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Capítulo 2

Os suportes para improviso no jazz

É comum em uma jam session41 alguém dizer: vamos tocar um blues em si


bemol, por exemplo, e todo mundo já sabe qual será a forma e qual será a harmonia
padrão que se utiliza em um blues em si bemol, mesmo se não for apresentado nenhum
tema.
Há que se considerar neste ponto, a questão da standardização. Ela foi abordada
por Adorno no texto Sobre música popular (1989).42 Ele observa aspectos, que sob o
ponto de vista em que ele se coloca, que é o de um músico erudito, se mostram como
negativos. Destacam-se aqui dois pontos por ele observados que possuem uma
contrapartida no uso específico do jazz. São eles: a insistência dos compositores
populares da época em um padrão de 32 compassos, para a composição de canções, e a
marcha harmônica, que por mais sofisticada que pareça,43 termina por enfatizar os mais
primitivos fatos harmônicos.44
O bebop foi o primeiro estilo jazzístico a propor um caminho em direção ao que
o jazz é hoje, partindo de um material melódico, harmônico e formal bastante simples,
que são aquelas canções populares da Broadway, da década de trinta. “Os músicos do
novo estilo rejeitarão toda a discutível banalidade das songs e dos sucessos do dia para
produzir uma música pura, mais firme e mais viril. Criarão um novo repertório
parafraseando temas conhecidos, construindo sobre as harmonias do blues e das songs
melodias inéditas”.45

41
Jam session se caracteriza por uma reunião de músicos para improvisar livremente; pode acontecer em
local privado, como um estúdio, ou mesmo em uma casa noturna.
42
Este texto foi editado originalmente na Studies in Philosophy and Social Science New York, 1941.
43
Arnold Schoenberg em Fundamentos da composição musical, afirma que o rápido desenvolvimento da
harmonia tem sido um obstáculo para a aceitação de novos compositores desde Schubert , e que como
contra partida, a simplificação de outro plano, a construção motívica e rítmica, compensaria a
complexidade harmônica em nome da inteligibilidade do todo. “Para os contemporâneos Gustav Mahler,
Max Reger, Richard Strauss, Maurice Ravel etc., a harmonia complexa não colocava em risco a
compreensibilidade, e, atualmente os compositores de música popular atuam na mesma direção!” (1996,
p. 58. Rodapé n.8)
44
Theodor ADORNO. Sobre música popular, p. 116.
45
André FRANCIS. Jazz, p. 110.

23
A terminologia usada pelos músicos americanos também não foge à
standardização, termos como break, blue chords, dirty notes são tratados por Adorno
como efeitos individuais que seriam prescritos como um segredo de especialista, mas
que na verdade escondem um cenário rudimentar, onde a atenção do ouvinte fica
direcionada para o detalhe (efeito) e não para o todo.
Todas essas observações realmente descrevem o objeto, pois se tratam mesmo de
composições populares feitas com um propósito comercial dentro da indústria cultural
americana do início do século XX.
O que parece inoportuno é comparar o “jazz” comercial da década de trinta, já
inserido na vida cultural americana com todo o peso social que ele trazia na difusão de
um ideal de vida glamurizado, cosmopolita e certamente direcionado ao grande público,
com o detalhamento de obras eruditas de Ludwig van Beethoven (1770-1827), como a
introdução do primeiro movimento da Sétima sinfonia ou o primeiro movimento da
Apassionata.46 (Adorno, 1989, p.117)
Uma outra questão abordada por Adorno no contexto da música popular é a
relação música-letra. O exemplo citado da canção Deep purple, mostra-se esclarecedor,
por se tratar de uma peça de piano pouco conhecida e que teve grande sucesso após a
adição de uma letra.

Na música popular a correlação de letra e música é similar à correlação entre


imagem e palavra na propaganda. A imagem prôve o estímulo sensorial, a letra
acrescenta slogans ou piadas que tendem a fixar a mercadoria na mente do público e
a classificá-la em categorias definitivas. A substituição do ragtime puramente
instrumental pelo jazz, que, desde o começo, tinha fortes tendências vocais e o
declínio generalizado dos hits puramente instrumentais estão intimamente
relacionados com a crescente importância da publicidade da música popular.47

Esta questão permeia toda a música popular, seja ela secular ou religiosa, devido
ao incontestável poder da palavra, seja ela escrita ou falada. O fato é que a palavra
funciona como um código acessível a todos, uma linguagem, assim como o são todas as
artes. Este aspecto não será aprofundado aqui, por possuir desdobramentos que

