas filoséficos na estratégia geral do pensa- mento. Tudo se passa como se, por uma feliz convergén- cia, Livio Teixeira estivesse desde sempre preparado para receber a influéncia de Martial Guéroult que, quando de sua estada em Sao Paulo, oferecia o mais alto modelo de uma historiografia filosdfica rigorosa. Com esse encontro, era uma tradigéo que se criava em Sao Paulo e que, felizmente, perdura até hoje no tra- balho dos mais jovens. Que nao se veja, nesse privilégio atribuido a Histéria, algo como o esquecimento da natureza prépria da filosofia. A isso, pode-se responder dando a palavra a Livio Tei- xeira: ‘Il est certainement difficile d’accéder a l’objectivité en histoire de la Philosophie. Beaucoup d’historiens n’ont fait que philosopher sur la philosophie d’autres philosophes, ce qui est tout a fait acceptable, mais ne constitue pas une histoire de la philosophie. En vérité, comme l’historien doit avoir un esprit philosophique pour bien comprendre les philosophes, il passe facilement de la compréhension 4 I'interprétation. Et ’histoire de Ia philosophie ne vaut pas une heure de peine si elle ne nous conduit pas a la réfléxion personnelle. Cela dit, Vhistorien doit rester fidéle ou philosophe qu’il etudie” (in Etudes d'Histoire de la Philosophie, en Hommage & Martial Guéroult, Lib. Fischbacher, p. 210). Sé 0 projeto delirante de uma ciéncia absoluta pode levar t (1) Escolha tematica tanto mais surpreendente — vista retrospectivamente — quanto parece confirmar a escolha da Etica da Razéo por parte de alguém cuja primeira formagao se fizera A sombra (ou A luz) da Teologia. 73 MARIA ANTONIA: UMA RUA NA CONTRAMAO a considerar a abordagem “tecnoldgica” dos sistemas filosdficos como uma forma de renuncia a filosofia — e a tarefa da critica nao é justamente a de mostrar a falacia desse projeto? “O bom leitor nao se equivoca e descobre ja nas analises propriamente técnicas das obras de Descartes e de Spinoza algo que transcende imediatamente a pura tecnologia. O fascinio pelo grande racionalismo nao é aqui 0 efeito de uma simples opcao intelectualista. Arrisquemos uma formula — 0 que interessa a Livio Teixeira é aquele momento, tenséo maxima, em que o ra- cionalismo toca seu proprio limite, ou desmente sua imagem corrente. O limite da razéio nao aparece como dlibi de uma reve- lagéo qualquer ¢ a preocupacaéo moral nada tem de moralismo — de qualquer modo, o que se busca s&o os signos do concreto (no caso de Descartes, para além do rigor da metafisica da dis- tingdo entre as substancias, 0 reconhecimento do fato da unido substancial e da promiscuidade entre 0 corpo e a alma) ou do investimento historico da razio (no caso de Spinoza, a vertente politica da reflexao metafisico-moral). A busca do sentido da beatitude nas obras de Descartes e de Spinoza é particularmente significativa sob a pena de antigo pastor. Quer na sua versdo estdica, quer na sua versdo epictirea, é a idéia de contentamento que da contetido & idéia de beatitude, depurada enfim de seu horizonte mistico ou teolégico. Comparemos as tltimas linhas das duas teses. Uma termina por um texto do escélio final da Etica, onde Spinoza diz: ‘O ignorante, além de ser de muitos modos agitado pelas causas exteriores e de nao possuir nunca o verdadeiro contentamento interior, vive em quase completa in- consciéncia de si mesmo, de Deus e das coisas, e cessando de sofrer, cessa também de existir, O sabio, ao contrdrio, nao co- nhece perturbacao interior, mas tendo consciéncia de si mesmo, de Deus e das coisas, por uma certa necessidade interna, nao cessa jamais de existir e de possuir o verdadeiro contentamento’. A outra termina por uma formula breve que define o telos da reflexéo moral cartesiana: ‘...vimos que 0 exercicio da virtude tem para Descartes uma incontestavel finalidade que é a de alcan- carmos a beatitude. Ris-nos agora diante de Epicuro. Em suma, razao e vontade unidas na virtude, em busca do maior conten- tamento que é possivel na vida’ — eis a moral de Descartes, que é, sem duvida, uma forma de éudemonismo.” “Beatitude natural, portanto, ou terrestre e que se exprime de maneira forte na idéia cartesiana de generosidade. Remédio 74 BENTO PRADO JUNIOR contra as paixdes, a generosidade implica conhecimento — ao menos esse: tipo de conhecimento que, sem atingir a cla- reza e a distingo, é sempre possivel no campo da unio subs- tancial entre o corpo e a alma. Mas esse remédio é também uma paixdo. Beatitude natural porque, para Descartes como para Spinoza, a virtude nao se ope de maneira absoluta a paixdo, ou porque é possivel um bom uso das paixdes. Guardamos parti- cularmente aqui a idéia da generosidade, a saber essa paixdo particular, a ‘firme e constante resolucao de executar tudo quan- to a razao aconselha e a firmeza dessa resolugao’, porque ele nos conduz a algo que — isso sim — nio é imediatamente legivel na superficie de seus textos, Ele nos leva para além da Histéria da Filosofia, e nos mergulha numa historia mais préxima e mais recente; ela situa Livio Teixeira de uma maneira que as geracées mais recentes talvez ignorem e devem conhecer. Penso aqui na crise que, atravessando a universidade nos ultimos anos do ma- gistério de Livio Teixeira, desafiou e impés ao professor respon- sabilidades mais do que académicas. Ha dez anos atras “*’, aquela ‘firmeza inabaldvel’ ou a paixdo da generosidade mostrava que esse exemplar trabalhador da filosofia era muito mais do que um. scholar.” Vv Com Gilda de Mello e Souza, éramos expostos a influéncia de outro modelo de reflexdo. Diria, comprovando mais uma vez minha tese, que era de um ensino diferente que nos beneficia- vamos. Nem faltou equivoco de minha parte, que me sentia final- mente a l'aise, e acabei sendo restituido a disciplina da escola com uma nota baixa em Estética. Me Qual era essa diferenga? Arrisco a seguinte férmula para definir esse estilo inigualdvel de escrita e de docéncia que (para além do fascinio imediato do talento) exigiria muito tempo para ser compreendido, em todo o seu interesse tedrico, pelos jovens alunos de entdo. Digamos: uma espécie de vaivém constante entre (@) Escrito em 1975, meu texto refere-ge aqui, no estilo obliquo da época, a firme resisténcia oposta por Livio Teixeira, como por Jodo Cruz Costa, as pressdes que a Ditadura exerceu sobre a universidade depois do golpe de 1° de abril de 1964. 75 MARIA ANTONIA: UMA RUA NA CONTRAMAO a ee o tmediato fenomenoldgico das obras de arte e o aprofundamen- to de suas precondigées histéricas e sociais. Ou seja, nado apenas uma Estética da percepcio (que sempre foi privilegiada), mas também, uma Estética da produgao. Com Gilda de Mello e Souza, nao tinhamos nem uma fenomenoiogia da obra de arte nem uma sociologia dos objetos artisticos, mas uma forma particularmente rica de combinar essas dpticas diferentes. E claro que esse estilo nio se acomodava, sem alguma ten- sio, dentro do programa departamental. Para ajustar-se a ele, dona Gilda viu-se obrigada, algumas vezes, a transigir. Quero di- zer, a passar pela porta estreita da Histdria da Filosofia da Arte, entendida como disciplina escolar. Para dar um exemplo, quando estreamos como alunos de Estética, nossa professora foi conven- cida a ministrar um curso sobre H. Taine. Na verdade, ofereceu uma andlise comparativa das interpretacdes da pintura holandesa propostas por Hegel e Taine: andlise tanto mais interessante quanto reveladora de uma inesperada convergéncia de estilos de pensamento fortemente afastados um do outro. De qualquer modo, a tarefa de passar pelos textos de Taine (que certamente nao nos seduzia na épaca) nao fechava a possibilidade de uma andlise direta do objeto das duas interpretagées. Nesse caso, os conceitos e os sistemas filoséficos nao eram pensados como obje- to privilegiado da reflexao: eram, antes, instrumentos, livremente manipulados, na clarificagéo do fundamental, ou seja, de nossa experiéncia do mundo e da arte. Uma certa maneira de falar da- quilo que esta além da linguagem e