46
Theodor ADORNO. Sobre música popular, p. 117.
47
Ibid., p. 133.

24
certamente desviariam o foco deste trabalho, mas é importante a menção da questão da
palavra pela estreita relação que ela possui com a música, principalmente a popular.
A questão música-texto no jazz foi se resolvendo naturalmente, até pela natureza
mais “polifônica”48 do que de melodia acompanhada deste. Na verdade o mais
importante nesta música sempre foi o “como” e não o “o quê”. A importância de uma
Billie Holiday49 (1915-1959), por exemplo, não está no que ela canta, e sim em como ela
canta, como ela divide ritmicamente a linha melódica, como ela improvisa com sílabas
sem significado semântico, como a sua voz se comporta como um instrumento dentro da
banda, e como muitas vezes os músicos querem que seus instrumentos soem como a sua
voz.
Como já foi mencionado no capítulo anterior, o jazz se apropriou das canções
standard, tratando-as como suportes para se improvisar.
O estudo destas formas muitas vezes se torna árido pela rigidez das mesmas do
ponto de vista metro-harmônico, que acaba funcionando como fator limitante para o
desenvolvimento de idéias durante um solo; por outro lado se mostra também como um
grande exercício de criatividade, pois realizar um improviso consistente musicalmente e
ao mesmo tempo pessoal, em uma estrutura que padronizada (impessoal) é um grande
desafio, que se torna ainda maior se forem consideradas as referências que se tem dos
grandes improvisadores. Os solos de John Coltrane, de Wes Montgomery (1925-1968)
ou de Chet Baker (1929-1988) para Body and Soul, por exemplo, são referências que se
tornam presentes em qualquer performance desta canção, ainda que na memória do
músico ou do ouvinte.
Como parte integrante deste capítulo, será feita a seguir uma descrição de
exemplos musicais das principais formas standard, que são objeto de estudo de jazzistas,
quer sejam estudantes ou profissionais, e que ainda hoje fazem parte do repertório não só
de apresentação em casas noturnas, mas também de concertos de jazz.

48
Este termo está sendo usado não no seu sentido literal, mas sim para dar a idéia de que no jazz a relação
figura e fundo, mais própria da canção, não é tão imperativa.
49
“Ela é a própria incorporação de uma importante realidade jazzística, sobre a qual Fats Waller foi o
primeiro a chamar a atenção, que se resume no seguinte: em jazz, o essencial é “como” e não “o quê” se
faz”. Joachim BERENDT. O jazz do rag ao rock, p. 282.

25
2.1 Blues
O que nos diz respeito neste ponto sobre o blues50 é o fato de que em algum
momento ele passou a ser reconhecido como a forma blues, e assim passou a ter
harmonia e forma padronizadas no contexto do jazz. Os padrões são: blues em
tonalidade maior de 12 compassos, blues em tonalidade menor de 12 compassos e o
menos utilizado blues em tonalidade menor de 16 compassos.

2.1.1 Blues maior 12 compassos


Normalmente em compasso quaternário, mas que em andamentos muito lentos
soa como se estivesse em compasso composto doze por oito. O padrão mostrado
abaixo51 é o que se cristalizou principalmente para improvisação, pois para composição
pode-se variar a harmonia, embora os pilares harmônicos que são os acordes (I7, IV7 e
V7) que caracterizam o blues sempre estejam presentes.52

Ex CD faixa 9.

ll: I7 l IV7 l I7 I I7 l
l IV7 l IV7 I I7 l VI7 l
l IIm7 l V7 l I7 VI7 l II7 V7 :ll

Exemplo: Pussy Cat Dues: Esta composição de Charles Mingus (1922-1979),


gravada originalmente em 1959 por ele e seu grupo no disco Mingus Ah Um, é um
exemplo bem radical, pois ele manteve a forma de 12 compassos do blues, mas escreveu
um tema com uma harmonia bastante variada sobre o padrão e, além da variação, os

50
Não serão abordados os aspectos históricos, étnicos ou idiomáticos do blues. Para se aprofundar no
assunto pode-se conferir em: André FRANCIS, Pré-história do jazz. in, Jazz. Eric HOBSBAWN, História.
in, História social do jazz.
51
Gravação dos exemplos demonstrados em anexo (CD).
52
Para os exemplos de harmonia padrão serão usados os graus da tonalidade de referência, pois estas
formas podem ser realizadas em diversas tonalidades.

26
nove compassos iniciais do tema estão em ré, meio tom abaixo dos três compassos finais
do chorus, portanto mi bemol, que é o tom sobre o qual os músicos improvisam na
forma blues neste tema.53
Ex CD faixa 10. Fonte: Real Book Fifth Edition.

53
Nos exemplos do repertório será usada cifra para grafar a harmonia.

27
Outros exemplos de blues maior com pequenas variações no padrão harmônico
do tema, mas que seguem a forma metro-harmônica nos improvisos.
Slam, de Jim Hall (1930). Este tema possui 36 compassos, que são a junção de três
chorus de blues.
Turnaround, de Ornette Coleman;
Up ‘Gainst the Wall, de John Coltrane;
Tenor Madness, de Sonny Rollins;
Blue Seven,de Sonny Rollins;
Solid, de Sonny Rollins;
Blues for Pat, de Charlie Haden;

2.1.2 Blues menor 12 compassos


Padrão harmônico:
Ex CD faixa 11.

ll: Im7 l Im7 l Im7 l (I7) l


l IVm7 l IVm7 I Im7 l Im7 l
l VIb7 l V7 l I7 l (V7) :ll

Pode-se verificar o uso deste padrão em temas como:


Equinox e Mr PC, de John Coltrane;
Interplay, de Bill Evans (1929-1980): este tema possui uma linha de baixo que se
assemelha a uma passacaglia e também uma linha melódica convencional, eles são
apresentados separadamente e depois sobrepostos;
Footprints, de Wayne Shorter (1933), o próximo exemplo, é escrito em 6/4 e apresenta
uma substituição harmônica no nono e décimo compassos, onde os acordes do padrão
são substituídos pelos seus respectivos trítonos. A música está em dó menor e assim,

28
onde haveria um Ab754 aparece um D7 e onde haveria um G7, aparece um Db7. Em
algumas versões aparece uma outra harmonia nos compasso nove e dez: F#mb5 e B7#9,
no compasso nove e E7#9 e Eb7#11, no compasso dez.
Ex CD faixa 12. Fonte: New Real Book vol, 1.

54
Para efeito de padronização, os acordes serão cifrados com maiúsculas e em negrito. Ex: Dó com
sétima maior será representado por C7M.

29
2.1.3 Blues menor 16 compassos
Não tão presente no repertório como os demais, mas também constituindo uma
forma padrão. O exemplo de referência é o do tema Summertime, de George
Gershwin(1898-1937).
Ex CD faixa 13.

ll: Im7 l Im7 I Im7 l (I7 ) l

l IV7 l IV7 l VIb7 l V7 l

l Im7 l Im7 I Im7 l Im7 l

l VIb7 l V7 l Im7 l (V7) :ll

Question and Answer, de Pat Metheny é um exemplo de blues de 16 compassos que


incorpora uma bridge55 de 8 compassos compondo uma forma [AABA], em que os [As],
são o blues.

55
Bridge, literalmente ponte, é uma seção contrastante em um standard. Em uma forma [AABA] ela é o
[B]. A referida bridge é construída sobre um padrão harmônico denominado Coltrane change. Este
procedimento será abordado no capítulo: 3 (3.3)

30
Ex CD faixa 14. Fonte: Question and Answer, Recorded Versions Guitar.

31
2.2 A forma canção
Eric Hobsbauwm56 faz uma divisão do jazz em termos de expansão, ou seja, de
penetração em diferentes camadas sociais, em três fases. A primeira vai de cerca de 1900
a 1917, quando o jazz se tornou uma linguagem musical própria da comunidade negra
dos EUA. A segunda, de 1917 a 1929, quando não houve uma grande expansão, mas
houve uma rápida evolução em termos musicais e em termos idiomáticos o jazz se
tornou neste momento a linguagem dominante na música de dança e nas canções
populares. A terceira fase vai de 1929 a 1941, quando o jazz começou sua expansão para
públicos mais amplos, incluindo europeus, artistas de outras linguagens e também
músicos de vanguarda.
A partir da década de quarenta, o jazz de New Orleans, o jazz moderno, o blues,
o country e o gospel já integravam a receita jazzística; neste momento já estavam
lançadas também as bases rítmicas, melódicas, harmônicas e formais do jazz e a forma
canção é uma delas.
A forma canção, também conhecida como song ou balada, é considerada ao lado
do blues como um dos principais formantes do jazz, tanto em termos de fornecer o
material melódico e harmônico, como o formal. “As duas formas principais usadas pelo
jazz são o blues e a balada... A balada pop varia, mas geralmente segue o padrão de
trinta e dois compassos.”57
O uso das formas musicais mais próprias da tradição européia deve-se
inicialmente a uma busca de ampliação de público, porque as canções folclóricas
trazidas por imigrantes tinham uma grande penetração em diversos segmentos da
sociedade através dos espetáculos de dança, teatro, musicais e da nova mídia, o cinema.
É importante ressaltar neste ponto que a forma mais comum da canção popular
americana da primeira metade do século XX, [AABA], ou seja, uma seção de oito
compassos [A], uma reexposição do segundo [A], uma seção contrastante também de
oito compassos [B] e uma outra reexposição de [A], totalizando trinta e dois compassos,
já fazia parte de um repertório de canções populares européias, e havia sido usada nesta

56
Verificar o capítulo Expansão, in Eric HOBSBAWN. História social do jazz.
57
Eric HOBSBAWN. História social do jazz, p. 44/5.