que, para nés, era uma ver- dadeira revelagao. (Mais tarde, jA como professor assistente, acompanhando Joao Cruz Costa e seus alunos de Estética — Gilda de Mello e Souza nao estava no Brasil —, expus-me ao ridiculo de mimetizar, sem sucesso é claro, minha professora; os alunos talvez ndo tenham percebido nada, mas Cruz Costa riu bastante.) Depois da disciplina imposta pela circunscrigéo da fildsofia nas condigées gerais da cultura e pela organizacao conceitual dos sistemas, algo como uma disciplina do olhar e da imaginacao. Que nao surpreenda o leitor essa expressdo, aparentemente para- doxal, de uma disciplina da imaginagaéo: Que é uma interpre- tagao, na realidade? Alias, recentemente, em entrevista & Folha de S. Paulo, a proposito da republicacéo de sua tese, dona Gilda afirmava que jamais duvidou ‘tdo poder cognitivo da imaginagao” (frase que, imediatamente, me devolveu A condigéo de aluno). Disciplina da imaginacéo, como jA dissemos, mas, sobretudo, 76 BENTO PRADO JUNIOR a servico da percepcdo. Eram especialmente as “andlises concre- tas” (este quadro, este poema, este filme) que provocavam frisson na audiéncia. Um estilo vivo de falar da coisa mesma (die Sache selbst), ao contraério dos longos e enfadonhos proleg6menos me- todolégicos em voga:em outros departamentos da Faculdade de Filosofia. Nao é assim por acaso que foi no curso de Estética que tivemos n4o o primeiro contato com a Fenomenologia, mas algo como uma primeira visio efetiva de seu interesse como método. Ou ainda, da Fenomenologia como atividade, mais do que como teoria ou doutrina. E certo que, durante nosso curso, nao tivemios acesso aos escritos de Gilda de Mello e Souza. S6 em meados da década de 60 pude ler — gracas a Roberto Schwarz — a belissima tese sobre A Moda no Século XIX, que estava escondida no volume V da Revista do Museu Paulista, nova série, e que sé agora rece- beu edic&o a sua altura. Mas é certo, também, que nao era pre- ciso ler para ter, diante dos olhos, esse alto modelo do ensaismo critico e reflexivo. Bastava assistir as aulas para ser submetido 4 tentacgo de imitd-lo. VI O periodo de 1956 a 1959, em que fui aluno na Maria Anténia, correspondeu a uma espécie de intermezzo na histéria do curso de Filosofia. Quando entrei na faculdade, Claude Lefort acabara de retornar 4 Franca e sé teriamos a volta dos professores fran- ceses em 1960 (com a vinda de Michel Debrun e Gérard Lebrun). Durante todo esse periodo, tivemos apenas algumas visitas de Gilles-Gaston Granger. Na realidade, sé me tornaria discipulo re- gular de Granger no ano letivo de 1961-62 em Rennes (onde aésisti a um curso sobre Wittgenstein, que comecava assim a fazer sua entrada na Franca). A essa lacuna soma-se outra: foi também nesse periodo que eclodiu o célebre conflito entre Cruz Costa € o eterno Janio Quadros, entéo governador do Estado, que nos privou por um ano da presenga do professor. Foi ainda na mes- ma ocasiao que Giannotti viajou para a Franca (meados de 56), s6 retornando dois anos depois, Circunstancia adversa, que atin- giu alguns cursos fundamentais como os de Légica e Filosofia Geral, sé compensada, neste ultimo caso, por alguns seminarios sobre a idéia de progresso em filosofia, dirigidos por Ruy Faus- 77 MARIA ANTONIA: UMA RUA NA CONTRAMAO to, que comegava entdo sua carreira de professor (para o anedo- tario: depois de uma exposicaéo de Ruy Fausto sobre a “preten- so A verdade” da filosofia, um colega meu, bem mais velho que nosso jovem professor, escandalizou-se com a idéia blasfema de que a filosofia poderia ser “pretensiosa”: 0 mesmo colega que, em outra ocasiao, perguntou a Livio Teixeira, para pasmo de todo mundo, se atomismo era a negagao do tomtisima). O que é preciso ainda sublinhar era o “charme” suplementar do curso de Filosofia, garantido pela presenga dos professores mais jovens, Giannotti e Ruy Fausto, que, encarnando com intran- sigéncia o ideal de disciplina inscrito no programa departamen- tal, eram mais acessfveis fora da circunstancia