32
configuração também na música erudita. Joaquín Zamacois58 analisa alguns exemplos,
entre eles um do álbum para a juventude de Robert Schumann (1810-1856). A canção
número 9, que apresenta três seções de oito compassos.
Compositores como Jerome Kern (1885-1945), Cole Porter (1891-1964), Richard
Rogers (1902-1979) e Victor Young (1899-1956), geralmente imigrantes europeus ou
filhos destes, trabalharam com trilhas sonoras tanto para a Broadway como para
Hollywood e criaram inúmeras canções que posteriormente se tornaram standards no
contexto do jazz, e que são até hoje gravadas e tocadas em concertos, como por exemplo,
Stella By Starlight e Beautiful Love de Victor Young, All Of You e I Love You de Cole
Porter, entre muitas outras.
Duque Ellington (1889-1974), é um dos primeiros exemplos de um músico do jazz, que
fez uso da forma canção. Temas como: Satin Doll, Cottontail, Don’t Get Around Much
Any More, I Got It Bad, I Let A Song, In A Sentimental Mood, It Don’t Mean A Thing,
Prelude To A Kiss, Solitude e Sophisticated Lady são todas na forma [AABA] de trinta e
dois compassos.
A utilização das citadas canções, como já foi dito, teve inicialmente um caráter
comercial, ou seja, a busca pela expansão de público e conseqüentemente pelo
reconhecimento e a legitimação que isto traria. Nos anos trinta, com o swing59, o sucesso
chegou. A fórmula canções famosas com swing deu extremamente certo do ponto de
vista comercial. Todas as músicas podiam ser jazzificadas e elas ajudaram a vender de
sabonetes a automóveis, utilizando uma imagem de sucesso tão valorizada pelos
americanos. Hobsbawm aborda a questão da produção de música em série.

A produção em linha de montagem na música, uma das poucas realizações


realmente originais e terríveis do nosso século nas artes, tem seu melhor exemplo na
música pop padrão. A variedade de música não processada é reduzida
uniformemente a uns poucos modelos de produção principais, ou até, na maioria dos

58
Joaquín ZAMACOIS. Curso de formas musicales, p. 51.
59
Estilo de jazz que definiu a acentuação rítmica no segundo e quarto tempos, no caso de um compasso
quatro por quatro, ao contrario da música tradicional, na qual se acentua o primeiro e o terceiro tempos.
Também se usa o termo mainstream para designar o jazz feito nesta época. Swing também se tornou
sinônimo de idioma jazzístico, ou seja, o elemento rítmico que inicialmente identifica um gênero musical.
O swing foi o elemento jazzístico que foi assimilado pela música pop. Cf. Eric HOBSBAWN. História
social do jazz, p. 63.

33
casos, a um só, que é o de 32 compassos com coro em três partes, consistindo em
uma melodia de oito compassos (o carro chefe), repetido, o release, a ponte, o canal
ou apenas a parte intermediária, e a repetição do início. Isso reduz o elemento
humano de invenção a dezesseis compassos, (...) O resto é mecânico. O inventor da
canção que só precisa ser capaz de assobiá-la, a entrega ao harmonizador, e este, por
sua vez, àquela pessoa cada vez mais importante em todo esse processo, o
orquestrador, que faz o “arranjo”, ou seja, realmente decide como a música ira
soar.60

Os músicos de jazz dos anos trinta fizeram um largo uso das canções da
Broadway e de Hollywood.61 As versões instrumentais traziam uma liberdade na
interpretação das melodias62 e não tardou para que se começasse a criar novas melodias
sobre a forma e a harmonia das originais. Este procedimento, denominado anatole por
Bellest, também é conhecido como paráfrase e foi largamente utilizado pelos músicos do
bebop, já entrando na década de quarenta. Alguns standards foram objeto de uma
verdadeira recriação, e sobre as suas formas e harmonias foram construídos novos temas.
É o caso, entre outros, de Hot House (What is this thing called love), Salt peanuts (I got
a rhythm), Groovin’ high (Whispering), Ko-Ko ou Warming up a riff (Cherokee),
Ornitology (How high the moon), Donna Lee (Indiana), Scrapple from the apple
(Honeysuckle Rose), Little Willie leaps ou Suburban eyes (All God’s chillum got
rhythm). Ainda hoje esse procedimento é utilizado como em All the Things That...
composição de David Liebman63, que é uma paráfrase de All The Things You Are ou Re-
Re de Bob Mintzer (1953)64 (Indiana).
Um exemplo de canção que migrou dos musicais para o repertório jazzístico é
Body and Soul, com música de Johnny Green (1908-1989), esta balada foi composta
dentro de um padrão que ilustra com clareza a forma canção no jazz.

60
Eric HOBSBAWN. História social do jazz, p. 180/1.
61
“A preferência do mainstream recaiu sobre os standards canções extraídas de filmes, de comédias
musicais, da“massa” música popular. A solidez da construção harmônica de certos standards dava aos
músicos a oportunidade de recriá-los em linguagens múltiplas e sem paralelo”. Christian BELLEST. Jazz,
p.75.
62
Cabe uma distinção neste ponto entre melodia e tema, feita por Arnold Schoenberg. O autor coloca que
“A melodia tende a estabelecer o equilíbrio pelo caminho mais direto. Ela evita a intensificação do
conflito (...) Ela se amplia, antes pela continuação do que pela elaboração ou pelo desenvolvimento (...)
Um tema assemelha-se, mais propriamente, a uma hipótese cientifica que não convence, sem que haja um
número de testes, sem que haja a apresentação de uma prova.” (1996, p.130) Apenas comparando com a
distinção feita por Schoenberg no contexto da música erudita, os músicos do bebop, transformaram as
canções populares em temas para improvisar.
63
Gravada no álbum trio+one. 1988.
64
Gravada no álbum Hymn. 1990.

34
Dentre as inúmeras gravações de Body and Soul, citamos: a de John Coltrane, em
Coltrane Sound, a de Chet Baker em Sings Again, e a de Billie Holiday em Body and
Soul. Gravadas em décadas diferentes respectivamente 1960, 1989 e 1957, elas
demonstram a maleabilidade do objeto em questão, quando submetido a estéticas
pessoais e temporais tão distintas.

Ex CD faixa 15. Fonte: New Real Book vol, 1.

35
A já citada All the things you are é um exemplo de canção mais elaborada, pois
apresenta um primeiro [A] de oito compassos, um segundo [A] que não é uma repetição
literal do primeiro, pois está transposto uma quarta abaixo; o [B] apresenta oito
compassos e o [A] final retorna ao tom original, mas com um prolongamento totalizando
doze compassos, que inclusive são incorporados ao chorus nos improvisos.

Ex CD faixa 16. Fonte: Real Book Fifth Edition.

36
Uma outra possibilidade formal da canção apresenta a seguinte configuração: [A]
oito compassos, [B] (casa 1) oito compassos, [A] oito compassos e [B] ou às vezes [C]
(casa 2) oito compassos. A (casa 2) normalmente tem o mesmo perfil melódico da (casa
1), apenas com alguma mudança em função da harmonia que na (casa 1) geralmente
conclui na dominante para fazer a repetição e na (casa 2) conclui na tônica para finalizar.
Beautiful Love de Victor Young, My Romance de Richard Rogers (1902-1979) e Lorenz
Hart (1902-1943), Like Someone in love de Jimmy Van Heusen (1913-1990) e Johnny
Burke (1908-1964), Ornithology de Charlie Parker, Out of Nowhere de Johnny Green
Someday My Prince Will Come de Frank Churchil (1901-1942), são exemplos de
canções feitas neste segundo modelo formal.

Ex CD faixa 17. Fonte: New Real Book vol, 1.

37
2.3 O rhythm changes
O rhythm changes, pelo ponto de vista da forma, é uma canção [AABA] de 32
compassos, pois tem origem na composição de George e Ira Gershwin, I Got Rhythm,
composta em 1930. A exemplo do blues, ele tem forma e harmonia preestabelecidas. Na
verdade os rhythm changes são novos temas escritos na estrutura metro-harmônica desta
canção. Na versão original o último [A] possui 10 compassos em função de uma
repetição da letra que funciona como uma pequena coda nos compassos 33 e 34, porém
nas paráfrases estes dois últimos compassos não aparecem.
Segundo Bellest era freqüente em jam sessions os músicos improvisarem sobre a
harmonia de I Got Rhythm e não tardou para que começassem a escrever novos temas
sobre ela.65
Temas como Anthropology, Moose The Mooche e Celerity, todos de Charlie Parker,
Crazeology de Bud Powell (1924-1966), Oleo de Sonny Rollins (1930), são todos
rhythm changes. Autores atuais como Bob Mintzer e John Scofield, também
compuseram temas nesta forma metro-harmônica, são eles respectivamente:
Runferyerlife e What They Did.
Uma característica comum em todas as versões de rhythm changes ouvidas para
esta pesquisa é o andamento, sempre rápido, de maneira que apenas o contrabaixo faz
uma linha em walking bass66 que passa pelas fundamentais de todos os acordes, porém
nas versões que existem instrumentos harmônicos tocando junto com algum
improvisador eles normalmente trabalham ritmicamente e não tocam todos os acordes.67
É comum nos temas escritos sobre esta estrutura o uso de re-harmonização, mas nos
solos os improvisadores pensam no arquétipo da harmonia.
Segue a partitura de I Got Rhythm e a paráfrase Oleo, de Sonny Rollins.

65
Christian BELLEST. Jazz, p.75/6.
66
Walking bass é um tipo de condução métrico harmônica realizada pelo contrabaixo, que se caracteriza
por tocar quatro semínimas em um compasso de quatro por quatro, sendo que a segunda e a quarta são
acentuadas. Isto delimita um território idiomático que acaba por definir jazz do ponto de vista rítmico.
Pelo lado harmônico, o walking toca notas que explicitam os changes.
67
Pode se verificar nas versões citadas.