académica. Na realidade, mais acessivel era Giannotti; quanto a Ruy Fausto, re- servado por natureza, sé teria acesso mais livre a ele a partir de nossa convivéncia na Franga, no inicio das anos 60. Em todo caso, quaisquer que fossem as diferengas de estilo entre os jovens pro- fessores de entdo, os alunos eram particularmente sensiveis ao que aparecia como uma abertura imediata para o debate filosé- fico contemporaneo, que contrariava, de algum modo, a estraté- gia de procrastinagao desenhada por Jean Maugiié. E claro que ambos s6 viriam a marcar suas linhas de reflexéo — expressas nos escritos de-maturidade — alguns anos depois. Mas é possivel, hoje, retragar uma certa continuidade, na problemdtica pelo me- nos, ou identificar a remanéncia de algumas preocupagées ini- ciais, que jamais foram completamente esquecidas. No caso dos dois, é tentador usar a linguagem da Aufhebung, essa combinagio entre continuidade e descontinuidade. Uma preocupagéo bem pouco “estrutural” que (sem abrir mo dos bons principios da filologia) unia, numa unica reflex4o, temas e problemas da filosofia analitica e do marxismo. De um lado, légica e epistemologia, de outro, filosofia politica e teoria social. Nao seria, pergunto, além das legitimas motivacdes*end6- genas e faceis de imaginar, algo como um efeito de superposicao das influéncias dos dois ultimos mestres franceses da filosofia da Maria Anténia nesse tempo? Penso numa espécie de simbiose entre os estilos diferentes de Granger e Lefort. Sintese que cada um fazia 4 sua maneira; no caso de Ruy Fausto com uma énfase maior na politica, acompanhada de uma certa desconfianga pelo discurso filosdfico. Estilo que nao se manteria — embora guar- dando sempre os cuidados originais — com um entusiasmo rea- tivado, logo a seguir, pela Fenomenologia do Espirito e, sobre- 78 BENTO PRADO JUNIOR tudo, pela Ciéncia da Légica, de Hegel. Entusiasmo que redun- daria em seus escritos mais recentes, de que nao cabe falar nesta rememoracdo de tempos anteriores (mas dos quais fiz uma.rese- nha critica num breve ensaio, sob o titulo de Ruy Fausto é a Deli- mitagao da Dialética). Para bem descrever nossa experiéncia da escola, nos anos finais da década de 50, é preciso delinear com mais preciséo a figura de José Arthur Giannotti. J4 no primeiro ano, tivemo-lo como professor de introducao a légica, num curso centrado no manual de Tarski. Lembro-me de que, seduzido por esse universo claro a que nos introduzia Giannotti, cheguei a comegar a estudar matematica, pensando dedicar-me no futuro — coisa particular- mente estranha, pensando agora — a essa disciplina austera. Mas nao eram apenas o rigor da disciplina e do professor que nos atrafam: Giannotti tinha, j4 naquela época, um jeito especial de reencontrar 0. todo da filosofia nas praias aparentemente vazias da légica formal. Mas foi, sobretudo, ao voltar da Europa que Giannotti comegou a desempenhar seu papel (que ninguém igno- ra) na historia de nosso curso. Para mim, em particular, foi deci- sivo, j4 que Giannotti trazia em suas malas, com sua husserliana, algo como uma legitimacao da fenomenologia, até entéo subme- tida a suspeicfo de que falamos. De certa forma contra Cruz Costa — mas certamente com o “apoio critico” do mesmo — Giannotti dava um sinal verde. Mais que isso, como é de seu caré- ter, empenhou-se com vontade militante nessa direcao: pude, as- sim, beneficiar-me, em 1959, como unico aluno de um curso sobre a Logica Formal e Légica Transcendental, de Husserl. Mas nao me beneficiei apenas do magistério escolar de Gian- notti. Pelo contrdrio, beneficieime sobretudo da convivéncia ex- tramuros. Nao apenas nas conversas informais, mas também no contexto interdisciplinar e quase institucional do famoso Semi- nario sobre O Capital, cuja invencdo, se me lembro bem, é da responsabilidade de Giannotti. Nao falarei aqui do Seminario em si mesmo — outros, melhor situados, ja o fizeram —, mas devo dizer algo do lugar nele ocupado por Giannotti. Para