38
Ex CD faixa18. Fonte: Real Book Singers.

39
Ex CD faixa19. Fonte: The New Real Book I.

40
2.4 O free jazz
O free jazz, se apresenta como a antítese de tudo que temos descrito até aqui
neste capítulo (formas, harmonias e temas). Ele aparece como um divisor de águas
dentro do jazz. Mesmo que como um movimento sua duração possa ser datada e
localizada68, sua influência pode ser notada em tudo o que veio depois, porque
elementos conquistados com o free foram incorporados em outras estéticas.
Alinhado com expressões artísticas (como o happening, a performance, o rock e
inclusive a música erudita69), identificadas com os anos sessenta em todo o seu
comprometimento com questões que fugiam à esfera artística e entravam no campo da
organização social no ocidente, há que se mencionar aqui um outro aspecto da realização
musical que emergiu no jazz com o free, que é a questão da performance abordada agora
em seu caráter interdisciplinar.70
Uma primeira observação diz respeito à relação músico-instrumento. Carlos
Calado em O Jazz como espetáculo (1990) traça um paralelo entre esta relação e a do
ator e da máscara:

Uma relação semelhante a essa - ator e máscara - pode ser percebida no espetáculo
jazzístico. O instrumento desempenha uma função semelhante à da máscara: é
através dele que o músico participa do jogo musical, interpretando um tema escrito
anteriormente por outro compositor ou por ele mesmo; ou ainda, improvisando e
compondo no momento da execução. Dentro de um “enredo” geral, isto é, do
discurso musical, cada músico tem um “papel” a representar, que varia de acordo

68
Para demonstrar que o movimento free não era uma unanimidade e que diversas tendências conviviam
no momento de sua eclosão, são citados aqui alguns álbuns lançados no mesmo ano (1960), do já
mencionado trabalho de Ornette Coleman, Art Blakey (1919-1990) and the Jazz Messengers, A Night in
Tunisia, contendo hard bop. Hank Mobley (1930-1986). Soul Station, contendo swing. John Coltrane &
Don Cherry (1936-1995), The Avant-gard, contendo modal jazz, hard bop e imprivisações com liberdade
cromática. Wynton Kelly (1931-1971). Kelly Great, contendo swing e blues. Wes Montgomery, Incredible
Jazz Guitar, contendo bebop, swing e blues.
69
Exemplo: a Sinfonia de Luciano Bério (1925-2003), composta entre 1968 e 69, que faz referências a
obras de vários compositores através de colagens, referencias a obras literárias e ao líder assassinado dos
direitos civis Martin Luther King. Ou a obra Laborintus 2, 1963/5 inteiramente baseada em uma obra
literária Laborintus do poeta Edoardo Sanguineti, que lê a obra durante a performance de Laborintus 2,
que conta também com uma seção rítmica jazzística.
70
“... A característica de arte de fronteira da performance, que rompe convenções, formas e estéticas, num
movimento que é ao mesmo tempo de quebra e de aglutinação, permite analisar, sob outro enfoque, numa
confrontação com o teatro, questões complexas como a da representação, do uso da convenção, do
processo de criação etc., questões que são extensíveis à arte em geral.” Renato COHEN. Performance
como linguagem, p. 27.

41
com as concepções do compositor, ou a forma que baseia uma improvisação, seja
individual ou coletiva, tenha ela sido predeterminada ou totalmente livre.71

Deve-se considerar que a relação músico-instrumento pode ser vista como um


elemento cênico. Neste aspecto o free jazz se permite uma leitura extra musical em
função da relação estabelecida entre o músico e o instrumento, que neste contexto
usualmente é explorado de maneira não ortodoxa, tanto pela gama de sons que fogem
aos padrões estabelecidos de emissão (timbre, afinação e dinâmica), como pelo gestual
de muitos músicos que difere da atitude cool72 que muito foi cultuada pelos jazzistas da
década anterior.
Um outro fator da performance que veio com o free concerne à indumentária e a
aspectos quase que teatrais em apresentações de grupos como o Art ensemble of
Chicago e da Arkestra de Sun Ra (1914-1993). A resenha reproduzida abaixo mostra o
aspecto performático da apresentação de um grupo em 1976.

O festival do ano passado, em Willisau, Suíça, foi aberto com a celebração do Art
Ensemble of Chicago, um dos mais prolíficos grupos de free jazz. Seus cinco
membros entraram na sala tocando como xamãs, tanto dos bastidores como da
platéia. Era como se a música estivesse lá muito antes de se tornar perceptível. Eles
usavam roupas africanas, tinham as faces pintadas e soavam gongos, sininhos,
chifres de animais e assobios. No palco havia uma grande coleção de instrumentos
africanos e ocidentais que eles usavam alternadamente e com inteira imaginação
através do concerto. A música movia-se através de vários estágios tocando em
fontes africanas, americanas, européias e asiáticas. Comunicação e expressão
altamente dramáticas pareciam guiar cada ação e elementos não-instrumentais como
gestos de mímica, dança e palavras foram integrados.73

Salientamos que estas experiências historicamente estão longe de ser uma


novidade. Se olharmos para a história da performance desde Ubu Rei, representada em
1896, sempre se recorre a expressões alternativas “como um meio de demolir categorias
e apontar para novas direções.” 74
Voltando para questões mais diretamente ligadas à sonoridade, a já mencionada
experiência de Ornette Coleman em 1960, consistiu em colocar em um estúdio dois

71
Carlos CALADO. O jazz como espetáculo, p. 37/8.
72
Ibid., p. 154.
73
Fonte primária: Jurg Solothurnmann, “Insights and Views of Art Ensemble of Chicago”, Jazz Forum, n.
49, 1977, p. 28. Fonte utilizada: Carlos CALADO. O jazz como espetáculo, p. 184.
74
RoseLee GOLDBERG. A arte da performance, p. 7.

42
quartetos75, e com exceção de alguns detalhes, como ordem de improvisadores, e alguma
idéia temática entre um solo e outro nada mais fora combinado.76 Tal experiência irá
demonstrar sua importância não só pelo fato em si, mas principalmente pelo que ela
desencadeou.
Pode-se observar nesta performance que alguns elementos poderiam ter
funcionado como suporte, por exemplo, o contrabaixo de Charlie Haden tocando em
walking todo o tempo (exceto nos solos de contrabaixo e bateria que acontecem a partir
dos 5:50 min da segunda parte77), juntamente com apoios da bateria que certamente
estabelecem parâmetros métricos e idiomáticos e que os solistas poderiam considerar ou
não. No solo de Ornette Coleman (que acontece a partir dos 10min da primeira parte),
entretanto, certamente a condução estabelecida por baixo e bateria teve alguma
influência, pois é um solo caracterizado idiomaticamente pelo uso de jazz feel78.
O que esta experiência explicita é que a harmonia não precisa necessariamente
ser o único elemento organizador em uma peça musical, mesmo dentro do jazz, onde o
princípio de variação sobre uma situação harmônica é dominante. Qualquer elemento
pode se eleito para organizar um discurso musical. Esta abertura a outras concepções
tanto em improviso como em composição jazzística talvez seja o maior legado do free
jazz sob o ponto de vista musical.
Miles Davis nunca aderiu ao free, mesmo produzindo uma música que soa muito
próxima a ele, como a sua performance de 38 min em um festival de rock na ilha de
Wight em 1970 ele já havia dito: “Existe um tipo de forma. Você precisa começar de
algum lugar... você tem limites e tal, mas ainda entra num espaço e age livremente. Há
uma moldura, mas é apenas... nós não queremos exagerar, sabe. É difícil atingir um
equilíbrio”.79

75
O do próprio Coleman (sax alto) com Don Cherry (trompete), Charlie Haden (contrabaixo), Ed
Blackwell (bateria) e o quarteto de Eric Dolphy (clarone), Freddie Hubard (trompete), Scott La Faro
(contrabaixo) e Billy Higgins (bateria).
76
“Nós exprimimos o que sentíamos, e tentamos ser mais livres, sem sermos incomodados por uma trama
harmônica preconcebida. A música deve ser um meio direto e imediato para exprimir nossos sentimentos
e nossas emoções, mais do que lhes servir de fundo.” Comentário de Ornette Coleman, no encarte do cd,
Free Jazz, 1998.
77
Este trabalho foi dividido em 2 partes em função de sua acomodação em discos long-play, que não
comportavam mais de 20min em cada face sem que houvesse perda de qualidade na reprodução, porém
não houve interrupção na performance. A parte 1dura 19:34min e a parte 2 dura 17:30min.
78
Tocar com jazz feel significa fazer uso de elementos típicos do swing.
79
Ashley KAHN. Kind of blue, p. 194.

43
2.5 As formas autorais
Os traços pessoais sempre foram respeitados e valorizados no jazz (a sonoridade
de um músico, o fraseado de outro, o time de um terceiro e assim por diante), mas o
individual precisa ceder espaço ao coletivo para que a música se realize. O fazer jazz
sempre buscou se equilibrar entre estes dois pólos.
Após o bebop, nota-se uma busca por uma expressão mais pessoal também na
composição, as formas autorais foram muito lentamente ganhando espaço no jazz, a
presença do blues e das canções, que nas décadas de trinta a cinqüenta foi dominante,
cedeu aos poucos lugar à investigações mais pessoais.
Miles Davis pode ser associado a esta busca, até porque a pessoalidade é uma
marca em tudo que se refere a ele, o som que ele tira do seu instrumento, o fraseado que
ele constrói e até aspectos extra musicais, como o modo de se apresentar em público e de
se vestir, porém ele sempre se associou a compositores importantes no jazz, primeiro
Dizzy e Parker, depois Evans e Coltrane e nos anos sessenta Wayne Shorter.
Composições originais sempre existiram, por exemplo, East St. Louis Toodle-o
de Duke Ellington foi gravada por ele e sua orquestra em 1927, mas o que se nota é que
o modelo vocal do blues e da canção ainda se impõe, e uma identidade instrumental
somente viria com as paráfrases do bebop na década de quarenta.
Blue in Green, cuja autoria é atribuída ora a Miles Davis, ora a Bill Evans80 e foi
composta durante o período que os dois trabalharam juntos e gravada no disco Kind of
Blue, é um exemplo desta nova procura no campo da composição em jazz. Em 1958,
enquanto Miles reunia o grupo que gravaria este trabalho, ele declarou: “queria que a
música que este novo grupo vai tocar seja (sic!) mais livre, mais modal, mais africana
ou oriental e menos ocidental”.81 Trata-se de um tema de dez compassos com uma
harmonia que não é cadencial, e embora se utilize do eixo de quartas, o que fica é a
sensação de continuidade na repetição do chorus, muito também pela sua forma que não
é dividida em seções. Uma particularidade dos solos feitos em Blue in green, por Davis e
Coltrane, é que eles não improvisam sobre os changes e sim sobre a escala de ré menor,

80
Ashley KAHN. Kind of blue, p. 100.
81
Ibid., p. 101.

44
explorando as possibilidades cromáticas que surgem da alteração do sexto e sétimo
graus.82
Ex CD faixa 20. Fonte: Real Book Fifth Edition.