comegar, sublinharia 0 traco da iniciativa institucional e do precoce reco- nhecimento da necessidade do trabalho coletivo e interdisciplinar. Giannotti jamais foi, como eu, vitima da mitologia romantica da escrita solitaria. Mas, mais impbrtante, é lembrar a maneira per- feitamente nova, para nds, com que fazia convergir os fios da logica, da lingiiistica estrutural e da fenomenologia, na sua lei- 79 MARIA ANTONIA: UMA RUA NA CONTRAMAO _ tura da obra de Marx. Combinasao, inédita no Brasil, de inte- resses teéricos que tinha tudo para provocar meu interesse inte- lectual. Desde 0 inicio, tratava-se de buscar, contra a tradigaéo em- pirista ou neokantiana (ou seja, contra o cientificismo que veio incrustar-se na tradigéo do marxismo), uma ontologia do social como horizonte da critica da economia politica. E nesse periodo que Giannotti terminava sua tese sobre Stuart Mill, o psicologis- mo e a fundamentacao da logica onde, sob a preocupacao husser- liana ostensiva, era possivel ler o primeiro esboco do trabalho efetivado nos escritos mais recentes. E assim que, na pagina 12 do prefdcio de sua tese de doutoramento, Giannotti ja se refere a necessidade de restabelecer a Ontologia do Social e Dialética, contra a hegemonia do formalismo na teoria da ciéncia. Nao era clara, para o leitor de entao, a imbricacao entre esta tese de aspecto tradicionalmente husserliano e 0 esforco de reto- mada da tradicao da dialética. Mas, para quem acompanhava as intervengdes de Giannotti no Seminario, era evidente a inflexao inédita a que submetia o instrumental do idealismo alemao, Onto- logia do social e dialética estavam associadas na reflexao giannot- tiana desde os anos 50. Dado significativo, 4 que revela uma rara pertinacia e a coeréncia de um pensamento que, mesmo em cons- tante mutac¢ao, jamais abandonou o seu primeiro movimento. E nao ser4, pergunto, esse cardter obsessivo e quase hipnotico da reflexao, um dos tracos distintivos do filésofo? VIL Com tais mestres, é claro que a confusa cabeca do ex-secun- darista havia de reformular-se. Mas, nem tanto. Ganhando em disciplina (a palavra rigor nunca me seduziu, por ter uso apenas metaférico na nossa area), conservava, todavia, os temas predi- letos de sua imaginagao. Ao terminar o curso de filosofia, trata- va-se, ainda, de compor uma espécie de marxismo transcendental, projeto reforcado também pela leitura tardia dos Manuscritos econdmico-filoséficos do jovem Marx. Se, na ocasiao, tivesse lido a tese que Marcuse escreveu, sob a orientagado de Heidegger, tor- nar-me-ia marcusiano convicto imediatamente. E é assim que, em meu primeiro projeto de tesé, pensei escrever sobre Feuerbach, onde poderia talvez reencontrar a ocasiao de ruminar os velhos temas. 80 BENTO PRADO JUNIOR Mal havia obtido minha licenciatura, e, aia”. em Sao Paulo, nada mais nada menos que ° leitor j4 imaginou o que é, para um candidato a fildsofo de 22 anos, Gonersar com Séorates em pessoa? Eu havia acabado de ler a Critique de la Raison Dialectique, que condensava ¢ culmi- nava toda uma histéria de idéias, de que sempre me alimentara, e podia finalmente ouvir e falar com seu principal representante. Com um Sécrates empenhado, na ocasiao, na defesa da Revolucado Cubana e da Revolucdo Argelina, mas sempre inimigo da concep- ¢4o vulgar ou “intratemporal” da temporalidade. E claro que a tese tinha de ser sobre Feuerbach. E, no entanto, foi por excesso de sartrismo que mudei minha direcio. Nao é o proprio Sartre Levando o lema ao pé da letra — depois de descobrir que 0 sartrismo se tornara meu _se- gundo senso comum —, tentei compreender o No que vim a ser auxiliado, ao retornar ao Brasil em 63, por Gérard: Lebrun, gue pouco tinha de sartriano. Mas que parecia reunir tudo o que havia de melhor em meus mestres de alguns anos atrds As filosofias da Maria Anténia comegaram a passar, em 1960, por um novo filtro. Com Gérard Lebrun iniciava-se uma nova era na filosofia em Sao Paulo. 81

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