82
Cf. Miles DAVIS, Kind of Blue, Transcribed scores.

45
As buscas pessoais perecem ter sido valorizadas a partir dos anos sessenta, e para
falar em formas agora, é preciso falar em indivíduos.
John Coltrane trabalhou com formas livres. Em A love supreme (1964), obra em
quatro movimentos, o primeiro deles, Acknowledgement, é organizado por um motivo
musical de quatro notas que o contrabaixo repete inúmeras vezes e o solista improvisa
sem se preocupar com forma. Existe apenas uma sugestão de usar o modo dórico de fá,
mas o próprio Coltrane acaba por burlá-la, para explorar possibilidades cromáticas.
Em Interstellar Space (1967), que consta de quatro peças com nomes de
planetas: Mars, Venus, Jupiter e Saturn, Coltrane conta apenas com um baterista,
Rashied Ali (1935), em um trabalho que não é possível detectar forma, harmonia ou
temas.
Wayne Shorter nunca abandonou a harmonia, mas fez dela um uso muito
particular, na utilização da marcha harmônica própria do tonalismo, em um contexto
“modal” (por falta de um termo que defina melhor seus procedimentos), conseguindo
assim um efeito cromático já nas suas composições dos anos sessenta, que não tinha
precedentes no jazz. Um exemplo das idéias de Shorter pode ser visto em Nefertiti,
gravada em 1967, quando ele participava do quinteto de Miles Davis. Uma
particularidade desta gravação é que os sopros não improvisam, eles tocam o tema todo
o tempo enquanto bateria, piano e baixo fazem intervenções. No total são treze chorus,
sendo que apenas no décimo segundo os sopros não tocam.

46
Ex CD faixa 21. Fonte: New Real Book, vol 1.

Outros músicos que são referência no jazz tanto, em improviso como em


composição, como Herbie Hancock (1940), Chick Corea (1941) e Keith Jarrett, também
tocaram com Miles Davis e tiveram grande contribuição no campo da composição em
jazz.

47
Jarrett, nos últimos anos, tem revisitado os standards e produzido álbuns83 que
revelam que as velhas canções ainda não estão esgotadas em um procedimento musical
que privilegia o “como” em detrimento do “o quê”.
Dentro do contexto das formas autorais é necessário ainda abordar o “estilo”
ECM. Em 1969 o contrabaixista de orquestra sinfônica alemão Manfred Eicher (1943),
fundou o selo ECM Records, adotando o seguinte slogan: A ECM deve produzir o mais
belo som depois do silêncio.
O primeiro trabalho produzido por Eicher para o catálogo que conta atualmente
com quase 1000 títulos84, já se mostra comprometido com a liberdade de criação que iria
pautar toda a produção ECM, trata-se de Free At Last, de Mal Waldron (1926 2002).
Este trabalho, gravado com a formação de trio (piano, contrabaixo e bateria) em 1969,
articula-se sobre a influência do free e do jazz modal, mas já aponta para uma linha
estética que seria depois identificada como o estilo ECM, como uma liberdade
idiomática em contrapartida ao uso sistemático do jazz feel e a repetição insistente de
motivos rítmico-melódicos que somente encontra paralelo no minimalismo.
Uma característica que também identifica trabalhos realizados pelo selo ECM são
as formações instrumentais diferenciadas, com solos, duos e trios com as mais diversas
combinações de instrumentos. Alguns exemplos são: Dança dos escravos (1988):
Egberto Gismonti (1947) – violões; Dis (1977): trabalho em duo de saxofone e violão
com Jan Garbarek (1947) e Raph Towner (1940); Matchbook (1974), com Ralph
Towner e Gary Burton (1943): violão e vibraphone; Time Will Tell (1994) e Sankt
Gerold Variations (2000), com Paul Bley (1932), Evan Parker (1944) e Barre Phillips
(1934), respectivamente, piano, saxofones e contrabaixo; Circa (1997), com Michael
Cain (1966), Ralph Alessi (1963) e Peter Epsttein (1964): piano, trompete e saxofone.
Todos estes trabalhos apresentam uma outra característica do estilo ECM, que
pode ser relacionada a um princípio do free jazz, à abertura a culturas internacionais.
Eicher levou esta idéia a um extremo, colocando lado a lado em estúdio, músicos de
diversas partes do mundo, que muitas vezes tinham apenas como única característica em
comum o fato de trabalharem com a tradição oral na música.

83
Ex: Standards, vol.1 CD, e Standards, II DVD.
84
Dados do site oficial do selo: www.ecmrecords.com

48

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